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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES ISABELLA AMARAL SOARES MAIS UMA VEZ, SEU ANIVERSÁRIO: AS POÉTICAS DO ESQUECIMENTO ONCE MORE, YOUR BIRTHDAY: THE POETICS OF OBLIVION CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ISABELLA AMARAL SOARES

MAIS UMA VEZ, SEU ANIVERSÁRIO:

AS POÉTICAS DO ESQUECIMENTO

ONCE MORE, YOUR BIRTHDAY:

THE POETICS OF OBLIVION

CAMPINAS

2019

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ISABELLA AMARAL SOARES

MAIS UMA VEZ, SEU ANIVERSÁRIO:

As poéticas do esquecimento

ONCE MORE, YOUR BIRTHDAY:

The poetics of oblivion

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em

Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

Dissertation presented to the Institute of Arts of the

Campinas State University in partial fulfilment of the

requirements for the Master degree in Performing Arts,

major area of study in Theatre, Dance and Performance.

ORIENTADORA: ISA ETEL KOPELMAN

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA ISABELLA AMARAL SOARES E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

CAMPINAS

2019

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ISABELLA AMARAL SOARES

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN 2. PROF. DR. ADILSON NASCIMENTO DE JESUS 3. PROFA. DRA. VERONICA FABRINI MACHADO DE ALMEIDA

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade. DATA DA DEFESA: 18.02.2019

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Aos desmemoriados,

Àqueles que sabem demais através da escola tempo,

Aos avós.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Joelma, minha avó-mãe Eurides, meu avô Zé e meu irmão Leonardo,

minha família única e prestativa nos momentos mais difíceis da feitura desta pesquisa.

Ao Profs. Drs. Marcio L.F. Balthazar e Benito Pereira Damasceno por terem

possibilitado esclarecimentos acerca da Doença de Alzheimer, em especial ao professor

Balthazar por ter me permitido estar entre os pacientes.

Aos amigos Elisa Abrão, Gabriel “Danny” Perez, Gyl Giffony, Igor Nascimento,

Isabel Thaler, Júnior Romanini, Lis Nasser, José Nosé, Luciana Mitkiewicz, Maria

Furlanetti, Raíssa Guimarães e Ysmaille Ferreira, nosso tão belo clube de alegrias e

encontros intelectuais dançantes!

À Larissa Santana, ora Rita, ora Maria, ora Inácia, por sua amizade, disponibilidade

e generosidade artística.

Ao Juliano Jacopini pela escuta, sua visão de cena, paciência e sensibilidade ao

lidar com esse material humano e artístico.

Aos amigos e criadores da casa: Ana Flávia Felice, Diego Leal, Felipe Braccialli e

Isabela Moreira, tão próximos do caos que é conviver com alguém tão cambaleante em

seus humores.

Agradeço ao Rafael Gaona pelo auxílio nas traduções em inglês e pelas

referências do universo Beckett.

A todos os professores que compartilharam seus saberes sobre esta pesquisa, em

especial a banca Verônica Fabrini e Adilson Nascimento por terem aceitado fazer parte

desse processo acadêmico, além das apuradas contribuições de Silvia Geraldi.

Às contribuições musicais de Matheus Crippa e André Oliveira.

À Valmir Perez e Anderson Bonato pela composição e montagem de luz e

disposição alegre da labuta.

À Isa Etel Kopelman, orientadora e artista atenta no perspicaz trabalho da

sensibilidade que nos torna humanos.

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“- Vô, você está vivo?

- Não sei.”

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RESUMO

O presente trabalho investiga o tema memória como evidente na obra Cadeira de Balanço, de Samuel Beckett, e traça um paralelo com as narrativas de desmemorias, presentes nos discursos dos pacientes diagnosticados com a doença de Alzheimer, em especial, da figura íntima de meu avô. Busca-se a construção de uma dramaturgia cênica que aproxime ficção e a realidade através do distanciamento do discurso afásico como meio explicativo e expressivo do esquecimento. Palavras-chave: Memória; Esquecimento; Samuel Beckett; Alzheimer.

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ABSTRACT

The present work investigates the topic memory that stands out in Samuel Beckett’s work Rockaby, as far as draws a parallel with the narratives of forgetfulness present in the discourses of patients diagnosed with Alzheimer's disease especially the intimate figure of my grandfather. The aim is to build a scenic drama that approach fiction and reality through departure from the aphasic speech as explanatory and expressive medium of oblivion. Keywords: Memory; Oblivion; Samuel Beckett; Alzheimer.

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Sumário

INTRODUÇÃO AO ESQUECIMENTO.............................................................. 11

PARTE I: CADEIRA DE BALANÇO

1. PRELÚDIO: UMA MEMÓRIA ANTES DA MEMÓRIA... ............................. 18

1.1 Memória e Imagem .............................................................................. 24

1.2 O início está no meio . ........................................................................ 34

1.3 As memórias de Beckett - "o meu assunto é o fracasso".....................37

1.4 Cadeira de Balanço ou Canção de Ninar ............................................. 40

1.5 A memória do corpo nas obras de Samuel Beckett...................... .......49

PARTE II: CANÇÃO DE NINAR

2. A DEMÊNCIA COMO NARRATIVA POSSÍVEL .......................................... 59

2.1. O lugar íntimo da memória - os sítios inventados por Zé..................62

2.2. Narrativas improváveis: a escuta de outros Alzheimers.........................69

2.3 A doença de Alzheimer: aproximações narrativas ................................77

3. DA MEMÓRIA À AÇÃO............................................................................82

3.1 O santuário dos velhos.............................................................................85

3.2 As memórias com Raquel........................................................................86

3.3 Os depoimentos indizíveis......................................................................100

3.4 A criação de casa....................................................................................110

4. AS MEMÓRIAS FINAIS..............................................................................114

5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................118

6. VIDEOGRAFIA............................................................................................121

7. ANEXOS......................................................................................................122

Anexo I - Cadeira de Balanço.............................................................................122

Anexo II - Registros............................................................................................132

Anexo III - Imagens inspiração...........................................................................134

Anexo IV - Depoimentos.....................................................................................139

Anexo V- As imagens de Mais uma vez, seu aniversário...................................149

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INTRODUÇÃO AO ESQUECIMENTO

O trabalho do ator sobre sua memória individual pode tanto andar na direção de uma retificação do indivíduo, do sujeito, como servir de ponte para um ‘fora’ ou um ‘neutro’ (no sentido dado por Blanchot), servir de ponte para algo que seria impessoal. E isso vai depender de como pensamos e praticamos a subjetividade. Optaremos por uma memória que nos narra – que nos faz sempre idênticos a nós mesmos, ou, o que parece muito mais interessante, nos abriremos para uma memória que nos chama – que chama aquilo que é outro em nós? (MOTTA LIMA, 2016, p.6).

Numa perspectiva de prática psicofísica, o ator encontra meios de acessos

criativos e poéticos tornando-se, desse modo, um agente de reconhecimento de imagens,

conteúdos e readaptações nas quais a experiência atravessa seu corpo. Como um

caminho já percorrido, mas que é revisitado, o artista experimenta o rastrear de situações

referentes às suas sensações que podem ser mais uma vez vividas, recontadas de

acordo com o próprio momento que, por sua vez se abre a novas abordagens, imagens e

percepções. Readaptações poéticas são feitas de acordo com o que se vive no momento

atual, destacando contextos e ambientações, agregando as relações do indivíduo com o

mundo – o ambiente familiar, social, político e certamente tudo o que concerne enquanto

natureza humana.

Busco, assim, na memória viva impressa no meu corpo, a matéria para a construção da minha arte. Considero meu corpo como um espaço condensado, uma experiência viva em fluxo constante de atualização consigo e com o meio poroso, permeável. Ele sou eu e eu sou ele, não como meu receptáculo, por onde pairo ou me aprisiono ou me liberto, não como forças distintas em parceria, mas como unicidade múltipla. Ele é, eu sou, ‘eu somos’ essa pluralidade de experiências impressas na carne, ligados intrinsecamente ao tempo, ao passado acumulado no presente que é o meu corpo, que é presente e passado, ou só passado presente, já que o presente é fugaz e se torna assim que se imprime. (COLLA, 2013, p. 51).

Como um despertador de imagens e ações, as percepções das memórias dançam

através do corpo e exprimem todo o contexto social, ambiental, político e cultural que

estão inseridos nas vivências do ator, o qual cria conexões em fluxo contínuo entre o

passado e o presente para gerar relações entre as memórias que de fato aconteceram,

além de possibilitar recriações e possíveis desdobramentos imagéticos a partir de uma

sensação, lembrança ou contexto do passado. Como campo de experimentação, é no

corpo que se dá a criação de conhecimentos obtidos de suas percepções e de

movimentos correspondentes a tudo que foi vivenciado pela artista.

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Partindo deste pressuposto, busca-se nessa imersão artística e acadêmica

investigar a memória, a qual parte das minhas observações sobre a peça Cadeira de

Balanço, de Samuel Beckett em relação às memórias compartilhadas pelos portadores da

demência de Alzheimer, suas narratividades surgidas pela observação, em especial

relatadas mais intimamente pelo meu avô materno, o qual também sofre da mesma

doença e que desencadeou meu interesse em concatenar e perceber as semelhanças

entre a peça de Beckett e o estado que a doença provoca. Opta-se nesta pesquisa ir do

micro, da doença familiar ao macro, da doença relatada por pessoas desconhecidas, num

contexto mais abrangente e social, como nos pacientes observados no Ambulatório de

Neuropsicologia e Demência do Hospital de Clínicas da UNICAMP.

O foco da pesquisa baseia-se em construir uma dramaturgia corporal e cênica que

aborde histórias compartilhadas pelos portadores de tal doença. Assuntos como

repetição, imagens, solidão, o esgarçamento do tempo e o esgotamento da linguagem

permeiam esta pesquisa, seja como mote, ou como via criativa escrita e também como

partitura corporal.

Imagens do passado, da infância e da minha relação com o meu avô materno

aparecem nesta pesquisa também como rubrica ou introdução poética do que busco

realizar no meu trabalho de atriz. Desta forma, creio que o destaque que parte da

experiência e dos relatos narrativos estruturem a pesquisa não só como meio criativo,

mas de trazer à tona uma linha de narratividade que se assegurará enquanto escrevo e

atuo como pesquisadora. Isso serve como introdução não só a pesquisa teórica, mas

como prólogo de uma memória que se evapora pela linguagem, ou seja, na maneira como

escrevo e também como isso pode ser expresso enquanto via cênica de criação.

Também estão presentes na pesquisa enlaces culturais que partem do

deslocamento de revisitação do passado para se construir uma narrativa que é presente.

A identidade de meu avô, objeto a ser narrado, é construída a partir dos fragmentos

cotidianos da familiaridade, da escuta de sua doença e da convivência de todos que

participam de sua trajetória atual.

O quadro teórico deste estudo se apoia nos estudos de Gaston Bachelard, Ecléa

Bosi e Paul Ricoeur; pesquisadores que investigam a obra dramática de Samuel Beckett,

além de estudiosos que se debruçam sobre a temática do Alzheimer. A metodologia deste

trabalho parte da captura do olhar fenomenológico em interação direta com a criação

poética que estabelece relações com imagem, imaginação e lembrança como propostas

pelo filósofo Henry Bergson. Sob a perspectiva da cena, alguns investigadores contribuem

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para esta pesquisa, tais como os relatos de Ana Cristina Colla, Jean-Pierre Sarrazac,

Juliana Fontes Leite e Juliano Jacopini entre outros postulados.

Destaco que haverá momentos em que as teorias se alinharão às horas de

devaneio como via de escritura deste processo e que possuo a pretensão de aprofundá-

las futuramente. Assim como o ato de se lembrar, a escrita dessa dissertação funciona da

seguinte forma: lembrando, reorganizando e indo e voltando às informações nas páginas,

como se somassem uma às outras, espécie de linha de costura que retoma o furo já

adentrado. Deste modo, a leitura do texto a seguir forma, aos poucos, um tecido de

retalhos, escrito de forma lúcida, porém, deixando-se emaranhar-se pela desestabilização

das memórias e a instabilidade comuns da demência de Alzheimer, lançando cada vez

mais longe um anzol que tenta fisgar das profundidades do esquecimento alguns

fantasmas na memória.

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PARTE I: CADEIRA DE BALANÇO

Segundo a mitologia grega, Cronos, deus do tempo, devorava os próprios filhos para que nenhum deles pudesse um dia roubar-lhe o trono. [...]. Essa lenda destaca o caráter destrutivo do tempo, tão valorizado pelo senso comum. Os objetos queridos, as paixões, as realizações mais grandiosas cedem perante esse ‘senhor’ que parece reger os destinos. [...] O tempo cronológico, conforme é concebido no cotidiano, escorre na passagem da areia pelo orifício da ampulheta, nas badaladas de um velho carrilhão, no tique-taque do despertador ou em qualquer outro instrumento que se queira tomar como referencial de medida. Porém, em vários momentos temos a sensação de que o tempo vivido e o tempo cronológico não estão juntos. As horas e os dias muitas vezes indicam haver descompasso entre o que marcam os relógios e o os nossos sentimentos, o que indica ser o tempo pessoal regido por humores e sensações subjetivas. A alegria e o prazer são geralmente acompanhados pela sensação de passagem rápida do tempo, enquanto a tristeza, o medo, a espera, parecem fazer de cada minuto um século. Neste sentido, o passado não possui apenas a dimensão do já acontecido, da ‘aurora de uma vida que os anos não trazem mais’, como sugeriu Casemiro de Abreu. Ao contrário, pode anunciar-se como possibilidade do vir a ser. (SCHWARTZ, 2008, p. 1-2)

O Tempo, mais uma vez1. Mas o que é o Tempo? Como consta no Dicionário

Aurélio e chega-se às seguintes definições de um assunto que se estende em vinte nove

tentativas de comprimi-lo em ideias do Homem:

1 - Série ininterrupta e eterna de instantes.

2 - Medida arbitrária da duração das coisas.

3 - Época determinada.

4 - Prazo, demora.

5 - Estação, quadra própria.

6 - Época (relativamente a certas circunstâncias da vida, ao estado das coisas,

aos costumes, às opiniões).

7 - Estado da atmosfera.

8 - Temporal, tormenta.

9 - Duração do serviço militar, judicial, docente, etc.

10 - A época determinada em que se realizou um fato ou existiu uma

personagem.

11 - Vagar, ocasião, oportunidade.

1 Frase dita por Mulher, personagem da “Cadeira de Balanço”, de Samuel Beckett. Tal frase é repetida mais três vezes ao longo da peça.

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12 - Inflexões do verbo que designam com relação à atualidade, a época da ação

ou do estado.

13 - Cada uma das divisões do compasso.

14 - Diferentes divisões do verso segundo as sílabas e os acentos tônicos.

15 - Instante preciso do movimento em que se deve efetuar uma das suas

partes.

16 - Época correspondente à formação de uma determinada camada da crosta

terrestre.

17 - Quantidade do movimento de um corpo ou sistema de corpos medida pelo

movimento de outro corpo.

18 - a seu tempo: em ocasião oportuna.

19 - com tempo: com vagar, sem precipitação; antes da hora fixada.

20 - matar o tempo: entreter-se.

21 - perder o tempo: não o aproveitar enquanto é ocasião; trabalhar em vão; não

ter bom êxito.

22 - perder tempo: demorar-se.

23 - tempo civil: tempo solar médio adiantado de doze horas.

24 - tempo de antena: duração determinada de emissões de rádio ou de

televisão difundidas no quadro da programação.

25 - tempo sideral: escala de tempo baseada no ângulo horário do ponto vernal.

26 - tempo solar médio: tempo solar verdadeiro, sem as suas desigualdades

seculares e periódicas.

27 - tempo solar verdadeiro: escala de tempo baseada no ângulo horário do

centro do Sol.

28 - tempo universal: tempo civil de Greenwich, em Inglaterra (sigla: T.

29 - tempo universal coordenado: escala de tempo difundida pelos sinais

horários (sigla internacional: UTC).

Tempo, Cronos ou Saturno para os romanos, é o que sustenta toda possibilidade

de nos tornarmos cada vez mais humanos, seja em sua prática, seja em sua maneira de

observar e lidar com o mundo. Segundo GONÇALVES e VIEIRA (2010, p.2) “a

humanidade não conhece o tempo a partir dos sentidos, mas pode perceber que ele

decorre, e por isso consegue compreendê-lo como a segunda dimensão da realidade

vivida” Temos, portanto, uma intuição do que seria o Tempo, já que não conseguimos

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senti-lo como coisa palpável, mas apenas denominá-lo pelo o que se é abstrato, tendo

sua percepção por outras maneiras...

É no Tempo que somos, independentemente do Lugar. É no e durante o Tempo

que o crescimento reside, assim como as perdas. É em Tempo que nos descobrimos

quando lidamos diretamente com obstáculos. Tempo é perda de cabelos, aproximação da

velhice, é o que nos transforma enquanto seres em contínua experiência. De ir, de

continuar, de voltar, de momentos de desistências, de persistir, de obter, de viver, pois. É

o Tempo que resiste e é ele também que também agride ferozmente os nossos ossos.

É através do Tempo que corroemos fatos históricos, guardados pelos segredos da

morte. O Tempo sempre lança olhos ao passado e de como encaramos o ato de escavar

nossa própria história para nos redescobrimos. Revemos os ossos antepassados, a

história encoberta, as cidades que se perpetuam abaixo do real que é o Tempo hoje. O

Tempo também nos cobra responsabilidade e maturidade. Os ossos também se baseiam

horas de preocupação, labuta, atenção. O osso é o Tempo que sustenta.

Deste modo, apoio-me na primeira parte desta pesquisa sobre o que foi resgatado,

mas também aquilo que impulsionou teoricamente este trabalho. Olharemos para trás

num percurso que busca se embasar no passado para se fazer presente. Neste caminho,

descobriremos a Memória, outra divindade, musa da recordação, do talhar o que se está

subjacente, do que ainda é convencional, do começo. É no estudo sobre memória que

veremos as conexões dos tempos passado e presente, por ora desconexos

propositalmente. O passado, portanto, a memória, e inevitavelmente o Tempo servem

este trabalho como armazenamentos de futuro, mas resgatando laços que os unam antes

de um possível esquecimento acometer essa estória.

Aproximaremos-nos, desta vez, de aspectos teóricos e também de indícios da

velhice e desencadeamentos ou princípios do esquecimento acometidos pela doença de

Alzheimer. Veremos também o estudo acerca da obra Cadeira de Balanço/Canção de

Ninar, de Samuel Beckett, o passado histórico e criativo deste dramaturgo e, finalmente, o

início se dá pelo fim de uma longa jornada2, do retrato senil do Avô acometido pela

doença e suas restrições através dos avanços que o faz voltar ao passado, mais uma vez,

retribuindo aos presentes fluxos de inventividades que são quase impossíveis se não

fosse através da Arte. Os limites impostos pelo Tempo representam não só o esforço, a

dor e a rigidez de um corpo, mas abrem caminhos para enxergar além da frustração, do

2 Outra fase que se repete ao longo de Cadeira de Balanço. No total, treze vezes

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cansaço, do cuidado e do reconhecimento de que não somos duráveis. Time may change

me/ But I can't trace time3

Francisco de Goya - “Saturno devorando um filho” - 1819 - 1823

3 Letra da música Changes, de David Bowie. Tradução nossa para “O tempo pode me mudar, mas eu não posso enganar o tempo”

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1 PRELÚDIO: UMA MEMÓRIA ANTES DA MEMÓRIA

Só ao me reviver é que vou viver. Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se

fosse criar o que aconteceu? (Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H)

Foi perto da água e da serra que vim. Minha terra salgada de suores outros, lá de

longe e de cima. Falo de forma turva, imagem nebulosa, como se as brumas do passado

me fizessem clarear, aos poucos a uma história que tento imaginar numa folha em

branco. Desenho nesta folha os nordestinos que pousaram no pé da montanha4 e fizeram

sua morada. Mas foi embaixo, no sudeste paulista que compreendi a urgência de

emancipação e de ser água fugidia. Mas para isso, preciso devolver à terra ontológica

uma invenção de um passado que precisa ser criativo de alguma forma. Se tenho o

desejo de falar sobre memória, é por que dessas águas sou e me retomo, como mulher,

artista e pensadora no fazer artístico deste nosso Brasil atual.

Águas de memória. Encontro nessa matéria lúbrica correlações com as memórias

que escorrem. A memória é a própria substância das águas. Forma e matéria. Água

sempre foi presente, hoje, saudade. Água do mar que percorre pela maresia que

inundava as casas. Cheiro de peixe. Voltar da escola era isso: passar pelo mercado

municipal e sentir a fome me estuprar as tripas. Duas quadras do mar. Casa dos avós

maternos. O mar foi minha nutrição e me é saudade. Há, para quem mora próximo das

águas marítimas um cheiro específico, como se a areia fosse capaz de se transformar em

louça e em todos os lugares tocáveis tivessem resquícios de pó salgado. Há de se fechar

as janelas ou colocar lençóis grossos quando se sai de casa nas férias, caso contrário os

aparelhos eletrônicos começam a ser inúteis antes da hora. Umidade, frescor sempre.

Hoje, passado. Mas a viço existe e me toca quando revejo através da pele essa sensação

que o vento do mar me traz. Às vezes lembro-me do mar em Campinas, mas isso

depende muito do vento. Um vento do interior nunca é um vento de praia, mas às vezes

me engano. Foi um vento que pareceu de mar e não foi...

Apresento dois lugares5 que vou e volto pela lembrança compartilhada de meu avô

e também de minha avó, senhores esses que farão parte de minha trajetória escrita e

4 Cubatão significa sopé da montanha. É nessa cidade que ainda habitam meus avós e grande parte da família. Local que cresci e permaneci até os dezessete anos de idade. 5 A esse respeito, o geógrafo Milton Santos descreve: “A territorialidade é, igualmente, transindividualidade,

e a compartimentação da interação humana no espaço (Sanguin, 1977, p. 53; C. Raffestin,1980, p. 146; Soja, 1971) é tanto um aspecto da territorialidade como da transindividualidade.” (2006, p.215).

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também prática. De cima vieram e se hospedam na terra sudeste, São Paulo, Cubatão.

Mas antes houve:

Nordeste: O pó da estrada, as crianças que pediam moedas na beira do seco.

Imagino como era seu caminhão. Meu avô era caminhoneiro e segue nordestino em todos

os lugares que passa. Foi nordestino em Brasília quando serviu o exército. Foi nordestino

quando decidiu morar em Cubatão e ainda permanece sendo nordestino nesse lugar. Foi

nordestino quando foi a Alagoas e descobriu o amor por Vó, vestida com uma gola

vermelha, diz ele6.

Os nomes de meu avô são de fora para dentro: caminhoneiro, Cordeiro etc.

Os nomes de Vó são de dentro para fora. Mulher, Mãe, Vó. Ela quem dá de tudo,

até demais. Vô sempre esteve fora e por fora, viajando o Brasil de norte a sul, foi ao

Paraguai várias vezes. Lembro que havia na sala uma coleção de moedas estrangeiras e

antigas, com desenhos diferentes dos quais já havia visto. Tinha também um pote com

cruzeiros ou cruzados, não lembro bem. Lembro-me das cores e dos tamanhos. Dentro

da carteira de minha avó havia um dólar. Deixava lá para nada, só por deixar. Meus avós

nunca saíram do Brasil, são permanentes na Baixada Santista, movem-se apenas pelas

proximidades. Vó teve dezenove irmãos, hoje quase todos mortos. Alguns vieram para o

Sudeste. Vó os visitava frequentemente. Morreu um tio-avô há dois anos. Sobram por

aqui uma tia-avó caduca e outra quase bem. Mas por que lhes digo isso?

Lembrei. Disse isso por que meu avô, nordestino, sempre foi um estrangeiro dentro

de casa. Primeiro por que não era paulista e conserva o sotaque característico de um

pernambucano brejeiro. Vô é branco branquíssimo, mais branco que minha Vó. Um

segredo: Vó tem por apelido Nega, dona Nega. Ninguém sabe seu nome e eu só aprendi

o nome do RG quando finalmente aprendi a ler. O segredo maior era o seu nome. Mas

voltemos. Vô foi nordestino por onde passou. Em Brasília, quando Brasília nem era

Brasília meu avô estava lá, com um monte de nordestino construindo a futura capital do

país. Lá ele foi cadete por um tempo antes de cairmos na ditadura. Assim ele me disse:

Eu gosto de missa. Me deixa informado por um par de coisa. Graças a Deus (tira o boné)

eu estudei um pouquinho. Eu comecei da matina, da matina, do começo até o fim. Eu estudei num

6 Com referência ao que foi colocado, o sociólogo Stuart Hall diz: “A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada” (HALL,1999, p.38)

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20 bocado de lugar. Em Minas, Brasília. A gente tinha um quartel católico. Era tudo intermédio de

militar. Quando eles olhavam para nós a gente entendia e já ia.

Cubatão: Chuva dentro de casa que escorria pela parede, bolor. Uma imagem de

Nossa Senhora Não Sei O Quê. Cd’s do Pe. Marcelo Rossi. Uma vitrola antiga, disco para

crianças. Mesa cumprida cheia de papéis, contas a pagar. Retrato dos netos. Um terço.

Noite. O velho cambaleia. Erra o buraco da fechadura. Desiste. Olha para os lados na

calçada. Vejo tudo por detrás da cortina, dentro de casa. A porta era inteira de vidro,

daquelas portas que viram duas, como se fossem janelas adultas, do chão ao teto.

Acho que ele não entra, não sei. Me esqueci desta parte. Ele fede a álcool,

conversa com o cachorro. Fala sobre Sebastiana.

- Vó, quem é Sebastiana?

- A mãe dele.

O cachorro tem a língua suada para fora. Pinga, pinga. O velho abraça o cachorro

e em seguida puxa sua orelha.

- O Zé, para com isso.

Invento: vou ao quarto, dos fundos. Lá me escondo. Milhões de livros antigos,

daqueles que se compravam na rua. Eram dos meus tios e de minha mãe. Leio. Releio.

Não entendo nada. Prefiro as imagens, como sempre. Gosto das cores. Não faço barulho,

mas também não posso apagar a luz. Tenho medo de escuro. Percebo que o Velho se

aproxima. Senti pelo cheiro. Será que me escondo debaixo da cama? Não consigo. A

cama é muito baixa para isso. Vou fingir que não é comigo. Meu Deus, o que eu faço?

Fico bem quietinha. Percebo que ele para na porta, tenta enxergar algo, não consegue,

passa adiante. Ufa! Descontraio a barriga. Dessa vez ele não veio falar comigo. Que

horror, que bafo. Odeio esse bafo. Por que ele bebe tanto?

A chuva corre em mim Esta que era, fui brasa evaporada

sob as gotas do medo7

7 �Laís Corrêa de Araújo,Autorretrato. <http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2017/11/lais-correa-de-araujo-1928-2006.html>

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Eu e Seu Zé somos finalmente neta e avô. Mas hoje serei adulta por um tempo

enquanto esse menino grande descobre pela primeira vez o banheiro de sua própria casa.

Vou cuidar desse memória que pela metade inventa e enquanto a outra se apaga. Meu

tipo de afeto será pela palavra que escrevo e pela dança que almejo. Vou ser um tipo de

menina, ‘mais grande’, mais menina ainda, com os doze ou treze, ele não se lembra,

mesmo eu passando atualmente na casa dos vinte. Quem se aproxima agora sabe de sua

mansidão, de olhar gratuitamente ao horizonte. Onde ele está?

-Vô, tá tudo bem?

-Eu tô bem, é você que tá me olhando.

Ou como diz Nietzche “É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem.”

O que lhes digo hoje é minha imagem sobre meu avô, não o que meu avô é. São

as minhas memórias sobre ele. Recordância de mim. De mim mesma. Da imagem que

tenho hoje do meu avô. Tirar da memória o meu avô do passado, do que ele era antes.

Julgava ser antes. Nunca mais. Nunca mais no presente, outro Zé do futuro. Zé Porvir.

Seu Zé. Essa é a imagem que construí a partir do que me foi refletido a vida inteira. Lá no

fundo da minha recordação mora um ancião e com ele tento rastrear suas pegadas, as

memórias dos outros também confluem, pessoas que participaram dos passados com ele,

acompanharam sua trajetória filhos, avó, tios, primos. Escuto a todos e com todos os

pincéis vamos desenhando uma imagem, mesmo que borrada, do passado. Vamos ao

que ele me diz. Começar de novo. Ele me conta sua história encantada pelo delírio.

Recomeçar a criar outras memórias do passado.

Quase me esqueço:

Zé Cordeiro de Deus, acompanhado às vezes de – Aquele que tira o pecado do

mundo, Vô ou Velho.

Vem o nobre pernambucano. Nobre das índias, das caboclas, dos reminiscentes do

Sertão. Me esqueci o nome. Sertânia8. Sertânia, a memória me diz. Me lembrei agora.

Sabia que era um nome seco. Sertânia9. Infância. Lembra da infância, da secura, dos

8 Cidade localizada microrregião do Sertão do Moxotó, interior de Pernambuco. 9 Segundo Lowenthal (1975), o passado é um outro país... Digamos que o passado é um outro lugar, ou, ainda melhor, num outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação. Para os migrantes, a memória é inútil. Trazem consigo todo um cabedal de lembranças e experiências criado em função de outro meio, e que de pouco lhes serve para a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de entendimento da cidade. Suas experiências vividas ficaram para trás e nova residência obriga a novas experiências. Trata-se de um embate entre o tempo da ação e o tempo da memória. Obrigados a esquecer, seu discurso é menos

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trabalhos em Brasília, das viagens, das putas, do amor macabro da posse. Fala pouco da

minha avó. Às vezes a desconhece.

Ela, vó, por sua vez será chamada apenas de Vó. Mas dentro da Vó existe mãe e

mulher, daquela que se excede na educação e doação ao homem da casa. Algumas

coisas mudaram desde então. Seu homem é um menino. Há hoje em dia um controle

sorrateiro em comparação ao que era antes. Vó não é mais companheira, é também

babá. O nome que dou a minha vó de Vó é um nome mais leve, brando, mera tentativa de

criar um nome Xamã, curto, de compreensão instantânea. Vó é a grande representante

da mãe em silêncio, menina fica quieta sou avô tá falando. Vó é uma mulher em

experiência. Vó já passou por tudo: Oxum, Yemanjá, Nanã. Outra reminiscente do Sertão,

outro estado: Alagoas, mais feio e pobre, mais atrasado – minha vó disse uma vez que

Alagoas era mais atrasado que Pernambuco, essa é a minha referência. Ela disse que

não tinha certidão de nascimento porque ninguém anotava as horas. Jamais saberei seu

ascendente. E além disso, a data de aniversário no RG consta a data errada, de um ano

antes. Sendo assim temos: Sol em Leão, Lua em Peixes. Plutão em quase conjunção

com Sol. Não sei, não posso dizer, não tenho a hora, só tenho a data. Vó do RG,

portanto:

Leonina com Lua em Peixes.

Quase um caminho de artista, reluzente. Tonto, fosco como a visão de um peixe.

Com certeza e fé absoluta de um artista. Quase a promessa ou herança de desembocar,

lá na frente, uma tentativa de artista, nascida no ano de 1992, essa que transcreve essa

história. Mas o mapa da vó verdadeiro, vamos a esse mapa. Relembre. “Ela disse que

não tinha certidão de nascimento por que ninguém anotava as horas. Jamais saberei seu

ascendente. E, além disso, a data de aniversário no RG consta a data errada, um ano

antes [...]”. (Página acima). Assim temos:

Vó verdadeira. Aquela que me criou de casa. Eu fugia do castigo da mãe para o

conforto da Vó ou a minha Salvação. Sempre doce, sempre bolinho de chuva. Sempre

contaminado pelo passado e pela rotina. Cabe-lhes o privilégio de não utilizar de maneira pragmática e passiva o prático-inerte (vindo de outros lugares) de que são portadores. (SANTOS, 2006, p. 223)

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Vó. Sempre aquela que me deixava mexer no cabelo, mexer nos cremes. A vaidade

começou dai. Leonina. Jamais saberei o ascendente. Eu sou leonina. Vó: leonina com lua

em Câncer.

Minha vó, portanto, é a rainha do drama e da memória. Mnemósine, a mãe das

Musas. Deusa da invocação da memória e de inspiração. Ela se lembra de tudo, corrige o

velho, relembra junto com ele. Vó é um corretor automático. “Não, não foi bem assim.

Não. Era fulano não sicrano. Ele já morreu, você não se lembra? Meu nome é..., Bella,

seu avô se esqueceu de mim outra vez.” Vó é uma Xamã10 de Memória11.”

Arcano XVIII

10 “O dever da memória consiste essencialmente em dever de não esquecer” (RICOEUR, 2007, p. 48). 11 Sobre este trecho de recordação, há uma passagem extraída do livro A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricouer, que condiz perfeitamente, citando também o pensamento de Henri Bergson: “A recordação da lembrança pertence a uma imensa família de fatos psíquicos: ‘Quando rememoramos fatos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos um discurso, quando acompanhamos o pensamento de outrem e quando nos escutamos pensar a nós mesmos, enfim quando um sistema complexo de representações ocupa nossa inteligência, sentimos que podemos tomar duas atitudes diferentes, uma de tensão e a outra de relaxamento, que se distinguem principalmente pelo fato de que o sentimento do esforço está presente numa e ausente na outra’ (op.cit., p. 930).

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Tanto a Lua quanto a casa 4 dentro da astrologia significa a figura da mãe, além de

ser nosso arquétipo feminino dentro de um mapa astral. Logo, quando nos perguntam

“qual é a sua Lua”, a pessoa quer saber como de fato foi passado o amor maternal e

como se enxerga a mãe, ou seja, como se dá primeiro contato feminino. A Lua é,

portanto, nossa primeira intimidade, o olhar da criança perplexa pela beleza da mãe, o

sorriso e o choro. É a nossa familiaridade. E como tudo muda o tempo todo, nossa

intimidade está fadada a constantes mudanças, o que é muito positivo. Novos membros

da família chegam, outros se vão. Inicia-se uma fase, termina-se outra. Todas as

mudanças e inconstâncias da vida. O ciclo voluptuoso das marés que modificam-se

primeiramente pela mudança da lua lá no alto. Da luz indivisível que, aos poucos se

transborda em Lua Cheia. Aqui na Terra chove, a maré muda, as plantas crescem, as

mulheres ovulam. Tudo num grande círculo lunar. Do escuro à boa fortuna. A Lua é o

relógio do mundo.

1.1 Memória e Imagem

A imaginação não é como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassem a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. Um homem é um homem na proporção em que é um super-homem. Deve-se definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição. (BACHELARD, 1997, p. 17-18).

Por invenção damos vida até a nossa memória. Alimentamo-la com experiência,

fluxo depois de fluxo, do conhecimento ao esquecimento. Se a memória existe e pulsa é

por que tenta recriar o passado no momento presente. Reorganizamo-nos presentemente

como éramos no passado. O corpo é um ato e como matéria de memória, estamos ainda

contidos nas matérias orgânicas que desenharam o percurso de uma dada história. Assim

como aqueles homens que, ao observarem os animais, conseguiram através da

pigmentação, colocar um pedaço da história numa caverna. Esses homens exprimiram

não só os relatos cotidianos, mas o envolvimento com ambientes que os circundaram.

Da terra, os homens do passado retiraram as mais diversas matérias-primas do

discurso necessário para nos transmitir uma história. Os pólens e a madeira queimada

dos troncos. Transformação. Pó que misturado com o leite das plantas ou a gordura

vegetal se transformava em tinta. Sangue animal também era cor quando se enfatizava a

presença do vermelho. Mas por quê tudo isso, essa descoberta material, orgânica e de

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transformação do ambiente? O que levou o homem a retratar o seu entorno e a sua

vivência numa pedra? A necessidade de nos contar o que viram e devido a um desejo ou

tentativa de nos contar uma história, as cavernas pré-históricas foram as primeiras

narrativas do mundo.

Os bisões pintados na Caverna de Lascaux, por exemplo, são memórias. Não são

os bichos, os bisões. Não há a materialidade do bisão bicho em carne e osso. Aquele

animal não faz parte enquanto materialidade de outro material que é próprio de uma

parede.

“Bisão”. Imagem retirada do site http://archeologie.culture.fr/lascaux/ Tomemos um exemplo, diz Aristóteles: a figura pintada de um animal.

Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo quer em si mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma eikon (‘uma cópia’, dizem nossos dois tradutores). É possível, porque a inscrição consiste nas duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa (allou phantasma); aqui, o vocabulário de Aristóteles é preciso: ele reserva o termo phantasma à inscrição enquanto ela mesma, e o termo eikon para a referência a outra coisa que não a inscrição. (RICOEUR, 2007, p, 36).

O bisão desenhado é memória, uma imagem que crio através do que é

experienciado. Para Bergson “a própria imagem, considerada em si, era necessariamente,

no início, aquilo que será para sempre” (BERGSON apud RICOEUR, p. 44, 2007). Uma

memória que imagina, de modo que ao evocar o passado e pelas imagens que passam

pelo caminho da cabeça e os sentidos do corpo, abstraem o tempo presente e se

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colocam, mais uma vez como presentificação ou invenção do passado, o qual será posto

em paredes o que foi e o que é sua memória. Logo, o homem se lembra e cria a partir da

imagem que se tem do passado. Registra, portanto, um outro tipo de matéria, mais

criativa, ao recriar o que se vive e destacar de modo diferenciado a realidade que o

circunda e que lhe é habitual.

Num outro registro, evoco as estrelas de um mundo distante de Van Gogh. Ele não

desenhou uma estrela, mas a imagem que ele tem da estrela. O artista desenha, dá o

nome do quadro de A Noite Estrelada. Van Gogh parte, portanto, do imaginar e desse

imaginar nasce a tentativa de trazer a uma realidade mais palpável, mesmo que seja um

quadro, de aproximação das estrelas.

Van Gogh – “A Noite Estrelada” - 1889.

A solução é hábil, mas comporta suas próprias dificuldades: a metáfora da impressão, de que a da inscrição pretende ser uma variante, recorre ao ‘movimento’ (kinesis), do qual resulta a impressão; esse movimento remete, por sua vez, a uma causa exterior (alguém, alguma coisa cunhou a impressão), ao passo que a dupla leitura da pintura, da inscrição, implica um desdobramento interno à imagem mental, diríamos hoje uma intencionalidade dupla. Parece-me que essa nova dificuldade resulta da concorrência entre os dois modelos, da impressão e da inscrição. (Ibidem, p, 37).

As imagens ou impressões do passado são, neste caso, o impulso para a

concretização em movimento, ou melhor, uma continuidade do que é mental ou até

mesmo virtual, para a materialidade atual no momento em que se compõe. Em outras

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palavras, a realidade é a continuidade da imaginação, se apoiando em ferramentas que

destacam o passado com a vividez do presente. No entanto, assim como o quadro

destaca, alguns pontos – cores, intensidades, nuances - são possibilidades de uma

releitura e até mesmo distorções do que foi visto e vivenciado.

Busco imaginar e rever as imagens do passado, relembrar o que se foi - e se me

lembro mais uma vez é por que a imagem permanece, quer ser tocada. Enxergo isso

como um pedido de liberdade. Quando se exige um processo de construir sentido e

nomear as coisas latentes e pujantes, numa tentativa de se fazer consciente a invenção

criativa, denominamos imaginação. (LEONARDELLI, 2008, p. 138.)

A memória parte, portanto, como propulsora no processo imaginativo, de natureza

ficcional e finalmente como criatividade exposta como um outro tipo de materialidade,

uma memória com fins até mesmo distantes do que foi relembrado e desta forma, a

criação em si se transforma num objeto que pode ser indireto e subjetivo, assim como um

olhar mais voltado a veracidade dos fatos com uma perspectiva mais distanciada, como

no caso dos historiadores, que observam a história humana não por um viés individual,

mas sim por uma contação de história através do coletivo. Não obstante, o desejo de

contar uma história, ou seja, de compartilhar o que foi visto e até mesmo inventado não

somente forma o que somos, como seres humanos, mas nos lembra constantemente a

importância do que guardamos enquanto experiência a nossa formação de identidade.

Saber sobre a importância do passado e como isso nos chega até hoje pode tanto nos

impulsionar a recriar nossa maneira de ver o mundo, assim como nos alertar sobre o que

não se pode revigorar ou abastecer onde vivemos, vide o escoamento econômico,

ecológico, político e das atrocidades mundiais como a maldade e descaso, como visto de

maneira ampla pela 2ª Guerra Mundial e a violência contra as minorias que infelizmente

ainda presenciamos até hoje, além de descasos sobre a própria condição humana. O que

nos falta é história? Um olhar aprofundado do que somos hoje? Das mudanças e

atualizações de costumes, adaptações, recriações e uma possível imaginação de um

claro futuro.

Não obstante, tanto na história e na arte arqueológica a qual devemos nossa

narrativa, sublinho a importância de que o passado ainda nos move de maneira

atualizada, com outras materialidades e necessidades. Ao se tratar do que nos é atual,

passamos constantemente por fases de novas configurações atualizadas, modernizações

compactas, aparentemente efêmeras e de alta propagação instantânea.

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Adentro tantas memórias impermanentes e repletas de uma tentativa de se

materializar o presente através de fotografias ou meios de informação das redes sociais

virtuais, qual é a história que deixaremos por aqui? Ou, qual é a necessidade de nos

deixarmos modificar por esse universo tão distante de construção e obediência aos

modelos estabelecidos pelos poucos que interferem na vida da maioria? Enquanto força

criacional e de permanência, qual é a nossa bagagem, nossa matéria enquanto

construção poética e de existência? Não é uma pergunta que necessariamente contém

uma resposta...

Finalmente, tentamos deslocar ou nos adaptarmos ao que o mundo nos sugere,

com caminhos para um deslumbramento quando possível. Somos uma caverna de

Lascaux, reunindo o deslocamento do que vimos e re-imaginamos, redesenhando o

tempo todo o que vimos e falamos, criando novas abordagens do que presenciamos e

esse presente já é passado. Numa esfera mais individual, como resgatamos o passado ou

o que nos revigora? Como recordar outra vez? Ousa-se realinhar as formas, os

tamanhos, o domínio ou não da palavra dita ou não foi assim que foi dito? O que

relembramos e destruímos, mudamos a reorganização das palavras ou ocultamos,

invenções de uma nova tonalidade da memória? Relembrar pela repetição dessa

passagem do passado para olharmos mais uma vez ao que éramos e vemos a nossa

percepção do mundo. Ser ao mesmo tempo um trânsito que reúne o passado e o

presente numa tentativa de ação ou apenas uma memória passiva, ligeira, de passagem.

Desse lugar de transitoriedades opto por trabalhar com a memória que me resta ou que

fica, que permanece, seja pela minha história, seja por uma tentativa de estória, de trazer

a tona uma materialidade atual do que presenciei no passado. No caso, esta pesquisa

parte de um olhar íntimo para dentro de casa e da degradação da memória do meu avô

que vê sua própria história por um viés mais ficcional e de releituras constantes e

inventivas. No entanto, o fato dele inventar a partir de sua própria bagagem pessoal já

não é uma nova criação ou até mesmo uma outra realidade, encarando e permanecendo

enquanto outra realidade que vem da própria doença de Alzheimer?

Por imaginar, já não existimos, como quando o homem imaginou uma possível ida

a Lua? Talvez seja o primeiro passo. Mas a doença de Alzheimer, não possui uma

finalidade criativa de concretizações. É um caminho de retornos sem fim à mesma

pergunta - indagação de limbo que é o esquecimento. Como narrativa, não há uma

qualidade de ápice ou até mesmo de continuidade. A própria dúvida é a resposta e

provavelmente a dúvida que acompanha o depois. Por quantas e quantas vezes será

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necessário repetir para que finalmente meu avô se lembre que o lugar que ele pergunta

estar é a sua própria casa? Talvez meu avô se perdeu no caminho ao presente e do

próprio lar. Se for assim, sua flor sempre fica na semente12, retornando ao processo inicial

de imaginação. Não se cria mais no atual, mas projeta o passado no que conhecemos

hoje, como flutuações temporais entre o que foi e o que é. Assim como o homem da Lua

que imaginou pisá-la, meu avô vai de uma estrela a outra, mortas, tias, irmãs, parentes e

o que vemos aqui da Terra, do que nos é dado como terreno, nada mais é que um reflexo

daquelas estrelas, mortas, tias, irmãs, parentes, lugares desconhecidos. A constelação

que meu avô desenha em Terra são como personagens: Eu sou Corrinha, estrela-tia

quase morta, minha mãe é uma tia antiga de nome esquisito, minha avó às vezes é

chamada de mãe e por aí vai. Os meninos não são mais os meninos, meu avô os

desconhece. Já são grandes os meninos e já tiveram outros meninos, mas a imagem de

meus tios, filhos do Vô não batem com a descrição que ele entende por meninos. Os

meninos são grandes, logo, não são mais os meninos. Quem são esses aí? Como um

curto-circuito de imagens.

Tempo ___________________________________________>

Linha cronológica dos fatos e acontecimentos da vida

Memórias

<_________________________________________________

Para Bergson, existe uma diferença entre lembrança e percepção. O último é um

“resultado de uma interação de ambiente com o sistema nervoso” (BOSI, 2004, p. 46). Ou

seja, como o corpo atual lida com o presente, com o meio que pode atravessá-lo e

conectá-lo com o que se vive no tempo real. A lembrança, por sua vez, são os momentos

que através da percepção, uma memória é resgatada, submergida, momentos de “lembrei

de”, gancho que nos leva ao passado, ultrapassando a cronologia progressista das horas.

Sous: baixo Venis: vir Lembrança: Souvenir. Lembrança: Vir de baixo.

12 BACHELARD, 1993, p. 214

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O que percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está mediada pela imagem, sempre presente, do meu corpo. O sentimento difuso da própria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. Bergson observa, também, que esse presente contínuo se manifesta, na maioria das vezes, por movimentos que definem ações e reações do corpo sobre o seu ambiente. Está estabelecido, desse modo, o nexo entre imagem do corpo e ação. (BOSI, 2004, p. 44)

A “lembrança pura” é, portanto, a percepção e a sensação que se transforma em

imagens, onde o passado se mescla no presente. Meu corpo, desse modo, se atualiza no

momento vivido, construindo a partir de si todas as trajetórias imagéticas que presenciei.

É quando a percepção se torna consciência. Portanto, a memória presente possui uma

relação direta com o passado, de modo que pode interferir na atualidade da

representação. O passado é capaz de explodir vulcanicamente num corpo de hoje,

deslocando o espaço do passado e do presente e, desta forma, tornar-se consciente. As

forças tectônicas que eclodem na atualidade, transformam o magma adormecido e

profundo, subjetivo, em lava que se extrapola. O corpo necessita disso, desse transformar

fogo em ilhas, deixar-se invadir os espaços e tempos alheios, ao aquecer lembranças,

cozinha-se a carne. A partir disso, teço o desafio: materializar a memória, mergulhar no

passado que sou eu mesma, atual.

É a percepção das imagens que determina os processos da imaginação. Para eles, vemos as coisas primeiro, imaginamo-las depois; combinamos, pela imaginação, fragmentos do real percebido, lembranças do real vivido, mas não poderíamos atingir o domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora. Para combinar ricamente, é mister ter visto muito. O conselho de bem ver, que forma o fundo da cultura realista, domina sem dificuldade o nosso paradoxal conselho de bem sonhar, de sonhar permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos que estão enraizados no inconsciente humano. (BACHELARD, 2001, p. 2)

Vou retomar-me, ser a lembrança do que ainda é vivo entre memória-presente.

Essa pelo menos é a premissa. O modo como capturo o que me foi atravessado pelo

olhar, pelas experiências que me foram contadas e como meu corpo reage, no momento

de criação, a esses momentos que atravessam de maneira cada vez mais atual, partindo

do pressuposto que o corpo presente está revisitando pela imaginação e pela

inventividade uma atualidade em cena. A matéria em lembrança que procuro busca-se

pelo movimento contínuo no espaço em cena, presente. Imagem em ação. Vou desenhar

este quadro ao vivo e a cores. Vou fazer uma dança com as cordas que tocam meu peito:

“Recordar: Do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração” (GALEANO, p. 11, 2015).

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A imagem que retiro da memória, lembrança, tudo faz parte da imaginação. Casos

serão lembrados, mesmo que a memória seja de mentira. O que é memória, afinal?

Posso inventar uma mentira e dizer que é verdade? Como descobrirão os véus do

ilusionismo da representação? O que meu avô diz é verdade? É mentira? Não sei. Não

quero agora saber se é imaginação ou realidade. Sé é mentira ou realidade. Não quero

esses nomes, não quero saber. Vou esquecer de novo. Ou tudo o que digo é mentira? É

invenção? Fabulação? Prefiro à mentira, o esquecimento, a fantasia, o devaneio. Qual é a

legitimidade da representação? O artista reinventa, pois parte sempre de alguma

atualidade ou algo que já lhe foi atual. Logo, ao imaginar, o criar dá em cena outra

realidade, uma nova reconfiguração do passado.

Paul Ricoeur em seu livro A memória, a história, o esquecimento (Editora

UNICAMP, 2007, p. 63) traz à tona uma parte sobre o estudo da fenomenologia tratada

pelo matemático Edmund Husserl. Este, levanta que a tentativa de presentificação do

passado se dá através de memórias indiretas: fotografias, quadros, estátuas, retratos, os

quais representam o passado no tempo presente, como se as imagens designassem algo

ausente ou irreal. Os bisões da arte rupestre e as estrelas de “Noite Estrelada” de Van

Gogh, portanto, representam.

Eis as imagens exteriores, meu corpo, e finalmente as modificações causadas por meu corpo às imagens que o cercam. Percebo bem de que maneira as imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe. Mas de que modo meu corpo em geral, meu sistema nervoso em particular engendrariam toda a minha representação do universo ou parte dela? Pode dizer que meu corpo é matéria ou que ele é imagem, pouco importa a palavra. Se é matéria, ele faz parte do mundo material, e o mundo material, consequentemente, existe em torno dele e fora dele. Se é imagem, essa imagem só poderá oferecer o que se tiver posto nela, e já que ela é, por hipótese, a imagem de meu corpo apenas, seria absurdo querer extrair daí a imagem de todo o universo. Meu corpo, objeto destinado a mover objetos, é, portanto, um centro de ação; ele não poderia fazer nascer uma representação. (BERGSON, 1999, p.14).

Parece-me correto apontar que a imaginação é, portanto, uma tentativa de fazer no

presente uma memória que se atualiza, mas que mantém ao mesmo tempo uma

ancestralidade no quesito de manter pura uma tradição ou núcleo do que é revisitado,

como se pudéssemos adicionar um zoom no passado, com os objetos, sensações e

percepções que atravessam o corpo no momento atual, no hoje, para começar outra vez,

relembrar, imaginar o passado, como se brincássemos de Saturno, Senhor do Tempo, e

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pudéssemos imaginar tudo, reinventar a nossa própria memória. “Faça-se a luz” e, como

crianças, pudéssemos inventar com os materiais dispostos essa memória inventiva,

primeira, mas com coisas que já existem. Isso no leva primordialmente em acreditar no

que estamos a construir e nos jogos de representação. Neste caso específico da pesquisa

enquanto atriz posso representar as percepções que já são minhas? É necessário que eu

revisite, mas tenha no presente um olhar já passado.

No entanto, o que é memória? Não podemos tocá-la porque não tem fisicalidade e, embora nossas experiências estejam armazenadas lá, elas nem sempre são acessíveis. A memória não é um computador com arquivos ou um livro para examinar a vontade; é algo mais complicado, vivo e que muda de forma, já que somos capazes de manipular de acordo com o estado atual da nossa mente. Além disso, algumas lembranças são vagas com o tempo e caem no abismo sem fundo do esquecimento, e outras lembranças deixam vestígios indestrutíveis e por meio dos quais podem ser lembrados enquanto durar a vida (ANTROPOVA, p.15, 2011).

Se existe memória é por que ela se tornou um hábito através da repetição. Pela

repetição se memoriza, pelo hábito, você se acostuma. Conforme Antropova (2011), “a

memória natural é aquela que se é implantada em nossas mentes, que nasce

simultaneamente com o pensamento. A memória artificial é a memória reforçada ou

confirmada pelo treinamento”. Para Bergson, existem dois tipos de memória: a memória –

hábito e a imagem-lembrança. A primeira trata sobre mecanismos de memorização. Pela

repetição do que vemos, aprendemos a nos comunicar, a escrever, a nos tornarmos seres

sociáveis. Na tentativa de fixar algo que temos que aprender ou como caminho de

socialização, temos que nos adaptar a repetições ou continuidades do que nos é imposto:

cultura. Se somos brasileiros, temos que basicamente nos comunicarmos através do

português, pois é nossa língua imposta, imposição da mãe-nação. Ou seja, quando se

nasce, há um adestramento cultural, um direcionamento de socialização que nos molda a

partir de elementos já existentes antes mesmo de existirmos. Eu não poderia nascer no

Brasil e começar a falar em alemão, salvo se um dos meus pais ou pessoas ao redor se

comunicassem desta forma e, pela repetição do ouvir eu adquirisse essa outra língua nos

meus padrões. Ou seja, voltamos à repetição, voltamos na construção de hábito,

voltamos. Sempre voltamos para nos lembrar, mas voltamos no hoje, presente, na

atualidade. Se o passado retorna, ele funciona como um gancho, numa tentativa do

cérebro manter a sua sobrevivência. Se somos memória, somos repetição.

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O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade, o para-raios de sua existência. O hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão dos hábitos, posto que o indivíduo é uma sucessão de indivíduos (uma objetivação da vontade do indivíduo, diria Schopenhauer), o pacto deve ser continuamente renovado, a carta de salvo-conduto atualizada. A criação do mundo não foi um evento único e primordial, é um acontecimento que se repete a cada dia. O hábito, então, é um termo genérico para os incontáveis compromissos travados entre incontáveis sujeitos que constituem o indivíduo e seus incontáveis correspondentes (BECKETT apud AUAD, 2010, p. 97).

Já o segundo tipo de memória, denominada imagem-lembrança, é o total oposto de

uma memória-hábito. A imagem “traz à tona da consciência um momento único, singular,

não repetido, irreversível, da vida” (BOSI, 2004, p. 49). A imagem-lembrança se

assemelha ao que passamos num sonho, produto de nossa inconsciência. “O

inconsciente não se civiliza: apanha o castiçal para descer ao porão.” (BACHELARD,

1993). Portanto, a imagem-lembrança é o que existe nos recantos da mente e que

transbordam via imaginação para, no caso desta pesquisa, se tornar matéria. “A matéria é

o inconsciente da forma.” (BACHELARD, 1997). Tenta-se extravasar de alguma FORMA,

de algum motivo específico sem que consigamos dar conta de seu significado

inconsciente. A imagem-lembrança é quase como um impulso antes de nascerem as

primeiras palavras e como norma de educação e socialização. Se a lembrança é

inconsciente, estamos num devaneio particular de criação, de tentar poeticamente ter

uma forma ativa e de quebra do que já se foi massacrado pela memória-hábito. Quase

como uma de retroalimentação de um espaço vazio, porém, com inúmeros nutrientes que

precisam ser saboreados, mesmo que no escuro.

A imagem-lembrança é invenção, quebra da normatividade e de certa forma, de

levar à tona uma fabulação que é íntima. E contar uma história que faz parte do

imaginário, do nosso inconsciente, pode correr o risco de se padronizar pelo hábito.

Quando a memória já se torna um ritmo de vida e de padronização ela morre, não há

espaço para o delírio da inventividade. Em outras palavras, se a memória-hábito reforça

as obrigações cotidianas e sociais, a memória-lembrança relembra os fatos que não

podem ser repetidos, tornado-se assim de uma memória singular, como se lembrar que

um dia já tivemos e perdemos para sempre os dentes de leite.

Um trajeto similar de associar a memória e o inconsciente dos desdobramentos da

mesma é visível no método de composição criativa abordada pelos dançarinos da Cia

Wuppertal, os quais eram questionados pela coreógrafa e diretora da companhia, Pina

Bausch sobre questões relacionadas ao passado, e de que modo os intérpretes poderiam

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colocar suas lembranças em cena e repeti-las até chegarem ao ponto de um possível

desmembramento, uma reinvenção, uma desmontagem daquilo que foi vivenciado. Ao

repetirem, a dissociação das primeiras abordagens de uma memória pessoal ocorria para

então desdobrarem-se de uma maneira mais ampla ao público e que este, pudesse

concatenar suas próprias apreensões sobre o que estava sendo visto e trazer suas

memórias e imagens pessoais sobre a cena.

Por que os dançarinos de Pina Bausch repetem suas memórias? Para esquecê-

las. Para poderem se adaptar ao novo presente e, a partir disso, nascerem outras

memórias.

1.2 O início está no meio

Preciso voltar ao começo. Recomeçar. É ai que mora o impulso para criar, como as

coisas se entrelaçaram. Beckett já existia quando o devaneio começou a nascer. O

esquecimento fazia-se familiar e de modo nefasto, a memória nasce e destrincha-se com

outras, mesclando-se, como um emaranhado de imagens do passado.

Quando me vem a memória as obras dramáticas de Samuel Beckett vêm sempre

os velhos ranzinzas, esquecidos de Esperando Godot (1952) e Fim de Partida (1958),

perfis esses que se encaixam perfeitamente no contexto vivenciado por meu avô, o qual

possui a demência de Alzheimer. Uma mulher que fala sozinha o tempo inteiro, Winnie,

monólogo que poderia ser diálogo, mas não é, como presente na peça Dias Felizes

(1961).

Tais associações aconteceram em meados de 2013, quando iniciei minha

monografia intitulada Não resta nada a dançar, realizada na Universidade Estadual de

Londrina e orienta pela Prof. Ma. Laura Franchi. Tal investigação abordava a repetição

presente no texto Improviso de Ohio, de Samuel Beckett, e tecia uma comparação com o

processo de criação instigado pela coreógrafa Pina Bausch na Cia Wuppertal de Dança-

Teatro.

Durante o processo de criação de Não resta nada a dançar, o qual unia a

elaboração teórica à prática criativa, conforme o número de repetições da partitura

corporal aumentava, surgia aos poucos pelas rachaduras da memória, a imagem de meus

avós maternos. Os personagens da peça Improviso de Ohio são o Leitor e o Ouvinte,

ambos de características físicas idênticas: dois homens com longa cabeleira branca, uma

túnica preta em que só é possível ver em pele, as mãos e o rosto. De aparência senil, o

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Leitor lê um livro ao Ouvinte, enquanto este, em determinadas partes do texto, interrompe

a leitura do Leitor através de uma batida na mesa, onde este retoma a última frase lida ao

Ouvinte, causando tanto neste quanto no espectador a sensação de pesar e angústia em

relação aos atos forçosamente lidos e repetidos. Creio que os dessabores causados por

lembranças e a constante repetição de falas remeteram-se aos momentos passados com

meus avós maternos, meus Leitor e Ouvinte, onde a avó relembrava fatos, enquanto meu

avô insistia em relatos que nunca existiram, pedindo sempre a confirmação pela avó, que,

pacientemente, remontava memórias fantasiosas ou afunda-se na realidade cotidiana.

Tais como as ações dos personagens dos textos, Leitor e Ouvinte, pude perceber a

relação de afeto e de rupturas constantes nos diálogos e ações vivenciados pelos meus

avós. Na peça, o personagem Leitor lê um livro para o Ouvinte, enquanto este, em certos

momentos da narrativa, interrompe o Leitor com uma batida na mesa, sinal de que se

deve reler a última frase lida. Eram assuntos ou lembranças que eles se recordavam com

dificuldade. Eram os restos de memórias que desencadearam a minha procura por

espaços que conduzissem as recordações sutis e a depreciação do tempo no corpo e na

memória dos avós.

A memória de nosso núcleo familiar mais próximo [...] foi capaz de acionar nossa imaginação e possibilitar a recordação de imagens, pessoas, acontecimentos, numa exploração de subconsciente que atravessava nosso corpo e tinha o corpo como cerne do processo criativo, permitindo assim recriá-los e torná-los menos abstratos e mais próximos de uma representação sensível. Temos aqui o que Grotowski e Barba chamam de memória corporal. Grotowski afirma que é a partir da memória [...] que o ator, na fase de ensaios, pode criar a tessitura da interpretação, adicionando ao papel escrito o desdobramento exacerbado de sua personalidade, revestindo-a com as fibras de sua vida passada e presente (ATAÍDE, 2012, p. 217).

Apesar de serem doces souvenirs, as nostalgias de infância na casa dos avós,

seus diálogos mesclavam-se com a sensação de amargura em que se ambientam no

tempo presente: o início das dores intermináveis, o próprio esquecimento, a revisão do

passado, o desprezo, os restos deixados por alguns membros da família. A maneira que

encontrei ao eleger Beckett para esse estudo propiciou desenvolver, quando ainda

estudava sobre a repetição em Improviso de Ohio, impulsos para iniciar uma investigação

mais apurada sobre as questões levantadas pelo dramaturgo, tais como a relação dos

personagens, os objetos, a invalidez do discurso, entre outros aspectos. Entretanto, foi o

tema memória que atravessou o processo criativo de maneira potente, ao abarcar todos

os temas acima citados. Pausas no discurso como uma tentativa de resgatar o passado.

Ele se esquece ou chora quando sente saudade. “Por que você está chorando?” “Não sei.

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Estou triste.” Há quase uma infantilidade no meu avô, uma tristeza infinita e sem nome.

De repente ele se esquece de novo, volta a ver imagens que se mexem na televisão.

Pergunta as horas. Nunca pede nada, mas se você oferecer, ele acata. Percebo uma

coisa: quando ele está com fome ele começa a trocar as coisas de lugar. Repete uma

palavra qualquer (pode ser café, por exemplo). “Você viu que o café aumentou o preço?

Você viu a quantidade de café na cara dele? O café tá ali debaixo do caminhão.” Quando

ele começar a repetir a comida, ou água, ou banheiro ou qualquer outra palavra é por que

ele deseja a palavra em sua concretude, mas deseja sem pedir. Acho que ele se

esqueceu talvez como pedir as coisas ou está reaprendendo a pedir. As crianças choram

quando querem algo, meu avô, repete.

Nos primeiros anos de vida da criança, a memória é uma das funções psíquicas centrais, ao redor da qual as demais se organizam. O pensamento da criança pequena é, então, fortemente determinado pela sua memória. Um dos exemplos citados por Vygotsky refere-se ao desenvolvimento do conceito nas crianças. Ao lhe perguntarem ‘o que é um caracol?’ ela responde que ‘é pequeno/escorregadio e pode ser esmagado com o pé’; se pergunta sobre ‘o que é uma avó’, ela responde que ‘tem um colo macio’. O ato de pensar, então, se dá pela recordação de dados concretos e não ainda pela estruturação lógica; o pensamento infantil é sincrético e dependente da memória. ‘Para a criança pequena, pensar é recordar’(VYGOTSKY apud BEILKE, 2009, p.68).

Continua-se a caducidade, o devaneio, o afeto. Seio familiar que despertou o

estranhamento da mudança e aproximações pela comparação: o Velho está se

esquecendo. O Velho não sabe mais a que veio, onde está. Confunde as horas e os

nomes. As localizações de sua vida estão esparsas. Desconhece o lar. “Minha casa não é

aqui”, diz ele.

ESTRAGON: Aonde iremos?

VLADIMIR: Não muito longe.

ESTRAGON: Não, não, vamos longe daqui!

VLADIMIR: Não podemos.

ESTRAGON: Por que?

VLADIMIR: Temos que voltar amanhã.

ESTRAGON: Para quê?

VLADIMIR: Para esperar Godot.

ESTRAGON: Ah! [Silêncio] Ele não veio?13

13 Samuel Beckett, Esperando Godot, p. 20. The Complete Dramatic Works. Tradução nossa.

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1.3 As memórias de Beckett – “o meu assunto é o fracasso”

O dramaturgo irlandês possui uma vasta obra que se destaca por seu envolvimento

com destroços e tentativas de se reerguer: Beckett presenciou as duas Grandes Guerras -

cresceu na Irlanda e, enquanto menino viu eclodir a 1ª Guerra Mundial. Na 2ª, fez parte

da Resistência Francesa, trabalhou na Cruz Vermelha e teve parte de seu pulmão

perfurado por um desconhecido. (JUAN, 2006, p. 155)

Samuel Beckett nasceu de uma família protestante e abastada no sul da Irlanda,

em Foxrock, no dia 13 de abril de 1906. Destacou-se além dos estudos, sendo um

excelente esportista em práticas esportivas como o rúgbi, o críquete e o remo. Entretanto,

Beckett já esmiuçava interesse pela língua francesa e, graças a uma bolsa de

intercâmbio, teve acesso ao estudo de Literatura em Paris, onde permaneceu de 1920 a

1930. Mas é no ano de 1937 que ele muda-se definitivamente para tal cidade, alegando

preferir uma Paris em guerra a uma Irlanda em paz. Aliou-se a Resistência Francesa para

lutar contra a invasão alemã, levou uma facada nas costas por um desconhecido e em

sua estadia no hospital foi visitado pela pianista Suzanne Deschevaux-Dusmenil, a qual

viria a se tornar sua esposa. (Ibidem).

Com a liberação de Paris, que estava tomada pelas tropas nazistas alemãs,

Beckett viveu na capital francesa de 1946 a 1953 e ali acontece outro tipo de explosão: a

criativa. Ali escreveu poemas franceses, tal como o poema Saint-Lô; a primeira versão do

que viria ser O Fim; O Calmante e O Expulso; Poemas 38-39, uma coleção de doze

poemas; as novelas Ir e Vir, Primeiro Amor, O Inominável, Malone morre e Molly, e a obra

de teatro Eleuthéria e a tão aclamada e mais conhecida obra do autor, Esperando Godot.

Comumente os artistas pertencentes a esta época costumavam retratar em suas obras, o

indivíduo como um ser alienado de si mesmo, estranho, perturbado, deslocado, exilado,

concernente de uma sociedade marcada pela indiferença para com seus semelhantes.

(BOESSIO, 2010 p. 43).

E é exatamente neste aspecto do homem de meados do século XX que Samuel

Beckett viveu, retratando uma sociedade submergida em desesperanças à procura de

líderes ou culpados e totalmente desvalorizada pelas atrocidades cometidas em meio a

Guerra. Escrita no ano de 1948, publicada em 1952 e montada pela primeira vez no dia 5

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de janeiro de 1953 sob direção de Roger Blin14 no Théâtre Babylone, Esperando Godot foi

uma virada na vida do irlandês no quesito reconhecimento público. Em tal obra, o autor

põe em evidencia o descaso, o fracasso e a tentativa frustrada, temas recorrentes no

período pós-guerra. Hugh Kenner destaca:

Há dois caminhos estéticos opostos: há primeiramente uma família de acrobatas, empenhados a sempre aprimorarem a técnica, se equilibrarem na corda bamba e irem sempre mais além; e há também a linhagem dos clowns, que se ocupam em demonstrar o limite humano, expondo ainda mais a decadência e a falha humana. (ANDRADE, 2002, p. 20).

Logo, é a partir da falha humana, das situações e personagens constrangedores e

grotescos que Beckett lidou em grande parte de suas obras. Personagens estes que

ironizam a dor do destino, sem confronto algum com o que lhes é lançado, conformados e

imóveis perante as ocorrências presentes nas obras.

A eclosão sugerida pela obra do autor corresponde à sociedade europeia que

tentava se restabelecer após a guerra: Resta em Esperando Godot uma árvore; em Fim

de Partida, mais desenvolvido quando falamos sobre cenário, uma sala que abriga dois

latões onde residem dois velhos, e com eles mais um personagem cego paralítico

sentado numa poltrona e um outro personagem coxo. Restam poucas pessoas

sobreviventes, poucos medicamentos, alimentos e lembranças. Como Andrade (2002,

p.18) afirma sobre Fim de Partida:

Ainda que as personagens centrais já sejam reconhecíveis e o cenário já corresponda ao definitivo nas linhas gerais, ressalvando-se a ausência dos latões (a introdução dos pais do protagonista viria apenas mais tarde), a ação é mais localizada geográfica e historicamente, mesmo que o contato efetivo das personagens com o exterior seja praticamente nenhum. As referências esparsas permitem situar a trama na Picardia, ao norte da França, região particularmente destruída pela Primeira Guerra, e novamente castigada na Segunda Guerra. Lá, Beckett serviu a Cruz Vermelha irlandesa, em 1945, como motorista a almoxarife de um hospital. Em Fim de Partida, só restarão vestígios desta situação precisa.

Com a junção de personagens-espaços, o não restabelecimento do caos, pode-se

analisar também que não é somente no campo concreto que a destruição está presente.

O homem e suas memórias encontram-se deficientes. Em A Última Gravação de Krapp,

publicada em 1958, vemos Krapp, um homem que se escuta a partir de gravações feitas

por ele mesmo quando este era mais jovem. O personagem escuta suas memórias de

14 Roger Blin (22/03/1907 – 21/ 01/1984). Conhecido como o “ diretor de Samuel Beckett”. Encenou várias obras do dramaturgo, entre elas Esperando Godot, Fim de Partida, A Última Gravação de Krapp entre outros.

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quando era um jovem e um Krapp já com quase quarenta anos. A partir disso, somos

capazes de compreender toda a vida dele. O Krapp que relembra os antigos Krapps é um

homem de aparentemente setenta anos e que nos mostra todas as dificuldades em

encontrar um sentido para sua existência no mundo em que ele vive e das mudanças

bruscas decorrentes do passar do tempo.

Tal peça se assemelha a peça que investigo pelo fato do personagem escutar sua

própria voz, no entanto, Krapp é o condutor dos períodos que deseja retornar. Krapp

escuta suas memórias com afinco, troca as fitas nas quais estão contidas as memórias.

Sozinho, Krapp tenta resgatar seu passado, como veremos a seguir, com a figura M, de

Cadeira de Balanço. No entanto, nesta peça, M primeiramente não pode, como Krapp,

controlar seus tempos de outrora, retomá-los através de um comando, ou seja, de

rebobinar e de escutar novamente seu passado.

Vemos um decorrer de fatos e más escolhas, um remorso sobre sua própria

trajetória e finalmente, a sensação de imobilidade por não ter o controle do tempo e

retornar ao passado para fazer um novo Krapp, diferente.

À luz da discussão da teoria do movimento, suas imobilidades podem ser entendidas como uma tentativa de captura do momento presente, embora, em essência, seja um fracasso. Winnie, e as urnas afirmam M1, M2, H. Ambas as urnas e o monte de terra podem ser metáforas para o Tempo tornado tangível. (ANTROPOVA, 2011, p.33, tradução nossa).

Ao final de sua carreira, ou seja, meados da década de 70 e 80, Beckett destaca-se

ainda mais por uma espécie de remorso em forma de rememoração. As peças Cadeira de

Balanço e Improviso de Ohio são bons exemplos a serem destacados, já que ambas

foram escritas e encenadas primeiramente nos EUA. A primeira, escrita e encenada pela

primeira vez no Centro de Investigação de Buffalo, com direção de Alan Schneider.

A Cadeira de Balanço ou Canção de Ninar, traduções em português da obra teatral

de Samuel Beckett vem desse encontro da velhice ou encontro mais próximo da morte.

Ou quando somos crianças somos nós os vizinhos das quase mortes? Do dedo na

tomada, de pular muro, de comer pelo sentido, pela experiência, de querer colocar o

mundo todo pela boca. Descobertas da morte, do gostar e do não gostar. Qualificar o

gosto, direcionar o desejo. Estamos todos morrendo e renascendo desde o nascer. A obra

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de Beckett sintetiza nosso contato direto de nossas renascenças e para isso é necessário

perder a pele e os cabelos por diversas vezes. “Mais uma vez”15.

1.4 Cadeira de Balanço16 ou Canção de Ninar17

Não foi a primeira vez que Beckett foi calcado pelo percurso da velhice e das

questões que envolvem este quadro. Há uma trilogia de peças – Aquele Tempo (1975),

Cadeira de Balanço (1980) e Improviso de Ohio (1981) que abarcam situações solitárias,

figuras idosas conversando consigo mesmas que relembram o passado. Há uma negação

da presença no estado atual, recordando-se eternamente sobre o que foi vivido,

esmiuçando-o, repetindo palavras e situações de outrora, quase como uma obsessão de

desconforto do que não foi bem sucedido. Para as figuras, o passado é o escudo contra o

presente, o qual se vincula ciclicamente ao que foi vivenciado. Não há brechas ao futuro,

mas um lamuriar infinito de trajetórias que permaneceram as mesmas por falta de atitude.

O que se observa na obra do dramaturgo irlandês é a presença das repetições existentes

na estrutura do texto, e da ação de balançar-se em cena, o que alude ao espectador um

tempo que acontece e que há sentido apenas naquele momento. Beckett conecta o tempo

da ação encenada ao tempo das memórias contadas, relembradas, negando a presença

do passado, do presente e do futuro. (AUAD, 2010, p.68).

Fora o fracasso do passado, há o inominável que se esconde sob as palavras não

ditas por tais figuras, através dos momentos de pausas nas obras dramáticas – um

silêncio desconfortável de um escuro profundo. Poucos objetos em cena, cenário e

vestimentas negras, assim como o que é oculto de suas lembranças e que despontam

através das palavras. Levam-nos a imaginar com eles outros espaços e reconhecer

pessoas como se pudéssemos enxergar no escuro.

15 Beckett, Samuel. Cadeira de Balanço. Tradução de Luis Roberto Benati e Rubens Rusche a partir do original “Berceuse”. 16 Para comemorar o 75º aniversário do Prêmio Nobel Samuel Beckett em 1981, a Universidade Estadual de Nova York em Buffalo (SUNY Buffalo) planejou um festival de teatro. O professor de teatro Daniel Labeille escreveu para Beckett, que estava morando na França, na esperança de persuadi-lo a compor uma peça para a ocasião. Beckett, que raramente escrevia para eventos específicos e quase nunca aceitava encomendas, concordou relutante em tentar: ‘Uma nova peça para a ocasião, se eu puder’, escreveu ele, mas advertiu:’duvido’ (Knowlson 1996, p. 583). Apesar dessas dúvidas, ele conseguiu em 1980 escrever Rockaby, que estreou em Buffalo em 8 de abril de 1981. (CHILDRESS; GRONIGER, p. 262, 2007, tradução nossa). 17 O texto pode ser lido na íntegra na página

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É a casa da memória que contém imagens fragmentadas e fantasmagóricas, algumas das quais são incorporadas na encenação, forçadas pela luz do palco, e outras permanecerão escondidas ou esquecidas no escuro esperando, talvez, serem resgatadas em um tempo diferente e em um lugar diferente. (RODRIGUEZ-GAGO apud ANTROPOVA, p. 20, 2011, tradução nossa).

Nasce uma figura do escuro, balançando, balançando

Palco perdido em escuridão

E uma cadeira de balanço a balançar

Uma mulher fala como se estivesse ninando alguém

O mesmo aspecto de uma mãe ou avó que acalanta sua cria

Toda de preto

Vemos de humano o rosto e as mãos

Ela dorme ou morre algumas vezes

Renasce

Mais uma vez

E repete-se a cantiga em forma de monólogo

O ato de balançar-se acompanha as suas palavras

Como um tic-tac de relógio

Mas aqui é um balancê de morte

Quase criança que brinca de morrer

Vivo-morto-vivo-morto

Morto-vivo

Vivo-morto

Mais uma vez

Nesse jogo de ser viva ou fantasma

Que se vai e volta

Tomando forma em cadeira

Sendo uma cadeira

Mais uma vez ao fechar e abrir os olhos

Presença moribunda ou distanciamento.

Dentro do escuro, é possível enxergar uma cadeira de balanço onde uma mulher

idosa se balança – chamada apenas pela letra M, a qual escuta V, uma voz gravada que

se assemelha a sua. Sua ação sobre a cadeira é balançar-se, no entanto, a cadeira

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move-se sozinha - “Balançar: Leve. Lento. Controlado mecanicamente sem assistência de

M”. (BECKETT, 2012, tradução nossa). Ou seja, M não faz nada além de ouvir V e dizer

juntamente com a gravação as frases como “tempo de se decidir” e “Mais uma vez”. A

peça é curta, em menos de quinze minutos se termina sua leitura, mas temos muito a

escutar, através das palavras que se repetem e o silêncio ampliador que ocorre todas as

vezes que M “morre”. Segundos de quase escuridão. M fecha os olhos. Pausa. Silêncio.

Abre os olhos com espanto e nos diz “Mais uma vez”. A cadeira retoma seu compasso.

Facilmente associamos M ao personagem descrito por V [assim como ligamos a fala de V à figura de M, ambos os papéis assumidos pela mesma atriz]. Em tempo passado, V reconta buscas que levaram a idosa por espaços múltiplos até que ela se encontra exatamente onde nós a encontramos, na cadeira. (CHILDRESS; GRONIGER, p. 264, 2007, tradução nossa).

Enquanto se balança, M escuta a sua própria voz disposta por uma gravação que

nos relata de modo sintético sua busca ao se relacionar hipoteticamente com outras

pessoas, há um apelo de aproximação de outras almas viventes e possível cura de sua

solidão. M fala sobre si em terceira pessoa, se distanciamento cada vez mais dela mesma

e projetando um desejo de se relacionar. Tal movimento contraditório denota uma atitude

de contemplação ao aguardar passivamente a vida que acontece em outras janelas:

de um lado para outro todo olhos em toda parte para cima e para baixo à espera de outro de outro como ela de outro ser como ela um pouco como ela (BECKETT, 2012, p. 90, tradução nossa)

“Todo olhos” chama atenção pelo aspecto voyeur de M ao observar calmamente à

janela outras vidas, outras almas viventes. Nota-se através das variações das repetições,

um jogo de palavras que denota sua solidão, projeção dela no outro, como observado

pelas seguintes palavras: janela(s) e persiana(s). Nos seguintes trechos da peça,

acontecem variações entre o singular e o plural das palavras citadas:

junto à janela tranquila à janela à vista de outras janelas de sorte que enfim ao fim de longa jornada

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ela retomou seu lugar enfim junto à janela ergueu a persiana e sentou-se tranquila à janela janela única à vista de outras janelas de outras janelas únicas [...] à espera de outro de um outro como ela um pouco como ela de outra alma vivente de outra solitária alma vivente

E:

de outras janelas únicas com todas as persianas baixadas nem uma só erguida (BECKETT)

“Janela única” denota singularidade, “janelas únicas” singularidades solitárias, sem

qualquer tipo de aproximação ou intimidade. Além disso, percebe-se em especial pelo

último trecho que há a negação da vizinhança ou espécie de solidão voluntária. No trecho,

nota-se a insistência do jogo entre singular e plural, um e dois onde M é uma figura ímpar

em busca de um par à sua semelhança. “Todo olhos” busca antes de tudo companhia

enquanto olha pela janela, atravessa-se a persiana e pela materialidade do vidro, observa

outras pessoas que ela anseia ser “como ela”, uma outra alma vivente. Nota-se a

proximidade quase voyeur dessa ação de M ao transpor o que vê, como se seus olhos

servissem como um zoom (janela>persiana>vidro>pessoas), como se retirasse, aos

poucos, a distância da personagem em relação às outras pessoas, uma distância infinita

até se chegar no humano ou ao pouco que se consegue de sua presença. “Primeiramente

alguém como ela, depois uma alma qualquer e, em seguida, um movimento que indique

que ainda há vida perto dela”. (NOY, 2015, p.104)

Na leitura do texto, o leitor observa que algumas frases e palavras se repetem

progressivamente ao longo da peça. Palavras como alma (quatro vezes) janela (treze

vezes no singular, nove no plural), outro (oito vezes), persiana (cinco vezes no singular,

duas no plural), o verbo decidir (quatro vezes), e trechos como todo olhos (oito vezes), em

toda parte (seis vezes), tempo de se decidir (seis vezes), de um lado para outro (oito

vezes) e para cima e para baixo (nove vezes). Evidencia-se por todo o texto a repetição

de descrições de paisagens urbanas e da própria solidão por M. A frase ao fim de longa

jornada, por exemplo, é repetida diversas vezes no texto, aparece logo na segunda linha

e com variações ao longo da peça, que se dá acompanhada da frase “tempo de se

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decidir, a não mais errar”. Nota-se a repetição como quebra de um erro, de se decidir

finalmente, a não cometer o mesmo erro. A repetição parece uma correção de algo

relacionado ao passado, que de tanto se errar, se aprende. A letra M que pode sintetizar a

palavra Mulher, dá subterfúgios para que pensemos que pela letra diminuem-se as

simbologias da palavra em questão.

Na 4ª vez que reaparece a frase ao fim de longa jornada, acontece de fato a

primeira variação e única de qualidade não repetitiva ao longo do texto. A frase agora é

seguida por voltou para casa. M volta ao seu espaço, retorna ao passado. Na 5ª repetição

adiante, M retoma o lugar, mas de sua mãe. Há um jogo também entre as gerações entre

mãe e filha. Repete-se que “decisão” é necessária e M se senta à janela na cadeira de

sua mãe. Na 11ª repetição, M nos conta que se veste com o mesmo vestido de sua mãe,

longo, preto e com lantejoulas. Ela se repete pela veste da mãe para ser ou buscar a si

mesma. A repetição causa variações de si e da imagem que temos dos outros, resposta

inconsciente dos padrões impostos pela memória-hábito através não só da aparência

entre mãe e filha, mas nos aspectos culturais que vão se passando através das gerações.

Na última e derradeira repetição, M desce as escadas e vai ao térreo para sentar-se na

cadeira de balanço. De fato, M toma finalmente a decisão que se repetia ao longo do

texto, no entanto, ela se assume, dizendo a si mesma: “não/ isto nunca mais [...] balance-

a daqui/zombemos da vida/balance-a daqui”18.

Empurra-se de um abismo imaginário, talvez um possível encontro com a morte,

fim de um ciclo, quebra finalmente da repetição monótona de encontro de si mesma pelas

pegadas, vestes e cadeira da mãe. A repetição se finda ou permanece na escuridão?

A repetição em toda peça serviria então como um dispositivo para não esquecer de uma realidade que, nesse caso, não é resplandecente. Femme, como se estivesse em uma cerimônia, segue os passos da mãe, senta-se na cadeira de balanço e balança-se até seu fim. O balançar-se da cadeira, mesmo movimento para fazer adormecer uma criança, traz a morte até Femme. Como apontado, a morte está ligada à infância, o fim da vida chega pelo movimento de acalentar uma nova vida que acaba de nascer. (NOY, 2015, p. 105)

O que vemos em Beckett é um modo de exacerbar o quanto o cotidiano se

cristalizou, tornando todas as ações presentes, em ações que já foram exploradas

anteriormente e que serão exploradas por mais tempo, sem fim e ou retorno, sem que

exista um antes e um depois. Em Improviso de Ohio (1981) o que podemos ver é um

quadro vivo, atemporal, entretanto, sem movimento. Tudo é imóvel ao longo do tempo.

Em Ohio, a fala rememora o passado e a partir disso, nada de novo acontece, mas a fala

18 Cadeira de Balanço. Samuel Beckett. 2012, tradução nossa.

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continua e recomeça. É um fluxo de continuado de fragmentação e sua repetição. E isso

se reflete nas ações que se repetirão eternamente, no texto e nas figuras permanentes,

num tempo incomensurável. A repetição também se dá através da espera de alguém que

não retorna e por isso não existe um fechamento da obra, o que desconcerta toda a

expectativa na figura do Ouvinte que não reconhece sua própria memória mesmo

havendo um hábito da leitura e da contação da história.

“Ao fim de longa jornada” se repete treze vezes. Treze é um número de mau

agouro, minha vó diz. Número do “Arcano Sem Nome”. Transcendência fundamental para

a transformação definitiva. Diz a lenda que o treze é o número da morte, no entanto,

pergunto: morte de quê, de quem? De quais mortes M nos relata? Morte, me questiono, é

transformação. Desapego de uma forma para desabrochar em outra. Forma, matéria e

substância em dissolução imediata. Limpeza total do passado. M caminha em direção ao

desconhecido, será outra. “não/ isto não mais”. É o momento final da peça. M vai aos

poucos desaparecendo de nossa vista, o palco se apaga vagarosamente. Momentos no

escuro. M permanece na escuridão de seu vestido até o ápice da escuridão: M morre? Ela

que é personagem e criação de Samuel Beckett, morre? Ou o que se morre é o tempo da

cena, seu final concreto quanto a sua conclusão dentro de um espaço-tempo outro, esse

do teatro, da vida de uma figura que morre apenas no teatro? Acabou-se o teatro,

acabou-se a peça, acabou-se tudo: Beckett nos mostra em cena o valor da efemeridade

cênica. Mais uma vez19.

M ainda permanece viva, não quer deixar os punhos amolecerem para ir de

encontro com a morte, por mais que nos passe a ideia de ser tão altamente cadeira, ou

seja, uma mulher que é movida, mas não se move, que se torna a cadeira ou uma

extensão que se amalgama a ela. Mas não. M resiste. Nos últimos momentos a Mulher

resiste. “Mais”. E a vida quase morta ordena que se embale outra vez, como resistência

contra a cadeira. A repetição cíclica de M, ao repetir pela palavra, pelo movimento e ritmo

imprimidos em cena denotam também os efeitos da obra como um todo. É necessário um

fim no relógio da realidade, no entanto, Cadeira de Balanço parece estar sempre se

balançando, no escuro, no antes e depois do teatro acontecer.

Como já esperado, depois da repetição de uma longa jornada, enfim Femme desce as escadas. O movimento sugerido da descida nos transmite a ideia do fim. Vamos em direção ao fundo, ao solo, ao baixo ainda, o fato mais simbólico aqui, uma exceção da descida das escadas, é o abaixar das persianas. Terminou,

19 Essa frase se repete quatro ao longo do texto.

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nenhum ser vivo aparecerá. Femme nos confessa seu fim. Finalmente ela cessa de procurar e esperar.(NOY, 2015, p. 105)

Mortes por dentro e fora do teatro. Do dentro da cena, no espaço ficcional, no

pensamento de fora que é a vida. Das mortes cotidianas que nos levam à transformação,

das desistências necessárias, até a morte de fato ocorrer, do não retorno. M de morte

também, figura única e principal de nossa história, cheia de repetições infinitas. Final já

previsto antes de se começar a viver. A encenação da morte e representação de uma

possível vida. Vou recomeçar, mais uma vez.

Tarot de Marselha – “Arcano Sem Nome” Esta carta convida a uma limpeza radical do passado, uma revolução situada nas profundezas não verbais ou pré-verbais do ser, à sombra daquele solo negro, daquele desconhecido por nós de onde emerge, como de uma matriz, nossa humanidade. [...] o Arcano XIII evoca um longo trabalho de limpeza e purificação, como uma fazenda ou uma colheita que abre caminho para uma nova vida. Mais uma vez, uma indicação clara nos leva para longe da interpretação simplista: esse esqueleto é de cor de carne, a cor da vida orgânica por excelência. É o esqueleto que carregamos em nós mesmos, o osso, a essência viva e a estrutura de todo

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movimento, e não o esqueleto que deixamos para trás enquanto deixamos esta vida (JODOROWSKY, 2004, p. 226, tradução nossa)

Uma extensiva repetição dos padrões geracionais, numa tentativa de quebrar a

corrente familiar ou até mesmo ancestral. O esqueleto se apoia nesse bastão-foice para

seguir adiante. Arranca-se do passado, despedaça as duas cabeças que estão na terra

de duas figuras, uma mulher e um homem Seria um pai e uma mãe? Ou o Arcano XIII

estaria mantendo a vida de quem o plantou, Mulher e Mãe? Parece ser uma ceifa ou um

cultivo das figuras abaixo. M quer ser a Mãe ou parte para finalmente ser Mulher sem a

repetição dos fatos da vida e tentativa de quebra dos padrões hereditários? Beckett, no

entanto, coloca sua figura num limbo de não identidade, Mulher é M, apenas. O que nos

sobra de humano, pelo valor existencial presente na obra do autor é a exteriorização da

voz da figura, como se algo tão digno de identificação e peculiaridade se tornasse outra,

algo fora, como a própria capacidade de subjetivação. É um estranhamento da própria

vida e de sua organicidade.

A voz exterior talvez seja o único caminho para que M se comunique. Ou como

afirma a pesquisadora Bia Isabel Noy (2015, p. 159) “A voz de Femme não sai de seu

corpo, mas de uma gravação, de algo que tende ao robótico. Ainda mais, o ritmo

monocórdico da voz pode remeter a um estado moribundo.” A passividade da

personagem perante a narração e ao balanço da cadeira nos dá a imagem de uma

mulher, logo, poderia ser qualquer outra, já que o substantivo que poderia lhe dar alguma

identificação não lhe é atribuído. A personagem não é mais ela mesma, é múltipla,

mesmo que se embaralhe pela repetição de sua fala em off repetitiva. Noy (2015)

descreve que M está numa fase na qual não interessa quem se é ou quem já se foi, mas

de uma perda de identidade tão enfatizada que ela poderia ser como qualquer um outro

solitário “de um outro ser como ela” (BECKETT, 2012, tradução nossa). No entanto, não

há uma perda de gênero, permanece-se mulher, mesmo que evocado por uma mísera

letra consoante.

Pela memória vêm os padrões perpetuados da espécie, a herança familiar e

também de construção social mais ampla, fora da microesfera íntima da criança. M perde

esse contato familiar, busca qualquer coisa, qualquer alma vivente, alguma semelhança

enquanto ser humano. Há a lembrança da mãe, de possivelmente também ter tido o

mesmo fim, na mesma cadeira e com o mesmo vestido. Repetição e poucas variações.

As imagens redesenhadas de pai ao filho, avó a filha e a neta. Cadeias e mais cadeias de

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perpetuação. Tentativas de sair diferente, estranhamento de como somos parecidos. Leve

um casaco minha mãe diz, assim como Vó disse uma vez a uma mãe menina.

Você muda de direção, você procura por outro ponto branco, e por outro; mas você está sempre ligado à situação social. Há uma vida inteira em volta de você: novas idiotices aparecendo, enquanto velhas idiotices morrem o que significa que devemos confrontar as novas com as velhas – há novos adversários que aparecem na cena. Eles são sempre mais ou menos os mesmos adversários, embora eles utilizem novos disfarces. Estão sempre presentes, atrás de uma nova máscara. Então, nós também devemos apresentar-nos atrás de uma nova máscara. E, então, o duelo continua. Portanto, há o problema deste relacionamento complementar, mas também aquele de nossa própria aventura técnica e artística. (GROTOWSKI, 2009, p.3).

Ao enfrentar a memória, lido com o mais recôndito de mim mesma, cheia de

estouros plutônicos na minha trajetória de vida. Vem em mim, de mim, dos avós e

antepassados a história de um povo. Vem o nordeste sanguíneo, total, austero, católico,

seco. Mas o sangue segue seu fluxo pelo mundo, por outras tentativas de existir. O

caminho de meu avô não me é sabido. Ele me conta coisas, mas não sei se aconteceram.

Elas existem na sua memória debilitada pelo Alzheimer, mas elas existem, mesmo que

ele troque alguns móveis de lugar, localizações, pronomes, substantivos. A linguagem

que ele reinventa junto com a memória são estados de criação no momento vazio do

esquecimento. São nas pausas que ele inventa. A beleza da memória está justamente aí:

nos momentos de falha que a invenção vem à tona.

As memórias dos personagens de Beckett estão sempre vagando e instáveis. Na maioria das peças, a lembrança de uma imagem concreta entra em círculos e, com cada referência à mesma imagem de memória, um personagem acrescenta uma memória adicional ou inventa uma história. (ANTROPOVA, p.36, 2011, tradução nossa).

Um dos motes iniciais da prática desta pesquisa é: como dançar Beckett? Como

dançar o esquecimento? Talvez a metodologia e criação sejam por si mesmas o

esquecimento. Aprender a se lembrar, ou melhor, inventar um novo caminho para o

esquecimento e efemeridade da vida e da cena a partir da própria memória. Lembrar,

esquecer e esquecer mais uma vez. “O meu assunto é o fracasso”, diz Beckett. Assim

espero esquecer em movimento.

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1.5 A memória do corpo nas obras de Samuel Beckett

Um corpo paisagem calcado em memórias

Desavenças

Olha-se para trás a partir desse presente que não é presente

É passado.

Um corpo paisagem entrecortado

Fragmentos de ir e vir

Lembrar-se sempre

Esquecer depois

Ah é

Esqueci

De onde falo mesmo?

Que voz é essa que emite do corpo?

Este corpo é meu?

O que é este corpo?

Onde está o corpo?

Este corpo é meu?

Idas e vindas profundas de deslumbramento

E esquecimento

Quem é esse da foto, pergunto ao Velho

É irmão daquele, ele diz

Enquanto ele me aponta para outra foto

É ele também, o outro

No retrato...

Um corpo que esquece de seu reconhecimento

Um corpo esquecido

E envelhecido.

Nas obras teatrais de Samuel Beckett é observado o quanto o corpo é semelhante

ao ambiente em que está inserido, como se o espaço e o corpo fossem uma forma de

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continuidade ou de concatenação. Por se tratar de “lugares nenhuns” geograficamente

falando ou nem de leitura ficcional, os personagens ficam presos a esta espécie de limbo,

como se resistissem às mudanças ou desistissem de procurar uma saída para outros

lugares. Hamm e Clov, por exemplo, estão presos um ao outro em Fim de Partida. Na

peça, Clov ameaça por diversas vezes abandonar a Hamm. Lá fora, fora da sala que é o

cenário e apontado como uma janela, algo que se aproxima e com sinais de destruição.

Pelo contexto fabular, pode-se afirmar que se trata de um local com poucas esperanças,

poucos mantimentos, e o que resta de humano é ainda escasso. Não só nessa peça

como em Esperando Godot (1952), os personagens também possuem algum tipo de

deficiência física: um manco, um cego, um mudo ou em outros casos (Improviso de Ohio,

Eh Joe, Cadeira de Balanço) uma quase imobilidade, mas, no entanto, há uma espécie de

rememoração bastante acentuada. Dá-se através da voz um espaço vazio. Um palco

escuro e com pouquíssimos objetos de cena o que ampliam as imagens que nascem das

palavras. As narrativas expressas que retomam o passado nos fazem, como

espectadores, imaginar as situações expressas, além de reforçar a sensação de que as

mudanças necessárias para as personagens, que lutam por uma socialização, de fato

nunca aconteceram.

De quais memórias falam esses corpos? Afunilados e escondidos, no caso dos

velhos Nagg e Neil em Fim de Partida (1957), assim como em Comédia (1962). Winnie,

de Dias Felizes (1962) é enterrada não só pelo montículo que toma seu corpo até o

pescoço, mas também pelos objetos que caracterizam a personagem. O Leitor e o

Ouvinte, imóveis, fazem parte de outro tipo de enterro, terras do passado na Ilha dos

Cisnes, em Improviso de Ohio (1981). De onde caminham os corpos machucados de

Esperando Godot, com Lucky sendo cada vez mais judiado fisicamente pelo poder de

Pozzo?

As mazelas corporais e a falta de rumo das personagens tratam principalmente do

período pós 2ª Guerra Mundial, e com o avanço do tempo, chegando até a década de 80,

onde Beckett vai contra os excessos consumistas característicos dessa época, optando

por “esconder” não só o corpo, mas de “comunicar” menos. É dada atenção a certas

partes do corpo, como se fosse mostrado ao espectador apenas os detalhes de um

quadro. Beckett enfatiza o rosto, as mãos ou a apenas a boca como em Eu Não (1972).

A dramaticidade da cena está no poder das expressões faciais, e os gestos articulados

pelos atores, transformando o mínimo no ápice da expressão, como se houvesse ali um

segredo sendo revelado a partir de sutilezas. Beckett explora obsessivamente nas

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décadas de 60 e 70 temas como o “encavernamento” humano, negando a forma humana

a qual cabe em urnas, potes, buracos no chão, caixas, janelas ou câmeras cilíndricas

(DAVIES, 2001).

Nota-se que o corpo é um elemento cada vez mais omitido e escondido de

identidade. Corpo volátil e inútil. Quem são os personagens, de onde vieram? Lugar

nenhum. Também seguem sem história, sem princípios, ideias, transeuntes, os quase

palhaços Vladmir e Estragon numa tragicomédia.

Pode-se supor que a indeterminação do espaço a qual aludimos afetaria a identidade dos personagens, a partir do qual, o desenvolvimento proposto por Beckett permitiria pensar a fragmentação e desaparecimento do corpo em cena. (MARGARIT, 2003, 71).

As relações do corpo com o espaço, com o contexto ali revelado ou não em cena,

nunca é visto de modo separado. O corpo é a continuação tanto do espaço como do

texto. A sensação de constrangimento do corpo, da incapacidade de ação, o

descontentamento com o mundo, entre outros temas ou assuntos abordados nas obras

do autor estão em forma de fragmentos ou partes sendo revelados ao público, através

deste corpo imóvel ou que carrega consigo algumas sequelas, além de demonstrar em si

os sinais dos tempos. Num outro contexto, desta vez a partir de uma novela, um dos

maiores pesquisadores sobre Samuel Beckett no Brasil, aponta como funciona as

relações do Eu com o espaço:

A primeira descrição que Malone faz do quarto é também uma cartografia do seu espírito (palavra que ainda emprega, inseguro de sua aplicabilidade), cumprindo uma trajetória de encolhimento, de concentração. Nele, as referências são a janela, os poucos móveis, os objetos de Malone e seu próprio corpo. A janela alimentada de figuras do mundo exterior sua percepção confusa, imagens de que, incapaz de interpretá-las ao modo dos vivos, se serve modicamente, meros pretextos para a projeção de combinações próprias entre a fantasia e o entendimento prejudicado. (ANDRADE, p. 135, 2001).

Esta maneira encontrada por Beckett de desaparecimento do corpo consiste em

igualmente esvaziar o gênero neste corpo contido, suas lembranças, a não articulação do

tempo e inclusive da linguagem. Acontece uma mescla entre as ações, as palavras e os

gestos. Dentro deste contexto, o ator quase não se move, mas é movido pelas indicações

do dramaturgo. O ator contém o máximo possível, obedecendo a outro corpo estático que

se expressa a partir de um gesto súbito que é a batida na mesa, como no caso da peça

Improviso de Ohio. O modo com que o personagem Ouvinte bate na mesa, a posição de

ambas as figuras; o Leitor atento a sua leitura e o Ouvinte, imóvel ao traduzir

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silenciosamente as palavras que escorrem do livro, são maneiras que encontramos para

denominar o que seria a tensão. Assim como o personagem-título em A Última Gravação

de Krapp, pelo fato de sua deficiência auditiva, esse personagem esforça-se ao máximo

para conseguir ouvir seus antigos Krapps oriundos de um gravador. Krapp aparece numa

posição desconfortável, gerando tensão mesmo com o corpo estando imobilizado, criando

uma relação com o gravador.(CHABERT, 1982).

No caso de Cadeira de Balanço os sinais de tensão ocorrem com a iluminação que

reforça a imobilidade de M, além das pausas que acontecem durante a escuta do texto,

quando M está prestes a morrer e a renascer em cena.

A obra dramática de Beckett implica, a partir dos temas que estamos tratando, uma problemática que relaciona o corpo e os elementos que concernem ao corporal com as noções de desaparecimento e despojamento até levar ao gênero teatral a sua mínima expressão. Tal ‘descorporirização’ é assinada, em primeiro lugar, pela fatiga do corpo nos personagens, é dizer, o corpo como um objeto que proporciona falsas pistas da realidade (e em alguns casos, dúvidas sobre a identidade dos personagens) em sua mobilidade limitada e truncada, e mais ainda, em uma completa imobilidade. (MARGARIT,2003,p.72, traduçao. nossa).

Se levarmos em conta que a voz também é corpo, especificamente em Cadeira de

Balanço, Eh Joe e A Última Gravação de Krapp, vemos que o corpo também é

fragmentado, como uma resposta as memórias que caem aos poucos e em off. Ouve-se

uma voz externa ao corpo, vozes das personagens no passado que evidenciam outras

identidades, outras memórias, outros Joes, Mulheres e Krapps. O máximo uso do verbo,

mesmo que numa gravação, a escassez gesticular ou de expressões via corpo. O mesmo

não quer ser explícito, age de maneira mínima, de deixar dogmático a verbalização, as

pausas, que traduzem o silêncio e os pontos de tensões, causando a dramaticidade.

Estes elementos reunidos são capazes de transmitir ao público e leitores da obra como o

tempo e as indicações cronometradas pelo autor transferem mais sensações e até

mesmo emoções com a totalidade que o mínimo pode revelar.

A imobilização do corpo, a eliminação de todos os movimentos no espaço, assim com em Dias Felizes, ou de todos os gestos, assim como em Jogo, reduz o ator e o palco ás palavras. Beckett é, portanto liberado para explorar todas as relações possíveis entre palavra e gesto. Uma relação possível é a não-relação; o corpo deve jogar sozinho. (CHABERT,1982,tradução nossa).

Desta forma, Beckett se concentra especificamente pelos dois órgãos

frequentemente mais comuns para a percepção humana: os olhos e os ouvidos. A partir

do olhar, vai se esvaindo também a amplitude da visão. O corpo é reduzido ao seu centro,

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o tronco, e o olhar apenas espia o que ainda se pode ver. Este corpo lançador de

palavras pretende abandonar-se de tudo, restando apenas os olhos e a escuta, numa

espécie de corpo totalmente passivo, apenas restando essas ações. E por outro lado,

temos a escuta, que traz à tona através dos sons capturados a tradução de memórias. A

aparente passividade deste corpo movido a memórias demonstra uma relação direta não

só com o que se é escutado, no caso de M e também Krapp, mas estende a

compreensão de que o objeto que é externo (a voz gravada, a fita e a própria cadeira de

balanço) são espécies de continuação das personagens ou até mesmo um corpo em

anexo, espécie de bengala onde as personagens podem enfim se apoiar. Em Krapp, a fita

tocada é extensão de sua memória, que, se trouxéssemos ao tempo presente, seria um

hd, ou seja, uma memória que armazena documentos do usuário – documentos que

depois de salvos, mesmo após o desligamento do computador, são armazenados de

modo perpétuo. Além das fitas, Krapp acredita retomar o passado através de seu molho

de chaves, assegurando-se que ele é o dominador de sua história ao eleger quais

gavetas e rolos de fitas contendo o seu passado ele elegerá.

As chaves e as gavetas trancadas indicam seu apego às posses; assim como Pozzo e tantos outros, ele sente a necessidade de acreditar que as coisas podem ser possuídas e que ele é capaz de possuí-las. (WEBB, 2012, p. 82).

Quiçá, todos os objetos por Krapp utilizados sejam o uso simbólico de suas

memórias. A chave, por exemplo, tranca todas as memórias dos antigos Krapps. Ele abre

e reabre as gavetas numa procura pelo rolo certo, pelo Krapp certo. Aquele Krapp que ele

deseja escutar novamente. Como se tudo o que ele guardasse fossem os restos de um

passado. Krapp está escondido entre caixas e os objetos já citados, do mesmo modo

Winnie em Dias Felizes, que está encoberta por uma montanha e centralizada ao redor de

objetos também funcionais, tais como uma sombrinha, um saco preto, um espelho, uma

bolsa entre outros objetos.

Assim como o corpo das figuras beckettianas, os objetos devem ser também

acobertados, nunca óbvios. De forma idêntica, o Ouvinte em Improviso de Ohio ouve as

palavras que saem do livro, cada palavra dita é um resgate do passado, do que já

aconteceu, do que ele já foi e viveu. Krapp desenvolve o mesmo resgate, todavia através

de suas gravações. Quando não satisfeito, Krapp retorna a fita. Ele escuta sua própria voz

gravada. O primeiro clique é de retorno e “stop” para Krapp, o segundo é o botão “play”,

logo a narrativa continua. (WEST, 2008, p. 211), como se pudesse pausar e retomar a si

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mesmo. De uma outra maneira, os objetos são brinquedos para se passar o tempo. Em

Dias Felizes, a personagem Winnie brinca com o passar do tempo.

Parece que todas essas peças investigam a memória de diferentes órgãos de memória: orelha, fita adesiva, boca. Beckett divide o corpo de propósito, provavelmente, com o objetivo de mostrar a impossibilidade de perceber completamente o próprio eu. No entanto, suas identidades estão sempre fragmentadas e são incapazes de alcançar a união. Acredito que essa unidade nunca pode ser alcançada, porque é positiva, e Beckett percebe a vida como um fracasso, assim seus personagens são compostos de diferentes identidades fracassadas, que são atormentadas dentro de um mesmo corpo vivo. (ANTROPÓVA, 2011, p.14, tradução nossa).

Beckett, ao propor uma união corpo e objeto desqualifica a relação entre senhor e

escravo, humano sobre coisa, e media que entre esses dois existe vida. Ou segundo

Greiner (2017, p.16): “a vida do escravo se diluiria na vida do mestre por não ter nenhuma

finalidade própria e nem ser propriamente considerado uma pessoa, mas um ser vivente

qualquer”5

Em Cadeira de Balanço há uma cadeira-mulher que se move pacientemente. Outra

referência do autor é que a M tenha as mãos grudadas no apoio dos braços, como se

fossem uma colagem em camada da própria cadeira. Quase nos dizendo que M e cadeira

já são uma unidade. Perde-se o controle sobre a cadeira ou M se perde em outras

materialidades? Aqui, M é um pêndulo infinito da escuta, de fluxo, de movimento e de sua

insistência. M se agarra ao que está fora de si – a cadeira, uma memória de sua mãe que

também se balançou ali. A Mulher se agarra ao interno, suas memórias, repetindo-as,

embaralhando-as, revivendo-as. A Mulher que tem por desejo o mesmo balançar que sua

mãe teve na hora da morte.

Tomemos, pois, um exemplo talvez mais próximo ao nosso imaginário. Quando nos

referimos a palavra “cadeirante” imaginamos uma pessoa que, para se locomover, utiliza-

se de uma cadeira de rodas. Lembramos da pessoa já unida a um outro objeto, outro

corpo que agora faz parte dele. Em Cadeira de Balanço ou Canção de Ninar existe um

outro lugar mais desconfortável: dos velhos que de tão velhos não são capazes de

responder por si, ou em muitos casos, de terem os filhos ou conjugues como os agentes

ativos que administram suas vidas, seus remédios, alimentação e outros itens básicos de

saúde e bem-estar.

Assim, como a ação de balançar pode representar um acalanto à criança, a cadeira

de balanço frequentemente usada por pessoas da terceira idade, é um retorno pelo outro

lado do relógio. Os dois ponteiros se encontram pela divergência entre o novo e o velho e

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este último, já como adulto senil, realiza um passeio de digressão ao reunir imagens

resgatadas pela rememoração e lembrança (NETO, 2015, p.150).

Como veremos mais amplamente no capítulo 2.2, é comum chegar numa consulta

sobre o paciente com Alzheimer e ele sequer dizer uma só palavra. O paciente é passivo

e omisso ao que é comunicado ao médico. Talvez contra sua vontade, talvez por não se

dar conta da própria situação. Como uma criança, o idoso com Alzheimer observa com

distanciamento sua própria vida, vai da Cadeira de Balanço a outro tipo de balanço: à

Canção de Ninar. Retorna ao cuidado que depositou aos outros. Hora de ser cuidado,

infelizmente sem se dar mais conta do que tal palavra significa e também com vergonha

de tal afetividade, de cuidados de bebês, de fraldas, de horários de dormir ou de passeio.

Vivo e morto. Morto. Vivo. Brincar de. Fingir estar morto quando se jogar no chão.

Ou jogar-se no chão é uma tentativa de ser morto? Também brincar de ser vivo quando

se está de pé.

Mas e sentado?

A Cadeira de Balanço pende para frente e para trás. Um pé na cova, cabeça no

instante passado, lembrando. Olhos quase fechados.

Uma Canção de Ninar que tenta embalar uma criança que deseja estar desperta ou

quando dorme, acorda de um pesadelo. “Mais uma vez”.

Nesta pesquisa, tento dar luz às memórias felizes que se fazem mesmo num

estado irreversível da enfermidade, dos locais ainda permitidos ao riso, do aspecto infantil

e de invenção que meu avô propõe. Inventam-se memórias e outras capacidades de se

comunicar são sim viáveis, mesmo as mais impossíveis de se realizar. Para uma criança,

o mundo inteiro é possível.

Tenho que escrever esses textos enquanto ela ainda está viva, enquanto não tenha morte ou clausura, para tratar de entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante dos meus olhos. Tenho que fazer assim para seguir adiante, para fazer durar uma relação que continua apesar da ruína, que subsiste mesmo que apenas restem palavras. (MOLLOY, 2010, p. 9).

Uma imagem:

Domingo de Dia das Mães. Vó, minha mãe, eu e meu irmão estamos na sala,

assistindo televisão. Um comercial, também sobre o dia das mães passa na tv.

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- Hey, Zé, olha a Bella na tv!

- Quê?

- Olha lá, Zé!

O Velho olha para mim, espantado. Volta o olhar para a televisão, me fita

novamente, me olha na tv e diz:

- Como é que você coube lá dentro?

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PARTE II: CANÇÃO DE NINAR

Urano é o céu estrelado que fecunda a Terra todas as noites, cobrindo-a com o seu amor. Como já visto anteriormente no mito referente a Saturno, cada filho que nascia, Urano o devolvia para o interior da mãe que, ressentida, tramou uma vingança contra ele e pediu aos seus filhos que a realizassem. Apenas Saturno, o filho caçula, aceitou, e, com a foice que Geia mandou forjar, castrou o pai no momento em que este se deitou com a mãe. [...] Um de seus atributos era o da previsão; ele profetizou que Saturno seria destronado por um de seus filhos[...] (LISBOA, 2013, p. 146-147).

Urano implica imprevisibilidade, o que está a contramão de tudo e tal deus se

destaca pela singularidade, invenção e a ultrapassagem de valores já gastos. Se antes

Cronos/ Saturno representavam a estrutura, Urano, por sua vez, é o primeiro passo

depois do caos, depois da derrocada, ou melhor, o aprender a caminhar. No entanto, a

energia simbólica desse deus é totalmente desmedida, destrói o que já era alicerce e

retoma em si mesmo o impulso e a queda, o princípio e o fim. Se antes vimos o Tempo e

consequentemente a Memória, vemos nas seguintes páginas um discurso paradoxal,

incoerente e incômodo. Mas o que foi destronado? O Tempo? Não, a linguagem, o uso

de Tempos outros, passados, mas que parecem presentes segundo a percepção singular

dos pacientes acometidos pelo Alzheimer.

“É o hábito que resiste à invenção” (RICOEUR, 2007, p. 47)

Volta-se ao momento de início do fim. Depois de velho, o homem reaprende o

significado das coisas, inventa palavras, recusa-se a ordens estabelecidas de conduta.

Nega-se a tomar banho. Mas não é um negar-se autoimposto, mas de um descontrole

ontológico da própria doença. O Alzheimer é uma negação por si só. Nega-se que o

Tempo existe e somente na cabeça de um paciente é possível estarmos em outra

década, outro século e na presença de fantasmas que eles insistem em dizer que estão

vivos. Enquanto Saturno é a muleta, Urano é a decisão primeira de engatinhar.

Parte do processo de desconexão com a realidade que o paciente diagnosticado

com Alzheimer reaprenda algumas tarefas da infância: descobrir o próprio espaço da casa

(a cozinha onde fica?), ser muitas vezes repreendido por fazer as necessidades

fisiológicas sem qualquer tipo de controle físico, usar, mais uma vez fraldas. Acordar

diversas vezes no meio da noite e caminhar pela vastidão do escuro, acordar também aos

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outros pelo seu arrastar de chinelas e perguntas sem sentido. Não há dia nem noite. Nem

hora propícia para realizar as tarefas. É o tempo totalmente imposto pela derradeira

doença. O bebê tenta dar seu primeiro passo. Há um choro de angústia por que ainda

permanece no presente, pois se busca uma maneira de acalentar o ser que precisa

dormir. O rebelde está à solta pela casa. Pede café. Confunde a xícara com um prato.

Desorganiza a ordem dos dias, volta ao processo inicial ou o seu fim é isso?

Vi pela primeira vez Vô interagindo com um recém-nascido. Um sobrinho-neto

acabara de nascer. Vô acena sorrindo, perplexo. Conta para nós que está deslumbrado

pelo tamanho dos olhos do menino:

- Ele não tá entendendo nada.

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2 A DEMÊNCIA COMO NARRATIVA POSSÍVEL

A desmemória/1

Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu

bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos tem a cor da água) e sorri com o

mesmo beatífico sorriso de seu bisneto recém-nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória

que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória.

Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não quero.

(Eduardo Galeano em O Livro dos Abraços)

Trato de não romantizar a doença, mas é inviável não fortalecer vínculos ainda

maiores com a outra metade da memória. A minha lembrança permanece ainda intacta ao

me relembrar de Vô, mas tenho consciência que agora tal memória é exclusiva. A

memória vira quase um remorso de perceber que a única guardiã do passado sou eu. O

resto do que já se foi é reinventado quando tento rememorar com Vô algumas imagens.

Impossível. Ou se nega o que aconteceu ou muda-se quase que inteiramente o contexto.

Não restam testemunhos de uma parte de minha vida, a que sua memória levou consigo. Essa perda que poderia me angustiar curiosamente me liberta: não há ninguém que me corrija e me decido a inventar. Em sua presença lhe conto alguma anedota minha a L., que pouco sabe de seu passado e nada do meu, e para melhorar o relato invento algum detalhe, vários detalhes. L. ri e ela também festeja, nenhuma das duas duvida da veracidade do que digo, mesmo quando não tenha acontecido. Talvez esteja inventando isso que escrevo. Ninguém, depois de tudo, poderia me contradizer. (MOLLOY, 2010, p. 22, tradução nossa)20

Pela invenção inicia-se uma proximidade, mas também de resgate de uma figura

familiar que de repente se tornou não familiar, apático, nervoso sem motivo aparente, mas

afável, carinhoso, engraçado quando não se tem noção nenhuma de o ser. Novas

maneiras de se passar o dia e enxergar o cotidiano com estranhamento. Um descanso ou

afrouxamento de regras de etiqueta, de permissões que outrora jamais aconteceram

como beijar sua companheira na boca ou abraçar os filhos mais do que de costume.

Permite-se o homem. Fantasia o homem também.

20 Trecho retirado do livro “Desarticulaciones”, de Sylvia Molloy, onde a autora escreve relatos sobre visitas

a personagem M.L, que sofre a demência de Alzheimer

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Meu avô tem apenas a ficção a seu lado. Errar, contar mais uma vez, repetir, errar

de novo, rir mais uma vez. Esquecer. Mais. Ele, pela primeira vez na vida inverte a ordem,

muda o sistema, esquece as chaves, onde é o banheiro? Onde estou mesmo? O

Alzheimer o afasta das responsabilidades sociais de ser adulto. Meu avô retoma a

felicidade de se ser criança, protagonista e ausente de sua própria história.

- Tu viu minha vó? Mãe Lica?

- Como ela era?

- Ela tinha duas pernas, dois braços, quatro pernas, mas não era quadrúpede.

Não posso me acostumar a não dizer ‘você se lembra’ porque tento manter, nesses pedacinhos de passado compartilhado, os laços cúmplices que me unem a ela. E porque para manter uma conversa – para manter uma relação – é necessário fazer memórias juntas ou jogar para que aconteça, mesmo quando ela – quer dizer, a memória dela deixou apenas a minha. (Ibidem, p. 33).

Se escrevo sobre a trajetória de meu avô é por que falo como um vulto que

enxerga a casa pelo lado de fora, não de dentro. Tento me enganar mais uma vez, mas

sou eu ali. A secura ainda me permanece como ascendência do que me foi passado pelas

estrelas e pela família, reminiscências de herança.

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

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A memória é repetição

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A memória é repetição

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A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

A memória é repetição

Onde a memória se transforma?

2.1 O lugar íntimo da memória – os sítios inventados por Zé

Neste capítulo, trato sobre as narrativas, assuntos do passado que perpassam o

meu corpo no exercício da prática escrita desta dissertação. Enquanto a escrevo, as

memórias brotam em carne, lampejos de passado, como se a ação de escrever me

levasse, por si mesma, a outros lugares, memórias puras, não de reprodução. Escrever e

lembrar-se, não tentar se lembrar, apenas escrever. A tentativa e o ato de escrever no

presente para perceber o passado.

O momento de recordação é então o reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus de rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta para a narração (RICOEUR, 2007, p.57).

Escutar o velho, ouvir o ancião. Dar-lhe a possibilidade de se expressar, como

sempre foi em sua casa. No entanto, a voz hoje é mais amena. O olhar quase sempre

profundo ao vazio do quintal à frente da sala. Interrupções nas conversas alheias para

nos contar que se esquece. Não fui eu que falei. O assunto tocado por meu avô parte do

que ele escuta, qualquer coisa, qualquer palavra, qualquer corte de cabelo. Se ele ouve,

ele corresponde, mas de uma outra maneira. O cabelo pode ser comida ou se tornar um

outro objeto, por exemplo. As palavras trocam de lugar e significado, cognição inventiva,

repositória, transgressora, ainda comunicativa.

Vô anda perdido em casa

A casa não é minha

Onde fica o banheiro?

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De mim não se lembra faz tempo

Sou várias, menos eu mesma

Sou Corrinha, Joelma, Edna

Menos eu mesma.

Às vezes ele se lembra de mim

Como ela cresceu

Quantos anos você tem?

Onde você tá morando?

Nem eu me lembro direito

Morei em muito lugar, Vô.

- E é?

- É.

- Mas que horas você chegou?

Faz tempo?

- Faz um tempo

- Sua mãe, cadê?

Você tá sozinha?

- Não.

- Graças a Deus.

Cadê sua mãe?

- Tá aqui, Vô

- Essa não é sua mãe

- É sim.

- Essa aqui é você.

- Parece, né, Vô?

- Como você se chama mesmo?

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O ambiente é sempre a casa, dentro da cozinha, na sala, no quintal, nos locais

permitidos de gente. Não acompanho meu avô quando ele vai ao banheiro, ainda, mas

ele me pergunta “onde fica o banheiro?”. “É ali, Vô”, respondo, e o levo até a porta

segurando seu braço. Ele me pergunta “você tem certeza?”.

O que me é contado se transforma de acordo com a descrição de seu narrador,

meu avô, o qual dispõe sempre de uma ressignificação de coisas, lugares e pessoas. Sua

memória é volúvel e assim também escrevo e que tento capturar cenicamente.

A transição da memória corporal para as memórias dos lugares é assegurada por atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se, e, acima de tudo, habitar. É na superfície habitável da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado locais memoráveis. Assim, as ‘coisas’ lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar. E de fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos ‘lugares da memória’, antes que eles se tornem uma referência para o conhecimento histórico. (RICOEUR, 2007, p. 59)

Anotava as falas de Vô. Levava comigo um caderninho na bolsa, antes de começar

a pesquisa ou ingressar no mestrado. Peguei gosto pelo que Vô me dizia, mas percebi

que era difícil anotar detalhadamente pela rapidez das palavras e pela minha compulsão

em querer anotar tudo, inclusive suas ações. Logo, comecei a gravar as suas histórias e

também com isso ter a oportunidade de escutá-lo mais uma vez. Pela escuta eu me

lembro de sua maneira de falar, escuto a risada dos que também escutaram ao vivo o que

ele nos contou, lembro-me da imagem pela sua voz. O que faço agora é transcrever e

rever, revisitar pelo som o gosto da comida de n’s almoços de domingo, aniversários,

churrascos, reuniões em família. Portanto, a ação de escrever me leva a outros cenários,

pessoas, imagens, outros dias de um avô que é sempre outro todos os dias. Algumas

frases estão soltas, assim como as ideias de meu Vô. Elas dançam na minha memória e

atento o leitor para algo muito sério: não é para fazer sentido. Se houver sentido deve ser

por familiaridade ou por alguém já conhecido que também possui a mesma doença.

Vou revisitar. Vocês verão pela primeira vez.

Ação: quando alguém chega, bater palma. Eeeeeeeee

Tá liquidando. Do umbigo pra baixo. Por que eu não consigo? (olhando para a

barriga do tio e perceber que o mesmo tem mais barriga que ele)

Ação: acenar com insatisfação, cabeça olhando para baixo, fazendo bico.

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- Tu não aprende nada?

- Não

- Então por que ensina?

Eu tô louco pra animar. Ela me tira como um animal.

Deus dá as ideias. O homem faz as coisas.

Já são três e cinco minutos?? Graças a Deus (com alívio)

Vô: Eu fui lá ontem. Tava eu, Eurídes21, sua mãe, sua vó e eu . A tia-vó... o que é

tia –avó?

Eu: A tia Edneusa é minha tia-avó

Vô: é minha tia – avó?

Eu: não, é MINHA tia-avó.

Vô: aaaaaaaaaa, agora eu entendi. Graças a Deus.

Eu já mordi dois porcos hoje. Um deles tava doente.

Vô: Tá ficando doido? Oxe! Tá? A, parece que quer espremer minhas espinha.

Vó: Não, meu filho, nós por enquanto tamo aqui.

Vô: Não, eu não. Eu moro eu outro lugar. Eu não sou daqui.

Vô: Não dorme. Tomara que durma essa noite, Jesus. Outra noite é fatal pra mim,

duas noite sem dormir, é ruim, né? Minha cabeça fica zonza É horrível é horrível. Ai

fechava o olho, liguei o ar-condicionado, ai meu Deus do céu, e ele vinha, vinha, acendia

a luz e eu apagava, ele abria a porta, andando. Chom chom chom. Dai ele deitava,

levantava levanta. Quando ele começa é a noite toda. Chega minha cabeça doía. Meu

Deus do céu. Isso acaba com a minha cabeça. Ai tomou café seis horas, tomou o remédio

que eu dei, não é possível, aí até meio-dia dormiu.

21 Minha avó.

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Vó: Três dias sem tomar banho. Ai dei uma de doida, ai depois arrumei tudo no

banheiro pra ele tomar banho “ eu não vou tomar banho não”

“você vai ter que tomar banho, você tá fedendo. Tá bom. Agora fique com esse seu

fedor da porra. Vou me sentar ali. Sai daqui! Você tá um podre!”

Ai ele veio aqui pra cozinha e ficou sentado. Levantou e falou assim: “nossa, a

mulher que mora aqui tá tão nervosa. Eu tô com medo”

- O que é que foi?

- Eu tô fedendo. Eu tô com medo. Não vou ficar aqui não.

Me deu uma dó, até chorei. Ai eu falei “ah, não liga, não. Não liga não, você, você

você... ela é doida. Vamo lá tomar banho.

-Eu não vou entrar não, ela é brava.

O cheiro tava insuportável. Ardia. Entrou no banheiro.

Mãe conversando com Vó e lhe ensinando sobre como usar internet no celular: “Quando

o agazinho da internet tiver ligado esse h, é por que você tá usando o 3g.”

(Vô está sentado na mesa comigo enquanto Mãe e Vó entendem o uso do celular.)

Vô para mim: Que garota elegante! (risada estridente) Não, mas eu vou desligar

ele. Essa aí embebecida é bonita. Deus abençoe. Essa dai tá com corte de cabelo. Tá

bom a proposta? Tá ótimo Eu vim do barbeiro agora. O meu é o mais caro. Dai eu disse

“eu vou em casa dá uma volta, que eu não tenho muito pressa”. A minha... O meu cabelo

tá ficando mestiço e a pessoa, muito lindo ai eu vim embora. Ai peguei você aqui agora,

agora, danou-se. Ainda tem muito h pela frente. Oh nega. E aí? Deixa eu me levantar que

é falta de educação. Quero não. Por que eu não sou muito de ficar deitado. Exceto

quando eu tô com uma garota, tocando um agarro. Ai quando a corporação é igual ou

quando um é mais alto que o outro e o h fica muito em cima, entende? (fala fazendo bico

com a boca) ai meu Deus do céu nós viemo de lá agora, da casa de Corrinha22. Mas tu tá

gorda hein meu? Aí tem alguma coisa errada? Nem endereço? Só isso? Tá louca! Cai

fora, mulher. Olha ela aí também. A minha não, a minha é magrinha. Tirei goiaba ontem,

mas a minha qualquer um pode comer em duas vezes, em três. Pode mandar ela

balançar os pés, as mãos. Quando chegar o o o o presente dela que é um cacho de

goiaba cheio de goiaba ai eu mando balançar nos pés, nas mãos, na frente xiiiiiiiiiiu

xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu (barulho de vento) mesma coisa. Hey, onde tu vai? Xiiiiiu! Pera aí deixa eu

sentar mais pra cá.

22 Tia Corrinha, irmã de meu avô. Eles não se vêm a um bom tempo.

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Hey! Porque? E esse h aí. De dou ou não dou. Por que? Tu trabalhou hoje? Cadê

o o o carango? Oxe, você não tem um carro? Só o ônibus? Uai e não tem mais o carango

não? Cadê o carro? Você não tinha o carro? Sei não! Ah? Eu tô por fora. Agora tá

fazendo esforço. É... meio chato. Já caiu não sei quantos filhos...

Ação: olhar o chapéu que está ao contrário de seu posicionamento considerado normal.

‘Tá virando, tá virando’.

Vô: Faz tempo que você tá aqui? Você dormiu aqui?

Eu: Sim. O senhor já perguntou isso.

Vô: É, mais ou menos. Ninguém dorme na minha casa. Tem gente que vai pra lá,

pega um rabo de vaca. Outros preferem do boi. Daí vai a gosto do freguês, né?

Mostro o binóculo ao Vô. Ele coloca sobre os olhos.

Eu: Quem é?

Vô: É uma bicha feia.

Eu: Tá vendo essa pequena? É minha mãe.

Vô: Não é possível. Não é não.

Eu: É ela, Vô. É minha mãe.

Vô: Mas ela tá pequena.

Eu: É, Vô, agora ela tá grande.

Vô: É. Tá grande e gorda.

Mostro outro binóculo ao Vô.

Vô: Sei que tão cortando um bolo aqui. (Vô olhando a si mesmo na foto)

Lembro-me de ter gozado e sofrido em minha carne, neste ou naquele período de minha vida passada; lembro-me de ter, por muito tempo, morado naquela casa daquela cidade, de ter viajado para aquela parte do mundo, e é daqui que eu evoco todos esses lás onde eu estava. Lembro-me da extensão daquela paisagem marinha que me dava o sentimento da imensidão do mundo. E, quando da visita àquele sítio arqueológico, eu evocava o mundo cultural desaparecido ao qual aquelas ruínas remetiam tristemente. Como a testemunha numa investigação policial, posso dizer sobre tais lugares que ‘eu estava lá’. (RICOEUR, 2007, p. 57)

Difícil escrever sobre o Velho sem o marejar dos olhos, pois foi pela escrita onde

mais me aproximei de meu Avô. Portanto, tem sido complicado às vezes me distanciar.

Vejo-me submersa e cheia de passagens que compro de volta ao passado. Relembrar,

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mais uma vez. Escutar mais uma vez. Desejar o melhor sempre por um futuro saudável.

Sinto medo. Vejo a constelação e estrelas mortas e algumas vivas da família. Linhagem

consanguínea da doença. Tenho medo. Mas acredito num claro futuro de uma lucidez

deserdada e imaginada por mim. O futuro. A crença, a doença, o descaso, o devaneio, a

mesquinhez, o cuidado, os relapsos, tudo. Tenho medo e saudade ao mesmo tempo. Do

antes e do depois. Do esquecimento. Do silêncio que me aguarda. Mulher ansiosa aos 25.

O processo de escrita sempre me lembra a morte, talvez pela idade do meu avô.

A estrutura dos ossos

São os ossos que nos sustentam, antes de tudo. Antes que venha uma cor ou

definição por parte do que acredito ou de minhas vestimentas, caráter, osso é o que nos

resta e que nos conta a história arqueológica. Um osso nascido da terra como as batatas

que submergem, rasgando-se em cios, submergem e resgatam os fios passados das

civilizações.

Os ossos de Vó enfraquecem. Há um peso desmedido de um lado do corpo

enquanto a cartilagem do outro lado desse rio seco se corrompe, vira pó. Há uma

desconversa, um desentendimento entre osso e cartilagem. Falta de leite e também de

um líquido que torne macio o seu caminhar jamais igual. A bengala a ajuda, mas não

impede de sentir dor enquanto se anda. O objeto, no entanto, é incapaz de lhe roubar a

beleza e a maciez em Vó, que tem um coração tão grande, mas também o causador de

morte de mais de um de seus irmãos.

Nesse corpo de Vó existe também uma mão que não consegue articular direito,

causada por uma doença chamada Síndrome do Túnel do Carpo, o que causa

formigamentos intensos na sua mão direita, ou, como ela diz ‘um puxão’. Isso é

acarretado por exaustivas repetições, excessos de histórias do machado cortante que

viveu ou das inúmeras funções que, sozinha, exerceu ao cuidar de casa. Acúmulo de

história nas linhas das mãos, demasias do sertão em secura onde viveu. Vó tem olhos

minúsculos, mas ardentes quando estão com raiva. Há também um excesso de gordura

no sangue, que bomba desenfreadamente o desejo de experimentar mais uma vez um

toicinho.

Uma imagem: aos sete anos, aprendi na escola como escrever uma carta e como

postá-la. Também aprendi o seguinte CEP: 11525-110.

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Carta enviada a Vó. Já havia alertado a ela sobre o exercício. Vó recebeu a carta,

mas parou a brincadeira por aí.

Obs: Vó guarda a carta até hoje.

Uma imagem: A primeira morte

Não me lembro dos nomes. Era entardecer. Uma grande sala com flores. Lembro

nitidamente do cheiro infinito e enfadonho de crisântemos, gérberas, outras que não sei

identificar até hoje, mas eram amarelas, brancas, rosas de cores. Flores em pétala por

pétala. Não sei o nome da adormecida, mas estava ali, límpida, dormindo fora de hora

dentro de uma caixa gigante. Onde eles compraram essa caixa desse tamanho? Eu devia

ter uns quatro anos, não me lembro com exatidão.

Era a mãe de uma colega da minha classe, a mulher que dormia. A filha não

chorava, ficava olhando a caixa gigante. Também estava pálida olhando ao redor tantas

pessoas chorando ao mesmo tempo. Estarrecida. Tinha um cabelo cacheado, preto bem

preto, com gel brilhante. Pequena e magra. Eu era grande para idade e gordinha. Sentei-

me ao lado dela. Ficamos observando os adultos.

- o que ela tem?

- meu pai disse que ela foi descansar.

- Vamos brincar de morte? É assim: agora você morre e eu choro. Troca. Agora é

sua vez: Você chora e eu morro.

Outra imagem de morte: O funeral do passarinho

Visita na casa da Tia que mora no nordeste, irmã de Vó. Alagoas. São José da

Tapera. Um monte de criança reunida, primos, vizinhos, éramos em quatro, cinco, seis,

aumenta-se a percepção da memória. Vimos um pássaro morto, azul. Pegaram flores, eu

peguei varetas, montamos um jardim com murinhos de madeira, os gravetos. Fizemos

uma cruz. Grudamos na terra, só a pontinha enfiada no chão.

Cortejo. Demos uma volta no quintal. Caminhada devagar. Cânticos de igreja.

Choro de mentirinha. Paramos em frente da cruz já plantada. Cavamos um buraco com os

nossos próprios dedos. Rezamos. Enterramos o morto.

2.2 Narrativas improváveis: a escuta sobre outros Alzheimers

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O médico escreve sobre uma folha sulfite a seguinte frase: Feche os olhos. Se o

paciente entender o que está escrito, ainda restam esperanças. Caso contrário, a doença

chegou a seu quadro mais grave.

Perguntas do médico ao paciente:

1. A senhora anda triste?

2. Consegue fazer comida?

3. Consegue manusear os próprios remédios?

4. Consegue comprar roupa sozinha?

5. Consegue esquentar a água do café?

6. Consegue se manter atualizada sobre notícias, familiares, vizinhança ou

atualidades?

7. Quando foi o último feriado?

8. A senhora gostaria de tirar a própria vida?

9. A senhora já teve algum pensamento suicida?

10. Qual foi a última vez que a senhora teve crise?

11. Quanto que é 31-7?

12. A senhora pode desenhar 3:30 hrs no relógio?

13. A senhora tem neto?

Parto agora da transcrição do que foi observado por mim enquanto estava em

contato com outras pessoas que também sofrem da doença de Alzheimer observados no

Ambulatório de Neuropsicologia e Demência do Hospital de Clínicas da UNICAMP. Creio

que foi necessário o meu distanciamento afetivo da doença para entender também em

outros corpos como era a relação com o Alzheimer e com o todo que circunda o paciente:

a família, o cuidado e até o atendimento médico. Eram outros tipos de relações e

convívios. Eu nunca acompanhei meu avô às consultas. Nunca tive esse olhar distanciado

sobre a doença e também nunca havia visto tantos outros senhores e senhoras com tal

doença. Percebi que o Alzheimer tem as suas próprias diferenças. Deixo claro que a

narrativa oral está presente em todos os relatos. Estes, por sua vez, são suscetíveis a

esquecimentos e omissões.

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O que mais me recordo é o cheiro, primeiramente, do hospital, um desconforto. A

vista, pessoas em espera de serem chamados para o atendimento. Siga a linha preta no

chão e você vai ver o ambulatório, disse a moça que trabalhava no hospital. E não era

longe, ficava no térreo, mas na trajetória desse caminho havia gente de todas as idades,

cores e enfermidades. Ao chegar finalmente no ambulatório, algumas coisas mudaram: o

público à espera era de pessoas idosas, em sua maioria, pois o ambulatório atendia

outras demências e segunda-feira era o único dia de consulta. No entanto, nunca o vi

cheio, pelo contrário. Era um corredor vazio com alguns senhores que tentavam fugir da

espera. Lembro de uma filha convencendo o pai a entrar na consulta. Um outro que

discutia com sua companheira os motivos pelos quais não precisava ser consultado.

Outros senhores sorridentes, sorrindo para a parede, sem retorno algum do concreto.

Filhos e filhas acompanhavam pai ou mãe23. Quando se tratava de um casal, a

mulher era sempre uma acompanhante do companheiro, eram elas que contavam tudo ao

médico, assim como minha avó faz quando leva meu avô ao médico. Os pacientes, por

sua vez e dependendo do humor falavam muito ou absolutamente nada, concentrados em

sabe-se lá o quê, a parte do que era discutido, a parte dos comentários que os

acompanhantes diziam sobre eles, a parte de suas próprias presenças. Uma vez uma

senhora já muito debilitada, numa cadeira de rodas, beirando os noventa anos, ficou

petrificada com a minha presença. Seus olhos que estavam à beirada do esquecimento

encontraram refúgio em mim, fitando-me debaixo para cima, vagarosamente, como se a

senhora tivesse visto pela primeira vez na vida um tronco de uma árvore gigante. Quando

seus olhos alcançaram os meus, ela virou uma estátua, não piscava mais e ficou

contundentemente séria. Senti-me errada em algum ponto. Ela estava me julgando,

aparentemente. Enquanto isso, eu desviava o olhar e fitava outras coisas, tentava me

concentrar no que a filha dizia ao médico e a senhora lá, me fuzilando silenciosamente. O

Alzheimer atingia seu ápice: a total falta de comunicação, pelo menos oral.

Outra vez, um senhor perdido nos vocativos familiares e com os olhos abismados,

me olhou como se me conhecesse há séculos. “É meu sobrinho”, disse ele aos outros e

voltou a olhar ao nada, quase que feliz. Ele estava nitidamente perdido.

23 Segundo Foucault (op. cit.), o discurso determina os papéis do sujeito na sociedade, bem como os

discursos políticos, religiosos, judiciários não podem ser dissociados de suas práticas e rituais. Pode-se inferir que o mesmo acontece com os sujeitos com DA, cujo discurso é comumente tido como ‘vazio de sentido e razão’. Esse termo também foi utilizado por Foucault para criticar a justificativa da sociedade ao interditar o discurso do louco, já que nem amigos nem familiares o consideram relevante. Vale salientar que, muitas vezes, até mesmo médicos e outros terapeutas desconsideram os sujeitos com DA como interlocutores; falam sobre eles com os acompanhantes, mas não com eles.(BEILKE, 2009, p. 18-19).

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Em todas as vezes que fui ao consultório o paciente e a acompanhante já estava

sentados aguardando a entrada do médico responsável e dos estudantes residentes de

medicina. Entravam três estudantes no mínimo, ficando, deste modo, desconfortável para

tanta gente. Havia uma cama ao lado da porta, duas cadeiras e uma mesa adiante.

Poucas vezes pude ver o olhar dos pacientes, já que eu ficava sobre a cama. Portanto, os

pacientes ficavam sempre de costas para mim. Conseguia ver muito mais as

acompanhantes e suas expressões enquanto indagavam. Os pacientes eram quase

pedras, com pouca movimentação externa. Por isso, creio que uma das coisas mais

importantes que aprendi durante esse percurso foi o silêncio e a respiração que eu

conseguia capturar. O restante fazia parte de compartilhamentos das acompanhantes

sobre o estado de saúde de seus familiares.

Os relatos abaixo fazem parte das conversas entre médicos, acompanhantes e

pacientes. São anotações rápidas, pois não havia muito tempo para escrever, fotogramas

por consulta. São anotações urgentes de pontos específicos que de certa maneira me

chamaram a atenção. Os pacientes serão os Pacientes, os acompanhantes serão os

Acompanhantes. Algumas vezes, os acompanhantes serão filhas, esposas – mulheres em

maioria, filhos ou cuidadoras.

Imagem nº1: Perdida na Igreja

Paciente 1: Mulher. Cerca de 60 anos.

Acompanhante: Filha. É ela quem diz as seguintes frases que marquei como

tópicos.

Pergunta a mesma coisa várias vezes

Coloca sal várias vezes

Bem, quer tomar café? Repete 6x

A Acompanhante chora.

P1: Não tem necessidade de fazer carão. Tenho uma família maravilhosa. Não tem

motivo para tristeza. Deus tem me ajudado muito. Tenho medo de ficar igual minha mãe.

Ele (o tio dela) perdeu quase tudo. Ficou violento. Meu tio era tão inteligente. Meus tios

por parte da minha mãe todos tiveram (Alzheimer).

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Quando vai ser?24

Falta de localização. Foi no banheiro da igreja e quando voltou ao salão não

sabia onde estava;

Coloca post its na geladeira para lembrar onde o marido está.

P1: Dirijo há 40 anos. Levei meus filhos na escola sempre. (a paciente tem

relutância em admitir a dependência depois que a Acompanhante relatou que sua mãe

ficou dando diversas voltas, pois não encontrava saída numa rotatória).

Indicações do médico: A parte emocional é a mais importante na consulta. É a

primeira coisa que surge na cognição humana e a única que resta. A paciente tem

consciência que perde sua memória.”

Imagem nº 2: Ela ou Eu?

Paciente 2: 66 anos. Mulher. Teve um AVC em 2004 e ficou com sequela do lado

esquerdo.

Acompanhante 2: Filha. Fala com a mãe em terceira pessoa.

“O olho ficou estalado, mas depois voltou”, diz a acompanhante. Tal ação se

sucedeu depois que a mãe caiu no AVC.

A2: A mãe lembra quando foi pro hospital?

P2: Eu lembro. A mãe foi na ambulância e tudo

Imagem: sentada com leve cara de preocupação, com um dedo na boca.

Imagem nº3: Você viu minha carteira?

Paciente: Homem sentado numa cadeira de rodas. Boca aberta. Delírio. A mãe, já

morta, foi lhe visitar. Disse que comprou um avião e foi para Ouro Fino, mas agora já

24 Frase dita e repetida pela paciente.

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vendeu (o avião). Blusa de frio. A blusa debaixo cobre as mãos. Confabulação narrativa.

Nada do que ele disse de fato existiu. Não é bem um delírio.

Preocupação sobre fatos que não ocorreram.

“Eu comprei um avião, mas não paguei. Cadê meu dinheiro? Me dá a minha

carteira. Me roubaram. ”

“Mata aquele tigre lá. Como é que eu vou dormir com esse tigre? ”

O médico mostra uma tomografia cerebral. O médico sempre usa a palavra

“imagem” para designar a tomografia.

Questões éticas: a própria filha não marcou a consulta, pediu ao motorista.

Imagem nº 4: A pedagoga que não faz mais contas

Mulher. Idade desconhecida. Tem episódios de não reconhecimento. Delírio de

caráter psicótico. Apatia. Passa o dia inteiro com os olhos abertos. Cursou pedagogia.

Dificuldade de concentração. Não consegue realizar contas simples. Se esquece do que

foi perguntado. Veio acompanhada de uma ajudante.

Médico pergunta a paciente: Quanto que é 7 – 32?

P3: (constrangimento. Longo silêncio).

Médico: Tudo bem, sem problemas. Quanto que é 12 + 9 – 6?

P3: (Silêncio)

Imagem nº 5: A demora como resposta

Homem acompanhado pela família. Ele usa cadeira de rodas. A filha nos diz que

quando ele come a colher treme e a comida cai. O médico comenta que se a doença

chega na paralisia é por que tudo já se foi.

Médico: Tudo bem?

P5: (demora para perceber a pergunta. Move os olhos devagar). Bem...

Médico: Quem são essas do seu lado? (aponta para a filha do paciente e uma

médica residente que está sentada próxima) Minha filha e minha neta.

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Médico: Quais os nomes?

P5: Minha filha e minha neta.

(Depois de muito tempo parado ele deu um impulso, como se fosse se levantar. Se

apoia na própria cadeira. Parou na metade. Parado. Lentamente olha para a filha,

apático).

Imagem nº 6: Quem é essa moça?

Homem. Sentado com a mão na cabeça. Estava fora da sala. Já havia o visto antes

tentando ir embora pelo corredor. Parte cognitiva da linguagem deteriorada, parte motora

ok. Calado, às vezes solta frases desconexas. “Vamos lá pra roça”. Quando toma banho

ele fala claramente palavras de baixo calão. Usa fralda. Come uva como se fosse maçã,

colocando o cacho inteiro na boca. Anda o dia inteiro pela casa.

“Tem alguém embaixo do carro”

Ele falava alemão, mas é tão deficitário quanto o português. Passos curtos. Anda

devagar, esbarra na parede, mas depois se arruma. Parado. A boca e o dedão direito da

mão treme. Reconheceu a caneta. Quando lhe foi mostrado o relógio disse “outra caneta”.

Médico: Como o senhor está?

Paciente: (Silêncio)

Médico: (Repete a pergunta em alemão). Senhor, qual é o seu nome?

Paciente: (depois de algum tempo) Senhor?

Médico: Quem é essa moça? (Aponta para a filha)

(Paciente depois de um longo tempo ele olha para ela e se assusta)

Médico: Quem é essa moça?

(Paciente olha para a filha, faz sinal de negação com a cabeça. Ele se move

lentamente. Depois de um longo silêncio)

- Cadê meu moleque?

Imagem nº 7: Sim e não.

“Homem. A doença começou depois de ter sofrido um AVC. Analfabeto. Déficit

motor do lado direito. Usa cadeira de rodas. De vez em quando vai ao banheiro e se limpa

com a própria mão, segundo sua filha.

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Paciente: não vale a pena viver, morrer. Não quero morrer, não. Mas se vier tô

preparado. Tá bom não viver desse jeito. ”

Imagem número 8: Olhos, boca, mãos

Mulher. 93 anos. Olhos julgadores como me dissessem “o que você está olhando?”

Observa detalhes, espia. Bate a mão esquerda na perna como se fosse criança ou uma

mãe cantando ao filho. Boca aberta.

Imagem nº 9: O eletricista que se esqueceu como se faz para trocar uma lâmpada.

Homem. Era eletricista. A filha diz que ele se esqueceu como se troca lâmpada. A

esposa dele fez um mapa para ele não se perder. Enquanto o médico conversava com os

estudantes, o próprio se esqueceu do nome de um deles. Todos na sala riram, menos o

paciente.

Imagem nº 10: Cachorro

Mulher. 70 anos. Chama todo mundo pelo nome do cachorro. Entregava seu

dinheiro aos outros. Tem um olhar melancólico.

Imagem nº 11: A perseverança é a repetição

Homem. 77 anos. Não quer se sentar. Se apoia na mesa como se estivesse num

balcão de informação. É inquieto. A acompanhante, sua esposa insiste para que ele se

sente. O homem acata. Não para de olhar a todos de maneira rápida. Segundo sua

esposa, ele trabalhou numa fábrica de pneus. Quando o médico pediu para ele dizer

“pneu”, ele deu voltas com o corpo inteiro, fazendo um círculo. Ele conversa sobre tudo,

mas quando o médico toca no assunto “pneu” ele desconversa. Pior: não consegue dizer

a palavra verbalmente, diz através do corpo e do movimento circular que realiza. Perda

semântica.

Médico: Tudo bem com o senhor?

(Paciente rumina, quase aparece uma vogal “a”. Aponta para a mesa, como se

mostrasse um caminho)

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Agnosia visual. Alteração semântica. Range os dentes. Sua acompanhante é dócil

e fala sobre os netos. Diz que o marido não os reconhece mais. “O que o vovô tem? Eu

sou sozinha com ele. ” O médico diz que ele sofre de perseveração25. A acompanhante

traz vários comprovantes: desenhos perseverantes. Várias folhas com fileiras e fileiras de

círculos desenhados por ele. Segundo sua esposa, ele primeiro desenha as linhas, depois

coloca os círculos e às vezes coloca alguns nomes dentro do círculo.

2.3 A doença de Alzheimer – aproximações narrativas

São presentes algumas características semelhantes entre a obra de Samuel

Beckett, Cadeira de Balanço em algumas situações presentes nos pacientes com a

doença de Alzheimer e, principalmente, como isso pode se desdobrar enquanto análise e

criação poética:

Pela observação do agravamento do estado de meu avô materno, nota-se que

seus relatos de memórias possuem uma dinâmica que diverge em relação ao passado e

ao presente, ao relacionar fatos ocorridos como se ainda estivessem em voga com

pessoas não presentes, já mortas, mas, que pela lembrança se tornam vivas em outros

corpos. Há uma espécie de confusão, não só nos nomes dos familiares, mas de dar aos

vivos os nomes dos que já foram ou, reconfigurar funções simples do cotidiano, como

inverter a ordem de se colocar a roupa, a mudança espacial da própria casa (a cozinha,

onde fica?) Ou mesmo estar num outro lugar que não seja o que ele de fato está. Não é

sua casa, mas um sítio do interior de Pernambuco, ou mesmo uma casa estranha e não a

sua de seu tempo de menino. Mudanças de tempo em espaços diferentes. Pessoas

‘trocadas’ por nome ou época ou que insistem em reaparecer por completo, fantasmas do

passado nos corpos vivos de hoje. A cabeça de meu avô é, de fato, um novo e mais

abrangente significante inventor de palavras e memórias.

A doença de Alzheimer é caracterizada por acometimento da cognição [especialmente a memória], confusão mental, desorganização espaço-temporal, comportamento desorganizado e socialmente inapropriado. Trata-se de estudo qualitativo em que os resultados mostraram que a narratividade do sujeito caracteriza-se por especificidades e por necessidade de intervenções organizadoras da parte do interlocutor (PANHOCA, 2009, p.878)

25 Um dos sintomas da doença de Alzheimer. Também é presente em pessoas que sofrem de esquizofrenia e lesão cerebral traumática. Consiste em repetições compulsivas de palavras ou persistência de imagens ou memórias que aumentam conforme o Alzheimer se agrava.

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A fusão entre tempos e espaços territoriais que pelo devaneio, afunilam-se num

único tempo presente, correspondendo a um processo transindividual e de toda uma

gama de compartimentação da interação humana, na qual interagem os afetos, o

ambiente e a cultura adquirida. No entanto, com o agravamento da demência os espaços

e memórias ganham outros nomes, perdem sua caraterística real do acontecimento e,

portanto, desatinam num processo de desconhecimento. As novas formulações de

memória, agora aglutinadas, abrem caminhos para a fantasia, mas deixam espaços vagos

sobre o que foi, como foi e com quem foram compartilhadas toda uma existência.

Alzheimer: Qual o seu nome?

Auguste D: Auguste.

Alzheimer: Sobrenome?

Auguste D: Auguste

Alzheimer: Qual o nome do seu marido?

Auguste D: Auguste, eu acho.

Alzheimer: Seu marido?

Auguste D: Ah, meu marido. (ela olha como se não tivesse entendido a pergunta).

Alzheimer: Você é casada com o senhor Auguste, Sra. D ?

Auguste D: Sim, sim, Auguste D.

Alzheimer: Há quanto tempo está aqui?

Auguste D: (Ela parece estar tentando se lembrar e depois responde) 3 semanas.

(Transcrição realizada a partir de Hardy et al. (2006) apud BEILKE)

O tempo se destrincha, se derrete como um relógio de Dalí. O tempo é tão longo

que não se sustenta. Enquanto isso, os pacientes que acompanhei durante dois meses

permaneciam em suas cadeiras, imóveis, pasmos sabe-se lá com o quê. Esse momento

de espera ou tentativa de pausa diante da existência humana, era visto por mim como se

os pacientes fossem apartidários de suas próprias vidas e isso, uma relação direta com as

personagens construídas por Samuel Beckett. Obviamente, o estado senil tanto das

personagens quanto dos pacientes de Alzheimer geraram uma primeira identificação

entre o ficcional e o real. No entanto, se observarmos, veremos que grande parte das

personagens também possuem falta de memória – claramente visível em Esperando

Godot e Fim de Partida, e também a relação ou falta de afetividade com os entes

queridos, ou seja, uma outra forma social de esquecimento.

Em Fim de Partida é evidente o descaso familiar, pelo fato de Hamm colocar ou

esquecer os pais dentro de urnas funcionando como um prenúncio de morte, mas

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também como maneira de descartá-los durante a peça. Ainda assim, quando seus pais

decidem aparecer e ter uma tentativa de diálogo, rapidamente eles são mais uma vez

ignorados. Também nessa peça, Clov não consegue se lançar a mudança, ele está

“agarrado” a Hamm. Clov é capaz de perceber que sua vida não vai adiante, mas

permanece. O Ouvinte de Improviso de Ohio se lamenta das mudanças que não

ocorreram, assim como Krapp, mas lembram-se de maneira codificada, com memórias

gravadas, um livro que é lido e relido por diversas vezes, como possível forma de

lamentação, mas nunca como uma potência que os levem à transformação de suas

situações fictícias. Ou seja, mais uma semelhança com as características senis.

Pode haver sinais associados às dificuldades de memória e de linguagem que corroboram o diagnóstico, dentre os quais a desorientação espacial e temporal, desinibição, mudança geral no comportamento, negligência na higiene, labilidade emocional, dificuldade de adaptação a uma situação nova. (BEILKE, 2009, p. 36).

Em Esperando Godot, o fato de Estragon se esquecer e perguntar por diversas

vezes o motivo pelo qual ele e Vladimir estão ali – Estragon se esquece até mesmo do ato

de esperar; além de conversar para se “matar o tempo”. Tais ações são também vistas

em Dias Felizes, com Winnie facilmente reconhecida como uma mulher de meia idade

que fala ininterruptamente, enquanto seu companheiro, Willie, participa do quase

monólogo da primeira personagem. Absorto e mórbido, escuta sem perceber as palavras

ditas por Winnie, talvez ele mais “engolido” pelo tempo ou pela falta de paciência com

Winnie. Ela, por sua vez, funde seu corpo com a terra, sendo engolida pela mesma. No

primeiro ato, há terra até sua cintura; no segundo, a terra já lhe cobre o pescoço,

enquanto a personagem se excede em verborragia. Relata copiosamente sobre seu

cotidiano que se transforma também em um monólogo quase vazio de sentido.

Na verdade, Beckett, através de Winnie, se questiona sobre a validade do tempo,

das horas, e de como lidamos enquanto seres existentes com as ações do dia a dia. O

autor explora sobre como validamos a vida e o porquê de nossas tarefas, ou até mesmo

de uma ordem de vida mecânica para a manutenência do que nos é habitual. Com o

corpo restrito de movimentos, só resta a Winnie falar. Já para Willie, o tempo passa

devagar e com passividade, absortamente presente sem querer estar. Estão presos,

afinal, no limbo das horas, dos afazeres e obrigações. Assim como todas as personagens

criadas por Beckett, o fracasso é não romper esse ciclo com a erupção da mudança. Para

a pesquisadora em linguagem Maria Teresa de Guimarães Lemos, “a fala é a condição

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necessária para um sujeito desaparecer” (apud EMENDABILI; LIER-DeVITTO;

MARCOLINO-GALLI;, 2013, p. 6).

Lembremos que, no caso da DA, as estratégias fracassam não apenas porque não criam atalhos satisfatórios, mas, também, porque acarretam algo que é ainda mais grave: uma fala fluente e vazia. Outro ponto inquietante, a meu ver, é que, ao inverso da anomia, essa fala vazia não é escutada pelo paciente. Quer dizer, num momento temos um sujeito consciente de seu estado alterado, como no caso da anomia. Em outro, um que não é consciente, como no caso da fala vazia. (LANDI, 2009, p. 35).

O ato de rememorar os fatos e repeti-los, recontá-los, e retomar sempre que

possível o passado é observado em A Última gravação de Krapp, Eh, Joe, Improviso de

Ohio, Aquele Tempo – título-frase muito falado na boca dos idosos, e também Cadeira de

Balanço. No entanto, em especial na última peça citada, há uma passividade quase

mórbida, como se fosse um balanço para a morte. Um corpo enrijecido como uma cadeira

à espera “de outra alma vivente”.

Percebe-se também nas analogias que tento traçar, uma amplificação do tempo,

da espera e, portanto, um modo de observar a vida e os fatos presentes como se fossem

imagens, filmes que passam diante dos olhos vagarosamente. Não me parece mais uma

tentativa de se sair melhor contra o tempo. A senilidade chega como paciência e potência

temporal, como se o próprio corpo dissesse: o tempo sou eu.

Mansur & Radanovic (2004) também afirmam que as mudanças naturais da idade podem sofrer efeitos de problemas secundários, como acidentes vasculares cerebrais e doenças crônicas e/ou progressivas (como demência e depressão). A fragilidade física, segundo as autoras, em geral também contribui para a diminuição das habilidades comunicativas. Impedimentos na comunicação, por sua vez, podem ser secundários a cada um desses distúrbios e, consequentemente, dificultam a diferenciação do que é normal e do que é patológico no idoso. Ainda afirmam que mudanças estruturais e morfológicas decorrentes do envelhecimento normal são facilmente detectadas nos órgãos sensoriais, no sistema nervoso periférico e central, no sistema locomotor e na aparência. (BEILKE, 2009, p. 13).

De um modo geral, as obras dramáticas de Samuel Beckett salientam déficits,

sejam eles cognitivos e até mesmo físicos, tendo em vista que uma grande parte das

personagens não possuem aptidões pela visão, audição e físico-motora para se

locomoverem. Tendo em vista o fato de suas obras terem sido publicadas no período Pós-

Guerra, denota-se uma semelhança daqueles corpos que retornavam da guerra,

destruídos e ou modificados fisicamente, mas também numa caducidade terrível diante do

que foi infelizmente experienciado.

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A palavra favorita da neurologia é déficit, significando deterioração ou incapacidade de função neurológica, perda da fala, perda da linguagem, perda da memória, perda da visão, perda da destreza, perda da identidade e inúmeras outras deficiências e perdas de funções (ou faculdades específicas). Para todas essas disfunções (outro termo muito empregado), temos palavras privativas de todo tipo – afonia, afemia, afasia, alexia, apraxia, agnosia, amnésia, ataxia – uma palavra para cada função neural ou mental específica da qual os pacientes, em razão de uma doença, dano ou incapacidade de desenvolvimento, podem ver-se parcial ou inteiramente privados. (SACKS apud BEILKE, 2009, p.33).

Traçando um paralelo da doença de Alzheimer e a trajetória beckettiana enquanto

produção de obras dramáticas, observa-se que em ambos os casos, o

personagem/sujeito vai perdendo sua função comunicativa, apoiando-se na repetição de

suas memórias sem nenhum outro modo de se expressar que não seja calcado no

passado. A transformação não acontece e jamais é endereçada ao futuro. A fonte de suas

memórias, assim como se de fato existiram são associadas aos pedaços, restos de

lembranças, numa tentativa de se criar um mosaico do que a palavra-memória ainda é

capaz de produzir. O ato de falar é, portanto, um meio de reconstruir aos poucos uma

memória que nasce e se reinventa constantemente. Associam-se palavras a conteúdos

ou situações que são discutidas no momento corrente, assim quando meu avô ao escutar

a palavra chave, por exemplo, questionará por algumas vezes onde está a chave, você

está com a sua chave, onde está a minha chave, a chave tá dentro do bueiro.

Uma imagem: uma chave que se transforma em outra coisa, outra pessoa, outro

tempo. A chave é um brinco, uma colher, um cd que tenta se encaixar no rádio, um

cotonete, um aspirador de pó, um livro, uma pinça, uma hóstia, uma escova de cabelo,

uma escova de dente, um guarda-roupa, um copo de água, uma saboneteira, uma vela.

O que é uma chave, filha?

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3 DA MEMÓRIA À AÇÃO

Como parte apreendida dos portadores da demência de Alzheimer foram

observadas a não linearidade da narrativa e perda cognitiva, além da alteração de

funcionalidades da linguagem e da ação, as quais foram trabalhadas como fontes de

poiesis, vistas tanto na construção cênica quanto como via dramatúrgica de escrita.

Nessa parte do trabalho são analisadas tentativas de deixar vivo um registro que

compartilha uma narrativa que nasce das ruínas e do esmorecimento das relações

humanas. A causa? O próprio esquecimento. Logo, a relação entre narratividades e

memória consiste nesta pesquisa ressaltar a invisibilidade social de narradores que, aos

poucos, perdem sua memória e, consequentemente, suas próprias histórias.

A Cadeira de Balanço facilmente é captada no nosso cotidiano: a velhice, a espera,

o remorso, trazendo à tona o que Schopenhauer ressalta como a “representação do

aspecto terrível da vida [...], o sofrimento indizível, a miséria da humanidade, o triunfo do

mal, o reino absoluto do desdém do acaso e da queda irremediável dos justos e dos

inocentes”. (SCHOPENHAUER apud SARRAZAC, 2013, p. 13).

O drama-da-vida, como coloca Sarrazac, não traz à tona um episódio, ou algo que

se destaqueda vida trágica. Ele, por si mesmo abarca a vida como um todo, uma crônica

com seus ritmos internos, fragmentações e repetições, tão presentes no nosso cotidiano

real e não ficcional. A vida é por si mesma uma “tragédia universalmente humana.”

(SCHOPENHAUER apud SARRAZAC, p.14).

Relacionando-se com o tema desta pesquisa, o esquecimento como parte de

nossa natureza humana é primeiramente um tópico usual, no entanto, quando

alimentamos o olhar sobre o Alzheimer enquanto doença e até mesmo como mote

criativo, ressalta-se a dimensão cultural de nosso corpo que é constantemente moldado

entre o passado e o presente, ou como cita Bergson (1999) “A verdade é que a memória

não consiste de todo numa regressão do presente ao passado, mas pelo contrário, é uma

progressão do passado no presente”.

A partir das observações e do manuseamento corpóreo e artístico do material

coletado desencadeiam-se outras significações, tal como Bergson (1999) afirma que o

conjunto de imagens nada mais é que a percepção ontológica dessas mesmas imagens

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que se correspondem em ação pela matéria, ou seja, no próprio corpo em questão. O

filósofo apresenta a memória como um fenômeno que reelabora o passado no presente,

onde ele potencializa a memória como imagem em movimento: "é do presente que parte o

apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação

presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida" (BERGSON, 2006, p. 179).

Segundo o autor, possuímos a realidade de uma percepção preenchida por

lembranças, as quais são conjuradas a partir de uma situação presente e que, de certa

forma, relacionam-se com o passado. Entretanto, para Bergson, não existe uma

separação entre a imagem (a memória) e o objeto (a situação que disparou tal memória),

por isso, a imagem é uma continuação concretizada através do movimento no tempo

presente. “Chamo de matéria o conjunto das imagens, e de percepção da matéria essas

mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu

corpo” (BERGSON, 1999: 17).

A memória engendra-se através da tentativa do criar, ou seja, da imagem em ação

e, busco trazer à tona como isso sucede-se em procedimento criativo ao reunir,

primeiramente, lembranças minhas da convivência com meu avô e os relatos

compartilhados comigo dos portadores da doença de Alzheimer.

Eu desenhei palavras, eu criei imagens, mas como isso se dá no corpo criativo?

Como as imagens que vi, as palavras que escrevi se tornarão uma realidade

encenada das coisas e da própria vida? Como tornar presente um fantasma que vive na

memória? Alzheimer como algo contra de ser encarnado, já que se afasta da lembrança

criada uma vez pelo próprio corpo? Lembrar para se esquecer.

Enquanto atriz: estar numa “outra alma vivente” dentro de mim

Aqui existe um velho que sou eu mesma enquanto o sou.

Esquizofrenia reluzente que busca uma presença ausente

Ação - paisagem:

Buscar um esquecimento em cena

Busca-se lançar chama a incompreensão das palavras e entender o que se

diz fora do contexto

Talvez entender não seja o verbo

Se perder, talvez.

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Ação: Esquecer.

Esquecer

Ação: Em pé, o Vô retira de sua orelha algo muito fino, como se puxasse um lençol

das bordas da orelha, de cima a baixo. Um lenço leve invisível.

Eu – O que é isso, Vô?

Vô – Um alargador de ouvido.

Via a orelha do Vô como um megafone pela atenção que se dava a esse órgão do

corpo. Tinha a velocidade e suavidade que na invenção de suas mãos formava esse novo

objeto, o alargador de ouvido. Parecia que o tal lenço se dissolvia na mão, virando água e

depois areia.

Um vai e vem

Memória aqui Memória lá

No balanço das horas

Um Velho aqui Menino lá

O que pensa esse homem ao longo do dia?

Silêncio

- O senhor está com fome?

O senhor está com sede?

Não quer tirar o sapato, tá calor.

Ele me responde com olhos de quem tenta enxergar o próprio nome.

Falo de um lugar distante chamado Tempo e da memória retorno às práticas que

aconteceram no início do ano de 2017 e também de meados de 2018. Algumas pessoas

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construíram algumas memórias comigo, entre elas Larissa Santana, Raquel Scotti, Diego

Leal e Juliano Jacopini.

3.1 O Santuário dos Velhos

Quando dizemos que nos lembramos de algo, estamos sim no plano da imagem da coisa ausente, mas trata-se, diferentemente da imaginação, de um ausente anterior. A temporalidade é uma operação importante que distingue a memória da imaginação. Segundo Bergson, para que identifiquemos algo como sendo o passado, é preciso que este algo contraste com o presente. Para Aristóteles, que já aproximava a imagem da imaginação, e justamente a diferença em relação ao presente pela marca temporal que vai distinguir as duas instâncias. Assim, narramos também porque algo nos tocou, porque fomos afetados, porque pessoas, encontros e acontecimentos produziram em nós a marca desse afeto. (LEITE, 2017, p. 9)

No primeiro semestre de 2017 participei da disciplina Pesquisa em Artes,

ministrada pelo Prof. Matteo Bonfitto. Dentro da dinâmica das aulas, foi pedido aos alunos

que expusessem seus trabalhos ou até mesmo ideias sobre o que viria a ser a prática

criativa. Os colegas eram de alguma maneira os primeiros “cobaias” das minhas ideias e

anseios sobre o tema memória e Alzheimer. A cada aula, um dos alunos se propunha a

mostrar quais eram os caminhos da prática, no entanto, dado ao pouco tempo que

tínhamos para mostrar uma práxis-poética, demonstrávamos dentro de apenas uma hora

uma complexa gama de vontades e/ou tentativas expressivas.

Numa das explanações, a então mestranda Larissa Santana26 demonstrou sua

prática e desde então houve uma aproximação não só enquanto artista, mas também

como amiga, já que ela tinha em seu processo uma afeição sobre figuras femininas,

sendo que uma delas era Nanã, uma deidade Iorubá que assume a figura de anciã. Tal

figura idosa me chamou a atenção enquanto projeção de corpo e propus a Larissa uma

troca: num dia, ela conduzia um treinamento, noutro, era minha vez de propor.

Aos poucos, a figura da anciã tomava corpo e se desdobrava em tempos diversos

e outras imagens iam surgindo. A própria imagem da cadeira surgiu num dos ensaios,

assim como um tipo de caminhar específico que se assemelhou durante muito tempo com

o caminhar de um gorila. Um corpo estava em formação, mas era necessária uma voz

corpo.

26 Mestra pela UNICAMP. Investiga Lua Cambará: uma assombração brasileira - um percurso entre literatura, cultura popular e as artes da cena, na linha de Poéticas e Linguagens da Cena.

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Em meados de setembro de 2017, pude delimitar algumas ações mais precisas,

em especial pela primeira apresentação do exercício em processo no UNICENA27. Para

tal ocasião era necessária uma cena de apenas 10 minutos. Naquele momento em

específico, a coleta de dados estava acontecendo: o acompanhamento nas consultas no

Ambulatório de Neuropsicologia e Demência do Hospital de Clínicas da UNICAMP.

Algumas figuras surgiram nos ensaios: os relatos de um homem que desconfia que

há um tigre embaixo de sua cama e que também comprou um avião com apenas o

dinheiro que estava em sua cadeira. O caso da mulher que se esqueceu de voltar ao

salão da igreja após ter ido ao banheiro e também de uma outra mulher que não admitia a

doença como diagnóstico. Imagens essas que foram aprofundadas cada vez mais durante

o processo dessa pesquisa.

Nascem, portanto, desse encontro com Larissa imagens preciosas que permeiam a

memória. Não havia desde o início uma tentativa de firmar os personagens enquanto

personagens. Todos se reuniam numa só figura, o Alzheimer enquanto estado poético.

3.2 As memórias com Raquel

Entre os dias 10 e 20 de abril de 2018, participei da disciplina condensada

"Desmontagem cênica como estratégia de reflexão e criação de artistas da cena, a qual

está inserida no eixo das Escritas da Cena. De cunho prático e criativo, a condutora em

questão, Raquel Scotti28 desenvolveu com os alunos da Pós-Graduação em Artes da

Cena da UNICAMP esboços criativos a partir de imagens e textos levados pelos pós-

graduandos na sede do grupo LUME29.

Artistas se mesclavam o tempo todo, cruzavam o espaço, caminhavam.

Roubávamos o caminhar um do outro, a pedido de Raquel, deixando-nos partir em vários

pedaços que os outros levavam: uma velocidade, um olhar, um quadril mais avantajado,

uma pisada pesada. Iniciava-se desta forma sutil o processo de observação de uma

“outra alma vivente” e um pré-processo do que seria mais tarde uma dança-mímesis.

Raquel nos pede logo no primeiro dia que levássemos imagens, mais de sete, além

de textos os quais estávamos trabalhando. Levei uma passagem do livro Memória e

27 Festival de Artes Cênicas da UNICAMP. 28 Atriz e pesquisadora do LUME, além de ser mestra e doutora pela UNICAMP. Investiga através das técnicas corpóreas e vocais a teatralização do ator. 29 Grupo de atores fundado por Luís Otávio Burnier. O coletivo possui sua sede na cidade de Campinas e mantém o vínculo de seus atores-pesquisadores com a UNICAMP.

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Sociedade, da socióloga Ecléa Bosi, o texto Cadeira de Balanço e o texto A

Desmemória/130, de Eduardo Galeano. Para as imagens, nos foi exigido que pelo menos

uma delas fosse uma representação animal. Atentei a procura no meu próprio material de

imagens: fotografias pessoais que eu mesma havia coletado em situações cotidianas de

meus avós, sem eles perceberem.

30 Como inscrito na página 60.

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Ações como costurar, sentir o coração

pulsar através de um estetoscópio...

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Francesco Albano – “One of these days” - 2013

...cadeiras que poderiam ser gente ou gente que poderia ser coisa...

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Francesco Albano – “When everyday was Thursday” - 2010

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...imagens de meu avô vendo o deserto no quintal de casa...

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Acervo pessoal

...ou dentro do deserto onírico de si mesmo.

Acervo pessoal

Sobre a imagem animal levei apenas uma: uma cadeira de balanço balançando-se

no bicho mar. Decidi desobedecer.

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Ineke Hans - “Seven chairs in seven days”- 1993-1995

O mar era meu bicho favorito.

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Algumas imagens eram do aniversário de Vô no ano de 2014 quando ele

completou setenta e um anos de vida.

Acervo pessoal

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Raquel, dentro desses dez dias pedia para que grudássemos as imagens na

parede e aos poucos nos contaminássemos com o que víamos. Caminhávamos,

caminhávamos. Olhávamos as imagens que nos fisgavam, ou as imagens que nos

escolhiam.

Acervo pessoal

Olhos tranquilos e de bondade. Corpo sereno e relaxado. Barriga protuberante. Vô

espia alguém que não aparece na foto. Pelo olhar baixo, deve ser um pequeno primo

meu. Minha imagem-memória do exercício era apenas caminhar e sorrir para as pessoas.

Essa era minha interação: olhar longe e ao vazio. Raquel nos dizia para olharmos a sala,

as paredes, o teto, as pessoas, tudo em ritmos que variavam entre o mais lento possível e

o mais rápido de todos. Ao nos pedir para olharmos para fora, mirar o jardim, as árvores,

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a escola que gritava crianças, meus olhos entenderam qual era o lugar mais longe de se

estar: estava lá o Velho, finalmente, neste corpomemória.

As memórias se confundiam naquele presente que hoje é passado. Uma música

tocava na minha cabeça enquanto tateava nesse jovem corpo um olhar e caminhar idoso.

Além da última estrela Além da insensatez total Vão as palavras mais belas Além do fim do jardim do caos

É uma verdade que eu vivi Quando tentei te acompanhar Segui a cor do teu sorriso

E me enlouqueci sem tempo nem lugar O véu da brisa passará De manhã sobre nós Vendo a cidade pela janela Sei que não somos sós

Mais uma vez só bastava pedir Um tudo de mim por nada de mais Deixar meus lábios felizes assim Falando essas loucuras

Minhas palavras têm pouco a dizer Porque teu silêncio é mais Quem dera ter o prazer De ser um verso em tua voz

Mais uma vez só bastava pedir Um tudo de mim por nada de mais Deixar meus lábios felizes assim Falando essas loucuras

Minhas palavras têm pouco a dizer Porque teu silêncio é mais Quem dera ter o prazer De ser um verso em tua voz

(Além da última estrela. Interpretada por Maria Bethânia)

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11/04/2018. Anotações sobre os exercícios.

“Olhe para dentro”, você disse, “olhe para fora. O que você projeta do seu passado

no futuro? Que imagem você tem de lá?” Não veio imagem de primeira, veio música, mas

depois vieram as estrelas e todo o significado que se aproxima de uma efemeridade de

vida. Dizem que é loucura, eu chamo de espaço/estado que é onde meu avô transita. Não

é demência reinventar seu passado.

Vi um fora de mim que me é antepassado. Vi escuridão, mas também esperança.

Vi um céu macabro, confuso, preeminências de morte.

Olhei para dentro de mim. Vi uma mulher dançando ao tentar ordenar as estrelas,

orquestrá-las, mas ela dançava também. Não sabia se tentava organizar o brilho do céu

ou se adentrava ao fluxo de indecisão. “Só se projeta o futuro quem ouvir o passado”,

você disse, ou invento algo que tenha entrado dessa forma na minha cabeça. “Olhe para

dentro e traga junto o futuro, mesmo que seja inominável. Dance o que está além do

muro.

Vi o meu avô esparramado nas estrelas.”

Raquel me pediu também, num dos dias da aula para que eu me esquecesse. Me

fazia perguntas que só ela sabia a resposta ou eram assuntos que havíamos comentado

no início dos exercícios. Eu tentava me lembrar, mas sem sucesso. Me esquecia. Não

sabia o nome do baixinho, como é que ele se chama? Baixinho esse era Jesser,

companheiro de cena e integrante do LUME. O nome daquele japonês, como é? Aquele

lá que veio fazer aquela peça com aquele grupo, o LUME. O japonês que dançava

destroços de maremoto31.

Memória: exercício de desconstrução. Nunca havia pensado em me esquecer ou

usar o meu próprio esquecimento como via criativa. É tão simples, mas foi necessário

alguém de fora para me dizer: se esqueça, ou melhor, tente se lembrar daquilo que falei

há alguns momentos atrás.

O que pude capturar e dançar nesses dias de trabalho sobre a mimese corpórea foi

perceber que a presença é inflamada pelos momentos de ausência, de quando eu e Vô

olhamos ao longe. Eu na tentativa de ser no hoje, enquanto ele se perde na própria

31 Tadashi Endo interpretou Fukushima Mon Amour no SESC Campinas no dia 31/05/2017. O artista em questão trabalhou com o grupo LUME em várias ocasiões. Neste caso Raquel referia-se ao processo de criação da peça Shi-Zen, 7 cuias (2004).

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experiência de contemplação de seu esquecimento. Enquanto busco evidenciar a

consciência da repetição dos hábitos, meu avô, naturalmente, abre espaço para

inventividades narrativas, com uma presença que vai e volta, como numa Cadeira de

Balanço. Um emaranhado de imagens, sensações que se costuram e se soltam

constantemente. O que me lembro é verdade? Caso contrário, eu reinvento aqui, no

corpo.

Minhas tentativas fisgadas por fotografias:

OO reconhecimento das imagens, fotografia de Hari Eva

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A tentativa da Cadeira, fotografia de Hari Eva

A Cadeira-coisa, fotografia de Hari Eva

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Tentativas de se olhar no deserto, fotografia de Hari Eva

3.3 Os depoimentos indizíveis

Narramos nossas vidas e ideias de nós como atos de fala que tem como função performar uma imagem de nós mesmos e daquilo que chamamos de nosso passado. Trata-se de uma imagem de algo ausente. Seja deste eu que encontra figuração a partir do que essa performance produz, seja do passado no formato de lembranças. (LEITE, 2017, p. 9)

Durante os meses de setembro e dezembro tive a oportunidade de trabalhar com

Juliano Jacopini32, colega de curso de pós-graduação e amigo. Jacopini tem olhos muito

cuidadosos primeiramente em relação à bagagem que o artista traz enquanto vida que se

transforma em poiesis para depois trabalhar juntamente com a atriz em questão a

dramaturgia e o processo artístico.

Seu trabalho e cuidado em relação a mim estavam em construir conjuntamente

imagens que propusessem situações, espécies de dramaturgias da imagem, de como o

corpo por si mesmo é capaz de dizer ou expressar via sensação uma composição, um

dizer que nasce aos poucos via matéria física. Um exemplo claro sobre tal exercício era

quando Juliano me pedia para estar numa situação imagética em que meu corpo

32 Doutor em Artes da Cena pela UNICAMP. Pedagogo e diretor de teatro, é coordenador artístico da Casa Pipa, sediada em Matão – SP.

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estivesse atravessando argila ao ponto de se transformar nesse material. Como era o

meu caminhar? Qual tipo de respiração isso gerava? Qual era o novo tempo que meu

ritmo corporal sustentava? A argila, a pedra, o ar também foram elementos que de certa

maneira impulsionavam as qualidades de um corpo a agir de uma maneira extracotidiana.

As ações de olhar, caminhar, além de Juliano propor situações que puderam ressaltar a

percepção não só do corpo, mas de como manter esse tipo de alerta físico durante o

processo de composição. O que essas imagens da terra, do ar e da pedra poderiam me

trazer? Seria demais pedir aos elementos uma tentativa de reprodução de sua matéria? O

corpo responde.

O processo com Jacopini foi uma amálgama, um retalho de imagens que eu

propunha e de ideias que eu desejava concretizar, como uma possível cena de

aniversário. Mas pela observação de Juliano, pude ir além de algo que já estava

habituada e talvez aí tenha chacoalhado cada vez mais algumas placas tectônicas que

não se mexiam há um bom tempo: eu mesma. Como? Juliano, como já dito, percebe a

pessoa antes de perceber o ator. Sabendo disso, ele propôs um exercício em que eu

pudesse concatenar as imagens – as mesmas já utilizadas no processo com Raquel

Scotti e “colar” outras imagens, mais pessoais para mim, o uso das cartas do Tarô de

Marselha. O interessante dessa proposta foi resumir a uma imagem toda simbologia das

lâminas dos Arcanos Maiores e de alguma maneira ressaltar semelhanças, seja pelo

significado das cartas ou pelas ações que as fotografias expunham.

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Arcano XIX – O Sol

Percepções pessoais: amor, um encontro, fraternidade, alegria, abundância, generosidade.

Ou a canção “Outra Banda da Terra”, do Caetano Veloso: Amar, dar tudo, não ter medo, tocar/

Cantar no mundo, pôr o dedo no lá/ Lugar/ Ligar gente, lançar sentido (...) Gozar a lida,

indefinidamente amar.

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Arcano XVII – A Estrela

Percepções pessoais:

Uma luz que só brilha na escuridão da noite.

Uma falsa esperança de que tudo vai bem. A

estrela (luz) ou caixa de Pandoramais distante.

Planetas mortos. O escoar dos sonhos.

Arcano X

A Roda da Fortuna

Percepções pessoais:

Na foto, Vó costura algo. Agulha. A sua frente

está uma máquina de costura. O círculo. Roda

viva. Retalhos. Nova tentativa de se passar pelo

mesmo lugar e costurá-lo, arrumá-lo. Fazer

caber numa calça.

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Percepções pessoais:

Sabedoria, dogmatismo,

experiência, saberes, velhice,

quase estar lá, nº5. Aos cinco anos

uma memória: falei pela primeira vez

a palavra “ Capetinha”. Não sabia o

significado, mas disse isso em voz alta

enquanto rezava junto com um travesseiro

que eu costumava dormir

Arcano VIII – A Justiça

O balanço, o vai e vem das ondas. O carma do

equilíbrio. A natureza selvagem, todo caos possui

seu equilíbrio. O selvagem também faz parte de se

tornar ímpar, justo. Saber ouvir o que a própria

natureza te diz. O relógio, o tempo, as horas

justas. Tudo tem seu tempo. Tic-tac. O tempo não

é imóvel, parece ser, mas não é. Muito menos a

figura que segura a espada. Ela está pronta. Por

dentro, caos, por fora, estabilidade.

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Foto: Juliano Jacopini

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Não há e, fotografias, mas aqui era o Arcano XIII, o Sem Nome.

Percepções pessoais: ironia do destino

Foto: Juliano Jacopini

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O ato de colar uma imagem na outra, serviu como base para uma tentativa de

descrição, o que desembocou numa espécie de narrativa, de obter através das cartas

desencadeamentos narrativos. Um exemplo desse experimento é como quando vamos ao

museu e tentamos traduzir em palavras nossas percepções diante de um quadro ou

escultura. A resposta, no entanto, era uma outra imagem, mas que “falava” de um lugar

mais íntimo da memória, as quais fisgavam outras cada vez mais que se falava. Não

havia uma proposta de “vou me lembrar sobre”. Pelo contrário, as lembranças vinham

instintivamente. Podia-se cantar ou descrever exatamente o que a carta continha ou até

mesmo relembrar e narrar a situação em que a fotografia foi tirada. Esse exercício serviu

como um bom material para concatenar, criar e inventar memórias.

Eu tentava construir mentalmente pequenas histórias que pudessem significar a

minha escolha – qual carta uso? – e relacionar tal carta com uma respectiva fotografia.

Dentre todas as imagens, a que mais permaneceu foi a Torre, que foi desperta, mas

somente em dezembro, quando Jacopini, ao retomar as práticas me fez um pedido:

Preciso ver você em cena. Vejo seu avô, sua avó, as pessoas com Alzheimer, mas e

você? Não é você quem nos conta uma história?

Ao falar de meu avô eu falava de mim mesma e esse foi um dos motivos pelos

quais o medo e o distanciamento pairavam a pesquisa... Ao lembrar, eu me relembrava

como exercício do sem querer lembrar-se de coisas já esquecidas, quase o oposto de

meu avô. Quanto mais eu ensaiava, mais fantasmas assumiam o corpo, a sala e o mal-

estar em cena.

Os dispositivos de memória utilizados por Juliano Jacopini foi o desenvolvimento do

que ele denomina “depoimentos”. Para falar do seu avô você precisa falar sobre si

mesma.

Como?

Eu tinha um medo infinito de ter somente a base de um depoimento pessoal que

não ultrapassasse as linhas do meu corpo, ficasse ensimesmado.

“Não vejo você. Vejo seu avô, os velhos, talvez eu enxergue sua avó, mas e você? Por que

você não está presente?”

Por estou me escondendo de mim e do meu avô.

Como?

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Na minha base eu sou um ser impenetrável.

Desses diálogos, Juliano Jacopini desejou despertar a Torre – Eu, sendo esse o

mote principal para criar a dramaturgia cênica: falar do meu avô a partir de mim mesma.

Por mais que isso estivesse explícito em palavras, houve dificuldade em realizar na

prática um distanciamento de mim mesma. Talvez seja por isso que eu também tenha

recorrido a artistas que mexessem literalmente com a base, abrissem os olhos de

memórias que eles captavam de uma maneira distinta de mim. Para a atriz e

pesquisadora Janaína Leite (2017, p.25), a qual se debruçou sobre diários para a

composição do espetáculo Conversas com meu pai, é possível que os arquivos consigam

ganhar novos contextos a partir de novas possibilidades associativas, caracterizando e

reforçando a inventividade das narrativas autobiográficas.

Vamos voltar as suas origens, Isabella. Ver a sua base. Porque você odeia tanto sua

cidade? Porque essa pesquisa? Por que é difícil falar sobre si?

E, como pensar no material ‘memória’ para o trabalho das artes da cena, tomando o conceito da pulsão de ficção como basilar para a criação a partir de si, que geraria então, ficções na ficção – metaficções para a composição cênica: personagens que nascem de si, dramaturgias que nascem de si? Com a tônica da performance no campo das artes da cena, o artista vem se engajando a trabalhar a partir de si, seja com eventos bons ou ruins, tendo em vista que os eventos traumáticos são muito mais trabalhados, e não é de espantar se levarmos em conta toda a reflexão anterior: os silêncios que cada ser humano carrega podem degringolar a construção de sua identidade, e a arte é um meio pelo qual a expressão não tem limite (ao menos não deveria ter!). (JACOPINI, 2018, p. 190)

E eu já sabia do que havia dentro, no lar, na intimidade, atrás da torre, por trás das

muralhas de mim mesma, corpo, havia questões que estavam submetidas ao total

esquecimento, mas que somente provocadas vinham à tona. Quais eram os bichos que

me açoitavam a noite? A amargura, a educação, a falta de afeto, a agressividade... eu

precisava lidar com o mais seco dentro das águas escassas da memória. Quem sou de

fato hoje tendo em vista toda a minha trajetória? Era isso que Juliano perguntava sem

dizer essas palavras. “Um corpo tem muitos corpos dentro de si” (ENDO apud COLLA,

2013, p. 135), eu precisava de maneira fatal ressuscitar uma Isabella que buscava

constantemente morrer. A memória...a memória, porque me lembro tanto mais da morte

do que qualquer outra coisa? O cemitério de pássaros, a mãe de uma criança dentro de

uma caixa sem respirar... o que captava a minha atenção?

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Acho que é o momento de você se rever. Eu só trabalho com memória. Escreva um texto

falando quatro coisas:

1. Porque você está fazendo essa pesquisa. Fale de uma maneira pessoal, sem a intervenção

acadêmica. O que te move a falar sobre o seu avô?;

2. Me escreva sobre a ausência do pai;

3. Como era o seu avô, me fale sobre a ausência dele;

4. Como é seu avô hoje33

Amanhã você me mostra e começamos o trabalho.

Dos relatos em formato depoimento surgiram algumas imagens que basearam a

construção de uma dramaturgia cênica do processo: a torre, a ausência do pai e avô

antes e depois do Alzheimer. De fato, esse exercício - depoimento pode alavancar não só

a estrutura cênica e corporal, mas também refletir sobre o meu fazer artístico. Até então,

algumas máscaras compunham o processo de tentar dramatizar o que foi visto, depois, as

personagens ou figuras cênicas eram apenas vividas através de minha memória, ou seja,

era necessário um pouco de mim, me abrir um pouco, ser uma outra alma vivente que

expia pela janela. Neste caso, algumas foram quebradas para então ressurgir enquanto

atriz.

O que nos parece é que nessas obras e nas demais tentativas de representação autobiográficas, as figurações e escolhas estéticas não são simplesmente uma forma de expressar o vivido, mas, o próprio espaço de sua elaboração. Daí seu caráter ‘terapêutico’, se entendermos o terapêutico como terreno de uma ação sobre si mesmo, do passado e do presente, e dar-lhes mobilidade, movimento. Por outro lado, essa associação com o terapêutico, que se justifica na própria ideia de Gestalt compreendida no ato de dar forma ao vivido, não parece de modo algum dar conta do salto representacional que podemos assinalar, sobretudo a partir dos anos 1970, e que marca a arte contemporânea. (LEITE, 2017, p.81).

Pude perceber que minha biografia devia estar incluída, inclusive de perceber meu

percurso dentro deste trabalho. As narrativas e as imagens dançadas no corpo

evidentemente abriam espaços para imaginar ou transgredir o que já havia sido vivido.

Mas como cheguei até aqui? Desde ensaios que reuniam toda uma trajetória de imagens,

teorias sobre memória, os discursos dos portadores de Alzheimer e a peça de Samuel

Beckett até o momento de verticalização prática de todo esse material?

33 Os textos podem ser lidos em “Anexos IV” na página 149.

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Se pensarmos nas problemáticas que a memória, da forma que a estamos tomando neste trabalho levanta, não há por que pensar que a ordem cronológica seja, necessariamente, a que melhor corresponde à maneira como nós, subjetiva e psicologicamente, vivenciamos as experiências e nos relacionamos com elas. Esse problema nos leva diretamente ao campo da forma, campo este muitas vezes renegado dentro de um olhar mais clássico sobre o autobiográfico – já que o foco numa narrativa autobiográfica recairia sobre a singularidade de seu conteúdo, somado simplesmente ao estilo que o autor emprega para falar de si e de sua própria história. [...] Em relação à questão temporal, Lejeune provoca os autores: ‘quem os obriga a utilizar a forma dada da narrativa linear? Por que não inventar, justamente, a forma que convém a sua experiência? ’ (Ibidem p. 17)

A memória ressurge então fragmentada e ressoa seus rastros em cena, na

tentativa de tomar a vida como algo possível de ser transformável, mesmo que através da

arte e suas dramaturgias corporificadas.

Por mais caótico que pareça ser, há um efeito lógico que desencadeia a criação. Algo acontece ou é estimulado (referencial externo) que para fazer sentido carece que eu acesse (consciente ou inconscientemente) minha bagagem sócio-histórica, minha memória, meus eventos vividos (referencial interno) aí se dá a interpretação ou atribuição de sentido que se atualiza em um ponto ainda não existente, o presente, a partir da expressão possível. (JACOPINI, 2018, p.189)

As imagens do passado e do presente que escrevo assumem uma espécie de

personalidade transitória enquanto artista da cena. A multiplicidade que as histórias que vi

ou ouvi podem escoar pelas veias, olhando-as de uma visão atual que podem dar outros

significados e outras inventividades do que já se foi ou o que já fui. Outras

contextualizações estão presentes, assim como houve contextos que hoje já não são

mais cabíveis ou intoleráveis. Rememoro, portanto, para ser atual no trânsito enquanto

caminho nos Eus de outras épocas: passado, presente e futuro. A não linearidade que as

histórias aparecem no tempo de improvisações possuem elas seu próprio ritmo e

perspectivas: são elas que escolhem em qual momento aparecer e também escolhem se

abster de apresentações, querem ser apagadas, talvez.

3.4 A criação de casa

Sala

As tais fotografias espalhadas na parede

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Vamos arrastar o sofá

E criar

No ano de 2018 retomei a sorte antiga de conviver com amigos artistas sob o

mesmo teto: o palhaço e iluminador Felipe Braccialli, a performer feminista Ana Flávia

Felice e o calouro ator de longa data, Diego Leal34. Este último acompanhou-me no

processo de criação de ações e também da dramaturgia cênica.

Diego passeou comigo pela própria sala de nossa casa, um espaço amplo não só

de conversas, mas de criação propriamente dita. Nesse lugar, nossa sala de estar quase

não utilizada, as fotografias de meu avô, assim como as imagens das cadeiras-pessoas

transformaram um lugar que parecia ser familiar, mas nem tanto. O espaço era outro: a

sala de ensaio era nossa porta de entrada.

Deste processo, Diego foi o responsável pela parte de treinamento, no qual

retomamos algumas partes desenvolvidas já na vivência com Raquel Scotti, como o

estado e as qualidades das ações. Desses encontros, as figuras dos Alzheimers, ou seja,

dos pacientes que eu pude conhecer começaram a surgir, ao perceberem que a casa não

era assim tão familiar. Dos onze pacientes acompanhados ao longo do processo, três

tiveram destaque nas improvisações a ponto de seguirem adiante para uma partiturização

das ações e de suas presenças no espaço.

Os princípios de uma paciente que não sabe onde está (Imagem nº1: Perdida na

Igreja), que ao estranhar o lugar onde está, começa a investigar a sua própria sala de

estar em busca do banheiro. Também estão inseridos nesse processo mais dois

pacientes: a Imagem nº3: Você viu minha carteira? E Imagem nº9: o eletricista que se

esqueceu como se faz para trocar uma lâmpada todos descritos no capítulo “Narrativas

improváveis: a escuta de outros Alzheimers”.

Pela repetição, parte por parte de cada nova figura, ia se configurando uma

maneira de falar e também tipos de se narrar a história. Ora eram os próprios pacientes

que contavam suas histórias, como no caso da Imagem nº 1: a mulher perdida na Igreja.

Aqui, inicialmente, uma mulher se balançava na cadeira enquanto sua filha (era a própria

filha que contava a história no Ambulatório) nos contava os indícios da doença. No

entanto, por eu estar sozinha em cena, eu me fragmentava em duas: narrava a história

como filha, mas realizava as ações da mãe. Do olhar perdido, de não saber onde se está,

34 Mestrando em Artes da Cena pela UNICAMP. Pesquisador em Poéticas e Linguagens da Cena, investiga a criação cênica a partir de narrativas literárias e visuais.

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a mulher procurava algo, até surgir a Imagem nº 3..., que, ansioso, buscava entre o sofá,

a plateia imaginária, onde estaria sua carteira. Essa figura, além de ter um outro tipo de

caminhada e ritmo era o que mais buscava comunicar o porquê dele estar procurando a

carteira, num caso hilário de percepção de cognição afásica devida a doença de

Alzheimer. Na busca incessante pela carteira, o paciente ousa procurá-la, mas se

esquece... subindo numa cadeira para enfim trocar uma lâmpada... mas ele também se

esquece como se faz.

As três imagens, assim como os modos de fragmentação das mesmas estão

presentes na elaboração prática, no entanto, de modo mais aéreo. Ao invés de

permanecer numa codificação de três pacientes, outras improvisações foram tomando

conta e, por fim, os pacientes aparecem como fantasmas numa única cena, com o mesmo

figurino, entretanto, com a cadência do falar de meu avô. Logo, no ato de composição, as

três imagens sugerem um único personagem: o próprio Alzheimer. Nos momentos de

improvisação, não houve uma diretriz para se criar especificamente um personagem,

também surgiram como fantasmas que ganham corpo, voz, ritmo, olhar... e era uma

tentativa própria, espécie de exercício, de me recordar como eram essas figuras reais. No

entanto, aos poucos eu dava as informações coletadas na época de minhas visitas ao

Ambulatório outro tipo de olhar, uma invenção própria, tendo em vista que raramente

eram os pacientes que falavam e que também eu não conseguia captar suas vozes e até

mesmo seus olhares, pois eu como visitante, os via sempre de costas.

Entendo o imaginário como ingrediente fundamental na figuração de um evento que se ofereceu para o indivíduo, a partir da captação de um todo feito de aspectos que não eram apenas externos – o real – mas que incidiram em um cerne de percepções e de emoções do indivíduo atingido. O imaginário se expressa mediante um conjunto de recursos sendo o lúdico o mais forte, isto é, o jogo cênico. O imaginário, na minha acepção, tem caráter e força criativos. Corresponde a uma dimensão singular de todo o indivíduo, sua maneira própria de produzir conhecimento através do vivido, ou seja, da experiência. (SPERBER, 2009, p. 87)

Deste modo, ao me colocar em cena enquanto enunciadora de vozes e de uma

tentativa de trazer à tona histórias recontadas de uma maneira fabulosa, não havia mais

divisões entre o que era o real passado a partir dos depoimentos ou o que meu corpo

confabulava nas improvisações. A memória dançava num movimento novo sob a dança

de um passado fantasioso corroído pelo Alzheimer. Não havia, portanto, um território que

demarcasse as áreas real e ficcional, era o meu corpo o espaço limiar de criação e

inventividade do passado que integrou depoimentos e conteúdos no mundo de outra

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forma, como colagem outra do que é e foi real. Um real fantasioso que lançava nova

realidade, porém cênica. O palco serve agora como uma grande folha onde fragmentos

de memórias compõem uma colagem. Onde é o início e o fim, adentro desses tempos

passados, sobrepostos e repetidos ou até mesmo deslocados dentro de uma realidade

cênica?

Na metáfora de dar um passo atrás, ou voltar o ponteiro do relógio para lembrar, existe um vão e é nele que habita a invenção de si. Ao repescar o acontecimento, eu o invento. O acontecimento não está todo presente. É nítido mais a nível de sensações, perceptos, emoções, do que propriamente imagem, mesmo porque uma imagem nítida do passado cristalizaria a representação, e esta ganha força para ser revisitada pela palavra e ação exteriorizados, que revela o acontecimento a priori dramatizado no pensamento, na ideia. A imagem deixa de ser lembrança e se tridimensionaliza na atuação, no atual, revelando ficções para o trabalho cênico/dramático e construindo a identidade em espécie de mímesis de si: não sou minha lembrança, mas estou nela, revisitando-a pelo vão. (JACOPINI, 2018, p. 193-194)

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4 AS MEMÓRIAS FINAIS

Este trabalho é espécie de testemunho vivo e latente de histórias que se

verticalizam enquanto estrutura escrita e prática encenada, no entanto, as narrativas

transbordadas cenicamente não se tratam de mera ficção, são registros mais que reais do

esquecimento.

[...] a referência ao presente coincide com a experiência cotidiana que temos das coisas que começam, continuam e deixam de aparecer. Começar constitui uma experiência irrecusável. Sem ela, não compreenderíamos o que significa continuar, durar, permanecer, cessar. E sempre um algo começa e cessa. Aliás, o presente não deve ser identificado à presença – em nenhum sentido metafísico que seja. A fenomenologia da percepção não tem mesmo nenhum direito exclusivo sobre a descrição do presente. O presente é também o do gozar e do sofrer, e, de maneira mais significativa para uma investigação sobre o conhecimento histórico, presente de iniciativa. (RICOEUR, 2007, p. 51)

Por mais contraditório que pareça, início aqui uma tentativa de finalização a essa

pesquisa após uma citação que poderia estar nas primeiras páginas desse trabalho. Mas

a memória reside sempre num aqui e agora que sempre pode também já estar no

passado. Olhar para trás enquanto ainda se está em presente (re)formulação numa cena

que só vive quando se pratica é uma tarefa que exige tempo, mais tempo do que a

imaginação conseguiria prover. As afetações desta investigação vão além de um discurso

pragmático e de trajeto racional. Pude identificar camadas profundas não só de questões

sociais ao observar pacientes numa instituição pública, como é o caso do Hospital da

UNICAMP e estar presente em consultas quando os próprios consultados eram

personagens ausentes de suas próprias histórias. Tentar trazer ao corpo olhares que

também não estavam cientes, ou se estavam era quase um limiar imperceptível do

momento presente foi e tem sido uma tentativa de criar outra matéria que vem a partir

apenas da memória. Como transformar em lembrança passagens dos esquecidos? Como

imaginar caminhos que nunca foram sequer percorridos por eles mesmos? É isso que

chamo de invenção. Meu trabalho foi e é este de tentar encarnar uma memória

imaginada, fabulosa e, portanto, torná-la real no fenômeno teatral. Mas para se encarar

enquanto artista, tudo tem que ser real, mesmo que por instantes ou enquanto se

permanece lúdico e vivo em cena. Para ser teatro, deve ser real. “No campo da ação

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(promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto no campo da criação

artística. É um ato que tem consequências reais. ” (LEJEUNE apud LEITE, 2017, p. 10).

Entre outras camadas de tentar trazer à verticalização desta pesquisa, foi

necessário que eu ultrapassasse algumas linhas imaginárias e tabus do esquecimento

referentes a mim e ao meu caminho, desde a infância até o momento que escrevo.

Abordar diferentes Vô que esteve e que está, porém, num outro estado de presença... a

presença do ausente, como se fosse possível (e é possível enquanto a Arte é possível) de

materializar seus momentos e angústias como via aberta do corpoimaginação. Estar

aberta em lugar de dor é difícil, íntimo e que foi necessário vasculhar. A imagem que

tenho é de um baú cheio de materiais que ainda anseiam para serem descobertos, mas a

memória que tenho é a que exponho de maneira espetacular. Acredito enquanto artista

que a Arte é capaz de transformar e de tornar possíveis memórias fantásticas. Meu

trabalho ainda é uma esperança e assim acredito, mesmo numa dolorosa saga que é ter o

esquecimento como algo tão próximo e familiar. Na arte Vô se cura, a doença é risível e

as histórias de todos os pacientes, seus gestos e suas famílias ganham espaço no meu

corpo, dançam cada um a sua maneira, novamente reformulado, pois meu corpo se

lembra e os transforma de modo fragmentado, reduzido ou ampliado, assim como a

memória impulsiona as imagens, essas que aparecem da maneira que desejam. Fui eu

quando estava recontando casos de uma goiabeira, ou o caso de um senhor que

imaginou ter ido à Ouro Fino comprar um avião, ou até mesmo uma senhora, aquela

perdida num espaço X que sua filha lembrou “aqui é a Igreja, mãe”. Fui eu também essas

pessoas que narraram um cotidiano sombrio de uma doença que a cada dia se agrava,

definhando até mesmo as relações familiares, recombinando os lugares de mãe ou

esposa ou filha ou neta. Fui eu e nós guardados pelo Tempo, este que domina a todos.

Em outras palavras, trata-se do relato retrospectivo de como alguém se torna o que se é, dentro de uma perspectiva finalista, ou seja, de que há um caminho a ser percorrido para se alcançar um lugar de sabedoria e harmonia dentro dos valores compartilhados pela sociedade. Existiria, portanto, segundo esse modelo, uma forma adequada para a realização de si, e essas narrativas revelariam as etapas dessa evolução, sendo o relato da trajetória sempre orientado pelo fim a que se chegou. (Ibidem, p. 77)

Esse tal de Tempo se mede? Ou a Memória se arquiva eternamente? O corpo

tenta ser possível enquanto resposta e alquimia do que foi experienciado. Spinoza (apud

RICOEUR, 2007, p. 25) aproxima-se de minha tentativa de traduzir em palavras o que sou

e tenho sido: “Se o corpo humano tiver sido afetado uma vez por dois ou mais corpos

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simultaneamente, assim que a Alma imaginar mais tarde um dos dois, ele o fará lembrar-

se também dos outros”.

Sou também recipiente do Tempo, de lugares, de gentes esquecidas e traduzo aqui

meu entendimento embaralhado de tantas vozes e olhares outros evocados através do

teatro - imagens poéticas que nasceram e poderiam se tornar fotografias. A arte mais uma

vez possibilita transformar esquecimento em paisagem cênica. Da ideia em corpo ou seu

inverso, forjo ou esculpo as imagens que o Tempo chamou de Memória. Ousei talvez de

modo inconsciente ter servido o limiar dos silêncios e de ser um rabisco de corpo que não

é meu, mas que refaço. Meu instante foi ele, ela, eles, outros, outras almas viventes. “A

presença de outros, que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos, garantem-nos a

realidade do mundo e de nós mesmos. ” (ARENDT apud LEITE, 2017, p. 8)

As narrativas em experiência no fazer artístico é capaz de conquistar um lugar de

superação de mim mesma ao lidar com intimidades pessoais entre questões externas que

diretamente afligiram este trabalho que seguem enquanto experiência, no entanto, como

material artístico. A peça é, portanto, uma espécie de decantação. As memórias

produzidas num discurso de esquecimento enquanto poética não se encerra como um

processo arquivado, pelo contrário, tais memórias fugidias dançam, se transformam,

depuram ao longo do tempo, resistem. E estão compartilhadas entre nós.

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Domingo.

A tv da sala está ligada.

Vô está sentado no sofá olhando o que porta aberta da sala lhe

mostra: o quintal, os caminhões dos dois filhos, o dia. Vô olha

penetrando o espaço numa calmaria profunda, como se fosse um

boi. Estou sentada no outro sofá posicionado a sua frente. Olho

também o que ele enxerga lá fora, mas meus olhos posam sobre o

Velho.

Penso.

Me atrevo:

-Vô, em que o senhor está pensando?

Vô vira a cabeça vagarosamente para mim:

- No mundo.

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Atriz: Billie Whitelaw. Produções: State University of New York, Program in the Arts– EUA

1981. 16 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=66iZF6SnnDU&t=2s>

_________. Direção: Richard Eyre; atriz: Penelope Wilton. Produções Michael Colgan;

Alan Moloney para a RTÉ, Chanel 4 e Irish Film Bord. Irlanda – 2001. 14 min. Disponível

em: <https://www.youtube.com/watch?v=WoJJ6GuuitE&t=20s>

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7 ANEXOS

Anexo I

Cadeira de Balanço/ Canção de Ninar

(Texto de Samuel Beckett. Tradução de Luis Roberto Benati e Rubens Rusche a partir do

original “Berceuse”)

M – Mulher numa cadeira de balanço

V – A voz da mulher no gravador.

(Aumentar gradativamente a iluminação na mulher, que se encontra de frente, no

proscênio, um pouco desconcentrada. Cadeira de balanço imóvel)

(Longa pausa.)

M – Mais uma vez.

(Pausa. Voz e balanço conjugados.)

V - até o dia enfim

ao fim de longa jornada

no qual ela diga

diga a si mesma

que tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

a não mais errar

de um lado para outro

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

de outro como ela

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de outro ser como ela

um pouco como ela

iludido como ela

de um lado para outro

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

até o dia enfim

ao fim de longa jornada

no qual ela diga

que o tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

a não mais errar

de um lado para outro

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

de outra alma vivente

de outra solitária alma vivente

iludida como ela

de um lado para outro

todo olhos como ela

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

de outro como ela

um pouco como ela

iludido como ela

de um lado para outro

até o dia enfim

ao fim de longa jornada

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no qual ela se diga

que o tempo chegou

de se decidir

a não mais errar

de um lado para outro

tempo de se decidir

é tempo de se decidir

(Conjugar a voz que ecoa “é tempo de se decidir” com a interrupção do

balanço e a ligeira redução da luz.)

(Longa pausa.)

M – Mais uma vez.

(Pausa. Voz e balanço conjugados.)

V - de sorte que enfim

ao fim de longa jornada

ela voltou para casa

retornou enfim

dizendo a si mesma

que o tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

a não mais errar

para cima e para baixo

tempo de retomar seu lugar

junto à janela

tranquila à janela

à vista de outras janelas

de sorte que enfim

ao fim de longa jornada

ela retomou seu lugar enfim

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junto à janela

ergueu a persiana e sentou-se

tranquila à janela

janela única

à vista de outras janelas

de outras janelas únicas

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

de um outro à janela

de outro como ela

um pouco como ela

de outra alma vivente

de outra solitária alma vivente

recolhida como ela

recolhida como ela enfim

ao fim de longa jornada

a dizer a si mesma

que o tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

a não mais errar

de um lado para outro

tempo de retomar seu lugar

junto à janela

tranquila à janela

janela única

à vista de outras janelas

de outras janelas únicas

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

à espera de outro

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de outro como ela

um pouco como ela

de outra alma vivente

de outra solitária alma vivente

(Conjugar a voz que ecoa “alma vivente” com a interrupção do balanço e a

ligeira redução de luz.”

(Longa pausa.)

M – Mais uma vez.

(Pausa. Voz e balanço conjugados.)

V - até o dia enfim

ao fim de longa jornada

sentada à janela

tranquila à janela

janela única

à vista de outras janelas

de outras janelas únicas

com todas as persianas baixadas

nem uma só erguida

até o dia enfim

ao fim de longa jornada

sentada à janela

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo[à espera de outra

de outra persiana erguida

de outra solitária persiana erguida

nenhuma outra

nem um único rosto

atrás da vidraça

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aqueles olhos

famintos como os seus

de ver

de ser vistos

não

uma persiana erguida

como a sua

um pouco como a sua

de um solitário

um outro ser ali

ali ou em qualquer parte

atrás da vidraça

uma outra alma vivente

uma outra solitária alma vivente

até o dia enfim

ao fim de longa jornada

no qual ela diga

diga a si mesma

que o tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

sentada à janela

janela única

à vista de outras janelas

de outras janelas únicas

todo olhos

em toda parte

para cima e para baixo

tempo de se decidir

é tempo de se decidir

(Conjugar a voz que ecoa “é tempo de se decidir” com a interrupção do

balanço e a ligeira redução da luz.)

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(Longa pausa.)

M – Mais uma vez.

(Pausa. Voz e balanço conjugados.)

V - de sorte que enfim

ao fim de longa jornada

ela desceu

desceu enfim

a escada íngreme

abaixou a persiana e desceu

para o térreo

foi sentar-se na velha cadeira de balanço

a cadeira de sua mãe

a cadeira em que sua mãe sentou-se

a vida toda

sempre de negro vestida

com a mais bela cor negra

a balançar-se

a balançar-se

até o dia enfim

impaciente como se diz

um pouco impaciente

inofensiva porém

de uma impaciência inofensiva

morta um dia

não

uma noite

morta uma noite

ao fim de longa jornada

em sua cadeira de balanço

em seu mais belo vestido negro

a cabeça tombada

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na cadeira a balançar-se

sempre a balançá-la

de sorte que enfim

ao fim de uma longa jornada

ela desceu

desceu enfim

a escada íngreme

abaixou a persiana e desceu

para o térreo

foi sentar-se na velha cadeira de balanço

de braços enfim

e balançou-se

balançou-se

os olhos fechados

a fechar-se

por muito tempo

todo olhos

olhos famintos

em toda parte

para cima e para baixo

de um lado para outro

à janela

coisa de ser vista

para ser vista

até o dia enfim

ao fim de longa jornada

na qual ela se diga

que o tempo chegou

de se decidir

tempo de se decidir

abaixe a persiana e decida-se

é tempo de descer

a escada íngreme

para o térreo

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ser uma outra

uma outra alma vivente

somente ela

de sorte que enfim

ao fim de longa jornada

ela desceu

a escada íngreme

abaixou as persianas e desceu

para o térreo

foi sentar-se na velha cadeira de balanço

e balançou-se

balançou-se

dizendo a si mesma

não

isto nunca mais

na cadeira de balanço

de braços enfim

dizendo-lhe

balance-a daqui

zombemos da vida

balance-a daqui

balance-a daqui

(Conjugar a voz que ecoa “balance-a daqui com a interrupção de balanço e

a extinção total da luz.)

Notas sobre a Cadeira de Balanço

Iluminação:

Fraca, a iluminar apenas a cadeira.

Da-se o mesmo com o spot no rosto. Constante. Independente dos sucessivos

enfraquecimentos. De alcance suficientemente amplo para abranger os limites do suave

balanço, tanto no caso do rosto em repouso quanto no jogo de vaivém.

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Início – aumentar aos poucos a iluminação (spot único) sobre o rosto. Longa passa.

A seguir, elevar a iluminação da cadeira.

Final – extinguir, primeiro, a iluminação da cadeira. Longa pausa com o rosto

iluminado. A cabeça tomba, imobiliza-se. O spot se extingue aos poucos.

Mulher – precocemente envelhecida. Cabelos grisalhos em desalinho. Olhos

grandes. Inexpressivo rosto branco. Mãos brancas segurando com vigor a extremidade

dos braços da cadeira.

Olhos – ora fechados, ora bem abertos sem jamais pestanejar. Na primeira parte,

abrem-se e se fecham igual número de vezes; na segunda e terceira partes, aparecem

cada vez mais cerrados; e, em meio ao final, completamente cerrados.

Guarda-roupa – vestido de passeio de cor negra carregada. De mangas compridas.

Rendas. Lantejoulas que o balanço da cadeira faz cintilar. Chapéu destoante, colocado

fora de prumo, guarnecido de rendas (de crochê), de modo a suavizar a entrada de luz

ocasionada pelo balanço.

Posição – inalterada até a lenta queda da cabeça, iluminada apenas pelo spot.

Balanço – Suave. Lento. Automaticamente regulado sem que haja impulso de M.

Cadeira de Balanço – de madeira clara e polida o bastante para refletir a luz com o

movimento. Apoio para os pés. Espaldar reto. Braços arredondados, cujas torções

parecem ter sido ocasionadas pela força da compressão.

Voz – baixa, abafada, monótona.

No instante da réplica, sublinhada, a voz de M, cada vez mais baixa, junta-se à de

V.

O “mais uma vez” de M será repetido cada vez mais um pouco mais baixo. No final

da quarta parte, a partir de “isto nunca mais”, tornar V cada vez mais baixa.

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Anexo II

Registros

Fotografias tiradas por Luciana Mizutani na sede do Lume Teatro durante a

disciplina “Desmontagem cênica como estratégia de reflexão e criação de artistas da

cena.”

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ANEXO III

IMAGENS INSPIRAÇÃO

Mitsuko Nagone, da série “ New self, new to Self

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Isabelle Wenzel – “Untitled#2”- 2009 Isabelle Wenzel – “Kiste #2”- 2009

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Isabelle Wenzel – “Frau Meier” – 2009

Isabelle Wenzel – “Untitled #1”, 2009

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Isabelle Wenzel – “Bucket 1_A”, 2010

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Acervo pessoal - Meu avô - Data desconhecida.

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ANEXO IV

Depoimentos

Deposito aqui quatro depoimentos como instigados por Juliano Jacopini como

dispositivo de criação poética e dramaturgia cênica.

O porquê dessa pesquisa

Por onde começo essa história? A história do mestrado ou um relato pessoal da

minha vida? As duas andam juntas, dependente somente agora uma da outra. A minha

história continua e continuará e o que faço agora é apenas parte, um recorte, um relato do

que tentei ao longo desses dois anos justificar, talvez, uma aproximação.

Essa pesquisa fala sobre a memória. Tentei de alguma maneira relacionar a

memória com uma memória que eu tinha dos textos de Beckett, as peças, e em

específico a peça Cadeira de Balanço. Por que? Porque ela me lembra algo...

Na peça, a personagem Mulher é balançada numa cadeira de balanço. Digo

balançada por que a cadeira é mecânica, coisa do Beckett de querer controlar até a

cadeira. O ponto é que a Mulher não pode se mover, mas ser movida. Enquanto isso, ela

descreve, ou melhor, não ela. Tem uma voz em off, uma gravação. Nem falar ela pode.

Ela já não se move, ela já não fala. Ela está sendo levada por um vai e vem ininterrupto

enquanto escuta uma voz... que julgo ser a dela mesma. Essa voz à parte de si, de seu

corpo, descreve uma paisagem, algo como uma mulher que avista outras janelas, outras

almas viventes e que essa mulher está muito solitária, mas em busca de outras almas

solitárias, um pouco como a dela. Sim. É um texto repetitivo. Estamos falando de Beckett.

O que importa é que a Mulher, em algumas partes do texto quase morre. Fecha os olhos,

e quando ela acorda, ela mesma, com sua própria voz diz: Mais uma vez. Tem também

uma coisa muita engraçada nesse texto que nas traduções (BECKETT escreveu primeiro

em inglês e depois traduziu pro francês). Para o inglês, a peça se chama Rockaby,

literalmente cadeira de balanço. Já na versão francesa, a peça se chama Berceuse,

Canção de Ninar. As duas diretamente me fazem lembrar primeiramente o movimento, eu

vejo a cadeira de balanço, mas já a imagino a balançar, enquanto a Canção de Ninar me

vem algo de criança, de querer dormir, do canto que uma pessoa que deseja que alguém

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descanse. A voz tem esse poder, a cantiga, a tranquilidade para que possamos

finalmente dormir.

Lembro do fim e do início também. Da cadeira de balanço me lembrar um velho ou

uma velha que se balança a espera de. O fim do cansaço, o início de um sono tranquilo,

um bebê que chora e que é acalentado. Começo do fim e vou ao início.

Eu disse antes que essa pesquisa, essa peça em específico me lembra algo, algo

que eu já havia me esquecido. Algo ou alguém que também se esquece, mas que mesmo

se esquecendo, se lembra, ou melhor, inventa uma outra coisa, algo que ele escutou da

cozinha, mas que diz da sala. Meu avô.

Na época em que eu estava terminando a graduação, em 2013, meu avô

apresentou os primeiros sintomas. Ele sofreu um avc e o médico alertou que ele ficaria

um tempo mais devagar, falar coisa que não tinha nada a ver, ressonâncias do trauma.

Pois bem. O velho não apresentou melhoras, pelo contrário, cada dia que passava ele ia

dizendo coisas muito mais absurdas, como quando ele me chamou pelo nome de uma

parente já morta. Os objetos ganhavam outros nomes, a caneta poderia se chamar

esqueleto, por exemplo, entre outras coisas. Os humores mudavam, o horário do sono

também, ele que sempre acordou cedo a vida inteira. Meu avô era caminhoneiro. Ficou

cego, parou de trabalhar. Anos depois ficou triste, daí teve o avc e agora ele tem

esquecimento.

Foi aí que eu comecei a prestar a atenção no que ele dizia. Eu comecei a gravar as

histórias do meu avô, a tirar fotos. Ele todo estava mudado. Era outra pessoa,

inconsciente do que estava fazendo. Cada vez mais devagar. Gosto muito de observá-lo

quando ele está olhando pro nada, quando ele não está presente. Quase tá, mas não tá

também. Ele no quintal de casa. Fico pensando no que ele pensa. Será que ele ainda

pensa? Acho que sim, mas ele se esquece.

Teve uma vez, acho que em 2014, fizeram uma festa de aniversário pra ele.

Fizeram bolo, compraram vela, daquelas que faz shhhhhh, sabe? Cantamos parabéns.

Vai vô corta o bolo. Ah? Corta o bolo, vô. Pai é hora de cortar o bolo. O que que tá

acontecendo? É o seu aniversário. Ahn? É O SEU ANIVERSÁRIO. Aí ele pegou o rg do

bolso, tava dentro da carteira. Olhou a data... que dia é hoje? 13 de julho. É hoje, é? É

Pai, é hoje. Tem que cortar o bolo. Como é que faz? Ai a minha mãe, ou a minha tia, não

lembro ajudaram ele a cortar o bolo. Pra quem vai o primeiro pedaço? Tem que dar o

primeiro pedaço. Tinha um primo meu, um pequeno que queria muito o pedaço de bolo,

coisa de criança, sabe? Queria apagar a velinha também e tudo. Daí o vô colocou o

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pedaço de bolo no prato, todo mundo gritando pra ele dar o pedaço de bolo pra alguém,

da pra mãe, da pra vó, mãe e vó é a mesma pessoa nesse caso, meu primo tascou o

dedo no chocolate do bolo, meu avô ficou puto. O ANIVERSÁRIO É DE QUEM? ENTÃO

O BOLO É MEU!

A Torre

La Torre señala que algo que estaba encerrado sale al exterior. Puede ser una mudanza, una separación, un momento de gran expresión, el deseo de irse al campo o a otro país, un secreto revelado... O incluso un flechazo que acaba en «catástrofe». Remite, como se ha visto, a una danza de celebración alegre, incluso a acróbatas que evolucionan por un decorado teatral. Podría ser el nacimiento de algo que lleva tiempo gestándose y que aquí cobra uma figura doble.(JODOROWSKY, 2004, p. 250) Era carne sin Dios, consumiéndose em las llamas de su propia existencia, mi Yo convertido en prisión. Despreciándome, aislándome, creyendo defender un território interior que sólo me perteneciera a mí, ¿qué era yo en la oscuridad de esta Torre? ¿Amo de qué? ¿De qué parecer, de qué falsa identidad? Sólo era el aire enrarecido de una oscuridad egoísta.(Ibidem, p. 251)

Eu tive que me dividir entre o Eu e o Outro. Mapas, pessoas que nunca vi, mas que

conheço como a palma de minha mão. É mais fácil ler o outro do que a mim mesma.

Quais eram as maneiras de sobreviver e continuar a pesquisa? Onde estou nesta

pesquisa? Nas sombras, sempre nas sombras. Busco os fantasmas dos avós para mais

uma vez me socorrer. O que estou fazendo aqui? Busco os fantasmas para me redimir do

passado, para ser outra, uma outra qualquer, uma outra alma vivente.

Eu falava de mim através de pessoas terceiras

Não há porque fazer algo espetacular. Sou eu, apenas. E de minha história

participo como Ouvinte pela primeira vez, assim como os personagens de Improviso de

Ohio em que o Ouvinte ouve ao Leitor, duas figuras idênticas, quase a mesma persona,

mas divididas entre o ouvir e o falar. Então minha fala, desta vez será confusa. Eu me

escuto e me lanço a palavra, com medo.

Eu estive separada de mim mesma todo esse tempo.

A Cadeira de Balanço é a inércia de algo que poderia ser abundância em

movimento. Estive parada por aqui, estive parada em Campinas por desamor, por medo,

por não saber ao certo o que profundamente desejo. É aqui o meu lugar, num apoio –

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cadeira acadêmica? Tenho as minhas totais dúvidas quase conclusivas. No entanto, essa

cadeira lustrosa me fez pensar sobre o que é minha veia artística, qual é a minha paixão,

além de escrever textos acadêmicos.

Eu me perdi por dinheiro e escolhas erradas que me engrandeceram num caminho

torto e duvidoso, cheio de falhas e raras conquistas. Mas o que é uma conquista, afinal?

Uma base momentânea, um salto alto, um batom uma esquisitice, uma inutilidade para o

ego brilhar.

Eu preciso me destruir

Eu preciso me desestruturar... essa sempre foi a briga comigo mesma. Eu que

sempre busquei abrigo. Preciso achar o tijolo, quebrá-lo, ver a Musa inspiradora sair de lá

de dentro. Musa inspiradora, caquética, mambembe.

É muito fácil julgar o outro do que a mim mesma, mas agora... o que é o artista?

Sem a resposta lúcida de um renomado intelectual? O que é um artista? Sem essa de

glória e sensibilidade exacerbada.

Eu preciso quebrar a casca, essa do ovo, para enxergar em mim mesma a busca

de minha humanidade. O besouro tem sua besourice, o humano, a humanidade. Quero a

minha de volta. Será que já tive? Não me lembro. Sempre a minha ruindade, a ruindade

primeira. A ruindade me torna humana porque capto facilmente a mentira e a estupidez.

Capto primeiro, antes de tudo. Será porque sou eu a primeira a me redimir à maldade ou

porque sou alérgica a tudo isso? Também não faço questão nenhuma, bulufas de ser boa,

uma alma bondosa, carismática, límpida. Mas a ruindade primeira, cheia de ódio, coração

febril. Odeio muito os outros. A Torre está caindo. Os artistas são os tijolos, a casa de

deus, deus vivo todo poderoso. Deus pai, filho e espírito santo todo poderoso. Pai não

tive. Será que as outras partes de deus me tocam?

Não tive quem olhar ou admirar, nunca me ajoelhei. Também não gosto disso no

sexo. Outra posição mais igualitária. Tenho raiva e preguiça. Escorpião na casa casa 4,

Touro na casa 10. Plutão na casa da intimidade, a Lua na casa do sucesso. Um bicho que

bota medo debaixo da cama, um herbívoro que será comido, será leite, será couro, será

queijo, será... queria apenas ser bicho. Na verdade, não sei se é essa a minha vontade,

mas acho que seria mais fácil. Mas volto ao pai. Não tive quem olhar ou admirar. Não tive

pai ou tradição. Seu pai não veio? Somente nos finais de semana. Houve uma surra que

eu levei uma vez porque não queria passar o final de semana com ele. Na época ele

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morava com a minha avó até então viva. Pedi desculpas depois do cacete. Ele se exaltou,

minha tia disse, então pedi desculpas por insistência. Mas era culpa minha dele ter se

exaltado? Eu disse muito sim para não apanhar mais da vida.

Isabella, não case. Você é melhor sozinha. Mas nisso eu me isolei, imponente,

dentro de minha própria casa, antes de nascer. Eu sou um ovo, mas me acham uma

grandíssima merda. Tive que ser grandíssima por nascimento, por peso, por altura. Sou

grande sem querer ser. Sempre carreguei essa culpa comigo. Falaram um monte de

merda, um monte de coisa e eu nem me lembro mais se sorri ou se agradeci, se chorei...

quase não chorava, mas agora a Torre está caindo e eu esmoreci de rancor, ódio,

desarmonia. Me dói quando escuto meu nome, é sinal de precaução

I

S

A

B

E

L

L

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I

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S L

a

b

e

O meu corpo tem que se fechar ou se abrir?

Busca pela presença, busca pela presença. Não seria mais fácil se esconder?

Eu estava buscando a velhice, a mesmice... pra quê, meu deus, pra que? Pra

ganhar uma bolsa? Olhos de quem não sabe de nada e que julga, os outros, a mim

mesma.

Meu deus, a torre está caindo, meu ego, meu ego. Era pra ser uma busca de mim,

não dos outros. Não tenho muito tempo antes de entrar no colapso, aquele prédio que vai

cair, meu deus, meu ego. Ela é muito simpática, mas você me deu uma baita dor de

barriga.

- Quem?

- Os idiotas da arte.

Arte isso, arte aquilo. Que saco! Sou a que falo menos. A Clarice disse uma vez

que o papel do artista, ou será do escritor? Era de falar o menos possível.

ENTENDEU? O MENOS POSSÍVEL!

Canalhas. Idiotas. O buraco “cults” cheio de besteira e parafernália. O espectro, a

miragem, a presença. O que está acima do outro por ser delicadeza de umbigo. Morte aos

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artistas! Morte, morte mesmo. Tem que morrer um por um. Eu tô velando minha morte até

hoje. Não aguento mais. Detesto acidentes propositivos performáticos. Você sabe que

sempre alguém vai fingir enlouquecer. A destruição da torre é na verdade a solução do

problema. Tudo estará fértil e arrumado depois que eu explodir. Não existe a obra

perfeita, o contato com o deus astral, a busca por si mesmo. Está na hora de se decidir.

É tempo de se decidir. E se decidir não está necessariamente num prazo de gente

polida. Tem um bicho dentro de mim que precisa sair. Ele ruge, grunhe, carcareja, ronca,

peida e dorme. Tudo a partir de um estralo artístico: o artista não está em crise, ele é a

crise. Por favor, idiotas.

A casa de deus

Tijolo por tijolo

Vértebra por vértebra

A torre lança um segredo velado que será revelado.

Eu senti os tijolos caindo sobre mim mesma. Torre esparramada pelo chão. Lá

dentro havia uma mulher formidável, parecia comigo, não tenho certeza. Olhos

penetrantes. Ou seriam vulvas que saiam dentro da casca de um ovo?

Preciso falar sobre meu avô

Uma lembrança. O vô ligou para a casa de minha mãe uma vez. Eu atendi ao

telefone. Era dia das mães. Ligou para desejar a minha mãe os parabéns. Eu atendi, já

falei que atendi. Parabéns, ele me disse, pensando que eu era a minha mãe. Sua voz tá

parecida com a dela. Eu disse não, sei lá o que eu disse. Mas parabéns pra você de

qualquer forma. Porque? Eu perguntei. Porque você é mulher e um dia será mãe. Quem

te disse isso? Eu já falei isso alguma vez? Você não deseja ser mãe? Não.

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Um silêncio perturbador

Eu ri de nervoso. Queimei as bochechas. A raiva me deixa fofa, que gracinha, ela

tá vermelha. Ele me disse como se fosse um profeta:

- CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS

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Eu passei rapidamente o telefone para a minha mãe. Morri de rir e fiquei pensando

sobre essa ideia maluca que é ser mãe e se doar por completo mesmo que o seu filho,

sua cria, seja uma criança chata. Falei o fato para minha mãe, o ocorrido. Minha mãe já

sabe que não tenho a menor vontade de procriar. Gosto de criar coisas que vão embora.

Teatro, por exemplo. Acho que não saberia lidar muito bem com a perda de um filho.

Vô sempre esteve fora de casa, mas era uma figura de respeito. Não responde,

seu Vô tá falando, não olha assim ele não gosta... ele, ele, ele.

Teve uma vez que eu não conseguia dormir. Na verdade, isso era muito comum,

eu não dormia, já era coruja desde pequena. Eu coloquei na MTV e fiquei assistindo. A vó

gritou do quarto ISABELLA DESLIGA A TV E VEM DORMIR. Eu ignorei. Eu estava sem

sono, o que eu faria no escuro? Olhar as paredes que não davam pra ver porque também

estavam repletas de escuridão? O vô apareceu e puxou a tomada da parede de uma

maneira tão ignorante que saiu até uma parte da parede. Ele é gordo, grande. Fez um

estrago.

Depois disso fiquei na sala ecoando no espaço, me refletindo e escuridão. Me deu

uma vontade de chorar enorme. Fiquei na sala, no escuro, não queria deitar. Vem deitar,

Isabella. Não consigo. Fiquei um tempo vendo a cortina vermelha. Era o que dava pra ver

pelo reflexo da luz da rua que invadia a sala.

Ele nunca estava em casa. Viajava muito. Mas bebia muito também. Batia no

cachorro. Queria beijar a vó, me abraçar. Falava asneiras, baixo calão. Um cheiro de

pinga. Eu tinha muita dó do cachorro. Eu chorava muito.

Moral da história: O vô era o pai que, pelo menos, dava pra ver na escuridão.

Tenho excesso de escorpião na casa. Vô, pai, ex padrasto, padrinho. Todos

ignorantes. Meu padrasto não era de mostrar muito, mas é certamente um homem idiota.

No fundo da alma tem um escorpião que me pica, todo homem. É o homem que

mais tenho medo e mais me aproximo. Por que, meu deus?

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O Vô Alzheimer

Meu avô hoje é um homem muito diferente. Ele é calmo. Nunca na minha infância

eu poderia desafiá-lo, desobedecê-lo ou qualquer coisa que restringisse sua autoridade

máxima, ímpar, de homem. Não que eu tenha sido uma peste, mas meu avô me dava

muito medo. Era quase deus pra mim. Não faz isso por que o vô não gosta, não faz isso

porque o vô não quer, fecha a perna, isso não é coisa de mocinha. Eu não podia fazer

nada porque o avô não gostava. Agora, com mais duas primas bem mais novas que eu,

ainda crianças, elas conhecem um vô que eu não tive. Elas dão muita risada com ele

porque nada do que ele diz faz sentido. Desafiam o velho, escondem as coisas dele,

brincam, são crianças, né?

Meu avô ri também. Ri muito, faz questão de mostrar a dentadura. Ele ri de tudo e

de todos. Não tem um pingo de pudor. Se ele quiser rir da sua barriga ele vai rir, da sua

gordura, do seu peso, que cabelo horrível o seu. Essa roupa ridícula. Não tem mais erro

nem acerto. O vô flutua, vai longe no esquecimento. Não xingo de doença, chamo de

esquecimento. É um estado, ele está passando por um estado de esquecimento

incurável, mas também de uma invenção maravilhosa das coisas, de ressignificar a vida

ao redor de uma maneira muito triste. Tudo ganha um novo sentido. Antes tinha um peso,

uma responsabilidade muito grande. Acho que infelizmente a doença o fez se permitir. É

um avô, hoje, muito querido por mim. Nos aproximamos muito depois desse estado. Sinto

que tenho que falar sobre a memória de um homem que não tem mais memória. O que é

pior: as memórias que eram nossas hoje são somente minhas.

As pessoas em casa ficam muito tristes, mas acho que se acostumaram. Desde o

começo eu achei um fervo. Só dele se permitir rir eu achei incrível e da gente poder rir da

cara dele. Ele fica bravo também, mas é um bravo que não ameaça, ele não vai querer

jogar um chinelo em você por que você está rindo dele. Ele vai ficar puto, mas depois vai

esquecer. É ridículo. Amo meu avô por ele ser ridículo. Gostaria que ele tivesse sido

ridículo antes, mas não foi possível.

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Anexo V

As imagens de Mais uma vez, seu aniversário

Registro fotográfico da peça apresentada para a banca de defesa no dia 18 de fevereiro

de 2019.

Cena A Torre. Foto: Rafael Garcia

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A Torre, a Casa de Deus, tijolo por tijolo, vértebra por vértebra. Foto: Rafael Garcia

O senhor sabe me dizer onde é que fica o banheiro? Foto: Rafael Garcia

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Pobre coração/ Sempre escravo da ternura. Foto: Rafael Garcia

Tende piedade de nós. Foto: Ysmaille Ferreira

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M M

Mãe – filha do aniversariante

Fim de festa de aniversário. Foto: Felipe Bracialli

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