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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS DA AMAZÔNIA A ANGOLA: NARRATIVAS DE SELVA E O TESTEMUNHO EM GEOGRAFIAS PERIFÉRICAS Adriana Cristina Aguiar Rodrigues MANAUS 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

DA AMAZÔNIA A ANGOLA: NARRATIVAS DE SELVA E O

TESTEMUNHO EM GEOGRAFIAS PERIFÉRICAS

Adriana Cristina Aguiar Rodrigues

MANAUS

2013

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ADRIANA CRISTINA AGUIAR RODRIGUES

DA AMAZÔNIA A ANGOLA: NARRATIVAS DE SELVA E O

TESTEMUNHO EM GEOGRAFIAS PERIFÉRICAS

Dissertação d e M es t r ad o ap r e sen t ada

ao P r o gr am a de Pós-Graduação em Letras:

Estudos Literários, do Instituto de Ciências

Humanas da Universidade Federal do

Amazonas, como requisito parcial à obtenção

do título de Mestre em Letras/Estudos

Literários.

Orientador: Professor Doutor Allison Marcos

Leão da Silva.

MANAUS

2013

3

(Catalogação na fonte realizada pela Biblioteca da UFAM)

Ficha Catalográfica

C287f

Rodrigues, Adriana Cristina Aguiar.

Da Amazônia a Angola: narrativas de selva e o testemunho em

geografias periférica, 2013.

127 f.; c/il.

Dissertação (Mestrado em Letras/Estudos Literários) ––

Universidade Federal do Amazonas, 2013.

Orientador: Prof. Dr. Allison Marcos Leão da Silva.

1. Literaturas de língua portuguesa 2. Amazônia 3. Angola I.

Título II. Silva, Allison Marcos Leão.

CDU 372(811.4)(043.3) CDD 372.10

4

À minha mafumeira:

Maria Aguiar de Souza

(filha de José,

irmã de Duclieu –

homens da floresta, em memória).

5

À minha família: Antônio, Altanira, Diego, Rachid, Eduarda, Mª Clara, Ana e ao Pedro (que

logo chegará!). Especialmente à Maria Aguiar, pelo cuidado, afeto e por ter feito de mim um

texto de sua maternidade.

À Edla Cristina Rodrigues Caldas, pela companhia, pelas conversas e canções que embalaram

sonhos.

À Paula Roberta e ao Jean Souza, pela amizade duradoura.

À Alcina Mara, pela ajuda com a pesquisa bibliográfica e pelas palavras de apoio.

Ao Leandro Babilônia, pelos livros, textos, revisão e pela amizade.

Ao meu orientador, Allison Leão, pelo acompanhamento, atenção e confiança que me

transmitiu durante a pesquisa. Agradecimento especial pelos ensinamentos ministrados desde

a graduação e que contribuíram grandemente para a minha formação teórica e intelectual.

Ao professor Otávio Rios, pelas primeiras orientações durante a iniciação científica.

Aos professores Marcos Frederico Krüger Aleixo e Gabriel Albuquerque, pelas contribuições

teóricas.

À professora Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, por ter gentilmente aceitado o convite para

participar da banca.

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Federal do Amazonas.

Aos colegas de mestrado, Elaine Andreatta, José Benedito, Leoniza Calado, Mary Cacheado.

Em especial, à Jany Alfaia, Stéphanie Girão e ao Werner Borges, pelas trocas e encontros.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (FAPEAM), pelo fomento.

À Secretaria Municipal de Educação (SEMED), pelo apoio concedido através do Programa

QUALIFICA.

A todos que de alguma forma contribuíram com a pesquisa e com minha formação.

AGRADEÇO.

6

Uma árvore nunca é apenas uma árvore. A natureza não é

algo anterior à cultura e independente da história de cada

povo. Em cada árvore, cada rio, cada pedra, estão

depositados séculos de memória.

(Simon Schama, 1996)

7

RESUMO

O tema desta dissertação assenta-se na interface entre literatura e memória, elegendo-se a

perspectiva teórica do testemunho, para a apreciação crítica dos romances A selva (1930), do

escritor José Maria Ferreira de Castro, e Mayombe (1980), de Pepetela. O escopo da pesquisa

é empreender uma análise comparativa em torno dos romances em tela, a partir de uma

abordagem teórica que leia as narrativas como testemunho da barbárie nos contextos

histórico-geográficos em pauta: a Amazônia e Angola. Inicialmente, detém-se no estudo da

representação dos arquivos pessoais e de suas implicações no processo de criação estética,

apontando como autoria, sujeito biográfico e experiência traumática e/ou política entremeiam,

não só a escrita literária de Castro e de Pepetela, como também a produção crítica acerca dos

seus romances. A segunda parte (composta pelos dois últimos capítulos) analisa os discursos,

os tipos sociais e as representações dos espaços naturais (e culturais) nos contextos literários

estudados, pensando os limites da linguagem quando se trata de experiências de violência e

subjugação em geografias insulares, florestais e historicamente perpassados por ideias

preconcebidas.

Palavras-chave: Literaturas de língua portuguesa; Amazônia; Angola; Testemunho;

Natureza; Violência.

8

ABSTRACT

The theme of this dissertation is set on the interface between literature and memory, electing

the Testimony theoretic perspective, for the critical appraisal of the novels A Selva (1930), by

the writer José Maria Ferreira de Castro, and Mayombe (1980), by Pepetela. The scope of this

research is to carry out a comparative analysis of the novels on spot, from a theoretic

approach which makes a reading of the narratives as a testimony of the barbarism in the

geographic-historic contexts in the agenda: Amazonia and Angola. Initially, the focus is on

the study of the personal archives representation and on their implication on the aesthetic

creation process, pointing out how authorship, biographic subject and traumatic and/or

political experience interweave, not only Castro and Pepetela‟s literary writing, as well as the

critical production about their novels. The second part (made of the two last chapters) analyze

the discourses, the social types and the natural (and cultural) spaces representations in the

literary contexts studied, thinking on the limits of the language when dealing with experiences

of violence and subjugation in isolated, forestry geographies and historically steeped in

preconceived ideas.

Key words: Portuguese language literatures; Amazonia; Angola; Testimony; Nature;

Violence.

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

I ÀS MARGENS: DOS ARQUIVOS PESSOAIS À LITERATURA.................................16

1.1. O sujeito testimonial: do corporal e memorialístico ao literário........................................21

1.2. Escritos de um guerrilheiro em Cabinda............................................................................26

1.3. Sujeito do trauma: o sobrevivente......................................................................................33

1.4 Memórias de um português na Amazônia...........................................................................40

II AO SUL DO EQUADOR: ILHAS DISPERSAS, OU DAS FLORESTAS COMO

ESPAÇOS TESTEMUNHAIS...............................................................................................47

2.1 Amazônia: a natureza como cárcere...................................................................................55

2.1.1 Marcha para o coração da selva....................................................................................58

2.1.2 Paraíso afora..................................................................................................................64

2.2 Mayombe: a natureza como abrigo.....................................................................................67

2.2.1 A floresta como trincheira.............................................................................................69

2.2.2 Onilé, a Gaia africana....................................................................................................74

III O TESTEMUNHO NAS SELVAS...................................................................................80

3.1 Quando o Atlântico deságua no Amazonas........................................................................80

3.2 Tribos, a tribo: um arco íris em peles e culturas.................................................................92

3.3 Tribunal na floresta: pelos sentidos, captar a violência....................................................101

NÓS, AS TESTEMUNHAS..................................................................................................112

REFERÊNCIAS....................................................................................................................119

10

INTRODUÇÃO

Fato e ficção foram, por muito tempo, conceitos situados em duas perspectivas

opostas: o primeiro, tratado como documento, como verdade e como narrativa da realidade; já

o segundo, envolto pelo lúdico, pelo entretenimento e pela invenção. Nesse contexto, autoria e

sujeito biográfico, literatura e história, objetividade e subjetividade, criação e real, em dados

momentos da historiografia literária foram consideradas categorias estanques e homogêneas.

Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, foi possível rever as ideias estabelecidas

em torno dessas formas de pensamento, possibilitando outro tratamento e uma aproximação

entre as mesmas. Na década de 1970, surgiu na Europa e na América Latina o conceito de

literatura de testemunho ou de teor testemunhal, que abalou as convenções da tradição

canônica literária, pois as obras filiadas ao novo paradigma eram fortemente marcadas por um

caráter heterogêneo: por um lado, não deixavam de ter características inerentes à criação

estética, mas por outro, tinham também um discurso marcado pelo teor documental e

memorialístico, tanto na forma quanto na estrutura. Os objetos de estudo desta dissertação

apontam para essa tendência.

Apoiando-se nesse cenário teórico, a pesquisa tem como escopo empreender uma

discussão comparativa em torno dos romances A selva (1930), de Ferreira de Castro, e

Mayombe (1980), de Pepetela, a partir de uma abordagem teórica que leia as narrativas como

testemunho da barbárie em geografias periféricas. A Selva, escrito a partir das experiências de

Ferreira de Castro num seringal às margens do rio Madeira, interior do Amazonas, narra a

dor, a miséria, a barbárie e a pequenez do ser humano diante da imensidão da floresta

amazônica e do aniquilamento dos homens. Por sua vez, Mayombe, romance de Pepetela

escrito nos anos em que atuou como paramilitar, narra a luta pela independência de Angola,

travada por uns poucos homens no interior da floresta africana contra o invasor português.

Elaborados num contexto desfavorável à arte pela arte, os romances operam deslocamentos de

fronteiras, observáveis pela tênue relação autor e sujeito biográfico, ficção e história,

experiência da barbárie e experiência estética. Ambos configuram-se como discursos de

denúncia social e de alerta contra a violência e a exploração humana.

Jaime Ginzburg, em “Linguagem e trauma na escrita do testemunho”, partindo do

debate contemporâneo sobre a escrita de testemunho e o problema da relação com a violência

e a expressão de setores excluídos da sociedade, afirma que “a literatura de testemunho não se

filia à concepção de arte pela arte. Ela vai reivindicar uma conexão com o mundo

extraliterário” (2010, p. 2). Na concepção do autor, a literatura deve ser considerada não

11

apenas em seus efeitos estéticos, mas também históricos, sociais e culturais. Para este, é

importante examinar teoricamente o caráter específico da configuração discursiva do

testemunho, que estabelece dificuldades para abordagens e procedimentos convencionais da

Teoria Literária, posto não se tratar de um campo de entendimento da arte como

representação, no sentido atribuído à mimese aristotélica.

Por sua vez, Márcio Seligmann-Silva, no artigo “O testemunho: entre a ficção e o

real”, afirma que o testemunho transgride os modos canônicos de propor o entendimento da

qualidade estética, pois “o comprometimento com o „real‟ faz com que o autor exija um

redimensionamento do conceito de literatura” (2003, p. 382). Partindo das afirmativas

articuladas por esses dois teóricos, e retomando a proposição de Walter Benjamin, de que

“nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”

(1994, p. 225), constitui-se como problema para a pesquisa: a) os romances A selva e

Mayombe podem ser lidos a partir do prisma conceitual do testemunho? b) Se assim puderem

ser admitidos, como se dá, em tais narrativas, a relação entre criação estética, representação e

memória dos sobreviventes da barbárie nas geografias periféricas?

Certamente, faz-se necessário justificar a escolha e a comparação entre as duas obras.

Um primeiro aspecto a destacar, trata-se de uma constatação, até certo ponto óbvia, de que

ambas trazem uma característica em comum, isto é, a representação de um espaço, mais ou

menos, semelhante: a floresta. Há, entre os romances, a comunicação de conteúdos e de

problemáticas coletivas – fundamentalmente das classes subalternas e marginalizadas –, como

é o caso histórico em que se inserem a África e a Amazônia, as quais sofreram e sofrem

constantemente com a exclusão cultural, social e econômica. Tanto na primeira narrativa

quanto na segunda, a selva é uma ínsula em que a violência dá o tom. Todavia, se por um

lado, na perspectiva de quem está de fora, as personagens estão isoladas, apartadas de um

contexto global; por outro, para quem habita o interior da floresta, não se pode falar em

limites geográficos, em local e em global separando os indivíduos, uma vez que há apenas um

único espaço em que todos estão submersos: o dos que testemunham a barbárie.

Mas, se o espaço constitui uma categoria que aproxima as duas narrativas, é preciso

ainda contextualizar algumas diferenças, que dizem respeito à própria noção de espaço nas

obras. Embora nas últimas décadas a categoria espacial tenha se tornado importante para a

literatura, sabe-se que nem sempre foi assim. Na tradição literária anterior ao século XIX, no

Ocidente, o espaço era quase sempre uma espécie de ornato, um recurso descritivo para situar

as personagens e o leitor. Com o surgimento das ideologias nacionalistas, no século XIX, o

espaço se torna, literariamente falando, uma ferramenta fundadora das nações. Doris Sommer,

12

no livro Ficções de fundação (2004), por exemplo, ao tratar de várias obras produzidas nos

séculos XIX e XX na América Latina, sustenta que aí o espaço não é mais um mero

ornamento, um recurso estilístico ou um instrumento descritivo e situacional. Ele passa a ser

um lugar de unidade, ou seja, topos que integra em si a diversidade (p. 40): uma mistura de

realidade física, que se torna secundária em relação ao espaço imaginário da nação, que se

está fundando. Mas o que isso tem a ver com A Selva e Mayombe?

Os dois escritores em questão estão também, por motivos e contextos diferentes,

tentando fazer algo semelhante, que é fundar ou refundar um espaço nacional. Mas para

fundar algo, alguma coisa tem que ter sido ou estar sendo encerrada – para fundar as nações

na América Latina, no século XIX, o que se queria encerrar era um período colonial, que se

tornava subjugado agora ao espaço nacional. O contexto em que surge o romance de Pepetela

tem muito de semelhante com o que aponta Sommer para o caso da América Latina. Em

Mayombe, o autor vai se utilizar de uma categoria espacial para, num contexto ideológico

nacionalista, fundar, literariamente, a nação. Todavia, por uma questão histórica específica de

um país que conquistou a independência somente em 1975, Pepetela o faz num período no

qual já não era comum, ao menos quando se leva em conta os paradigmas literários da

América, os escritores voltarem-se para os espaços naturais para fazer essa fundação literária

imaginária – como destaca a professora Rita Chaves: “com décadas de diferença, os escritores

angolanos passam pela experiência que viveram os nossos românticos e reviveram, de

maneira diferenciada, os nossos modernistas: fazer uma literatura que interviesse no processo

de definição do país” (1999, p. 218).

No período em que decorre o romance A Selva, final do século XIX e início do XX,

Portugal iniciava a era republicana. Mas, o ano de publicação do romance, 1930, já aponta

para uma nova fase: o Estado Novo (1933) e o salazarismo. Nesse entre séculos, o país

ingressava então numa crise (que se prolongaria até a década de 1970) em relação ao que era,

imaginariamente, seu próprio espaço: o espaço de fora (o império pressionado pelas então

colônias), mas também o espaço de dentro, o espaço do interior, o espaço europeu

(pressionado pela ditadura). Tanto Castro quanto Pepetela colocam em evidência um aspecto

muito presente na história de Portugal: a relação entre o espaço interno lusitano e o espaço de

outrem (tomado como terras portuguesas no além-mar).

No que diz respeito ao cenário literário, quando da publicação dos romances, apesar da

distância de 50 anos que separa as duas obras, em Portugal iniciava-se, com Ferreira de

Castro, a corrente neorrealista, de que o romance A Selva é considerado obra fundadora; e de

que a obra de Pepetela é vista como adepta. Se observarmos as publicações portuguesas

13

posteriores a Castro, notaremos que todas se voltam para o espaço, especialmente o interior.

Uma incursão pelo neorrealismo na década de 1930 e 1940 revela como esses cenários (as

aldeotas, as vilas, o campo e, sobretudo, a miséria nesses lugares) ganham destaque na

literatura. Todavia, Ferreira de Castro, ao contrário da grande maioria dos ficcionistas

portugueses do período, se desloca para outro espaço, um espaço de fora: a Amazônia.

No Brasil, nos anos de 1930, a preocupação com a relação entre arte, denúncia dos

problemas sociais e os espaços que estavam para além da costa brasileira, pode ser verificada

no romance regionalista. Nesse período, a literatura brasileira voltava-se para o sertão de

Graciliano Ramos, o sertão da Bahia de Jorge Amado, dentre outros. Essa é outra corrente

estética na qual, não apenas Pepetela, como também muitos escritores da África de língua

portuguesa, buscaram inspiração durante o processo de elaboração de seus projetos literários

nacionalistas. Assim, o autor angolano é fortalecido com os ensinamentos que, sem

preconceito, retira da experiência de escritores de outras terras, mas é apoiado na sua própria

experiência, que Pepetela firma o seu itinerário e organiza as linhas de uma obra na qual se

podem recolher fios expressivos da própria história de Angola (CHAVES, 1999, p. 219).

Ferreira de Castro, que viveu a experiência de imigrante no Brasil, lança mão, no seu

romance, de uma figura muito presente ao longo da historiografia literária portuguesa: trata-se

da figura do emigrante, do colonizador e do exilado. A personagem principal de A Selva,

Alberto, é enviada para uma ex-colônia lusitana. Todavia, nesse espaço já outro e de outrem

(em que habitam identidades e culturas diversas), o protagonista busca estabelecer uma

relação de superioridade em relação ao outro, assumindo ainda uma postura eurocêntrica e

regastando, em certos pontos da narrativa, a coragem dos lusitanos que fizeram a história

colonialista na Amazônia. Monarquista exilado, mesmo que estivesse em Portugal, a

personagem também estaria, metaforicamente, fora de casa: seria um estrangeiro num

contexto republicano emergente.

Pepetela, por sua vez, trata de um espaço ainda colonial que precisa ser subjugado,

para, no lugar dele, fundar-se um espaço nacional. O autor “faz da floresta muito mais do que

um palco para as ações que serão narradas. Atribuindo-lhe um papel dinamizador naquele

momento da história de Angola, ele investe na sua personificação. Invadida, destruída,

maltratada pelo colonizador” (CHAVES, 1999, p. 220), a natureza é transformada em espaço

étnico, no qual a exuberância, tão cantada nas páginas da chamada literatura colonial, como

evidência da grandiosidade do império português, é vista agora pelo colonizador como um

espaço temido. Porém, inversamente, para os guerrilheiros, essa mesma natureza converte-se

em metáfora de conquista da terra e da nação.

14

Parafraseando um título de Albert Memmi, dir-se-ia, em síntese, que temos, ao

analisar comparativamente os dois romances, um retrato do colonizado (Mayombe, 1980),

precedido do retrato do colonizador (A Selva, 1930). O que nos leva a afirmar que há, entre as

obras, dois movimentos, de forças contrárias: o primeiro, de saída de um espaço monarquista,

que se tinha como seu, para habitar o espaço de outrem; o segundo, de luta pela tomada de um

espaço que, embora sendo seu, está tomado pelo outro. E aí, se contempla um tema histórico

lusitano: sair para conquistar o outro; e um tema histórico angolano: expulsar para retomar o

que é seu.

Do ponto de vista metodológico, os romances serão analisados a partir dos

pressupostos teóricos que fundamentam a crítica do testemunho, uma vez que tal abordagem

possibilita pensar a interface literatura e memória, violência e barbárie, a partir do próprio

texto literário. Em outras palavras, o testemunho, como forma e conceito, permite observar

textualmente a desestabilização de limites entre categorias, como autor e sujeito, fictício e

factual, literariedade e literalidade, linguagem poética e prosa referencial (MARCO, 2004, p.

47). Como destaca Seligmann-Silva, (2003, p. 10), “a reflexão sobre o testemunho leva a uma

problematização da divisão estanque entre o discurso dito „denotativo-representativo‟ e o dito

„literário‟, sem no entanto aceitar o apagamento dessas fronteiras”.

Tomando o testemunho como um conceito fundamental na análise dos objetos em

estudo, pode-se considerar que a perspectiva teórica adotada guarda afinidades com os

métodos sociológicos de abordagem do texto literário, uma vez que essa forma de

compreensão da literatura pressupõe questões relacionadas à autoria, às formas de produção e

ao contexto sociopolítico, cultural e histórico. Miguel Araújo Neto (2007, p. 18), no texto “A

sociologia da literatura: origens e questionamentos”, assim pontua as delimitações

metodológicas para o estudo sociológico da literatura: o estudo marcado pelo exame, e pelo

relacionamento, entre um determinado corpus no âmbito literário e as condições histórico-

sociais; o estudo centrado na consideração do autor e de sua situação histórico-social, bem

como de sua situação no campo intelectual; o estudo centrado em problemas relativos à obra

literária, sua publicação, distribuição, circulação, inclusão no cânone literário; as ressonâncias

provocadas pelas obras.

Pierre Barbéris (2006, p. 145), por sua vez, explica que, embora a sociologia da

literatura – decorrente da ligação com as ciências sociais no século XX e da reflexão sobre as

inter-realidades socioculturais – tenha sido, em seu desenvolvimento teórico inicial, reduzida

às análises exteriores ao texto, o método teve o campo ampliado, sendo necessária a

delimitação das diferenças entre termos como: sociologia do literário – concernente ao que é

15

anterior ao texto, como as condições de produção; sociologia da recepção – que compreende

o estudo das formas como o texto literário é lido, difundido e interpretado; e sociocrítica –

que visa, sobretudo, ao próprio texto. Acerca desse último ponto, Jean-Yves Tadié esclarece

que a sociocrítica, uma das formas de análise sociológica da literatura, “interessa-se pela

questão de saber como problemas sociais e interesses de grupo são articulados nos planos

semântico, sintático e narrativo” (1992, p. 180). Em conjunto, os princípios apontados por

Araújo Neto, Barbéris e Tadié tornam possíveis análises críticas que conjuguem “fatores

sociais e a realização literária, sem desconsiderar os dados estéticos das obras específicas”

(ARAÚJO NETO, 2007, p. 19).

Assim sendo, consideramos necessário realizar, além de uma crítica imanente dos

romances, a apreciação dos dois primeiros aspectos apontados por Barbéris (que atendem

também a aspectos contextuais, denotativo-representativos). Desse modo – buscando

responder ao primeiro aspecto do problema de pesquisa, isto é, porque consideramos o

testemunho como um conceito necessário para pensar as obras escolhidas –, no primeiro

capítulo centra-se a pesquisa em aspectos extratextuais, no qual se busca investigar a

representação dos arquivos pessoais e suas implicações no processo de criação estética,

apontando como autoria, sujeito biográfico e experiência traumática entremeiam, não só a

escrita literária de Ferreira de Castro e Pepetela, como também a produção crítica acerca dos

romances.

A partir do segundo capítulo, centramos a análise em aspectos mais imanentes dos

romances. Aí, são analisadas as representações dos espaços naturais (e culturais) nos

contextos literários estudados, pensando os limites da linguagem quando se trata de

experiências traumáticas e políticas em geografias insulares, florestais e historicamente

perpassadas por ideias preconcebidas. O terceiro capítulo volta-se para a análise dos discursos

de personagens e os tipos sociais presentes nos romances, a partir de uma abordagem teórica

que articula literatura e o testemunho da barbárie. Pressupostos teóricos que subsidiam o

estudo encontram-se, principalmente, nas obras de Walter Benjamin, Theodor Adorno,

Giorgio Agamben, Beatriz Sarlo e Márcio Seligmann-Silva.

16

CAPÍTULO 1 – ÀS MARGENS: DOS ARQUIVOS PESSOAIS À LITERATURA

Foi à uma hora da noite, a noite densa, quente e húmida de 28 de Outubro

de 1914, que parti do seringal onde decorre este livro, lá longe, nas

margens escalavradas do Madeira, que nenhuma estrela então alumiava.

[...] durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de

reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com

pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das

seringueiras. Um medo frio, que ainda hoje sinto, quando amigos e até

desconhecidos me incitam a escrever memórias, uma larga confissão, uma

existência exposta ao Sol, que eu julgo seria útil às juventudes que se

encontrassem em situações idênticas às que eu vivi. (Ferreira de Castro,

1955)

Não havia muita gente em Angola com capacidade e gosto de escrita que

tivesse vivido em uma sociedade colonial, que tivesse contribuído para o fim

da sociedade colonial, lutando contra ela, lutando pela independência e que

tivesse assistido, no sítio onde nasceu, depois dum percurso grande pelo

mundo e por todo lado, ao fim, à derrocada dessa sociedade [...]. Tive a

oportunidade de ver isso, de assistir a isso tudo e senti-me na obrigação de

escrever. (Pepetela, 2001)

Gostaríamos de iniciar rememorando uma das primeiras aulas de Teoria da Literatura,

na faculdade de Letras, que tinha como tema a condição autoral. Uma das principais

recomendações naquela aula era a de que não fossem confundidas duas categorias distintas:

autor empírico e autor textual, uma vez que apenas a segunda ofereceria interesse aos estudos

literários, estando a primeira, por conseguinte, excluída das nossas análises. Os célebres e

conhecidos textos com os quais trabalhávamos intitulam-se “A morte do autor”, escrito por

Roland Barthes em 1968, e “O que é um autor?”, do filósofo Michel Foucault, proferido em

1969 como tema de uma conferência.

No primeiro texto, Barthes, em poucas páginas, tende a um discurso contra a escritura

como marca do corpo e da voz que escrevem o texto literário, ao afirmar: “a escrita é a

destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse

oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a

identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve” (2012, p. 57). Seguindo a

mesma linha teórica, Foucault, em tom interrogativo, parte de um mote beckettiano para

asseverar: “que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala. Nessa indiferença,

acredito que é preciso reconhecer um dos princípios éticos fundamentais da escrita

contemporânea” (2006, p. 267-268, grifo nosso).

Tanto um autor quanto outro parte de uma revisão do papel do indivíduo como autor

de discursos literários. Seriam, portanto, ambos os textos a lançarem as bases não apenas de

17

nossa formação acadêmica inicial como também da Teoria Literária (especialmente durante os

anos de estruturalismo e do new criticism) acerca do sujeito que escreve uma obra.

Roland Barthes, na perspectiva do estruturalismo linguístico, que compreende a língua

em oposição à fala, ou seja, como um espaço de ausência das marcas do indivíduo, vai

sugerir, em seu texto, que o escritor passa a existir somente quando do nascimento da obra

literária, isto é, não existiria antes e nem depois, mas apenas num aqui e agora da enunciação.

Nestes termos, o escritor não teria biografia, nem história ou psicologia. Seria tão somente um

“eu de papel que tem uma história meramente linguística, textual” (CAVALHEIRO, 2008, p.

6). Entendendo o autor como uma personagem moderna e a literatura como um produto

essencialmente verbal, Barthes critica as atenções da cultura literária de seu tempo,

“tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas

paixões” (2012, p. 58). O teórico francês assim o afirma porque entende a linguagem como

conhecedora de um sujeito (vazio fora da enunciação) e não de uma pessoa. Barthes prefere,

então, não falar de um Autor, um ser que precederia ou excederia a escrita, mas de um

scriptor, que nasce ao mesmo tempo em que a obra.

O texto de Michel Foucault articula teoricamente o que seria a função autor. Para o

filósofo, o autor teria uma existência exterior e anterior ao texto, realizando, portanto, um

processo de apagamento de suas características individuais ao compor uma obra. Foucault

parte do fato de que o lugar antigamente ocupado pelo autor encontra-se agora vazio e o autor

deixa de ser proprietário e responsável por seu texto. Conforme o filósofo, a escrita é cada vez

mais “o espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer” (2006, p. 268). Foucault

traça, então, uma relação da escrita com a morte: no caso das narrativas gregas, uma morte

que eterniza o herói; da mesma forma na narrativa árabe (As mil e uma noites), que teria como

foco contar para não morrer. Por sua vez, a escrita contemporânea estaria ligada ao sacrifício,

pois a obra agora não mais imortaliza seu autor, pelo contrário, o assassina. Por conseguinte,

afirma o teórico, “o próprio da crítica não é destacar as relações da obra com o autor, nem

querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência” (2006, p. 269).

Destarte, Foucault não deixa de entrever algumas limitações nesse desaparecimento, pois

tanto a obra como a escrita seria um bloqueio a essa certeza, uma vez que tais noções, de

alguma forma, remetem à figura autoral.

Contrariando as recomendações do professor naquelas primeiras aulas de Teoria

Literária, iniciamos o capítulo (que tem como subtítulo “dos arquivos pessoais à literatura”)

com duas afirmativas dos autores aos quais se vinculam nossos objetos de estudo: A Selva

(1930) e Mayombe (1980). Assim o fazemos porque de alguma maneira tem-nos parecido

18

relevante para a Teoria da Literatura o fato de que experiências pessoais tenham se tornado,

ao menos desde a segunda metade do século XX, matéria de textos literários. É nesse sentido

que afirmativas como as de Ferreira de Castro e Pepetela têm nos instigado desde os anos

finais da graduação: por atrelarem, em um mesmo discurso, texto literário, experiências

traumáticas e biográficas. Além disso, os discursos dos autores cujas obras serão estudadas

vinculam-se a contextos referenciais, isto é, a momentos históricos vivenciados nas florestas –

uma, na Amazônia e outra, na África – que extrapolam, portanto, os limites entre ficção e

fato, tão demarcados em textos narrativos.

A constatação dessas vinculações direciona a questionamentos: por que esses dois

romancistas do século XX incidem numa direção literária rejeitada por parte dos teóricos da

literatura? Teria o sujeito que escreve (re)tomado na literatura o mesmo lugar do herói na

narrativa? Estariam os sentidos dos aclamados textos de Barthes e de Foucault sendo

evaporados por outras concepções da crítica? Como diria o próprio Roland Barthes: “a escrita

propõe sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-lo” (2012, p. 63). Por ora, cremos

importante afirmar que, não obstante a rejeição das marcas pessoais pela concepção

estruturalista de língua, tem sido sintomático o fato de que, desde as últimas décadas do

século XX, a presença de um eu ou a relação entre autor e escrita tornam-se menos latentes,

de modo que as marcas biográficas no texto literário têm instigado a alguns pesquisadores e

têm sido objeto de pesquisas.

Beatriz Sarlo, em Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, cuja

edição princeps data de 2005, desenvolve alguns argumentos acerca de uma valorização das

experiências subjetivas e da memória como suportes do texto na atualidade. O livro examina

as razões de uma confiança na primeira pessoa, que ressurge como forma privilegiada de

discurso. Conforme a pesquisadora, nas últimas décadas

proliferam as narrações chamadas „não ficcionais‟ (tanto no jornalismo como

na etnografia social e na literatura): testemunhos, histórias de vida,

entrevistas, autobiografias, lembranças e memórias, relatos identitários. A

dimensão intensamente subjetiva (um verdadeiro renascimento do sujeito,

que nos anos 1960 e 1970 se imaginou estar morto) caracteriza o presente.

Isso acontece tanto no discurso cinematográfico e plástico como no literário

e no midiático. (2007, p. 38, grifos nossos)

Para Sarlo, mesmo durante os anos 1970 e 1980, quando acontecia o que se chamou de

“guinada linguística”, impunha-se também, às vezes como sombra, uma “guinada subjetiva”.

Essa crise da subjetividade seria datada desde a década de 1970, quando o estruturalismo

conquistou territórios, da antropologia à linguística, à teoria literária e às ciências sociais. Não

19

obstante, a subjetividade, que se colocava à sombra, retoma seu lugar a partir de uma

valorização dos estudos da memória e da memória coletiva. A historiadora e crítica literária

defende que “a atual tendência acadêmica e do mercado de bens simbólicos que se propõe a

reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na [...] revalorização da primeira pessoa

como ponto de vista, [...], que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos

culturais do presente, não são surpreendentes” (2007, p. 18). E não seriam porque um olhar

retrospectivo revelaria a forte presença do eu na história da literatura.

Em linha teórica análoga à de Beatriz Sarlo, isto é, acerca de um “renascimento do

sujeito”, Diana Klinger defendeu em 2006, no instituto de Letras na Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (UERJ), a tese intitulada Escritas de si, escritas do outro: autoficção e

etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. Em sua pesquisa propõe pensar o

sujeito da escrita depois da crítica estruturalista, ou seja, depois de sua descentralização. A

tese apresenta alguns exemplos da literatura produzida na América Latina, na França

(vanguarda do estruturalismo) e em Cuba, e constata que a primeira pessoa aparece como

marca, problemática, da literatura contemporânea universal.1 Conforme a autora,

assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande

sucesso mercadológico das memórias, das biografias, das autobiografias e

dos testemunhos; aos inúmeros registros biográficos na mídia, retratos,

perfis, entrevistas, confissões, talk shows; ao surto dos blogs na internet, ao

auge de autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas ciências sociais, a

exercícios de “ego-história”, ao uso de testemunhos e dos “relatos de vida”

na investigação social, e à narração autorreferente nas discussões teóricas e

epistemológicas. (2006, p. 20)

Concluindo, portanto, que a escrita de si afeta não somente a produção literária, mas

os diversos discursos contemporâneos, a pesquisadora propõe um questionamento, ao qual

busca responder ao longo de sua tese: “que sentido dar ao retorno na cena literária de uma

escrita do eu? [...] Qual é o sujeito que retorna?” (2006, p. 40). Partindo desses

questionamentos, sugere que “a escritura como destruição da voz e do corpo que escreve seria

um conceito datado, e talvez historicamente ultrapassado” (p. 35).

Mas se a valorização na primeira pessoa é uma realidade do século XX e que ganha

força na contemporaneidade, nem sempre foi assim. Luiz Costa Lima, num texto que se

intitula “Memórias e júbilos do pequeno eu”, recupera a trajetória do eu que escreve,

1 Segundo Klinger, nessa literatura a questão do sujeito autoral aparece estruturada sob a forma de “sagas

autobiográficas”. Saga é uma palavra de origem germânica, que significa “canto heroico”, “lenda”. No caso dos

romances que nos propomos analisar, o conceito poderia ser considerado apenas no que se refere ao romance

Mayombe: seja pelo tom épico presente na abertura do romance, seja pela forma como Sem Medo, herói e

protagonista, se empenha para alcançar a libertação de seu povo.

20

apontando como individualidade e literatura não são conceitos atemporais. Conforme o

crítico, antes do Renascimento, não é possível admitir que houvesse literatura enquanto

ficção, tampouco uma escrita autobiográfica na Antiguidade, pois uma vida só “adquiria

sentido à medida que se amoldasse a um modelo comunitário vigente” (1986, p. 252). Na

Idade Média, a experiência pessoal “transforma-se no mero substrato de experiências

espiritualmente orientadas” (p. 255), de modo que também aí não se pode falar em uma

narrativa focada no eu, em sua interioridade.

A partir de que período, então, a literatura passa a dar vazão ao indivíduo? Ian Watt

(2010) defende que é a partir da ascensão do romance moderno, no século XVIII, quando o

romancista deixa de representar a comunidade e o coletivo e opta por encenar, no espaço do

livro, uma vida particular e individual. O autor mostra como a constituição de personagens no

romance, especificamente nos de Richardson e Defoe, está intimamente ligada às experiências

individuais. Esse gênero literário, explica o autor, diferente dos gêneros clássicos, constitui-se

como uma narrativa na qual o leitor acompanha as experiências e os acontecimentos da vida

privada do indivíduo urbano e moderno. Tal tendência, em se substituir, na literatura, uma

abordagem coletiva para uma em que se destaca a experiência individual, já era crescente

desde o Renascimento, quando se promoveu a secularização do pensamento, como aponta

Luiz Costa Lima.

Pierre Bourdieu critica a valorização ou recuperação biográfica das últimas décadas.

Para ele, “a história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram como

contrabando no universo científico” (1996, p. 183). Seu questionamento centra-se nas ideias

de uma vida organizada como uma história, pois seria impossível refazê-la cronologicamente,

em sequências ordenadas segundo relações inteligíveis. Essa propensão de tornar-se o

ideólogo de sua própria vida, selecionando acontecimentos significativos e estabelecendo

conexões coerentes, argumenta o sociólogo, envolve a cumplicidade do biógrafo, que com

ferramentas de um profissional da interpretação, confere um sentido artificial à criação. Uma

vez que o real é descontínuo e formado por elementos justapostos sem razão, Bourdieu

argumenta também que “produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é,

como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez

seja conformar-se com uma ilusão retórica, [...] que toda uma tradição literária não deixou e

não deixa de reforçar” (p. 185).

Teríamos, portanto, dois movimentos antagônicos, mas não isolados: um, de morte e

outro, de renascimento. Tais movimentos, de entrada e saída de cena do sujeito, nos

permitiriam falar de um “entrelugar do eu”, de um sujeito que, ao longo da história filosófica

21

e literária, foi posto em uma gangorra. Entre diferentes concepções do eu e de sua relação

com a escrita, é fato que, se durante a Idade Antiga e Média o eu era entendido somente no

contexto coletivo ou sob a tutela da Igreja; e se no Renascimento esse eu desponta como

narrativa individual, permeado pela categoria do real e da ficção; a partir da segunda metade

do século XX, outro eu emerge: o sujeito testemunhal (marcado no corpo e na memória por

experiências de violência). Parafraseando um texto de Marília Rhotier (2001), talvez o que a

crítica esteja fazendo hoje, como parte de uma política mais ampla de conservação e

preservação, é uma reciclagem do que se considerava (e em parte ainda se considera) lixo

literário, isto é, o reaproveitamento do que estava às margens do texto literário: os arquivos

dos escritores. De que forma? Em que contexto?

1.1 O sujeito testimonial: do corporal e memorialístico ao literário

O século XX, na acepção de Eric Hobsbawm, foi a “Era das catástrofes” (1995):

Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Revolução Russa, ascensão do nazismo, Guerra Civil

Espanhola, guerras de independência colonial, Revolução Cubana, Guerra do Vietnã,

ditaduras militares na América Latina. Esses acontecimentos históricos tiveram como

consequência, para a antropologia, a história, a psicanálise e os estudos culturais, o

aparecimento de um sujeito, cujo corpo e memória são marcados pela violência.

Profundamente abalado pelos acontecimentos trágicos do século das guerras, esse sujeito,

designado testemunha, faz uso da narrativa não mais para rever-se em sua melhor forma no

passado, mas para contar ou para confessar uma situação-limite à qual sobreviveu.

Etimologicamente, como aponta Giorgio Agamben (2008, p. 27), em Latim há dois

termos para representar o sujeito que testemunha. “O primeiro, testis, [...] significa aquele que

se põe como terceiro em um processo ou em um litígio entre dois contendores. O segundo,

superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar

testemunho disso”. As narrativas desses sujeitos – que viram, ouviram ou viveram uma

experiência violenta (testis) ou que atravessaram a morte (superstes) – resultam na produção

do que se denomina literatura de testemunho.

Shoshana Felman, professora de Literatura Comparada na Universidade de Yale,

sustenta que

o testemunho é o modo literário – ou discursivo – por excelência de nosso

tempo e que nossa era pode ser definida precisamente como a era do

testemunho. Se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e a

Renascença o soneto, [...], nossa geração inventou uma nova literatura,

aquela do testemunho. (2000, p. 18)

22

Esse gênero literário, típico do século das catástrofes, conceitualmente está organizado

em duas linhas: a literatura de testimonio, decorrente de contextos históricos de repressão e

ditadura na América Espanhola; e a literatura da Shoah, oriunda da II Guerra Mundial.

Tentemos compreender melhor como se constituem essas produções.

O termo testimonio, conforme tem sido conceituado na América Latina, é de origem

castelhana e semanticamente compreende tanto um sentido jurídico (testis) quanto histórico.

Hugo Achugar, ao problematizar algumas concepções da teoria do testemunho, retoma a

origem da palavra. Segundo o crítico uruguaio,

originalmente “testemunho” vem do grego “mártir”, “aquele que dá fé de

algo” e supõe o fato de ter vivido ou presenciado um determinado fato. Entre

os gregos, de fato, o uso de mártir conota sofrimento ou sacrifício e atende

basicamente ao fato de ser fonte de primeira mão. Ao passar ao latim, e

sobretudo com o advento da Era cristã, mártir adquire o significado hoje

vigente daquele que dá testemunho de sua fé e sofre ou morre por isso. Aqui

é, pois quando o termo adquire o sentido de conduta exemplar. A vida do

mártir é oferecida em narração biográfica como um exemplo a respeitar e

eventualmente a seguir. (apud PENNA, 2003, p. 321)

Afinado, em seu aspecto teórico mais amplo, com a Teologia da libertação, na

Hispano-América, o testimonio é pensado, portanto, “a partir da tradição religiosa da

confissão, da hagiografia, do testemunho bíblico e cristão no seu sentido de apresentação de

vidas „exemplares‟, da tradição da crônica e da reportagem” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.

82). Analisado pelo viés estético, ou mais especificamente, como forma de pensar e de fazer a

literatura, como destaca Seligmann-Silva, ficou vinculada, no geral, aos gêneros da crônica,

hagiografia, confissão, autobiografia, reportagem, diário e ensaio. Foi pensada também como

uma cria da literatura regionalista, muito forte na literatura latino-americana da primeira

metade do século XX (2005, p. 91).

Do ponto de vista da estrutura narrativa, conforme John Beverly, o testimonio é uma

“narração [...] contada na primeira pessoa gramatical, por um narrador que é ao mesmo tempo

o protagonista (ou a testemunha) de seu próprio relato. Sua unidade narrativa costuma ser uma

vida ou uma vivência particularmente significativa” (apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p.

89-90). Por sua vez, João Camillo Penna, no texto “Este corpo, esta dor, esta fome: notas

sobre o testemunho hispano-americano” (2003), afirma que esse tipo de narração, a qual só

teve maior visibilidade a partir dos anos 1980, consiste numa forma de expressão intimamente

ligada aos movimentos sociopolíticos e marca a irrupção de sujeitos de enunciação

tradicionalmente silenciados e subjugados. A importância do testemunho na América Latina,

destaca Camillo Penna, está ligada à possibilidade de dar expressão a culturas com uma

23

inserção precária no universo escrito e uma existência quase que exclusivamente oral (2003,

p. 305).

Os primeiros registros acerca de um gênero testimonial são procedentes de Cuba, mais

especificamente do contexto da revolução cubana. No início dos anos 1960, o país “assumiu a

liderança de um movimento de revisão da história, que passou a ser recontada a partir do

ponto de vista dos excluídos do poder e explorados economicamente” (SELIGMANN-

SILVA, 2005, p. 87). De acordo com Márcio Seligmann-Silva (2003), tais escritos não se

vinculavam ainda ao que ficaria conhecido como literatura de testimonio, pois tinham nesse

momento uma perspectiva muito mais histórica. Somente à medida que o político e o literário

vão se aproximando, é possível falar não apenas de uma teoria do testemunho, como também

de uma literatura testimonial na América Hispânica.

Em 1970, o Centro Cultural Casa de las Américas, ao julgar os textos de um concurso

literário, deparou-se com um gênero que tinha forte ligação entre o sujeito marginalizado, a

história e a violência, o que motivou o júri a instituir uma nova modalidade para o concurso,

que se denominou Premio de Testimonio Casa de las Américas. Considerando que boa parte

dos textos escapavam ao padrão romance, o grupo – composto por Angel Rama, Isadora

Aguirre, Hans Enzensberger, Noé Jitrik, Haydée Santamaría e Manuel Galich – “ponderou

que era possível constatar a existência de uma ampla e vigorosa tendência de tomar a prosa

para narrar a experiência de participação em ações revolucionárias” (MARCO, 2004, p. 50),

sem abrir mão da qualidade literária.

Seligmann-Silva (2005) aponta ainda como fatos determinantes para o

estabelecimento do gênero: o governo Allende e a ditadura chilena, a partir de 1973; o regime

sandinista na Nicarágua, nos anos 1980, que fez com que houvesse um boom de testemunhos

naquele país (p. 88); e o testemunho da índia quiché guatemalteca Rigoberta Menchú sobre a

opressão e a luta de seu povo pelos direitos civis, intitulado Mi llamo Rigoberta Menchú y así

me nació la conciencia (1983). O cerne do testemunho de Rigoberta consiste “na narração da

experiência do racismo e da destruição de sua família e comunidade, dos trabalhos nas

fazendas de algodão, da execução de seu irmão, pai e mãe pelo exército guatemalteco e da

redenção dessas experiências na formação de sua consciência política” (PENNA, 2003, p.

310-311). Como se nota, esse gênero vai requerer, portanto, uma relação direta com a contra-

história, chamando atenção para a continuidade da opressão e para a sua onipresença, além de

estabelecer uma íntima relação com a política.

Nesse sentido, isto é, de sua afinidade com a política, a proposta conceitual do

testemunho hispano-americano remonta aos prognósticos de Walter Benjamin em “A obra de

24

arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Nesse ensaio, o filósofo alemão apresenta

algumas teses sobre as tendências evolutivas da arte nas condições produtivas do século XX.

Para Benjamin, as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente

mágico, depois religioso. Esse modo de ser aurático da obra de arte, em tempos de sua

reprodutibilidade técnica, deixa de fundar-se no ritual e passa a fundar-se em outra práxis: a

política. Inserida no contexto político violento do século, a técnica (que inicialmente foi

utilizada em função da multiplicação e seriação da arte) passou a ser utilizada em função da

guerra. Contrapondo-se ao que denomina “estética da guerra”, Benjamin sugere uma

politização da arte, ao afirmar: “eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O

comunismo responde com a politização da arte” (1994, p. 196). Seguindo a chave

benjaminiana, ou seja, de que a estetização da política deve ser substituída por uma

politização da estética, “a nova estética proposta pela crítica testemunhal tem como corolário

essencial a promessa de sua dissolução na política” (PENNA, 2003, p. 304).

Retomemos ainda o relato de Rigoberta Menchú. Destituída das formas escritas do

narrar, Menchú narra oralmente seu testemunho à antropóloga Elisabeth Burgos-Debray, que

o transcreve. O testemunho da ativista política, premiada em 1992 com o Nobel da Paz, é

particularmente importante para pensar a relação entre o “eu” e a narrativa testimonial. Doris

Sommer sugere que a primeira pessoa, da qual Menchú faz uso no seu relato, expressa “uma

relação metonímica de experiência e consciência compartilhadas” (apud COSTA, 1993, p.

308). Assim,

o modo como Rigoberta se apresenta pode ser lido como uma tentativa

retórica de reestruturar a relação entre o pessoal e o político através da

subversão do Individualismo ocidental. O “Eu” que inicialmente posiciona

Rigoberta como a autora do texto ou o sujeito do significado não demora a

ser minado por seu próprio reconhecimento de que a história de sua vida

contém as histórias das vidas de todos os guatemaltecos pobres e oprimidos.

[...] Reconhecendo as diferenças entre indivíduos e comunidade, ela vê a si

própria simplesmente como parte daquela comunidade. (COSTA, 1993, p.

308)

Destarte, o sujeito testimonial não é tomado como um indivíduo pleno de verdade,

capaz de constituir uma história de si apartada do contexto social. Nessa concepção, não há

um sujeito afastado do mundo porque suas experiências e memórias se dão em função de uma

íntima relação com os fatos históricos e políticos, de modo que a subjetividade ou o interior

do sujeito constitui-se também pela exterioridade.

Jaime Ginzburg destaca a necessidade de “diferenciar narrativas que postulam uma

experiência „individual e particular‟, na autobiografia tradicional, e a formação de uma

25

subjetividade coletiva do testemunho” (s/d, p. 5). Para Seligmann-Silva, nessa forma de

escrita, aquele que narra sente a necessidade de fazer justiça; de dar conta da exemplaridade

do herói; e de conquistar uma voz para o subalterno (2005, p. 89). O sujeito testemunhal,

portanto, como conclui Camillo Penna, opõe-se ao individualismo autotélico (2003, p. 302).

Desse modo, pode-se afirmar que, na literatura de testimonio, sujeito criador e sujeito

pessoa convergem para uma subjetividade coletiva. Não obstante, essa relação entre coletivo e

particular, entre o sujeito representante e a comunidade que representa, não deve ser entendida

como uma totalidade social, mas somente como uma totalidade relativa, fragmentária

(PENNA, 2003, p. 312). É por esse motivo que Menchú faz opção pelo “eu” em sua narrativa

e não pelo “nós”, pois embora reconheça a singularidade de sua experiência, o emprego da

primeira pessoa não remete ao indivíduo cartesiano, mas a um “eu” que, consciente dos

limites do narrar, evita substituir, com um gesto totalizante, o coletivo, o outro (cf. SOMMER

apud PENNA, 2003, p. 317). O “eu” representa, por assim dizer, uma singularidade plural

(PENNA, 2003, p. 318).

Para Beatriz Sarlo (2007), no contexto político das ditaduras na América Latina, a

narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do

passado, de tal maneira que não há testemunho sem experiência (p. 24). Conforme a

historiadora, esse sujeito narra sua vida para conservar a lembrança ou para reparar uma

identidade machucada. Relativamente ignorados por outros modos de narração do passado, os

sujeitos marginais demandam novas exigências de método (situado numa zona de confluência

com a antropologia) e tendem à escuta sistemática dos discursos de memória: diários, cartas,

conselhos, orações (SARLO, 2007, p. 17). Além desses tipos textuais, Camillo Penna,

baseado em John Berveley, acrescenta ainda como suportes para o testemunho hispano-

americano: as biografias, o romance-reportagem, as crônicas coloniais, o ensaio nacional

costumbrista – do qual seria exemplo Os sertões de Euclides da Cunha –, os diários de guerra

e os relatos participativos de ativismo político. Todos filiados a gêneros nos quais é possível

notar, em suas características, marcas que apontam tanto para o sujeito que escreve quanto

para o discurso referencial.

Tomando como base as propriedades narrativas da literatura testimonial, cremos ser

possível relacioná-la com o teor testemunhal presente no romance Mayombe, de Pepetela.

Guardadas as diferenças entre testemunhos como os de Rigoberta Menchú – tidos como não

ficcional e exemplar – é no sentido de um sujeito testimonial (testis) que queremos ler as

relações entre biografia e narração na obra do escritor angolano: como testimonio de

experiências históricas e políticas pelas quais o sujeito que escreve passou.

26

Leonor Arfuch, ao estudar as relações entre violência política, autobiografia e

testemunho na Argentina, afirma que

en esas narrativas se destaca fuertemente la experiencia personal, un “yo”

que narra, desde los gêneros más canónicamente autobiográficos o desde el

testimonio de quien há vivido, visto u oído, pero también desde diversos

ejercicios ficcionales o autoficcionales, que al liberarse del ajuste a los

hechos, su datación exacta o la “veracidad” de situaciones y personajes,

permite poner em escena registros pulsionales, conductas socialmente

reprobables, emociones “prohibidas”, en definitiva, mostrar, quizá con

mayor crudeza, el delinde entre lo público y lo privado, entre lo épico y lo

íntimo. (2012, p. 13)

Nossa hipótese, portanto, é de que, à semelhança do que descreve Arfuch no contexto

argentino, a narrativa Mayombe, nascida de um “diário” escrito em 1971, quando Pepetela era

guerrilheiro no Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), guarda afinidades

com as concepções teóricas e literárias do testemunho como vem sendo pensado na América

Latina: seja pelas relações entre as experiências de guerra e o contexto sociopolítico, seja pelo

conteúdo de contra-história e pela enunciação de sujeitos marginalizados na qual a narrativa

está estruturada.

1.2 Escritos de um guerrilheiro em Cabinda

Assim como o testimonio está originalmente ligado a contextos políticos de ditaduras

na América Hispânica, a escrita de Pepetela também se filia a acontecimentos políticos de

Angola. De modo geral, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela) é lembrado e

lido como um autor participante da guerrilha. Textos que circulam na internet apontam com

frequência para a vivência de guerra do escritor e como esse fato incide em suas obras. Daniel

Conte, por exemplo, em tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, assim pondera: “é relevante salientar que Pepetela é um sujeito que viveu a História de

seu país. Uma testemunha ocular da libertação construída por Angola” (2008, p. 18, grifos

nossos). Esse fato da vida do escritor torna-se importante na constituição de sua obra porque

dá origem ao que Eloísa Aldás (2001, p. 30) denomina “narrador sujeito-histórico” – traço

preponderante na literatura de testemunho –, compreendido como o sujeito que viveu parte

das experiências que narra.

Para apreender melhor essas relações entre a experiência da guerrilha e a literatura do

escritor angolano, analisaremos quatro entrevistas por ele concedidas: 1) recolhida por Carlos

Serrano, em 1985; 2) realizada por Daniel Conte, em 2001, intitulada “Pepetela, viva voz”; 3)

concedida a Rita Silva Freire, em 2011, com o título “Não se festeja a morte de ninguém”; e

27

4) feita por Aguinaldo Cristóvão, intitulada “O escritor é um ditador no momento da escrita”

(s/d). Tentamos apreender nesses textos, três pontos-chave: a relação entre o militante e a

formação do escritor; a gênese do romance; a guerrilha e a escrita testemunhal.

Ao retomar sucintamente a história de vida de Pepetela, confere-se que as suas

atuações em movimentos políticos iniciaram em 1958, quando, ao deixar o continente

africano e instalar-se em Lisboa, passou a frequentar a Casa dos Estudantes do Império (CEI)

e a participar de organizações estudantis. Nesse mesmo período iniciou a sua trajetória

literária, com a publicação de contos na revista Mensagem. Na década de 1960, engajou-se

ainda mais na atividade política, passando a fazer parte, em 1963, do MPLA. Em 1969 foi

enviado a Cabinda, região situada no extremo Norte da então colônia portuguesa, onde

participou diretamente na luta armada como guerrilheiro e como responsável pelo setor da

educação do MPLA.

É nesse mesmo período que recebe o epíteto de guerra “Pepetela”, tradução do

sobrenome “Pestana” para a língua Umbundo. Desse fato persiste ainda uma imbricação entre

a identidade guerrilheira e a literária, pois “Pepetela” passou a ser o registro autoral

estampado nas capas de suas publicações. Os vínculos entre atuação política e escrita não se

restringem à assinatura. O testemunho direto da história angolana seria de tal modo

significativo que lançaria as bases de sua obra e de sua própria trajetória existencial, sendo,

portanto, talvez impraticável, ao estudar a obra desse autor, desvincular as experiências

políticas de resistência ao sistema colonialista, da escrita literária.

No que diz respeito ao primeiro ponto que buscamos analisar nas entrevistas, isto é, a

relação entre o militar e a formação do escritor, é possível observar a relevância e a

reincidência conferida a esse aspecto em todos os quatro textos. Daniel Conte (DC) introduz a

entrevista com uma nota, na qual afirma que a trajetória da obra de Pepetela revela “a

construção de um guerrilheiro/escritor que, aos poucos, vai abandonando o fuzil para dar

continuidade à luta empunhando, agora, a pena” (2001, p. 1). A associação é reforçada na

pergunta lançada pelo entrevistador: “Mayombe foi escrito durante a guerra. Quem o escreveu

foi o Pepetela guerrilheiro ou o escritor? A distância é muita entre os dois?” (2001, p. 13). Ao

que Pepetela argumenta: “na altura em que escrevi Mayombe não sentia diferença. [...] Acho

que era o Pepetela escritor sim, mas que correspondia bem ao guerrilheiro” (2001, p. 13). A

resposta aponta para uma íntima aproximação entre os objetivos de sua atuação militar e de

seu projeto literário, ou seja, atuar como guerrilheiro e atuar como escritor é, em ambos os

casos, agir politicamente.

28

Rita Silva Freire (RSF), em sua entrevista, ao focar o tema da violência, característica

dos conflitos armados, interessa-se por saber a respeito da sensação de pegar numa arma pela

primeira vez, especialmente para um homem como Pepetela, formado em sociologia pela

Universidade de Argel, e cuja atuação política havia sido até então eminentemente intelectual.

O autor assim relata:

quando peguei na arma para participar no combate ainda não tinha tido

treino militar, só tinha visto a guerra no cinema. É um bocado complicado.

Achei que aquilo era pesado demais, incómodo. Nem deu tempo para

experimentar, foi já em acção que comecei a carregar no gatilho. Nem sei se

acertei nalguma árvore. Via-se pouco, muito mato, muita confusão. Mas

meteu medo. A adrenalina sobe e a pessoa não sente mais nada. (2011, p. 3)

As descrições abreviadas, porém pessoais, e até certo ponto cruas, que o escritor faz da

guerrilha, outrora apenas uma realidade cinematográfica, se estendem também para o

romance, quando há narrações e descrições de confrontos diretos entre angolanos e

portugueses, que ficam quedos, entorpecidos pela força do fuzil.

Aguinaldo Cristóvão (AC) também se volta para a associação entre Pepetela e a

guerrilha. Interrogado acerca de sua frequente identificação como um “autor-guerrilheiro”, o

escritor contrapõe-se: “não dou grande importância. Nem a escolas literárias ou coisa assim”

(s/d, p. 1). Entretanto, Cristóvão insiste na temática, arguindo sobre fatores condicionantes e

determinantes das guerras de libertação para as carreiras de escritores que viveram essa

experiência:

AC: Queria que falasse do que sabe sobre os autores que, como Pepetela,

participaram nas guerras de libertação de Angola, quanto aos aspectos

condicionantes e determinantes das suas carreiras:

Pepetela: Penso que essa participação pode ter sido uma boa fonte de

inspiração, sobretudo de conhecimento do país e da sua gente; uma

experiência insubstituível. Na época, não havia pretensão nem possibilidades

de publicar, de modo que penso que os escritores escreviam muito mais para

si próprios, o que implica grande liberdade de criação, sem preocupação com

o que se poderia pensar sobre a sua obra. (s/d, p. 2, grifos nossos)

O argumento de escrever para si mesmo acerca de uma experiência insubstituível,

como refere Pepetela, poderia dar ao leitor a impressão de que aquele que escreve em meio a

um evento violento faz muito mais um registro pessoal e intimista do que um texto que se

destina ao outro, como um testemunho. O escritor, com frequência, volta a esse ponto nas

entrevistas e reforça que não pretendia publicar o romance, uma vez que a escrita era,

sobretudo, um exercício pessoal de compreensão da realidade na qual ele estava inserido. Não

obstante a primeira impressão que as palavras de Pepetela poderiam causar no leitor, a

29

afirmativa pode ser melhor acolhida se tivermos em conta que, pelo prisma conceitual do

testemunho, aquele que escreve o faz por uma necessidade de testemunhar. Em outras

palavras, diz-se que o sobrevivente vive um processo dialético e complexo ao testemunhar,

pois “recordar e esquecer são dois fatores dinâmicos e inseparáveis (ele em certa medida

recorda para se esquecer e porque não consegue esquecer-se precisa narrar)” (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 15). Daí a persistência de Pepetela em afirmar que sua escrita tem mais a ver

com uma necessidade de compreensão da realidade do que com uma aparente preocupação

editorial ou com o leitor. Como arremata o próprio Pepetela na entrevista concedida a Daniel

Conte:

não havia muita gente em Angola com capacidade e gosto de escrita que

tivesse vivido em uma sociedade colonial, que tivesse contribuído para o fim

da sociedade colonial, lutando contra ela, lutando pela independência e que

tivesse assistido, no sítio onde nasceu, depois dum percurso grande pelo

mundo e por todo lado, ao fim, à derrocada dessa sociedade [...]. Tive a

oportunidade de ver isso, de assistir a isso tudo e senti-me na obrigação de

escrever. (2001, p. 204)

A dualidade exposta no escrever para si ou escrever para o outro, pode ser observada

mais propriamente quando os entrevistadores se voltam para o processo de criação de

Mayombe, o segundo aspecto que buscamos analisar nas entrevistas. Conforme os

depoimentos de Pepetela, a criação do romance surge de um comunicado de guerra que lhe

cabia escrever para os membros do MPLA:

Mayombe é um livro que foi feito sem projeto. Esse livro apareceu dum

comunicado de guerra. Nós fizemos uma operação militar e eu era o

responsável por mandar informações, redigir o comunicado, como tinha

passado a operação e enviar depois para o nosso departamento de

informação, que veiculava no rádio, no jornal. Eu escrevi aquela operação

com que o livro começa e que é real. Acabei de escrever o comunicado, uma

coisa objetiva, assim fria. E não foi nada disso que se passou. E continuei o

comunicado, tirei a primeira parte e mandei pra eles, no departamento de

informações e continuei. (2001, p. 206, grifos nossos)

Devemos nos deter em alguns pontos dessa afirmação. A associação entre o

surgimento do romance e um episódio real de guerra, explicita bem a equação entre sujeito-

mundo na escrita testemunhal, que ora pende para o subjetivo, ora para o objetivo

(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 42). Destarte, é essa natureza da memória, juntamente com a

marcação de um sujeito histórico, presentes na composição de Mayombe, que constituem os

traços principais do testemunho literário na narrativa (cf. ALDÁS, 2001, p. 30). Outro aspecto

importante refere-se às características da linguagem empregada para redigir um comunicado

30

(objetiva e fria), em oposição à operação de guerra, realidade na qual o ser humano está

profundamente envolvido, física e emocionalmente. Uma vez que a testemunha estabelece

uma relação afetiva com a memória, o registro comunicativo – impessoal – torna-se

insuficiente para dar conta da experiência violenta.

A relação entre a história da guerrilha e a composição de Mayombe é também assunto

de Aguinaldo Cristóvão, que foca esse aspecto a partir do par ficção e realidade:

AC: Algumas divergências no seio dos combatentes e as dificuldades

existentes descritas em Mayombe são reais. Pode contar-nos mais sobre este

período da sua vida?

Pepetela: – Esse livro foi escrito em total liberdade, até porque não tinha

pretensão de o publicar. Eram mais reflexões sobre o que se ia passando, em

forma de romance. Poderia ser um diário, mas nunca gostei de diários. Uma

parte foi escrita à noite, nas bases do interior de Cabinda, enquanto os

companheiros dormiam. Uma segunda parte foi escrita em Dolisie, no

Congo, perto da fronteira, onde tínhamos a base mais importante de apoio à

guerrilha. E a parte final foi escrita em Brazzaville. Ele foi acompanhando a

minha vida nessa época de Cabinda e por isso tem muitas referências

verídicas, embora as personagens não correspondam a pessoas reais. Uma ou

outra tem traços que a um momento dado até confundiram os intervenientes,

mas eram apenas um traço aqui, outro traço ali. (s/d, p. 3)

O testemunho do guerrilheiro engendra, além do ficcional, o histórico, que remete ao

contexto localizado no tempo e no espaço de onde emerge o trauma (ferida) e a violência, que

gerou a própria narrativa. Nesse aspecto é possível notar também outra característica da

literatura de teor testemunhal: o cruzamento da literatura com a história, que está ao mesmo

tempo dentro e fora da narrativa. Ocorre que, no processo de transposição da realidade para o

texto literário, os dados históricos são embaralhados e tratados estética e politicamente. Como

explica Seligmann-Silva ao comparar o registro historiográfico com a experiência do

sobrevivente, essa forma de narrar é limitada e não dá conta da experiência. Não obstante, se a

reflexão sobre o testemunho leva a uma problematização da divisão estanque entre literatura e

história, as fronteiras entre essas duas categorias não são, de todo, apagadas (2003, p. 10),

sendo necessário atentar para a distinção entre os dois paradigmas.

Carlos Serrano, em linha análoga a adotada por Cristóvão, aborda em sua entrevista as

afinidades entre personagens e pessoas históricas, mas vai além, e questiona as escolhas de

Pepetela no que se refere ao suporte/gênero escolhido para narrar: “Por que então escolheste a

ficção quando poderias ter elaborado uma análise sociológica do tipo acadêmico? Foi tua

posição como escritor ou a forma que encontraste de melhor objetivares os problemas?”

(1985, p. 136). E Pepetela redargui:

31

escrevi porque tinha necessidade de escrever. Estava em cima de uma

realidade que quase exigia que eu escrevesse. Escrevendo eu compreendia

melhor essa realidade; escrevendo eu atuaria também melhor sobre a própria

realidade. Não quanto à obra escrita, mas pela minha atuação militante para

melhor compreensão dos fenômenos que se passaram. Mas escrevia também

para compreender melhor esses fenômenos. Claro que podia fazê-lo com um

ensaio acadêmico, não era essa a minha intenção. Eu vejo a coisa como

ficcionista. (1985, p. 136)

Uma das principais distinções entre o texto histórico e o texto literário testemunhal,

como já indicamos, sustenta-se na relação afetiva que a testemunha estabelece com os eventos

narrados: enquanto o fazer historiográfico requer um distanciamento do fato narrado, a

testemunha, por sua vez, acerca-se da memória para dar conta de situações pelas quais o

sobrevivente passou. Conforme Roney Cytrynowicz, embora a memória do sobrevivente

constitua um peso terrível do qual jamais se está livre, ela é, ao mesmo tempo, o único

registro seguro e confiável. De tal modo, a História jamais ampara ou consola o sobrevivente,

não importa quantos livros sejam escritos ou centros de documentação organizados, porque o

compromisso da História pode romper a segurança afetiva da memória enquanto parte de uma

identidade de uma pessoa ou de um grupo (2003, p. 125). Por sua vez, a literatura, como

gênero mais discursivo do que factual, acolhe a memória, permitindo e possibilitando que o

escritor acerque-se dela. Elucidação que em muito justifica a opção de Pepetela por um

suporte ficcional, em detrimento de um tratado sociológico ou mais científico2.

O terceiro ponto sobre o qual focalizamos as entrevistas refere-se à temática da

guerrilha e sua relação com a escrita testemunhal. Pensando no gesto diário de escrever,

efetivado por Pepetela, devemos indagar: por que e para quem o autor escrevia,

cotidianamente, em meio a operações e a comunicados de guerra que redigia? E é o próprio

autor de Mayombe quem indica o caminho para compreendermos tal questionamento:

daqui a uns tempos não haverá pessoas que tenham vivido a situação

colonial por “dentro”. E toda a nova geração deverá ouvir falar, apenas. Há

de haver textos de história sobre o que era o colonialismo, o que era a

mentalidade do colono, etc., mas forçosamente texto de história, é uma coisa

fria... e as pessoas acabam por imaginar o que seria, mas não compreender

profundamente, e aí é o papel do romance, fundamental, para a nova geração

conseguir “viver” um pouco o que era a vida antes. Aí há também uma

preocupação de registrar para a história.

E há pouca gente que escreve, que tenha tido essa vivência. E aí eu pensei,

eu tenho essa vivência da sociedade colonial, eu tenho a vivência dos que se

2 Ainda conforme Cytrynowicz (2003, p. 131-132), “a memória procura sempre apaziguar os conflitos, fechar as

feridas, restaurar as ruínas, silenciar as dores; ela tem um compromisso com a subjetividade, com a reconstrução

de uma história pessoal que precisa encontrar saídas viáveis, até mesmo do ponto de vista psíquico, para

reconstruir uma vida, um futuro, e isso por mais que ela conte das dores e das feridas”.

32

opuseram à sociedade colonial, eu sou um dos raros cinco, seis ou dez que

possam fazer isso. Eram esses os meus objetivos. (1985, p. 138-139, grifos

nossos)

Novamente Pepetela sugere em sua fala a relação afetiva com o seu passado, que não

passa. Como afirma Seligmann-Silva, do ponto de vista do sobrevivente o registro

historiográfico é limitado e não dá conta da sua experiência; por outro lado, a memória refreia

a arrogância do discurso historiográfico, pois por esse prisma, o passado é ativo e justamente

não passa (2003).

Walter Benjamin, nas teses “Sobre o conceito da história”, aponta que: “nunca houve

um monumento da cultura que não fosse também um documento da barbárie. E, assim como a

cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco o processo de transmissão da cultura”

(1994, p. 225); Cytrynowicz, afinado com o pensamento de Benjamin, conclui: “é preciso que

cada documento da barbárie seja recuperado, estudado, criticado, entendido, conservado,

arquivado, publicado e exposto, de forma a tornar a história uma forma presente de resistência

e de registro digno dos mortos” (2003, p. 137). Eis então o ponto fulcral da escrita

testemunhal em Mayombe: ser um rastro, uma marca afetiva e perene da luta contra o sistema

colonial, atuando, mormente, como um testemunho daqueles que feneceram – resistindo até

os limites da própria existência – na luta por uma conquista da qual sequer chegaram a

desfrutar, e cuja herança ficou para as gerações presentes. Essa pode ser também outra forma

de tornar o passado ativo e estabelecer um diálogo íntimo entre o ontem e o hoje.

1.3 Sujeito do trauma: o sobrevivente

A segunda linha à qual se vincula a teoria do testemunho, conforme apontamos,

denomina-se literatura da Shoah3 e vem sendo desenvolvida no contexto europeu. Enquanto o

testimonio filia-se ao discurso político de sujeitos marginalizados, o testemunho, como tem

sido pensado na Alemanha, parte tanto de “leituras que cruzam os discursos da teoria da

literatura, da disciplina histórica e da teoria psicanalítica, como também na onda de estudos

sobre a memória” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 82-83) para compreender os discursos dos

sobreviventes dos campos nazistas. Assim, as análises de textos (orais ou escritos) que se

vinculam a essa corrente, devem levar em conta as contribuições interdisciplinares da

psicanálise, história, filosofia e dos estudos literários.

3 Shoah, conforme Giorgio Agamben, deriva de “shoá, que significa devastação, catástrofe” (2008, p. 40). O

termo tem substituído a expressão “holocausto”, no léxico contemporâneo entendida como “sacrifício supremo”,

semanticamente inapropriada quando se trata do extermínio de judeus nos campos de concentração (2008, p. 37-

39).

33

O termo testemunho, como é entendido nos estudos pós-Shoah, remete ao vocábulo

germânico Zeugnis, que significa testemunho ou sinal. Seligmann-Silva, no texto “Literatura,

testemunho e tragédia: pensando algumas diferenças” (2005), chama atenção para a

intraduzibilidade entre testimonio e Zeugnis, uma vez que partem de objetos diversos e de

realidades históricas distintas (2003, p. 30). Enquanto a literatura de testimonio, como se

afirmou anteriormente, tem uma forte afinidade com a política – existindo somente na

qualidade de contra-história, que enfatiza a continuidade da opressão e a sua onipresença na

América Hispânica –, a literatura pós-Shoah volta-se para as narrativas daqueles que

sobreviveram ao horror dos campos nazistas, enfatizando o aspecto subjetivo, singular e

fragmentário das vivências traumáticas4.

A base da discussão dessa literatura encontra-se no texto de Theodor Adorno, “Crítica

cultural e sociedade”, de 1949, no qual afirma: “a crítica cultural encontra-se diante do último

estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato

bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever

poemas” (2002, p. 61). O ensaio aponta para um choque tão profundo decorrente dos

acontecimentos históricos do século XX, que não haveria mais como o paradigma tradicional

da arte permanecer. Para o filósofo, a escrita (poética) dever-se-ia pautar, então, não mais por

uma subjetividade hegeliana, mas pela crítica à desumanização e à barbárie.

Textos posteriores ao de Adorno têm sido publicados na Europa e nos Estados Unidos,

e aprofundam os estudos sobre a literatura da Shoah. No Brasil, o livro Catástrofe e

representação (2000), organizado por Arthur Nestrovski e Seligmann-Silva, traz uma série de

ensaios de pesquisadores que têm se dedicado a esse campo de estudos, entre eles: Geoffrey

Hartman, Shoshana Felman e Cathy Caruth. Em “Modalidades do despertar traumático

(Freud, Lacan e a ética da memória)”, por exemplo, Caruth apoia-se nas teorias psicanalíticas

do trauma, para discorrer acerca das experiências dos sobreviventes de guerras e genocídios.

Entendendo o trauma, em sua definição genérica, como “resposta a um evento ou eventos

violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando

acontecem, mas retornam mais tarde como flash-backs, pesadelos e outros fenômenos

repetitivos” (2000, p. 111), Caruth sugere que a memória dos que passaram por experiências

violentas está sempre ligada a uma recordação da dor.

4 Nos últimos anos têm sido considerados também outros eventos ocorridos no século XX. Como afirma

Seligmann-Silva: “se desenvolve ultimamente paralelos entre o testemunho da Shoah e o do Gulag, bem como

com obras de (ou sobre) sobreviventes de outros genocídios” (2005, p. 87).

34

Ainda do mesmo livro, o ensaio de Seligmann-Silva, intitulado “A história como

trauma”, sustenta, na esteira de Walter Benjamin5, que os acontecimentos do século XX

deixaram o cotidiano e a experiência prosaica do homem moderno “repletas de choque, de

embates com o perigo” (2000, p. 73). Tal constatação prolonga-se para o campo da literatura,

de modo que a grafia passa a ser também a marca traumática da voz e do corpo que escreve.

Nesse cotidiano, o sujeito (sobrevivente) “escritor”, tornou-se destituído de sua auréola, como

Charles Baudelaire já antecipara no século XIX:

ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na

lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os

lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado,

escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. (1995, p. 333)

Uma obra fundamental para pensar a relação entre o sujeito do trauma e a língua é o

livro de Giorgio Agamben, O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Nesse texto,

que conforme o seu autor é a tentativa de “identificar o lugar e o sujeito do testemunho”

(2008, p. 21), Agamben tece densa reflexão acerca da escrita testemunhal. Segundo o teórico

italiano, o sobrevivente tem a vocação da memória e não pode, portanto, deixar de recordar

(p. 36). Nesse sentido, Primo Levi seria exemplo perfeito de testemunha, pois ao voltar para

casa conta sem parar a todos o que lhe coube viver. Contudo, Levi, um autêntico superstes,

não se sente escritor, no sentido moderno do termo, ele escreve apenas para testemunhar (p.

26), embora posteriormente tenha publicado romances que não têm a ver com o seu papel de

testemunha.

Conquanto Primo Levi seja tomado como uma testemunha perfeita, Agamben

considera que haverá sempre uma lacuna, um hiato (um resto) entre o testemunho do

sobrevivente e o que aconteceu nos campos de extermínio. Isso porque é impossível à

testemunha falar de uma experiência radical (a morte), experimentada apenas pelos que não

podem mais testemunhar, os destituídos de memória, aqueles que não regressaram6. As

verdadeiras testemunhas, argumenta o autor, as “testemunhas integrais” são as que não

testemunharam, nem teriam podido fazê-lo (2008, p. 43). Desse modo, Primo Levi seria, além

5 Em textos como “Sobre o conceito da História” e “Experiência e pobreza” (1994), Benjamin já chamava

atenção para as experiências do choque e como os acontecimentos do século XX modificaram as formas do

narrar. 6 Em Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi assim narra: “não somos nós, os sobreviventes, as autênticas

testemunhas. [...] Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por

prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. [...] Nós, tocados pela sorte, tentamos narrar com maior

ou menos sabedoria não só o nosso destino, mas também aquele dos outros, dos que submergiram: mas tem sido

um discurso em nome de terceiros, a narração de coisas vistas de perto, não experimentadas pessoalmente (LEVI

apud AGAMBEN, 2008, p. 42-43).

35

de superstes, um auctor, porque fala por aqueles que não podem mais enunciar7. Assim, o

testemunho do sobrevivente, na concepção do filósofo, é verdadeiro e tem razão de ser

unicamente se vier a integrar o de quem não pode dar testemunho (p. 151).

O último capítulo do livro, que se intitula “O arquivo e o testemunho”, é

especialmente focado na problemática do sujeito e de sua (im)potência de falar. O filósofo

retoma a teoria da enunciação, articulada por Émile Benveniste, para sugerir uma

compreensão filosófica de língua, diferente daquela que descende da linguística saussuriana.

Conceito fundamental, portanto, são as noções de enunciado e enunciação: enquanto o

primeiro diz respeito às proposições e conteúdo do discurso, o segundo não se refere a um

texto, mas sim a um puro acontecimento de linguagem, e seu território, portanto, nunca

poderá coincidir com um nível definido de análise linguística (2008, p. 141). Isso implica

dizer que, se a langue saussuriana é o lugar do discurso, a enunciação é o lugar no qual o

sujeito está em questão, ou que, só há enunciação porque há o sujeito. Como explica o

filósofo Castor Bartolomé Ruiz (estudioso da obra de Agamben): é o sujeito que enuncia, e

porque há um sujeito existe enunciação (2011). Todavia, quem é o sujeito que enuncia quando

se trata do superstes?

A interrogação nos lança de volta ao texto de Michel Foucault, e à pergunta cujo autor

havia formulado: “que importa quem fala?”. Na busca de resposta ao problema, Agamben vai

de encontro à questão colocada por Foucault. Assim, ao retomar o texto A arqueologia do

saber, daquele ano de 1969, sugere que o filósofo francês, focado em definir o território da

arqueologia em relação a outras disciplinas, parece ter omitido interrogar-se a respeito das

implicações éticas da teoria dos enunciados.

Preocupado em cancelar e em despsicologizar o autor, em identificar, já na

neutralização da pergunta “quem fala?”, algo semelhante a uma ética

imanente à escritura, só mais tarde ele começou a medir as consequências

que a dessubjetivação e a decomposição do autor podiam trazer para o

próprio sujeito. [...] Desse modo, a justa preocupação em descartar o falso

problema “que fala?”, impediu que se formulasse a pergunta – totalmente

diferente e inevitável: o que acontece no indivíduo vivente quando ele ocupa

o “lugar vazio” do sujeito, no momento em que, ao entrar em um processo

de enunciação, descobre que “a nossa razão nada mais é que a diferença dos

discursos, que a nossa história nada mais é que a diferença dos tempos, e que

o nosso eu nada mais é que a diferença das máscaras”? (2008, p. 143-144)

7 “Em latim, auctor significa originariamente quem intervém no ato do menor (ou de quem, por algum motivo,

não tem capacidade de realizar um ato juridicamente válido), para lhe conferir o complemento de validade de

que necessita” (2008, p. 149).

36

Agamben concorda com Foucault que não pode haver arqueologia do sujeito da

mesma forma que há arqueologia do saber, mas contrapõe que é nessa mesma condição que se

encontra a limitação dos estudos do filósofo francês. O teórico italiano assim problematiza a

questão: “porventura isso significa que aquele que ocupa o lugar vazio do sujeito está

destinado a ficar para sempre na sombra, que o autor deve perder-se integralmente e naufragar

no murmúrio anônimo do „o que importa quem fala‟?” (2008, p. 144). E responde que talvez

Foucault não tenha tido consciência desse problema, mas em “A vida dos homens infames”

(2003), é possível notar um afloramento da questão. Essa antologia de documentos, de

arquivos, de registros de internamento, resgata do anonimato as vidas declaradas infames por

atos de enunciação (2008, p. 144). Essas vidas silenciadas, inexistentes porque não foram

enunciadas, não teriam deixado nenhum sinal de si caso não fossem arrancadas do

esquecimento por um ato de memória (2011, p. 6).

Outro conceito de Foucault ao qual recorre Agamben é o de arquivo. Para diferenciar

arquivo e testemunho o filósofo afirma que enquanto o primeiro designa o sistema de relações

entre o não dito e o dito, o segundo é o sistema das relações entre o dizível e o não dizível em

toda língua, ou seja, entre uma potência de dizer e a sua existência, entre uma possibilidade e

uma impossibilidade de dizer (p. 146). Isso sugere que:

enquanto a constituição do arquivo pressupunha deixar de fora do jogo o

sujeito, reduzido a simples função ou a uma posição vazia, e o seu

desaparecimento no rumor anônimo dos enunciados, no testemunho a

questão decisiva se torna o lugar vazio do sujeito. [...] Precisamente porque o

testemunho é a relação entre uma possibilidade de dizer e o fato de ter lugar,

ele só pode acontecer por meio da relação com uma impossibilidade de

dizer, ou seja, unicamente como contingência, como um poder não ser.

(2008, p. 146-147)

Em outras palavras, a principal diferença entre a enunciação do arquivo e a enunciação

da testemunha, é que no testemunho o sujeito torna-se imprescindível. Se na enunciação do

arquivo pode-se permitir o artifício linguístico de anunciar a relatividade e até a desaparição

do sujeito arrolado pelos dispositivos arqueológicos que possibilitam sua capacidade de

enunciar, na testemunha o sujeito é imprescindível (RUIZ, 2011, p. 11). Assim sendo, só a

existência da testemunha como sujeito pode realizar o enunciado do testemunho. A vida

humana negada a mera vida natural, argumenta Agamben (2008), é uma vida em que está

negada a possibilidade de ser sujeito.

Por essa perspectiva, Giorgio Agamben aproxima-se da teoria de Benveniste: sendo a

língua uma potência de dizer, a enunciação é um acontecimento; o acontecimento

37

funda/cria/revela o sujeito, de modo que aquele que perde a potência de enunciar, deixa de ser

sujeito, tornando-se apenas biológico, inumano, como acontecia nos campos de extermínio

nazistas, que permitiram reduzir determinados grupos humanos à mera vida natural (RUIZ,

2011, p. 2). Destarte, “o auctor, que fala pelo outro, é também testemunha de uma

dessubjetivação que opera naquele que não tem o pleno poder de dizer” (2011, p. 9), como o

faz Primo Levi.

Embora tenhamos até aqui mencionado testemunhos não fictícios ou não

ficcionalizados, como os de Rigoberta Menchú e de Primo Levi, e nossos objetos de estudos

sejam tomados em sua forma como narrativas ficcionais, Seligmann-Silva, pondera que é

possível (quiçá necessário) rever toda a história da literatura a partir da noção de teor

testemunhal. Assim afirma o historiador e teórico da literatura:

de modo mais sutil – e talvez difícil de compreender – falamos também de

um teor testemunhal da literatura de um modo geral: que se torna mais

explícito nas obras nascidas de ou que têm por tema eventos-limite. Nesse

sentido, a literatura do século XX – Era das catástrofes e genocídios –

ilumina retrospectivamente a história da literatura, destacando esse elemento

testemunhal das obras. [...]. Se o testemunho é um elemento constante da

produção artístico-literária, cabe ao leitor percebê-lo e estudá-lo. (2003, p. 8)

O autor aponta, portanto, a possibilidade de pensar o conceito de testemunho para

além dos estudos da Shoah e do testimonio na América Latina, ponderando também, que “os

estudos comparativos entre o teor testemunhal de diferentes literaturas ainda estão por ser

estabelecidos” (2003, p. 9). De modo análogo, Eloísa Aldás (2001, p. 28) sustenta que,

embora alguns autores definam a literatura testemunhal como aquelas narrações de

testemunhos sem pretensões literárias, ela a entende como “un testimonio que se sirve del

discurso literario para su transmisión”. É nesse sentido que nos utilizamos do suporte teórico

do testemunho para pensar o corpus eleito para nossa análise. Mas como articular

teoricamente as relações entre arte e trauma? De que forma a arte relaciona-se com o horror

da experiência humana?

38

Em 1996, Hal Foster publicou em Londres o livro The Return of the Real, de que, no

Brasil, saiu apenas o capítulo 5, com o título “O retorno do real” (2005). Nesse texto, Foster

analisa a arte de Andy Warhol, não mais sob a perspectiva do simulacro e da arte pop, e sim

nos termos do realismo traumático8. Por esse prisma, a criação artística passa a ser entendida

como o fruto de “um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o

choca, como uma defesa mimética contra o choque” (2005, p. 165). De tal modo, a repetição

compulsiva, presente na obra de Warhol (fig. 1), passa a ser lida não somente como uma

crítica ao capitalismo e à sociedade de consumo, mas também nos termos de uma repetição

traumática, tais quais os retornos e flashbacks, que Cathy Caruth destaca em sua pesquisa.

Figura 1 – “Ten Marilyns”, por Andy Warhol

Fonte: http://www.warhol.org/, 2012.

Caso semelhante ao do artista norte-americano é o do brasileiro Arthur Bispo do

Rosário, em cuja arte (fig. 2) pode-se ler a reprodução do que Foster denomina “realismo

traumático”. Descendente de escravos africanos, Bispo do Rosário, entre outras funções que

assumiu, trabalhou na marinha mercante até ser diagnosticado como esquizofrênico-paranoico

e internado numa clínica psiquiátrica, onde produziu toda a sua obra utilizando-se de objetos

que encontrava na colônia Juliano Moreira. Além de artefatos domésticos, destacam-se, na

arte de Bispo do Rosário, miniaturas de navios de guerra, estandartes e objetos cuja temática

alude à sua relação com a marinha.

8 Acerca dessa expressão, Foster afirma em nota: “não pode existir um realismo traumático enquanto tal. No

entanto a noção é útil do ponto de vista heurístico – mesmo apenas como uma forma de superar as oposições

contidas na nova história da arte (semiótica versus métodos sócio-históricos, texto versus contexto) e na crítica

cultural (significante versus referente, sujeito construído versus corpo natural)” (2005, p. 165).

39

Figura 2 – Canecas, Talheres, Pentes, por Arthur Bispo do Rosário

Fonte: a autora, 2012.

O real pulsante nas criações do artista norte-americano e nas do brasileiro, é

compreendido por Hal Foster conforme as ideias de Lacan, que define o traumático como um

desencontro com o real. “Enquanto perdido, o real não pode ser representado; ele só pode ser

repetido” (2005, p. 166). A repetição serve, portanto, ao artista como uma proteção do real,

que a imagem ao mesmo tempo afasta e aproxima.

Baseado nos pressupostos da literatura de testemunho – uma criação do nosso tempo,

como sustenta Shoshana Felman (2000) –, retomamos então o questionamento lançado por

Diana Klinger: qual é o sujeito que retorna na literatura contemporânea? Nossa resposta é de

que esse sujeito é a testemunha: testis e superstes; é o sujeito da memória, sobrevivente da

“tanatopolítica”, legatário do trauma. No caso das narrativas que nos propomos analisar, esse

sujeito do trauma emerge com mais evidência no romance A Selva, do que em Mayombe (no

qual o sujeito político aparece mais nitidamente). O relato de Ferreira de Castro sobre o

processo de escrita do romance, registrado em “Pequena história de A selva”, expõe como o

processo de ficcionalização de sua experiência está associado aos flashbacks característicos

do trauma: “durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com

a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no

mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras” (1989, p. 19).

40

1.4 Memórias de um português na Amazônia

Em 1911, José Maria Ferreira de Castro, aos onze anos de idade, embarcou no navio

inglês Jerôme como ocupante da terceira classe, rumo ao Brasil. Saiu de Portugal por razões

socioeconômicas e trazia a esperança de encontrar, na ex-colônia, maneira de fazer fortuna

com a borracha amazônica. Chegando a Belém, no estado do Pará, embarca novamente, desta

vez no navio Justo Chermont, rumo ao seringal Paraíso, localizado às margens do rio

Madeira, onde permaneceu até 1914. Não há muitos registros sobre a experiência de Ferreira

de Castro enquanto esteve no seringal. As biografias citam a passagem pelo lugar, sua

localização e o trabalho que desenvolveu por lá, mas o dia a dia não é descrito. Não obstante,

a passagem do menino pela Amazônia tornar-se-ia um dos principais temas de sua obra

literária e é a ela que parte da crítica recorre para ler a ficção e para falar do autor, enquanto

sujeito de uma experiência histórica dolente.

Toda a obra de Castro, se observada em seu conjunto, revela a busca contínua pela

enunciação de experiências pessoais, especialmente a vivência enquanto emigrante. A

experiência de vida na Amazônia é aproveitada, por exemplo, para as intrigas de Criminoso

por Ambição (1916), Carne Faminta (1922), “O Escravo Redimido” (1925) e Instinto

Supremo (1968) (JESUS, 1998). Nesse contexto, o romance A Selva, publicado em 1930, tem

sido compreendido, de modo genérico, como o relato de um viajante europeu, que de fato

viveu na Amazônia, que experimentou a rotina nos seringais da borracha e nesse mesmo

período dava os primeiros passos no universo da criação literária9. Jaime Brasil, ao biografar

o autor, escreve: “sem a ida ao Brasil, na idade e nas circunstâncias em que o fez, Ferreira de

Castro, embora viesse a ser um grande escritor, não teria escrito A Selva” (1961, p. 21).

Seguindo esse pressuposto, faremos uma leitura de textos críticos que se voltam para o

período que Ferreira de Castro passou na Amazônia, expondo as razões que nos levam a

considerar a relação vida e obra sob o viés conceitual do testemunho.

Experiência e linguagem caminharam lado a lado com as publicações do autor

português, e de fato a passagem pela selva está assinalada em muitas de suas produções. As

biografias acentuam o peso das vivências na formação autoral: o livro Ferreira de Castro: a

obra e o homem (1961), por exemplo, retoma a infância do menino de Ossela, pequena cidade

de Portugal, relatando que este não teve contatos com livros e que sua carreira escolar não

passou do primeiro ano. Os únicos textos que Castro leu antes de tornar-se um escritor,

9 O romance tem servido inclusive como exemplo em investigações históricas e sociológicas, no contexto do

ciclo da borracha e da Amazônia, como os livros: O fim do silêncio (2011), organizado pela historiadora Patrícia

Sampaio, e Viagem das ideias (2006), do sociólogo Renan Freitas Pinto.

41

segundo Jaime Brasil, foram os livros escolares e alguns folhetos que o menino via na feira.

“Como se formou essa cultura, eis um fenômeno que merece estudo especial” (1961, p. 28),

afirma o biógrafo. Intrigado também com a questão, Ricardo António Alves questiona:

que mistério está por trás dum homem a quem foi dada uma instrução

rudimentar, filho de camponeses analfabetos, órfão de pai desde muito cedo,

emigrado para o Brasil completamente só, aos 11 anos, seringueiro e

marçano em plena selva até aos 16, sem-abrigo e embarcadiço aos 17? Como

se tornou Ferreira de Castro num dos mais marcantes romancistas

portugueses deste século? (2002, p. 21)

Analisando pela perspectiva do adolescente com quase nenhum estudo regular, de

poucas leituras, portanto, excluído de uma tradição literária10

, ambos os autores são levados a

crer que, pela experiência, Ferreira de Castro “foi o construtor da sua própria personalidade

literária” (BRASIL, 1961, p. 62).

Os primeiros textos escritos por Castro, de fato, nascem quando este era ainda

adolescente, habitante do seringal. Todavia, as duas primeiras composições – Criminoso por

ambição, novela que escreveu aos 14 anos, e Rugas Sociais – foram excluídas da lista de

publicações pelo próprio autor, justamente por considerar que nelas a experiência sobrepujava

o valor estético (cf. BRASIL, 1961, p. 29-32). Entre uma realidade pulsante, que lhe dava

motivação para escrever, e a busca por inventar-se como ficcionista, o jovem lusitano, nos

primeiros anos, procurou delimitar um contorno que pudesse dar forma estética à realidade

por ele experimentada.

Não obstante a publicação do romance ter-se dado quinze anos após a passagem do

português pela Amazônia, cada nova edição, traduzida para diversos idiomas, por intermédio

de paratextos – prefácios, comentários, orelhas, pórtico –, não deixava de associar as

experiências do autor e a narrativa que chegava ao leitor de países europeus e da América.

Essas produções, ligadas a um estilo (ingênuo) de crítica biográfica, acabaram criando uma

tradição no modo como se leram os arquivos e a ficção do autor. Observemos como essa

relação é referenciada em três paratextos que acompanharam A Selva e estão incluídos na

biografia escrita por Jaime Brasil.

A primeira publicação do romance na Alemanha surge em 1932. Doutor Richard

Bermann (nome literário de Arnold Hoellriegel), um turista que visitou a Amazônia, resolve

traduzir A Selva para o alemão. Junto com a obra, publica um prefácio, no qual escreve:

10

Afirma Jaime Brasil: “Esse rapaz, cuja preparação literária era a bem dizer nula e não convivera em grandes

centros com discípulos e amigos cultos que lhe servissem de estímulo e de guias, sentiu desde muito novo a

ânsia de escrever para o público” (1961, p. 29).

42

na minha volta pelo interior do Amazonas, caiu-me nas mãos, por acaso, um

livro português que finalmente quebra o silêncio sobre a selva verde. [...] O

autor chama-se José Maria Ferreira de Castro [...]. O que descreve, com tanta

realidade, no seu romance A Selva, tudo isso ele viveu. Neste romance,

Ferreira de Castro não descreve somente o inferno dos pesquisadores da

borracha de uma forma para sempre inolvidável, mas também a majestosa

natureza da floresta virgem, em toda a sua trágica beleza. Na sua obra, a

selva do Amazonas foi vista, pela primeira vez, por um homem que não

viajou, mas que viveu dentro dela própria. (apud BRASIL, 1961, p. 108,

grifos nossos)

Bermann identifica-se com o escritor por terem, ambos, conhecido a floresta. Todavia,

o alemão concede a Castro maior autoridade sobre a realidade, uma vez que o homem/escritor

testemunhou o que narra no romance.

Outro prefácio foi publicado em 1935 na América do Norte, por Charles A. Wagner,

que relata: “achei o romance de Castro imensamente autobiográfico e capaz de ser o melhor

dos produtos portugueses modernos, começava a entrar-me no fato, na pele, no coração, nos

ossos, na medula e na consciência” (1961, p. 114, grifo nosso). Já o prefaciador norte-

americano destaca os rastros da vida de Castro deixados no romance, reconhecendo-o como

uma escrita em que o eu margeia o texto ficcional.

Na Bélgica, um célebre crítico do país, o acadêmico Henri Liebrecht, além do prefácio

que escreveu para A Selva, publicou um extenso ensaio, no qual afirma: “foi preciso que um

escritor português tivesse vivido na sua juventude a existência dos colonos e passasse longos

meses no coração da floresta virgem, [...] para trazer os elementos e as impressões com os

quais comporia A Selva, esse documentário” (1961, p. 128, grifo nosso). E continua: “se este

livro saiu duma obsessão do autor, enfeitiçado pela floresta virgem e pelo imenso rio que a

atravessa, ele soube traduzi-la com uma força tal que ela se comunica ao seu leitor” (p. 128,

grifo nosso). O discurso de Liebrecht opera um desdobramento da obra do autor na sua vida,

tratando o romance como documento, como uma tradução da Amazônia, uma janela que se

abre para o canteiro do látex.

As notas dos prefaciadores, que são antes de tudo leitores, revelam uma justaposição

entre ficção e real. Todos partem de um discurso que confere ao texto o estatuto de

veracidade, de modo que a literatura é entendida (por essa crítica) não apenas como um texto

autorreferente, mas como um evento, no qual texto e contexto comungam um mesmo espaço.

Nota-se, portanto, como diacronicamente fez-se o emaranhado, realidade e literatura, história

e memória, que intercala o romance A Selva e a biografia de Castro, uma tradição construída e

que foi se intensificando em grande medida pela inserção de paratextos, que sempre

acompanharam e acompanham as traduções da obra.

43

Uma das leituras dos arquivos pessoais de Castro que mais chama a atenção é o livro

de Abrahim Baze, intitulado Ferreira de Castro: um imigrante português na Amazônia.

Chama atenção por alguns motivos: primeiro porque o autor apresenta um discurso

claramente desestabilizado entre ficção, história e biografia. Propondo-se a fazer um ensaio

biográfico sobre o escritor, vai ao longo do texto entremeando história do ciclo da borracha,

arquivo memorialístico e corporal de Castro e personagens do romance A Selva. Outro motivo

que instiga é que a obra foi publicada no Brasil em 200511

, sendo, portanto, muito recente no

rol da crítica castriana. Vê-se bem que o autor do livro, ao embaralhar a experiência do

homem e a obra, intensifica o modo como a crítica leu os arquivos pessoais do escritor.

Abrahim Baze passa da pura narrativa histórica às personagens do romance, sem

sequer anunciar ao leitor que está tratando de ficção12

. Discurso intencional ou um produto

desestabilizado entre realidade e arte, o texto chega a causar uma confusão teórica, uma teia

em que o leitor desavisado pode perder-se rapidamente. Sem deixar claro se personagens do

romance – como é o caso de Balbino, Juca Tristão, entre outros, citados várias vezes – são

históricos ou literários, o biógrafo amazonense coloca sobre o mesmo plano de análise

personagens e pessoas, fatos históricos e enredo, como se pode observar no fragmento que se

reporta à passagem do navio Justo Chermont pela cidade de Manaus:

alguns passageiros, oriundos do Ceará, logo se juntaram a Ferreira de

Castro fazendo muitos planos e prometendo desembarcar para conhecer

Manaus. Balbino, dominador, carrasco prepotente, lança logo ordens

proibitivas, dizendo que ninguém poderia desembarcar. Com a proibição de

Balbino, aumenta a força e a decisão do grupo ir a terra.

[...] Humilhado, cansado da obediência escravizadora, Ferreira de Castro

mostra a sua força. Embora jovem, mas consciente das agruras vividas por

todos, exclama em voz alta: - Eu desembarcarei! (2005, p. 50, grifos nossos)

11

O livro já se encontra em sua 3ª edição, publicada em 2012, pela Editora Valer. 12

E aqui chamamos atenção para o fato de que, talvez, o próprio ensaísta não compreenda a obra de Castro a

partir de uma distinção teórica entre “discurso literário” e “fato histórico”.

44

Baze não deixa claro se está se reportando a um fato da vida de Castro ou ao episódio

do romance que narra a passagem do navio por Manaus. Há no livro um total de vinte e duas

notas de rodapé, nas quais o autor, após descrições da vida de Castro no seringal, faz

referência direta ao romance13

. Baze toma fragmentos de A Selva para recriar falas que atribui

a Ferreira de Castro, sem citar sequer outras fontes, além da literária, que o possibilitaram

escrever em discurso direto. Como afirma Maria Eva Letízia: no “estudo, dedicado à fase

amazonense da vida atribulada de Ferreira de Castro, Abrahim Baze procurou basear-se na

trama do célebre romance [...]. O estudioso de Manaus resolveu conservar, na sua pesquisa, o

plano de organização macroestrutural da obra de referência” (2005, p. 18).

Consequentemente, o ensaísta, ao operar com tal método, envolve-se, ao longo do seu livro,

numa teia que o fisga e o lança numa miscelânea de discursos histórico, ficcional e

memorialístico.

Como afirmamos anteriormente, a passagem de Ferreira de Castro pela Amazônia

tornar-se-ia um dos principais temas de sua escrita, e são sobretudo os registros deixados pelo

próprio autor, que elucidam como a experiência marcou sua vida e seu projeto literário. No

pórtico do romance, assim descreve a sua relação com o texto:

eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a

selva amazónica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos de

minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E

devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus

companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou

acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extração da

borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência.

(CASTRO, 1989, p. 15)

Na abertura da narrativa, Ferreira de Castro já aponta para aqueles que, como ele,

partiram de vários lugares do Brasil e do mundo, seduzidos pelo ciclo econômico da hevea

brasiliensis. Estima-se que “entre os anos de 1890 e 1900 a borracha atraiu para a Amazônia

uma população calculada em mais de 200 mil pessoas” (TEIXEIRA, 2009, p. 36).

13

Um exemplo do contexto em que tais notas aparecem, refere-se à conversa entre Alberto e o Comendador

Aragão, ambos personagens. Abrahim Baze “biografa” tal episódio nos seguintes termos: “Ferreira de Castro

foi recebido de forma indiferente, e esta atitude aumentou a sua tensão [...]. Porém nada mudou e recebe de

forma indelicada a resposta que não queria ouvir: - Não tenho emprego neste momento e quero até dizer-lhe que

quase todos os dias recebo estes pedidos de emprego. Porém, Ferreira de Castro argumentou: - Nobre senhor,

tenho algumas habilitações e estou disposto a trabalhar em qualquer atividade. Concluí o quarto ano de Direito,

preciso de trabalhar”. Ao final desse texto segue a nota de rodapé, na qual é citado um fragmento de A Selva: - É

impossível! – exclamou o Comendador, quase gritando. Todos os dias me fazem pedidos desses. Nem que eu

fosse dono de todo o comércio de Manaus (1989, p. 71, grifos nossos). Veja-se bem que Ferreira de Castro veio

para o Brasil apenas com os estudos iniciais. Como contrapõe Maria Eva Letízia (2005, p. 20), “o que nos sugere

o autor do ensaio apenas pertence à ficção romanesca de A Selva, cujo protagonista Alberto, monárquico

militante, exilado na Amazônia, efetivamente tinha sido finalista de Direito, em Lisboa”.

45

Seguindo a linha memorialística, em 1955, por ocasião do vigésimo quinto ano de

aniversário do romance, o autor lusitano escreve e publica um texto intitulado “Pequena

história de A Selva”, no qual expõe desde a sua passagem pelo seringal Paraíso até descrições

de como se deu o processo de escrita da narrativa. O texto organiza-se a partir da

rememoração de três eventos. O escritor volta-se inicialmente para o momento em que deixou

o seringal e revela o anseio ininterrupto de deixar o “cárcere verde”: “eu tinha, então,

dezasseis anos. E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que não desejasse

evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer

forma, mas fugir” (1989, p. 18). O segundo evento é a concretização desse desejo, ou seja, o

retorno à cidade de Belém. Nesse ponto, Castro descreve o choque que o tempo transcorrido

na Amazônia lhe causa a cada vez que tais reminiscências retornam:

foi esse momento tão extraordinariamente grave para meu espírito, que

desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva,

como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça para baixo e braços

caídos, a um presídio. E quando o terrível pesadelo me faz acordar, cheio de

aflição, tenho de acender a luz e de olhar o quarto até me convencer de que

sonho apenas [...]. Este velho terror dominou-me sempre que tentei

aproximar-me da selva nos meus primeiros livros. (1989, p. 19)

O terceiro evento reporta-se ao processo de escrita e publicação do romance (uma

espécie de registro genético), no qual o escritor confessa a árdua tarefa de produzir uma obra a

partir de fatos de sua vida:

[...] Enfim, quinze anos volvidos tormentosamente sobre a noite em que

abandonei o seringal Paraíso, pude sentar-me à mesa de trabalho para

começar este livro. (CASTRO, 1989, p. 19) Tão fatigado me sentia por essa nova fusão com a vida dos seringais, tão

doloroso me fora beber, na transposição literária, do meu próprio sangue,

que, na mesma noite em que concluí o livro, disse a Diana de Liz que não

voltaria, durante muito tempo a escrever romances. (CASTRO, 1989, p. 21)

O conteúdo de “Pequena história de A Selva” torna-se relevante, dentro dos estudos

sobre a obra do autor, porque situa como, para ele, a escrita associa-se a uma impossibilidade

de desvencilhar-se da situação traumática, decorrente de sua passagem por um evento-limite,

isto é, a situação de exploração, escravização e aprisionamento no seringal da borracha. Como

assevera Ricardo António Alves – diretor da Revista Castriana –, o “trauma do desterro na

infância e adolescência, que inclusivamente perturbou a escrita de A Selva, interrompendo-a

frequente vezes [...], explica a relutância, a inibição e o medo de Castro se desnudar e expor,

antes de mais diante de si próprio, sem a mediação romanesca” (2002, p. 23). Nesses termos,

46

o trauma é, infortunadamente, a herança mais profunda e real que o ciclo da borracha e a selva

legaram ao autor, como relata ao concluir a história da elaboração do romance: “dir-se-ia que

A Selva, drama dos homens perante as injustiças de outros homens e as violências da natureza,

estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para seu próprio autor, uma pequena parcela

da grande dor humana, dessa dor que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão”

(1989, p. 24).

Se, passados mais de oitenta anos da primeira publicação de A Selva, ainda é fato que

os arquivos de José Maria Ferreira de Castro impõem-se, frequentemente, como dados

imprescindíveis à leitura de sua obra; e se A Selva tem fortes marcas de uma experiência

histórica e traumática sobre o período da borracha, acreditamos que o aporte teórico do

testemunho apresenta-se como um método para interpretação e análise que considera tanto a

vivência de opressão pelo qual passou o homem, como também a obra do escritor. Isso

porque, entendendo a literatura a partir desse conceito, categorias como memória, condição

autoral, história e literatura deixam de ser compreendidas de forma estanque, e passam a ser

analisadas como um conjunto de produções, cujo suporte são as reminiscências da

testemunha, seja testis ou superstes.

Como afirma Seligmann-Silva, “se a arte e a literatura contemporâneas têm como seu

centro de gravidade o trabalho com a memória [...], a literatura que situa a tarefa do

testemunho no seu núcleo, por sua vez, é a literatura par excellence da memória” (2003, p.

388). Desse modo, ponderamos que ler a obra e a vida de Castro como um testemunho da

barbárie em geografias periféricas consiste em outra forma de olhar sua produção, sua história

e um meio de retificar alguns estrabismos da crítica. Como se refere Alves à escrita

memorialística do autor: “trata-se de um legado testemunhal de inequívoca importância de

alguém que atravessou e marcou grande parte do século XX” (2002, p. 24). E mais adiante, ao

citar especificamente o romance, declara: “estamos diante de um testemunho em parte

autobiográfico duma experiência intensamente vivida. O que é intemporal neste livro é o

homem confrontado consigo próprio num meio adverso, hostil, encarcerado na densa floresta

amazónica, no inferno verde” (2002, p. 55).

47

CAPÍTULO 2 – AO SUL DO EQUADOR: ILHAS DISPERSAS, OU DAS FLORESTAS

COMO ESPAÇOS TESTEMUNHAIS

À noite, os lusíadas atracavam, acendendo uma fogueira na margem e

ficando um de atalaia, porque a selva rugia e nenhum deles estava

convencido de que as feras dali não fossem iguais às da África. (AS,

1989, p. 64)

A natureza é “também um construto linguístico e cultural, distinto da realidade natural

e formado por meio da sedimentação de percepções e imagens que nos precedem” (REIS,

2011, p. 14). É o que afirma Eliana Reis, no prefácio ao livro Amazonas: natureza e ficção.

Quando se adentra a esfera espacial das narrativas aqui analisadas, a percepção estética dos

espaços tem muito a dizer acerca de suas histórias. Em ambos os casos, trata-se de geografias

não fictícias, a Amazônia e Mayombe, que no contexto geográfico mundial representam as

duas maiores florestas tropicais do mundo. Contudo, nas narrativas em tela, tais ambientes são

representados não como fatos geográficos, mas segundo a percepção dos narradores e das

personagens.

Nas palavras da professora Helena Carvalhão Buesco, a “paisagem literária constitui

uma das mais interessantes manifestações da natureza histórica do lugar” (2012, p. 1). Nesse

sentido, tanto em A Selva como em Mayombe, os espaços deixam de constituir simplesmente

molduras ou cenários e se tornam determinantes para o desenvolvimento da história, à medida

que lhes são atribuídas funções específicas. Em ambas as narrativas, a natureza é um espaço

insular, no qual a floresta atua ora como um cárcere, que, aos moldes do sistema de

aviamento, aprisiona o homem, ora como universo mítico de proteção, de camuflagem e de

luta por um tempo-espaço que se deseja alcançar. Levando em consideração tais aspectos,

analisaremos, ao longo do capítulo, as representações dos espaços naturais (e culturais) nesses

contextos literários, pensando os limites da linguagem quando se trata de experiências

traumáticas e políticas em geografias florestais e historicamente perpassadas por ideias

preconcebidas14

.

No livro Visão do paraíso, Sérgio Buarque de Holanda não só apresenta como também

analisa algumas dessas ideias. Dentre elas, a de mitos edênicos que se acharam difundidos na

era dos descobrimentos, tornando-se fator constitucional na ocupação, pelo europeu, do Novo

Mundo. A temática de um Paraíso Terreal, conforme o autor, herdada dos séculos III e IV

14

Conforme Milton Santos, o espaço “deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam,

de um lado certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os

preenche e que os anima, ou seja, a sociedade em movimento” (1997, p. 26). Queremos falar, portanto, dos

espaços, num sentido físico e geográfico, em sua relação com contextos históricos violentos.

48

(2000, p. 20), atravessa a Idade Média e alcança os tempos modernos. No contexto das

viagens de descobrimento, e no que toca especificamente aos espaços da América, diferentes

concepções eram manifestadas pelos europeus. Enquanto os primeiros colonos ingleses

acreditavam na possibilidade de construção do paraíso, bastando para tanto vencer os rigores

do deserto e da selva (2000, p. 10), “os da América Latina se deixavam atrair pela esperança

de achar em suas conquistas um paraíso, feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que a

eles se oferecia sem reclamar labor maior” (2000, p. 18).

Quanto aos lusitanos, a atmosfera mágica de que se envolvem as novas terras

descobertas, parece rarefazer-se. Isso porque, explica Holanda, “é quando muito à guisa de

metáfora que o enlevo ante a vegetação sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da

fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocência das gentes [...], pode sugerir-lhes a

imagem do Paraíso Terrestre” (2000, p. 7, grifos nossos). Assim, na percepção desses

viajantes, as terras brasileiras poderiam ser detentoras de um sítio edênico, existindo,

entretanto, apenas como metáfora do original. Se alguma vez chegaram a sentir que de fato

avistavam o Éden genesíaco, foi para além das terras americanas.

Aliás, no curso de sua já longa tradição náutica, fora, talvez, quando

passados os primeiros decênios de exploração da costa africana, àqueles

quadros que até então tinham descortinado quase incessantemente, de baixos

de pedra e areia movediça, em que nem cresce erva, nem há mostras de coisa

viva, sucede, transposta a foz do Senegal, o espetáculo de um imenso país

verdejante, florido e fértil, como a lembrar-lhes um sítio encantado.

(HOLANDA, 2000, p. 8)

Imagem edênica ou a visão do autêntico paraíso, o Brasil e a África, no primeiro

momento das navegações portuguesas, atuaram como espelho de ideias forjadas, adubadas e

fermentadas durante séculos na Europa. Paradigma que, como se sabe, não se sustentaria ao

longo da colonização. Mesmo porque, aliada à crença de encontrar um paraíso na terra, havia

também a consciência de que o caminho até o lugar edênico não estava de todo acessível. À

esperança de magníficos tesouros se acrescentava a de aparições hostis ou fabulosas, ideia que

já se propagava desde a Antiguidade. Para encontrar este mundo (quase) mágico e desfrutar

de seus bens, era preciso, portanto, enfrentar dificuldades, o que deu origem a mapas com

regiões tenebrosas, habitadas por demônios e pavorosos monstros (HOLANDA, 2000, p. 24).

No encalço de vencer os entraves e males, os viajantes do século XV não apenas

sentiram necessidade de vestir os lugares do Novo Mundo de tons sobrenaturais, “cumpriria

libertá-los também das deformidades e terrores de que a imaginação costuma povoar terras

incógnitas” (HOLANDA, 2000, p. 252). Até o século XVIII, iriam inserir-se em tais

49

concepções os povos autóctones do Novo Mundo, o clima e a própria natureza, que não

tardaram a migrar do paraíso ao inferno. É na esteira, portanto, dessa migração de polos (do

positivo ao negativo), que se inclui o fragmento de A Selva que serve de mote ao capítulo: a

Amazônia, como a África, seria um vasto território habitado por feras.

A certa altura do romance de Castro, Alberto, exilado na Amazônia, resgata a história

colonizadora de seus antepassados na floresta, aclarando a memória dos leitores sobre a

coragem desbravadora de sua gente, que conseguiu lutar e vencer as matas selvagens e

desconhecidas. O capítulo IV, por exemplo, detém-se, em boa parte de sua extensão, ao

soerguimento das reminiscências portuguesas deixadas em plena selva. Nesse mundo vazio e

inominável de que nos fala o narrador, são os portugueses os primeiros civilizados a

substantivar e adjetivar os lugares por onde passavam – como o rio Madeira, que antes se

chamava Cayary, teria passado a ter o nome atual em virtude das árvores que tombavam sobre

os portugueses, ceifando-lhes a vida: “vendo esse destacamento da selva, Melo Palheta,

conhecedor do perigo que os troncos escondiam sob a aparente inofensividade, exclamou um

dia: - Rio Cayary? Não. Rio da Morte... Rio Madeira...” (AS, 1989, p. 63)15

.

As descrições que A Selva traz do espaço natural revelam bem o tom das pinturas e

paisagens sobre os povos da Amazônia, como também os de Angola. Um dos fatores que se

nota, quando se trata dessas ex-colônias portuguesas, refere-se às semelhanças com as quais

os povos dessas duas geografias equatoriais eram (e em certa media ainda são) descritos. O

clima quente, as gentes preguiçosas e feias, a natureza primitiva do homem, o mundo natural

selvagem e incontrolável, indomável e misterioso, formavam um repertório vasto de como o

olhar europeu transformou essas terras em lócus da barbárie e da violência. De certo modo,

tanto as populações como o meio ambiente, passariam por representações cuja tendência era

relacionar aqueles mundos às imagens da devassidão, da barbárie, dos sacrifícios humanos, do

canibalismo e da natureza fantástica (OLIVA, 2005).

Diários, crônicas de viagens e relatórios oficiais escritos por viajantes que percorreram

a Amazônia e Angola, entre os séculos XV e XVIII, constituem material fecundo na

identificação das representações elaboradas. A partir destes textos, nota-se que a cartografia

do Novo Mundo se foi formando menos por dados físicos e geográficos que pelo olhar

(influenciado por longa tradição medieval de plantários e bestiários) lançado pelo europeu

sobre esses cantos do globo. De modo geral, pode-se afirmar que a preocupação maior

15

Utilizaremos a edição de 1989 do romance A Selva. Doravante, as referências à obra serão feitas usando

apenas a sigla “AS”, seguida do número da página do livro.

50

encontrada nesses escritos centra-se nas descrições de aspectos geográficos, de grupos

humanos, de recursos naturais e de alguns costumes.

Nas palavras da professora Tânia Macedo, quando se trata do Brasil, encontra-se, nas

primeiras narrativas,

a ênfase na abundância e beleza da natureza, a descrição dos costumes

bárbaros de seus habitantes nativos [...] ou a seres predadores, fantásticos

que existiriam nos trópicos [...], o que viria a construir uma visão, depois

reforçada, de “um paraíso demoníaco”, ou em outras palavras, uma natureza

paradisíaca servindo de cenário a criaturas infernais e homens plenos de

luxúria [...], vícios e costumes bárbaros. (2002, p. 15)

De modo análogo, quando se trata de Angola e de sua capital, Luanda, as imagens

projetadas

aos habitantes de todas as latitudes do Reino Português, no século XVIII,

pautavam-se pelo paradigma infernal que já definira o Brasil: as febres

malignas, as doenças desconhecidas, o ar insalubre, os nativos hostis e a falta

de metais preciosos que estimulassem a cobiça ditada pela possibilidade de

um enriquecimento rápido. Angola era encarada apenas como um celeiro de

escravos e, enquanto tal, passagem e não fixação do homem branco.

Elabora-se, dessa forma, a imagem de espaço de punição e morte a quem ali

fosse condenado a viver. (2002, p. 18).

Não obstante as percepções que ora pendiam para imagens paradisíacas, ora para o

infernismo, a natureza foi vista por Portugal como fonte de exploração, o que se torna

evidente quando analisados os ciclos econômicos que a metrópole empregou em relação às

colônias. Em contrapartida, pela perspectiva das populações autóctones, a natureza existia

muito além da questão meramente econômica, representando uma vasta e diferente rede de

significados e assumindo desde um caráter de subsistência até mesmo sentido sobrenatural16

.

Com relação à África, a coleção História Geral da África esclarece que entre os

séculos X e XII o desenvolvimento político, técnico, agrícola e populacional dos que

habitavam a região equatorial do continente estava fortemente atrelado a dois ecossistemas: a

floresta e as savanas do norte e do sul. O historiador Jan Vansina chama atenção, aliás, para o

fato de que, inicialmente, a história não compreendeu que uma floresta intercalada de savanas,

como a orla da floresta, “fornecia um ambiente duplamente rico [...]. Em especial, a formação

de todos os Estados mais antigos pode ser atribuída a um ambiente desse tipo” (2010, p. 653).

No que se refere à Amazônia, Márcio Souza (2009) aponta que desde a pré-história havia nas

16

Na percepção dessas populações, “o funcionamento da sociedade só estava garantido se o mundo vegetal, o

mineral e o animal estivessem em harmonia e qualquer forma de desequilíbrio poderia resultar em catástrofes”

(SILVA apud GONÇALVES, 2011, p. 35).

51

florestas um rico e diversificado cenário de sociedades humanas, que se estendiam por

quilômetros ao longo das margens do rio Amazonas. Conforme o escritor, os primeiros

habitantes da Amazônia formaram uma continuidade de alta sofisticação, estabelecendo uma

vasta e variada rede de sociedades de subsistência, sustentadas por economias especializadas

em pesca e caça, além de agricultura, do cultivo de plantas e também da criação de animais,

de forma que o desenvolvimento desses povos estava intimamente relacionado à natureza.

Quando se trata do campo estético, pode-se dizer também que a valorização dos

aspectos naturais “e a consequente abundância de textos que fazem sua descrição ou

panegírico, é um fenômeno universal” (CARVALHO, 2005, p. 21). No campo da literatura,

essas relações não apenas são reconhecidas como são também objetos de pesquisas. Flávia

Paula Carvalho (2005), ao estudar como a temática aparece no sistema literário brasileiro,

aponta as formas textuais e ideológicas de como a natureza sempre se fez presente desde as

primeiras manifestações literárias às vésperas do Movimento Modernista, chegando a assumir

um aspecto normativo. O tratamento da paisagem ou da natureza, como constata a

pesquisadora, fazia-se presente: no naturismo do século XVII, que trazia a natureza vinculada

à linguagem do registro; no arcadismo, que revelava o tratamento poético da natureza,

apresentando-a em si mesma ou identificando-a com a vida interior; e culmina no

romantismo, que além da valorização da natureza de acordo com a diretriz da corrente,

exaltava, em especial, os encantos da natureza tropical, como elemento mais importante da

exaltação patriótica (2005, p. 16).

A professora Carmen Lúcia Tindó Secco, ao fazer um breve panorama histórico do

sistema literário angolano, divide-o, conforme as suas características temáticas e políticas, em

quatro paradigmas. É sobretudo no primeiro, situado entre meados do século XIX até 1930,

que o apelo à natureza aparece com mais força, como afloramento de um sentimento regional

e com conotação nativista. É característica dessa produção literária, a exaltação da natureza,

das “belezas tropicais da terra, da flora e da fauna, assim como as paisagens do litoral” (s/d, p.

6).

Entretanto, a maior parte dos textos é perpassada por uma visão exótica e reveladora

do cânone colonial dominante. Já no segundo paradigma (1940-1950), com a publicação da

Revista Mensagem e o movimento “Vamos descobrir Angola!”, passou-se a praticar uma

literatura que exigia a manifestação dos interesses populares e da autêntica natureza

africana17

.

17

Em A formação do romance angolano (1999), a professora Rita Chaves aponta que, a partir de 1950, ao evitar

os procedimentos que conduziram ao exótico e/ou ao pitoresco, os escritores optam pela aproximação com a

52

No campo das artes plásticas, a natureza é também uma constante, constituindo, a

partir do século XVI, um gênero independente, denominado “pintura de paisagem”. Um breve

olhar sobre a história desse tipo artístico aponta as afinidades entre os temas da natureza e o

pincel do artista: desde os poetas romanos, que no século I a.C. celebraram a beleza do campo

e forneceram modelos para futuras pinturas de paisagem (SUGIMOTO, 2005), a natureza

constitui objeto estético e cultural.

No século XIX, novas concepções de paisagens influenciaram fortemente alguns

pintores, culminando com a chamada “Escola de Barbizon”, na qual, um grupo de artistas,

reunido na floresta de Fontainebleau, buscava o contato com a natureza, partilhando

diretamente as suas manifestações. Já na segunda metade desse século, o movimento

impressionista conferiu à natureza um papel de protagonista no trabalho do pintor. Camille

Pissarro, chegou a afirmar: “devemos seguir um único mestre – a natureza; somente ela deve

ser consultada” (apud NATIONAL GALLERY OF ART, 1997, p. 9). Entre os principais

nomes dessa nova forma artística estão: Jean-Baptiste-Camille Corot (fig. 3) – da “Escola de

Barbizon”, inspirador dos impressionistas –, além dos conhecidos Monet (fig. 4) e Renoir.

Figura 3 – Ville d’Avray, de Corot

Fonte: http://www.metmuseum.org

terra e a cultura angolanas numa relação produtiva que afasta a clicherização (p. 46). Rejeita-se, assim, “a

associação comum entre pátria e natureza, conferindo aos elementos naturais que selecionam para a expressão de

suas verdades uma moldura claramente social” (p. 46). É o que parece ser o caso do romance Mayombe, no qual

a natureza assume, também, caráter metafórico na luta contra o sistema colonial.

53

Figura 4 – Au Jardin, la famille de l'artiste, de Monet

Fonte: http://www.interagir.com/?entree=73

Entretanto, a maioria dessas paisagens centra-se numa ideia de natureza como espaço

aprazível e suave. Os impressionistas, por exemplo, em sua maioria, “retrataram um mundo

que parece mais inocente e mais atraente do que o nosso, com homens, mulheres e crianças

bonitos e saudáveis povoando [...] campos tranquilos no interior” (NATIONAL GALLERY

OF ART, 1997, p. 8). Nessas telas, não sobressai a natureza em sua grandeza e vastidão,

porém em seus detalhes mais tranquilos e harmônicos. Lembremos, afinal, que o Éden era um

jardim, não uma floresta. E como tal, tinha apenas duas árvores (a do conhecimento e a da

vida), às quais se reservavam agourentos destinos18

(SCHAMA, 1996).

Kenneth Clark destaca que a natureza, em seu conjunto, ainda é perturbadora, vasta e

atemorizante, mas, neste campo selvagem, o homem pode criar um jardim fechado (1961, p.

26). O autor, inclusive, chama atenção para a etimologia da palavra “paraíso”, de origem

persa, que significa “espaço murado”. Nesse lugar protegido dos males, a natureza-jardim era

a expressão da harmonia celeste. Paradigma que, de antemão, devemos destacar, parece não

se sustentar em A Selva e Mayombe, nos quais a vastidão se destaca.

18

Por haverem desobedecido e comido do fruto da árvore do conhecimento, Eva é castigada com as dores do

parto e Adão perde o direito à gratuidade dos alimentos. E para proteger a árvore da vida, que daria imortalidade

ao casal e o igualaria aos deuses, Adão e Eva são expulsos do Éden.

54

Ao longo do século XX a paisagem ainda “permaneceu como tema importante, uma

vez que os pintores respondiam aos medos do período – guerras mundiais, industrialização e

materialismo, ameaça de destruição global – com paisagens que expressam o anseio por uma

espiritualidade e eternidade encontradas na natureza” (SUGIMOTO, 2005, p. 12). Mas aos

poucos se processaria um corte entre a natureza como objeto artístico que remeteria ao

edênico e aprazível, passando a haver uma associação entre natureza e violência, fortalecida

pelos acontecimentos históricos do novecentos.

Simon Schama, em Paisagem e Memória (1996), analisa uma série de imagens e de

rastros da violência – como cemitérios e túmulos de judeus – deixadas (pela guerra) nas

florestas da Lituânia, Polônia e Alemanha. Dentre as obras de arte, Schama expõe o quadro

Varus (fig. 5), do pintor e escultor alemão, Anselm Kiefer, em cuja obra ocupam lugar central

as batalhas míticas na floresta germânica e a memória da guerra. Na tela, pontos vermelhos,

aludindo a ferimentos a bala, pontuam a neve, como forma de registro dos massacres

perpetrados nas florestas. O caminho entre as árvores, também tingidas de vermelho, leva, no

final, a um beco sem saída. Nos romances de Castro e Pepetela – mais notadamente em A

Selva do que em Mayombe – a floresta parece unir a tradição da pintura de paisagem à estética

característica do século XX: na qual até a natureza fora transformada em espaço de violência.

Figura 5 – Varus (1976), de Anselm Kiefer

Fonte: Simon Schama, 1996, p. 129.

55

2.1 Amazônia: a natureza como cárcere

Em resumo, como já mencionamos, o romance A Selva narra a história de Alberto, um

imigrante português, que é enviado a um seringal da borracha, o qual tem por nome “Paraíso”,

para extrair látex. Mas façamos uma pausa antes de adentrarmos a floresta, abramos o livro de

Castro e retiremos um fragmento:

o quarto, ao fim do corredor que partia da varanda dava para as traseiras do

barracão. Mas era um encanto, com a sua amplitude, o seu isolamento, a

janela aberta sobre pequeno quintal, onde viviam um jasmineiro florido, um

alto pé de alecrim e crótons de várias cores. [...]

Tão aprazível se mostrara o oásis, que Alberto tentara, por duas vezes já

abandonar a janela e apresentar-se ao serviço e, por outras tantas, se deixara

ficar. (AS, p. 141)

Eis uma das raríssimas passagens do texto na qual os sentidos de Alberto são tomados

por sensações positivas. Novamente, a imagem do jardim surge na arte, e é nesse espaço

recortado, murado, que, a partir da janela do quarto, o protagonista se debruça e se apraz no

oásis que de repente lhe surgira. O episódio se encontra no capítulo IX, dentre os quinze que a

obra contém. Conforme consta no dicionário Houaiss, o vocábulo “oásis” pode significar

“coisa, local ou situação agradável em um meio hostil ou numa sequência de situações

desagradáveis” (2008, p. 533). A paragem parece mesmo cumprir esta função, é a primeira

ocasião em que o jovem português, estando em lugar simples e isolado, encontra algo

semelhante ao conforto de um lar.

O trecho ganha destaque no romance – sobretudo quando se tem noção dos tons com

os quais se delineiam os espaços em toda a extensão narrativa – pelas expressões,

semanticamente positivas, utilizadas pelo narrador para descrever o cenário, como: “encanto”,

“várias cores” e “aprazível”. Afora esta passagem, em poucos momentos os aspectos naturais

(bem como os espaços inseridos na floresta) soarão positivamente, à exceção das referências

feitas à memória de paisagens europeias, ou, quando Alberto, juntamente com Guerreiro e

Dona Yáyá, se organizam para cultivar uma horta na sede do seringal. Logo, sabemos que não

é a casa, como abrigo (para nos reportarmos a Bachelard), nem o jardim, os espaços do

romance. Voltemos, então, a Belém, onde a história inicia-se.

Desde as primeiras páginas, a técnica descritiva dá ao leitor uma ideia de como os

espaços do romance serão percebidos. A pensão “Flor da Amazônia”, na qual a história

começa, é descrita como “sombria, de soalho enodoado e paredes transpirando imundície”

(AS, p. 28). Nela, encontram-se Alberto, o tio Macedo (dono da pensão) e Balbino,

trabalhador do Paraíso que está de passagem pela cidade, após arregimentar seringueiros no

56

Nordeste. O quarto de Alberto, da mesma maneira, é descrito como fétido, miserável e escuro.

Veja-se, por exemplo, o episódio no qual o protagonista surge em cena:

rumorejou um corpo que devia saltar da cama, uns passos rápidos soaram na

escuridão e logo, atrás da portinhola que se abriu, entrou no recinto uma

fosca claridade. Iluminou-se então, no quarto miserável da hospedaria, com a

cama de ferro a insinuar existências parasitárias e o travesseiro liso, de

quartel, um jovem alto e magro, cabelo negro e olhos amortecidos,

denunciando vida indolente. A calça dançava-lhe na cintura e os ossos

adquiriam forte relevo no tronco seco e nu. (AS, p. 29, grifos nossos)

As características do lugar, como também as da personagem, prenunciam as condições

desfavoráveis e incompatíveis com a lendária riqueza que se propalava advir do ciclo

econômico da borracha. Um leitor desavisado do contexto poderia julgar, ao ler nessas linhas,

que estivesse se tratando de uma situação combativa na qual o corpo, surrado pelas condições

impróprias à vida, apresenta-se descarnado. Não é o caso. Nessa altura do romance, Alberto

ainda receberá a notícia de que terá de partir para o rio Madeira.

De modo análogo se darão as descrições da cidade de Belém, cujo cenário causa

sensações de desamparo, declínio e ruína. É a partir do porto que o português contempla a

cidade, onde o grande número de navios abandonados sinaliza a passagem de um período

áureo e movimentado. Não obstante, “mesmo na sua decadência, era ainda a borracha que

movia tudo aquilo” (AS, p. 34), e moveria a existência do próprio Alberto, que logo partirá

num dos navios ancorados.

O tom descritivo que se inicia na pensão vai impregnando uma por uma as páginas do

romance. Ao embarcar no Justo Chermont, o narrador logo prosseguirá com as observações

dos espaços. Dividido em dois conveses, enquanto o superior, reservado aos passageiros de

primeira classe, apresenta-se arrumado e acolhedor, o inferior, necessitando de jorros de luz

para iluminar os negros porões (AS, p. 37), mostra-se “húmido, sujo e escorregadio” (AS, p.

38). Aí, o protagonista verá imagens grotescas, cujos olhos de qualquer pessoa, humana e

sensível, desaprovariam. Dentre estas, destaca-se a cena do boi morto:

de madrugada, Alberto acordou [...]. Descerrando os olhos, ainda

estremunhando, viu ali mesmo, a alguns metros apenas de sua rede, dois

vultos agindo numa cena de pesadelo. Dir-se-iam demônios vermelhos,

todos encharcados de sangue, manobrando grandes facas sobre o grosso

volume, meio imerso na sombra. Um deles deteve-se um instante, ergueu o

busto e pôs-se a assobiar vagarosamente. O convés estava quase todo no

escuro; só de longe, do lado da casa das máquinas, chegava até ali uma

difusa luminosidade, que contornava agora, no ar, grandes quartos dum boi,

carne ainda palpitante, carne onde a vida estremecia ainda, levada de um

lado para outro. (AS, p. 52)

57

Nesta cena, pintada por Portinari quando participou de uma edição ilustrada do

romance, não há nada agradável. Muito pelo contrário, o que poderia parecer um ato ordinário

de abatimento bovino, que logo serviria de alimento aos viajantes, transforma-se numa cena

infernal, própria de um pesadelo, com direito a homens no papel de demônios. O que causa

estranheza aos olhos do personagem, contudo, não parece ser a morte do boi em si, mas os

modos como os eventos procedem.

No que diz respeito às representações do espaço no gênero testemunhal, Maria

Madalena Rodrigues, na tese Fronteiras da narrativa (2006, p. 150), afirma, a partir dos

estudos que realiza em algumas obras, que aí se evidencia uma liberdade do narrador de

orientar os episódios menos pelo tempo cronológico do que pelos espaços. Tais aspectos

podem ser amplamente verificados em todo o romance de Castro. Primeiro porque, com

poucas exceções, são as marcações de lugares que iniciam e separam cada capítulo. Os

espaços balizam os acontecimentos na narrativa. Por exemplo: entre os capítulos I e III

situam-se desde a estada de Alberto em Belém, o seu embarque no navio e a viagem até

Manaus; entre os IV e VIII, a passagem do Justo Chermont pelo rio Madeira, até a chegada ao

seringal Paraíso e a vida do seringueiro no interior da selva, nos centros de extração do látex;

por fim, entre os IX e XV, os modos de organização na sede do seringal e o cotidiano mais

administrativo.

Madalena Rodrigues destaca ainda, que os espaços, na literatura de testemunho, atuam

por si mesmos, e todos os momentos se tornam, na memória da testemunha, espaços (2006, p.

151). Todavia, os ambientes não abrigam, pelo contrário, hostilizam e quase sempre deixam

ao relento. Alberto vive essa experiência ao passar por um processo de desterro em cadeia:

primeiro é exilado de Portugal, depois, a contragosto, é enviado ao seringal. Experiência

semelhante vivem os seringueiros de São Luís e do Ceará, que se retiram (ou são retirados) de

suas casas, de suas terras, em virtude das longas secas que assolam o Nordeste.

A passagem do Justo Chermont por Manaus ainda recupera a esperança desses homens

de encontrar lugar na cidade, como descreve o narrador: “a ideia da chegada à capital do

imenso estado alvoroçava todos os passageiros. Seria uma pausa na subida fastidiosa, seria o

prazer de encontrar, enfim, uma verdadeira cidade a fulgurar no meio da brenha” (AS, p. 53).

Observa-se, nas descrições de Manaus, que os tons escuros e acinzentados, que até então

dominavam a narrativa, são trocados por cores vivas e quentes, ainda que, ao se aproximar da

capital, todos os viajantes da segunda classe sejam impedidos de ter acesso a ela. Somente

Alberto, contrariando a ordem estabelecida por Balbino, insiste em conhecer a cidade e tentar

ali um emprego que o libertasse do navio, daquela gente e do seringal.

58

Todavia, a origem portuguesa, que Alberto tanto apreciava e cria torná-lo singular, não

garante acolhimento na cidade, e outra vez o espaço lhe é negado: “agora, que Aragão lhe

mostrara estar Manaus, para os que não tinham emprego, tão difícil como Belém, anulava-lhe

toda a alegria” (AS, p. 60). A cidade de luz – única da Amazônia a merecer tal epíteto, entre

todas às quais o Justo Chermont havia passado no caminho até ali – metamorfoseia-se, então,

em desilusão, desabrigo. Georg Otte, ao estudar as relações entre natureza e história na obra

de Walter Benjamin, explica que, conforme o filósofo, o mundo da tecnologia se tornou tão

estranho e hostil para o homem moderno quanto a natureza para o homem primitivo (2010),

embora, para grande parcela da civilização europeia, o ideal de progresso se caracterizasse,

especialmente, pelo distanciamento da natureza. Alberto identifica-se com esse paradigma de

modernidade e busca, em grande parte do romance, ser um representante da mais avançada

civilização e do progresso (inclusive racial). Todavia, a cidade, com todo seu aparato

tecnológico e de desenvolvimento, não o acolhe nem o conforta.

Walter Benjamin (1989) chamara atenção para a figura do flâneur, o sujeito da

modernidade, que perambula pelas ruas da cidade, anônimo, entre a multidão. É com essa

realidade que o protagonista de A Selva se depara e se choca ao tomar-se como sujeito de

destaque e procurar refúgio na empresa do conterrâneo. Mas é, ali, num espaço onde espera

ser bem recebido e reconhecido como alguém distinto, que a personagem se descobre apenas

como mais um na multidão. Embora a cidade assuma esse papel, nem de longe Alberto vê no

progresso a ruína. Pelo contrário, a natureza amazônica é que desde o início representa um

espaço muito próximo à natureza primitiva e ameaçadora.

2.1.1 Marcha para o coração da selva

Mas se assim é a cidade, quando se trata dos espaços naturais, como se podem analisar

as questões referentes ao conforto e ao acolhimento? É possível criar a ideia de lar num meio

natural transformado em espaço de exploração econômica? Até o capítulo III do romance de

Castro, a floresta é espreitada de longe, do navio. Nesse ponto, as descrições da natureza são

associadas a imagens ameaçadoras e descritas com uma linguagem prolixa19

. A floresta é

comparada a uma mancha negra, ciclópica muralha de troncos, ramos e folhas, abracadabrante

luxúria vegetal, “um espaço labiríntico, com suas maranhas, o seu raizame caótico [...], a sua

vegetação entrelaçada (lianas serpenteantes), as suas teias, as suas criptas, galerias e

19

Milton Hatoum aponta duas figuras de retórica utilizadas por Ferreira de Castro para descrever o cenário: “o

oxímoro, que acentua a oposição entre luz e sombra, luxúria e podridão, vida e pesadelo. E a prosopopeia, que

anima o reino vegetal e faz da floresta um ser vivo, cenário que enclausura os personagens e interfere no seu

destino” (1993, p. 108-109).

59

estalactites vegetais” (VIÇOSO, 2011, p. 60). O rio, por sua vez, é comparado a uma aranha

hidrográfica, a um monstro líquido, labirinto fluvial. Ambos a reproduzirem uma vastidão que

esmaga os pormenores e se torna inalcançável às pupilas.

Durante a viagem, a contemplação, ainda que longínqua, outra vez produzirá, aos

olhos de Alberto, imagens desprazíveis, como as cruzes na floresta: “de longe a longe, [...]

surpreendia também quatro ou cinco cruzes rústicas apodrecendo entre a erva alta, nos pontos

mais elevados da margem. A visão perdia-se rapidamente, abafada pela selva que avançava

sobre o pequeno cemitério, a espalhar vida sobre a terra da morte” (AS, p. 47). A cruz, sinal de

corpos que jazem como húmus na selva, aparecerá mais de uma vez no romance, e aproxima

o espaço natural da insígnia cristã, que remete ao sofrimento e ao sacrifício. Como sugere

Vitor Pena Viçoso, a “viagem no „gaiola‟ Justo Chermont, entre Belém e o seringal Paraíso,

subindo o Amazonas e o seu afluente Madeira, é uma espécie de via-sacra em direção ao

Calvário que, por irônica antífrase, se designa Paraíso” (2011, p. 59).

Marisa Martins Gama-Khalil (2010), seguindo a terminologia de Gaston Bachelard,

argumenta que os espaços podem assim ser apreendidos: tópicos (os conhecidos e

confortáveis, onde se vive em segurança); utópicos (espaços do desejo, do imaginário); e os

atópicos, que por estarem associados ao desconhecido, ao mistério e à aventura, se

caracterizam pelo desconforto, sofrimento, pela insatisfação. São também vistos como

espaços onde vivem os inimigos da sociedade, como as florestas, os montes, os mares e

as cavernas. Acreditamos ser possível também fazer uso dessa terminologia para uma leitura

de A Selva, pois é sobretudo como um espaço atópico que a floresta será representada. A

natureza, e o que nela está inserido, na imaginação e percepção de Alberto, associam-se, ao

longo do romance, a uma topografia (literária) da dor, da violência, da hostilidade.

A partir do capítulo IV, quando o Justo Chermont atraca no porto do seringal, inicia-se

o deslocamento do imigrante para o coração da floresta: “era quase noite quando o mulato deu

tudo aquilo por terminado e convidou Alberto para iniciar a marcha para o interior da selva”

(AS, p. 75). Logo no início da caminhada, incomoda ao protagonista o comportamento de

alguns recém-chegados, como também de outros que já estavam ali há mais tempo: “não

compreendia a sensibilidade dos que encontravam horas normais naquele tempo que para ele

decorria sentido provisório e alvoroçado. Tudo aquilo tinha já o invólucro do que se recorda

para toda a vida com tristeza e mal-estar” (AS, p. 75).

Após caminhar por horas da sede do seringal até a barraca, na localidade de Todos-os-

Santos, o agora “seringueiro-europeu” não encontra o abrigo e conforto que a casa (por

costume) proporciona ao viajante. À noite, entorpecido pelo cansaço, adormece sobre o chão

60

de madeira rústica: “à falta de rede [...], Firmino ofereceu um velho lençol. Com o casaco,

dobrado em quatro, Alberto fez um travesseiro e, sem forças sequer para ter pena de si,

estendeu-se sobre as paxiúbas duras e adormeceu rapidamente” (AS, p. 81).

Nem o nascimento de um novo dia trará ao recém-chegado alguma sensação de bem-

estar. E logo que amanhece, o português se depara com o espaço ao redor da barraca:

o casinhoto erguia-se numa pequena clareira, aberta a machado, no seio

verde da floresta. À cabana sucedia o girau, feito também de paxiúbas, onde

floresciam plantas [...]. Mais adiante estavam os pés de mandioca, os de

macaxeira e o canavial, tudo em alguns metros apenas [...]. A ocultar-se por

detrás das folhas, abria-se a cacimba, minúsculo poço de onde se extraía

água para a sede, para a cozinha ou para o banho [...].

E mais nada. O resto era selva, com a sua vida sombria, ali pertinho, muito

pertinho, fechando-o num anel estrangulador. Sentia-lhe a existência pesada,

enigmática, numa vigília que dir-se-ia constante ameaça, um pânico jacente.

(AS, p. 94)

Bachelard, em A poética do espaço (2008, p. 62), ao referir-se à choupana, analisa que

esta, mesmo em condições materiais precárias e situações adversas, é capaz de produzir no

homem uma sensação de aconchego e acolhimento, como um castelo produziria ao espírito de

seu senhor uma ideia de proteção e força20

. A barraca não provoca esses sentimentos a

nenhum dos seringueiros, quiçá a Alberto, que não raras vezes se coloca numa posição

superior ao outro. É, ele mesmo, um ser atópico, no sentido daquele que não encontra seu

lugar, seja porque é constantemente deslocado, seja porque, consigo mesmo, assim o sente.

Outra topografia que sacode negativamente os sentidos do protagonista é o defumador.

Inserido na linha de produção da borracha, o espaço tem por função transformar o “leite” em

goma, dando ao produto a sua primeira forma de comercialização. Tal processo, tecnicamente

o mais complexo para o seringueiro (TEIXEIRA, 2009, p. 62), é provavelmente o que mais

exige, pois a fumaça e o odor exalados pela combustão causam grande desconforto e mal-

estar. Alberto, ao deparar-se com esse ambiente, “cheio de fumo ácido”, “a primeira sensação

que [...] teve foi a de que ia asfixiar” (AS, p. 92). E não encontrando forças físicas para

acompanhar o serviço desempenhado por Agostinho, evade-se rapidamente: “retomou o ar

livre. Sentia vertigens, as pernas dobravam-se-lhe. Dirigiu-se à barraca, fez das mãos duas

conchas, encheu-as de água e levou à testa” (AS, p. 93).

20

Afirma o filósofo: “passada a tempestade a choupana transformou-se em fortaleza da coragem para o solitário

que nela deve aprender a vencer o medo. Tal morada é educativa” (2009, p. 62).

61

Não obstante, ainda que seja a tônica, nem tudo na floresta resume-se aos locais de

trabalho. Para além dos espaços de corte, extração, colheita e defumação do látex, há também

o lugar da festa: o alpendre.

Como o soalho de paxiúba, levemente ondulado e de junturas irregulares

dificultassem as danças no interior da barraca, Lourenço construíra uma

larga alpendrada [...]. Em redor, velhos caixotes e pequenos toros de madeira

serviam de assentos. E a luz mortiça do farol, dependurado no teto,

balouçando-se ao menor sopro da brisa, esboçava apenas os corpos,

cobrindo-os de trêmulas sombras. (AS, p. 117)

É neste espaço que, aos domingos, se reúnem os seringueiros. Entretanto, a diversão,

para que ocorra e distraia os homens de sua realidade, é regada a álcool e outras bebidas

entorpecentes. Como revela o narrador: Lourenço “ia da direita à esquerda em ofício de

hospitalidade, distribuindo chávenas de café e tigelinhas de chicha, extraída de milho

fermentado [...]. E essas duas bebidas, sobrepostas à cachaça domingueira [...], a todos

dispunha e dava quente efusão (AS, p. 117). Tal mistura, aliada ao ambiente econômico

exploratório, cerceador da liberdade, colocava em cena, mesmo no alpendre de Lourenço,

onde havia música e abraços, a realidade obscura e trágica:

várias monstruosidades estavam ali em hipótese, em íntima admissão, e

seriam imediatas realidades se a frouxa luz do farol se apagasse de vez.

A chicha e a cachaça começavam por estimular, tornando justificáveis, nos

cérebros incandescidos, todas as aberrações; depois amolengavam-nos,

apresentando-lhes como facilidade vindoura o impossível e como breve

certezas as mais indizíveis esperanças. E era essa ilusão que continha os

famintos. (AS, p. 119)

Contudo, a alpendrada funcionava apenas esporadicamente, aos domingos. A segunda-

feira logo recordava, a todos os dançarinos, a realidade do Paraíso, a realidade das barracas

fixadas nas brenhas da Amazônia. Firmino, Chico do Paraisinho, Procópio, Joaquim, Dico,

João Fernandes, os quatrocentos que saíam todos os sábados, da maranha interminável, e que

no dia da folga se entregavam à garrafa de cachaça, na luta por esquecer o mundo e a si

próprios especialmente (AS, p. 155), iam, um a um, voltando à rotina, que nenhuma ação

alcoólica fazia olvidar. Retornados ao universo do aviamento, novamente entra em cena a

seringueira, a floresta, a natureza infernal.

Quando não marcados pela variação espacial, os capítulos são assinalados pelas

mudanças climáticas: enquanto o verão é comparado a um melodrama, o inverno transforma o

ambiente na imagem da tragédia (AS, p. 170). Afora o adensamento das precárias condições

de vida, a natureza e suas estações, além de ditarem o ritmo do trabalho no seringal,

62

provocam, nas personagens, melancolia e tristeza. No universo molhado e agora mais sombrio

do inverno amazônico, “a tristeza brotava desse verde eterno e sempre igual” (AS, p. 135).

Para Benjamin (1984), a melancolia é a consciência da perda e da transitoriedade das coisas.

Este parece ser o sentimento que a paisagem hibernal provoca no seringueiro, para quem a

esperança de enriquecimento e o desejo de regresso ao espaço do lar, há muito se desfez.

De tal forma, até mesmo os fenômenos naturais estão associados à ruína. A cheia dos

rios engole ilhas, inunda tudo e muda a paisagem. A água depena a terra, causando desolação

e pobreza onde tudo já era desolado e pobre. O trabalho do seringueiro, no período de cheias,

torna-se ainda mais penoso: “era uma angústia densa, uma tristeza espessa ver a selva

enervada pela invasão pluvial – toda a folha luzidia, pinga, pinga [...] e mesmo quem estava

seco sentia a alma molhada” (AS, p. 134-135).

Nesse mundo fechado da selva, destaca Milton Hatoum, a liberdade do seringueiro

esbarra na sua dupla condição de escravo. De um lado, o endividamento típico do regime de

trabalho no seringal; e de outro, “a sensação de se encontrar num cárcere, daí a perda da

noção de tempo cronológico: os dias e os anos passam, mas o que indica a passagem do

tempo é o movimento das águas: a enchente e a vazante” (1993, p. 109). Em síntese, conclui o

narrador: “nada se criara ali para comprazer” (AS, p. 123). Não havia sensação no mundo,

mais melancólica, taciturna e penosa do que o inverno vivenciado ali no seringal, na rotina de

seringueiro: “nem a cara colada à vidraça, em longas horas invernosas, sofreria a compacta

monotonia da selva sob a chuva” (AS, p. 135).

A natureza, na forma como o homem a concebe e com ela se relaciona, é então

aproximada da ideia de cárcere, de masmorra, de lugar inóspito – “do latim in-hospitus, o que

não agasalha, não protege e não serve para ser habitado” (RODRIGUES, 2006, p. 151).

Conforme Vitor Viçoso, “as metáforas da clausura ou da prisão (a masmorra verde) acentuam

a claustrofobia que é inerente a todos os seringueiros, simultaneamente dependentes da

majestática, despótica e miasmática selva, cúmplice silente da estrutura social baseada numa

exploração recorrente” (2011, p. 61). Destarte, a natureza, assim como é narrada, provoca no

leitor imagens da floresta como dupla fábula do cárcere: 1) da própria natureza; 2) do ser

humano. Vejamos um trecho do romance:

era uma língua de terra emergindo do dilúvio, espapaçada nas bordas,

coberta ao centro de folhagem e troncos mortos, que apodreciam na

humidade, promiscuamente. Todos os animais que os caçadores teriam

vaidade em matar e muitos outros que ninguém ousaria comer, vinham

aglomerar-se ali – único abrigo que a selva lhes oferecia quando as águas

avançavam em posse de muitos meses. Só os macacos, saltadores eméritos

63

de ramo em ramo e acrobatas, por distracção, em todas as lianas,

encontravam no Inverno liberdade para excursionar. Os outros estavam

encarcerados, umas centenas naquela restinga, mais duzentos ou trezentos

nos metros de terra firme que se erguiam alguns quilômetros além –

entristecidos e famintos dentro do aro líquido que os prendia

inexoravelmente. Estava a paca loira e de olhos noctívagos; a anta

corpulenta, saborosa e míope também perante a luz solar; a cotia, pequena e

lesta como a lebre e de grito alarmado, sempre que sentia presença humana;

o tamanduá-bandeira, de cauda em estandarte e saudoso do manjar que lhe

forneciam os formigueiros, altos como guaritas de castelos; a tatu, com a sua

couraça esbranquiçada e focinho agudo de perfurador de todas as terras; o

veado espantadiço e a onça carnívora, o mais feliz de todos, pois só tinha de

escolher, entre os companheiros de prisão, aquele que mais lhe apetecesse.

Estavam outros e, de quando em quando, a contemplar a Arca de Noé,

vinham a espreitar lá de cima e rir-se da desgraça alheia, com a petulância

que lhes davam os seus movimentos livres, o quatipuru, o capijuba, os

barrigudos e os pregos. (AS, p. 131-132)

No primeiro plano deste espaço insular, é possível fazer uma leitura da flora como

uma topografia carcerária da fauna, ou seja, a natureza como presa da própria natureza. Mas,

notem-se também os adjetivos tipicamente humanos atribuídos aos animais, como: fauna

entristecida, tamanduá saudoso, onça feliz, macacos risonhos. Poderíamos, então, associar a

fauna, representada no fragmento, a uma fábula da estrutura social do sistema de produção da

borracha. Assim, a liberdade dos macacos, que se movimentam livremente, enquanto todos

estão presos, como representação da liberdade do proprietário do seringal (Juca Tristão); a

felicidade da onça, a quem a natureza outorga todas as presas, como representação da força

coercitiva dos capatazes (Balbino, Caetano, Binda, Alípio); o saudoso tamanduá-bandeira:

como o nordestino apartado da terra natal; enfim, os seringueiros: como uma grande fauna

entristecida, faminta e encarcerada. A moral que se institui, no final, como é peculiar ao

gênero textual da fábula, é a de que os animais, como os seres humanos, estão todos

encurralados, atravessados pela falta de forças, pelo ambiente econômico, geográfico,

histórico e social, onde nada se oferece como uma porta de fuga, como uma saída.

Como destacamos no início do capítulo, a natureza é “também um construto

linguístico e cultural, distinto da realidade natural e formado por meio da sedimentação de

percepções e imagens que nos precedem” (REIS, 2011, p. 14). Deste modo, ainda que, o

ambiente, no contexto histórico em que está inserido, assuma as características apresentadas

no romance, há também os limites e preconceitos de Alberto que influenciam seu olhar sobre

o outro. Nesse sentido, as atitudes do protagonista em relação ao meio podem ser analisadas a

partir dos conceitos de “heimlich” (o familiar) e “unheimliche” (o estranho), cunhados por

64

Freud21

(1996). No romance, essas ideias estão concretizadas principalmente em dois espaços:

a Amazônia, como unheimliche, e Portugal (a Europa), como heimlich, como se pode notar

neste fragmento: “dir-se-ia que a selva tinha como os monstros fabulosos, mil olhos

ameaçadores, que espiavam de todos os lados. Nada se assemelhava às últimas florestas do

velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura” (AS, p. 84).

Desde sua estada em Belém, Alberto, como um representante do espaço europeu,

sente-se um estranho, num meio estranho e não familiar. E porque assim o sente, logo

estabelecerá fronteiras e oposições, como: selvagem versus europeu, floresta versus cidade,

natureza versus cultura, colocando-se como um exemplo mais avançado de civilização e

conferindo à natureza o lugar de seu extremo outro (LEÃO, 2011). Não obstante, ao longo da

narrativa, perceberá que diante da opressão e da barbárie, tais fronteiras não se sustentam.

Allison Leão faz uma leitura das noções de fronteira, no sentido físico e simbólico, que

perpassam as ideias do imigrante português no romance de Castro. Para o pesquisador, o que

torna possível a mudança no modo de olhar de Alberto, são as vivências no seringal e as

experiências que o jovem exilado, até certo ponto da narrativa, reportava apenas a um seu

outro. As estratégias discernidoras, afirma o autor, “não resistirão ao acúmulo de experiências

a que Alberto será submetido” (2011, p. 72).

2.1.2 Paraíso afora

A mudança do protagonista, sobretudo no que se refere à sua relação com a natureza,

dar-se-á mais nitidamente quando este é apontado para atuar na sede do seringal, como

caixeiro do armazém. Leão aponta que, “não por acaso, essa mudança se efetua na altura do

romance em que Alberto vai trabalhar no escritório do barracão, onde não estará tão

dramaticamente cercado pela floresta” (2011, p. 90). No espaço da sede, mais voltado para

fora – onde corre o rio Madeira e atracam navios que dão acesso à cidade –, a notável

dificuldade de Alberto em adaptar-se é convertida em facilidade de adaptação: “era a primeira

vez que as circunstâncias lhe sorriam desde que ele saíra do Pará” (AS, p. 141). A troca de

espaço, de cenário, de paisagem, faz brotar, ainda que sucintamente, uma aproximação da

personagem com o lugar:

tudo, agora, lhe parecia mais doce, cômodo e suportável. Tinha o quarto bem

arrumado, os livros no seu lugar, sobre a mesa o retrato da mãe, sobrescritos

e papel em branco para lhe escrever e aos poucos amigos que ainda lhe

respondiam. Quando chegavam os navios, todo ele se alvoroçava pela ânsia

21

Os termos não têm uma tradução exata para o português. Aqui apresentamos apenas uma das possibilidades.

65

de correspondência e do mais que sentia em tombadilhos que vinham de

centros civilizados. (AS, p. 154)

Se a selva, como conclui Vitor Pena Viçoso, é tanto um espaço de claustrofobia como

de agorafobia, tanto o espaço que fecha o olhar e o espírito como a imensidão que assinala a

vertente esmagadora da infinitude, ela é também o não lugar em oposição ao casario do

seringal Paraíso. “Daí que Alberto, ao ser promovido a caixeiro do armazém recupere a

afectividade de uma relativa domesticação da paisagem, orientada, por exemplo, pela

perspectiva da janela” (2011, p. 61-62), a partir da qual, como mencionamos, o português se

entrega à contemplação do jardim.

Quando Alberto se muda da casa de Firmino, em Todos-os-Santos, para a sede, a

maior parte do enredo passa a se concentrar em espaços internos, como a casa de Juca Tristão,

o armazém e a casa de Guerreiro. O casarão de Juca, embora acolhedor e organizado, com

direito a mesa de jantar, talheres e refeição farta, não acusa na personagem sensações afáveis.

Conforme Bachelard (2009), todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa.

Mas na narrativa castriana, embora a casa de Juca, sobretudo em comparação com as outras

habitações do seringal, tenha características físicas de uma morada, o caixeiro não a sente

assim, pois para ele o espaço não é habitado e sim imposto. Esse sentimento é agravado, em

parte, pelo fato de não ser tratado como integrante do lugar, em parte porque vê no patrão uma

personificação dos males que o acometem.

Por sua vez, o armazém, a cozinha de Yáyá, além do quarto no barracão são os

espaços que, para o jovem exilado, mais se aproximam de uma memória topográfica

agradável. A rotina de caixeiro, os jantares preparados por Yáyá e saboreados à mesa, as

conversas, jogos e distrações nos fins de tarde com Guerreiro, permitem uma assimilação

topográfica mais favorável. Entretanto, a mudança espacial, ainda que provoque

transformações no português, não fará, de todo, desaparecer as imagens grotescas – como as

cruzes detrás do barracão e a cena de corpos (desfalecidos por alguma doença ou por

assassinato) que chegavam carregados em redes –, nem as percepções (ameaçadoras) da

natureza, como, por exemplo, quando vai ao rio Madeira cumprir parte de suas tarefas como

empregado do armazém e se depara com viveiros de mucuins e com serpentes.

O que os espaços de fora evidenciam, sobretudo, é a diferença entre os modos de

habitar e de conviver nos centros isolados na floresta e na sede, onde vivem o patrão e os seus

trabalhadores. Outra diferença nítida, aliás, refere-se aos termos “trabalhador” e

“seringueiro”: enquanto os primeiros recebem o tratamento de um empregado; os segundos

não dispõem, de forma alguma, das condições e dos direitos de um funcionário, a eles se

66

arrogam apenas deveres e coações. O seringueiro ocupa a função mais inferiorizada na

hierarquia do seringal, e como tal, faz jus apenas dos espaços mais arredados e apartados.

A atitude de legar aos mais inferiorizados os espaços periféricos revela-se uma

tradição ao longo da história da relação entre o homem e o mundo natural, como bem

apontam os estudos realizados por Simon Schama e Keith Thomas. Schama ressalta, entre

outras ideias, a origem do termo floresta, derivado de foris, e cujo significado remete para

“fora” (1996, p. 153). No Brasil, corrobora Roberto DaMatta, “quanto mais próximo da

natureza, mais inferiorizado” (1994, p. 113). Espaço às margens, habitar o verde é, portanto,

ser um pária da sociedade. Por sua vez, no Paraíso de A Selva, quanto mais inferiorizado, mais

alocado para dentro da floresta.

No geral, podem-se apreender das descrições do narrador e das atitudes das

personagens em relação à natureza algumas ideias a serem destacadas: a) o espaço é sentido e

percebido como ameaçador e violento, devendo, por conseguinte, ser mantido sob o controle

humano; b) o tom narrativo e descritivo está em acordo com concepções em voga, desde o

século XVI, sobre os aspectos naturais, e, portanto, de longa tradição. Keith Thomas, no livro

O homem e o mundo natural (2010), ao estudar o desenvolvimento da história natural, aponta

que, entre os séculos XVI e XVIII, as plantas, como também os animais, eram pensadas em

função de seus usos. Nessa lógica, tornava-se fundamental uma nítida linha divisória entre

homens e animais como forma de justificação e hierarquização do mundo. A lógica servia

também para reger as relações entre os próprios humanos: quanto mais próximo da natureza,

mais selvagem e inferiorizado este se tornava. Legitimavam-se, assim, os maus-tratos àqueles

que viviam em condições tidas como selvagem.

Homem e natureza, na narrativa de Castro, estão permeados e interligados por um

estado fortemente hostil. Não obstante, as sensações de ameaça e violência que afetam os

sentidos das personagens, sobretudo os de Alberto, não podem ser conferidas ao espaço

natural em si, que é apreendido como uma espécie de espelho do espaço social. No centro do

problema situa-se o sistema econômico, que explora tanto o homem quanto a floresta. A certa

altura do romance, o próprio Alberto parece chegar a esta conclusão ao tornar-se mais

consciente das condições sociais e econômicas que se impunha no seringal: “melhor

elucidado, via agora a situação dos ex-companheiros com maior amplitude crítica do que

quando moirejava no mesmo plano deles” (AS, p. 155).

Retomando a assertiva da professora Helena Carvalhão Buesco, isto é, de que a

paisagem literária constitui uma manifestação da natureza histórica do lugar (2012, p. 7),

pode-se afirmar que a Amazônia arquitetada em A Selva é o espaço no qual a geografia e a

67

história encontram-se, cruzam-se na floresta. De tal modo, o que se processa literariamente,

para além da ficção, é uma Amazônia historicamente criada, cuja paisagem é fruto de

construções humanas, portanto, não naturais, como assevera Renan Freitas Pinto:

a Amazônia não se tornou uma região atrasada e subdesenvolvida em razão

de nenhum tipo de fatalidade. [...]

Se durante muito tempo o atraso era explicado por fatores desfavoráveis do

clima, do meio físico, das raças e povos inferiores, do tipo de ocupação

territorial, hoje apesar do conhecimento suficiente para evidenciar que o

subdesenvolvimento econômico e o atraso cultural são produtos históricos

bem definidos, as concepções correntes, entretanto, terminam reafirmando a

crença de que há regiões e povos que nasceram para ocupar posições em

desvantagem e subordinadas. (2006, p. 31)

2.2 Mayombe: a natureza como abrigo

Dizíamos que na pintura de Anselm Kiefer (fig. 5) a floresta atua não apenas como um

espaço mítico, mas também de violência. Em Varus (nome de um general romano derrotado

pelas tribos germânicas na floresta de Teutoburger) Kiefer inscreve em meio à paisagem –

cujas árvores de troncos “desnudos apresentam as cicatrizes da guerra; com galhos hirtos que

formam uma arcada de lanças” (SCHAMA, 1996, p. 136) – nomes de figuras importantes na

formação da identidade nacional alemã, como: Hermann e sua esposa, Thusnelda; os poetas

Hölderlin e Klopstock, o filósofo Fichte, o teólogo Schleiermacher, dentre outros.

Kiefer, que por certo tinha uma queda pelo mito arbóreo (SCHAMA, 1996, p. 131),

determinado a reunir elementos da tradição mítica e heroica alemã e suas consequências

históricas inaceitáveis, juntou em sua obra a paisagem e a pintura histórica. De modo

semelhante, podemos pensar a representação florestal na obra de Pepetela, na qual a natureza

é tanto um lugar heroico-mítico quanto um lugar de guerra, como sugere a epígrafe do

romance: “aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um

caminho na floresta obscura” (M, 2004, p. 7)22

. Análogo ao tom artístico do pintor alemão, o

romance de Pepetela também alia a paisagem à literatura, que por sua vez se vincula à

história.

Inserido no momento histórico que vivia Angola, qual seja, o embate ao colonialismo

e a afirmação da nacionalidade, Mayombe é a história dos que combateram na conquista por

um espaço coletivo, violentado há séculos pela pilhagem da terra e dos habitantes. O romance

compõe-se de um enredo aparentemente simples, mas vai aos poucos se revelando complexo,

dadas as contradições endógenas das culturas angolanas (AGUIAR, 2011). Como argumenta

22

Utilizaremos a edição de 2004 do romance Mayombe. Doravante, as referências à obra serão feitas usando

apenas a sigla “M”, seguida do número da página do livro.

68

Inocência Mata, no meio da paisagem homogênea habita a heterogeneidade: para além da

celebração do passado (2006, p. 49), a luta dos poucos homens ligados ao MPLA, liderada

por Sem Medo, se dá não apenas no embate ao colonialismo (em escala global), mas também

contra a corrupção política (em escala local), o racismo, o sexismo e o tribalismo ingênuo.

Como afirmamos, no primeiro paradigma da literatura angolana o apelo à natureza é

uma força atuante, sobretudo como afloramento de um sentimento regional e com conotação

nativista. Observa-se como característica desse momento literário, o retrato minucioso das

terras ocupadas, além de uma “recorrente geografização dos universos narrativos” (NOA,

2002, p. 124). Francisco Noa, em Império, mito e miopia (2002, 116), afirma que, no romance

colonial, a representação do espaço está presente em todos os segmentos discursivos: na

própria descrição, na narração, nos diálogos e nos monólogos. Nessa literatura, conclui o

pesquisador, o espaço é uma imensidade performativa, que preside tanto ao processo de

enunciação como atravessa toda a narrativa.

No que diz respeito ao romance de Pepetela, que certamente não está inserido no

paradigma colonialista, é possível observar algumas dessas características espaciais. A

narrativa se “move entre Mayombe, a grande floresta da região de Cabinda, e Dolisie,

pequena cidade na República Popular do Congo” (MATA, 2006, p. 45). Todavia, ainda que

tenha como topos a floresta, e que o espaço assuma uma importância reconhecida na

composição do enredo, Rita Chaves argumenta que a narrativa é um contraponto à literatura

colonial.

Em Mayombe, sem dúvida, o espaço assume essa função performativa,

todavia o ponto de vista da narrativa determinará uma sensível alteração na

consideração do lugar onde se passam as ações. A floresta, por onde

circulam as personagens, não apenas as abriga, mas interage com elas, e

integra produtivamente um jogo em que se configuram relações discursivas,

percepções contingenciais da experiência presente, visões de mundo,

projetos de uma identidade em construção. Com essa politização do espaço,

Pepetela oferece um contraponto a uma tendência dos escritores coloniais

para os quais a natureza africana era, indistintamente, o mato. Dissolve-se a

carga do exotismo central no discurso do colonizador e o colonizado

imprime a sua marca, transformando a sua paisagem em força dialogante.

(2006, p. 80, grifos nossos)

Aí, o espaço assume, então, significações plurívocas que o tornam um sema

conotativamente privilegiado (SECCO, 2008, p. 53). Por conseguinte, o “mato” é

transformado em espaço humanizado, lugar de interações e tensões sociais, econômicas,

culturais e civilizacionais.

69

Uma das características do testimonio, conforme discorremos no capítulo anterior, é a

relação entre arte e política. Mayombe transforma-se também num espaço politizado, onde

vozes marginalizadas tomam o lugar do discurso e da ação na reconquista do território (em

amplo sentido). Nas palavras da professora Tindó Secco, “Mayombe, floresta úmida, cheia de

lama fecundante, é metáfora do útero de Angola parindo a Revolução” (2008, p. 55).

Enquanto as narrativas de combate, no contexto da literatura angolana, sempre tomaram

Luanda como lugar privilegiado da gestação do país, a floresta tropical, neste caso, é quem

representa, metonimicamente, o coração de Angola (MATA, 2006, p. 46).

2.2.1 A floresta como trincheira

A estrutura de Mayombe – que se inicia e termina com uma ação bélica na floresta –

está organizada em cinco capítulos: A Missão; A Base; Ondina; A Surucucu; e A Amoreira;

além de um epílogo. Inocência Mata assim sintetiza as divisões capitulares:

a primeira é a fase do ideal e do sentido missionário da luta, em sentido

duplo – da acção militar [...] e da política [...]. A segunda, decorrente na base

[...], é a da unidade e resistência física e psicológica, em que o espírito

combatente é posto à prova pela carência e pressão do isolamento e das

hostilidades desencadeadas; estas estimulam a capacidade de desafiar o

perigo em terreno desconhecido e misterioso, como é a floresta. A terceira é

a fase que sinaliza a dimensão sentimental de homens que, no seu

quotidiano, são obrigados à dureza da luta [...]. A quarta, à volta da metáfora

da surucucu, é a da apresentação das falácias e dos equívocos articulados não

apenas na luta [...], mas também por quaisquer outras circunstâncias da vida

[...]. Por último, a Amoreira, a fase da morte simbólica do Comandante, é o

estopim que conduz ao clímax do processo metamórfico: a unidade para

além das diferenças [...]. Todos estes segmentos têm uma localização

espácio-temporal – a floresta do Mayombe e Dolisie; esses são, em última

instância, lugares também mentais (da mentalidade utópica), pois cristalizam

a lógica sacrificial da luta e representam a complexa história do país, de que

se faz a escritura do Epílogo, sintetizando toda a problemática do romance.

(2010, p. 321-322)

Como destaca a autora, os espaços narrativos, de modo geral, relacionam-se à ideia de

espaço utópico, do desejo, metáfora de uma nação que se quer construir. Todavia, para que

assim se efetive, é necessário vivê-los, previamente, como espaços atópicos, de guerrilha.

Talvez por isso, a primeira descrição da floresta, no romance, remeta inicialmente à ideia de

prisão: “as árvores enormes, das quais pendiam cipós grossos como cabos, dançavam em

sombras com os movimentos das chamas. Só o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir,

por entre as folhas e as lianas, dispersando-se rapidamente no alto” (M, p. 11).

70

A leitura mais atenta ao contexto, contudo, acena para a floresta como metáfora das

condições dos guerrilheiros, refugiados nas matas, e que precisam, portanto, agir

silenciosamente para não serem apanhados pelos soldados portugueses. De tal forma, as

primeiras descrições, tanto do rio quanto da floresta, dão conta, já na primeira página da

narrativa, de ilustrar sutilmente a noção espacial que permanecerá, isto é, a floresta como

espaço-camuflagem. Para usar uma imagem própria de um cenário aguerrido, a floresta como

escudo agarrado à mão do guerrilheiro, como se enuncia na passagem que narra o confronto

entre angolanos e portugueses: “finalmente, os primeiros soldados começaram timidamente a

responder ao fogo, para permitir que os que estavam na estrada pudessem ganhar a mata

protectora” (M, p. 51, grifos nossos).

Nesse cenário, a natureza torna-se então a trincheira, embora em ocasiões corriqueiras

possa ser um lugar de passeio. É o que argumenta o Comissário, quando Teoria, mesmo

ferido, insiste em provar a coragem e a força de um mestiço: “o problema é que se trata de

uma operação de guerra e não de um passeio. Num passeio, um tipo pode agir contra toda a

razão, só porque lhe apetece ir pela esquerda em vez de ir pela direita. Na guerra não tem esse

direito, arrisca a vida dos outros...” (M, p. 13). Num tempo-espaço de luta pela constituição da

nacionalidade, a liberdade individual é deixada de lado em nome da coletividade e da

construção de um espaço utópico.

Integrando o mapa espaço-temporal atópico, de luta sacrificial, a geografia do

romance constitui-se também de lugares de perigo, como elevações montanhosas, que

contribuem para dar ao leitor uma visão mais aguçada dos obstáculos envolvidos no combate

à exploração portuguesa:

depois de comerem, voltaram a avançar. Encontraram uma montanha pela

frente, que atacaram às duas da tarde. A primeira parte da montanha estava

coberta de folhas de xikuanga, o que dificultava a ascensão. As mochilas

pesavam nos ombros, as pernas vergavam-se. Paravam frequentemente, para

retomar o fôlego. Quando parecia que se aproximavam do cume, surgia nova

elevação. As folhas de xikuanga foram substituídas por mata espessa, que

era preciso cortar à catana, para abrir caminho. Às quatro horas, começou a

chover. A água descia pela montanha, ensopava o solo. As botas tornaram-se

dez vezes mais pesadas, com o peso da lama. [...] Às cinco horas atingiram o

alto da montanha, exaustos. Depois de curto descanso, principiaram a

descida, pois à noite era impossível dormirem na montanha, por causa do

frio. [...] A chuva continuava a cair. Às seis horas escureceu totalmente e

eles ainda não tinham descido a montanha. O resto foi feito de quase rastos,

na escuridão da montanha traiçoeira, a chuva fustigando o rosto. (M, p. 45)

Os espaços elevados, na tradição narrativa, de modo geral estão ligados à dificuldade.

Nas narrativas mitológicas, como na bíblia, as montanhas e os montes aparecem como

71

símbolos do sacrifício e da peregrinação, dentre outros. Na mitologia grega, por exemplo,

Sísifo é condenado para sempre a empurrar uma pedra até o cimo de um monte, caindo a

pedra sempre que o topo é atingido. Inserindo-se nessa tradição, a montanha, em Mayombe,

engendra episódios de sofrimento e de esforço. Estriando o tom político do romance, o

discurso bélico aparece sobretudo nos capítulos I (“A Missão”) e V (“A Amoreira”), quase

com tons expressionistas, deixando à mostra o ambiente extenuante habitado pelos

guerrilheiros.

Se no romance de Castro a topografia amazônica, segundo as percepções de Alberto,

configura-se como repetitiva e monótona, no romance de Pepetela mostra-se diversa e

desafiadora. Alia-se às elevações montanhosas, a chuva, fenômeno que ocorre com

frequência, principalmente nos momentos de combate, tornando mais agudas as situações de

duelo. Decorre, portanto, das circunstâncias bélicas que algumas vezes Mayombe seja

pensada como topos frio e solitário em oposição à casa quente: “o Chefe de Operações

contemplava as sombras das árvores, deitado na lona. Ouvia a conversa dos outros, pensando

na chuva que iria cair dentro de momentos e na casa quente de Dolisie, com a mulher ao seu

lado” (M, p. 13).

Efeito de uma geografia transformada em espaço paramilitar, o romance é assinalado

por passagens de fortes registros violentos, dentre os quais, se destaca o confronto entre o

Comandante e um soldado português:

Sem Medo mudou o carregador, no momento em que apercebeu o soldado à

sua frente, deitado na borda da estrada, tentando febrilmente desencravar a

culatra da G3. O soldado tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo

apontou a AKA. O soldado era um miúdo aterrorizado à sua frente, a uns

quatro metros, as mãos fincadas na culatra que não safava a bala usada. Os

dois soldados sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer

tragédia. A bala de Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o

olhar aterrorizado desapareceu. Necessariamente, sem que qualquer um dos

dois pensasse na possibilidade contrária. (M, 2004, p. 51-52)

Sem Medo, em nítido choque com a realidade que o cerca, vê-se diante de um menino

lusitano, dentre tantos enviados de Portugal por Salazar.23

A primeira parte do fragmento

leva-nos a refletir acerca da possibilidade de evitar a morte. Já as palavras finais do narrador

encaminham as seguintes reflexões: por que o (des)encontro entre dois combatentes? O que

23

Lembremos o poema “A guerra”, composto por Natércia Freire nos anos da ditadura salazarista, e cuja

temática alude aos miúdos portugueses enviados à guerra colonial: “Estiveram no meu colo, sonolentos./ Contei-

lhes muitas lendas e poemas./ Às vezes, perguntavam por algemas./ Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,/ desejavam a luta, o caos, a guerra./ Outros sonhavam e acordavam

roucos/ de gritar contra os muros que há na Terra” (1964).

72

lhes impossibilita conjeturar a possibilidade de um diálogo para além dos limites geográficos,

que os permitiria se colocarem do mesmo lado da trincheira, em luta pela liberdade?

Em princípio, poder-se-iam presumir as atitudes de Sem Medo como manifestação de

uma natureza primitiva ou fruto de uma desrazão, típica de sociedades arcaicas e “bárbaras”.

Partindo dessa hipótese, dois pontos devem ser destacados, especialmente no sentido de

recuperar memórias anteriores. O primeiro refere-se ao fato histórico de ambos, angolano e

português, encontrarem-se impregnados por um presente violento. Além disso, no pretérito,

são partícipes (em lados opostos) de um tempo-espaço minado pela espoliação. De modo que,

não se pode analisar o episódio da morte do soldado português de maneira isolada. É preciso

ter em mente o fato de que se materializa nesta narrativa (como também em outras produzidas

em Angola) “o gesto de encarar o passado como local em que se fundam os condicionamentos

do presente”, como bem observa Rita Chaves (2010, p. 14).

Outro ponto refere-se à ideia de barbárie. Ainda que, nos registros historiográficos,

como aponta Simon Schama, os povos habitantes das florestas tenham sido compreendidos

como memória do primitivo e que a floresta, de modo geral, tenha sido pensada como um

espaço bárbaro e avesso à civilização, Theodor Adorno entende

por barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do mais

alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um

modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não

apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação

nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se

encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva. (2006, p. 155)

Nesses termos, a ideia de barbárie não é inerente ao espaço nem à condição de alguns

grupos étnicos em relação ao desenvolvimento tecnológico. Pelo contrário, refere-se,

sobretudo, a um modo de agir.

Por outro lado, a desbarbarização, conforme o filósofo, não implica também numa

passividade ou neutralidade política diante dos acontecimentos. “Em circunstâncias em que a

violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a

geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser

condenada como barbárie”, argumenta Adorno (1995, p. 159-160). A nosso ver, no que toca

ao romance de Pepetela, é nesse sentido que as ações dos guerrilheiros devem ser

compreendidas. É o próprio Sem Medo quem nos dá um argumento que colabora para o

entendimento mais amplo e contextual: “o que estamos a fazer é a única coisa que devemos

fazer. Tentar tornar o país independente, completamente independente, é a única via possível

73

e humana. [...] Nacionalização das minas, reforma agrária, nacionalização dos bancos, do

comércio exterior etc., etc.” (M, p. 115).

Pelo fragmento, que compõe um debate mais amplo entre o Comandante Sem Medo e

o Comissário João, atina-se a outro mote inserido no espaço narrativo de Mayombe: afora o

anseio por uma liberdade geopolítica, a luta na floresta implica também a luta pela floresta.

Em sentido amplo, a reconquista dos bens naturais: a terra, o petróleo, os diamantes, entre

outros que desde o século XVI passaram a ser explorados pelo europeu, conforme ajuíza o

Comissário, em diálogo com angolanos a serviço do colonizador:

– Vocês ganham vinte escudos por dia, para abaterem as árvores a machado,

marcharem, marcharem, carregarem pesos. O motorista ganha cinquenta

escudos por dia, por trabalhar com a serra. Mas quantas árvores abate por dia

a vossa equipa? Umas trinta. [...] As árvores são do patrão? Não. São vossas,

são nossas, porque estão na terra angolana. (M, p. 34)

Somos soldados que estamos a lutar para que as árvores que vocês abatem

sirvam o povo e não o estrangeiro. Estamos a lutar para que o petróleo de

Cabinda sirva para enriquecer o povo e não os americanos. (M, p. 35)

Como afirmamos, embora a natureza tenha sido vista pelo colonizador português

como espaço infernal, ela sempre foi também opção de enriquecimento e exploração. De

forma que a economia colonial angolana caracterizava-se pelo extrativismo e principalmente

pela exploração de metais preciosos. Todavia, os exploradores encontravam muitas

dificuldades de acesso aos bens naturais, não só pelo desconhecimento do território, mas

principalmente porque a relação que os reinados africanos tinham com esses ia muito além da

questão meramente econômica. Para os povos autóctones, “os minerais estavam inseridos

numa visão de mundo marcada pela ideia de equilíbrio entre as várias forças da natureza”

(GONÇALVES, 2011, p. 35), uma visão de caráter sagrado.

2.2.2 Onilé, a Gaia africana

Uma distinção importante a ser destacada entre os romances de Ferreira de Castro e de

Pepetela diz respeito ao ponto de vista narrativo. Enquanto em A Selva o espaço é narrado a

partir das percepções de Alberto – que embora se torne um humanista ao longo da narrativa, é

um imigrante português, herdeiro de ideias colonialistas e com resquícios eurocêntricos –, o

ponto de vista que prevalece na narração espacial em Mayombe é o do autóctone. Mesmo

74

atingidos por fenômenos da natureza, como no episódio da montanha, os guerrilheiros não a

tomam como um lugar de horror, como um mal24

.

À medida que se distancia da ideia de cárcere e de infernismo, a floresta aproxima-se

da ideia de abrigo e de interação entre homem, cultura e natureza. Há, com frequência,

narrações entrecortadas por afirmações – como: “estirou-se no capim” (M, p. 75); “saíram

abraçados e foram-se meter pelo capim [...]. Pararam embaixo de uma mangueira majestosa, à

sombra da qual se sentaram. Fizeram amor [...]” (M, p. 85) –, que enunciam uma

familiaridade entre o homem e os espaços naturais, o que Ozíris Borges Filho denomina

“topopatia”, isto é, uma “relação sentimental, experiencial, vivencial existente entre

personagens e espaço” (2007, p. 157). Há, por conseguinte, no romance, um enlaçamento,

uma afetividade territorial por um espaço que abriga em si, em sua formação, a memória

histórica, ancestral e até mesmo mitológica.

O vocábulo que dá título ao livro (“mayombe”), segundo Tindó Secco, é um termo

original do Congo, cujo significado remete a “feitiço”, “macumba”, sendo o mayombero uma

espécie de xamã, responsável pelo conjuro mágico capaz de matar cobras venenosas (2008, p.

53). Etimologicamente, o termo é uma junção do prefixo “ma-”, que significa reino, com o

substantivo “iombe”, denominação de um dos povos que habitavam o atual território de

Cabinda25

. Observa-se como o substantivo “iombe” remete foneticamente ao vocábulo

“lombe”, designação do primeiro espaço que aparece no romance: “o rio Lombe brilhava na

vegetação densa. Vinte vezes o tinham atravessado” (M, p. 11) – são as palavras utilizadas

para abrir a narrativa. As afinidades fonéticas entre os vocábulos – “iombe” (que remete aos

ancestrais) e “lombe” – nos parecem relevantes quando se trata do romance em tela. É como

se, foneticamente, se realizasse uma ligação entre a floresta, outrora ocupada pelos ancestrais,

e o espaço presente, sema de luta e de reconquista26

.

24

Tal ponto de vista, não impede, contudo, que o narrador dê ao leitor a possibilidade de captar o espaço também

a partir da perspectiva dos “tugas” (expressão utilizada no romance para se referir aos portugueses). E para o

estrangeiro, a floresta, como em A Selva, transforma-se num espaço hostil e atemorizante, como nesta passagem:

“[...] os soldados tugas, cercados numa mata desconhecida e temível, que escondia monstros aterrorizadores” (M,

p. 54). 25

A explicação etimológica embasa-se em informações históricas disponibilizadas no endereço eletrônico do

Consulado de Angola no Rio de Janeiro: <http://www.consuladodeangola.org>. Conforme consta, “a Província

de Cabinda compreende uma pequena porção do antigo reino do Luango e a quase totalidade dos velhos reinos

do Ngoio e Cacongo. Desde a boca do Zaire até à linha equinocial distribuíam-se vários reinos. De todos, o mais

importante era o de Luango, que se estendia da aldeia de Macanda até ao rio Luísa-Luango. [...] A nordeste deste

existia o reino de Iomba ou Iombe a que impropriamente se chamou Maiomba ou Maiombe. Maiombe significa

Rei do lombe, tal como Ma-Luângu, Rei do Luango”. 26

Parecem-nos importante, sobretudo porque ao longo da narrativa as personagens assumem que a nomeação

dos espaços se dá conforme as histórias picarescas e a relação dos guerrilheiros com a floresta. Além disso, cada

personagem é batizado segundo as características físicas, psicológicas ou ainda em acordo com a missão ou

função na guerrilha, de modo que todo nome carrega um significado cuja escolha é consciente e coletiva.

75

No decorrer da narrativa, o rio assume o papel de bússola, de norte que conduz os

guerrilheiros em suas andanças e missões pela floresta. Distinto de A Selva, onde surge como

lugar espantoso, em Mayombe, o rio é o lugar de conversas e desabafos, de encontros, como

se nota: “vamos então para o rio. É lá nosso confessionário. Foram, sentaram-se sobre o

tronco. Sem Medo tirou as botas e meteu os pés dentro da água. – Devias fazer o mesmo. É

das sensações mais agradáveis” (M, p. 144). A natureza, ao mesmo tempo em que é

esconderijo, é também o confessionário, lugar de embates individuais e coletivos.

Como consequência de uma voz que narra a partir de um espaço que sente seu, embora

ocupado pelo outro, na maioria das vezes a imagem da floresta está associada à ideia de

proteção. Seja como um guarda-chuva: “em breve acordariam com a chuva miudinha que

primeiro só molharia a copa das árvores e começaria a cair das folhas quando já tivesse

parado de chover” (M, p. 14); como um guarda-sol: “o Mayombe não deixava penetrar a

aurora, que, fora, despontava já” (p. 15); ou ainda, como guarda-noturno: “não fizeram

guarda. À noite, na mata, o melhor guarda era a impenetrabilidade do Mayombe” (p. 54). Os

trechos suscitam aos olhos do leitor a imagem da conivência entre os guerrilheiros e a

floresta, que não assume a condição de intrusa, mas de lar, de morada.

Retomemos o aspecto mitológico do espaço na narrativa em questão. No pórtico do

romance, Pepetela, apontando para esta relação entre o homem e a terra, declara: “vou contar

a história de Ogun, o Prometeu africano”. Partindo da afirmativa, gostaríamos de traçar aqui

outra analogia entre essas duas culturas. Na mitologia grega, Gaia (deusa da Terra nascida do

Caos) é a ordenadora do Cosmos, eliminando a desordem e a destruição em que aquele se

encontrava. Criou montanhas, vales e planícies, fez nascer a água e deu origem aos seres

vivos. Uniu-se a Urano e dessa junção nasceram os Titãs. Na mitologia africana,

especificamente na iorubá, Onilé, a Terra-Mãe, é quem representa a base de toda a vida.

Divindade feminina relacionada aos aspectos essenciais da natureza, originalmente exercia

seu patronato sobre tudo que se relacionava à apropriação da natureza pelo homem. Os

sacrifícios feitos à deusa incluíam tudo o que a terra produz e que o homem transforma.

Como apontam os estudos sobre Mayombe, a floresta é associada a um deus.

Conhecida também como Ilê, o mito de Onilé parece representar a relação entre os

guerrilheiros e a terra. Semelhante à tradição grega, é Onilé, a Terra, quem, metaforicamente,

dá vida aos titãs (neste caso, os integrantes do MPLA), e os protege na revolta contra o

invasor:

76

a mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras frente dos homens, a

mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos,

lama, escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés

dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre

os homens. E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos

seus braços folhas brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a

mata estendeu-lhes a sombra protectora, e os frutos. (M, p. 68)

Numa relação quase conflituosa, de embate entre os homens e o deus-Mayombe, os

elementos da floresta misturam-se aos corpos e passam a constituí-los, ligando-os à terra

(LESQUIVES, 2011). Estes, ao se apossarem da floresta, lutam, como titãs, pela harmonia

angolana (em contexto global e local). E a terra, que estivera a serviço e fora explorada pelo

colonizador, passa então a abrigar os autóctones.

Há diversas passagens no romance que explicitam a imbricação entre “os turras”

(alcunha pela qual também atendem os guerrilheiros) e o espaço. Dentre elas, a que abre o

capítulo II, intitulado “A Base”:

o Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele abriram uma

clareira. Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata

tentando localizar nela a presença dos guerrilheiros. As casas tinham sido

levantadas nessa clareira e as árvores, alegremente, formaram uma abóbada

de ramos e folhas para as encobrir. Os paus serviram para as paredes. [...] Os

paus mortos das paredes criaram raízes e agarraram-se à terra e as cabanas

tornaram-se fortalezas. E os homens, vestidos de verdes como as folhas e

castanhos como os troncos colossais. A folhagem da abóbada não deixava

penetrar o Sol e o capim não cresceu em baixo, no terreiro limpo que ligava

as casas. Ligava, não: separava com amarelo, pois a ligação era feita pelo

verde.

Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira. (M, p. 79)

Nota-se a descrição vivaz do local, marcada pelo nascimento de “homens verdes”.

Neste ponto, a integralização entre os turras e a natureza realiza-se e a floresta confirma-se

como espaço que traga os homens, transformando-os em elementos que brotam de sua

superfície (LESQUIVES, 2011). Onilé aceita então ser útero da revolução e camuflagem para

os turras, que mesmo construindo as casas em uma clareira, são ocultados da busca aérea.

A base é, por assim dizer, o núcleo habitacional dos guerrilheiros na floresta. Além da

cabana do guerrilheiro, o espaço é composto: pela Casa de comando, “lugar de reunião à

tardinha, antes de ouvirem a emissão de rádio do MPLA” (M, p. 69) e onde são escolhidos os

nomes de guerra para os novos guerrilheiros; pela Escola, localizada no centro da base, onde

se dá a formação, inclusive política; e pela Casa do Partido, local onde se armazenam e assam

as comunas, fruto da flora local que, dada a escassez de mantimentos, serve de alimento – “a

comida faltava e a mata criou as “comunas”, frutos secos, grandes amêndoas, cujo caroço era

77

partido à faca e se comia natural ou assado. As „comunas‟ eram alimentícias, tinham óleo e

proteínas, davam energia” (M, p. 67).

Lembremos que a base é a unidade de resistência física e psicológica. Se em A Selva a

natureza oferece ao seringueiro poucos recursos alimentícios, em Mayombe, mostra-se menos

rica ainda, de forma que a escassez de alimentos é um aspecto recorrente em toda a narrativa.

Contudo, manifesta-se, como parte da política dos turras, uma consciência ambiental que

dirige e sustenta as ações. São paradigmáticos dessa atitude dois episódios: no primeiro, “Sem

Medo deitou fora o cigarro. Um par de macacos perseguia-se nas árvores próximas. Um tiro

liquidaria um deles, era certo. Mas o Comandante não ousou desfazer o casal que se preparava

para o amor. Menos uma refeição, pensou” (M, p. 91, grifos nossos); no segundo, “um bando

de pássaros grandes poisou numa árvore ali perto. Grasnavam como patos. Sem Medo pegou

na arma. Depois encolheu os ombros; já havia comida na Base” (p. 150, grifos nossos).

Produz-se uma relação de comensalismo: haja fome ou não, as decisões pautam-se sempre por

uma relação harmônica entre homem e floresta.

Juliana Lesquives (2011) sugere que as noções ambientais na narrativa, especialmente

a de entrelaçamento com o espaço, são proporcionadas por uma espécie de metamorfose

simbólica por que passam os integrantes do MPLA e por recursos de antropomorfização da

floresta, como se destaca no seguinte trecho:

o Comissário avançou prudentemente, seguido dos seus homens. As folhas

secas estalavam sob as botas, mas os estalidos eram abafados pelo ruído da

serra devastando o Mayombe. Os guerrilheiros encavalitaram-se num

enorme tronco caído. Deixara de respirar, monstro decepado, e os ramos

cortados juncavam o solo. Depois de a serra lhe cortar o fluxo vital, os

machados tinham vindo separar as pernas, os braços, os pelos; ali estava,

lívido na sua pele branca, o gigante que antes travava o vento e enviava

desafios às nuvens. Imóvel mas digno. Na sua agonia, arrastara os rebentos,

os arbustos, as lianas, e o seu ronco fizera tremer o Mayombe, fizera calar os

gorilas e os leopardos. (M, p. 26-27)

A derrubada da floresta é narrada como se um corpo desfalecesse. Observam-se as

características tipicamente humanas conferidas à árvore derrubada, como: “fluxo vital”,

“braço”, “pernas”, “pelos”, “pele branca”. Além disso, cria-se um clima mórbido, de luto,

para descrever o abatimento. Ainda que o espaço natural ganhe destaque, no que se refere aos

aspectos descritivos é necessário destacar uma característica importante em Mayombe: apesar

de a narrativa transcorrer na floresta, o narrador não se coloca obstinadamente a descrever os

espaços. A ênfase é dada mais à ação do que ao próprio espaço, que ganha destaque conforme

os eventos.

78

Outra topografia presente no romance é Dolisie. Constituindo-se por uma relação de

oposição à floresta – a qual atua inclusive como abrigo moral, que protege das vilezas –, a

cidade é o espaço político-administrativo, onde se localizam também a cadeia e a escola do

MPLA. Invertendo os polos positivo e negativo que geralmente caracterizam o dualismo

cidade versus florestas, Dolisie atua como sema negativo. Dentre os personagens, o

Comissário João é quem problematiza a questão. O narrador, ao referir-se à ida deste para a

cidade, à procura de mantimentos para os militantes da base, relata o desejo da personagem de

fugir do espaço citadino e refugiar-se em Mayombe, temendo perder ali toda a força moral e

desencorajar-se da luta: “o cortejo de cinco homens meteu-se na mata, na noite, em passo

acelerado, ritmado por um Comissário que fugia, como louco, para não desesperar, correndo

para a sua Base, [...] onde os homens faziam o que podiam para lutar e para esquecer o clima

que reinava nas suas costas” (M, p. 90).

Ainda que seja o lugar no qual o Comissário tem encontros de amores com Ondina,

Dolisie é também o espaço repelido, contrário à floresta – sempre ansiada por sua proteção

contra o desânimo e a corrupção. Se em A Selva, conforme a lógica do sistema de aviamento,

a floresta torna-se espaço de todo tipo de vileza, Mayombe é um abrigo moral. De tal modo,

enquanto a cidade configura-se como topofobia, ou seja, como topos de aversão, a natureza

constitui-se como topofilia, cuja paisagem, carregada de experiências sensoriais e de afetos,

associa-se à memória histórica do país.

Nas páginas finais do romance, Sem Medo, ao se imaginar lutando na Frente Leste no

coração de Bié, para onde seria enviado, põe-se a rememorar a diversidade imagética da

natureza africana:

os olhos de Sem Medo iluminaram-se. Sentiu nas narinas o vento do Planalto

que conhecera na sua juventude. Viu as vertentes imponentes do Tundavala,

onde o Mundo se abria para gerar o deserto do Namibe: a Tundavala eram as

coxas entreabertas da montanha que deixavam escorrer as areias do deserto,

inundando o horizonte até à África do Sul. Sentiu o perfume de eucalipto nas

montanhas do Lépi, recordou os campos de milho do Bié e do Huambo, as

bandeiras vermelhas das acácias no Chongorói, tudo indo dar, descendo,

aonde a terra morria e os escravos do passado perdiam para sempre o seu

destino. [...] Os olhos de Sem Medo desciam sensualmente pelas vertentes da

Huíla ou pelas doces vertentes do Huambo e deleitavam-se, espraiando-se no

mar, confundindo na espuma as silhuetas solitárias dos imbondeiros ou os

penteados arquitectónicos das mulheres do Planalto.

– Seria o paraíso – sussurrou. (M, p. 164, grifos nossos)

É neste paraíso que o corpo do herói (profundamente apegado a terra) há de

permanecer, quando sua vida finalmente esvair-se “para o solo do Mayombe, misturando-se

79

às folhas em decomposição” (M, p. 247). Morte misturada a farrapos brancos de flores de

mafumeira e às folhas verdes do Mayombe: imagem poética e inspiradora da relação entre o

homem angolano e a natureza, entre o guerrilheiro e a nação. 27

27

A mafumeira é uma espécie típica das florestas tropicais, conhecida também como sumaúma e algodoeira.

Além de ser um elemento sagrado na mitologia Maia, os indígenas da Amazônia a consideram a “mãe-das-

árvores”, a “árvore da vida” ou a “escada do céu”. Ao fazer uso da imagem dessa espécie vegetal para compor o

episódio final do seu romance, Pepetela novamente parece apontar para a roupagem mitológica que a floresta,

topos fundamental na constituição do enredo, assume ao longo da narrativa.

80

CAPÍTULO 3 – O TESTEMUNHO NAS SELVAS

3.1 Quando o Atlântico deságua no Amazonas

Há nas obras estudadas, sobretudo em A Selva, algumas passagens do texto narrativo

que poderiam operar como mote deste capítulo. Tomemos em particular um fragmento de

cada romance:

viu Benguela, o antigo armazém de escravos, o quintalão de engorda dos

negros, como bois, esperando o barco para a América. Lá se abria o caminho

da América, mas se fechava o caminho da vida para o homem negro. (M, p.

164)

Balbino ia contando os homens e dando explicações a Juca Tristão. Alberto

pensava, olhando de longe a cena, nos navios negreiros de outrora, ao

desembarcarem os escravos em plagas longínquas, quando a voz rude do

pastor lhe recordou que também ele fazia parte do rebanho. (AS, p. 69)

O primeiro fragmento é enunciado pelo narrador de Mayombe e situa-se no instante

em que Sem Medo se imagina combatendo em novas paisagens, localizadas em outra região,

para onde seria enviado, não fosse a morte na batalha do Pau Caído. No segundo fragmento, o

narrador versa sobre as sensações de Alberto ao chegar ao seringal Paraíso e observar o

desembarque do Justo Chermont. Em ambos os casos as personagens resgatam uma memória

histórica, marcada por um passado de violência e exploração, que norteou as relações entre

Portugal, Brasil e Angola: a memória dos navios negreiros e da escravidão28

.

Ao tomar como mote esse contexto histórico, o último capítulo da dissertação procura

pensar as relações históricas e sociais entre estes dois universos romanceados, que são a

Amazônia do ciclo da borracha – visto pela perspectiva de um narrador cujo olhar volta-se

para um português que, como já afirmamos, traz consigo muito ainda da visão eurocêntrica e

colonial – e a Angola das lutas contra o sistema colonial português. Se, diante de um discurso

que defende a pouca participação do negro na Amazônia, possa se cogitar limites para

análises comparatistas entre esses dois contextos narrativos, um olhar mais profundo coloca

em cena tais potencialidades. É o que revelam, por exemplo, as pesquisas realizadas por

Patrícia Sampaio.

28

Um passado ainda muito recente quando da escrita e publicação de A Selva e, de alguma forma, ainda muito

presente na vida dos angolanos quando da escrita de Mayombe, visto que o sistema colonial ainda regia o país.

Todavia, no caso de Alberto, diferente de outrora, quando o português exercia o papel de senhor, de colonizador,

o personagem é forçado a tomar consciência de que ele também faz parte deste navio: um navio no qual um

europeu, estudado e de tez branca, também se encontra no papel de subalterno e miserável, beirando a figura do

degredado, dos anos de colonização.

81

No livro O fim do silêncio: presença negra na Amazônia (2011) – organizado por

Sampaio –, a historiadora, ao contestar o discurso que defende a pouca participação do negro

na região, afirma:

em se tratando de Amazônia e, mais particularmente, do Amazonas, estamos

diante de um tema pouco frequentado pelos estudiosos. Um silêncio

persistente que insiste em apagar memórias, histórias e trajetórias de

populações muito diversificadas que fizeram desta região seu espaço de luta

e de sobrevivência. Esta é uma dívida de muitas gerações que ainda reclama

sua paga. (p. 8)

Num exercício de escovação da História a contrapelo (BENJAMIN, 1994), Sampaio, a

partir de dados levantados em arquivos, sustenta que desde meados do século XVIII, através

da mediação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a introdução de

negros no Grão-Pará tornou-se uma realidade importante para a sociedade e a economia da

província (2011, p. 17). Em 1794, por exemplo, era concedida, inclusive, isenção de impostos

aos que importassem escravos diretamente dos portos de Angola ao Pará. Esses, juntamente

com índios, eram inseridos em diferentes modulações do trabalho compulsório e constituíam

as bases da mão de obra disponível. De tal modo, conclui Sampaio:

os escravos do Grão-Pará, negros forros, mulatos fizeram valer sua presença

de maneira significativa a despeito de um número considerado insignificante

e também do fato de se encontrarem no último patamar da escala hierárquica

de uma sociedade excludente. Também eles ajudaram a demarcar as

fronteiras desse mundo colonial com suas experiências históricas. (2011, p.

42)

O que as constatações apontadas em O fim do silêncio implicam para o nosso estudo é,

sobretudo, o fato de sugerir motivações para a inclusão do negro em A Selva. Em seu

conjunto, o livro organizado por Sampaio aponta luzes que podem nos amparar quanto a uma

compreensão mais profunda da presença de matrizes étnicas no romance (como o negro e o

mulato) e, mais especificamente, nos seringais da borracha e nos interiores do estado, que

muitas vezes estiveram nas rotas de fugas de escravos. O europeu, Paul Marcoy, por exemplo,

no relato de sua viagem pelo rio Amazonas, realizada na primeira metade do século XIX,

além de registrar a presença do negro, também aponta o interior como rota de fuga:

depois de dez minutos dessa lúgubre viagem chegamos ao pé de uma

pequena elevação rodeada de água preta. Uma pequena cabana com seu

alpendre anexo e uma pequena horta coroavam o seu topo. Três desertores

brasileiros, refugiando-se nesse lugar, haviam construído o casebre e aqui

viviam em paz e segurança com suas mulheres pardas de narizes achatados.

[...] Sabendo dos remadores que eu ia para Ega, os nossos hospedeiros me

82

imploraram, na despedida, que não revelasse o seu paradeiro ao comandante

da cidade, e me presentearam com alguns abacaxis colhidos na sua horta.

(2006, p. 107)

As pesquisas desenvolvidas por Ygor Cavalcante (2011), em “Fugido, ainda que sem

motivo: escravidão, liberdade e fugas escravas no Amazonas Imperial (1850-1888)”, ratificam

o caso citado por Marcoy, na medida em que sustentam (com dados levantados em anúncios

de jornais e outros arquivos) que o vale amazônico serviu como rota de deslocamento para

negros, mulatos e índios, foragidos de trabalhos compulsórios.

Ainda no livro organizado por Patrícia Sampaio, há um capítulo intitulado “Gente sem

crônica definitiva: negros e mulatos n‟A Selva”, escrito em coautoria com Maria Aleixo. Aí,

as autoras, por intermédio da literatura, entendem o romance de Castro como mais uma

estratégia para romper o silêncio sobre a presença histórica do negro na região. Com tal

intuito, o texto pontua passagens da narrativa que identificam a presença de negros e mulatos

no seringal Paraíso e ao final esboça uma análise das ações do ex-escravo, Tiago. Aceitas

então as evidências da existência e participação do negro na região, e mais, reconhecendo

ambos os romances estudados como testemunhos das condições históricas, sociais e

econômicas a que eram submetidos grupos menos privilegiados numa dada conjuntura e

hierarquia social, busca-se analisar de quais representações de personagens étnicos é possível

falar, tanto em A Selva quanto em Mayombe29

.

Desde a epígrafe do seu romance, (como analisamos no capítulo 1) Castro já aponta

para as minorias, que estão representadas seja na personagem do judeu Elias Bensabat, nos

migrantes japoneses que chegam à Amazônia como parte de um projeto de desenvolvimento

da agricultura, ou ainda na força de trabalho do sertanejo, do mulato e do negro. Quando se

adentra a narrativa, as primeiras descrições dão conta de “homens de cor”, trata-se dos futuros

compartes de Alberto na terceira classe do Justo Chermont: “todos de cor, mulatos uns, mais

carregado o escuro nos outros, iam da juventude até os trinta e cinco anos, até os quarenta –

idade máxima concedida ao selecionador para o recrutamento, já que nos seringais não tinha

lugar para os fracos ou os inúteis” (AS, p. 35).

Em semântica similar, ao situar o embarque em Belém, o narrador novamente alcunha

os trabalhadores: “os olhos da malta negrusca, subitamente especada por ordem do condutor,

vasculharam o barco de lado a lado, varando-lhe os dois conveses” (AS, p. 37, grifos nossos).

O vocábulo “malta”, conforme consta no dicionário Houaiss, é o mesmo que “corja, súcia,

29

No caso de Ferreira de Castro, é importante destacar que o autor dá visibilidade estética ao negro num tempo

em que outros autores do período (que tomaram a Amazônia como temática) não concederam tal espaço.

83

bando de pessoas de má fama ou má índole” (2008, p. 482). Adjetivo revelador do

pensamento sobre os negros, igualmente é esta a ideia que perpassa a fala de Balbino, ao

discutir com Macedo sobre três homens arregimentados no nordeste e foragidos logo na

chegada a Belém: “– É tudo uma malandragem! Ah, bom tempo em que havia relho e tronco!

Então, esta canalha andava mesmo metida na ordem! Hoje não se prende ninguém por dívidas

e dizem que já não há escravos. E os outros? Os que perdem o que é seu?” (AS, p. 27). A fala

do capataz de Juca Tristão deixa à mostra o discurso retrógrado e racista que, passados mais

de quarenta anos da abolição da escravatura no Brasil (considerando o ano de publicação do

romance), ainda ronda o pensamento.

Entendendo-se que o tempo e o aspecto verbais são categorias semântico-discursivas,

que marcam efetivamente os enunciados, é possível notar alguns aspectos da fala de Balbino.

O enunciador, ao conjugar o verbo “dizer” na terceira pessoa do singular (“dizem que não há

mais escravos”) exclui-se do grupo que afirma não haver mais escravidão e levanta dúvidas

quanto à certeza da abolição, indicando a possibilidade de ser ainda uma prática recorrente no

norte. Já a pergunta lançada – “Os que perdem o que é seu?” – acentua o modo como o

homem é visto, ou seja, como um objeto. Logo, a personagem posiciona-se claramente

contrário à liberdade do negro, do homem, e vê no fim do sistema escravagista um mal à

economia regional e à própria sociedade.

A presença negra em A Selva não se restringe aos homens de cor arrebanhados por

Balbino para extrair o látex no Paraíso. No trecho do romance, por exemplo, em que se narra

a passagem do Justo Chermont pelas pequenas cidades nas brenhas da Amazônia, o narrador

revela que negros e mulatos estão não apenas dentro do navio, a caminho do seringal, mas

participam também do pequeno comércio que ganha vida a cada parada nos portos: “moleques

e adultos, negros, mulatos e caboclos, invadiram o navio, em ruidosa venda de frutos e de

cuias de vários tamanhos e feitios” (AS, p. 51).

Acerca das funções que os negros desempenhavam na região, Sampaio destaca que

nos centros urbanos um conjunto de atividades e especializações era exercido por: coletores,

vendedores, carpinteiros, ferreiros, cozinheiras, negros que soubessem coser, lavar, engomar,

cozinhar, entre outros. Nesse sentido, Ygor Cavalcante afirma que na segunda metade do

século XIX existia inclusive um comércio de trocas entre escravos, seringueiros, tapuios,

indígenas, desertores e entre outros moradores da floresta, que se desenvolvia por toda a

região amazônica (2011, p. 50).

Como parte de uma minoria, há também no romance a presença de mulheres negras e

mulatas. Estas, socialmente, não têm uma situação muito diferente da condição masculina,

84

como se pode notar no diálogo travado entre Alberto e Firmino: “- Então em Humaitá não há

mulheres?” – questiona Alberto. Ao que o cearense responde: “- Dizem que há uma preta e

uma mulata. As outras têm dono” (AS, p. 104). A afirmativa de Firmino situa bem o contexto

de exclusão e preconceito a que eram submetidas as mulheres de tez escura. Únicas solteiras

na cidade, no seringal a situação também não varia muito. Nhá Vitória, a negra sexagenária, é

uma das raras sem par, como novamente aponta Firmino em uma das festas na alpendrada de

Lourenço: “a negra, que está ao pé, é nhá Vitória, que lava a roupa de seu Juca, de seu

Guerreiro e de seu Binda e é mãe de Alexandrino” (AS, p. 118). As funções exercidas pela

personagem ratificam as atividades desempenhadas pelas negras: a lavagem de roupa e outros

serviços domésticos.

Dentre o rol de personagens negros de A Selva, há dois que nos oferecem elementos

para uma análise mais detida: é o caso de Filipe Pinheiro e Tiago. É durante a viagem que um

dos passageiros, observando o jeito “quieto e solitário” de Alberto, aproxima-se e em gesto de

amizade oferece-lhe um prato de feijoada. Mas, de forma ríspida, é afastado pelo português.

Este negro chama-se Filipe Pinheiro.

Era um preto. Vexado pela recusa e avareza de palavras e já arrependido da

sua fraternidade, morreu-lhe o sorriso que trazia nos lábios grossos, encolheu

levemente os ombros e voltou ao rancho de onde partira, justamente quando

uma pequena simpatia, acabada de nascer, se pôs a seguir-lhe os passos. (AS,

p. 45)

Como aponta o final do fragmento, ao longo da viagem, a resistência de Alberto em

aproximar-se daqueles que ele, a esta altura, considerava uns párias, será, senão vencida, ao

menos amenizada por esse sujeito, cujo narrador assim o descreve:

palrador e folgazão, amigo de ser útil, tinha quase sempre nos lábios um

sorriso de solicitude e uma maneira inofensiva. [...] e entretinha Alberto com

histórias de “curupiras” e de caçadas aventurosas.

– Uma vez no Acre, tava eu memo, cum rifle no ombro a fazê pontaria...

– Mas tu já estiveste no Acre? – interrompeu um dos parceiros.

– Intão, num tive? Inté me aconteceu... (AS, p. 53)

Filipe é a personagem que contem em si alguns dos estereótipos que caracterizam o

negro na literatura (BROOKSHAW, 1983). É o sujeito de lábios grossos, simpático, solícito,

falador, alegre e com um português que se distingue, conforme fica claro na oposição entre o

seu linguajar truncado e o português “perfeito” do parceiro – “Mas tu já estiveste no Acre?”.

É sobretudo este aspecto sociolinguístico que nos chamou atenção quando nos deparamos

com a personagem de Filipe Pinheiro.

85

Tânia Alkmim, ao estudar a representação linguística de negros e escravos no Brasil

do século XIX, afirma que se percebe de imediato um contraste entre a fala do branco e a do

negro e aponta que isto é um exemplo de marcas indicativas do caráter “desviante” da

variedade de português falado por negros. Embora seja fato que nem todas as personagens

negras do século XIX tenham sido representadas com fala incorreta ou distorcida, Alkmim

afirma que “muitos autores de teatro e de prosa de ficção procuraram construir seus

personagens negros e escravos com a ajuda de marcas linguísticas que assinalavam o caráter

„desviante‟ de suas falas em relação à fala de personagens brancos” (2008, p. 251-252).

Frantz Fanon, ao estudar as relações entre o negro e a linguagem, afirma que este será

tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar

a língua do colonizador (2008, p. 34). O autor traz alguns exemplos e argumentos que

apontam como nos países africanos de colonização francesa as línguas locais, como o crioulo,

são menosprezadas pela burguesia ou pela elite local. Por conta dessa atitude, o negro,

chegando à França, por exemplo, procurava reagir contra a “imagem do preto comedor-de-

RR” (p. 36), esforçando-se para ter uma pronúncia do francês padrão. É a este estereótipo, ou

seja, do comedor de RR, que também Filipe Pinheiro é associado, como o narrador enuncia:

“suprimia, como todos os seus conterrâneos, muitos RR, deixava em silêncio sílabas sem

conta, acentuava outras arbitrariamente” (AS, p. 53).

Compreendendo a língua como fenômeno social e que abrange critérios de

diferenciação entre os falantes, houve algumas tentativas, por parte dos negros, de se

expressar numa língua que ao menos se aproximasse da do colonizador. Fanon cita o petit-

nègre, “expressão utilizada para designar uma língua híbrida [...], mistura da língua francesa

com várias línguas africanas” (2008, p. 35). Já Russel Hamilton adaptou esta ideia, no caso de

países de colonização portuguesa, para variantes de crioulo faladas por africanos

semiassimilados, que vieram a ser conhecidas como “pequeno português” ou, de modo mais

pejorativo, “pretoguês”. Para este autor, ser capaz de falar a língua do branco no mesmo grau

de perfeição que o europeu, não somente queria dizer prestígio e aceitação em relação aos

membros da pequena minoria negra, era também uma causa de diminuição da distância em

relação ao grupo estrangeiro dominante. Além de que a aquisição da língua do branco era a

demonstração da capacidade intelectual do negro, que assim podia manejar os conceitos de

uma raça supostamente superior (apud RODRIGUES, 2009, p. 4).

No romance de Pepetela a linguagem é um tema mais avançado em relação A Selva,

posto que em Mayombe o debate ocorre mais em nível político e ideológico do que linguístico

e normativo, como expressa Mundo Novo, em diálogo com Sem Medo: “– Temos de

86

conversar, camarada Comandante. [...] Acho que o que nos separa é a linguagem. Não temos a

mesma linguagem” (M, p. 211). Ou ainda, o discurso narrativo de Muatiânvua, o

destribalizado contestador do tribalismo: “qual a minha língua, eu, que não dizia uma frase

sem empregar línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles

ser compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa?” (M, p.

123). De tal modo, à exceção de um léxico que inclui expressões dos falares angolanos ou de

um discurso mais cheio de conceitos políticos (como revelam as falas de Sem Medo),

Mayombe não traz nenhuma personagem cuja fala seja distinguida fonética ou

gramaticalmente. Mesmo se tomarmos como exemplo a personagem de Lutamos, que é

caçador e pouco afeito aos estudos, ainda assim veremos que este se expressa num português

padrão.

Em todo o romance de Castro, Filipe terá outras duas oportunidades de se pronunciar.

Ambas em diálogo com Alberto. Vejamos os fragmentos:

– Vancê vai a terra; im Manaus?

– Não sei ainda. Provavelmente vou. Por quê?

– É qui que queria i cum vancê. Na terra qui a gente num conhece, quanto

mais homi fô, mio.

– Está bem. Iremos juntos. (AS, p. 54)

E adiante, quando Alberto retorna da cidade:

– Intão? Qui tal é a cidade?

– É bonita.

– E a respeito de muieres?

– Também as há por lá bem boas. (AS, p. 61)

Ao caracterizar a variedade linguística falada por negros e escravos, Alkmim indica as

seguintes diferenças presentes na fala das personagens por ela estudadas: apócope, queda do

“r” e do “l” final, iotização, fechamento do timbre da vogal em sílabas pretônicas, átonas

finais e em monossílabos, entre outros. Observando a fala de Filipe a partir desses fatores

apontados, podem-se citar a presença de quase todos, como: queda do r final (fazê); iotização

(muieres, mio); alçamento vocálico (intão, qui, cum); aférese (tive); e nasalação (im, inté,

vancê) 30

. Deste modo, o conjunto de marcas linguísticas que caracteriza a fala da personagem

criada por Castro é fator que não apenas contribui como também determina a diferenciação

entre Filipe e os outros.

30

Iotização: é a “mudança de uma vogal ou consoante para a vogal anterior alta / i / ou para a semivogal

correspondente” (CÂMARA JR., 1979, p. 149). Aférese: é o nome que caracteriza o fenômeno de supressão de

um fonema (ou uma sílaba) do início de um vocábulo (BOTELHO; LEITE, 2011).

87

Muito embora, em estudos ampliados, Tânia Alkmim sugira que na verdade a

oposição de fala não seja somente em nível “racial” (como português de preto e português de

branco), mas, sobretudo que “o quadro sociolinguístico do Brasil do século XIX se

organizaria em torno da oposição „português de letrados‟ e „português de não letrados‟”

(2008, p. 260), o que se observa em A Selva é outra ocorrência. Há uma oposição entre o

português de branco (representado em Alberto) e do português de preto (representado em

Filipe Pinheiro). Mas há também outra situação, a diferenciação entre a fala de Filipe e a de

seus iguais. Isso se torna evidente no trecho que reproduzimos anteriormente, no qual um dos

parceiros intervém no diálogo, e também quando se comparam as falas de Filipe, Tiago e

Firmino – sertanejo, seringueiro, analfabeto, nordestino e mulato, mas de fala não

estereotipada e não caricaturada. Visto por esta perspectiva, o modo de se expressar de Filipe

expõe duas possibilidades de leitura: a primeira, de um negro que não se reconhece na língua

portuguesa; a segunda, de um negro que, ao seu modo, e talvez tendo contato com variantes

africanas, utiliza-se de uma sintaxe e fonética da língua do colonizador, para fazer-se

comunicar.

Alkmim, em seu texto, levanta ainda uma hipótese: e se os autores “inventaram” uma

língua para negros e escravos? Se tomarmos como fato esta hipótese, a fala de Filipe

novamente apontaria para duas questões: 1) seria um registro, uma transcrição fonética de um

tipo sociolinguístico de fato presente no Brasil, e isso ratificaria a ideia propagada “de que

negros e escravos brasileiros se expressam em uma variedade de português cheia de erros e

imprecisões” (2008, p. 255); ou, 2) poderia ser apenas uma criação literária, que se justificaria

por explicar ou representar as diferenças menos linguísticas do que sociais entre o negro e as

demais classes.

Ambas as ideias convêm para explicar a distinção linguística entre os próprios homens

arregimentados no Nordeste, que embora sejam tratados como um rebanho, como um corpo

único, as diferenças saltam no nível da linguagem. Além disso, a fala de outro negro do

romance, Tiago, não revela os desvios fonéticos e gramaticais da de Filipe Pinheiro. Ao

contrário do caso de Filipe, o discurso dessa personagem, especificamente na cena final do

romance, é caracterizado por um português padrão. E aqui chegamos à segunda personagem

que queremos analisar mais detidamente.

Ex-escravo maranhense, Tiago “conhecera os dias de trabalho sem fim, o chicote do

feitor, o tronco, o corpo a escorrer sangue. Depois, já com a carta de alforria, viera para ali”

(AS, p. 149-150). Chegou ao seringal ainda jovem e conseguiu até vender borracha, mas

nunca obteve saldo. “A cachaça levava-lhe grande parte do tino e a sua ingenuidade de

88

escravo redimido levava-lhe o resto. Nunca mais saíra dali. Quando Juca Tristão comprou o

seringal já ele havia se tornado um farrapo inútil e risível” (p. 149-150).

Nomeado pelo narrador como Mefistófeles de Ébano (AS, p. 182), enquanto Filipe

representa o estereótipo do negro leal e cordial, Tiago aproxima-se do estereótipo do negro

demônio e desprezível. Conforme David Brookshaw (1983, p. 32), “o escravo demônio era o

quilombola, ou fugitivo, que deu as costas ao senhor branco, confirmando, assim, sua

selvageria”. Aliás, Castro representa a dupla imagem do negro que persistiu durante longo

período da literatura, na qual este era retratado ou como escravo humilde e resignado (a

exemplo de Filipe Pinheiro) ou como escravo imoral, demônio, de uma fealdade indescritível

(a exemplo de Tiago): “tinha um sorriso alvar sobre a negridão da boca sem dentes e os seus

olhos muito brancos, todas as linhas do seu rosto, dir-se-ia pintados em pano que vestisse um

fantoche de palha” (AS, p. 150).31

Na maior parte do romance, o “Estica”, como também é conhecido por causa de sua

perna coxa, representa uma figura dúplice. Na relação estabelecida com Juca Tristão, é o

“serviçal” fiel, usado como títere nas brincadeiras de tiro ao alvo, realizadas pelo dono do

Paraíso. Ao longo da narrativa, Tiago alimenta um profundo envolvimento emocional por

Juca. Por ocasião de uma viagem do seringalista a Belém, por exemplo, ele se coloca como

um vulto fantasmal na despedida, chorando em humilde silêncio: “as lágrimas corriam, em

fio, sobre o rosto envelhecido do grande fantoche negro” (AS, p. 160). Tiago tem tamanha

admiração pelo proprietário, que é capaz de se mostrar indiferente à morte de um seringueiro

(ocorrida momentos antes da partida), mas ao mesmo tempo é capaz de expressar larga

servidão e afeição ao amo, além de ceder a quase todos os seus desejos.

Deste modo, à parte sua afetividade pelo seringalista, na relação com os demais Tiago

representa o bruxo, cachaceiro e agressivo, pouco amistoso:

a sua perna coxa [...] parecia-lhe desgraça demasiado grande para que os

outros ainda se rissem dela. Muitos seringueiros exibiam cicatrizes de golpes

de terçado que ele lhes dera, em arremetida desafrontadora. Se estavam

longe, a sua boca de sapo, já desdentada e mascando constantemente fibras

de tabaco, lançava, com a saliva negra, todas as obscenidades conhecidas.

[...] Só o álcool acendia ainda a sua vida sugada por todas as vicissitudes,

aquele corpo alto, escanzelado e capenga de duende negro. (AS, p. 149)

Conquanto o fantoche de Juca tenha problemas em relacionar-se com outros grupos

étnicos do romance, Ygor Cavalcante defende que as relações multiétnicas nem sempre foram

31

Conforme Domício Proença Filho, “a prevalência da visão estereotipada permanece dominante na literatura

brasileira contemporânea, pelo menos até os anos de 1960, quando começam a surgir, paralelamente, textos

compromissados com a real dimensão da etnia” (2004, p. 166).

89

pautadas pelo conflito. Pelo contrário, muitas vezes as relações sociais estabelecidas pelos

escravos na Amazônia aproximavam sujeitos com realidades étnicas bastante diferentes

(2011, p. 53). Mas, com poucas exceções (como o companheirismo entre Firmino e Alberto),

este não parece ser o caso do romance quando pensado por esta perspectiva.

Ainda como parte da representação grotesca a que é vinculada a personagem de Tiago,

chama atenção a sua morada, que contribui para reforçar a imagem do negro demônio:

vivia isolado numa velha barraca, onde entrava a chuva, o Sol e vento. E se

por processos que só ele sabia, obtinha mais cachaça além da ração

estabelecida, embriagava-se e passava a noite em interminável gritaria. [...].

A selva acolhia com espanto aquela voz e ia repercutindo de desvão a

desvão, estarrecendo a noite. Ninguém podia dormir, pois quando se julgava,

por súbito silêncio, que o ébrio entrara enfim no sono, os gritos voltavam de

novo e cada vez mais intempestivamente. Nessas horas negras de tumulto,

nem as próprias onças se aproximavam, por mais porcos que houvesse na

pocilga. (AS, p. 149)

Isolado tal qual um bruxo na floresta, Tiago encontra-se entre um estágio humano e

animal. Por vezes assume um aspecto zoomórfico (boca de sapo, negra e sem dentes, olhos

esbranquiçados, pele engelhada, corpo escanzelado de duende), por outras alude à imagem do

velho bruxo da África, feiticeiro, conforme é descrito nas ocasiões em que se recolhia na sua

barraca e entoava melodias: “eram sempre canções lentas, arrastadas, fatalistas, que enchiam a

noite de melancolia, fazendo esquecer a voz pastosa do bêbado. Canções de escravos, mais

toada do que palavras, por ele aprendidas na infância e trazidas para o Brasil no ventre dos

negreiros” (AS, p. 149-150).

Ao longo do romance a personagem atua como um indício do clima de violência que

reina no Paraíso e que culmina no desfecho do romance. Assim, não obstante a descrição

física, o papel da personagem no romance pauta-se por uma ética que aviva a memória

histórica da escravidão e exibe a proximidade entre o sistema de aviamento e os hábitos de

punição aplicados no seringal com os hábitos da sociedade patriarcal escravista. É justamente

por reviver uma experiência traumática, ao presenciar os castigos impostos ao Firmino e seu

grupo, que Tiago se encoraja a ter atitude de justiceiro na terra onde não havia justiça.

Tomado por recordações do horror, põe fim aos mandos de seu senhor e às ameaças de

perenizar a violência:

surgiu, pernejando lentamente, o negro Tiago. Após o alarme, ninguém mais

o vira, ninguém mais pensara nele. O clarão agonizante, iluminando-lhe de

lado o rosto seco e anguloso, tornava-o mais mefistofélico, velho feiticeiro

que se animara, caminhando desengonçadamente, amparado pelo seu

bordão. [...]

90

Dona Yáyá ia justamente retirar-se quando ele chegou ao grupo [...] e disse,

voltado para o guarda-livro:

– Branco: me mande para a cadeia de Humaitá. Fui eu que deitei fogo ao

barracão e fechei as portas para seu Juca não sair... (AS, p. 217)

Tiago age movido, não pela banalidade da violência (característica com a qual, por

muito tempo, tentou-se caracterizar o negro), mas na tentativa de livrar-se de um mal, um

trauma ainda muito presente em sua memória. Neste ponto a personagem aproxima-se ainda

mais da imagem do velho feiticeiro. De acordo com Jean-Michel Sallmann (2002, p. 22), o

bruxo é um indivíduo capaz de modificar o destino de um outro indivíduo por meio de

procedimentos rituais ou simbólicos (sors em latim significa „sorte‟ ou „destino‟, sorcier é a

palavra francesa para bruxo). Ao fechar as portas do barracão, deixando o patrão preso ao

fogo, a personagem de Castro cumpre duplamente o seu papel: de Mefisto, entregando a alma

de Juca ao fogo (como representação do inferno); e de bruxo, mudando o destino da

personagem. Todavia, como feiticeiro, Tiago não sofre a ação geralmente aplicada aos

praticantes da bruxaria: a morte na fogueira. Pelo contrário, é ele quem materializa a justiça,

apenas imaginada por Alberto, o estudante de direito32.

E é então pela boca de Tiago que vem à tona o discurso contra toda forma de

escravidão, não apenas do negro, como também do sertanejo, do caboclo, do mulato:

– Eu também gostava muito do patrão. Ele me podia até matar que eu não

fugia. Era mesmo amigo dele. Mas seu Juca se desviou... Estava a escravizar

os seringueiros. Tronco e peixe-boi no lombo, só nas senzalas. E já não há

escravatura...

Deteve-se. Os seus olhos erguiam-se, procuravam os de Guerreiro,

adquiriam vida e choravam agora.

– Eu é que sei o que é ser escravo! Ainda tenho aqui nas costas, o sinal do

chicote do feitor, lá no Maranhão. Branco não sabe o que é liberdade como

negro velho. Eu é que sei! (AS, p. 218, grifos nossos)

Quando comete o assassinato, Tiago, quase que de modo paradoxal, é tomado por uma

consciência humanitária, não observada durante o romance. O homem-espantalho, num raro

momento em que se encontra sóbrio, resolve incendiar o barracão, mas antes, avisa a todos

sobre o incêndio – a exceção do mandante e do executor dos açoites (Juca, que morre, e

Alexandrino, que consegue se salvar). Embora se utilize de um ato de violência para praticar a

32

Ao dar ao negro o papel de assassino de seu patrão, Ferreira de Castro parece afinar-se com uma realidade

histórica. Ygor Cavalcante recorta de um jornal um caso semelhante ao de Tiago: “em julho de 1872 foi preso o

escravo André, „natural do Maranhão, com vinte anos de idade, solteiro e morador de Serpa‟, por „haver

barbaramente assassinado com um tiro de espingarda ao seu próprio senhor Joaquim Pedro Ferreira‟, na noite de

13 de maio do mesmo ano. [...]. André tentou justificar o assassinato devido às más condições em que estava.

Segundo ele, seu senhor o „alimentava e vestia mal e o castigava com pancadas‟. Ainda vivia „diariamente

importunado por seu senhor‟ e, algumas vezes, era castigado com pau” (2011, p. 55).

91

justiça, ao final a personagem transforma-se (ou é transformado) em humano, pelo gesto

justiceiro e libertário, e demonstra-se cheio de emoções diante da morte e da dor. Aí, fica

claro que este se afasta da figura de Mefisto – o demônio que na tradição literária se utiliza da

razão para ganhar almas ao inferno –, pois a atitude de Tiago é acima de tudo movida pelas

emoções causadas pela cena de açoite dos seringueiros aliada às lembranças de horror e ao

medo de retorno a um sistema de barbárie.

Ao dar a um negro a possibilidade de argumentar, no final do romance, Castro, de

certo modo, foge ao maniqueísmo bem versus mal, porque um negro, visto historicamente

como bárbaro e selvagem, toma a iniciativa de evitar que um passado recente de escravidão

avultasse no espaço onde havia se refugiado. Especialmente quando se leva em consideração

que o romance, tendo sido publicado em 1930 no Brasil, situa-se num tempo-espaço em que o

discurso literário era ainda marcado mais por um falar sobre o negro do que por um falar do

negro (PROENÇA, 2004).

No caso do romance de Pepetela, a tez negra não é algo notado e sentido entre os

guerrilheiros como aspecto causador das diferenças. Se no romance colonial, conforme a

professora Laura Padilha, o negro era percebido e narrado como um outro, sem lugar de

qualquer espécie, aparecendo, no plano comparativo e imagístico, como um dos muitos

animais africanos (2002, p. 99) – argumento ratificado por Francisco Noa, ao afirmar que

sobretudo no romance da fase exótica e doutrinária, o negro aparece ora como ser

zoomorfizado, ou, através de imagens que o tipificam como: bestializado, inferiorizado,

indolente, debochado, negro-papão, ou ainda, do preto irredutível à moral e à religião (2002)

–, Pepetela constrói outra semântica. À gente de tez escura, o autor confere o protagonismo da

ação de por fim ao colonialismo. Do ponto de vista interno, do autóctone, a problemática

ampara-se menos na discussão sobre a cor da pele do que nas diferentes culturas que

compõem o território angolano.

3.2 Tribos, a tribo: um arco íris em peles e culturas

Mayombe é, portanto, uma narrativa presumivelmente de negros. A exceção, ou o

meio-termo (para usar uma expressão do romance), constitui-se dos demais grupos. De modo

que a cor é mencionada apenas em dois contextos: quando se refere ao branco (representado

pelos portugueses) ou quando se refere ao mestiço, representado em Leli – a mulata, filha de

pai comerciante, que deseja vê-la casada com um branco, para adiantar a “raça” – e em

Teoria. É, aliás, com a problemática deste, que já nas primeiras páginas do romance o leitor se

depara. Teoria, o professor mulato, é tomado por insegurança diante de um grupo de negros. E

92

mesmo com o joelho machucado e sem ter obrigação de executar algumas funções e tarefas na

guerrilha, propõe-se a todo custo a colaborar, como tentativa de provar-se leal e igual aos

demais: “criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem de negro.

Homem, queria ser negro, para que os negros não me odiassem” (M, p. 16). Todavia, sua cor é

algo não perceptível, isto é, não causa interesse aos olhos dos guerrilheiros, como o narrador

descreve: “Teoria era mestiço e hoje já ninguém parecia reparar nisso. [...] o Comissário não

se apercebia, [...] e o Chefe de Operações se não interessava” (p. 15). Sem Medo completa:

“hoje tu não tens cor” (p. 43).

Pelo contexto inicial da narrativa, já se nota que a história se coloca para além da

dicotomia negro versus branco. Quando assume a narração, Chefe de Operações explana

sinteticamente o quadro geral das questões étnicas presentes no romance: “os brancos durante

séculos massacraram-nos, porque não massacrá-los? [...] Aprendi sobretudo que o que

fizemos em 61, cortando cabeças de brancos, mestiços, assimilados e umbundos, era talvez

justo nesse momento. Mas hoje não pode servir de orgulho para ninguém (M, p. 214). É,

então, nesse contexto que se situa a temática do negro: o do encontro entre as diferentes

etnias. Todavia, diante de um quadro multiétnico, como articular literariamente um projeto de

nação que pudesse dar espaço a todas as peles e culturas?

Para a professora Inocência Mata, ao instaurar a visão plural da realidade angolana,

“Pepetela opta por representar a diversidade, celebrando as várias „raças‟ do homem para

reescrever a visão euforicamente uniformizante da História dos sujeitos africanos” (2006, p.

46). Esse é, aliás, o argumento central do ensaio Na casa de meu pai: a África na filosofia da

cultura (1997), de Antony Kwame Appiah. O filósofo, nascido na Inglaterra e criado em

Gana, defende contextos afros, de múltiplas tonalidades culturais, rejeitando o pensamento

pan-africanista e europeu que tentou minimizar as diferenças existentes na diversidade

continental. É também nessa perspectiva, ou seja, romper com a visão de que os povos da

África devem ser pensados como um único povo e concebidos como unidade política natural,

que Sem Medo argumenta: “os meus guerrilheiros são [...] um conjunto de seres diferentes,

individuais, cada um com as suas razões subjectivas de lutar” (M, p. 232).

Assim, Pepetela, ao escrever na contramão do pan-africanismo, dialoga com uma

dupla possibilidade: a de coletividade (representada nos que se reúnem para pôr fim ao

colonialismo e construir a nação), mas também a ideia de subjetividade (representada pelas

motivações pessoais de cada guerrilheiro e de cada tribo). Rita Chaves, ao discorrer sobre o

contexto da diversidade, fio condutor do romance, assevera que “o direito à voz, incompatível

com a norma colonialista, torna-se uma busca e, pela palavra, ganha corpo a explicitação [...]

93

das diferenças” (2009, p. 132). Tais subjetividades, contudo, vistas pela perspectiva de um

projeto de nação, serão motivo de embates, pois a convivência multiétnica, ao longo do

romance (e também da própria história angolana), se pauta por muitos conflitos. De forma que

a língua, a economia, o sistema político, a cor, a cultura tornam-se todos espaços de lutas.

Podemos falar, então, em alguns contrastes decorrentes do debate étnico e ideológico

em Mayombe. Do ponto de vista político-administrativo, as relações internas do MPLA são

permeadas por disputas de cargos. No âmbito histórico, de fato as discrepâncias foram

responsáveis por grandes cisões no movimento. Segundo Paulo Visentini, essas diferenças

levaram a uma série de rupturas e divisões entre as principais lideranças, que por vezes

acabaram por enfraquecê-lo e por destruir a credibilidade no cenário internacional (2012, p.

52). No romance, as desavenças entre o grupo de líderes que compõem a Base engendram

esse cenário:

– [...]. O Das Operações vai sempre pelo teu lado. [...]

– Sim, reparei. Por que ele faz isso?

[...]

– [...] Ou porque sou o Comandante e deve apoiar-se para estar bem comigo

e poder subir... ou porque tu és o Comissário, cargo logo a seguir ao dele, e

deve estar contra ti, destruir-te, mostrar os teus erros, para apanhar teu lugar.

(M, p. 19)

Os momentos de tensão entre o Chefe de Operações, o Comandante e o Comissário

Político não são raros, embora os dois últimos conservem uma relação de companheirismo.

Enquanto Sem Medo demonstra ter uma formação política, ideológica e psicológica segura, e

em alguns aspectos até intransigente, João apresenta-se inseguro e em fase de metamorfose.

São as suas dúvidas, falhas e experiências que o colocarão diante de aprendizagens e o

formarão, firmando-o, ao final da narrativa, como o principal líder do grupo guerrilheiro.

As desarmonias entre as lideranças se manifestam em discussões acerca de temas de

pouca relevância e até quanto à forma de aplicação da lei. Assim, quando do julgamento de

Ingratidão do Tuga, um amplo debate é realizado. Enquanto o Comissário defende uma

aplicação rígida da lei da disciplina, que prevê fuzilamento para o crime de roubo, Chefe de

Operações apresenta um discurso que contextualiza a relação de pouco ou nenhum apoio do

povo em relação aos guerrilheiros, e defende uma pena mais amena para o companheiro. Sem

Medo, por sua vez, avalia o afrouxamento da aplicação da lei em relação a outros crimes

cometidos no MPLA e acredita na possibilidade de uma pena mais relativizada.

Ainda nesse contexto, um problema mais grave permeará as relações entre a Base e

Dolisie: a administração e conduta de André, responsável pelos recursos financeiros do

94

movimento. Descrito como o sujeito que está “sempre de acordo com o interlocutor” (M, p.

89), André é acusado de cometer má aplicação de recursos, desvios de verbas, e até problemas

éticos e morais. As suas atitudes acarretam vários entraves ao avanço da luta e da ação de

guerrilha, pois as consequências de suas ações afetam sobremaneira os guerrilheiros, que

passam fome na floresta e por conta da má alimentação sofrem com diarreias e com o

acirramento de conflitos internos.

Afastando-se do olhar maniqueísta e da divisão bem versus mal, Pepetela, ao incluir

na história as práticas ilegais e corruptas de guerrilheiros, constrói “um ponto de vista

narrativo [...] com base num processo de relativização que não poupa os chamados „bons

sentimentos‟ e trabalha o conflito como um elemento positivo, mesmo na condução de um

projeto coletivo” (CHAVES, 2009, p. 126). Perspectiva que oportuniza a André tomar a voz,

deixando margem para o leitor perceber na história o golpe da História.

As atuações dessa personagem, especificamente as de prezar mais por sua

individualidade e por seus desejos pessoais, são parte de um debate mais amplo, que diz

respeito à ideologia marxista-leninista, que inspirou grande parte dos movimentos pró-

independência no continente africano. Este debate aparece no romance sob a forma de

dicotomias, como o individual e o coletivo, o sujeito e a comunidade, o intelectual, o

proletário e o camponês. Mundo Novo é a personagem que mais argumenta a respeito dessa

questão. Sua defesa fundamental é a de que “o homem como indivíduo não é nada, só as

massas constroem a História” (M, p. 79). Ou ainda, de que “a Revolução é feita pelas massas

populares, única entidade com capacidade para dirigir, não por indivíduos” (p. 103).

Na perspectiva de Mundo Novo, o MPLA poderia ser dividido entre os

desinteressados, como operários e camponeses, que estão sempre em busca do bem comum; e

a burguesia, que estaria representada nos intelectuais. A personagem vê em Sem Medo o

estereótipo de um intelectual e de um autoritário, que aderiu à guerrilha mais por razões

subjetivas do que comunitárias. Sobre essas diferenças, também Milagre e Chefe de

Operações tecem argumentos de que o Comandante não poderia compreender a guerra e o

povo como eles, porque sua vivência é teórica e não histórica: “o mal é ser um intelectual [...]:

nunca poderá compreender o povo. Os seus filhos ou irmãos não morreram na guerra. Não,

ele não pode compreender” (M, p. 215). Nota-se assim que um discurso dialético, de

afirmação, contradição e até de negação, vai ganhando espaço no enredo, e nem mesmo o

herói está livre de críticas e julgamentos.

Mas, se o projeto nacionalista idealizado pelo MPLA se estruturaria numa perspectiva

socialista e popular, todas as questões apresentadas até aqui convergem para o (e do) contexto

95

étnico-cultural, que é central no romance. Nesse aspecto, o debate gira em torno do

tribalismo, que se manifesta seja pelo embate tribal versus destribalizado, seja por disputas

intertribais, como entre kikongos e kimbundos. Para grande parte das personagens, os

problemas e conflitos que ocorrem na narrativa podem ser explicados pelas práticas tribais.

Sem Medo, André e Milagre são alguns, dentre os guerrilheiros, que mais sustentam esta

realidade. Milagre, quando toma a voz narrativa, defende que alguns estejam mais preparados

do que outros para governar e comandar. Seus critérios de escolhas para decidir os mais e os

menos preparados assentam-se na vivência e na tribo de origem.

O tribalismo, como fundamento de organização e de laços internos, sugere uma

relação com uma das formas de racismo, de que Appiah trata em seu livro e a denomina

“racismo interno”. Segundo a definição do autor, o racista intrínseco “sustenta que o simples

fato de ser de uma mesma raça é razão suficiente para preferir uma pessoa a outra” (1997, p.

35). Por essa lógica, nenhuma prova de que um sujeito de outro grupo seja capaz de

realizações morais, intelectuais ou culturais iguais às de sua etnia, possibilitam o apagamento

das diferenças ou um tratamento igual entre grupos. Seguindo o conceito de Appiah, podemos

encarar as relações interétnicas do romance de Pepetela como uma forma de racismo étnico

intrínseco.

As divisões étnicas de fato balizaram os grupos políticos de Angola: o MPLA teve a

sua base de apoio nos negros assimilados, mestiços, brancos e na população originária do

grupo étnico Kimbundo; já a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) teve apoio de

elementos majoritariamente Bakongo; e a União Nacional para a Independência Total de

Angola (UNITA), dos Lunda-Chokwe e dos Ovimbundu (VISENTINI, 2012). Mas se a

bandeira tribal era defendida por alguns partidos, o MPLA posicionava-se contra a

supervalorização das diferenças, e mais ainda, contra o uso dessas como fundamento político

e partidário. No romance, Muatiânvua, como personagem de uma narrativa que se entrelaça a

um discurso dialético, é um dos que encaram o fundamentalismo tribal como um retrocesso e

falta de perspectiva em relação à realidade do país, e descreve a questão de forma holística:

onde eu nasci, havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e

miseráveis da Companhia. Onde eu cresci, no Bairro Benfica, em Benguela,

havia homens de todas as línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O

primeiro bando a que pertenci tinha mesmo meninos brancos, e tinha miúdos

nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote, kuanhama. As mulheres

que amei eram de todas as tribos. Todas eram belas e sabiam fazer amor,

melhor umas que outras, é certo. Qual a diferença entre a mulher que

esconde a face com um véu ou a que a deforma com escarificações. Querem

hoje que eu seja tribalista! De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu

96

sou de todas as tribos, não só de Angola, como de África? Não falo eu o

swahili, não aprendi eu o hauss com um nigeriano? [...] Eu sou o que é posto

de lado, porque não seguiu o sangue da mãe kimbundo ou o sangue do pai

umbundo. Eu, Muatiânvia, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no

meio dos caminhos do Mundo, eu ladrão, marinheiro, contrabandista,

guerrilheiro, sempre à margem de tudo, eu não preciso de me apoiar numa

tribo para sentir minha força. (M, p. 132-134)

No entanto, o discurso que tentava equilibrar a não exacerbação das diferenças e ao

mesmo tempo pregava a convivência harmônica com a diversidade, uma hora pendeu para um

dos lados e gerou problemas. Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, chegou a

sugerir a criação de uma nova língua, feita do amálgama dos dialetos angolanos, que

substituiria a língua portuguesa. Tal proposta gerou muitas críticas, pois desaguava no

apagamento da diversidade e aproximava-se da mirada pan-africanista. Além disso, já se

havia reconhecido o fracasso do Esperanto, para o caso da Europa, Afrihili no Gana e já se

faziam ouvir vozes no sentido de que as línguas africanas (nacionais) angolanas seriam o lado

mais visível e inequívoco de suas identidades culturais (KANJONGO, 2009).

Outro problema também decorrente de disputas tribais no romance, é que, diante das

maiorias étnicas, outro grupo é formado: o das minorias. Ser minoria dentro de um grupo que

já é constituído por sujeitos tidos como menos privilegiados numa dada hierarquia social, é

uma forma das mais agudas de sentir as diferenças. Ekuikui (umbundo) e Lutamos (cabinda),

únicos guerrilheiros dessas tribos, representam muito bem esse grupo. Lutamos é ainda mais

afetado, pois vem de uma região que já não é vista com bons olhos – o enclave de Cabinda,

geográfica e politicamente apartado das outras regiões do país, e que ao longo da história

encabeçou movimentos separatistas. Quando toma a voz narrativa, é, portanto, para essas

minorias locais, dentro das minorias globais, que seu discurso se volta:

amanhã, no ataque, quantos naturais de Cabinda haverá? Um, eu mesmo.

Um, no meio de cinquenta. Como convencer os guerrilheiros de outras

regiões de que o meu povo não é feito só de traidores? Como convencer que

eu próprio não sou traidor? As palavras a meia voz, as conversas

interrompidas quando apareço, tudo isso mostra que desconfiam de mim. (M,

p. 239)

Por conta dos diferentes conflitos, o romance transforma a guerra mais num discurso

ideológico e numa resolução de problemas internos do que numa prática bélica. Assim,

embora a epígrafe aponte para os que derrotaram os portugueses, o enredo pauta-se por

debates que envolvem o tenso fio formador da nação e do próprio MPLA. Até mesmo aqueles

que são considerados os inimigos, os portugueses, quase não aparecem (como se agora se

invertesse o papel concedido ao negro no romance colonialista). Sem Medo, que acredita na

97

luta armada como caminho para exterminar a prática colonialista, se ressente da ausência de

combates e mais de uma vez expressa sua insatisfação: “eu gosto de fazer a guerra e aqui não

há guerra” (M, p. 163); ou ainda: “estou farto de estar aqui. Só há problemas de dinheiro ou de

indisciplina. A guerra está longe do pensamento de todos” (p. 193).

Não obstante, ainda que não apareça com tanta frequência nos discursos, é sobretudo o

elemento externo, que tem a potencialidade de criar uma “solidariedade coletiva” (M, p. 223).

Aliás, se olharmos com atenção a História de Angola, observaremos que os limites tribais,

embora tenham a ver com questões nativas, em nível global estão muito vinculados aos

condicionamentos históricos internacionais, nomeadamente o colonialismo e os ideais de raça

disseminados no Ocidente. Minar as relações étnicas, reforçando as diferenças e criando a

ideia de castas, foi uma estratégia portuguesa, especialmente do início do século XX, que se

entranhou no processo de constituição da nação angolana (VISENTINE, 2012).

Ainda assim, um dos únicos fatores que torna possível vencer as cisões entre as

diversas tribos e as divergências políticas e culturais existentes no conjunto que compõe o

exército angolano é a figura do colonizador. Como assevera Jean-Paul Sartre, no prefácio ao

livro de Albert Memmi: “é o colonialismo que cria o patriotismo dos colonizados” (2007, p.

31). É, pois, diante da necessidade de vencer um dos entraves mais antigos que as diferenças

individuais esfacelam-se e o conjunto da diversidade torna-se uma força atuante:

– [...] viste como todos se ofereceram? Esqueceram as tribos respectivas,

esqueceram o incómodo e o perigo da acção, todos foram voluntários [...]. É

por isso que faço confiança nos angolanos. São uns confusionistas, mas

todos esquecem as makas e os rancores para salvar um companheiro em

perigo. (M, p. 207-208)

É esta ideia de união, de uma unidade que respeite as diferenças sem minar a

coletividade, que se destaca no final do romance, quando Chefe de Operações toma

consciência da entrega de Lutamos e de Sem Medo: “– Lutamos, que era cabinda, morreu

para salvar um kimbundo. Sem Medo, que era kikongo, morreu para salvar kimbundo. É uma

grande lição para nós, camaradas” (M, p. 249).

O mote étnico/tribal também está presente em A Selva. Mas aqui, o autóctone

aproxima-se mais da imagem do negro da narrativa colonial do que do papel que

desempenham as etnias africanas na obra de Pepetela. Os índios, designados como “bichos”,

“gente ruim”, não têm voz e suas histórias são narradas principalmente pela fala de Firmino. É

como companheiro de Alberto que ele conta os episódios envolvendo a tribo dos parintintins.

O português, enquanto aprende os procedimentos do sistema de extração do látex, também

98

recebe instruções sobre como se prevenir dos perigos que rondam o ambiente do seringal, e

entre todos, o índio é dos mais ameaçadores: “– São mansos? – Mansos? Ui, minha gente! A

estrada que você vai cortar era do Feliciano. O mês passado os índios vieram ao centro e

levaram a cabeça dele” (AS, p. 78).

Firmino não se contenta em dar informações gerais sobre a etnia, conduz os relatos de

forma a fazer com que seu companheiro entenda as minúcias da condição ameaçadora em que

se encontram: “há uns dias foi um estrago em Popunhas. Os parintintins chegaram e, como

não tinha cabeça para cortar, foram à roça e quebraram tudo” (AS, p. 78). E logo adverte:

“você precisa também dum rifle, seu Alberto, para quando andar sozinho. Um homem não

pode andar aqui sem bala (AS, p. 87). Ao questionar o porquê de levarem a cabeça, Firmino

responde:

– [...] É para espetar num pau e dançar à volta dela. Fazem uma festa para

provar que ganharam e que são valentes. (AS, p. 85-86)

Quando não têm cabeça de civilizado para dançar, vêm buscar uma... [...]

Quando não há cabeça de homem, levam de criança, de cachorro, de gato, de

tudo que aparece. Deitam fogo à barraca e arrasam a mandioca e o canavial.

(AS, p. 87-88)

Os crimes cuja autoria é dada aos parintintins são descritos sempre com características

de crueldade e de horror, diante dos quais, Alberto fica perplexo. O papel que se concede ao

homem da Amazônia imbrica aspectos fabulosos e bárbaros, que tradicionalmente se

utilizaram para caracterizar esses povos e para fundamentar distintos projetos de incorporação

do índio à ordem colonial portuguesa. Assim, as descrições são envoltas em mistérios e

tecidas por uma visão primitiva, que em muito reproduz a dos viajantes dos anos de

expedições e dos escritores quinhentistas e seiscentistas.

Até a morada indígena torna-se quase mítica, sem localização exata na vastidão

desabitada da floresta: “moram na taba, lá para os fundões do mato. Ninguém pode chegar lá,

nem sabe onde é” (AS, p. 87). Diante dos relatos Alberto fica entre a ficção e o fato, não

alcançando discernir se as histórias ouvidas são reais ou folclóricas: “– Mas, então, os tais

índios existem?” (p. 85). Sem uma explicação atávica, mais contextualizada da cultura e

história indígenas, o discurso de Firmino pauta-se por uma visão estereotípica e o leitor tem a

impressão de uma “banalização da violência” por parte dessa etnia. Para Allison Leão, aí fica

claro que a tragédia indígena não é tratada “como parte de um mesmo e longo processo

histórico de subjugação que vem se efetivando desde que os índios eram maioria na região”

(2011, p. 85).

99

É a Guerreiro que cabe uma explicação mais geral da política voltada a essa população

no Brasil. O guarda-livros relata a Alberto as tentativas de pacificação dos índios por parte de

Marechal Rondon, e tenta colocar também o ponto de vista do outro: “entendem que esta terra

é deles, que nós somos aqui uns intrusos e não nos perdoam” (AS, p. 183). Acerca dessa

postura, diria Albert Memmi, referindo-se à figura do colonizador: “aos seus olhos, como aos

olhos de sua vítima, ele se sabe usurpador [mas entende que] é preciso acomodar-se com

esses olhares e essa situação” (2007, p. 43).

Diferente da atitude Firmino, que toma como verdade as histórias que narra, Guerreiro

sugere que tudo o que se diz a respeito dos parintintins são apenas abstrações, digressões e

probabilismos:

– A tribo é grande?

– Dizem que sim, mas ao certo ninguém sabe. [...] Eu penso que os

parintintins são muitos. Mas se são poucos, então é de admirar ainda mais a

sua extraordinária coragem.

[...]

– E como será a vida deles?

– Também não se sabe ao certo [...]. (AS, p. 183)

À margem dos mecanismos econômicos e do ideal de progresso, na perspectiva do

“civilizado”, era necessária aos índios a evolução, que viria a partir da domesticação, do

amansamento e do contato com a civilização. Nessa lógica, até os explorados por Juca, e que

se encontram numa situação-limite, consideram-se representantes da parte mais avançada da

humanidade, e até veem nos índios seus antípodas. “Mesmo num personagem como Firmino,

que é caboclo e seringueiro, as noções eurocêntricas do que viria a ser um civilizado

mostram-se incorporadas” (LEÃO, 2011, p. 85).

Mas poderíamos – antes de classificar as atitudes de Castro como um antitestemunho

indígena – encontrar uma explicação para o olhar que dirige aos índios no seu romance? Ao

menos alguns aspectos são possíveis contextualizar: o primeiro diz respeito ao que já

apontamos no primeiro capítulo, ou seja, Castro fora seringueiro e seu romance revela sua

empatia com esse grupo, que na epígrafe o autor denomina seus companheiros, irmãos, gente

que o antecedeu e o acompanhou; do ponto de vista político, a prática de integração dos índios

(pelo Instituto de Proteção ao Índio) era ainda recente e, quando da publicação do romance, a

pacificação dos parintintins só havia ocorrido há apenas oito anos; além disso, os

questionamentos (por parte de etnólogos e estudiosos) acerca de conceitos como civilização,

cultura, bem-estar social, comunidade, nação e pátria, só vieram ao centro dos debates

100

acadêmicos (quando então passaram por questionamentos) quase sessenta anos depois de

1922 (ANSELMO, 2007).

Ao analisar a representação do índio em outra obra de Ferreira de Castro, intitulada O

instinto supremo (1968), último romance de Castro e cuja temática é dedicada ao processo de

pacificação dos índios, Artur Anselmo assim defende a postura do autor:

nunca esteve no pensamento de Ferreira de Castro – e toda a sua obra o

atesta – qualquer vislumbre de acomodamento a situações baseadas na

absorção dos fracos pelos fortes. Pelo contrário, um dos traços mais salientes

de sua actividade literária e humanística é, precisamente, a defesa das

minorias socialmente irrelevantes contra os abusos das maiorias detentoras

do poder. (2007, p. 154-155)

Certamente, esses fatos – assim como o reconhecimento por parte de Guerreiro de que

“sobre os parintintins há muitas fantasias e a maior parte das coisas que se dizem são lendas”

(AS, p. 183) – colaboram para uma compreensão mais contextualizada e para um julgamento

mais relativizado dessa temática na obra, mas não apaga de todo os limites em relação à

cultura do autóctone da Amazônia, especialmente quando o autor, assumidamente, se propõe

a dar testemunho da exploração a que minorias foram submetidas.

3.3 Tribunal na floresta: pelos sentidos, captar a violência

Segundo Márcio Seligmann-Silva, a cena do testemunho “tende a ser pensada antes de

mais nada como a cena do tribunal: o testemunho cumpre um papel de justiça histórica”

(2005, p. 85). Tanto em A Selva quanto em Mayombe a justiça (ou a sua ausência) é um tema

bastante presente. No romance de Castro, Alberto procura muitas vezes colocar-se como

advogado, mas pratica uma justiça apenas retórica, imaginária, enquanto crimes de toda

ordem vão acontecendo. No romance de Pepetela, a formação político-ideológica das

personagens conduz à busca por uma prática justa e igualitária. Mas nem isso será capaz de

evitar que crimes aconteçam. Em ambas as obras o leitor é colocado diante de cenas de um

tribunal extraoficial, que na maioria das vezes se revela injusto e parcial.

Acerca de um tribunal oficial, ainda sem data marcada nas agendas jurídicas, o

português Jorge Ribeiro (1999, p. 140), que atuou como repórter de guerra, revela, no livro

Marcas da Guerra Colonial, alguns dos crimes bélicos cometidos por seu país e debate sobre

as possibilidades de um tribunal para julgar as acusações. Alguns dos episódios de grande

horror, descritos pelo jornalista, referem-se ao 4 de fevereiro de 1961 (em Angola), ao

massacre de Wiriyamu e à morte de um grupo de crianças que seguiam para a escola e foram

metralhadas a partir de um helicóptero da Base de Mueda (em Moçambique). Fatos como

101

estes levaram a ONU a afirmar que as ações portuguesas durante a guerra na África

satisfazem a definição de genocídio (1999, p. 137).

Também nos seringais, a morte era uma presença. Márcio Souza afirma que, na década

de 1940, quando a borracha ganhou um novo fôlego, em virtude dos acontecimentos

decorrentes da II Guerra Mundial, cerca de vinte mil trabalhadores morreram nos seringais,

configurando um número de baixas bem maior do que as sofridas pela Força Expedicionária

Brasileira na Itália, segundo investigações de uma comissão de inquérito do Congresso

Constituinte (2009, p. 321). Embora a violência tenha sido exercida e imposta (muito mais)

por grupos que detinham o poder, de fato, tanto em A Selva quanto em Mayombe o

julgamento ocorre mais em âmbito local e interno do que global. Até porque, a lógica do

sistema de aviamento ou a do colonizador versus colonizado não permitia outra atitude.

A estrutura social do seringal baseava-se num sistema de dominação tradicional.

Dentre outros fatores, a dispersão dos seringueiros no espaço físico da floresta não

possibilitou aos mesmos a cooperação entre si, enquanto se constituía um sistema social

fortemente apoiado em mecanismos de dominação ideológica e na violência (TEIXEIRA,

2009). Em A Selva, o que se vai observar é a existência de uma lei interna, aplicada

unilateralmente por Juca Tristão, aos seringueiros e trabalhadores. Como explica Lucilene

Lima, “atuando como potentados, os seringalistas exerciam força moral, política e mesmo

policial em seus domínios” (2009, p. 35). Para isso, contavam com a força de capatazes e

jagunços.

É desse papel que são encarregados os personagens Binda, Alípio, Balbino e Caetano.

Homens que atuam como “olhos” de Juca, fazendo com que todos não esqueçam a autoridade

absoluta do dono. Regem a partir de um sistema de “vigiar e punir”, que não perdoa e

tampouco acredita nas mazelas que por ventura algum dos extratores possa padecer. É

Firmino quem deixa entrever este fato: “o pior é quando nós estamos tremendo com febre e

chega seu Balbino ou seu Caetano. Nunca acreditam aqueles homens que nós estamos doentes

mesmo e dizem que é preguiça” (AS, p. 95).

Além dos que fazem guarda no Paraíso, há também a participação de autoridades, que

executam as ordens dos seringalistas. É o próprio Firmino quem relata o que sobrevém a

seringueiros apanhados em fuga: “estiveram quinze dias na cadeia. As autoridades lhes

bateram tanto que lhes partiram os dentes e, no fim, os trouxeram de novo para o seringal.

Todos os dias seu Balbino ia, com o rifle, pô-los fora da rede e eles tinham que trabalhar sem

que seu Juca lhes vendesse nem um litro de farinha” (AS, p. 104). Pela lei do sistema

102

extrativista, o débito dos seringueiros dava ao seringalista amplos poderes, inclusive de caçá-

los em fuga e recebê-los de volta com o auxílio do poder público (LIMA, 2009).

Ainda com relação aos capatazes, apesar de fazerem parte de um mesmo bando, não

desenvolvem entre si nenhum laço de cordialidade e de amizade. Pelo contrário, vivem

disputando a confiança, os benefícios e, sobretudo, algum poder que o grande mandatário lhes

pode oferecer, em troca de suas delações e sentinelas. A coerção feita por Balbino, logo nos

primeiros dias da estada de Alberto em Todos-os-Santos, deixa à mostra a estratégia adotada

para intimidar e colocar os extratores sob a ordem: “não há malandro nem sem-vergonha que

me ponha o pó no cangote! Quando eu voltar, quero ver como as coisas vão. Um homem tem

pena desses bichos que dizem que sabem fazer tudo e depois estragam os paus [...]. Entendeu,

Firmino? Até à volta...” (AS, p. 98, grifo nosso). Perante a intimidação, Alberto queda-se,

imobilizado, com “o olhar fixo no chão e no cérebro, um vácuo enorme, apenas raciocínios

sem continuidade e lógica, amalgamados e confusos” (p. 98).

Observe-se que outro grupo, além do índio, também é alcunhado de “bicho”. Referir-

se ao sertanejo/seringueiro como “rebanho”, “contratado”, “morador de chiqueiro” (AS, p.

28), “matuto banzado” (p. 71) é algo recorrente no romance. Quando Balbino vai ao Nordeste

arregimentar trabalhadores para o seringal, diz-se que estava à “caça do rebanho” (p. 27). As

atitudes subjugadoras em relação a essa categoria são levadas ao extremo quando Firmino,

Manduca, Romualdo, Aniceto e Dico são apanhados em fuga e devolvidos ao Paraíso.

Imediatamente, Juca ordena que Alexandrino os leve para o barracão, onde, depois de

amarrados, são torturados.

– É que o Alexandrino bateu, esta noite, com um peixe-boi nos homens. E

eles gritaram...

– Bateu?

– Abriu a porta e, no escuro, sem que os homens soubessem que era, zás!

Zás! Zás!

[...]

– [...] O Alexandrino bateu até fazer sangue. Foi ele mesmo quem o disse...

O João ouviu e o Tiago também. Os homens estavam amarrados e não se

podiam defender... (AS, p. 210)

Elias Bensabat, o judeu, descreve a Alberto o episódio acontecido no barracão. Mas

ele dá ainda outra informação que será crucial para o desenlace da narrativa e para a

constituição de uma cena de tribunal, que acontece na contramão das demais, à qual já nos

reportamos: “a culpa não é dele. Foi seu Juca quem mandou... E durante oito dias não

comem” (AS, p. 210). É diante desse fato que Tiago assume para si a função de grande juiz no

tribunal injusto que acontece na floresta.

103

Outros crimes, decorrentes das relações produzidas pelo sistema econômico

exploratório, vão se sucedendo e compõem o que o narrador denomina “biografia sangrenta”

do romance (AS, p. 164). Um deles refere-se a um problema que caracterizava os espaços

extrativistas: a ausência de mulheres. Para se aventurar na floresta, os seringueiros

abandonavam namoradas, noivas, cônjuges, deixando-as para fora dos limites do seringal.

Firmino é dos que compartilha a experiência do amor deixado para trás:

tinha lá uma cunhatã, a Marília, de quem eu gostava mesmo... Não era

bonita, mas quando um homem gosta não repara se é bonita, se é feia. Eu

vim para o seringal mais por amor a ela do que por outra coisa. Pensava

arranjar saldo e voltar logo para casa. Mas a moça me esqueceu e, há dois

anos, meu irmão me mandou dizer que ela tinha casado [...]. A Marília tinha

razão... Eu nunca mais voltava e se ela me estava esperando, ainda hoje não

tinha homem. Eu mesmo não sei se voltarei ou não... Mas eu gostava de

voltar. (AS, p. 91)

É por razão da ausência feminil, que se reúnem todos os aviados do Laguinho e

estupram a viúva de João Fernandes, de mais de setenta anos: “quando a deixaram, estava

morta, porque o primeiro lhe tinha apertado o pescoço para lhe tirar a resistência” (AS, p.

104). Motivado também pela carência de companhia, Agostinho comete atos criminosos. Por

não receber autorização de Lourenço para casar com a filha, de apenas nove anos de idade,

assassina o caboclo, deixando viúva a esposa e órfã a menina.

Após o assassinato, o cearense, que outrora já havia sido surpreendido mantendo

relações sexuais com uma égua, embrenha-se por entre as matas alagadas e desaparece. Mas

como o seringal é um destino cujas saídas encontram-se todas cerradas, o foragido é apanhado

em outra propriedade. Novamente, é Juca quem tem nas mãos o poder de decidir o destino e a

pena a ser-lhe aplicada:

um dia, chegaram de Três Casas notícias exactas sobre Agostinho.

Comunicava o proprietário de seringal amigo que fora ali parar um homem,

maltrapilho e escanzelado, em busca de trabalho. [...] Lá estaria preso às

ordens do colega o tempo que fosse preciso; se quisesse, era só mandá-lo

buscar; em caso contrário e se a conta fosse pequena tudo se saldaria e o

homem ficava lá.

[...]

– Responda imediatamente, imediatamente! Que o mande para a cadeia de

Humaitá, que é um malandro e um assassino! (AS, p. 156)

O que podemos dizer diante de personagens como Agostinho, que é capaz de matar,

mas também de se enternecer perante um mal-estar de outro: “veja você bem, que as febres,

às vezes, começam assim. [...] Falava tão sincera e fraternalmente que Alberto desorientou-se.

104

Era bondoso ou era indigno esse homem que, depois de ser repugnante, se volvia tão

compassivo e delicado?” (AS, p. 97).

Antes de buscarmos respostas para a pergunta lançada por Alberto, analisemos outra

cena. No único episódio em que a existência dos parintintins se materializa, acontece um

duplo assassinato: Procópio é alvejado pelos índios e um índio é alvejado por Manduca.

Ocorre então outra cena de tribunal. Diante de um corpo que historicamente foi considerado

sem alma e, dada a ausência de Juca Tristão (em viagem a Belém), são os próprios

trabalhadores que debatem. Ao redor do índio morto, busca-se decidir: tem direito a rituais

fúnebres? Para Alexandrino, deve ser jogado ao rio, como alimento para as piranhas.

Guerreiro defende que, por se tratar de um herege, merece a cova, mas não a cruz e nem

cemitério. Tiago é quem intervém: um morto não é melhor do que outro (AS, p. 182).

Os preparativos que precedem outro enterro engendram detalhes importantes para a

compreensão de como o corpo é tratado. Perante o cadáver do filho de Nazário, o narrador

depõe que, “se se tratava de seringueiro, despachava-se o corpo, apenas com a rede onde

dormia enquanto vivo, para uma cova aberta na orla da brenha” (AS, p. 157). Mas, por tratar-

se do filho de Nazário, o melhor seringueiro de Juca, “mandava o costume que mortos luzindo

alguma categoria fruíssem honras de caixão e sepultura em Humaitá” (p. 157, grifos nossos).

Todavia, o velório será disputado por outro evento, ao qual se dá muito mais atenção: a

partida do seringalista no próximo navio. Enquanto prepara-se o caixão, o pai chora a morte e

Juca (que recusa ver o cadáver) bebe e distrai-se com jogos de cartas, na companhia de seus

capatazes. A cena mais grotesca ainda viria:

três homens saíram na varanda dobraram-se sobre o vulto negro ali

estendido. Alberto agarrou-o pelos artelhos; Caetano, pelos braços. [...] Mas

perto já do esquife, o ébrio descuidou-se, tropeçou e ouviu-se o baque surdo

do morto caindo no soalho de tronco no chão [...]

Caetano desculpava-se com voz pastosa:

– Se fosse um vivo era pior! Ele não sente nada...

Mas adivinhando o incidente, Nazário acorrera à sala, gritando com

desespero:

– Meu filhinho! Meu rico filhinho! Ai, meu filhinho! (AS, p. 158-159, grifos

nossos)

Era preciso despachar o morto com brevidade, pois Juca precisava descansar, revela

ainda a narrativa. A banalidade com que é tratado o corpo sem vida, do índio e do rapaz, é tão

somente um espelho da banalidade do corpo em vida. No nosso entender, o que a narrativa

sugere, ao categorizar o índio e o sertanejo/seringueiro como bichos, animais, bodes, é a

existência de uma categoria humana do romance que, diante das condições de extrema

105

violência e privação, fora transformada em ser biótico, no sentido empregado por Giorgio

Agamben. Quando analisa as condições humanas nos campos de concentração, o filósofo trata

da figura do “mulçumano”, descrito como o cadáver ambulante, feixe de funções físicas já em

agonia, homem-múmia, ou ainda, o morto-vivo (2008, p. 49). Nessa figura, verifica-se a

perversão de um poder que não elimina o corpo, mas o mantém numa zona intermediária

entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano (PELBART, 2008, p. 4).

Peter Pál Pelbart, analisando as condições de vida e morte em contexto de dominação

biopolítica, afirma: “o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas

da existência [...] o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a

criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando não diretamente expropriado

pelos poderes” (2008, p. 1). De tal forma, o biopoder contemporâneo, como o entende

Agamben, não se incumbe mais de fazer viver, nem de fazer morrer, mas cria uma sobrevida,

reduz a vida ao seu mínimo biológico, à vida nua.

Expandindo essa ideia para a análise de A Selva, queremos ao menos conjeturar uma

reposta à pergunta lançada por Alberto ao ver-se diante das atitudes de Agostinho. Há,

certamente, diferenças consideráveis entre o muçulmano descrito por Agamben e o

seringueiro narrado em A Selva. Enquanto o primeiro apresenta uma apatia e inércia, o

seringueiro apresenta duas características preponderantes: por um lado, demonstra-se

passional e movido por impulsos; por outro, na presença de capatazes ou de Juca, demonstra-

se cabisbaixo e afásico. Mas a ligação que queremos fazer entre as duas figuras é a da vida

tornada nua pelas forças biopolíticas, pelo poder. Nossa resposta, então, é que o seringueiro e

o índio encontram-se entre o humano e o inumano: nem homem, nem fera, mas produto da

violência. A linguagem e as ações com as quais são tratados e descritos ratificam a existência

dessa categoria (ou melhor, dos sem categoria, como já mencionado pelo narrador).

A própria ação de quem se coloca acima dos que são classificados como inferiores

sugere uma condição parecida e até pior, diríamos brutal. Bruno Bettelheim, citado por

Agamben, quando descreve o comandante de Auschwitz, qualifica-o também como uma

espécie de “muçulmano”, “bem nutrido e bem vestido”. Para ele, o carrasco igualmente habita

a zona intermediária entre o humano e o inumano: máquina biológica desprovida de

sensibilidade e de estímulos nervosos (2008, p. 64). Pelbart completa: “engana-se quem vê

vida nua apenas na figura extrema do dito muçulmano concentracionário, ou nos refugiados

de Ruanda, sem perceber o mais assustador: que de certa maneira estamos todos nessa

condição terminal” (2008, p. 5).

106

Em Mayombe, as formas de julgamento e a prática da justiça obedecem a uma

dinâmica e ética distintas. Destaca-se nesse romance a coexistência de uma dupla lei: a do

colonizador (que perdura há séculos) e a do guerrilheiro, que ao se rebelar contra o sistema da

colônia, passa a obedecer à lei interna do MPLA. Algumas questões relacionadas à dinâmica

do julgamento, já adiantamos em seção anterior, quando analisamos os problemas de ordem

política-administrativa envolvendo Ingratidão e André. A partir do relato desses dois casos,

pode-se inferir que, enquanto a lei externa é arbitrária e radicalmente injusta com o

colonizado, a lei interna, apesar de correlacionar-se ao contexto bélico, pauta-se por decisões

comunitárias, coletivas e a aplicação das penas pode mesmo ser relativizada.

Ingratidão, ao furtar o dinheiro dos trabalhadores e colocar em risco a boa impressão

que o grupo poderia ter causado na população, passa por um julgamento comunitário, do qual

participam e opinam todos os guerrilheiros da Base. Sua pena fica decretada como prisão, de

onde mais tarde foge, com o auxílio de membros da sua tribo. Da mesma forma, André é

julgado por um grupo de militantes de Dolisie, sendo enviado para outro posto, onde

cumpriria a pena estabelecida. Todavia, quando do julgamento de Ingratidão, há um episódio

que revela outro lado da prática jurídica do MPLA.

Na tentativa de evitar o fuzilamento, previsto em lei, Sem Medo regasta e rememora

um assassinato pregresso, revelando que, por vezes, a justiça aplicada preza mais pela lei e

ordem, do que pela vida:

– [...] eu já executei um traidor. Não só tomei a decisão, sozinho, como o

executei, sozinho. E não foi a tiro, pois o inimigo cercava o sítio onde

estávamos. Foi a punhalada! [...]

Há os assassinos, que gostam de matar. Para os homens [...] que lutam

porque apreciam a vida humana, camarada, é muito difícil ser-se voluntário

para executar à punhalada um homem, mesmo que seja um traidor miserável.

[...] E estas mãos, camarada, estas mãos espetaram o punhal na barriga do

traidor e rasgaram-lhe o ventre, de baixo para cima. E o meu corpo todo

sentiu as convulsões da morte no corpo do outro. (M, p. 63)

A fala do herói acerca do significado da vida, num tempo-espaço de guerrilha, suscita

o debate sobre o problema da violência que assinala os conflitos armados. Ao longo dos

séculos XIX e XX, especialmente, foi possível acompanhar uma espécie de normatização da

violência, que se caracterizou pelo desenvolvimento de uma ampla legislação internacional

acerca de concessões e restrições em campos de batalha. Uma vez organizada e legislada, a

guerra é transformada em “instrumento da política e, por decisão política legítima, assumida

como necessária e obrigatória para os seus cidadãos que a ela são chamados à sombra do

107

dever patriótico” (RIBEIRO, 1999, p. 188). Como parte desse panorama, “matar, um acto

moralmente reprovável e condenável, pode [...] ser politicamente não só consentido como

obrigatório e não reprovável, se a ação bélica for declarada e internacionalmente aceite em

nome da „guerra justa‟” (p. 189).

Mas, numa conjuntura política em que a morte é autorizada, o que significa, para o

soldado e para o guerrilheiro que atuam nos combates, matar aquele que se toma como

inimigo? Sem Medo lança uma resposta: “matar não custa [...]. Não é nada matar na guerra!”

(M, p. 148). Entretanto, na ação, a afirmativa parece ser apenas retórica, a julgar pelas

emoções deste e dos demais guerrilheiros nos momentos que antecedem os confrontos. À

espera do combate, o herói romanesco sente angústia, entorpecimento, enquanto alucinações

se entrelaçam a memórias: “as recordações tristes da meninice misturavam-se à saudade dos

amigos mortos em combate e mesmo (ou sobretudo, ao rosto de Leli) [...]. A angústia

perseguia-o até a ordem de fogo. [...] sentia cólicas. Esquecera onde estava, o corpo não se

fazia sentir sobre os cotovelos dormentes” (p. 49-50).

Pela prática, Sem Medo contradiz não apenas seu discurso como também o sema do

nome de guerra, recebido na Base. É esse mesmo personagem que demonstra empatia ao

escutar os temores confessados por Teoria:

– [...] O medo persegue-me. [...] Tenho medo de fazer a guarda à noite,

tenho medo do combate, tenho medo mesmo de viver na Base...

[...]

– E tu? Nunca sentes medo?

– Eu? Às vezes sinto, sim. O pulso acelera-se, tenho frio, mesmo dor de

barriga. (M, p. 42-44)

Pepetela opta então por representar o guerrilheiro como sujeito que, embora em

combate e decidido a arriscar a própria vida pela liberdade do país, é provido de sensibilidade

e de estímulos nervosos. De forma que o leitor tem a possibilidade de, através das emoções

experimentadas pelos combatentes, formar um mapa sensorial da violência.

É com certo lirismo que o narrador descreve os instantes pré-combate, misturando

descrições dos horrores da guerrilha e as recordações de amor. Sem Medo, Teoria e João

compartilham a experiência de perder seus amores para a guerra: Leli é morta pela UPA

(União das Populações de Angola) enquanto corre à procura de Sem Medo; Teoria abandona

Manuela para entregar-se à luta; e João, por causa da distância que separa a Base e Dolisie,

perde Ondina. Mas são sempre essas mulheres que vêm à mente: é a ternura feminina que

sobrevém à imaginação nas horas de duelos; como é também a recordação da casa quente e da

108

companhia de Manuela que ocorre a Teoria enquanto a chuva fria cai sobre as folhas do

Mayombe.

As sensações de medo não sobrevêm apenas aos homens de guerra. Na narrativa, a

vivência dos civis e da população inclui episódios de agressão e de abusos, que vão desde um

furto de dinheiro até aprisionamentos na floresta. Ante a arma apontada por Mundo Novo para

trabalhadores apanhados no Mayombe, sequer um protesto é esboçado. Nem mesmo o menino

António, de catorze anos de idade, é poupado pelos guerrilheiros. Quedam-se todos os

angolanos, imobilizados pela ação coerciva, reforçada pelo cano da arma colada aos rostos:

“os olhos abriram-se, o imenso branco dos olhos comendo a cara toda, a boca aberta num

grito que não ousou sair e ficou vibrando interiormente” (M, p. 27) – imagem digna de

quadros expressionistas e das telas de Edvard Munch.

É o mesmo episódio, envolvendo os trabalhadores aprisionados pelos guerrilheiros,

que deixa entrever as relações estabelecidas entre paramilitares e angolanos a serviço dos

portugueses:

um trabalhador pediu timidamente a Mundo Novo autorização para ir um

pouco para o lado. E apertava o ventre.

[...] Ao cheiro da pólvora veio misturar-se um cheiro mais característico.

Mundo Novo olhou Sem Medo e este olhou o trabalhador que pedira para se

afastar.

– Este gajo... – só teve tempo de exclamar Sem Medo.

Subitamente, dobrou-se numa gargalhada [...] depois viram o trabalhador de

pé, as pernas afastadas, o ricto bestificado em êxtase e as fezes a deslizarem-

lhe pelas coxas, e a pingarem sobre o chão. (M, p. 30)

Cenas como essa dão conta de evidenciar que os papéis de vítima e de opressor não

podem ser expostos a partir de uma visão maniqueísta, sobretudo por levar em conta que os

polos (vítima e algoz) podem ser cambiáveis entre as partes, e aquele que se considera vítima,

pode, diante de outra vítima, ser capaz de ações pouco compassivas.

Incluem-se, no mapa sensorial da violência das guerras coloniais, os soldados

portugueses. Para além da representação de inimigos, os “tugas” são narrados como homens,

temerosos e fragilizados ante a potência dos instrumentos bélicos, como descreve o narrador

no último capítulo do romance: “Milagre [...] lançou um obus que aniquilou os inimigos antes

que se instalassem convenientemente na trincheira. Os que corriam para a segunda trincheira

ficaram estupefactos, inertes, vendo Milagre, de pé, o peito descoberto, carregando a bazuka”

(M, p. 243).

As emoções, manifestas pelo corpo e pelos sentidos da população angolana e dos

soldados, expõem as relações analisadas por Jorge Ribeiro, ao comentar a situação enfrentada

109

por esses dois grupos durante a guerra. Para o jornalista, as maiores vítimas das guerras de

libertação foram, de um lado, as populações locais – enredadas diretamente nos conflitos

armados e sujeitas a pressões tanto dos portugueses quanto dos guerrilheiros – e, de outro, os

soldados convocados e enviados pela ditadura salazarista para defender Portugal (1999, p.

197). Mas, se há vítimas de todos os lados, o que, afinal, pode ser considerado crime? O que

pode ser considerado delito num contexto de guerrilha, de luta pelo espaço nacional e pelo

fim da subjugação? Seguindo os argumentos apresentados por Jorge Ribeiro, não é difícil

chegar à conclusão de que, na guerra, a morte é mesmo vista e assumida como um fato

inevitável. E quando se combate contra números muito desiguais, como ocorre no romance

analisado, essa possibilidade eleva-se consideravelmente.

Há apenas dois enfrentamentos entre portugueses e os guerrilheiros no romance

pepeteliano. O primeiro ocorre no capítulo I, e o segundo no capítulo V. Em “A Missão”,

combatem 16 guerrilheiros contra mais de 70 portugueses. No combate do Pau Caído,

reúnem-se cinquenta homens angolanos para combater e expulsar o efetivo tuga, formado por

uma companhia – o que, em números, representa um total de cem a duzentos homens; no

mínimo, o dobro da quantidade de guerrilheiros. Tais diferenças dialogam com a realidade

histórica das guerras africanas nas colônias portuguesas, nas quais as desigualdades refletiam-

se não apenas no número de soldados, mas também no número de armas. Embora os

movimentos de libertação “tenham progressivamente conseguido dotar-se de melhor

armamento, equipamento e maior capacidade técnica e tática, nunca atingiram a capacidade

de actuação como as tropas regulares” (RIBEIRO, 1999, p. 193).

Sabe-se que nos confrontos armados entre os movimentos anticolonialistas africanos e

as forças portuguesas, a morte foi uma certeza, e a grande maioria dos corpos sequer foi

registrada no livro de óbitos. Como Jorge Ribeiro assevera, “o rol de crimes de guerra durante

o Colonialismo, o seu reenquadramento, estudo e classificação nunca foi feito” (1999, p. 143).

Todavia, em Mayombe, Muatiânvua cumpre a função (historicamente ainda não executada) de

contar os mortos, como revela um fragmento da narrativa: “Que ficaste lá a fazer? –

perguntou Sem Medo. – A contar os mortos, para o Comunicado de Guerra! Havia 16 corpos

na estrada” (M, p. 53). Dezesseis mortos em apenas dois minutos de combate –

aritmeticamente, um corpo para cada guerrilheiro.

Além de registrar o número de baixas, quando Comissário e Mundo Novo vão

devolver o dinheiro roubado do mecânico, desenvolvem conversa sobre os que perderam a

vida, possibilitando ao leitor ter acesso, mesmo que mínimo, à identidade dos que feneceram:

110

– Ouviram do combate?

– Sim – disse o coxo, com um sorriso. - Morreram muitos. Morreu um rapaz

ali da aldeia ao lado. Houve óbito ontem.

– Nós sempre dizemos para os angolanos desertarem do exército. As balas

não escolhem – disse o Comissário. - Foi o único angolano que morreu?

– Não. Houve outro. Mas esse era do Sul. Brancos é que morreram muitos.

Um era capitão. (M, p. 58)

No primeiro confronto, a narrativa literária concede aos guerrilheiros a vitória pela

batalha arquitetada entre as folhas do Mayombe, da qual saem todos vivos. Já na batalha do

Pau Caído, a cena de carregamento de corpos se repete. Mas desta vez, sem que a floresta

consiga blindar os corpos de todos: “– As perdas? – perguntou Sem Medo, num sussurro. –

Um morto e dois feridos – disse o Comissário. – Vi o Lutamos cair. Morreu? – Sim” (M, p.

245-246).

De toda forma, o que sobressai neste e deste contexto, é a guerra como mal maior, que

permite e gera a violência até os limites do incontrolável e se “os crimes de guerra existem [é]

porque se opta pela guerra” (1999, p. 204). Em Mayombe, a guerra é pois um mal, vivenciado

pelas personagens e percebido pelo leitor, a partir das reações manifestadas pelo corpo e pelos

sentidos, como engendra a imagem das convulsões de morte sentidas por Sem Medo enquanto

apunhalava o corpo do guerrilheiro condenado por traição.

Diante desses quadros de crimes, subjugação, violência extrema e horror, a relação

com o tempo é perpassada por uma tensão, que se apresenta de forma distinta entre os dois

romances estudados. Em Mayombe: o passado remoto, ancestral, é almejado como um tempo-

espaço paradigmático; o presente, ainda que abstruso, apresenta-se necessário para a

construção do que se almeja para a nação angolana. Já o futuro, abarca duas concepções e

expectativas: enquanto um grupo o vê como o tempo da utopia e melhor para todos; outros,

como Lutamos e Sem Medo, não conseguem se visualizar nas novas estruturas que serão

criadas, além das desconfianças na política e no homem: “porque é demagogia dizer que o

proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor

das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo” (M, p. 114).

No romance A Selva, o futuro é uma desilusão quase absoluta, embora inicialmente se

apresente e pareça atrativo. Dadas as desilusões do presente – tempo de onde se quer evadir-

se a todo custo –, o passado, ainda que inicialmente se mostre negativo, acaba ganhando um

peso menor:

o tempo decorria e os que de começo, espalhavam energias, acabavam

mostrando depauperamentos; os que haviam trazido expressão de futuros

vencedores, arrastavam-se como vencidos; e por um que regressava ao ponto

111

de partida, quedavam ali, para sempre, centenas de outros, esfrangalhados,

palúdicos, escravizados ou mortos. (AS, p. 116)

Contrariando o mito do Eldorado amazônico, da cidade encantada onde a harmonia e a

justiça social regem a todos, o narrador castriano, entrevendo o escritor Milton Hatoum na sua

novela, adverte: ficamos órfãos do Eldorado. O seringueiro de A selva suscita a imagem do

paraíso corrompido e inundado, do qual o homem da Amazônia tornou-se herdeiro e

prisioneiro. A narrativa aviva a consciência de que aquela cidade encantada permaneceu no

fundo rio, foi fruto de um devaneio, um mito antigo que não pode mais se sustentar, e dele, a

única herança que temos é somente o testemunho.

112

NÓS, AS TESTEMUNHAS

(CONSIDERAÇÕES FINAIS)

Dizíamos, embasados em Seligmann-Silva, que a cena do testemunho “tende a ser

pensada antes de mais nada como a cena do tribunal” (2005, p. 85). Dissemos ainda que as

cenas de tribunal, nos romances analisados, se processam muito mais em relação a problemas

internos de cada narrativa, do que em relação a julgamentos entre vencidos e vencedores,

opressores e oprimidos. Do ponto de vista da justiça histórica e jurídica, sabe-se que, diante

de massacres, crimes de guerra e contra a humanidade, o continente africano pode contar

apenas com um reconhecimento, por parte de alguns países e organizações, a respeito das

ações atrozes cometidas durante os longos anos de guerra e de colonialismo. No que toca aos

seringueiros da Amazônia, as cenas jurídicas são ainda mais incomuns, e uma das raras

ocasiões em que um seringalista ou algum dos envolvidos na cadeia produtiva da borracha

ocupa o lugar de réu, ocorre apenas nas páginas literárias.

Jeanne Marie Gagnebin, ao dialogar com escritos de Walter Benjamin, engendra a

figura do narrador-trapeiro, personagem que, movido pela pobreza e pelo desejo de não deixar

nada se perder, recolhe os cacos e os restos. Suscitando a imagem dos que tomam a palavra

em A Selva e Mayombe, a pesquisadora afirma: “este narrador sucateiro [...] não tem por alvo

recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como

algo [...] que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial não

sabe o que fazer” (2004, p. 3). Perante crimes que o tribunal jurídico rejeitou, as personagens

dos romances estudados ao longo desta dissertação, como narradores-trapeiros, vão

testemunhando a dor, a revolta e a consternação diante das diferentes formas de violência e de

autoritarismo às quais foram submetidas as gentes dessas geografias periféricas.

Num cenário de detritos recolhidos na guerra, a literatura angolana, pela escrita de um

autor-guerrilheiro, de núcleo cultural periférico, traz ao mundo as histórias alheias às

grandiosas narrativas do Ocidente, oportunizando o acesso às palavras de alguns destes

homens e mulheres remanescentes da marginalização histórica e cultural. Entre a utopia de

uma terra sem males e as diferenças culturais, os narradores-trapeiros de Mayombe vão

desfiando página a página as suas vivências subjetivas, assinaladas pela dor e pela desventura

de verem furtado o próprio lar.

Já nas primeiras páginas do romance, o leitor fica sabendo que Teoria guarda um

segredo: a insegurança e o medo de não ser aceito por causa de sua cor. Mas o professor da

Base sabe também que, como ele, todos os demais guerrilheiros guardam um segredo, trazem

113

consigo uma história de abandono fora da floresta: por que Sem Medo abandonou o curso de

Economia para entrar na guerrilha? Por que o Comissário abandonou Caxito, o pai velho e

pobre camponês arruinado pelo roubo das terras de café? Por que o Chefe de Operações

abandonou os Dembos? Por que Milagre abandonou a família? Por que Muatiânvua, o

marinheiro desenraizado, abandonou os barcos para marchar a pé, numa vida de aventura tão

diferente da sua? (M, p. 15).

Por causa da guerrilha e da luta pela descolonização. Mas todas as personagens têm

também uma motivação pessoal que se cruza com o desejo de libertação da política colonial.

Essa característica do romance associa-se a uma questão fulcral do testemunho: a noção de

subjetividade coletiva, situada, no romance, na luta pela independência e pela constituição da

nação, por um lado; mas composta também pela história de cada guerrilheiro. Esse aspecto se

torna possível, sobretudo porque a narrativa se desenvolve a partir de um núcleo mais amplo

da história de Angola e ao mesmo tempo a partir das histórias subjetivas das personagens. Tal

costura, entre uma história que se diz de todos e as micro-histórias, se efetiva, na narração,

através de um discurso compartilhado entre o supranarrador (em terceira pessoa) e os

guerrilheiros-narradores (em primeira pessoa).

Milagre é testemunha e um desses narradores-trapeiros. Órfão de pai, foragido de

Angola com a mãe quando ainda criança, retorna, anos mais tarde, ao seu país para lutar no

MPLA. Pela palavra, além da consciência crítica sobre o grupo do qual é partícipe, traz no

corpo uma consciência crítica de sua própria história: “eu era miúdo na altura de 1961. Mas

lembro-me ainda das cenas de crianças atiradas contra as árvores, de homens enterrados até o

pescoço, cabeça de fora, e o tractor passando” (M, p. 33, grifo nosso).

Sem que as reminiscências o deixem esquecer que o tempo é de luto, sua narração

alude ao ano de 1961, momento histórico em que o MPLA decidiu ir à luta armada,

deflagrando a guerra pela Libertação. Ao rememorar, a personagem impede esquecer que o

país enfrentará catorze anos de guerra anticolonial: de 1961 a 1975, quando é proclamada a

República Popular de Angola, em Luanda, por António Agostinho Neto. Todavia, uma

conquista comemorada fugazmente: tomada a vitória, a festa dura poucos dias, pois, se havia

findado a batalha contra a ameaça externa, iniciava-se outra, para vencer os empecilhos

impostos pelas diferenças internas. E o território recém-independente é lançado em mais vinte

e seis anos de violência.

Antecipando as décadas seguintes à libertação, Chefe de Operações, como narrador, e

tal qual um feiticeiro antigo, penetra o passado e desconfia do futuro: “por isso houve Março

de 61. Eu era criança, mas participei nos ataques às roças dos colonos. [...]. As balas dos

114

brancos eram água, diziam eles. Depois da independência renasceriam os que tinham caído

em combate. Tudo mentira. Hoje vejo que era tudo mentira” (M, p. 214, grifo nosso). Ao

rever a história da guerra colonial, Milagre e Chefe de Operações vivificam também o ato de

recordar. E não seria essa a função essencial da testemunha, impossibilitar que se apaguem as

marcas do passado? Pois, se como prevê o narrador, os mortos não poderão se erguer para

celebrar a vitória, ao menos permanecerão presentes na memória afetiva, nas micro-histórias

dos que permanecem vivos.

No solo inseguro da floresta, outra vez um narrador órfão, de pais nascidos em tribos

diferentes, entoa a composição, de um poeta sem auréola:

nasci no meio dos diamantes, sem os ver. Talvez porque nasci no meio dos

diamantes, ainda jovem senti atracção pelas gotas do mar imenso, aquelas

gotas-diamantes que chocam contra o casco dos navios e saltam para o ar,

aos milhares, com o brilho leitoso das lágrimas escondidas. [...] O nosso

mar, feito de gotas-diamante, suores e lágrimas esmagados, o nosso mar é o

brilho da arma bem oleada que faísca no meio da verdura do mayombe [...].

A minha força vem da terra que chupou a força de outros homens. (M, p.

122-123)

Consciente do saque de seu patrimônio, Muatiânvua narra a sua terra, encharcada pela

seiva dos antepassados. Ao contrário de Portugal, que ancorou navios em vários portos do

Atlântico para fixar-se em espaços de outrem, a arma dos angolanos é o caminho para

conquistar o seu próprio espaço, de onde saíram apenas quando foram sacados para habitar

terras distantes, não como conquistadores, mas como escravos. De tal modo, o mar de Angola

é feito da luta humana, de corpos esmagados, mas também de corpos resistentes que lançam

raios de esperança a Luanda. Destarte, se a História de Portugal está escrita nos caminhos do

mar, a de Angola se escreve nos caminhos da floresta.

Aguardando a promessa de colher um tempo que não chegou, os que ainda eram

miúdos quando do primeiro combate, agora guerreiam, dando continuidade ao sonho antigo.

Enquanto miram o futuro, abrigam-se na floresta, os heróis dessa história marginal,

convivendo com o espectro da morte, que se não os toma inteiros vai carcomendo os desejos,

os ideais, as utopias. Não obstante, enquanto não podem sonhar com um tempo harmonioso e

um espaço legitimamente angolano, os narradores tomam a voz no romance e revelam-se

poéticos, tomados por uma emoção estética, como se somente por meio deste artifício

pudessem alcançar redenção. E narrando a própria história, evocam o lar, a mulher, a infância.

É assim que Teoria conta sua narrativa, como se ao mesmo tempo estivesse compondo

uma carta a Manuela. O professor conta as reminiscências de casa, ao mesmo tempo em que

115

lembra o que deixou para trás ao tornar-se guerrilheiro no Mayombe. O talvez da história, o

homem da palavra e inseguro na ação, nascido na Gabela, terra do café, é o mulato a buscar

um ponto de equilíbrio no mundo, situado acima dos maniqueísmos que decompõem a esfera

terrestre em dois hemisférios rígidos. Como tantos órfãos de guerra, seu filho nasceria sem

pai. Mas, se ao olhar o passado o professor se depara com o abandono, diante dele resta a

esperança de um tempo de reconstituição, de um futuro livre, desalienado para seu filho,

como também para outras crianças.

No que toca ao romance A Selva, ainda que o enredo centre-se na história de um

português, exilado e enviado ao seringal, a narrativa revela o interesse de Castro (quiçá sua

obra inteira) pela causa dos vencidos, no caso específico, os seringueiros. Se a importância do

testemunho está ligada “à possibilidade de dar expressão a culturas com uma inserção precária

no universo escrito e uma existência quase que exclusivamente oral” (PENNA, 2003, p. 305),

na narrativa castriana somos dados a conhecer o espaço do seringal e a rotina dos que ali

residem, por intermédio de Alberto, que além de sobrevivente, é detentor da cultura letrada e

dela se utiliza como caminho para testemunhar.

Ao longo do romance, todos os sentidos do protagonista são empregados na

composição do testemunho. Antes mesmo de se aproximar dos seringueiros, sua passagem

pelas cidades da Amazônia já dá conta de, pela visão, testemunhar as condições presentes no

ciclo de produção do látex: “todos os cais de Belém a Manaus falavam desses dramas

anônimos, dos logros feitos à gente rude que ia desbravando, com desconhecido heroísmo, a

selva densa e feroz” (AS, p. 32). Os espaços, por si mesmos, especialmente os ambientes

citadinos, constituem um autêntico testemunho da exploração que se processava nas brenhas

da Amazônia. E todo o Eldorado urbano “se alimentava do sangue que rudes párias

convertiam em oiro, no centro misterioso da floresta” (p. 32).

Alberto não apenas passa pelos locais, mas se detém em cada lugar e colhe os

elementos duplos que envolvem o testemunho: testis e superstes. É seguindo os passos dessa

personagem no percurso narrativo que o leitor passa a ter conhecimento da vida de Firmino e

de outros tantos imergidos na imensidão da selva. Além disso, é também a partir dos

deslocamentos do protagonista que o leitor conhece a casa de Juca, proprietário e explorador

dos homens e da terra, e passa a ter uma compreensão holística do ciclo exploratório operado

naquele espaço.

A convivência de Alberto com os seringueiros o leva ainda a colocar em ação outro

sentido (característico de quem testemunha), a audição: “eram tardes quase sempre tristes,

fizesse Sol ou chovesse, a escutar os cearenses, os seus sonhos derrotados, os seus amores

116

interrompidos [...]. Sabia já de cor a história deles e às vezes, de regresso, sentado no meio da

canoa, ecoavam de novo no seu espírito frases que lhes ouvira” (AS, p. 124, grifos nossos).

Essa característica narrativa faz com que o romance prenda-se não apenas a uma experiência

individual da barbárie, mas dá conta de revelar ao leitor testemunhos de experiências coletivas

da violência e da exploração. Ao escutar as histórias pessoais de cada um, o estudante de

direito vai aos poucos descobrindo o seringueiro e, como detentor da escrita, passa a testificar

a condição inumana em que estão postos os homens que ali convivem.

Por fim, Alberto comprova tudo o que já havia visto, ouvido e vivido. Ao assumir o

trabalho no armazém, a personagem se depara com papéis e anotações que se poderiam

chamar “livro dos réus”, ou, inspirando-nos em Foucault, “vidas dos homens infames”. Como

guarda-livros, o protagonista tem acesso a documentos e arquivos que comprovam o sistema

exploratório e injusto do seringal. O livro de contas associa-se mesmo a um livro de

sentenças, uma escritura dos crimes cometidos, onde a pena de cada seringueiro é anotada em

valores monetários e convertida em dias de aprisionamento: “todo o papel que examinava,

todo o livro que folheava, constituía, nesses primeiros dias de contato, papiro revelador dum

mundo por historiar. [...] sentia uma curiosidade dolorosa ao ler toda essa papelada,

confrontando algarismos e inventariando o tempo que cada um trabalhava a mais” (AS, p.

151-152).

Se inicialmente o português demonstra-se resistente à mudança, revelando pouca

capacidade de empatia, ao longo da história é imerso em todos os ambientes da cadeia

produtiva do látex, e pela experiência com o outro, pelo testemunho, transforma-se (e é

transformado). Assim, além da incursão espacial que possibilita conhecer por vivência a

servidão humana, o português realiza uma viagem ao interior de si mesmo: se na primeira

parte do romance vive entre as fronteiras do imigrante, do europeu civilizado, de um lado; e

caboclo, selvagem, de outro; ao longo da narrativa essa fronteira é transposta pela experiência

de uma dor coletiva.

Desde a saída do porto, em Belém do Pará, até a possibilidade da fuga no seringal

Paraíso, o imigrante sofre uma experiência que o possibilita vivenciar um processo de catarse

da visão que tem do homem local: “a pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e agora

compreendia-as melhor. Já eram outras para ele, assim vestidas com farrapos que a Europa

ignorava” (AS, p. 124). A partir de uma relação de alteridade, a personagem modifica não

apenas o seu pensamento em relação aos seringueiros, mas o modo como vê a si naquele

espaço e descobre que, se obteve o benefício de residir na casa de Juca Tristão e de colaborar

no centro comercial do seringal, não foi exatamente por sua pele europeia, mas por sua

117

condição de homem letrado que em algum momento serviu aos interesses capitalistas do seu

senhor, assim como o seringueiro só era útil enquanto tinha força para extrair o látex.

Como estudante de direito, Alberto não se portou como advogado fidedigno na defesa

do homem da Amazônia, em certa medida por temor, mas, sobretudo, por julgar que aquele

espaço não respeitaria as leis seguidas nos tribunais europeus. Talvez o estudante precisasse

ainda de uma aula no grande tribunal que é a história para tornar-se, de fato, bacharel.

Todavia, no que se refere aos aspectos testemunhais no percurso narrativo, Alberto torna-se

autêntica testemunha: tanto no sentido jurídico-histórico quanto no sentido de ter sobrevivido

para testificar a barbárie.

Nas páginas finais da narrativa, a personagem imagina-se regressando a Portugal, onde

testemunharia e praticaria uma justiça em nome dos marginalizados e oprimidos: “via-se já,

com grande alvoroço íntimo, a desembarcar em Lisboa [...] à mesa do café: ele a falar do que

vira e do que fizera” (AS, p. 174). E logo em seguida, cria outra cena imaginária: “um

momento, o seu cérebro situou o negro sobre o outro banco, o dos réus em pleno tribunal. [...]

Lá estava, de toga negra e ansioso por triunfar. Em frente, Tiago, macabro e grotesco [...]

„Senhor juiz Senhores jurados! Esse miserável... Esse miserável...‟ Não. Não acusaria jamais.

A ninguém! A ninguém!” (p. 219).

Não é à toa que o barracão ficou conhecido também como a casa-grande dos seringais,

pois, embora o sistema de exploração do homem houvesse mudado de nome (e o Amazonas

se orgulha de ter sido um dos pioneiros na libertação dos escravos no Brasil), o sistema de

aviamento era muito semelhante ao sistema escravagista. E nisso reside um fato histórico que

faz cruzar as duas realidades espaciais dos romances. Em ambos os sistemas (escravagista e

de aviamento), não era a liberdade das regras de mercado que definia as relações entre patrão

e mão de obra, pelo contrário, as relações eram caracterizadas por um ambiente fortemente

coercitivo (TEIXEIRA, 2009, p. 19). A situação econômica em que se encontram os

“trabalhadores” é também outra realidade que aproxima os dois romances. Quando se

analisam os eventos que desencadearam o início das guerras de libertação na África

portuguesa, por exemplo, observa-se que em Guiné, São Tomé e Príncipe e Angola foram as

reivindicações de trabalhadores explorados que fizeram despertar no colonizado a busca por

outro sistema. O que implica dizer que, da Amazônia a Angola, o homem é vítima da

exploração produzida pelas relações sociais desiguais e injustas. E o que os romances

revelam, em síntese, é a onipresença da violência.

Todas as categorias narrativas de A Selva e Mayombe convergem para a construção de

testemunhos: sejam os espaços (as cidades, a floresta amazônica e Mayombe), as biografias

118

(dos autores e das personagens), sejam os discursos, tudo produz, ao final, uma síntese

espaço-temporal e estética das lutas que os povos de ambas as geografias travaram em suas

florestas, em suas terras. Os romances atuam, nesse sentido, como espaços, senão de discursos

dos marginalizados, mas ao menos como uma narração que acena e encena tipos sociais.

Ambas as obras avivam a consciência de que a Amazônia e Angola, por mais distantes da

Europa (onde se testemunhou o século do horror), possuem também as marcas de tragédias

travadas em suas pequenas aldeias e vilas, e que deixaram seus rastros nas folhas: das

florestas e das páginas literárias.

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