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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA Por SALVADOR 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

Por

SALVADOR

2013

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JULIA MONTEIRO OLIVEIRA SANTOS

O GRAFFITI E A PIXAÇÃO:

DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DESTAS ARTES NA CIDADE DO

SALVADOR.

SALVADOR

2013

Monografia apresentada ao Curso de Geografia, Departamento de

Geografia, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Geociências,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Bacharel em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa

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______________________________________________________ S237 Santos, Julia Monteiro Oliveira.

O graffiti e a pixação: desvendando as geografias destas

artes na cidade do Salvador / Julia Monteiro Oliveira Santos. -

Salvador, 2013.

56 f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa

TCC (graduação em Geografia) - Universidade Federal da

Bahia, Instituto de Geociências, 2013.

1. Geografia humana – Salvador (BA). 2. Arte de rua. 3.

Grafitos. 4. Pixação. 5. Graffiti. I. Serpa, Angelo Szaniecki Perret.

II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geociências. III.

Título.

CDU: 911.3(813.8)

_______________________________________________________ Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências da UFBA.

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O GRAFFITI E A PIXAÇÃO:

DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DESTAS ARTES NA CIDADE DO

SALVADOR

Por

JULIA MONTEIRO OLIVEIRA SANTOS

ANGELO SZANIECKI PERRET SERPA

Orientador

SALVADOR

2013

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BAST

Eu rodopio e giro

escondo e procuro

brincando e caminhando

divertindo-me e gracejando

Minhas oportunidades

de me divertir são infinitas

e o prazer que isso me dá

me faz ronronar

Os desafios da vida nunca me detêm

pois eu sei como me tornar inteira

brincadeira

(Marashinsky)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Universo, e todos que me protegem!

Agradeço minha família: mamis Claúdia, painho Jaime, minhas manas Vivioca e

Maíra e meus manos Ugo e Rauni, minha tia Bel.

Agradeço meus companheiros Gigica e Guapo.

Agradeço meus irmãos e irmãs de coração Lulu, Leão da Montanha, Gaby,

Chupetinha do meu coração(D2), Carcara, Pedrão Negrão, Khalil, Javier, Ogro,

Bongos, Ba, Barba, Jean, Annie, Taci, Willian, Sergio, Pedrão, Preto Safado,

Glaucia, Cris.

Agradeço tod@s grafiteir@s e pichador@s, em especial aqueles que participaram

desta pesquisa tornando-a possível, Boys, Skim, Nelp, Beck, Neghet, Smol, Mito,

Sano, Menos AL, Denissena, Marcos Costa, Tarcio V, Afro, Matias.

Agradeço meu Mestre de Capoeira Marcelo de João Pequeno de Pastinha.

Agradeço aos funcionários do IGEO, que permitem que esse lugar seja habitado,

em especial a Carlos, André e as meninas da cantina.

Agradeço a Lilica que matou minha fome muitas vezes com suas deliciosas e

carinhosas comidas na quitanda Santa Bárbara.

Agradeço meus professores, a Angelito.

Agradeço a VIDA.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Pintura rupestre no Sítio: Toca do Morcego-Serra da Capivara–PI.................12

Figura 2 Pintura rupestre no Sítio: Xique-Xique I-Carnaúba dos Dantas-Seridó–RN...12

Figura 3 Pintura rupestre no Sítio: Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da

Capivara – PI...................................................................................................................12

Figura 4 Figura 4 - David Alfaro Siqueiros, As pessoas para a Universidade. A

Universidade para o Povo. Universidade Nacional Autônoma do México, Cidade do

México 1952-1956...........................................................................................................14

Figura 5 - Jovem pixando no prédio da Câmara municipal do Rio de Janeiro ..............17

Figura 6 - Parede pixada e grafitada na avenida Anita Garibaldi...................................19

Figura 7- Pixação de Bongos com rolinho e spray, rua Campo Santo, Federação –

Salvador...........................................................................................................................22

Figura 8 - Pixações com spray de Smol em Salvador....................................................23

Figura 9 Graffiti feito por Marcos Costa (na foto), no qual estão presentes elementos da

cultura afro-brasileira e africana..................................................................................... 24

Figura 10 - Graffiti de Calangos na paisagem da Metrópole Soteropolitana.................25

Figura 11-Graffiti da serie “O grito” na Ladeira do Garcia, dialogando com o lugar..29

Figura 12 - Pixe demarcando o local do “Baba do pixe”...............................................31

Figura 13 – Pixação na Avenida Tancredo Neves coma frase “Favela é favela e pra

mim é uma terra!”...........................................................................................................32

Figura 14 -Pixação de Neghet, identificando as gangues 40L e 163.............................35

Figura 15 - Tag de Smol, acompanhada da frase “O sistema me abala mas não me

intimida” - Av. Bonocô...................................................................................................35

Figura 16- Pixação de Mito, Raif, Smol, Saho, questionando “se a policia me para,

quem para a policia?”......................................................................................................37

Figuras- 17 e 18- Lugares considerados picos pixados por diferentes pixadores e pela

gangue 163. .....................................................................................................................39

Figura 19 - Graffiti de TarcioV na saída do viaduto da Politeama................................43

Figura 20- Grafiteiro Afro em sua acao na cidade.........................................................44

Figura 21- Entrada do Centro Social Cultural de Pernambués com os graffitis fruto do

mutirão.............................................................................................................................45

Figura 22 - Estação de metro em frente ao fórum Rui Barbosa, com graffiti do projeto

Salvador Grafita tampando a saída da estação, e uma pixação na banca de jornal. .......46

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Figura 23 - Cinema Excelsior no Pelourinho, graffiti esconde a entrada do cinema,

tornando invisível sua existência...................................................................................47

Figura 24 - Graffiti de valorização da ancestralidade negra, no muro do colégio Manoel

Devoto, Rio Vermelho, Salvador....................................................................................48

Figura 25- Representação da mulher negra....................................................................49

Figura 26- Graffiti de Omolú, Marcos Costa, na comunidade de São Lazaro..............49

LISTA DE QUADROS

Quadro 1-Perfil dos pixadores entrevistados ................................................................31

Quadro 2- Perfil dos grafiteiros entrevistados...............................................................41

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RESUMO

A pixação e o graffiti são artes cada vez mais presentes nas cidades, apropriando-se do

espaço urbano nas dimensões simbólica e material. Essas práticas são ricas em cores,

formas e discursos. Elas representam a fala de sujeitos/agentes que muitas vezes são

marginalizados socialmente, que se utilizam destas formas para se manifestar,

destacando o que por vezes os poderes públicos e privados querem calar, o pobre, a

favela, a indignação, a periferia e a arte popular. Neste trabalho buscamos compreender

a espacialidade da pixação e do graffiti na cidade do Salvador, analisando suas formas e

conteúdos nos muros da cidade. Procuramos entender quais as lógicas que regem a

apropriação destes espaços, assim como quem deles se apropriam, levando-se em

consideração os lugares que são grafitados. Como atributo metodológico a observação

participante foi escolhida, assim a experiência e a vivencia também foram fundamentais

no decorrer desta pesquisa, deflagrando as saídas de campo. Realizamos entrevistas

como forma de coleta de informação, assim como um levantamento fotográfico dos

graffitis e pixações na cidade do Salvador. É importante realçar que este trabalho busca

a articulação do conhecimento popular com o conhecimento científico. As conclusões

deste trabalho não significam um ponto final, mas sim o início de uma trajetória no

desvendar destas geografias, que se revelam enquanto formas de resistência e rebeldia

na cidade.

Palavras-Chave: Pixação, Graffiti, Apropriação da Cidade, Salvador.

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RESUMEN

La pixação y el graffiti son artes cada vez más presentes en las ciudades, apropiándose

del espacio urbano en las dimensiones material y simbólica; estas prácticas son ricas en

colores, formas y discursos. Representan la voz de sujetos/agentes que muchas veces

son marginalizados socialmente, y que usan estas formas para manifestarse, destacando

lo que a veces lo que los poderes público y privado quieren callar: los pobres, la favela,

la indignación, la periferia y el arte popular. En este trabajo buscamos comprender la

espacialidad de la pixação y del graffiti en la ciudad de Salvador,Bahia, analizando sus

formas y contenidos en los muros de la ciudad. Procuramos entender cuáles lógicas

rigen la apropiación de estos espacios así como aquellos que los apropian, tomando en

consideración los lugares que son grafitados. Como atributo metodológico fue escogida

la observación participante, así como la experiencia y la vivencia también fueron

fundamentales durante la investigación, a través de trabajo en el campo. Realizamos

entrevistas como forma de recolección de información, así como el levantamiento

bibliográfico en el tema de graffiti y pixação en la ciudad de Salvador. Es importante

recalcar que este trabajo busca la articulación del conocimiento popular con el

conocimiento científico. Las conclusiones de este trabajo no significan un punto final,

más bien un inicio de una trayectoria en el des-cubimiento de estas geografías, que se

muestran como formas de resistencia y rebeldía en la ciudades.

Palabras claves: Pixação, Graffiti, Apropiación de la ciudad, Salvador.

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ABSTRACT

Graffiti and pixação are arts each time more present in the cities, apropriating of urban

space materially and simbolically; this practies are rich in colors, forms and discourses.

They represent the voice of subjets/agents that usually are marginalized in society,and

use these forms to maniffest, highlighting what public and private authorities want to

silence: the poor, the favela, indignation, periphery, and popular arts. In this work we

look forward to understand the spatiality of pixação and graffiti in the city of Salvador,

analysing its forms and contents in the city walls. We try to find out which logics orient

the apropriation of these spaces as well as the people who apropriate them, taking into

consideration the places that are graffited. As a methodological tool participant

observation was chosen, as well as experience, that also was fundamental during the

reaserch, through field work. We made interviews as a form of gathering information, as

well as bibliographic search of graffiti and pixação in Salvador. It is important to

mention that this work makes na effort to articulate popular knowledge and scientific

knowledge. The conclusions does not represent a final dot, but the beginning in a

trajectory of discovering these geographies, that presente themselves as forms of

resistance na rebelion in the cities.

Key Words: Pixação, Graffiti, City apropriation, Salvador.

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SUMÁRIO

Capítulo I

OS PRIMEIROS TRAÇOS: INTRODUÇÃO ...........................................................01

1.1 Objetivos ........................................................................................................02

1.2 “Qualé deste rolê?” - Questões Norteadoras .............................................03

1.3 Referencial teórico – Estado da Arte ........................................................03

1.4 Procedimentos Metodológicos ....................................................................09

Capítulo II

A HISTÓRIA DA CIDADE COMO TELA: A GÊNESE DOS RISCOS ..............10

2.1 As cavernas como tela: Pinturas Rupestres............................................10

2.2 Muralismo Mexicano e Pop Art : Influencia no graffiti e na pixação....13

2.3 As gêneses do graffiti e pixação: do Mundo para Salvador ..................15

Capítulo III

GRAFFITI E PIXAÇÃO: SUAS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS .................19

3.1 O que é pixação?..........................................................................................19

3.2 O que é Graffiti? ........................................................................................23

3.3 Semelhanças e diferenças............................................................................25

3.4 Riscando a cidade como Obra....................................................................27

3.5 A cultura da rua e seu poder na cidade....................................................28

Capítulo IV

DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DA PIXAÇÃO E DO GRAFFITI..............30

4.1 Pixadores: seus trilhos na cidade...............................................................30

4.2 Grafiteiros: caminhos no urbano...............................................................41

CONSIDERAÇÕES LONGE DE SEREM FINAIS..................................................50

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................53

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Capítulo I

OS PRIMEIROS TRAÇOS: INTRODUÇÃO

Principalmente nas grandes cidades, em centros metropolitanos, com grandes

aglomerados de pessoas e desigualdades gritantes, a voz popular não se faz calar. O

Graffiti e a Pixação fazem parte desta voz, que, de forma criativa, rebelde, contestatória,

política, e agressiva para alguns, se apropriam do espaço urbano, às vezes indo além,

adentrando nos espaços rurais, vagões de trens, placas nas estradas. Essa apropriação do

espaço urbano modifica sua paisagem de forma a destacar o que os poderes público e

privado muitas vezes querem calar: a manifestação, a indignação, o pobre, a favela, os

marginalizados socialmente, a periferia e a arte popular.

A riqueza dos traços da Pixação e do Graffiti demonstra sua heterogeneidade,

ainda que muitos não os compreendam. Ricas em cores, formas, discursos e atitudes,

essas artes marcam e demarcam a cidade, por diversas mãos, grupos ou CREW1.

Essas manifestações artísticas/culturais/políticas têm sido criminalizadas e pouco

compreendidas, e seus agentes muitas vezes marginalizados, havendo a necessidade de

diálogo e de pesquisa sobre o tema em questão. Essas duas artes, tão presentes na cidade

e ainda pouco exploradas, expressam vidas, lutas e desejos de uma parte da sociedade

que exerce um poder popular, o qual queremos decifrar.

O Graffiti e a Pixação, apesar de serem artes irmãs, apresentam diferenças

explícitas. Não é interesse deste trabalho detalhar essa diferenciação, algo já realizado

por outros autores, mas elucidar cada uma a partir destas diferenças, buscando-se

compreendê-las enquanto duas ações diferentes, e, assim, pesquisar suas geografias.

Compreendendo a essência de transgressão destas artes, e vislumbrando-as

enquanto forças de mudança crítica social e educacional, cabe analisar a geografia da

Pixação e a geografia do Graffiti, entendendo suas lógicas na cidade, revelando suas

espacialidades e as de seus sujeitos.

O Graffiti tem passado por transformações em sua essência, caminhando por

novos rumos, gerando novas territorialidades e ocupando novos lugares. Uma arte que

surge do movimento Hip Hop e na rua, hoje se desvincula deste e se torna autônoma,

saindo da rua e entrando em galerias, deixando o gueto e se expondo nos bairros nobres.

São, portanto, diversas as espacialidades desta arte, que, na contemporaneidade, busca

ampliar sua ação na sociedade.

1 CREW- um coletivo de pixadores ou grafiteiros

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A prática de escrever e desenhar nas paredes é muito antiga, segundo Soares

(2007):

Apesar de o surgimento do grafite remontar à pré-história, evidenciam-se, na

produção dos grafites contemporâneos, temas e formas que sugerem um

constante diálogo, quase atemporal, entre essas escritas pré-históricas e

contemporâneas.

Nessa época, os hominídeos representavam por meio de pinturas rupestres,

nos muros das cavernas, o seu cotidiano, o modo de viver e se relacionar com

o mundo. As imagens geralmente são permeadas por temas religiosos,

políticos, sociais e culturais. É o primeiro momento em que o homem,

mediante o uso imagético, passa a representar os sentidos que norteiam a sua

vida. De acordo com Celso Gitahy (1999:11-12), “aquelas pinturas rupestres

são os primeiros exemplos de graffiti que encontramos na história da arte.

Elas representam animais, caçadores e símbolos, muitos dos quais são

enigmas para os arqueólogos” (2007, p. 2).

Mas a Pixação e o Graffiti contemporâneos surgem nos Estados Unidos, como

aponta diversos trabalhos. De acordo com Soares:

O ponto de partida é o fim da década de 60. Nos Estados Unidos, 1966 a

1971 foi o período em que imigrantes negros e porto-riquenhos inscreveram

as suas tags (assinaturas em inglês), juntamente com os números de suas

casas, nos trens e muros dos subúrbios da Filadélfia e da Pensilvânia e,

posteriormente, de Nova York, chamando a atenção da população e da

imprensa (2007, p. 3).

No Brasil esse movimento inicia-se um pouco mais tarde, protestando contra o

regime ditatorial de 1964. Nas fontes pesquisadas existe divergência referente ao ano

inicial que varia entre os anos de 1964 e início dos anos 1970, tendo seus primeiros

registros na cidade de São Paulo, acompanhado do movimento Hip Hop

(TARTAGLIA, 2007; SOARES, 2007). A partir daí, o Graffiti e a Pixação passam a

ser movimentos diferenciados.

1.1 Objetivos

Esse trabalho tem como objetivo central compreender a espacialidade da

Pixação e do Graffiti na cidade do Salvador, analisando suas formas e conteúdos nos

muros da cidade. Procura-se entender quais as lógicas que regem a apropriação destes

espaços assim como quem deles se apropria, levando-se em consideração os lugares que

são grafitados.

A cidade contemporânea é carregada de imagens, propagandas e cartazes,

gerando uma enorme poluição visual, com as quais essas artes disputam espaços. Diante

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dessa complexidade, constatada nas grandes cidades, Salvador é uma metrópole

incompleta, por ter uma relação ainda muito superficial com sua região, ainda que haja

uma integração cada vez maior dos fluxos metropolitanos desta cidade, não se planeja o

espaço urbano na dimensão metropolitana (DIAS, 2005), um espaço urbano caótico:

Considera-se que essas práticas têm muito a dizer sobre a cidade, criando o espaço

urbano não apenas na dimensão material, mas também na dimensão simbólica.

É objetivo também analisar os Graffitis e as Pixações, buscando-se as

representações e discursos embutidos nestas artes: Sabemos que essas práticas na cidade

envolvem diferentes agentes que, a seu modo, expressam suas ideias de formas

diferenciadas, atuando em cada lugar segundo lógicas ainda pouco conhecidas.

1.2 “Qualé deste rolê?” - Questões Norteadoras

Compreendendo essas artes na cidade questiona-se:

Como o Graffiti e a Pixação constroem e se apropriam simbólica e

materialmente do espaço urbano?

Por que se constituem como práticas rebeldes de resistência?

Quais são suas espacialidades?

O que expressam esses Graffiti e Pixações?

Quem são seus criadores? Quais as suas formas de organização na cidade?

1.3 Referencial teórico – Estado da Arte

Inicialmente é preciso ressaltar o caráter inovador desta pesquisa, pois começa a

preencher uma lacuna existente nos estudos geográficos referente ao tema, na região

Nordeste e, sobretudo, em Salvador. As geografias cultural e urbana começam a

explorar essa temática, alguns trabalhos consolidados já foram realizados sobre o

Graffiti e sobre a Pixação, mas concentrados na região Sudeste, como aponta Moren:

“Cabe ainda a ressalva de que os poucos estudos feitos sobre grafite no Brasil são

centrados na região sudeste e estão, de alguma forma, vinculados aos estudos da cultura

Hip Hop” (2009, p 36).

Hoje o Graffiti é um movimento que vai além da cultura Hip Hop, ainda que

existam alguns coletivos e graffiteiros vinculados a ela.

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Ao se falar de Pixação, a escassez dos estudos é ainda maior na área da

geografia, ainda que existam alguns poucos trabalhos, principalmente em outras áreas

do conhecimento. Assim, essa pesquisa pretende colaborar com a produção do

conhecimento geográfico sobre Graffiti e Pixação, sobretudo na cidade de Salvador,

ainda que não pretendendo esgotar este assunto.

Dos estudos encontrados em geografia destacam-se os trabalhos realizados por

Tartaglia (2010), Barchi (2007), Mondardo e Goettert (2008), Medeiros (2008) e

Morem (2009).

A dissertação de Tartaglia apresenta um histórico muito rico sobre a origem e as

influências do/no Graffiti, estabelecendo a diferenciação entre o Graffiti e a Pixação,

que acontece posteriormente com o desenvolvimento dos Graffitis. O autor resgata o

caráter de autoafirmação de grupos socialmente marginalizados e de sua forte ligação

com o movimento Hip Hop, mas não restritos ao movimento, assim como seu caráter

político. Segundo o autor (2007):

Mesmo que muitos grafiteiros estejam distantes de um projeto mais

abrangente alicerçado por propostas ideológicas articuladas com alguma

forma de mobilização social mais engajada, como o movimento hip-hop, ou

de políticas institucionais para a cidade como um todo, tal qual propõe Borja,

de um modo geral os grafiteiros têm promovido, no mínimo, um sentido de

reflexão sobre a cidade a partir de suas intervenções no espaço urbano. Em

um período marcado por tamanha apatia política como o que vivemos em

nossa sociedade atualmente, o graffiti aparece como uma rara manifestação

de cunho político deste momento (2007, p. 81).

Analisando a cidade do Rio de Janeiro, Tartaglia desenvolve suas pesquisas

baseado nos conceitos de paisagem, espaço público, fragmentação sócio-política do

espaço urbano, identidade territorial, territorialidade e território, dedicando um capitulo

inteiro para analisar a territorialidade dos grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro, assim

como suas formas de apropriação do espaço urbano. Ë importante dizer da metodologia

escolhida pelo autor para realizar esse trabalho, segundo ele, “a observação participante,

principal instrumento metodológico deste trabalho, foi escolhida como uma forma de

apreender a riqueza de detalhes apresentada nas ações dos grafiteiros, inclusive a minha,

pelo espaço urbano” (2007, p. 166).

A partir de uma abordagem diferenciada da pixação, Barchi (2007) investiga os

discursos expressos nas conversas cotidianas sobre as pixações nas escolas, analisando

as possibilidades de uma educação ambiental e libertária, partindo de uma narrativa

pessoal de sua experiência como professor de Geografia numa escola de periferia. O

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5

autor defende o status de arte para a pixação, baseando-se no fotógrafo Wainer, que em

uma reportagem discorre sobre essa arte e todo seu potencial; e na discussão levantada

por Gianni Vattimo, sobre a valorização da arte na cultura de massa, que não se

assentaria sobre o objeto mas sim sobre o valor oficial idealizado pelos mass media

(BARCHI, 2007, p. 3 ), defendendo a arte autêntica como aquela que rejeita a

comunicação de massa. Barchi segue seu artigo trabalhando a dualidade que permeia a

pixação, já que, segundo ele, “se por um lado as pichações são vistas como crime

(ambiental), sujeira, má educação e desrespeito com um determinado senso estético, por

outro podem ser consideradas a partir de sua potencialidade politicamente

intervencionista e artística” (2007, p. 4). A metodologia desenvolvida para sua pesquisa

segue ideias apontadas por Feyerabend, em sua famosa obra “Contra o método”, e

Boaventura de Sousa Santos, em “Introdução a uma ciência pós-moderna”, articulando

a ideia de “acidentes de percurso” e “encontro da ciência com o senso comum”,

escolhendo como forma de coleta de dados a conversa, baseada em Menegon. Assim,

Barchi estabelece o diálogo como fundamental para uma educação ambiental, não

preocupado em dizer não a pixação, mas com o processo de educação e comunicação

para discutir um tema tão controverso.

Mondardo e Goettert, em seu artigo intitulado “Territórios simbólicos e de

resistência na cidade: grafias da pichação e do grafite”, discutem, a partir da análise de

fotografias de pixações e graffitis nas cidades do Brasil e do Paraguai, o poder que essas

grafias exercem nas cidades, enquanto demarcadores de territórios de resistência,

contrapondo-se à ordem hegemônica. Conforme estes autores:

Desse modo, o grafite e a pichação são representações político-simbólicas

que podem ser também de poder, ou melhor, de um contra-poder: o da

resistência e de crítica popular à ordem hegemonicamente estabelecida e

imposta pela sociedade burguesa composta pelos seus atores hegemônicos: o

capital e o Estado (2008, p. 307).

Baseados nos conceitos de território de Haesbaert e de poder de Foucault,

defendem o caráter de resistência que essas praticas têm nas cidades, por demarcarem

territórios, material e simbolicamente, exercendo a função de contra-poder na dialética

da dominação e da contra-dominação, sendo, portanto, um meio de se apropriar de

parcelas da cidade através de marcas de expressão cultural e de resistência.

“O que dizem os muros da cidade” é o titulo da dissertação de mestrado de

Medeiros (2008), que buscou analisar as formas e os usos, em processos de apropriação

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popular da cidade, elegendo os muros como objeto de pesquisa: investiga

principalmente os graffitis Hip Hop e as pixações vinculadas ou não ao movimento

Funk, discute questões como segregação sócio-espacial, preconceito racial, suas

dimensões territoriais e territorialidades, considerando também a paisagem, sendo estes

os principais conceitos geográficos discutidos. Ë importante ressaltar que, ao

desenvolver cada questão, aprofunda-se nas dimensões espaciais e sociais, abordando

um pensamento social crítico e trazendo o histórico deste pensamento. Reflete também

sobre o papel do negro nestes processos, evidenciando as transformações da cidade

assim como suas desigualdades. Seu trabalho é de grande contribuição, pois analisa os

discursos propagados nos muros da cidade como formas de tomar e re-significar o

espaço urbano pela atuação de agentes que não se conformam com a estrutura racista e

preconceituosa da sociedade.

O trabalho de Moren realiza um estudo comparativo entre duas áreas da cidade

do Rio de Janeiro, a zona sul e o centro da cidade, a zona sul vista como espaço da elite

econômica, e o centro como um eixo comercial e de moradias de classes

economicamente menos favorecidas. Moren trabalha apenas com os graffitis pictóricos

deixando de fora de sua análise a Pixação e outras formas de graffitis, ainda que isto

apareça em sua dissertação, mas de forma sucinta. Ela levanta a hipótese que se

confirma em sua conclusão, “de que quaisquer que sejam as diferenciações entre os

grafites, elas são, em algum nível, representativas das diversas relações de significado

estabelecidas entre a população e o lugar público urbano” (2009, p. 43). Moren pauta

sua dissertação nos conceitos de “espaço público (GOMES, 2002) e lugar

(CRESSWELL, 1996; BERDOULAY, 1989)” (2009, p. 36).

Em outras áreas do saber científico o Graffiti e a Pixação também são objetos de

pesquisa, destacando-se as áreas de antropologia, artes visuais, pedagogia e história, nas

quais encontramos maior quantidade de trabalhos desenvolvidos. Nesse sentido,

selecionamos alguns trabalhos que pudessem contribuir com essa pesquisa, como os

estudos realizados por Coelho (2010), Pena (2007), Soares (2007), Souza (2007), Olária

(2009), Silva (2008; 2011) e Pereira (2010).

Em um ensaio filosófico, Coelho investiga as relações de um pixador que cursa a

faculdade de Belas Artes em São Paulo e faz uma pixação na faculdade, como trabalho

de conclusão de curso, gerando um episódio bastante conflituoso, que resultou no

jubilamento do estudante-pixador. Aborda, assim, a questão do status da arte, dos

sentidos do ensino de arte, questionando o “bom gosto”, a “racionalidade”, o “bom

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senso” e a “boa educação”, e reverberando palavras de Boaventura de Sousa Santos

como “força reguladora” e “energias emancipatórias”. No contexto de nossa pesquisa,

esse ensaio filosófico se torna um riquíssimo trabalho, que exige nossa reflexão sobre a

sociedade e seu olhar regulatório e repressor em relação à criatividade e às outras

formas de cultura.

Patrícia Pena (2007) estuda a pedagogia dos graffiteiros de Salvador, analisando

oficinas de graffitis ministradas para alunos de escolas públicas e explorando as

questões de identificação de aspectos que interferem na relação desses jovens negros

com a educação formal. O método utilizado é a historia oral, partindo de uma relação

mais próxima e de confiança entre entrevistado e entrevistador. A autora a partir da

relação de diferentes dimensões como casa (família), da escola e da rua, busca entender

a relação que esses jovens artistas vêm construindo com a escola.

Partindo das dimensões históricas, sociais e simbólicas dos graffitis e das

pixações nos espaços públicos de Recife, Soares (2007) identifica que esses gêneros

discursivos ressaltam as tensões urbanas, considerando-os como fontes documentais

relevantes, sendo representativos dos sentidos existentes entre a memória e a identidade

dos sujeitos (SOARES 2007). O autor também ressalta as territorialidades apresentadas

nestas grafias, discutindo a normatização imposta a esses gêneros, além do pluralismo

cultural destas manifestações. O trabalho de Soares se insere num projeto maior,

denominado “Muros da univer(c)idade: identidade, memória e sócio-história discursiva”.

Em sua dissertação de mestrado, Souza (2007) nos apresenta a etnografia da

Pixação carioca assim como propostas para seu entendimento, tendo como campo de

pesquisa a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana, utilizando-se de

procedimentos etnográficos, como pesquisa de campo e observação participante, além de

fontes como jornais, revistas e internet.

Ensina-nos Olaria (2009) a pensar em imagens para além da função de

ilustração, como deflagradoras do pensamento investigativo, ressaltando a capacidade

da imagem em provocar efeitos, produzir formas de sociabilidade, sendo a “imagem um

documento visual como registro produzido pelo observador; (...) como registro ou parte

do observável, na sociedade observada; e, finalmente, [documento visual como] a

interação entre observador e observado” (MENESES apud OLARIA, 2009, p. 4).

Silva (2008, 2011) contribui, com seus dois artigos, para o conhecimento da

historia do Graffiti, traçando sua trajetória no mundo, assim como a diversidade

existente, mostrando um panorama do Graffiti no mundo contemporâneo e apresentando

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diferentes fontes e autores que estudaram a temática. Este autor não considera a Pixação

como arte e sim como intervenção, conceitualizando e diferenciando a Pixação do

Graffiti, e discutindo também a lógica destas intervenções no espaço urbano.

A contribuição de Pereira (2010) foi a de investigar a dinâmica da Pixação em

São Paulo: partindo de uma relação próxima com esses agentes, o autor revela as ações

e práticas realizadas pelos pixadores na cidade, desvendando o estilo das pixações,

assim como os points dos pixadores, revelando também a lógica das periferias no

centro, ao constatar que a maior parte dos jovens que praticam essa arte é da periferia e

se encontra no centro para trocar ideias. Realizam conjuntamente ações, levando a

identidade e o discurso da periferia para o centro. Segundo Pereira:

As dinâmicas da relação com a periferia – como espaço mais geral de

articulação que extravasa o bairro particular – e as regras de procedimento

relacionais afetam o próprio modo da pixação paulistana, pois, para esses

jovens, sair para pixar em outras regiões da cidade é muito mais interessante

do que apenas pixar em seu próprio bairro. Para eles, inclusive, é no

momento em que deixam de atuar apenas na quebrada onde moram e saem

para pixar em outras quebradas, ou mesmo no centro da cidade, que se

tornam pixadores de verdade (2010, p. 160).

O autor coloca então a questão da territorialidade que esses agentes estabelecem na

cidade, discordando de outros autores:

Circular pela cidade e deixar sua marca é a regra principal da pixação. No

entanto, é difícil afirmar que os pixadores sejam desterritorializados,

conforme apontam muitos estudos sobre grupos juvenis inspirados por

autores como Deleuze e Guattari (1997) ou Maffesoli (2001). Na verdade, a

partir desta valorização da periferia como categoria de pertencimento e de

reconhecimento, pode-se dizer que os pixadores são hiperterritorializados,

pois, mesmo em seus encontros no point do centro da cidade, são as relações

concebidas sobre e na periferia que estão sendo postas em ação (2010, p.

161).

Apresentadas essas referências, notamos que alguns conceitos se repetem e

podem servir como apoio para análises e pesquisas sobre o Graffiti e a Pixação.

Ressalta-se, porém, que não é pretensão deste trabalho encaixar a realidade dentro de

conceitos, mas sim utilizá-los como forma de melhor explicar a realidade pesquisada.

Conceitos como paisagem, território, territorialidade, espaço público, identidade,

política e poder servirão aqui como ferramentas teórico-metodológicas para ajudar na

compreensão dos fenômenos analisados. É claro que a escolha dessas ferramentas

teóricas não impossibilita a adoção de outros conceitos que por ventura possam se

revelar como necessários no desenvolver da pesquisa.

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Gostaria de registrar que também embasam essa pesquisa as ideias levantadas

por Hakim Bey, nos livros Caos e Taz, principalmente os conceitos de “terrorismo

poético” e “zona autônoma temporária (TAZ)”. O conceito de terrorismo poético esta

em dar graça aonde ela não existe, levar alegria a lugares “sem graça”, normativos. Bey

coloca que a “arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô e

sóbrios monumentos públicos (...)” (2003, p. XIII). Por TAZ podemos compreender,

mesmo que o autor tenha escolhido não definir, por um momento determinado, em um

lugar em que as ações fossem livres, autônomas, mas com a característica de serem

temporárias; como nos diz o autor, o próprio nome é autoexplicativo se ele entrasse em

uso.

A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente,

uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de

imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento,

antes que o Estado possa esmagá-la (BEY, 2001, p.17).

1.4 Procedimentos Metodológicos

“A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo

teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas

alternativas que apregoam a lei e a ordem” (FEYERABEND, 2003, p.31).

Ao iniciar com essa citação de Feyerabend, queremos deixar claro que mesmo

definindo alguns procedimentos metodológicos, essa pesquisa será conduzida de modo

livre e criativo. Outro ponto essencial para essa pesquisa é a articulação do

conhecimento popular com o conhecimento cientifico, como aponta Serpa ao escrever

sobre metodologia sem hierarquia, “Se o conhecimento acadêmico não é melhor e nem

pior que o conhecimento popular, então não há porque pensar atividades de pesquisa e

ensino que não busquem incessantemente a interação com o conhecimento popular

como objeto” (2007, p.137). A experiência e a vivencia também foram fundamentais no

decorrer desta pesquisa, deflagrando as saídas de campo e a observação participante.

Pretendíamos realizar uma analise qualitativa da espacialização do Graffiti e da Pixação.

As saídas de campo podem ser divididas em duas etapas. A primeira consistiu

nos encontros com os graffiteiros e pixadores, para a realização das entrevistas semi-

estruturadas e a observação participante, ou seja, participar do cotidiano deste agentes

durante suas ações na cidade.

O grupo de Pixadores que foram entrevistados faz parte de uma rede de contatos

estabelecida a partir do “Baba do Píxe”, encontro aos domingos na praia do Jaguaribe,

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onde diversos Pixadores, de diferentes grupos, se encontram para um baba2, trocar

ideias, trocar Pixações nas folhas, enfim para compartir. Fazem parte deste grupo

aproximadamente 20 jovens de ambos os sexos, ainda que a maioria seja masculino.

O grupo de Graffiteiros selecionado para participar nesta pesquisa, de alguma

forma, estabeleceu com a autora laços de afetividade, construindo, assim, uma relação

mais próxima e de confiança, esses laços foram formados em encontros e eventos de

grafiteiros e pixadores.

A segunda etapa consistiu no levantamento fotográfico no centro da cidade do

Salvador, assim como em áreas importantes, reveladas na primeira etapa pelos

entrevistados.

A entrevista é compreendida aqui como um método de coleta de informação,

cuja subjetividade, a memória e a historia de cada individuo é valorizada: ainda que a

historia do individuo seja uma construção social, cada individuo é único, sendo cada

entrevista uma fonte rica de conhecimento.

Quando dizemos que essa pesquisa foi conduzida de modo livre e criativo,

queremos dizer que deixamos em aberto todas as possibilidades para investigar essas

artes, ou seja, se fosse necessário graffitar, pixar, entre outras praticas, o faríamos.

Vídeos, filmes, sites e redes sociais foram considerados fontes documentais essenciais,

utilizando-as durante o processo. Queríamos ser livres e apostar na criatividade para

desenvolver a pesquisa, e que seus resultados fossem fieis aos seus protagonistas e a sua

prática.

2 Partida de futebol de bairro, jogo organizado por grupos de amigos.

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Capítulo II

A HISTÓRIA DA PAREDE COMO TELA: A GÊNESE DOS RISCOS

São relativamente recentes como objetos de estudos as pixações e os graffitis, no

entanto, como sinalizamos nas linhas anteriores, a prática de escrever na parede

acompanha a história da humanidade. E é fundamental para os estudos geográficos a

dimensão temporal e histórica: como aponta Santos (2012), o espaço é inseparável do

tempo. Assim, neste capitulo, resgataremos recortes da história das escritas e pinturas

nas paredes, buscando entender a função que tais grafias exerciam nos distintos

momentos históricos analisados.

2.1 As cavernas como tela: Pinturas Rupestres

O primeiro recorte corresponde à pré-história, com as pinturas rupestres,

realizadas pelos hominídeos, considerados por alguns como arte pré-histórica, o que

gera calorosas discussões sobre seu caráter de arte ou não, que é datada

aproximadamente há 35 mil anos A.C. As pinturas rupestres estão espalhadas pelas

cavernas do mundo, destacando-se as cavernas de Lascaux (França) e Altamira

(Espanha), entre outras. O Brasil tem um dos maiores acervos rupestres do mundo,

existindo no país diversos sítios arqueológicos com pinturas rupestres: destaca-se o

Parque Nacional Serra da Capicara, no Piauí, com o maior acervo rupestre do continente

(PEREIRA, 2011).

Essas pinturas eram realizadas com rochas trituradas, ossos carbonizados,

carvão, vegetais e sangue de animais. As gravuras apresentam formas geométricas,

curvilíneas, lineares, pegadas de felinos, marcas de mãos, e figuras de animais e plantas,

como as encontradas nos sítios arqueológicos da região do Cariri paraibano (NETTO;

KRAISCH; ROSA, 2007). Para Sanches, “essas representações não são feitas ao acaso;

respondem tal como as mais realistas a uma representação conceptualizada do mundo”

(2003, p. 91-92). Cenas do cotidiano também foram temas das pinturas, retratando

relações sexuais, a caça, e a vivência coletiva.

Por mais que não possamos entender quais os significados destas pinturas em

sua época, já que se perdeu o elo conceitual entre a atualidade e os que as fizeram, como

afirma Pereira, “o que seus criadores queriam dizer de forma precisa nunca se saberá, se

perdeu no tempo” (2011, p.25), podemos ver a clara relação com o modo de vida deste

período, como expressão da criatividade humana, para os arqueólogos tais pinturas são

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formas de identificação do grupo étnico que as realizou (PEREIRA, 2011). Existe uma

relação direta entre os que as fizeram e seus territórios: partindo da análise das diversas

pinturas rupestres, é possível identificar os diferentes grupos e suasrelações como

espaço, nos trabalhos de Pereira (2011), Sanches (2003), Netto; Krasch; Rosa (2007),

que apontam as diferentes atividades realizadas no território, partindo dos estudos das

pinturas rupestres, vistas não apenas como arte mas como “a capacidade humana de ter

consciência de si mesmo, o que permite se posicionar em relação ao espaço” (PESSIS

apud PEREIRA, 2011, p.28). Sanches em seu trabalho demonstra, através de exemplos,

a marcação territorial, distinta para diferentes usos, partindo dos lugares onde estão

essas grafias, apontando a diversidade de significados existente.

Figura 1 Figura 2 Figura 3

Figura1 Sítio: Toca do Morcego - Serra da Capivara – PI; figura 2 Síti : Xique-Xique I - Carnaúba dos

Dantas - Seridó – RN; figura 3 Sitio: Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da Capivara – PI; fonte:

Associação Brasileira de Arte Rupestre - ABAR

É pertinente a colocação Pereira sobre a diversidade e as particularidades que

carregam as pinturas rupestres. Para o autor:

Hoje, esses registros são observados como um produto final, por serem

vestígios milenares; mas as pinturas e gravuras rupestres foram realizadas em

tempos diferentes, por numerosos autores, de diversas etnias, em ambientes

distintos e com histórias particulares. Por essas atribuições, possuem

múltiplos significados no interior de uma mesma cultura, experimentações de

significação motivadas pela diversidade e pela particularidade de cada grupo.

Observadas as maneiras pelas quais resolveram os problemas de suas

sobrevivências (PEREIRA, 2011 , p. 28).

Assim, as pinturas rupestres revelam a pluralidade e sua estreita relação com o

lugar, seus autores no uso de sua criatividade, transformando o concreto e o abstrato em

formas estéticas e também em registros, demarcando seus lugares. Segundo Sanches,

“portanto, a evocação ou localização de narrativas num lugar transforma esse espaço

amorfo num espaço cognitivo. A marcação desses lugares físicos através de riscos ou

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pinturas parece reforçar e fixar de forma mais perene uma certa estrutura narrativa”

(2003, p. 87).

A Arte Rupestre é uma manifestação global: o Congresso Internacional de Arte

Rupestre (Global rock art), ocorrido em 2009 no Parque Nacional da Serra da Capivara,

teve como objetivo demonstrar que “a globalização não é um fenômeno atual, ela

começa quando o homem parte de seu berço na África e começa a ocupar os

continentes” (GLOBAL ROCK ART apud PEREIRA, 2011, p.31).

Essas grafias rupestres tiveram um importante papel social além das questões

territoriais, já que elas “seriam essenciais para a sobrevivência de cada grupo”

(GUIDON e MARTIN apud PEREIRA, 2011, p. 26). Nesta perspectiva Pereira aponta

que:

A imagem é ferramenta essencial para o conhecimento e para ação; para

realizá-las, os autores das pinturas rupestres precisaram observá-las e

imaginá-las previamente. Após o processo de observação e imaginação é que

foi possível elaborar os registros das formas imaginadas por meios de

técnicas gráficas, ou seja, as pinturas como instrumento do conhecimento.

Inicialmente, sem finalidade imediata, mas lúdica, realizadas pelo prazer da

própria motricidade, na convergência do suporte, da tinta e do instrumento;

tonou-se prática como função social, tendo como finalidade contribuir para a

manutenção de uma organização social, de regras e comportamentos e, por

fim, do principio de dominação que caracteriza os diferentes grupos sociais.

(2011, p. 29-30).

É interessante perceber a semelhança que tal ação, realizada há milhares de anos

atrás, tem com os graffitis e pixações da atualidade, no que se refere a sua ação no

espaço e socialmente, veremos nas linhas posteriores como essas grafias atuais agem

conforme os diferentes grupos que os fazem. Concordamos com Pereira, quando diz que

“na história dos registros gráficos, a Pré-história e a história se reencontram pela via da

descoberta técnica e pela liberdade de expressão” (2011, p.16).

Após esse resgate da pré-história, daremos um salto na história e veremos as

manifestações que de alguma forma influenciaram o graffiti e a pixação

contemporâneos.

2.2 Muralismo Mexicano e Pop Art: Influências no graffiti e na pixação

O muralismo mexicano, um movimento artístico que ocorreu no inicio do século

XX, a partir da revolução mexicana, é considerado por Thiago Tartaglia (2010) a

primeira influência mais significativa para o graffiti. Esse movimento, que surge junto a

um levante popular, tem suas inspirações nos valores políticos da revolução, buscando a

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valorização da cultura popular mexicana a partir de seus painéis (ARGAN, 1999 apud

TARTAGLIA, 2010). A construção de painéis em grandes dimensões, pintados em

espaços públicos, é a principal característica do muralismo mexicano, que rompia com

padrões artísticos do período. Mergulhados no figurativo, abandonando o estilo abstrato,

esses murais abordavam cenas do cotidiano, fortalecendo a cultura e o povo mexicano.

Redefinir significava abandonar o cubismo, o impressionismo e – sobretudo

– qualquer veleidade de arte abstrata. Significava mergulhar no

figurativismo. E mais ainda: produzir obras que não terminassem como

propriedade de uma pessoa, de algum abastado colecionador. Produzir obras

que pudessem ser vistas por todos, a qualquer momento, não em museus ou

em instituições às quais o povo nunca teve acesso, mas em edifícios públicos,

escolas e repartições oficiais, com isso aproximando também o Estado e a

Nação (Gênios da pintura, 1967: 4/5 apud TARTAGLIA, 2010).

Figura 4 - David Alfaro Siqueiros, As pessoas para a Universidade. A Universidade para o Povo.

Universidade Nacional Autônoma do México, Cidade do México 1952-1956. Fonte:

http://www.nga.gov/education/classroom/self_portraits/bio_siqueiros.shtm

Desta forma, apoiadas pelo Estado, as pinturas muralistas tiveram grande

visibilidade e nas décadas posteriores chegaram nas cidades do Estados Unidos, o que,

conforme Tartaglia, “demonstra a influência dessa cultura levada pelos imigrantes

mexicanos e o seu valor para o surgimento dos graffitis. Os graffitis contemporâneos

absorveram o caráter de arte pública e a politização temática de suas obras a partir da

pintura muralista mexicana” (2010, p. 27).

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É importante a compreensão do referido autor, de que a influência do muralismo

mexicano no graffiti é um dos fatores que diferenciam o graffiti da pixação.

Outro movimento artístico que influenciou o graffiti, segundo Tartaglia, é a pop

art:

A pop art foi outra significativa influência artística contemporânea sobre os

graffitis, originada posteriormente ao muralismo mexicano. Decorrente do

processo de midiatização e massificação da sociedade de consumo,

especialmente nos EUA, a pop art é um reflexo desse momento, cujas bases

foram inicialmente lançadas na cidade de Nova York.(...) A pop art

desenvolve então esta idéia de “faça você mesmo” como uma crítica à falta

de autonomia e de capacidade decisória dos indivíduos na sociedade derivada

de sua própria alienação, o que criava uma dependência de modelos a serem

seguidos. (...) A reprodutibilidade foi um importante elemento da pop art que

assumia uma crítica à saturação da veiculação de imagens e massificação de

informações, das quais a televisão tornava-se a principal fonte. Esse apelo da

veiculação de imagens acabou influenciando de maneira significativa a

cultura do graffiti e da pichação nova-iorquina desde os anos 60. A repetição

das tags ou dos próprios graffitis como formas de afirmação coletiva de

existência foi uma derivação desse processo iniciado pela pop art, no qual a

reprodutibilidade, atitude de faça você mesmo, tiveram um papel

fundamental. O fato de a pop art ter Nova York como epicentro é mais um

fator que ajuda a explicar por que o surgimento dos graffitis está ligado a essa

cidade (2010, p. 29- 30).

2.3 As gêneses do graffiti e da pixação: do mundo para Salvador

Entendendo as principais influencias do graffiti e da pixação analisaremos sua

história. São duas as teorias que discorrem sobre o surgimento destas artes segundo a

CUFA, Centra Única de Favelas. Cada teoria de certa forma complementa a outra, no

entanto as duas consideram o surgimento nos anos 1960/70 na cidade de Nova York,

Estados Unidos. A primeira vincula o graffiti ao surgimento do movimento Hip Hop,

nos bairros periféricos onde os migrantes marginalizados jamaicanos, mexicanos, porto-

riquenhos, haitianos e afro-americanos realizavam festas como forma de convivência, e

o graffiti como uma das linguagens do Hip Hop, de acordo com Oliveira; Tartaglia

(2009):

Essas festas criavam espaços de celebração da multiplicidade que atraía

jovens para a diversão e o encontro com os imigrantes porto-riquenhos,

mexicanos, haitianos e afro-americanos, entre outros, que assim transferiam

os conflitos violentos entre as gangues, ou seja, uma geopolítica urbana

(GOMES, 2002) de disputas territoriais para as disputas musicais (os desafios

de rap), disputas de dança (as batalhas de street dance e break) e as disputas

estéticas visuais (competições de quem fazia os melhores desenhos e os mais

difundidos pela cidade, os graffitis). Neste sentido, criavam práticas espaciais

conciliatórias através de elementos culturais. Todavia, isso não significa que

os graffitis de hip-hop dissimulavam totalmente os conflitos; pelo contrário,

num primeiro momento os graffitis foram estratégias territoriais que

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demarcavam a disputa por territórios entre gangues, especialmente de

imigrantes, para depois se tornar uma estética de conciliação para esses

grupos (2009, p. 60-61).

A segunda teoria afirma que os grafiteiros escreviam seus próprios nomes (tag)

ou denunciavam problemas sociais nos muros da cidade assim como nos vagões de

trem: o intento era dar visibilidade a esses agentes marginalizados socialmente que se

apropriavam dos espaços da cidade afim de se auto afirmarem como também para se

manifestar contra os regimes políticos e as injustiças sofridas. Nesta perspectiva, faz

parte desta gênese as pixações e os graffitis políticos presentes no maio de 1968 na

França, nos movimentos contra as ditaduras militares na América Latina, nos protestos

urbanos na Inglaterra, na luta pelos direitos civis nos EUA entre outros (KNAUSS,

2001 apud OLIVEIRA 2006, p. 108).

Se assumimos que as duas teorias são complementares, que o graffiti e a pixação

surgem do movimento Hip Hop, como também das manifestações individuais ou/e de

grupos resultantes de um processo de denúncia e de autoafirmação, fica evidente o

caráter politico destas artes, que utilizam a cidade como suporte para suas falas, sendo

uma forma de resistir na cidade.

Mas esses pixadores e grafiteiros eram cruelmente margilizados pelas

autoridades e pelo Estado: “Todavia, a ação dos grafiteiros será convertida em questão

policial, principalmente pela imprensa nova-iorquina, no início dos anos 70”

(KNAUSS, 2001 apud OLIVEIRA; TARTAGLIA, 2009, p. 63). Tratados como

vândalos, esses sujeitos foram ainda mais discriminados, além das discriminações

cotidianas que sofriam por serem migrantes, negros e pobres.

Para Oliveira e Tartaglia:

Nos anos 70, o graffiti era utilizado principalmente como uma assinatura que

demarcava os territórios disputados por grupos de jovens, negros e “latino-

americanos” em sua maioria, pelos bairros da cidade de Nova York. Até

então não havia uma unidade entre esses grupos que, apesar de sofrerem

preconceitos e discriminações perante a elite branca da sociedade

estadunidense, estabeleciam entre si uma grande rivalidade. A paisagem

então era demarcada com as assinaturas que identificavam as gangues

juvenis, também conhecidas como Tag. O espaço, assim, era dividido e

territorializado. (2009, p.64).

Nota-se que os primeiros traços na rua ainda que identificados como graffitis se

aproximam muito mais do que conhecemos atualmente por pixação, no entanto não

havia uma distinção muito clara do graffiti e da pixação, fato que acontece

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posteriormente com a evolução do graffiti e da pixação, esta última se assumindo como

um movimento distinto do Hip Hop e do graffiti.

De acordo com a segunda teoria da gênese do graffiti e da pixação, no Brasil os

primeiros riscos apareceram no ano de 1964, em protestos contra a ditadura, é clássica a

imagem da figura 5 com a pixação “abaixo a Ditadura”.

.

Figura 5 - Jovem pixando no prédio da Câmara municipal do Rio de Janeiro.

Fonte: http://metododialetico.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html acesso: 12/02/2013

Nas décadas de 1970 e 80 o movimento Hip Hop chega ao país, divulgando

ainda mais o graffiti, mesmo que nem todo grafiteiro esteja vinculado a esse momento.

Assim o graffiti e a pixação começam a se separar e se tornar movimentos distintos.

Em Salvador existe uma lacuna sobre a história destas artes. Encontramos uma

reportagem cujo titulo é Fachadas de Salvador a partir da década de 70: a arte dirigida

às coletividades, que relata as primeiras pixações que chamaram a atenção dos

moradores da cidade:

“Deus condena candomblé” foi a primeira manifestação em grafite que teve

certa ressonância junto à população. Mas, o autor da pichação nas paredes

dos viadutos nunca chegou a ser descoberto. Depois foi a vez de se falar na

crise que o esporte Clube Bahia atravessava, pela falta de renovação dos

jogadores. Em agosto de 1979 grupos de poetas iniciaram uma intensa

movimentação de manifestações artísticas, utilizando as paredes públicas,

fazendo reviver toda uma fase de exposição de ideias. A poesia de rua é

importante por ser a veiculação direta autor/povo, das variadas mensagens,

como por exemplo: “O operário é um poema censurado”.

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(www.blogdogutemberg.blogspot.com.br, Data de postagem 29/09/2011,

data de acesso1/01/2013).

Mesmo com essa noticia ainda é muito obscura a história do surgimento do

graffiti e da pixação em Salvador, tema esse que mereceria ser pesquisado em trabalhos

futuros. O grafiteiro TarcioV, em entrevista, contextualiza o graffiti em Salvador em

dois momentos

O graffiti em Salvador são duas etapas, essa galera que veio no fim da década

de 80 e que tiveram outras vivências e a galera que vem da década de 90,

início de 2000 pra cá, que é de onde eu faço parte, a relação era muito

envolvida com musica e skate, a relação com o RAP estava muito forte

também e o convívio com a cidade também (TARCIOV, 2011).

Contudo fica em aberto a história do graffiti e da pixacão em Salvador, mas com

alguns indícios de como chegaram na cidade e das mudanças ocorridas.

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Capítulo III

GRAFFITI E PIXAÇÃO: SUAS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS

Viemos trabalhando até aqui o graffiti e a pixação sem ter feito uma clara

distinção entre eles, com o propósito de afirmar que, apesar das diferenças que tais

manifestações tomaram, partiram de um lugar comum, não apenas geograficamente,

mas enquanto movimento. E ainda hoje, em alguns momentos, graffiti e pixação se

confundem.

Afinal o que é pixação? O que é graffiti? Responderemos essas perguntas não

buscando discutir detalhadamente as diferenças, como já foi realizado por diferentes

autores, mas procurando entendê-los enquanto duas ações que se apropriam da cidade

com estratégias diferentes.

Figura 6 - Parede pixada e grafitada na avenida Anita Garibaldi.

Fonte: Google Maps, acesso em 23 de outubro de 2012

3.1 O que é pixação?

Pixação é uma arte de rua, caracterizada por uma escrita estilizada do nome do

pixador e do grupo que participa (se participa de algum grupo), monocromática, quase

sempre feita com spray preto. Em Salvador, no entanto, observa-se pixações de outras

cores (verde, prata, azul, branco, etc.), e com tinta látex, utilizando-se rolinho ou pincel,

o que constitui uma forma de apropriação da cidade. Para David Souza, a pixação é:

caracterizada pela veiculação através da paisagem urbana, por sua vocação

clandestina e por seu aspecto estético com traços rápidos e apressados em

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tinta spray, cuja premissa é a divulgação através da repetição (...) A pichação

é usualmente associada a um discurso norteado pelas noções de vandalismo,

delinqüência, e poluição visual (SOUZA, 2007, p.19).

Nesta mesma perspectiva, Elizabet Souza et al. (2007, p. 4) afirmam que:

A pichação é entendida, por uma maioria de seus sujeitos-leitores, como um

ato de vandalismo, com o único e exclusivo intuito de depreciar o patrimônio

público. Em contrapartida o artista de rua Ivan Sudbreck afirma o sentido

ideológico das pichações: “a arte será sempre um reflexo social de um povo,

no nosso caso reflexo de um povo oprimido” (GITAHY, 1999: 23).

A visão de Ivan Sudbreck coincide com a dos pixadores entrevistados, que, em

sua maioria, compreendem a pixação como arte e uma forma de liberdade de expressão,

ao mesmo tempo em que dá visibilidade a esses agentes “invisíveis” e marginalizados.

Indagados se consideravam a pixação uma arte, 8 dos 9 entrevistados responderam que

sim. As respostas foram enfáticas:

O pixador Beck, de 23 anos, com 12 de pixação, nos diz por exemplo:

“Considero sim, porque as pessoas se expressam naquela momento, mesmo pixando

expressa ali seu momento de criatividade e um bocado de coisa mais, se tiver

estressado sai pra pixar, pronto já foi o estresse (BECK, 2012). Já o pixador Nelp (17

anos, 3 de pixação) enfatiza a questão da habilidade de quem faz, “pessoas têm

habilidade pra fazer outras coisas, a gente tem pra fazer isso aí”(NELP, 2012). Mito

(26 anos, 11 na pixação), uns dos pixadores com maior quantidade de riscos na cidade,

é sucinto na resposta quando fala que: “Sim claro, por isso que eu faço!”(MITO, 2012).

Smol (16 anos), iniciante na pixação, com 1 ano de experiência pintando nas ruas diz:

“Com certeza, porque é uma arte, não tem como negar, pode sujar, mas é uma arte,

pode ser proibido mas é uma arte” (SMOL, 2012).

Sano, 28 anos, 12 pixando, afirma:

Considero sim, a pixação vem desenhando na parede há muito tempo, desde

os homens da caverna que desenhavam nas paredes, e escreviam, faziam seus

desenhos, é uma coisa que já vem acontecendo há muito tempo. Na época da

ditadura mesmo, a galera botava abaixo a ditadura, diga não a violência, a

pixação vem ai há muito tempo, eu considero uma arte. Você vê a parede

branca e você escreve alguma coisa, mesmo que não seja um pixe, seja uma

frase, tudo pra mim é pixe.

Já para o pixador Neghet, 23 anos, 5 anos pixando, não considera a pixação uma

arte:

Não eu não considero uma arte não, porque como eu falei, a arte está ali para

algumas pessoas, exemplo, a arte é para ver, para as pessoas gostarem, essa é

a minha visão. A pixação é um vicio na verdade, tudo bem que a gente não

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protesta muito, mas nós estamos passando as nossas ideias, passando que

nós estamos vivos também, é o lado tipo oposto do que as pessoas querem

ver (NEGHET, 2012, grifos meus).

Assim esse pixador define a pixação como: “pixação é uma atitude das ruas, é

um vicio de quem não esta tendo a liberdade, não estão sendo vistos, e é amor pra

mim” (NEGHET, 2012, grifos meus)

A compreensão da pixação como vício e “adrenalina” também está presente nas

falas de outros pixadores como Skim (18 anos, 3 de pixação) “Claro (que é arte), pela

adrenalina, porque adrenalina corre no sangue, parece que a pixação é tipo droga,

você usa pela primeira vez e já foi, você vicia, não quer parar mais”(SKIM, 2012). O

pixador com 3 anos de experiência na rua, Nelp, 17 anos, resume a pixação assim: “Pra

mim é assim, é arte é adrenalina, você riscar rápido para não tomar um bote” (NELP,

2012).

Quando solicitei que os pixadores resumissem em uma palavra a pixação

surgiram as seguintes palavras: Adrenalina (3 vezes), Arte (4 vezes), Amor (2 vezes),

Protesto (2 vezes) e Vandalismo (1 vez). Desta forma, para os entrevistados, a pixação

envolve diferentes sentimentos como o amor e a “adrenalina”, ações como o protesto e

o vandalismo. Como arte, esses sentimentos e ações estão interligados.

Neste texto, adotamos a grafia da palavra pixação com “x”. Segundo Alexandre

Pereira:

A pixação, escrita assim mesmo com “x”, conforme o uso feito pelos

próprios pixadores, poderia sinalizar apenas uma suposta ignorância das

regras gramaticais, visto que a grafia correta da palavra seria pichação com

“ch”, mas é colocado por eles como uma maneira de diferenciar a sua prática

da definição comum de pichação. O que fazem não seria simplesmente pichar

um nome, uma palavra ou uma frase qualquer numa parede, mas sim pixar a

sua marca feita, ou melhor, desenhada com letras estilizadas, contorcidas e

com um formato anguloso. Não se pixa de qualquer modo, com qualquer

letra, mas com um formato previamente elaborado, com tipos de letras

criadas pelos próprios, demonstrando um padrão estético peculiar. Além

disso, há um diálogo com o espaço urbano, com o local onde esta marca será

“lançada”, é preciso que ela esteja em local de grande destaque na cidade.

Obter grande visibilidade é outro fator que torna uma pixação ainda mais

atraente (2010, p .65).

No entanto, para o poder publico e grande parte da sociedade civil, essa arte,

assim como o graffiti, são considerados como crime ambiental, enquadrados na Lei nº.

9605/98:

Lei dos Crimes Ambientais. Lei nº. 9.605/98. Seção IV: Dos Crimes contra o

Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural. Art. 65. Pichar, grafitar, ou

por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano. Pena –

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detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Se o ato for

realizado em monumento ou coisa tombada em virtude de seu valor artístico,

arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e

multa.

Decreto nº. 3.179/99. Seção IV: Das Sanções Aplicáveis às Infrações Contra

o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural. Art. 52. Pichar, grafitar ou

por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Multa de R$

1.000,00 (mil reais) a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais). Parágrafo único. Se

o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, em virtude de seu valor

artístico, arqueológico ou histórico, a multa é aumentada em dobro.

(BRASIL, 1999 apud BARCHI, 2007, p.3)

Nesse contexto, convém mencionar uma pixação, em uma avenida no bairro do

Itaigara que dizia, “roubar é arte e arte é crime”. Observa-se nesse discurso uma crítica

social ao enquadramento da pixação como crime, em um país onde a corrupção impera.

Nesse sentido, ao se pensar na pixação como uma prática que se apropria da cidade,

com um discurso próprio, temos um processo de criação da cidade como obra

(LEFEBVRE, 1991). Sob essa ótica, o direito à cidade deveria abarcar novas

necessidades e as demandas destes sujeitos/agentes.

Figura 7 – Pixação de Bongos com rolinho e spray, rua Campo Santo, Federação - Salvador .

Fonte: Bongos, 2012

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Figura 8- Pixações com spray de Smol em Salvador.

Fonte: Lucas Silva.

3.2 O que é Graffiti?

Assim como a pixação, o Graffiti é uma arte de rua efêmera, no entanto, mais

aceita do que a pixação, por ter uma estética mais próxima das artes plásticas: é

policromática, com desenhos de personagens, assim como murais temáticos; sua grafia

é tridimensional, tem efeitos como sombra e luz. É um elemento da cultura Hip Hop,

mas hoje não está necessariamente vinculada a ela. É uma arte que tem saído das ruas e

entrado nas galerias, hoje tem maior reconhecimento social, e seus agentes vêm sendo

vistos como artistas. Para o grafiteiro Denissena, a rua é a essência, “sem perder o

essencial, que o graffiti é uma linguagem transgressora, que está nas ruas, por mais

que esteja nas galerias, nos museus e na moda, me refiro a estampas e tal. Mas a

essência é a rua mesmo” (2011).

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O graffiti apresenta grandes variações de técnicas e estilos, tem um forte apelo

social e de crítica, assim como de valorização da cultura popular.

Figura 9- Graffiti feito por Marcos Costa (na foto), no qual estão presentes elementos da cultura

afro-brasileira e africana. Fonte: Marcos Costa.

Outra questão presente nas entrevistas com os grafiteiros é refere-se à

democratização da arte. O graffiti, ao se apropriar da cidade, permite que todos tenham

acesso a essas obras. Para o grafiteiro Tarcio V:

Por mais que vivemos numa cidade que tenha uma influência muito forte da

cultura da miscigenação, a gente tem uma carência dessa vivência. Tipo a

periferia... o único pico de acesso à cultura que a periferia tem é a música e

propriamente o grafite que é artes plásticas; difícil uma companhia de teatro

ir no gueto. Então eu acho que é mais uma força. O grafite não precisa entrar

num espaço para você viver o grafite, você só precisa passar na rua e ele já

esta lá (2011).

Nesta mesma direção, Marcos Costa afirma:

Na medida em que vivemos numa sociedade com muitas desigualdades,

então, quando você pinta na rua você esta dando oportunidade para várias

pessoas perceberem a obra de arte, estarem entrando em contado com ela. É

massa pintar na cidade por causa disso: poucas pessoas vão a museu e a

galerias! Quando você pinta na rua você dá oportunidade de vivência artística

aos mais cults e aos mais leigos, o que torna a arte democrática, acessivel; e

também trata de temas que a cidade vive como racismo, problemas de

educação, moradia, transporte, violência; tem temas que são bons e você fala

e todo mundo se identifica, vivendo aquela onda.(2011).

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O graffiti tem se afirmado e conquistado espaços na cidade, como ação

afirmativa de sua identidade de resistência. Dando mais graça aos muros da cidade, no

meio do caos das metrópoles, é possível contemplar um graffiti, como contraponto

cultural e crítico a e em meio a tantas propagandas cujo discurso é claro: COMPREM!!

Figura 10 - Graffiti de Calangos na paisagem da Metrópole Soteropolitana.

Fonte: Rua de Salvador (Facebook)

3.3 Semelhanças e diferenças no espaço urbano.

Ao definirmos graffiti e pixação já trabalhamos um pouco as semelhanças e

diferenças, mas nesta seção procuraremos entender como essas práticas se manifestam

no espaço urbano.

Inicialmente é preciso ter claro que, apesar das semelhanças, não são a mesma

coisa, embora seja muito frequente usar os termos como sinônimos. Neste contexto, o

grafiteito Matias comenta:

É diferente, se você ver as duas coisas vai ver que é diferente, agora tem o

mesmo espírito a mesma ideia, é arte, os dois são artes, mas duas formas

diferente de arte. Pixação tem outra ideia, e o graffiti tem outra ideia também,

mas mesmo assim é arte. É engraçado porque as pessoas não sabem

diferenciar a pixação do graffiti, você vê uma obra de pixação e outra de

graffiti, pra mim é lógico que é algo diferente (2011).

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As semelhanças estão no caráter destas artes que, no espaço urbano, apresentam

por vezes, as mesmas intenções, como transgressão de normas, reivindicar direitos,

dizer o que se pensa, expressar-se artisticamente, mostrar o que outros meios de

comunicação não mostram, denunciar questões sociais, fazer propaganda ou,

simplesmente, apresentar traços ou a própria assinatura (SOUZA et al., 2007).

Essas artes são uma forma de expressão urbana, e seus riscos estão em

consonância com a urbanidade, assim como com o estilo de vida pós-moderno. O

grafiteiro Afro afirma que sua arte está atrelada à morfologia urbana, aos traços retos

dos prédios, em suas palavras: “Eu faço mais letras, as minhas letras têm muito a

questão da geometria, elas não têm praticamente curva, é só reto, então eu fico muito

olhando os prédios, as faixadas, às vezes eu lembro uma letra, com uma janela, sei lá

uma telha, o que der ideia de uma letra, fico muito olhando os prédios, as coisas duras

mesmo, mais geométricas” (AFRO, 2011).

De acordo com Penachim:

As próprias técnicas utilizadas, a rapidez do traço do spray, a sobreposição de

elementos visuais e os temas abordados refletem a influência da experiência

urbana nestas atividades, cuja própria forma de existência encerra alguns dos

elementos desta metrópole que padece de infindáveis intervenções sígnicas e

rápidas transformações, em que tudo parece prestes a se desfazer no ar, sem

certeza alguma de continuidade ou permanência (PENACHIN, 2003:3 apud

SOARES, 2007, p.6).

Os traços e tempos do graffiti e da pixação se diferenciam, no primeiro traços

mais detalhados e o tempo do fazer mais longo, na pixação traços e tempo mais rápidos.

Ambos demarcam a cidade e se apropriam dos espaços urbanos, expondo um discurso

próprio.

Diferentemente do que ocorre em outras cidades, como no Rio de Janeiro, existe

em Salvador uma ética de não pintar/riscar por cima de outro graffiti ou pixação.

Segundo Souza:

Em entrevista publicada no “Caderno B” do Jornal do Brasil, Ziraldo (na

posição de entrevistador) pergunta ao grafiteiro “Toz” do grupo Fleshbeck

Crew da zona sul do Rio de Janeiro: “Se qualquer um pode chegar, como

impedem que um pinte em cima do outro?”. A resposta do grafiteiro: “Há um

consenso entre os grafiteiros: não é permitido entre a gente um cobrir o outro.

A não ser que tenha autorização do próprio. O pichador não. Quando fazemos

um graffiti na rua tiramos logo a foto porque sabemos que no próximo dia

estará pichado”7

(SOUZA, 2007, p.20).

Já em Salvador a realidade é diferente como nos conta Afro: “Aqui rola muito a

questão assim, lá fora é muito normal um cara fazer um graffiti agora, e vim outro e

apagar, não vai rolar nenhuma treta, aqui tem a questão do respeito, tem lugares que a

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gente grafita e o cara que pixa não vai pixar, tem lugares que estão pixados e que não

vamos grafitar por respeito” (2011).

3.4 Riscando a cidade como obra

A cidade de Salvador, como metrópole, carrega um visgo da normatização,

planejada pelas instituições, principalmente o Estado e as firmas, que transformam o

espaço urbano em lugares homogeneizados, a cidade se tornando um reflexo (e uma

condição) das relações de produção. Para Henri Lefebvre (1991), a cidade é uma

mediação das mediações, entre as ordens próximas e as ordens distantes, desta forma a

cidade é vista como obra: “Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na

cidade, é uma produção e reprodução dos seres humanos por seres humanos, mas do

que uma produção de objetos” (1991, p. 47).

Deste modo, os grafiteiros e pichadores, ao se apropriarem da cidade, sendo

parte da ordem próxima, criam a cidade como obra, e seus graffitis e pixações se

inscrevem na cidade a partir de suas práticas. Segundo Lefebvre:

se considerarmos a cidade como obra de certos agentes históricos e sociais,

isto leva a distinguir a ação e o resultado, o grupo (ou os grupos) e seu

produto sem com isso separá-los. Não há obra sem uma sucessão

regulamentada de atos e ações, de decisões e de condutas, sem mensagens e

sem códigos. Tampouco a obra sem coisas, sem uma matéria a ser modelada,

sem uma realidade prático sensível, sem um lugar, uma natureza, um campo

e um meio. As relações sociais são atingidas a partir do sensível; elas não se

reduzem a esse mundo sensível e, no entanto, não flutuam no ar, não fogem

na transcendência. Se a realidade social implica formas e relações, se ela não

pode ser concebida de maneira homóloga ao objeto isolado, sensível ou

técnico, ela não subsiste sem ligações, sem se apegar aos objetos, às coisas

(LEFEBVRE, 1991, p.48-49).

Assim, a cidade é criada tanto pelos agentes aqui estudados como pelos agentes

hegemônicos, que ditam padrões e normas ao espaço urbano, transformando-o em um

campo de disputas. A cidade é palco das ações humanas, assim como dos conflitos, e

essas artes se movem entre essas duas searas, da ação e do conflito.

O grafiteiro Matias, por exemplo, tenta transformar em seus graffitis a cidade:

Pra mim é uma coisa que seja positiva, que o povo goste mesmo, que além de

você querer se expressar, eu acho importante, também deve ser consciente

que as pessoas vão estar vendo, você tem que saber qual é seu propósito, qual

é a sua ideia no graffiti, eu acho bem importante que seja uma coisa que

curte, as pessoas tem outras ideias, tem a pixação, eu acho importante porque

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tem outras ideias, faz uma coisa diferente, e também pra fazer uma coisa um

pouco das pessoas mesmo, eu também gosto de fazer uma coisa para mudar o

ambiente, para uma coisa melhor, eu acho importante o grafitteiro fazer isso

(MATIAS, 2011).

É interessante perceber que a cidade para esses sujeitos só tem significado

quando pixada ou grafitada, que suas ações constroem esse espaço, a cidade recebendo

novos significados, representações e sentimentos. Quando o pixador Beck vê a cidade

pixada com suas pixações sente prazer, em suas palavras: “Oxe, uma sensação gostosa

que nem gozar”. Ao mesmo tempo, a ausência destas artes na cidade faz com que ela

perca seus encantos, como complementa o mesmo Beck: “Se a cidade não estiver

pixada e grafitada é horrorosa, é ou não é!?, se não tiver um Pixe, um graffiti Salvador

não vai ter graça”. O grafiteiro Marcos Costa vê a necessidade da cidade “ter arte”,

quando nos diz a respeito do papel do graffiti no espaço urbano: “Dar mais alegria para

a vida das pessoas, a cidade cada vez mais poluída merece ter mais graffiti, quanto

mais a cidade está poluída, mais necessidade de colorir a gente tem. E também cidade

sem graffiti não é cidade, eu acho que tem que ter arte na rua mesmo. A cidade sem

muros riscados não tem graça nenhuma!”(2011).

O espaço urbano como campo simbólico, mas não somente, como campo de

lutas sociais, carrega múltiplos significados (CORREA, 1997), o espaço vivido é um

contínuo de experiências, campo das representações e da afetividade. São notórias as

experiências e afetividades criadas pelos grafiteiros e pixadores ao riscar a cidade, que

passa assim a se fazer presente na vida destes sujeitos, a cidade interferindo no sujeito e

o sujeito interferindo na cidade.

3.5 A cultura da rua e seu poder na cidade

Ao escolhemos pesquisar essas artes na cidade, estamos na realidade analisando

culturas, de modo que existe uma estreita relação entre cultura e poder como defendido

por Denis Cosgrove (1998). A cultura como forma coletiva de experimentar e

interpretar o mundo manifesta claramente essa dimensão de poder, porque as

possibilidades de cada grupo para viver sua cultura não se dão em igualdade de

condições. Assim, segundo o mesmo autor, existem culturas dominantes e

subdominantes ou alternativas. Com certeza afirmamos que o graffiti e a pixação, como

práticas culturais urbanas, se classificam como culturas alternativas, pois os valores que

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as fundamentam são essencialmente diferentes daqueles correspondentes ao padrão

dominante e oficial.

Figura 11 – Graffiti da série “O grito” na Ladeira do Garcia, dialogando com o lugar.

Fonte: Google Maps, acesso 25 de setembro de 2012.

Isso mesmo que hoje exista uma abertura e aceitação do graffiti por parte dessa

cultura dominante, ao colocar essa arte em museus e galerias, enquadrando-o dentro de

uma logica mercantil, da qual o graffiti, desde suas origens, nunca fez parte. Como nos

lembra o grafiteiro Denissena, “a essência do graffiti é a rua”. Deste modo há uma

contradição dentro desta cultura alternativa, que não ocorre com a cultura da pixação, a

qual dificilmente será mercantilizada, por sua essência de transgressão e de

contravenção, e por ter uma estética pouco enquadrada nos padrões hegemônicos do

“belo”.

Para Serpa, apoiando-se em Santos, “a cultura é um motivo de conflito de

interesses nas sociedades contemporâneas, um conflito pela sua definição, pelo seu

controle, pelos benefícios que assegura” (2011, p. 142). Essas grafias nas/das cidades,

ao se contraporem às culturas dominantes, geram novas formas de sociabilidade: o

graffiti e a pixação se configuram como a expressão de um movimento político, pois os

lugares dos grafiteiros e pixadores – periferias pobres, conjuntos habitacionais, bairros

populares – estão presentes em cada pintura e em cada ação (MONTEIRO, CORDEIRO,

2011).

Capítulo IV

DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DA PIXAÇÃO E DO GRAFFITI

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Caminhando pelas ruas de Salvador, as cores e os desenhos dos graffitis, e os

traços fortes das pixações, como um conjunto de símbolos que eu não conhecia,

chamavam minha atenção, e fiquei intrigada para decifrar o que ali estava escrito. Quem

eram os sujeitos/agentes que faziam da cidade uma verdadeira galeria popular? Assim

transformei minhas inquietações num objeto de pesquisa, ao mesmo tempo em que

conhecia essas práticas e começava a desenvolver meus graffitis e pixações na cidade.

Isso permitiu uma relação próxima e de confiança com esses agentes aqui analisados,

que no meu cotidiano são verdadeiros parceiros e inspirações para minha ação no

espaço urbano. Neste capitulo, apesar de o texto ser uma elaboração individual, o

conhecimento e o discurso se constituíram enquanto uma produção coletiva, fruto de

minha experiência com esses agentes, através de conversas e entrevistas livres e

posteriormente sistematizadas. O capítulo que se segue representa, portanto, um espaço

de diálogo no qual esses sujeitos/agentes tiveram voz ativa.

Para melhor compreensão dividiremos em dois subcapítulos, um sobre os pixadores e

suas pixações e outro sobre os grafiteiros e seus graffitis.

4.1 Pixadores: seus trilhos na cidade

No reconhecimento do outro, a partir da identificação, conheci no curso de

geografia da UFBA o pixador Bongos, também estudante de geografia, que abriu os

caminhos e estabeleceu pontes com outros pixadores. Um dia conversando sobre a

pixação e do meu interesse sobre o assunto, Bongos me convidou para participar do

Baba do Pixe, um encontro aos domingos de manhã na praia do Jaguaribe, entre

pixadores para bater um baba. Passei a frequentar esse baba, e comecei a conhecer esses

pixadores, assim como o universo da pichação em Salvador.

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Figura 12 - Pixe demarcando o local do “Baba do pixe”.

Fonte: Julia Monteiro.

A maioria dos pixadores são homens, encontrei nesses encontros duas ou três

meninas, e apenas uma era pixadora, a Tata. Consegui realizar entrevista com nove

pixadores, de diferentes bairros de Salvador, e com experiências distintas na pixação.

No quadro 1, podemos observar quem são esse pixadores entrevistados.

Quadro 1- Perfil dos pixadores entrevistados

Tag

Idade Anos

Pixando

Bairro de morada Etnia/cor Ocupação

Boys 26 12 Cajazeiras Indígena Vigilante

Skim 18 3 Baixa de Quintas Negro Desempregado

Nelp 17 3 San Martin Negro Estudante

Beck 23 12 Itinga Negro -

Neghet 23 5 “Segredo”* Negro Trabalha

Smol 16 1 Novo Horizonte Negro Estudante

Mito 26 11 São Cristóvão Negro Repositor de Mercado

Sano 28 12 São Cristóvão Negro Trabalha

Menos AL 23 10 Itinga Negro Motorista

Fonte: Trabalho de Campo, 2012.

*resposta dada pelo pixador que não revelou o bairro de moradia.

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Podemos perceber a diversidade entre os pixadores, mas algumas semelhanças:

a faixa etária é dos 16 aos 28 anos, todos os lugares de moradia são bairros populares de

Salvador e Região Metropolitana, todos se auto identificaram como negros, exceto um

que se identificou como indígena. Cinco destes pixadores trabalham, outros dois

estudam, e dois estão desempregados, derrubando o estigma que esse agentes são

“vagabundos e desocupados”. O tempo de experiência na pixação também é diverso,

com os mais experientes com 12 anos de prática e os menos experientes com um a três

anos de pixação nas ruas. Apesar da diversidade nota-se uma identidade comum entre

os pixadores, todos são jovens, residentes de bairros periféricos, em sua maioria afro-

brasileiros.

Figura 13 – Pixação na Avenida Tancredo Neves coma frase “Favela é favela e pra mim é uma terra!”

Fonte: Google maps, acesso em 25 de setembro de 2012.

Mas quais são os motivos que levam esses jovens a riscar a cidade? Skim coloca

a pixação como forma de lazer que “tira o estresse da correria do cotidiano”. O pixador

Nelp aponta esta prática como um meio de socialização entre os colegas, e o “fator

adrenalina”, quando diz: “Porque eu gosto, eu gosto da adrenalina, de sair com os

caras pra riscar”. Beck acrescenta: “Por que eu pixo? Porque eu amo pixar mesmo. A

motivação eu não sei, eu acho que é vendo um dia a pós dia, um risco na parede, assim

eu fico mais contente na minha vida”. Ao dizer isso, nos coloca a importância de se ver

na cidade e como essa expressão artística lhe traz felicidade. A seguinte reflexão foi

feita por Neghet:

A gente é pixador, pixador é um vândalo, um cara fora da lei, aí vem os

outros e pergunta, por quê? Se é vandalismo por que eu estou fazendo? É

porque, na verdade, eu acho aquilo livre, liberdade de expressão, e não é só

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porque tem gente que não gosta e que não é apoiado, é que vamos parar. (....)

Por que? Sinceramente eu não sei, eu sei porque não parar! Porque é aquela

coisa, as pessoas gostam muito de ir com o sistema, o sistema gosta muito de

controlar, controlar o que fazer e não fazer, eu acho errado, porque como eu

falei, nós somos livres, e a gente pode fazer o que quer, tipo tudo bem que

tem alguns pixadores que, como a pixação é vandalismo, passam do limite,

atingindo algumas pessoas, eu tento o máximo não fazer isso, (...), mas, pixo

tudo que tiver pela frente, prédio, não paro porque se eu tiver que parar,

outros talvez também parem, e se morrer a pixação...

Nesta reflexão de Neghet fica evidente que uma das motivações é a liberdade de

expressão, a vontade de se expressar socialmente e de se contrapor ao sistema, que

impõe a homogeneização da vida. Nesta perspectiva Smol afirma que

Eu sou diferente da maioria, porque se eu pudesse em todo pixo meu, eu

deixaria uma frase, ou de incentivo, ou de protesto, incentivando a população

a pensar mais no que eles estão fazendo, para tentar sair dessa vida tipo que

“normal” sabe?! Porque o sistema oprime a gente de toda e qualquer parte, e

se a pessoa parar para pensar vai ver que está tudo errado. Tem que mudar o

seu jeito de agir, tem que pensar mais nas coisas.

O pixador Mito expõe sua admiração pela arte da pixação como uma das

motivações, assim como o fato de nunca ter pensado no porque fazer. Neste ponto essa

pesquisa pode dialogar com os sujeitos fazendo o exercício do pensar na pixação, nos

porquês dessa atividade: “Rapaz acima de tudo porque eu admiro a arte mesmo, das

letras da pixação, dos letrarios, aqui de Salvador, eu acho bonito, e pela adrenalina

também. As motivações, rapaz, eu risco porque... nunca parei para pensar nisso.

Porque é divulgado, eu gosto de riscar e depois passar num ônibus e ver meu nome na

parede me dá uma... qual é mesmo a palavra, eu fico alegre de ver meu risco”. Este

último ponto levantado por Mito também está presente no discurso de Sano quando diz

que “às vezes é pelo ego de você passar e ver seu risco lá, e falar ‘aquele ali é meu’, os

caras respeitam seu trabalho, eu fico viajando quando vejo um risco meu, e às vezes

por protesto também, desestressa da semana, motivação da hora mesmo”.

São várias as motivações levantadas pelos pixadores para riscarem as ruas da

cidade do Salvador, sendo assim, o que é que esses jovens escrevem, o que dizem essas

pixações que modificam as paisagens urbanas? Antes de responder essas perguntas é

necessário compreender como esses pixadores se organizam. A maioria dos pixadores

participa de uma gangue, CREW ou bonde, que são coletivos de pixadores que

assumem uma identidade, baseada no nome desse coletivo, que será riscado por todos

os integrantes desse grupo juntamente com sua tag. Utilizo esses três termos, CREW,

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Bonde e Gangue, porque há divergência em relação à nomenclatura, pois alguns

pixadores relacionam gangue à criminalidade, “ao ladrão”, preferindo ser chamado com

outros termos. Para fazer parte de um CREW é muito importante o diálogo com os

fundadores. Mito ressalta essa questão do diálogo: “Rapaz, a gente vai se conhecendo,

vai trocando ideia, vendo que tem coisa em comum, e forma”. Outro ponto refere-se às

tintas, às vezes é um critério para participar, ou seja, o pixador que quer entrar deve dar

para o grupo algumas latas, mas essa relação é diferente de CREW para CREW. O

pixador Neghet nos conta um pouco desse ritual de entrada:

As gangues sempre têm um líder, primeiro pra entrar tem uma certa, não

burocracia, mas tem um sistema para você entrar, você conversa com quem

está na linha de frente, mas tem um sistema pra você entrar, umas você tem

que dar uma lata pra entrar, hoje em dia é mais fácil, você tem alguém que

conhece essa pessoa e tal, e te coloca na pixação. E tem outra coisa que às

vezes acontece, que é a união, que é uma coisa rara, tem a 163, que é a

reunião de todas as gangues, a gente conversa.

Essa gangue(família) 163, a qual se refere Neghet, é uma associação de várias

outras gangues, CREW e bonde sendo eles LE, CV, ID, CE, 40L e RQ, que se reuniram

e, através do diálogo, criaram esse coletivo de coletivos,. E atualmente em Salvador

vem crescendo o número de pixações com essa marca: 163. Ë interessante perceber a

capacidade de organização e coletividade que unem esses pixadores. Sano coloca a

importância da associação entre as gangues para que elas tenham visibilidade: “E se

tiver como coligar com uma sigla fica mais fácil de ficar conhecido, se não você tem

que riscar mesmo para ser percebido, ter destaque”.

Os entrevistados participam dos seguintes coletivos, que podem ser identificados

nas pixações soteropolitanas: OCP - Os Caras de Pau; F13; FB - Fogo na Bomba; OSG

da Estrada Velha, Os Sem Gratidões; TEV- Terroristas Da Estrada Velha; EAV -

Expressão Artístico Visual; OSM - Auxilio Da Maconha; R15 submisso; 40 L - 40

ladrões(Figura 14); RQ - Reação Química; FBE; CE - Comando Eterno; LE - Liberdade

de Expressão; OL - Os loucos; APS - Arte Protesto e Sobrevivência; ARC - Arte Crew;

163.

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Figura 14 -Pixação de Neghet, identificando as gangues 40L e 163.

Fonte: Neghet.

Essas são as siglas que, acompanhadas das tag dos pichadores, expressam os

discursos desses agentes, no entanto muitas pixações estão acompanhadas por frases de

protesto, como disse Smol em citação anterior. Algumas frases chamaram minha

atenção durante essa pesquisa como a presente na pixação do viaduto do Politeama, que

dizia: “enquanto eu estou no tráfico o filho do boy está surfando”. Na pixação de Mito,

no bairro de São Cristóvão, no momento que construíam mais um shopping em

Salvador, a pixação dizia: “não queremos mais shopping, queremos cultura”. Na

figura10, temos uma tag de Smol com frase contra o sistema.

Figura 15 - Tag de Smol, acompanhada da

frase “O sistema me abala mas não me

intimida” - Av. Bonocô. Fonte: Lucas Silva.

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A pixação com essas frases torna os espaços públicos lugares para se fazer

politica, para Smol: “se dependesse de mim o propósito da pixação seria só protesto”.

É certo que nem todas as pixações apresentam frase de cunho político, como afirmaram

diferentes pixadores; Mito, por exemplo, admite que: “muitas das vezes a gente

protesta, mas não vou mentir, eu não sou muito protestante na atualidade não, eu

simplesmente faço pela pura arte, não estou muito ligando pelo protesto, não”.

Outrora, como afirmaram alguns de nossos entrevistados, havia mais frases de

protesto, e que isso hoje vem diminuindo nas pixações. Sano fala “Sim, tem sim,

ultimamente eu não tenho visto muitas frases, mas já aconteceu várias frases políticas

na pixação, para pessoas, político, governador, a frase para sociedade passar e ver o

que é a pixação também”. Essas frases demonstram também a dimensão política desta

arte, que não se limita somente à frase direta de protesto, mas abrange também a atitude

de chamar atenção da sociedade para esses sujeitos “invisíveis”. Nesta perspectiva,

Beck aponta que “com certeza (é política), não sei nem como te explicar, como reflete,

sei que faz diferença, é um modo que expressa mesmo, chama atenção de muitas

pessoas”. Segundo Gitahy, a pixação, ainda que desarticulada da luta política

organizada, é uma prática que apresenta também aspectos políticos:

Não é por acaso que a pichação surge e se intensifica nos grandes centros

urbanos, mesmo nos países menos desenvolvidos. A pichação aparece como

uma das formas mais suaves de dar vazão ao descontentamento e à falta de

expectativas. (...) É uma guerra feita com tinta, todos se conhecem e se

identificam pelo tipo de código pichado. Um grande abaixo-assinado para a

posteridade, no qual cada um que participa deixa sua marca (GITAHY, 1999,

p. 24).

Assim, esses agentes trilham a cidade, deixando seus riscos, com uma identidade

coletiva e com frases de resistência. Mas como acontece o ato de pixar? Essa foi uma

das perguntas realizadas durante a entrevista, que será respondida aqui com base nas

respostas dadas e com base em minha pequena experiência na pixação.

Era domingo de noite, coloquei na mochila algumas latas3, peguei a bicicleta e

percorri a avenida de vale Anita Garibaldi, não havia muitos carros e o movimento

estava fraco; parei diante de um ponto de ônibus vazio e risquei com a cor prata o ponto

com um desenho e uma frase: Pixar é arte! Olhando atentamente e com muita adrenalina

observava se a policia não passava, o movimento foi rápido e minha pixação ali ficou. A

3 Termo utilizado para referir-se às tintas de spray.

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situação me fez lembrar a primeira vez que pixei, nas ruas de San Jose, Costa Rica,

onde deixei o meu primeiro pixe, na ocasião não estava só, mas a adrenalina também foi

alta. Subi na bicicleta e fui visitar o pixador Bongos: chegando em sua residência

compartilhei uma lata e novamente estava na rua para riscar, a ladeira da Barra foi o

pico4 onde Bongos já havia marcado a tela; ele, mais experiente, começou, escreveu sua

tag, e eu gritei “olha os homens”5, quando passava um camburão da policia; Bongos

logo jogou a lata na casa vizinha, e a adrenalina subiu novamente, sem a lata voltamos

para casa, mas a rua foi demarcada.

Esse pequeno relato exemplifica como a pixação é realizada, ela pode ser uma

ação individual, ou em grupo, com dois, três ou quatro pixadores. Skim resume o ato de

pixar com as seguintes palavras: “Adrenalina traduzindo tudo, porque a gente risca

aqui hoje, aí toma um bote dos policiais, puxa, é chato? É, mas quando você sai de lá

de dentro você quer mais, porque a adrenalina corre no sangue. Quanto mais você faz

mais você quer. Eu pixo mais em grupo, sozinho eu ainda não tive essa experiência

não”. O pixador Nelp relata sua experiência: “Sai eu e mais um ou dois, nunca só. Não

tem hora, quando tá limpo a gente risca”.

Nas experiências de quase todo pixador a polícia exerce um papel brutal. Por ser

crime, a pixação é muito reprimida pela polícia: foram inúmeras as situações relatadas

nas quais houve abuso de autoridade e agressão física aos pixadores. Dos nove

entrevistados, apenas Smol, que tem um ano como pixador, nunca foi abordado pela

polícia.

Figura 16- Pixação de Mito, Raif, Smol, Saho, questionando “se a policia me para, quem para a

policia?”. Fonte: Lucas Silva

4 Gíria para referir-se ao lugar que será pixado, assim como lugares altos e de difícil acesso.

5 Gíria para chamar a policia.

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Trago alguns relatos sobre essa abordagem policial partindo das falas dos

pixadores, quando indaguei se já haviam sido abordados pela polícia:

Várias vezes, rapaz, eu já fui parado, eles levaram minhas tintas, teve outra

vez que nem foi a polícia foram os soldados, que me levaram preso, meus

pais foram me tirar e tal. Fora que a gente sai muito no claro, é raro a gente

sair de noite, tenho muito amigo meu que já rodou , tem um da ASP, que tem

a boca cheia de afta, porque pintaram a boca dele com spray. Eles já me

pintaram, pintaram meu chapéu, pintaram roupa, pintaram tudo. Taí abuso de

poder (NEGHET, 2012).

Já sim, várias vezes, já fui preso, foi de uma maneira..., muitas vezes eles dão

conselho dizem que aquilo não tá certo, mas muitas vezes eles agridem as

pessoas, oprimem, pelo simples ato de estar fazendo a arte, eu acho

desnecessário (MITO, 2012).

Já, várias vezes, já tomei uma coroada, já tomei spray de pimenta, o último

rodo que tomei o cara colocou spray de pimenta no meu rosto, mas também o

risco foi dado, já entrei na viatura várias vezes, mas nunca assinei, já tomei

um bocado de pau, já perdi lata de spray varias vezes (SANO, 2012).

Percebemos assim como o Estado, com (ou pelo) os braços da polícia, se

relaciona com esses sujeitos, tratando-os como marginais e se utilizando da força física

e do poder para desrespeitar os direitos humanos, tendo em vista que a maioria das

ações não está em consonância com a lei.

Mesmo com tantas intempéries, os pixadores não deixam de agir, mas quais são

os lugares de preferência para demarcar a cidade? Qual é a espacialidade dessa arte na

cidade?

O centro da cidade é o principal lugar de ação dos pixadores, sendo o lugar onde

se concentram visualmente as maiores e mais diversas pixações, e, como veremos mais

adiante, o graffiti também. A fala de Sano é bem esclarecedora neste sentido: “No

centro onde passa a maior parte do pixadores, e todos os bairros, alguém tem que

passar pelo centro, o centro é o lugar mais pixado da cidade, centro e Comércio.

Porque nesses lugares você passa a ser reconhecido rápido, como eu disse lugares que

passam mais gente, pixadores passam para estudar ou trabalhar, no centro” (SANO,

2012). O Centro tem na pixação o papel de centralidade também, como ponto

estratégico para ganhar notoriedade nesse meio, e, consequentemente, ser mais visto (e

em alguns casos escutado) socialmente.

Além do centro, os picos mais altos também são lugares de destaque para a

pixação, quanto mais alto e mais difícil o acesso, maior será a divulgação e admiração

entre os pixadores. Para o pixador Skim,

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Hoje em dia mesmo, o que eu procuro, só não tenho aquela coragem, é de

fazer pico, pico veio, subi no terceiro andar de um prédio, bagaçar lá em

cima, é o que eu procuro, mas não tenho aquela coragem ainda, fico meio

cabreiro. Por que são os lugares de mais divulgações, porque riscar no chão

todo mundo risca, tem uma parede ali, do hospital, chega ali todo mundo

risca, o pico não, o pico são raros, o pico só faz mesmo quem gosta mesmo,

quem é barril, o cara sobe e faz mesmo. (2012)

Figura- 17 e 18- Lugares considerados picos pixados por diferentes pixadores e pela gangue 163.

Fontes: 163 e Scank.

Apesar do centro e os picos serem os lugares preferidos pelos pixadores, as

avenidas principais e com grande circulação de pessoas e/ou automóveis são também

escolhidos como telas para pixação, como defende Smol: “Via públicas onde passam

ônibus, pra mim é onde passa ônibus, porque é maior a divulgação da galera da favela,

sabe?! Que passa e vê, e tem picos também, porque picos é só pra quem entende e vai

olhar para cima, e vai ver a pixação, isso aumenta a fama e ibope do pixador”.

Porém, qualquer lugar pode ser pixado, como diz Beck: “O lugar mesmo é o

muro branco, qualquer lugar, estratégia não tem. Olhou, chegou, detonou, já foi”. Para

o pixador Mito, a questão da permanência e da visibilidade são critérios para selecionar

os picos: “Eu gosto de muro chapiscado que vai durar um tempo, e tinta não é barato

não, e também gosto de muros de destaque, muros recém pintados”.

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Andando pelas ruas de Salvador, dos bairros nobres aos bairros populares, em

avenidas de grande circulação, a pixação é um elemento da paisagem urbana, é incrível

a espacialidade que um pixador pode desenvolver na cidade, a exemplo de Mito, que

tem seus riscos em diversos bairros e áreas da cidade.

A pixação faz parte da cidade de Salvador, e logo na entrada da cidade, na

BR324, é possível identificar na paisagem essa arte, que se destaca pelas letras e traços

em meio a placas, casas, e tudo que existe em uma metrópole.

Para finalizar esse subcapitulo, analiso e apresento as identidades do pixador,

assim como sua relação com os lugares pixados.

O pixador Bongos, no vídeo Psicopapo - Pixação é arte6, ao se referir a uma

pixação feita na Universidade Federal da Bahia, disse que “Pixação nada mais é, nesse

caso aqui, que pertencimento ao lugar, o se sentir pertencente, o ser visto, de dar

visibilidade às pessoas nos espaços públicos, que muitas vezes são privados da gente, a

gente que é marginalizado na verdade”(BONGOS, 2011)

“A identidade do pixador é colocar seu nome nos muros, participar do

movimento, isso é ser pixador”. É assim que Mito se identifica como pixador. Neghet

ressalta um ponto importante:

Pixador eu sou, só que sou trabalhador, estou fazendo as correrias por fora,

mas me considero pixador sim. Eu acho que tipo você inventa um vulgo, cria

um vulgo, começa divulgar na parede, conhecer outras pessoas, você fica um

tempão parado sem riscar, o dia que você bota um risco na parede uma

pessoa vai falar: - Poxa esse cara está vivo que onda, faz um tempão que eu

não me bato com ele! Isso já aconteceu várias vezes comigo. Eu acho que a

pixação não é só você estar na parede, são várias outras coisas em volta, você

conhecer outros lugares, você conhecer a rua realmente como ela é. Então se

o cara pixa tem que estar na rua, se tá na rua, tá na veia, se tá na veia até o

osso.

A rua é o lugar por excelência do pixador, é nela que ele conhece outros

pixadores, que fazem do risco uma arte. Sua ligação com a rua é muito forte, de

afetividade e que dá alegria: “Da ânimo, véio, chega arrepiar, você passar e ver seu

nome na parede, uma obra que você vez, muito bom, muito bom” (SKIM, 2012). Para

Smol, é “orgulho e uma sensação de trabalho feito, sabe?! Pô, consegui pixar,

consegui deixar minha marca ali. O ego da pessoa aumenta, vai lá em cima”. Esse ego

podemos entender como autoestima, afirmação de sua existência e sua identidade.

6Ver vídeo PSICOPAPO-Johhny, a arte do pertencimento http://www.youtube.com/watch?v=_J0Sy9P0YHY

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Novamente, pedimos que resumissem o pichador em uma palavra e as seguintes

foram proferidas: Satisfeito, corajoso(3 vezes), gaiato, doido, rei, artista e “é vida veio”.

A cidade também se torna memória desses sujeitos: “Quando você vê a sua

pixação é uma viajem, porque você lembra do dia como foi, pode ter sido um dia de

rôle louco, de tomar um rodo, pode ser um dia de lazer com a galera, quando eu vejo

eu fico alegre, quando apagam dá vontade de voltar e colocar outro no mesmo lugar”

(SANO, 2012).

Desse modo, os pixadores traçam suas trilhas urbanas na cidade, deixando os

traços que começam nas folhas de cadernos: e são inúmeros os cadernos gastos para

aperfeiçoar seu traço e lançar nas ruas o seu risco. É um movimento dinâmico que vem

crescendo, estabelecendo novos conteúdos na cidade. Salvador tem um movimento forte

de pixação que se diferencia dos traços de outros lugares.

4.2 Grafiteiros: caminhos no urbano.

As cores vivas dos graffitis chamam atenção de qualquer cidadão que caminha

atento pelas ruas da cidade, são feitas por mãos que possibilitam outras vivências no

espaço urbano soteropolitano. Como já vimos, o graffiti caminha por novos lugares,

ainda que sua essência seja a rua.

Comecemos conhecendo quem são esses grafiteiros. Para esse trabalho foram

entrevistados7 cinco grafiteiros: Marcos Costa, TarcioV, Matias, Afro e Denissena

(quadro 2). É preciso ressaltar que atuam em Salvador muitos mais grafiteiros e

grafiteiras e que a escolha destes grafiteiros foi por aproximação e contatos da

pesquisadora.

Quadro 2- Perfil dos grafiteiros entrevistado

Nome/ Tag Idade Anos no

Graffiti Ocupação

Bairro de

moradia

Marcos Costa 28 11 Artista Plástico Cabula

Tarcio V 25 10 Artista Plástico Castelo Branco

Afro 25 12 Artista Plástico Bairro da Paz

7 Essas entrevistas também foram exploradas no artigo de MONTEIRO, Julia Oliveira Santos;

CORDEIRO, Paula Regina de Oliveira. O cotidiano da cidade de Salvador nos sprays dos grafiteiros.

Revista Geográfica de América Central, Número Especial EGAL, Año 2011. ISSN-2115-2563.

Heredia - Costa Rica, 2011.

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Matias 27 - Artista Plástico -

Denissena 36 13 Operário cultural Cabula

Fonte: trabalho de campo /entrevistas.

O graffiti surge na vida desses sujeitos como possibilidade artística de se

expressar e muito relacionado com o bairro de residência, como nos conta Tarcio V de

sua experiência inicial com o graffiti:

Meu bairro na década de 90 , a parti de 97, meu bairro teve muito grafiteiros

era uns caras que estavam começando a pintar, LEE7, verme, Eder Muniz-

Calango, e aí eu estudava na escola, era a extremidade da minha casa. Para ir

a escola, eu tinha que atravessar praticamente o bairro todo, nesta travessia eu

via os graffitis, eu já desenhava desde guri, em 2003 eu mostrei meu desenho

para Marcelo que é verme, ele falou isso aí dá para botar na rua, eu fiz meu

primeiro graffiti no final de 2003, começo de 2004, a partir daí eu comecei a

fazer graffiti no meu bairro, apesar de que meu primeiro graffiti foi na Baixa

do Fiscal, no muro que não existe mais, virou empresa, foi assim que eu

comecei (TARCIO V, 2011).

O grafiteiro Afro teve sua primeira experiência com o graffiti nas oficinas

ministradas por Denissena, a partir de então começou a grafitar as ruas de Salvador. E

hoje também ministra oficinas em seu bairro, formando novos grafiteiros: “Em 2005 eu

dei oficina no bairro da Paz e ate hoje tem alunos que grafitam e que estão fazendo

arte, a arte modifica, a arte transforma de qualquer forma, eu acho sim que tem um

poder de transformação” (AFRO, 2011). A fala de Afro mostra o graffiti como

possibilidade de inserção social de jovens e crianças através da arte.

Já a experiência de Marcos Costa é um pouco diferente:

Rapaz, já tem uns 10 anos isso, foi viagem mesmo de adolescente com um

grupo da galera que estava afim de fazer algumas intervenções e começou

tudo como uma brincadeira, o graffiti nunca foi algo sério, hoje eu trabalho

com decorações de ambientes, graffitis nos ambientes, mas eu comecei

destilando, mas depois de um tempo eu quis fazer o graffiti para chamar

atenção da galera, não queria mais fazer só o meu nome, só siglas do grupo,

isso foi bem no começo, depois eu comecei a fazer mais personagens,

mensagens e expressões. Assim foi uma parada mais de conscientização

mesmo, começou a ter outra conotação pra mim, aí foi massa que a galera foi

se identificando, trabalhei com as questões sociais, questão de educação,

começou mais pelos bairros do Cabula, Brotas, depois em 2005 eu fui

convidado para entrar no projeto Salvador grafita, que na época pra mim foi

até legal fazer parte.

Para Matias, o graffiti veio da vontade de fazer alguma coisa artística:

eu saquei que na rua é a melhor coisa, além de fazer uma coisa boa para as

pessoas verem, é uma coisa prática. Porque fazendo arte na casa ocupa muito

espaço, você faz tela e tela e fica em sua casa e ninguém vê, fica aí só de boa,

ou seja, eu percebi isso e falei, poxa eu acho que na rua é uma boa coisa,

porque não tem que ficar na sua casa ocupando espaço e você pode dar uma

coisa para a cidade e para as pessoas.

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Os lugares mais procurados para grafitar, também como a pichação, estão

relacionados com sua visibilidade, como afirma Afro: “tem a relação de dar

visibilidade ao seu trabalho”. No entanto, há uma preocupação entre os grafiteiros de

realizar sua arte em seus bairros, assim como nos bairros populares. Denissena nos diz

que gosta “de pintar muito na minha comunidade, por que? Porque é meu bairro, e as

pessoas precisam entrar neste universo, porque há um convite, e cada vez que eu

produzo nos muros, nas paredes, as pessoas possam apreciar. Quando eu vou para o

meu bairro eu percebo que as pessoas passam a se identificar e entram neste universo”.

Afro também prefere pintar em seu bairro:

Eu prefiro grafitar no bairro que eu moro, no Bairro da Paz, nos bairros com

os colegas e amigos, na terça-feira eu grafitei no Castelo Branco com

TarcioV, eu grafito em bairro que eu tenho mais...(relação) e que eu sou

aceito, que eu fico mais a vontade de chegar. Na Barra não é público que eu

quero atingir, não é o público que eu quero levar algo meu, que modifique o

espaço, eu prefiro modificar onde eu convivo mesmo.

Já o grafiteiro TarcioV prefere os espaços abandonados, em suas palavras: “são

muros abandonados, para fazer a relação com a ausência do espaço, do espaço mau

utilizado na cidade”. Ele também nos conta que não costuma colorir lugares para deixar

os lugares mais bonitos: “meu personagem não é uma pintura, ele está passando pelo

superfície, ele não é, ele não está colado, ele está passeando por ali, mas ele ficou ali.

Sei lá!!” (TARCIO V, 2011).

Figura 19 - Graffiti de TarcioV na saída do viaduto da Politeama.

Fonte: saída de campo, 2011.

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Indagados sobre a relação que têm com os lugares grafitados e os graffitis, se

existe uma relação de propriedade, as respostas foram surpreendentes. Por ser uma arte

efêmera, alguns grafiteiros não têm relação de propriedade, pertencimento e mesmo de

amor com suas obras, como explica Afro: “Não, graffiti é efêmero você não pode fazer

um graffiti agora e pegar amor, você faz um graffiti e tira foto, você registrou, acabou.

O graffiti é efêmero e passageiro”. Matias compartilha dessa mesma opinião,

“Propriedade não, porque a arte do graffiti é efêmera, eu não posso dizer que é meu, se

é uma coisa que está na rua, eu estou fazendo uma coisa para colaborar, mas eu não

posso dizer que é meu, esse muro não é meu. Eu tou consciente que pode vim alguém e

apagar, e aí, paciência , é assim”.

Para Marcos Costa, “existe uma relação assim de..., não é propriedade, mas é

uma propriedade ilusória, você quando pinta parece que aquilo é seu, um pedaço de

você na cidade e aquele pedaço da cidade é seu. Uma apropriação da cidade, agora

uma apropriação mentirosa porque qualquer momento pode não estar ali sua obra,

pode chegar alguém e pintar”. Apesar do uso da expressão apropriação mentirosa por

Marcos Costa, sabemos que há, sim, uma apropriação simbólica da cidade pelos

grafiteiros, na medida em que, mesmo que sejam apagados, por algum momento, e esse

momento pode durar horas ou anos, esses sujeitos demarcaram a cidade com seus

personagens e desenhos, com sua arte.

Figura 20- Grafiteiro Afro em sua ação na cidade.

Fonte. Super afro

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Nos discursos dos entrevistados, a felicidade e a alegria ao ver sua obra na

cidade está muito presente, de modo que para Marcos Costa essa felicidade se

transforma em conquistas de territórios: “é massa passar pela cidade e ver, ah foi eu

que fiz, parece que você está conquistando, demarcando territórios”.

Os graffitis são realizados de diferentes maneiras, assim como existe uma

diversidade muito grande de tipos de graffitis, que não daremos conta de enfatizar aqui,

como já feito no trabalho de Tartaglia, (2010). Porém há de se mencionar que cada tipo

de graffiti também está relacionado com uma prática diferente.

Os mutirões são ações realizadas coletivamente, quando vários grafiteiros se

reúnem para elaborar um grande painel, muito presentes em Salvador: há mutirões em

bairros populares para grafitar as casas, como no bairro da Gamboa, onde aconteceu

uma ação assim; há mutirões também para pintar um ponto específico, como os graffitis

no bairro do Politeama, frutos de um encontro de Grafiteiras do Nordeste. Nos mutirões

ocorre uma troca muito rica entre os grafiteiros: tive a oportunidade de participar do

mutirão que ocorreu no Centro Social Cultural de Pernambués, organizado durante o

Encontro de Grafiteiro da Bahia, que ocorreu em 2011, um projeto cultural com

financiamento da Secult-BA.

Figura 21- Entrada do Centro Social Cultural de Pernambués com os graffitis frutos do mutirão.

Fonte: Google maps, acesso em 23 de outubro de 2012.

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Além dos mutirões, existem outras formas coletivas de grafitar, uma é o CREW,

parecido com o que ocorre na pixação, um coletivo de grafiteiros que fazem

intervenções conjuntamente e assinam com uma identidade coletiva. Há também muitas

parcerias no ato de grafitar, grafiteiro que muitas vezes pinta com um parceiro.

Sem dúvida, nos últimos anos tem havido uma maior aceitação do graffiti em

toda a sociedade, de certa forma o graffiti esta na “moda”, e o próprio Estado tem sido

um incentivador dessas práticas, apoiando projetos culturais de graffiti. Em Salvador

havia um projeto da prefeitura chamado Salvador Grafita, desde 2005, que contratou

vários grafiteiros para riscar na cidade, em muros de colégios, centros de saúde, e para

minstrarem oficinas de graffitis para jovens e crianças. Com a intenção de diminuir o

número de pixações na cidade, apesar das diversas críticas, feitas pelos próprios

grafiteiros, esse projeto proporcionou boas oportunidades para esses jovens, e muitos

conseguiram viajar para o exterior para apresentar seu graffiti. Dos entrevistados apenas

Matias não participou do projeto, enquanto Afro nos conta um pouco de sua experiência

no Grafita Salvador: “Eu faço parte, tem seus prós e contras, todo ano eles levam

grafiteiros para fora, para irem para outros países como Espanha, Itália, França, tem

essa questão, e também tirou esse bloqueio das pessoas, da discriminação”. Afro

reconhece a importância do projeto para maior aceitação do graffiti em Salvador.

Contudo, uma critica que faço ao projeto, é que usava o graffiti para “tampar, maquiar

e esconder” lugares abandonados pelo poder público, assim como construções

abandonadas.

É o caso dos graffitis nas estações de metrô de Salvador: os maderites grafitados

estão ali para esconder uma estação de metrô que não funciona, depois de 13 anos de

obras e paralisações (Figura 22). O mesmo ocorre no cinema Excelsior no Pelourinho,

há anos fechado, o graffiti escondendo o não uso desse lugar. (Figura 23).

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Figura 22 - Estação de metro em frente ao fórum Rui Barbosa, com graffiti do projeto Salvador Grafita

tampando a saída da estação, e uma pixação na banca de jornal. Fonte: Google maps, acesso em

29/03/2013.

Figura 23 – Cinema Excelsior no Pelourinho, graffiti esconde a entrada do cinema, tornando invisível

sua existência. Fonte: Google Maps acesso em 29/03/2013.

No entanto esse projeto não representa a ação dos grafiteiros na cidade como um

todo: os graffitis têm uma força política e um discurso em suas representações muito

forte. Mas, afinal, o que dizem esses graffitis?

Analisamos mais de 200 graffitis na cidade do Salvador, e o que vimos foi uma

grande riqueza e muita qualidade artística, imagens de resistência, valorização do povo

e de sua cultura, diferentes personagens (Sapos, monstros, vacas), desenhos abstratos

ricos em cores, o negro, a mulher, o indígena, os homossexuais, tudo isso encontra

representação nos graffitis.

Isso é coerente com a fala de Denissena quando ele fala sobre a importância do

graffiti como uma “arma de dialogo”:

Pra mim a importância é a contribuição estética, é um diálogo, é importante

que as pessoas, na verdade meu público são as pessoas, as pessoas precisam

acompanhar e é um diálogo, uma linguagem urbana, fazendo com que as

pessoas reflitam algumas imagens, a questão política de gerar consciência,

combater a questão do racismo, falar da influência indígena-afro, reconhecer

e não permitir que nossas raízes morram. Já que o graffiti é uma grande

arma, é uma forma de dialogar e politizar as pessoas.

Essa “arma” tem um importante papel na cidade: o de chamar atenção e convidar

para a reflexão de temas tão caros a nossa sociedade.

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Figura 24 - Graffiti de valorização da ancestralidade negra, no muro do colégio Manoel Devoto, Rio

Vermelho, Salvador.

Fonte: Shanti, 2011.

Outra representação encontrada está relacionada com a questão religiosa e

principalmente à valorização das religiões de matrizes africanas (encontramos diversas

representações de Orixás na cidade), embora também as igrejas evangélicas se utilizem

do graffiti para afirmar sua religiosidade. O próprio grafiteiro TarcioV afirma: “Meu

graffiti tem uma relação com a fé e o gestual da figura humana soteropolitana”.

Graffitis de Denissena e Marcos Costa também estão relacionados às religiões de

matrizes africanas, com elementos desta cultura.

O cotidiano de Salvador também é representado nestes graffitis, como ressaltado

pelo grafiteiro Matias: “na verdade o que eu faço é uma casa mal feita, que é para

representar as pessoas que não têm casas bem feitas, e não esquecer destas pessoas.

Então, tem muito a ver com a rua, com as pessoas que moram na rua, que não têm

casa, tem afinidade com as ruas”. Além de ser presentado com arte, o cotidiano vira

fonte de inspiração. Denissena comenta: “Muros, encostas, são suporte que não

precisamos pedir licença, o cotidiano revela diversas situações e vira isso, é uma

inspiração pra gente e há diversas intervenções que as pessoas fazem”.

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Figura 25- Representação da mulher negra. Figura 26- Graffiti de Omolú, Marcos Costa, na

Fonte Shanti, 2010. comunidade de São Lazaro.

Fonte: Julia Monteiro.

A geografia realizada pelos grafiteiros é formada por lugares de resistência, com

representações de um cotidiano vivido, e não há como negar que essa prática tem um

caráter contra hegemônico. Concluímos esse capítulo com uma citação de Santos:

Através do entendimento desse conteúdo geográfico do cotidiano poderemos,

talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) dessa

relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando na materialidade,

esse componente imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo

tempo, uma condição para a ação; um convite à ação (SANTOS, 1996, p.257

apud MONTEIRO, CORDEIRO, 2011).

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CONSIDERAÇÕES LONGE DE SEREM FINAIS

Partindo da curiosidade e da vontade de analisar e compreender o que dizem os

graffitis e pixações que enriquecem a cidade de significados, desenvolvi essa pesquisa,

ao mesmo tempo em que aflorou na pesquisadora uma vontade de riscar a cidade. No

entanto é importante considerar que essa aproximação da pesquisadora com seu objeto

de estudo não faz desta pesquisa um processo investigativo imparcial, revelando um

compromisso político e ideológico, de caráter subjetivo da pesquisadora com os

sujeitos/agentes aqui pesquisados. O discurso da ciência com neutralidade é

considerado aqui como algo ultrapassado, partindo-se então de um lugar conhecido de

fala e de concordância com as práticas analisadas.

Recorremos ao início da história do homem para entender essa prática atual de

grifar a cidade, como na análise das pinturas rupestres feitas pelos hominídeos há mais

de 35 mil anos atrás, que têm semelhanças de intencionalidades e de práticas com os

grafismos realizados pelos grafiteiros e pixadores hoje em dia: não uma relação direta

de estilo e forma, mas como momento de expressar seus cotidianos, demarcando os

lugares, assim como demonstra a antiga capacidade humana de representar e de abstrair

o concreto em simbologias.

Vimos que alguns movimentos artísticos tiveram importância e uma influência

forte no desenvolvimento destas artes, assim como os movimentos políticos que se

utilizaram das pixações como formar de protestar, demostrando o cerne político destas

artes. Partindo das conceituações de graffiti e pixação, entendemos as diferenças e

semelhanças existentes entre essas práticas, do tempo rápido das ações dos pixadores ao

tempo lento dos grafiteiros e, assim, as analisamos enquanto duas manifestações

diferentes, que se projetam e se apropriam de forma distintas da cidade.

Percorrido esse caminho entendemos como os traços coloridos e pretos feitos

pelos grafiteiros e pixadores riscam a cidade como obra, construindo o espaço urbano

nas dimensões simbólica e material, fazendo da rua o lugar da politica. Enquanto

culturas têm seu poder na cidade, demarcando os lugares com um discurso próprio, que

revela o lugar de seus sujeitos/agentes na cidade. A periferia é assim representada,

exposta nas vias públicas de grande circulação e no centro. Na periferia essas artes e,

principalmente, o graffiti, se tornam importantes ferramentas de valorização da

autoestima da população. Como vimos, os graffitis discutem em suas representações

questões de grande importância social, colocando em evidência a imagem da mulher, da

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favela, dos marginalizados e questões como a fome, a pobreza e a violência, as

religiosidades.

Ao conhecermos esses sujeitos ficou evidente de onde vêm essas falas, de que

lugar falam esses agentes que se apropriam do espaço urbano para levar às ruas suas

identidades e suas artes. Conclui-se que esses agentes têm uma espacialidade muito

complexa, que corresponde a um emaranhado de lugares grifados por seus traços.

Encontramos seus riscos nas áreas mais abastadas economicamente, no centro da

cidade, nas avenidas de vale, nos bairros populares, nos picos vertical e

horizontalmente, de modo geral na cidade inteira, por vezes também nos municípios da

região metropolitana.

No entanto, esse trabalho não esgota a temática, abordando de forma introdutória

esse tema na cidade de Salvador, gerando novas questões de pesquisa. Aqui

trabalhamos somente com as falas dos sujeitos que fazem a ação, ficando de fora a

opinião das pessoas que vivenciam essas grafias como receptores, o que leva à

elaboração de novas perguntas como: o que acham os transeuntes da cidade desses

graffitis e pixações? Quais os significados que eles compreendem dessas artes? Da

mesma forma, também não buscamos a fala dos agentes do Estado, tanto da policia

como da secretaria de cultura, para entender como eles compreendem e projetam suas

ações em concordância com ou de repressão essas/dessas práticas.

Na sociedade contemporânea, em que a apatia social parece tomar conta das

ações dos cidadãos, e a monocultura da mente, aqui entendida como uma forma única

de pensar, parece crescer ainda mais, essas culturas se revelam a nós como práticas

rebeldes e de resistência. A pixação, com suas tags e nomes de coletivos, demarcam os

territórios, num prática criminosa aos olhos da lei, vândala em alguns casos, passando

por cima de propriedades privadas, de monumentos públicos com seu caráter

ideológico, monumentos que raramente referenciam ao povo, mas sim aqueles que do

povo se aproveitaram. É certo que o limite do vandalismo não foi analisado aqui, mas

há de se reconhecer que na cidade embutida de propagandas, construída com um caráter

ideológico dos dominantes, a pixação foge desses padrões, se rebelando contra um

Estado presente em sua omissão, que muitas vezes defende os interesses da elite.

A pixação, com seus riscos, grita a voz de um povo, de um lugar, que em muito

é marginalizado, estigmatizado e que fica de fora das politicas de Estado. As pixações

confrontam a sociedade que torna tudo mercantil, tirando a riqueza dos lugares,

transformando-a em produto, e faz do lucro a sua máxima. Definitivamente o pixe na

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cidade contemporânea é uma voz dos de baixo, que gritam, que buscam seus espaços,

que se fazem ver, que estão presentes nos lugares, onde talvez não teriam entrada.

O graffiti como “uma linguagem transgressora” (Denissena), de essência da

rua, vem agradando os olhares da sociedade, ganhando reconhecimento e valorização

artística, democratizando as artes, levando às periferias uma opção de cultura. Seus

agentes fazem de sua arte uma verdadeira arma de transformação social, através da

qual as emoções e paixões deixam marcas na paisagem urbana. E sua expressividade

artística cria uma cidade mais viva, na qual cores e desenhos resistem à

homogeneização dos lugares.

Contudo, o reconhecimento desses universos (graffiti e pixação) na cidade de

Salvador mostra a necessidade de aprofundamento de estudos de uma geografia dos

lugares, na qual as emoções e vivências dão sentidos novos às análises geográficas.

Assim convido aos leitores e interessados na temática em investigar essas artes na

cidade, inclusive a realizarem uma cartografia dessas manifestações, que não

conseguimos ainda aprofundar nessa etapa de nossas pesquisas.

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PSICOPAPO - Johhny, a arte do pertencimento-

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