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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
NELMA TAVARES
“TIA, VOCÊ ME ADOTA?”:
O ABRIGO E A ESCOLA NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DA CRIANÇA SOB
TUTELA DO ESTADO
VITÓRIA
2014
NELMA TAVARES
“TIA, VOCÊ ME ADOTA?”:
O ABRIGO E A ESCOLA NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DA
CRIANÇA SOB TUTELA DO ESTADO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas.
Orientadora: Profa. Dra. Ivone Martins de Oliveira
VITÓRIA
2014
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Setorial de Educação,
Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Tavares, Nelma, 1976- T231t “Tia, você me adota?” : o abrigo e a escola na constituição
subjetiva da criança sob tutela do Estado / Nelma Tavares. – 2014.
149 f. : il. Orientador: Ivone Martins de Oliveira. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 1. Crianças – Assistência em instituições. 2. Escolas. 3.
Instituições sociais. 4. Psicologia do desenvolvimento. 5. Subjetividade. I. Oliveira, Ivone Martins de, 1962-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
Enfatizamos nosso compromisso de criar um mundo para as
crianças, onde o desenvolvimento humano sustentável,
levando em conta os melhores interesses das crianças, é
construído nos princípios da democracia, da igualdade, da não
discriminação, da paz e da justiça social e da universalidade,
indivisibilidade, interdependência e inter-relação de todos os
direitos humanos, incluindo o direito ao desenvolvimento.
Nações Unidas, 2002
AGRADECIMENTOS
A Deus, a vida e o sustento.
Ao meu querido marido, a compreensão pelos momentos em que me ausentei,
mesmo estando presente.
Aos meus pais, o apoio e a dedicação em relação a minha vida escolar.
À professora Ivone Martins de Oliveira, pela orientação, por ter acreditado em mim e
pelos momentos de aprendizagem.
Aos professores e amigos da turma 26, especialmente da Linha “Diversidade e
Práticas Educacionais Inclusivas”, que participaram do processo de construção
deste trabalho.
À professora Edna Castro de Oliveira, pelas reflexões em torno da diversidade e
inclusão e também pelas ricas contribuições dadas ao participar da banca de Exame
de Qualificação.
À professora Valdete Côco, pelas importantes sugestões dadas durante a
participação da banca de Exame de Qualificação e pela participação na banca de
defesa.
À professora, Anna Maria L. Padilha, pelo interesse em ler este trabalho e participar
da minha banca de defesa.
À Marciane Cosmo Rhein, pela amizade, discussões e apoio durante o curso.
À instituição intitulada “Casa-Lar Santa Cecília” e à Escola intitulada “Profa.
Petronilha Vidigal”, por terem permitido a pesquisa nestes espaços.
Em especial, às crianças, denominadas por mim, “Noah” e “Sofia”, por terem
permitido que eu fizesse parte de uma pequena parte de suas histórias e também
por me oportunizarem conhecer as suas “infâncias”.
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi discutir as interferências do acolhimento institucional e
da educação escolar na constituição da subjetividade da criança que, por algum
motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se encontra sob tutela do Estado,
aos cuidados de uma casa-lar, no município de Vila Velha. Para a leitura subjetiva
das crianças que compuseram o cenário deste trabalho, a pesquisa ancorou-se na
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, tendo como autores de
base Lev Vigotski, Henri Wallon e Mikhail Bakhtin. A investigação ocorreu em dois
espaços distintos: na “Casa-Lar Santa Cecília”, instituição que desenvolvia um
programa de acolhimento institucional às crianças sob tutela pública; e numa escola
de Ensino Fundamental, com crianças que estavam matriculadas no 3º ano. A
metodologia utilizada nessa investigação foi o estudo de caso; trata-se, portanto, do
estudo de caso de duas crianças sob tutela pública. Os procedimentos utilizados
para o recolhimento do material empírico foram a observação participante e as
entrevistas semiestruturadas com os profissionais do abrigo e da escola. O estudo
teve enfoque em duas crianças – uma menina e um menino, ambos com dez anos
de idade. O processo de destituição familiar e o acolhimento institucional sempre
deixam marcas. Encontramos as marcas nas cicatrizes deixadas no corpo de Sofia
em consequência dos maus-tratos; no seu silêncio, a dor por uma realidade vivida
que não se desvanece. Nesse contexto, suas expectativas giravam em torno da
adoção, de outro caminho, mas diferente do abrigamento. Deparamo-nos com a dor
e a saudade, expressas por meio do choro, que Noah sentia de uma família que, ao
longo do tempo, se foi desmembrando e se distanciando em decorrência da
destituição familiar e da adoção dos irmãos; as dificuldades para elaborar esses
acontecimentos e o sofrimento vivenciado diante do imenso vazio que se delineia
com tantas perdas foram identificados nas manifestações de raiva, na intensificação
da rispidez e da intolerância em relação, sobretudo, aos colegas de sala de aula. Por
outro lado, a escola apresentou-se como um espaço significativo para essas duas
crianças, que tinham, nessa instituição, a possibilidade de se constituir como alunos,
da mesma forma que as outras crianças, e de vivenciar experiências no encontro
com os outros que lhes traziam satisfação e, de certa forma, potencializavam o seu
desenvolvimento. Encontramos indícios de ecos dos sentimentos dos outros na vida
dessas crianças, bem como do impacto desses sentimentos na constituição
subjetiva de cada uma delas; em outras palavras, o sentimento de pertencer a um
grupo e de ter um lugar na vida de alguns membros da comunidade escolar,
sobretudo, das outras crianças.
Palavras-chave: Crianças – Assistência em instituições. Escolas. Instituições
sociais. Psicologia do desenvolvimento. Subjetividade.
ABSTRACT
The aim of this study was to discuss how foster care and schooling impact the child’s
subjectivity. Our research was grounded on the socio-historical theories of human
development, particularly trough the contributions of Lev Vygotsky, Henri Wallon and
Mikhail Bakhtin. The research was carried out at Casa-Lar Santa Cecília, a foster
care facility for children in state custody, and in a public elementary school (3rd
grade), both located in the city of Vila Velha. Two children, a boy (Noah) and girl
(Sofia) both aged 10, were investigated and a case study research design was
adopted to allow for a fuller understanding of their experience. Data collection
consisted of participant observation together with semi-structured interviews with
foster care and school workers involved. Family disruptions, followed by foster care
intervention, almost inevitably leave the children indelibly scarred. In both cases,
feelings of emptiness and extreme sadness were observed. We found the physical
marks of abuse on Sofia’s body, the psychological ones in her silence and in the
long, inerasable pain of her past life. Her expectations centered on adoption or any
other life but the foster care. The gradual disintegration of Noah’s destitute family, the
adoption of his brothers, his suffering and homesickness were expressed by crying
and anger, rudeness and impatience with his classmates – these were his way of
dealing with so many losses he had experienced. On the other hand, school was
seen by the two children as a meaningful, hopeful place for becoming full-fledged
students; the interaction with others brought them satisfaction and, to some extent,
helped their development. We observed in these two students the voices and
feelings of their mates, and the impact they had in the construction of subjectivity of
Sofia and Noah; in other words, they demonstrated a heightened sense of belonging
to a social peer group and of having a proper place in school life.
Keywords: Children – Assistance in institutions. Schools. Social institutions.
Developmental psychology. Subjectivity.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Desenho grande família .......................................................................... 93
Figura 2 – Desenho família Sofia I ......................................................................... 103
Figura 3 – Desenho família Sofia II ........................................................................ 103
Figura 4 – Desenho Sofia ....................................................................................... 108
Figura 5 – Carta à professora de Sofia ................................................................... 114
Figura 6 – Família de Noah .................................................................................... 120
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Número de crianças e adolescentes por motivo de acolhimento – ES ...................................................................................................... 62
Tabela 2 – Brasil: motivos de ingresso em abrigos (Rede SAC) relacionados à pobreza ............................................................................................. 64
Tabela 3 – Caracterização das crianças e adolescentes da Casa-Lar Santa Cecília ............................................................................................. 78
Tabela 4 – Caracterização dos sujeitos da pesquisa ................................................ 80
LISTA DE SIGLAS
CDI Inventário de Depressão Infantil
Cedca Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
Ceja-ES Comissão Estadual Judiciária de Adoção do Estado do Espírito Santo
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
Conanda Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Conep Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
Febem Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor
FIA Fundo para Infância e Adolescência
Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
PNBEM Política do Bem-Estar do Menor
SAC Serviços de Ação Continuada
SEDH Secretaria Especial dos Direitos Humanos
Sinase Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Ufes Universidade Federal do Espírito Santo
Umef Unidade Municipal de Ensino Fundamental
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 15
1.1 O QUE E POR QUE ESTOU PESQUISANDO ................................................... 15
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................. 20
2.1 REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................... 20
2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO- -CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO .................................................. 34
2.2.1 As contribuições de Vigotski e Wallon na compreensão da constituição da subjetividade ................................................................................ 34
2.2.2 Bakhtin e a constituição da consciência ...................................................... 39
2.3 DISCUTINDO EXCLUSÃO SOCIAL E PRECARIZAÇÃO DA FAMÍLIA E DA INFÂNCIA NO CONTEXTO BRASILEIRO ........................................ 44
2.3.1 Uma reflexão acerca da exclusão social ...................................................... 44
2.3.2 A família e a infância como questão social no Brasil ................................. 46
2.3.3 A história política de atendimento à criança e ao adolescente no Brasil: do período colonial à década de 1980 ................................................. 51
2.4 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UMA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA ............................................... 55
2.4.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente e as instituições de acolhimento: uma medida de proteção ................................................................. 60
2.4.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Educação: educação escolar como direito público subjetivo ................................................................. 65
3 PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................ 68
3.1 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ............................................................... 70
3.2 O CENÁRIO DA PESQUISA ............................................................................... 75
3.2.1 A Casa-Lar “Santa Cecília” ............................................................................ 75
3.2.2 As crianças da Casa-Lar Santa Cecília, um recorte .................................... 77
3.2.3 O quadro de funcionários permanentes na Casa-Lar Santa Cecília .......... 80
3.2.4 A escola “Profa. Petronilha Vidigal” ............................................................. 81
4 CASA-LAR SANTA CECÍLIA: SUA ROTINA, SEUS SUJEITOS, RELAÇÕES E AFETOS ........................................................................................... 85
4.1 SUA DINÂMICA E ROTINA ................................................................................. 85
4.2 RELAÇÕES SOCIAIS, SENTIDOS, DESEJOS E AFETOS ................................ 90
5 A CRIANÇA, O ABRIGO E A ESCOLA: A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE ...................................................................................................... 99
5.1 SOFIA: O SILÊNCIO ......................................................................................... 100
5.2 NOAH: O CHORO E OS COMPORTAMENTOS INADEQUADOS ................... 115
5.3 ESTADO, FAMÍLIA, ABRIGO E CRIANÇA ....................................................... 134
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 139
7 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 143
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ............. 149
15
1 INTRODUÇÃO
1.1 O QUE E POR QUE ESTOU PESQUISANDO
O Movimento Social de Inclusão surgiu, em grande parte, do desejo e da luta de
pessoas em incluir socialmente alguns segmentos da sociedade que,
historicamente, foram marginalizados, negligenciados e invisibilizados como sujeitos
de direito nas relações sociais, bem como os pobres, os negros, as mulheres, as
crianças, os gays e os deficientes.
Na tentativa de construir conhecimento, na perspectiva de uma escola inclusiva, nos
propusemos um recorte no Movimento Social de Inclusão, focando nosso olhar nas
crianças de classes populares oriundas de uma Casa de Acolhimento Institucional,
que estão matriculadas em uma escola regular do município de Vila Velha – ES,
buscando analisar os efeitos do acolhimento institucional e da educação escolar na
condição social e subjetiva de crianças sob a tutela do Estado.
A ideia desse trabalho nasceu de uma pesquisa intitulada “Criança em idade escolar
e prisão paterna: um estudo de caso do tipo etnográfico”, realizada com crianças,
filhas de pais encarcerados, cujo objetivo era analisar a constituição da subjetividade
da criança que tinha um dos seus progenitores sob custódia do Estado. A pesquisa
consistiu na elaboração de uma monografia, como pré-requisito para obtenção do
título de Especialista em Educação Inclusiva no Curso de Pós-Graduação (Lato
Sensu) em “Infância e Educação Inclusiva” pela Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
Ao realizar essa investigação, pudemos conviver com crianças cujas expressões e
falas denotavam marcas de muito sofrimento, tristeza e dor. Por diversas vezes,
essa situação nos tocou, sobretudo por saber que aquelas crianças estavam
respaldadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, na forma da Lei,
garante uma vida com dignidade para todas as crianças. Porém, o que observamos
na prática é que nem todas as crianças se beneficiam desse Estatuto, sendo
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expropriadas de boa parte de seus direitos e alijadas de vivenciar sua infância com
dignidade.
Vários questionamentos começaram a fazer parte dos processos subjetivos
aplicados durante a realização dessa investigação, pois, no momento da pesquisa,
estava cursando a graduação de Psicologia, na Universidade Federal do Espírito
Santo, tendo oportunidade de ampliar os meus conhecimentos acerca da
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano pensada por Vigotski. A
partir dessa perspectiva, surgiram várias reflexões a respeito da constituição do
homem: Como ocorre a constituição subjetiva do ser humano a partir da coletividade
e de que forma o sujeito vai constituindo o seu “eu” nas relações tecidas na trama
social em que está inserido?
Em seu processo de desenvolvimento, o ser humano necessita da garantia dos
direitos sociais, bem como de relações saudáveis, fundadas na igualdade e no
respeito. Assim, a interação entre indivíduos embasada nessa dimensão ética pode
contribuir significativamente para que esses sujeitos criem e encontrem sentido na
vida e na história. É sob esta perspectiva que as indagações foram feitas sobre a
diferença que “nós” profissionais podemos fazer.
Simultaneamente ao trabalho de pesquisa do curso de especialização, realizei outra
pesquisa para cumprir as atividades da disciplina “Psicologia na Assistência Social”,
no curso de Psicologia1, porém, num prazo muito mais curto. Desta forma, visitei
uma instituição de abrigo para meninas, no município de Vila Velha – ES. Lá,
também pude ver de perto a complexa realidade do “abandono”, “da moral ferida”,
“dos direitos violados”. Um dos discursos dos profissionais que ali estavam era:
“Essas crianças precisam ser protagonistas de sua própria história, e nós temos que,
de alguma maneira, contribuir com isso” (fala de uma psicóloga).
As indagações da psicóloga não eram estranhas para mim. Atuo, há oito anos, como
professora do 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental, em escolas de áreas
consideradas “periféricas” da região metropolitana de Vitória, e, por muitas vezes,
assisti aos efeitos da exclusão e da segregação impostas às crianças e aos jovens
1 Refere-se ao segundo curso de graduação realizado na Universidade Federal do Espírito Santo. O curso de licenciatura em Ciências Sociais foi concluído em 1998, na Fafi.
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que ali habitam. Quantas vezes meus pensamentos foram tomados pelas
“incertezas” na minha atuação como profissional, tomados pelos encontros e
desencontros na relação com o outro, no contexto escolar.
Certamente, de todas as experiências aqui relatadas, a elaboração deste projeto de
pesquisa foi motivada, principalmente, pela história de um menino de 11 anos, Júlio2,
que frequentava a mesma sala das duas crianças que eu estava investigando
(sujeitos da pesquisa da monografia). Matriculado no 3º ano, Júlio era considerado
indisciplinado e com sérios problemas de aprendizagem. No decorrer daquele ano,
foi encaminhado para uma casa de acolhimento por causa de uma participação em
um furto no supermercado do bairro onde residia. “O que fazer com uma criança que
já escolheu outro caminho?”, questionava sua professora, angustiada, sem saber
exatamente o que fazer. Vale ressaltar que essa profissional, a última de tantas
outras professoras que passaram por essa turma, resistia ao cansaço, ao
sofrimento, procurando forças para uma atuação diferenciada na vida daquelas
crianças.
Foi a partir daí que comecei a pensar na situação das crianças que frequentaram ou
frequentam uma instituição de acolhimento e sobre os efeitos dessa condição e da
escola em suas vidas.
No Brasil, a instalação de crianças em instituições de acolhimento é reconhecida e
legitimada como medida de proteção social, preconizada pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente. No entanto, é relevante ressaltar que a colocação de crianças e
adolescentes em abrigos, ainda que provisória, só é recomendada quando estes
estão sob risco social ou moral (ECA, 2005).
No ano de 2003, a pedido da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou uma pesquisa para
levantamento de dados sobre a realidade dos abrigos que são assistidos pela rede
Serviços de Ação Continuada (SAC), no Brasil. De acordo com o estudo, dos 626
abrigos, 589 atendiam a crianças e adolescentes (cerca de 20.000). Estes
funcionavam como instrumentos de política social, ofereciam assistência à criança
2 Nome fictício utilizado também na pesquisa da monografia.
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que tinha sua sobrevivência em risco (implicações na moradia, alimentação, saúde e
educação) ou mesmo àquela que o seio familiar e/ou responsável era incapaz de
assumir a guarda e sustento dessa criança. A maioria das crianças e adolescentes
abrigados estava inserida numa instituição de educação formal. No geral, 60,8% das
crianças entre zero e seis anos frequentavam creche ou pré-escolas; e 95,1%, de
sete a 18 anos, iam à escola. Porém, registrou um elevado índice de adolescentes
analfabetos: 16,8 % dos jovens de 15 a 18 anos (SILVA, 2004).
Como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma das funções do
abrigo é garantir o direito à educação escolar das crianças e dos adolescentes. O
artigo 92, parágrafo único, estabelece que o dirigente de abrigo seja equiparado ao
guardião para todos os efeitos de direito.
Compreende-se que a educação é um direito humano e esta desempenha papel
fundamental na vida do sujeito que vive em uma sociedade letrada. De acordo com
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação escolar “[...] tem
como fim o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho” (LDBEN, Art. 2º, 1996).
É nesse âmbito que nos parece pertinente estudar os impactos do acolhimento
institucional e da educação escolar na constituição subjetiva da criança que, por
algum motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se acha sob tutela pública,
aos cuidados de uma casa de abrigo no município de Vila Velha – ES.
O que essas crianças dizem sobre a instituição de acolhimento e sua condição de
criança sob tutela pública? O que dizem sobre o que vivenciam, na escola? Como se
veem e se avaliam, no espaço escolar? Como são vistas pelos profissionais da
instituição de acolhimento e pelos colegas, e como isso afeta sua condição de
criança assistida por um programa de acolhimento institucional? Essas são algumas
das indagações às quais este estudo pretendeu discutir.
Inicialmente, este trabalho apresenta algumas pesquisas acerca da temática em
questão, seguido do referencial teórico que deu norte às análises realizadas. A
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano tem, em seu bojo, a
concepção de que todo ser humano constitui-se nas relações sociais construídas ao
19
longo da história do indivíduo e essa foi a tese que orientou o modo como foram
interpretados os casos selecionados para a pesquisa. Complementando, é feita uma
reflexão acerca da exclusão e a família e a criança como questão social no Brasil,
bem como da perspectiva do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma lei
de proteção integral à infância e à adolescência.
Na sequência, o estudo traz a metodologia utilizada para a realização deste
trabalho, a abordagem qualitativa e o estudo de caso. Pretendeu-se investigar a
constituição subjetiva dos sujeitos a partir de suas vivências, de situações típicas,
como a sua instalação provisória em uma instituição de acolhimento, denominada
Santa Cecília, bem como o cotidiano dessas crianças numa escola nomeada, por
nós, como Profa. Petronilha Vidigal.
No próximo capítulo, é apresentada a discussão dos resultados da pesquisa – um
recorte da história do abrigamento e do cotidiano escolar de Noah e Sofia, sujeitos
do estudo. Nesse espaço, pretendeu-se responder às indagações propostas:
analisar a interferência do abrigo e da escola na constituição subjetiva de crianças
sob tutela pública.
Enfim, antes das considerações finais, esta pesquisa traz uma reflexão em torno do
Estado, família, abrigo e criança, uma vez que seus sujeitos são crianças sob tutela
do Estado. O papel do Estado em relação às políticas de atendimento às crianças e
aos adolescentes foi bastante discutido durante a pesquisa.
20
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Este capítulo apresenta, inicialmente, pesquisas envolvendo a criança sob tutela
pública; em seguida, a fundamentação teórica que embasa este estudo, a
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, detendo-se,
especialmente, nas contribuições de Vigotski, Wallon e Bakhtin. Também traz uma
reflexão em torno da exclusão social, da família e da infância como questão social,
bem como um breve histórico das políticas de atendimento à infância e à
adolescência no Brasil. Por fim, discorre acerca de alguns apontamentos elencados
no Estatuto da Criança e do Adolescente no que diz respeito aos direitos
fundamentais da população infantojuvenil.
2.1 REVISÃO DE LITERATURA
Na literatura examinada, a gravidade e a dimensão das consequências sociais que
as crianças e adolescentes em situação de risco se acham têm sido reconhecidas e
investigadas, atualmente, em diferentes áreas do conhecimento. No entanto, no que
diz respeito à criança assistida por um programa de acolhimento institucional, os
estudos ainda se centram no campo da Saúde e Assistência Social. Trabalhos
envolvendo os efeitos da escolarização na constituição subjetiva das crianças, no
campo da Educação, são poucos.
Dentre os trabalhos pesquisados no campo educacional, deparamo-nos com o
estudo de Reis (2001), intitulado “Casa-abrigo e escola: um estudo exploratório”, que
procurou analisar a casa-abrigo como uma proposta de atendimento às crianças e
aos adolescentes em situação de risco, verificando, também, se ações
desencadeadas pela escola, sob a perspectiva da Lei de Diretrizes e Base da
Educação, conferem à criança as oportunidades que a Lei lhe outorga como direito.
21
Levando em consideração as particularidades das crianças abrigadas, a autora,
inicialmente, preocupou-se em abordar alguns aspectos referentes ao abandono,
entre eles, os aspectos históricos. Para isso, reportou-se a séculos anteriores, tanto
na Europa quanto no Brasil, uma vez que, por causa da colonização europeia,
algumas medidas foram implantadas aqui, como a roda dos expostos e as práticas
políticas de intervenção estatal, no início do século XX. Entre essas práticas,
destacam-se a criação do Departamento Nacional da Criança (1919), cujo objetivo
era controlar toda a assistência à infância carente, e o Código de Menores (1927),
para o controle da infância e da adolescência abandonadas e delinquentes. Tratou
também de aspectos psicológicos sobre abandono, buscando na psicanálise
respostas para a compreensão do sofrimento psíquico oriundo das práticas de
abandono. Enfatizou a importância de estudar e compreender o inconsciente da
criança, para encontrar caminhos que amenizem sua dor, como a possibilidade de
“re-programar” o inconsciente, ou seja, fazer com que a criança perceba que ela não
foi rejeitada e que é amada e respeitada.
Como a autora procura discutir o abrigo como proposta de atendimento à criança e
ao adolescente, ela dedica um capítulo inteiro aos instrumentos legais para o
atendimento à criança em situação de abandono, entre eles: a Constituição Federal;
o Estatuto da Criança e do Adolescente; a Lei Orgânica da Assistência Social; o
abrigo, segundo a Portaria 14/SAS; e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
A pesquisa de Reis (2001, p. 4), sob o prisma da teoria de Goffman, também
procurou “comprovar a existência, no interior da unidade escolar, mais precisamente
nas relações interpessoais, de formas variadas de estigmatização através de ações
e omissões”. Nas entrevistas com profissionais da escola e, majoritariamente, do
abrigo foi possível perceber que as crianças do abrigo sofrem preconceito, “[...] que
a escola tem dificuldades em lidar com o “novo”, embora se tenham passado dez
anos de Estatuto da Criança e do Adolescente” (p. 77). Salientou, também,
mudanças ocorridas no interior da escola, sobretudo, o indício da presença de
pessoas capacitadas para lidar com essa situação. Quanto aos profissionais do
abrigo, estes manifestaram sua preocupação com o preparo dos professores e,
principalmente, com a direção, no que diz respeito ao acolhimento à criança
abrigada. Enfim, a pesquisa indicou falta de interação entre a escola e o abrigo, em
22
razão das dificuldades em dividir as responsabilidades. Para Reis, a administração
do abrigo e sua equipe lutam por justiça e democracia, no entanto, se sentem
impotentes diante do Estado. Quanto ao ambiente escolar, para que se faça jus ao
que determina a LDBEN, é necessária uma mudança paradigmática na concepção
acerca da criança abrigada; em outras palavras, para se alcançar a democracia
dentro da escola, é preciso promover, além do acesso, a igualdade de condições de
acesso ao conhecimento por parte de todas as crianças.
O trabalho realizado por Reis (2001) alerta-nos sobre alguns aspectos conceituais
acerca da política de atendimento à criança e ao adolescente. Se o estudo que
pretendemos realizar tem como sujeito a criança sob tutela pública, cidadã em
desenvolvimento e de direito, os instrumentos legais podem servir como um recurso
teórico na reflexão sobre a atuação dos profissionais envolvidos no processo
educativo de crianças assistidas por programas de acolhimento, a saber, os
profissionais do abrigo e da educação.
No campo da Psicologia, envolvendo a condição psíquica da criança sob tutela
pública e sua aprendizagem escolar, encontramos a pesquisa de Zogaib (2005), que
procurou verificar os efeitos de atividades lúdicas em crianças abrigadas que
apresentavam algum quadro depressivo e queixa escolar, ou seja, “problemas de
aprendizagem”. O estudo, de caráter clínico-interventivo – sob a perspectiva da
Epistemologia Genética de Jean Piaget e Winnicot – consistiu, inicialmente, numa
avaliação psicológica dos sujeitos, cujos instrumentos utilizados foram: entrevista
semidirigida; observação participante; teste psicológico Raven (Matrizes
Progressivas Coloridas Escala Especial Revista)3; Prova operatória de Jean Piaget
(classificação, seriação e conservação); e teste psicológico Inventário de Depressão
Infantil4 (CDI), seguida de intervenção lúdica (brincadeira sensório-motora,
brincadeira simbólica e jogo de regras) e de reavaliação psicológica, utilizando os
3 Esta escala foi desenvolvida por Raven J. C. em 1947. Adaptada por Angelini et al. (1999). Trata-se
de um teste não verbal, com indicação de idade entre 5 e 11 anos. O teste é composto por três séries de doze itens, com múltiplas escolhas; o sujeito deve fazer relações de acordo com o pedido do aplicador. As três séries, de doze itens cada, estão organizadas para avaliar a cognição do sujeito, desenvolvimento mental e maturidade intelectual (ZOGAIB, 2005).
4 Adaptação do inventário de Beck (EUA), por Kovacs (1985). O objetivo do teste é mensurar e identificar sintomas depressivos na população de 7 a 17 anos. É composto por 27 itens, cada item possui 3 alternativas, sendo que o sujeito é orientado a responder à questão que melhor representa seus sentimentos nos últimos dias (ZOGAIB, 2005).
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mesmos instrumentos da primeira avaliação, para verificar possíveis alterações em
relação às estratégias lúdicas quanto ao desenvolvimento intelectual, aos sintomas
depressivos e à aprendizagem escolar. A pesquisa contou com oito crianças com,
em média, oito anos5 de idade, quatro do sexo feminino e quatro do sexo masculino,
cursando a 1ª série do Ensino Fundamental, localizadas num mesmo abrigo de um
município de grande porte do Estado de São Paulo. As crianças tinham, em média,
dois anos de abrigadas; o motivo do abrigamento estava relacionado ao abandono,
pais falecidos, pais drogadictos6, abuso sexual, maus-tratos e falta recursos
adequados ao cuidado por parte da família biológica. É importante ressaltar que a
pesquisa foi realizada no abrigo.
Na primeira avaliação psicológica, os resultados obtidos pelos participantes quanto
ao teste Raven foram: 12,5% – acima da média; 25% – intelectualmente superior; e
62,5% – intelectualmente médio. Quanto à prova operatória de Jean Piaget, 37,5%
dos participantes achavam-se no Período Operatório Concreto e 62,5%, no Período
Intuitivo Pré-Operatório. No teste de CDI, 62,5% dos participantes apresentaram
Indicativo de Transtorno Depressivo e 32,5% não apresentaram Indicativo do
Transtorno. Na distribuição por sexo, 75% do sexo feminino apresentaram indicativo
de sintoma depressivo e 25% dos meninos demonstraram indicativo do sintoma.
Esse resultado, segundo a pesquisadora, compactua com outros resultados de
pesquisa: a predominância de sintomas depressivos no sexo feminino.
Com base nos resultados da avaliação, Zogaib propôs oito sessões lúdicas. Nas
brincadeiras, os sujeitos da pesquisa experienciaram a criação de algo não
planejado por outra pessoa. As crianças perceberam, ao longo da atividade, que,
para concluí-la, tinham que chegar a um acordo.
Todas as sessões começavam e terminavam com a roda de conversa, cujo objetivo
era ampliar a consciência de si, do outro e do grupo.
5 De acordo com teoria de Jean Piaget, as crianças deveriam estar no Período Operatório Concreto,
cujo estado cognitivo permite à criança chegar a conclusões lógicas. Para avaliar se o intelecto da criança pesquisada corresponde a sua idade cronológica, utilizaram-se provas de seriação, classificação e conservação (ZOGAIB, 2005).
6 A palavra foi mantida na íntegra, conforme citada pela pesquisadora.
24
Na segunda avaliação, depois da intervenção lúdica, os resultados obtidos pelos
participantes no teste de Raven corresponderam a: 12,5% – acima da média
intelectual; 25% – intelectualmente superior; e 62,5% – intelectualmente médio. Nas
provas operatórias, 100% dos participantes responderam de forma adequada para
sua idade cronológica nas provas de classificação e conservação; na prova de
seriação, 75% responderam adequadamente e 25%, inadequadamente. No teste de
Inventário de Depressão Infantil, 12,5% apresentaram indicativo de transtorno
depressivo e 87,5% não o apresentaram.
Comparando os resultados da avaliação psicológica antes e depois da intervenção
lúdica, Zogaib concluiu que os resultados no teste Raven permaneceram, mas nas
provas operatórias de Jean Piaget houve uma melhora no resultado; ou seja, o
número de crianças no operatório concreto aumentou, por causa da melhora na
capacidade de construir operações lógicas, ordená-las, seriá-las e acompanhar suas
transformações aditivas ou multiplicativas. Quanto ao teste CDI, houve um
decréscimo no indicativo de transtorno da depressão; dos oito participantes, apenas
um apresentou esse quadro.
Para Zogaib (2005), as experiências lúdicas influenciaram positivamente o resultado
escolar das crianças, assim como propiciou a elas uma autoavaliação mais positiva,
transformando-as em sujeitos mais ágeis.
O trabalho de Zogaib (2005) consistiu numa análise clínica de intervenção lúdica,
cujo instrumento metodológico tinha como objetivo avaliar a influência da ludicidade
na dimensão cognitiva, psíquica e escolar das crianças abrigadas. Segundo nossa
interpretação, o lúdico, como método, constitui-se em rico instrumento, quando se
trata de pesquisa com crianças. Se nossa intenção, com a elaboração desta
dissertação, é analisar os impactos da escolarização e do acolhimento institucional
na condição subjetiva de crianças sob tutela pública, entendemos que a brincadeira,
como espaço criativo, é um caminho que leva a criança à representação, facilitando
ao pesquisador “adentrar” no imaginário infantil. Ademais, as crianças expressam
seu mundo particular e subjetivo por intermédio das variadas formas de
comunicação, entre elas, o conto, a brincadeira, o jogo, a imitação.
25
Ainda no campo saúde, mas na área de enfermagem, Montes (2006, p. 30), em sua
dissertação de mestrado, procurou “[...] apreender o significado da experiência de
abrigo para crianças em idade escolar e identificar referências sobre sua
autoimagem em seus relatos”. Pesquisou quatorze crianças entre seis e doze anos,
que, naquele momento, viviam em situação de abrigo, na cidade de São Paulo. Com
o intuito de apreender a realidade subjetiva dos sujeitos da pesquisa, por
conseguinte, numa abordagem psicossocial – de cunho psicanalítico – a escolha do
método tinha que contemplar as opiniões, atitudes e crenças do grupo estudado; em
razão disso, seu trabalho pautou-se numa pesquisa qualitativa descritiva, cujo
principal instrumento foi a entrevista.
A categorização dos dados possibilitou identificar que o significado da experiência
de abrigo está associado ao cotidiano, às relações com a família e com os
cuidadores. Nos relatos das crianças, foi possível perceber que não consideram o
abrigo como casa, mas apenas como um espaço formativo e que atende apenas às
necessidades básicas e de proteção e não as suas necessidades afetivas,
sobretudo no que diz respeito à figura materna. As crianças, nas entrevistas,
relataram sobre o afastamento da família, a expectativa de retorno e visita de
familiares; segundo as interpretações da pesquisadora, as crianças colocam a
família como centro do afeto e de suas preocupações, o que interferia no significado
da experiência de abrigo. Nem mesmo com atuação dos cuidadores muitas crianças
conseguiam estabelecer relações afetivas, haja vista que, em alguns relatos,
apareceram formas inadequadas por parte desses profissionais no trato com a
criança, consideradas, por Montes, abusivas.
Na tentativa de compreender o porquê dos sentimentos de resistência ao abrigo por
parte das crianças, Montes parte da definição de símbolo na Psicologia descrita por
Rabinovich. Para a autora, a simbolização pode ser enfocada cognitivamente
(quando o símbolo representa algo ausente) e psicodinamicamente (quando os
símbolos são produzidos no campo afetivo e sinalizam elementos psíquicos). A casa
abarca os dois tipos de simbolização. Cognitiva, quando relacionada à maternagem,
e psicodinâmica, porque substitui o útero, no que diz respeito à proteção. E se a
criança simboliza família como um lugar de cuidado e o faz relacionando-a à figura
materna, conclui-se que o sentimento de proteção consolida-se nos vínculos
26
afetivos, daí, segundo Montes, os abrigados não perceberem o abrigo como casa,
mas como um colégio (termo utilizado por um número significativo de crianças).
Montes (2006), ao longo da discussão, menciona várias vezes o Estatuto da Criança
e do Adolescente, sobretudo, a importância da preservação de vínculos familiares. A
pesquisa achou crianças que foram separadas de irmãos, pois foram encaminhadas
para abrigos diferentes, mesmo com a determinação do ECA sobre o não
desmembramento dos grupos de irmãos. Esse estudo atenta-nos para as
irregularidades que ocorrem no dia a dia da criança assistida por uma instituição de
acolhimento, o que implica mais determinação, por parte do Estado e da sociedade,
para tratar com mais empenho e dedicação o que define o ECA.
Quanto às referências sobre a autoimagem, os resultados da pesquisa estão
associados à trajetória de vida, às interações sociais, à imagem corporal e ao
autoconceito. Nos relatos das crianças, os motivos pregressos que favoreceram o
abrigamento estão relacionados aos aspectos: miserabilidade, ausência da mãe –
nos relatos aparece a morte da genitora –, negligência e violência. Para a autora,
sob a perspectiva de Bowby “nenhuma forma de comportamento é acompanhada
por sentimento mais forte do que o comportamento de apego” (MONTES, 2006, p.
77). Na presença da figura do apego ocorre o sentimento de segurança; uma
ameaça ou perda desta figura pode gerar ansiedade, raiva, inclusive, despertar
cólera, assim como vínculos que são caracterizados por negligência dificultam o
aparecimento de pensamentos positivos em relação ao mundo e a si. Portanto, o
apego torna-se imprescindível para uma autoconfiança e a autoimagem positiva.
Sob a perspectiva de Briggs, Montes (2006) compreende que a criança mensura seu
valor pela forma como é tratada. Portanto, os maus-tratos podem gerar a
culpabilização na criança, afetando negativamente sua autoimagem.
Na compreensão de Montes (2006), o afastamento da criança do seu lar originário,
independentemente do motivo, não anula a atenção do poder público em buscar
alternativas que assegurem o convívio familiar e comunitário. O cumprimento do
ECA no âmbito institucional e a agilização nos processos de adoção, por exemplo,
deveriam ser apreciados com mais seriedade, visando à integridade física e psíquica
da criança. Ademais, muitas crianças permanecem por anos na instituição.
27
Nos relatos das crianças, também foi possível perceber que a visão do amigo influi
na sua imagem positivamente, quando os amigos emitem opiniões positivas a seu
respeito; e contrariamente, quando as opiniões são negativas. Para a criança em
idade escolar, outras relações sociais, além da família, passam a ser significativas,
portanto, as crianças são mais suscetíveis às pressões sociais e culturais, fato que
também influencia na imagem corporal, o que significa dizer que as características
físicas desvalorizadas pelo grupo afetam negativamente a forma como elas se
veem.
A visão do outro também influencia no autoconceito. Brincar, fazer amigos, atender
às expectativas sociais, cooperar nas tarefas, em outras palavras, “todas as relações
que demandam o convívio com o outro são importantes na construção da
autoimagem” (MONTES, 2006, p. 81). Foi possível perceber, nos relatos das
crianças, que as relações de amizade influem positivamente no seu autoconceito.
Na pesquisa, ficou evidente que as crianças têm conhecimento de valores morais,
como solidariedade, compaixão, obediência, e das ações e comportamentos
aguardados delas, e se avaliam como boas ou ruins, à medida que atendem a essas
expectativas. Além disso, sob a perspectiva de Erikson, ou seja, de que a sociedade
almeja produtividade em relação aos seus membros, a criança procura auxiliar os
adultos nas realizações das atividades, com o intuito de obter aprovação social.
Portanto, segundo Montes, a experiência de abrigo interfere na construção da
autoimagem, as experiências vividas influenciam na sua autoimagem.
Se as experiências culturais da vida cotidiana no interior da instituição de
acolhimento interferem na construção da autoimagem dos abrigados, para nós
torna-se pertinente refletir sobre o que as crianças têm a dizer sobre esse espaço. A
concretização do trabalho de Montes (2006) deu-se por essa via: a escuta.
Vislumbrar e dar credibilidade ao que a criança diz são os primeiros passos para
compreendê-la no seu processo de desenvolvimento.
De fundamental importância, segundo as apreensões feitas, é o trabalho etnográfico
de Prestes (2010), intitulado “Ao abrigo da família: emoções, cotidiano e relações em
instituições de abrigamento de crianças e adolescentes em situação de risco familiar
e social”. Por dezoito meses, envolvida com atividades ligadas diretamente ao
campo, a autora teve contato com três tipos distintos de experiência: num primeiro
28
momento, com adultos egressos da antiga Fundação de Bem-Estar do Menor
(Febem), atualmente denominada Fundação Casa. Num segundo momento, o
trabalho foi realizado em duas instituições localizadas na região metropolitana de
Curitiba, criadas depois da publicação do ECA, cuja gestão pertence a entidades
privadas; são elas: Casa-Lar, mantida por um Hospital; e a Fundação, mantida por
uma empresa estrangeira.
Na captura das múltiplas vozes dos abrigados e dos egressos da Febem, a
pesquisadora analisou as experiências, vidas e afetividades imbricadas no interior
das instituições de acolhimento. No início, a pesquisa tinha como temática a
condição estigmatizante de quem passa por um abrigo. Segundo o referencial
teórico utilizado pela pesquisadora, Goffman, a passagem por um ambiente
“anormal” e o motivo dessa passagem que, na maioria das vezes, está relacionado
com desajustamentos, acabam transformando esses sujeitos em seres diferentes e
incompletos. Logo, a autora percebeu que seu trabalho deveria contemplar outra
temática, inexplorada pelo campo antropológico, o “caso da não adoção”; o
abrigamento que, por uma medida legal, é definida como “provisória”, torna-se, na
prática, na vida de muitas crianças e adolescentes, uma medida definitiva, ou seja,
os abrigados permanecem em situação de abrigo até alcançar maioridade, na voz
da pesquisadora: “Criados pelo Estado”.
Observamos no trabalho de Prestes (2010) uma ênfase metodológica na pesquisa
com criança: ao realizar seu trabalho, faz “com” as crianças e não “sobre” as
crianças, ou seja, na metodologia utilizada, ela privilegia a fala da criança e do
adolescente nas suas emoções, desabafos e também no silêncio. Essa nova visão
oriunda dos estudos no campo da Sociologia da Infância justifica-se pelo fato de que
na interação com os adultos e outras crianças há compartilhamento, negociação e
criação de culturas; por conseguinte, faz-se necessária uma metodologia que dê
conta dessa compreensão.
De acordo com a pesquisa levantada por Prestes, no Brasil, a maior parte dos
abrigados é do sexo masculino (58,5%), com idade variando entre sete e doze anos
(60%), é classificada como negro ou pardo (63%), e tem um ou mais irmãos,
29
características que fogem ao perfil desejado pelos adotantes – 90% deles têm
preferência por bebês brancos, saudáveis e sem irmãos7.
Nas duas instituições pesquisadas, a idade era muito variada – de dois a 18 anos
completos – e ambas atendiam a meninas e meninos; entretanto, na Casa-Lar, a
idade máxima para abrigados era de doze anos e, para a Fundação, dezoito anos. A
Fundação encarava a adoção como uma possibilidade quase improvável. Segundo
as interpretações de Prestes, isso justifica a grande quantidade de cursos e
atividades extracurriculares ali realizados com o intuito de facilitar a inserção social
desses sujeitos depois da sua saída da instituição, quando alcançassem 18 anos,
haja vista que, majoritariamente, entre os internos da Fundação, o motivo da
inserção no abrigo era a pobreza. É interessante observar, na pesquisa, que os
abrigados somente se dirigem ao abrigo como “Fundação” ou “Casa-Lar” e nunca
como “minha casa”, ainda que, segundo a concepção dos cuidadores, eles fossem
cuidados como se estivessem com sua família originária.
O acolhimento institucional, uma medida de segurança e preservação da dignidade
da infância e da adolescência afastada do lar originário, na perspectiva de Prestes, é
eminentemente um lugar de espera: “[...] espera-se pela saída, espera-se pela
definição da situação do abrigado; espera-se “voltar para casa”, ou ter uma nova
família” (PRESTES, 2010, p. 134). Essa espera, que entrelaça memórias pregressas
e as construídas no abrigo a partir de um novo conjunto de relações, desencadeia
afetos e desafetos, resistências e relutâncias na elaboração e internalização de uma
“nova ordem de coisas imposta por uma força externa representada pela intervenção
estatal no interior da família” (PRESTES, 2010, p. 134).
Os abrigos procuram estruturar-se de maneira mais próxima do ambiente familiar,
idealizados a partir dos estudos psicológicos que consideram que a dinâmica familiar
desempenha papel fundamental na identidade dos sujeitos. Prestes detectou novos
idiomas de parentescos nos abrigos, sobretudo na Casa-Lar: a mãe-social, tias,
madrinhas, irmãos em Jesus, entre outros. Na Fundação, o funcionário mais próximo
da criança era chamado de monitor, mãe era referência somente para mãe
biológica. Ainda que o objetivo fosse aproximar estruturalmente o abrigo ao
7 MENDONÇA, Martha. Os meninos que ninguém pode adotar. Revista Época, 28 de junho de 2008.
30
ambiente familiar, esforçando-se, por exemplo, em manter os vínculos entre irmãos,
Prestes encontrou, em ambos os abrigos, irmãos que foram instalados em
instituições diferentes. No caso da Fundação, o espaço físico compreendia cinco
casas e, por questão logística, alguns irmãos moravam em casas separadas. Um
dado interessante levantado por Prestes com relação à germanidade foi que, no
discurso cotidiano dos abrigados, chamar outra mulher de mãe é muito mais fácil do
que aceitar outra criança, não consanguínea, como irmão. Como sua pesquisa
também foi realizada com egressos da Febem, foi possível perceber o quanto é
importante para eles a manutenção dos vínculos entre irmãos. Para Prestes, seus
resultados contrariam algumas teorias que defendem que vínculos entre mães e
filhos seriam mais fortes, dentre os vínculos parentais.
Um capítulo inteiro de sua dissertação8 foi dedicado à temática “parentesco e
afetividade”. Nas palavras de Prestes: “[...] a Instituição parece ser um acelerador de
relações, como se verá, com seu caudal capaz tanto de gerar afetos profundos
quanto drásticas rugas” (PRESTES, 2010, p. 108). Ademais, o grupo que vai se
constituindo ao longo da história do abrigo não ocorre por vontade dos seus
membros, mas por força de uma decisão exterior. Na pesquisa, as crianças e
adolescentes mencionam sobre sua família de origem, geralmente, comentários
conjugados no pretérito e carregados de saudades. Também trazem um rememorar
da perda de seus bens e do relacionamento familiar que aparentam,
nostalgicamente, ser melhor que o do abrigo. Prestes também se deparou com
crianças e adolescentes com tantos anos de abrigados, que os comentários se
restringiram às relações construídas no abrigo. Um fato interessante é que os
abrigados, não com frequência, comentavam sobre seus lares de origem, mas
nunca o motivo do afastamento.
Se o objetivo é aproximar a estrutura de um abrigo à de uma família, o abrigo
consistiria em um ajuntamento familiar? Esta reflexão levantada por Prestes é
pertinente, dada a idealização de família demonstrada nos trabalhos escolares: pai,
mãe e filhos. Para Prestes, o que parece evidente “[...] é que a Instituição reúne
elementos característicos que, efetivamente, sinalizam para a constituição de um
8 Maior capítulo, com 30 páginas.
31
parentesco por afinidade, mas, por outro lado, outros detalhes de sua estrutura o
afastam na mesma medida de ser assim visualizado” (PRESTES, 2010, p. 138).
Não raro, em seu trabalho, Prestes dialoga com Foucault ao trazer a organização
estrutural dentro dos abrigos. Na Fundação, mais do que na Casa-Lar, existe uma
ordem e ela tende a ser estabelecida; à gestora cabe a centralização da
administração, assim como da autoridade. Na Casa-Lar, os pais sociais representam
a autoridade. Em ambos os espaços, os abrigados devem obediência aos adultos, e
“não têm querer”, estão numa condição inferior, em que pouco se pode falar em
“hierarquia”. A pesquisadora ressalta a superabundância de adultos a quem
obedecer. Na Fundação, havia tanto atividades de premiação quanto de punição,
haja vista que funcionavam como mecanismos de controle. Além disso, na casa,
pertences do abrigo, como utensílios domésticos e mobília pertenciam à instituição.
Nos relatos dos abrigados, Prestes nota o sentimento de perda dos objetos pessoais
deixados para trás, em decorrência do próprio contexto de abrigamento. Segundo a
pesquisadora, sob a perspectiva de Gofmann, esse processo é denominado
“mortificação do eu”, no qual, rápido ou lentamente, o indivíduo perderia a
concepção de si, antes mesmo da institucionalização, por causa de uma inserção de
outra rotina em que pouco pode opinar e, mesmo pertencendo a ela, essa
integração não permite sua individualidade. A instituição não pode oferecer outra
coisa a não ser a coletividade. A autora observou a escassez de objetos pessoais.
Como sujeito histórico e social, a criança tem sua visão de mundo, seus
sentimentos, emoções, valores, provenientes de um conjunto de experiências
vivenciado em diferentes espaços sociais. É neste terreno das experiências vividas
que este sujeito produz sua subjetividade. Prestes traz, no bojo do seu trabalho, as
experiências vividas de um grupo de crianças abrigadas e seus egressos; faz um
recorte das práticas culturais desenvolvidas dentro do abrigo e como isso afeta a
dimensão subjetiva desses sujeitos. Frente às considerações feitas pela
pesquisadora, não há possibilidade de compreender a constituição subjetiva de uma
criança sem levar em conta os significados das trocas entre as crianças e os outros
e as crianças e as instituições nas quais estão inseridas.
Do que foi exposto até aqui, conclui-se que as pesquisas em relação à temática
“institucionalização da criança”, predominantemente, são realizadas no campo da
32
saúde, sobretudo no campo da Psicologia, mas nota-se, no Brasil, um interesse por
parte de outras ciências nas pesquisas envolvendo a infância. Prestes (2010) é um
exemplo de que as Ciências Sociais e Humanas estão investindo nessa empreitada
e, melhor, sinalizando que as pesquisas nesse campo podem contribuir de forma
significativa na elaboração de políticas públicas no atendimento à criança e ao
adolescente. Não queremos com isso afirmar que há um esgotamento nas
pesquisas no campo da saúde, pelo contrário, elas devem continuar e alcançar
outras áreas para além da perspectiva psicológica. Compactuando com Montes
(2006), que realizou sua pesquisa no contexto da enfermagem, se faz necessário
sensibilizar os profissionais da saúde no que diz respeito à atenção à criança em
situação de acolhimento institucional.
De modo geral, o esforço teórico empreendido nos trabalhos acima, exceto o de
Prestes (2010), na compreensão do sujeito cognitivo, toma como base a
Epistemologia Genética de Jean Piaget, sobretudo no trabalho de Zogaib (2006),
que procura avaliar o estágio em que a criança se acha, cujo instrumento utilizado,
segundo a abordagem teórica, torna-se indispensável na compreensão dos
processos e das características que se vão constituindo ao longo do
desenvolvimento da criança. Na concepção piagetiana, a evolução dos estágios
representa um processo contínuo de ampliação das estruturas cognitivas, portanto,
há uma valorização das funções do sujeito na elaboração do conhecimento ao focar
a dimensão maturacional.
O que se propõe com esta dissertação é trilhar outros caminhos teórico-
-metodológicos na compreensão sobre a criança na instituição de acolhimento e na
escola, isto porque elegemos como arcabouço teórico a Perspectiva Histórico-
Cultural do Desenvolvimento Humano de S. Lev. Vigotski, Henri Wallon e Mikhail
Bakhtin. Esse marco teórico, diferentemente da abordagem de Jean Piaget, a
Epistemologia Genética, focaliza o papel da interação social ao longo do
desenvolvimento do sujeito, pois, para Vigotski (2000, p. 4), “por trás de todas as
funções superiores e suas relações estão relações geneticamente sociais, relações
reais das pessoas”.
Outro aspecto que nos chama atenção é a produção fundamentada na teoria
psicanalítica, na explicação dos elementos referentes ao psiquismo, cujos autores
33
citados compreendem: Aberastury, Freud, Winnicot, Erikson e Bowlby. O núcleo
teórico da Psicanálise, independente da vertente, é o inconsciente, nele se registram
as experiências traumáticas do indivíduo, inacessíveis à consciência. No transcorrer
do seu trabalho, Reis (2001) discorre sobre suas frustrações em compreender
melhor os efeitos do acolhimento escolar na vida da criança, pois, para ela, o acesso
ao conteúdo inconsciente só é possível com a intervenção de um psicanalista. A
partir do ponto de vista da pesquisadora, é possível depreender que a investigação
acadêmica, de cunho psicanalítico, repousa sobre o inconsciente e este é de difícil
análise, dependendo, inclusive, de formação para decifrá-lo.
Não é nossa intenção, neste trabalho, discutir as contradições e divergências entre
os referenciais teóricos acima citados e o escolhido para a realização deste trabalho;
no entanto, a tese que direciona a organização conceitual nesta dissertação – que
tem como objetivo analisar as interferências de uma instituição de acolhida e da
educação escolar na condição subjetiva da criança abrigada – impele-nos a superar
concepções deterministas pautadas no subjetivismo abstrato e inatistas da
constituição do sujeito. Essa superação deve ocorrer na reflexão do indivíduo na sua
totalidade, articulando dialeticamente homem, natureza e sociedade.
Nota-se, também, a emergência da questão da criança, no Brasil. O conhecimento
da história política e social dessa população do período colonial até a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente contribui para a compreensão do significado
social da luta em prol dos direitos desse grupo.
Ao longo do percurso efetivado na revisão de literatura, ficou evidente a necessidade
de continuidade e persistência nos estudos em relação à criança sob a tutela do
Estado, assim como a necessidade de afinar as metodologias de pesquisa feitas
com crianças. Além disso, as reflexões que se pretendem fazer com a realização
deste trabalho, segundo nossas interpretações, representam um desafio, uma vez
que, no Brasil, pesquisas envolvendo esta temática no campo da Educação são
escassas.
Na sequência, apresentamos o arcabouço teórico escolhido para a leitura do objeto
de pesquisa deste trabalho, a Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento
Humano.
34
2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-
-CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
2.2.1 As contribuições de Vigotski e Wallon na compreensão da
constituição da subjetividade
A Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano tem em L. S. Vigotski9
seu principal expoente, embora inscrita na ordem da incompletude. Sua obra teve
uma finalidade bastante clara, a de construir uma nova Psicologia enraizada no
materialismo histórico-dialético de K. Marx e F. Engels.
Vigotski fez uma profunda análise das correntes psicológicas do início do século XX
e as colocou numa situação completamente paradoxal. Assim, se uma corrente
psicológica naturalista limitava-se aos estudos dos processos elementares
sensoriais e aos reflexos, ignorando as atividades mais complexas da consciência,
por outro lado, as escolas psicológicas de tendência idealista acreditavam numa vida
psíquica transcendental, e esta não poderia ser objeto de estudo da ciência objetiva.
Os naturalistas e os idealistas haviam artificialmente desmembrado a Psicologia.
Era, portanto, meta de Vigotski e seus colaboradores10 criarem uma nova
compreensão psicológica que sistematizasse essas maneiras conflitantes de estudo
do homem (VIGOTSKI; LURIA; LEONTIEV, 2012).
Ao mesmo tempo que Vigotski (2007) tecia críticas às correntes psicológicas de sua
época, buscava superar o antagonismo instalado na Psicologia humana, aplicando
os princípios teóricos e metodológicos do materialismo dialético do marxismo nos
estudos psicológicos. Seus objetivos consistiam principalmente em:
9 L. S. Vygotsky – sendo o sobrenome também transliterado como Vigotski (forma mais utilizada
neste trabalho), Vygotski ou Vygotsky – nasceu em 1896, em Orsha, Bielo-Rússia, e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934. Formou-se em Direito e Filologia. Iniciou sua carreira como psicólogo depois da Revolução Russa de 1917. Trabalhou em importantes Departamentos de pesquisa e Universidades em Moscou. A morte prematura de Vigotski interrompeu uma carreira brilhante, mas deixou uma rica contribuição para os estudos em Psicologia e Educação.
10 Os principais colaboradores de Vigotski foram A. R. Lúria e A. N. Leontiev.
35
caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se formaram ao longo da história humana e como se desenvolvem durante a vida do indivíduo (VIGOTSKI, 2007, p. 3).
Na perspectiva marxista e engeliana, o pressuposto primeiro de toda a história
humana é a existência de indivíduos concretos. Na luta pela sobrevivência, os
homens se organizam em torno do trabalho para agir na natureza e transformá-la
segundo as suas necessidades. Mesmo fazendo parte da natureza, o homem se
distancia dela à medida que é capaz de modificá-la conscientemente para atender a
seus interesses. O trabalho humano, perpassado pela invenção e uso de
instrumentos, permite ao homem transformar a natureza e, ao fazê-lo, transforma a
si mesmo. A história do homem é a história dessa transformação, a qual exprime a
passagem da ordem da natureza à ordem da cultura (PINO, 2000; VIGOTSKI,
2007).
Sendo assim, na Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, é o
processo de apropriação da cultura e das experiências historicamente acumuladas
que permite ao indivíduo a possibilidade de emergir como homem. A emergência do
homem como ser humano é, então, resultado da transposição de um ser biológico
para um ser cultural. É essencialmente da apropriação dos modos de funcionamento
da cultura que derivam as possibilidades de constituição e de desenvolvimento dos
indivíduos. Nas palavras de Vigotski, “[...] a internalização das atividades
socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto
característico da psicologia humana” (2007, p. 58).
Influenciado por Marx e Engels, Vigotski afirma que a gênese dos processos
psicológicos tipicamente humanos deveria ser achada nas relações sociais que os
indivíduos mantêm com o mundo exterior. No entanto, para este autor, o homem não
é só produto do meio, mas participa ativamente na criação deste meio (VIGOTSKI;
LURIA; LEONTIEV, 2012).
Vigotski (2008), ao introduzir as relações sociais na compreensão da gênese do
psiquismo humano, aponta caminhos para a superação da dicotomia fundamentada
na oposição social x individual. Para o autor, há uma relação dialética na dimensão
social e individual e não de oposição, uma vez que a ação do indivíduo é
36
considerada a partir da ação entre indivíduos, portanto, o psicológico só pode ser
compreendido no plano social. Neste sentido, a Perspectiva Histórico-Cultural do
Desenvolvimento Humano compreende
[...] um sistema explicativo do psicológico que parte do social para o sujeito, sem tirar desse último o caráter de ativo e constituinte, que analisa o psicológico como um fenômeno particular que só é compreensível quando analisado na sua condição social, mas sem se reduzir a ela (MOLON, 2009, p. 11).
Conforme ressalta Góes (1991, p. 19), acerca da perspectiva vigotskiana, “[...] vale
enfatizar, o plano intersubjetivo não é o plano do “outro”, mas o da relação do sujeito
com o outro”. Desse modo, o plano intrassubjetivo não é uma cópia do mundo
externo para o plano interior, mas é constituído numa interação constante entre
sujeitos, processo que ocorre dialeticamente pela mediação social.
Mas, como compreender a conversão das relações sociais em funções psicológicas
superiores, ou seja, em processos psicológicos mais complexos, tais como: memória
voluntária, atenção voluntária, capacidade de planejamento, imaginação,
pensamento verbal; enfim, o modo psicológico tipicamente humano? Vigotski aponta
a dimensão sígnica – instrumentos psicológicos que auxiliam as funções
psicológicas superiores, como a linguagem, as obras de arte, a escrita, as formas
numéricas, por fim, todo gênero de signos convencionais – como elemento mediador
nas interações sociais. A partir das relações que os indivíduos estabelecem entre si,
pela linguagem, portanto, pela mediação semiótica é que ocorre a internalização dos
modos de funcionamento psíquico.
Em outras palavras, os significados que os outros atribuem às palavras e ações das
crianças são internalizados por elas e esses passam a regular o plano intrapsíquico.
Pode-se afirmar que o acesso ao universo da significação decorre,
necessariamente, por uma dupla mediação: a dos signos e do outro, que detêm a
significação (PINO, 2005).
O exemplo de Vigotski (2007, p. 56) sobre o gesto de apontar, mostra a participação
do outro e do signo na constituição psíquica:
[...] A criança tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar [...]. A mãe vem em
37
ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. [...] A tentativa malsucedida da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa. Consequentemente, o significado primário daquele movimento malsucedido de pegar é estabelecido por outros. Somente mais tarde, quando a criança pode associar o seu movimento à situação objetiva como um todo, é que ela, de fato, começa a compreender esse movimento como um gesto de apontar. Nesse momento, ocorre uma mudança naquela função do movimento: de um movimento orientado pelo objeto, torna-se um movimento dirigido para uma outra pessoa, um meio de se estabelecer relações. O movimento de pegar transforma-se no ato de apontar. [...] que podemos chamar de um verdadeiro gesto. De fato, ele só se torna gesto verdadeiro após manifestar objetivamente para outros todas as funções do apontar, e ser entendido também pelos outros como tal gesto. Suas funções e significado são criados, a princípio, por uma situação objetiva, e depois pelas pessoas que circundam a criança.
Observa-se que o movimento malsucedido da criança em tentar pegar o objeto tem
um significado para o adulto; em outras palavras, o movimento é interpretado como
um gesto de apontar, embora esse movimento, para a criança, inicialmente, não
represente um gesto. No fim, o significado que o adulto atribui ao movimento
converte-se em signo para a criança. É justamente em função da interpretação do
adulto que a criança chega ao efeito desejado, não de forma direta, mas pela
mediação do outro. Na análise do “movimento de apontar”, Vigotski (2007, p. 57)
conclui:
Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente [...].
Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológico), e depois, no interior da criança (intrapsicológico) [...].
A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento [...].
Portanto, o processo de conversão, e que não pode ser compreendido como algo
que se interpõe, é o processo de constituição dos sujeitos na dimensão da
intersubjetividade. Entendido na totalidade da teoria de Vigotski, esse processo
denota o movimento de transformação, no qual o transformado passa a ser algo
diferente sem recusar o que foi, e esse movimento, na sua constituição, parte do
social para o indivíduo (MOLON, 2009).
38
Ainda no que diz respeito à evolução psicológica do sujeito, nota-se em Wallon11,
também teórico que desenvolve seus estudos orientado pela Perspectiva Histórico-
Cultural do Desenvolvimento Humano, o reconhecimento do outro ou do socius
como elemento essencial na constituição do eu.
Os primórdios da consciência, na concepção walloniana, são confusos e nebulosos,
uma massa difusa na qual se misturam o próprio sujeito e a realidade exterior. O
processo interativo entre o bebê e o adulto, obscuro para o primeiro, cede
progressivamente, pela influência do meio e das interações sociais, à diferenciação
entre o eu e o outro, em outras palavras, o eu e o não eu. Portanto, para este
teórico, o desenvolvimento da pessoa caminha no sentido da socialização à
individualização.
Para Wallon (1975), esse processo de individualização compreende um processo
dialético constante de identificação e de oposição em relação ao outro,
configurando-se numa alternância, confronto e superação. Entretanto, no processo
de constituição do eu, Wallon (1975) afirma que o socius é um parceiro eterno do eu
na vida psíquica. O outro, “normalmente reduzido, inaparente, contido e como que
negado pela vontade de dominação e de integridade completa que acompanha o eu”
(WALLON, 1975, p. 159), é parte inexorável da constituição do eu.
Para Wallon (1975), a constituição do sujeito implica uma troca incessante com o
meio em que vive, pois suas atitudes são complementares às do meio, tanto quanto
das disposições individuais e pelo lugar e papel que ocupa no grupo social. Deste
modo, o indivíduo deve ser compreendido a partir do meio do qual é parte
constitutiva e no qual, ao mesmo tempo, se constitui.
Considerando as ideias desses dois autores sobre a constituição do sujeito, numa
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, só podemos
compreender a individualidade e/ou singularidade como construção social. O
11 Henri Wallon (1979-1962) é um dos grandes fundadores da psicologia da infância em língua
francesa. Formou-se pela École Normale Supérieure, professor de Filosofia e doutor em medicina. Psiquiatra infantil, ele atendeu a crianças consideradas anormais, difíceis, entre outras. Dirigiu o Laboratório de Psicobiologia da Criança que fundou, em 1922. Foi membro da Comissão de Reforma de Ensino (1944-1947).
39
indivíduo, para esses autores, é o sujeito interativo, isto é, um indivíduo que é
constituído na e pela interação com os outros, numa relação dialética.
Na teoria de Vigotski, a constituição do sujeito incorpora o papel do outro por meio
da mediação semiótica, sobretudo pela linguagem, portanto, pela mediação sígnica.
2.2.2 Bakhtin e a constituição da consciência
Sendo o interesse deste trabalho discutir a dimensão subjetiva de crianças em
situação de abrigo, em contexto escolar, tendo como caminho a linguagem, fomos
impelidos a somar a esta reflexão o pensamento de Mikhail Bakhtin12.
Assim como Vigotski, Bakhtin (2012) também procura superar dicotomias instaladas
no seu campo de estudo, ou seja, nas teorias linguísticas. O pensador teceu críticas
às duas grandes correntes linguísticas, denominadas por ele de objetivismo
abstrato, cujo foco é a linguagem como um sistema abstrato de forma, e o
subjetivismo idealista, a língua como um ato criativo, regido pela psicologia
individual. Segundo Bakhtin, essas correntes consistiam um obstáculo à
compreensão da natureza real da linguagem como fenômeno ideológico. No esforço
de problematizar as perspectivas objetivistas e subjetivistas, Bakhtin discorre sobre
o verdadeiro cerne da realidade linguística:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico da sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 2012, p. 127).
A enunciação compreendida como um fenômeno dialógico é de evolução
ininterrupta. Não há enunciado isolado, todo enunciado pressupõe aqueles que o
precederam e todos os que virão depois. “A elaboração estilística da enunciação é
12 M. Bakhtin nasceu em 1895, em Oriol. Estudou na Universidade de Odessa, depois na de São
Petersburgo, de onde saiu diplomado em História e Filologia, em 1918. Ocupou, na sua história, diversos cargos de ensino. Pertenceu a círculos de intelectuais e de artistas.
40
de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise
a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social” (BAKHTIN, 2012, p.
126) e só pode ser compreendido no interior dessa cadeia.
Se a enunciação é de natureza social, em que medida a linguagem determina o
psiquismo, a consciência? A resposta que Bakhtin (2012) apresenta a essa questão
surge de uma perspectiva semiológica, na qual o signo, a palavra, como fruto social
tem uma função constituidora e organizadora do psiquismo.
O signo, na concepção bakhtiniana, é ideológico e este não consiste apenas em um
reflexo da realidade, mas também a refrata. “Cada campo de criatividade ideológica
tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua
própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida
social” (BAKHTIN, 2012, p. 33). Assim, toda produção ideológica é constituída por
signos, isto é, possui um valor semiótico. Desse modo, para Bakhtin, o que
fundamenta a consciência não é um processo fisiológico, do sistema nervoso, mas
sim, sociológico. Ela se constitui nas relações sociais, via linguagem. A matéria do
psiquismo, portanto, é semiótica, sua realidade é a do signo e este é constituído
socialmente. “A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso das relações sociais” (BAKHTIN, 2012, p. 36).
Portanto, na concepção bakhtniana, o signo emerge na interação entre indivíduos,
engendrando, assim, uma cadeia ideológica. Neste aspecto, a consciência individual
nada pode explicar, no entanto, pode ser explicada a partir do meio social e
ideológico, portanto, a consciência é um fato socioideológico.
Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social (BAKHTIN, 2012, p. 34).
O semiótico e o ideológico nos remetem, novamente, ao papel do outro na
constituição da consciência. Numa relação dialógica, o enunciado, elaborado pelo
sujeito, tem sempre como referência o outro, ou seja, o interlocutor. Com efeito, a
enunciação é o resultado da interação entre dois sujeitos socialmente organizados,
cujos participantes podem ser imaginários ou reais, presentes ou não.
41
Considerando que o material semiótico desempenha papel fundamental na formação
da consciência e que essa se constitui no espaço social, na concepção Bakhtniana,
a criança, desde o nascimento, a partir das interações, encontra na língua do seu
grupo social um meio de organizar suas próprias palavras. As nossas palavras se
baseiam nas palavras dos outros e é desse modo que as crianças se apropriam das
primeiras palavras ensinadas pelas pessoas do seu círculo social. Para Bakhtin:
As influências extratextuais têm um significado particularmente importante nas etapas primárias da evolução do homem. Tais influências estão plasmadas nas palavras (ou em outros signos), e essas palavras são palavras de outras pessoas, antes de tudo palavras da mãe. Depois, essas “palavras alheias” são reelaboradas dialogicamente em “minhas palavras” (não ouvidas anteriormente) em seguida [nas] minhas palavras (por assim dizer, com a perda das aspas), já de índole criadora (BAKHTIN, 2003, p. 402).
Ainda sobre o enfoque dialógico, na comunicação discursiva, Bakhtin formula a
noção de polifonia, em outras palavras, a introdução do discurso alheio no contexto
do próprio discurso, que compreende múltiplas vozes. Ao examinar o enunciado, na
sua concretude, observaremos o encontro das palavras de muitos outros e o
percurso de apropriação dessas palavras de maneira singular pelo próprio sujeito:
Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertence a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, ela já está compenetrada da minha expressão (BAKHTIN, 2003, p. 294).
Eis porque o eu para Bakhtin só tem existência na relação com o outro. A
experiência discursiva individual se constitui em interação constante e contínua com
os enunciados individuais dos outros. Segundo Bezerra (2010, p. 194), na
concepção bakhtiniana, a imagem que o homem constrói de si mesmo implica a
imagem que o outro faz em relação a ele: “[...] eu me vejo e me reconheço através
do outro”.
Vigotski nos seus escritos também afirma: “[...] temos consciência de nós mesmos
porque a temos dos demais e pelo mesmo mecanismo, porque somos em relação a
nós mesmos o mesmo que os demais em relação a nós (VIGOTSKI apud MOLON,
2009, p. 83), enfim, “[...] eu me relaciono comigo tal como as pessoas relacionaram-
-se comigo” (VIGOTSKI, 2000, p. 3).
42
Reportando-se a Vigotski, o autor entende que o outro desempenha papel
imprescindível na constituição do eu. Sem esse outro, a criança não mergulha no
universo sígnico, não segue o fluxo da linguagem do seu grupo social, não se
desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psicológicas
tipicamente humanas, não se realiza como ser cultural, não forma sua consciência;
enfim, não se constitui como sujeito (FREITAS, 1995).
Do exposto até aqui, em torno da discussão que Vigotski faz sobre o papel do outro
e da linguagem na constituição do psiquismo, bem como os estudos de Bakhtin a
respeito do conteúdo semiótico e ideológico da consciência; e, tendo em vista o
objetivo deste trabalho, que é analisar as interferências do abrigo e da escola na
condição subjetiva das crianças em situação de abrigamento, consideramos de
extrema importância a contribuição desses autores, uma vez que, a partir das
leituras realizadas, compreendemos que as palavras dos outros participam da
constituição das palavras próprias; em outras palavras, a constituição do psiquismo.
Para os dois autores, a consciência origina e se forma no processo constante de
interação e luta com as palavras dos outros. Portanto, interessa-nos compreender
como, na interação verbal, os discursos dos outros, situados no tempo e no espaço,
atravessam os processos subjetivos dos sujeitos, em particular da criança sob tutela
pública e em contexto escolar.
Nosso campo de estudo compreende uma casa de acolhimento institucional e os
sujeitos da pesquisa são crianças em idade escolar, que, por algum motivo, estão
sob a tutela do Estado, aos cuidados da casa de colhimento “Santa Cecília”, no
município de Vila Velha – ES. O contexto do acolhimento vivenciado por cada
criança ali instalada constitui-se como um espaço cultural e social no qual ela se
relaciona com o outro e onde cada qual ocupa um determinado lugar e/ou posição.
Para Pino (2005, p. 106):
Um sistema de relações sociais é um sistema complexo de posições e de papéis associados e essas posições, as quais definem como os atores sociais se situam uns em relação aos outros dentro de uma determinada formação social e quais condutas (modo de agir, de pensar, de falar e de sentir) que se esperam deles em razão dessas posições.
43
Dentro da instituição, este outro na vida da criança pode ser ora outra criança, ora
um adulto. Com a criança, geralmente, ela compartilha posições e papéis
semelhantes (a de criança, de aluno, de institucionalizada, entre outros). Com o
adulto, as posições não são compartilhadas e os papéis são diferentes, aliás, entre
os adultos suas funções são bem distintas: há adulto na condição de coordenador
da casa, de assistente social, de pedagogo, de cuidador, de auxiliar nos serviços
gerais, de voluntário, de religioso, entre outros. Percebe-se a complexidade do
sistema de relações dentro da instituição, vários sujeitos, vários papéis, o que
denota que o cuidado da criança está relacionado à condição e ao papel exercido
pelos adultos responsáveis por ela.
Quando levamos em consideração que o ambiente da instituição de acolhimento
deve se aproximar ao máximo do ambiente familiar e que este, ao mesmo tempo,
não se caracteriza com o modelo habitual de família ao qual estamos acostumados
a observar na nossa sociedade, ficamos a pensar como a criança significa este novo
espaço, produtor de novos papéis e novos laços, visto que a complexidade do
mundo interior da criança vai depender da dinâmica da organização social da qual
está inserida.
Da mesma forma que o abrigo, a escola também compreende outro ambiente com
um sistema de relações bem marcadas: o lugar “aluno”, o lugar “professor”, o lugar
“coordenador”, o lugar “gestor”, cada qual com diferentes papéis. Partindo do
pressuposto de que é nas interações entre as pessoas, mediadas pela linguagem, é
que o sujeito se constitui, propusemos, neste trabalho, também discutir as
interferências da organização social escolar na constituição subjetiva da criança
abrigada, buscamos compreender os sentidos que ela carrega consigo em relação à
escola, em relação aos sujeitos escolares.
44
2.3 DISCUTINDO EXCLUSÃO SOCIAL E PRECARIZAÇÃO DA
FAMÍLIA E DA INFÂNCIA NO CONTEXTO BRASILEIRO
2.3.1 Uma reflexão acerca da exclusão social
A temática exclusão social não é algo momentâneo, de uma década ou de um
período, pelo contrário, tem raízes bastante profundas na sociedade. Seu enredo
histórico é marcado por desequilíbrios e seus efeitos trazem grandes injustiças
sociais. Suas consequências encontram-se nas várias esferas da vida social, na
saúde, na educação, na seguridade social, na questão de gênero, etnia, entre
outros. Por conseguinte, esta é uma reflexão delicada, uma vez que tem sido
abordada por diversos autores e sob várias perspectivas.
Mas, então, como podemos definir o termo “exclusão”? Na nossa compreensão, a
definição de exclusão social está relacionada aos aspectos econômicos, sociais,
psicológicos e culturais. E, em razão disso, para a discussão deste trabalho,
elegemos o conceito de exclusão estabelecido por Sawaia (2004, p. 9):
Processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É um processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.
Isso significa que é preciso apreciar a dicotomia entre exclusão e inclusão, ou seja,
na concepção de Sawaia (2004), em vez de exclusão tem-se a “dialética
exclusão/inclusão”. A expressão dialética exclusão/inclusão não constitui categorias
em si, mas compõe a mesma substância formando um par indissociável, que se
constitui na própria relação, que é dinâmica (SAWAIA, 2004).
Tomando como norte a modernização oriunda do desdobramento do sistema
capitalista, por exemplo, que prega, desde sua origem, uma inserção do cidadão à
sociedade pelo trabalho e consumo, ao mesmo tempo, incluiu e ainda exclui um
45
contingente significativo de cidadãos da posse dos meios de produção. Observa-se
o caráter ilusório de inclusão das sociedades modernas. Como coloca Sawaia (2004,
p. 8):
A sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório de inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no circuito produtivo das atividades econômicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e das provações, que se desdobram para fora do econômico.
Essa dialética exclusão/inclusão insere a ética e a subjetividade na lógica
sociológica da desigualdade articulada à justiça social, uma vez que a precária
inserção dos sujeitos é interpretada como justiça social e restrita à crise do Estado e
do sistema empregatício. Assim, a exclusão é entendida como “descompromisso
político com o sofrimento do outro” (SAWAIA, 2004, p. 8).
Sob uma ótica psicossocial, essa lógica dialética inverte a ideia de inclusão social,
desatrelando-se da noção de padronização e normatização, bem como de
culpabilização individual, pelo suposto “fracasso” ou “incapacidade” da própria
condição pessoal e inadequação às exigências do desenho social em que está
inserido o sujeito.
A lógica dialética explicita a reversibilidade da relação entre subjetividade e legitimação social e revela as filigranas do processo que liga o excluído ao resto da sociedade no processo de manutenção da ordem social, como, por exemplo, o papel central que a ideia de nós desempenha no mecanismo psicológico principal de coação social nas sociedades onde prevalece o fantasma do uno e da desigualdade, que é a culpabilização individual (SAWAIA, 2004, p. 8).
O pobre, despojado, carente, despossuído é invariavelmente incluído, por
mediações de diferentes ordens, no “nós” que o exclui, o que gera sentimentos de
vergonha, rejeição e culpa individual pela exclusão (SAWAIA, 2004).
Essas perspectivas nos remetem a reflexões que vão para além dos sentimentos e
reações que emergem no plano individual. Amplia-se, também, a possibilidade de
análise sobre as consequências desse processo excludente nas relações entre os
indivíduos que compõem uma família.
46
A família, como forma específica de agregação, tem uma dinâmica de vida que lhe é
peculiar, afetada pelo processo de desenvolvimento socioeconômico e pelo impacto
das ações do Estado por meio de suas políticas sociais e econômicas. É consenso
que as situações precárias de vida em que muitas famílias se encontram na
atualidade estão relacionadas diretamente às situações de pobreza e ao perfil de
distribuição de renda no país (FERRARI; KALOUSTIAN, 2011).
Becker (2011) nos chama atenção para as condições de pobreza que forçam
famílias, por exemplo, a abrir mão de seus filhos para instituições de abrigo como
estratégia de sobrevivência e não por rejeição ou abandono por parte de seus pais.
Como afirma a autora, “[...] se abandono existe, não se trata de crianças e
adolescentes abandonados por seus pais, mas de famílias e populações
abandonadas pelas políticas públicas e pela sociedade” (2011, p. 63).
Nesse aspecto, consideramos importante trazer algumas reflexões em torno da
família e da criança como questão social no Brasil, com o intuito de clarificar as
condições reais da criança no contexto familiar, sobretudo, as que vivem em
situações vulneráveis, bem como a criação de leis que garantam políticas sociais no
contexto familiar.
2.3.2 A família e a infância como questão social no Brasil
A família e a infância, como questão social no Brasil têm sido, ao longo da história,
foco de políticas, de ação e de omissão pelo Estado. Do período colonial até o fim
do século XIX, as iniciativas de atendimento às necessidades dos grupos familiares,
principalmente os mais fragilizados, como a criança, o doente, a pessoa com
deficiência e o pobre, ocorreram no seio das igrejas, especialmente da Igreja
Católica, das irmandades da Santa Casa de Misericórdia. De modo geral, os
recursos eram originários de fontes particulares; as contribuições de cofres públicos,
além de menores, eram irregulares (LOBO, 2008).
47
Em 1889, ocorreu a Proclamação da República. Nessa época, predominava a
omissão do Estado; a infância abandonada e a família pobre passaram a ser uma
questão da higiene pública, liderada principalmente pelo movimento higienista.
Como afirma Patto (1999), os meios técnicos e científicos, principalmente durante a
Primeira República, tinham a prevenção como palavra de ordem, sendo as medidas
mais drásticas dirigidas pelos psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene Mental.
A partir de 1930, foram estruturadas muitas políticas sociais no Brasil, as quais
marcaram uma nova concepção de assistência, enfatizando cada vez mais o caráter
social. Durante a década de trinta, muitos eventos realizados no país apontavam
para a precariedade em que viviam muitas famílias brasileiras e chamavam a
atenção do Estado para esses problemas. Em 1933, no Rio de Janeiro, houve a
Conferência Nacional de Proteção à Infância, que culminou, no ano seguinte, na
criação da Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, que veio substituir a
Inspetoria de Higiene Infantil. Em 1938, também foi criado o Conselho Nacional de
Serviço Social, ligado ao Ministério da Educação e Saúde, com o objetivo de
normalizar e fiscalizar as ações de assistência social, preponderantemente
desenvolvidas por entidades privadas (LIMA; RODRIGUES, 2014).
Em 1939, foi criada a Comissão Nacional de Proteção à Família, com o intuito de
elaborar projetos de lei favoráveis à formação, ao desenvolvimento, à segurança e
ao prestígio da família, bem como o “Estatuto da Família”, documento que
estimularia outras formas de proteção à família.
O Decreto-Lei nº 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, “fixa as bases da organização
da proteção à maternidade, à infância e à adolescência em todo o país.” Foi
instituído o Departamento Nacional da Criança como “supremo órgão de
coordenação de todas as atividades nacionais relativas à proteção à maternidade, à
infância e à adolescência” (Art. 5º), e este teria a cooperação do Conselho Nacional
de Serviço Social.
Foi a partir de 1930 que se observou um movimento de centralização da assistência
no âmbito do Governo Federal com a criação de diversas Leis e órgãos destinados à
proteção à família e à infância. No entanto, somente entre as décadas de 1980 e
48
1990 ocorreram significativos avanços políticos e sociais no sentido de uma
redemocratização, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
As Leis que se seguiram, sobretudo a da assistência social, a partir da Constituição
Federal de 1988, pregam o atendimento à família de forma integral como sujeito de
direito. A assistência social, como política universal para atender aos que dela
necessitam, deve buscar incorporar as demandas sociais expressas no cotidiano da
família, de acordo com sua realidade social (BRASIL, 2005).
A própria Política Nacional de Assistência Social reconhece que a família sofre com
os processos de exclusão social:
A realidade brasileira nos mostra que existem famílias com as mais diversas situações socioeconômicas que induzem à violação dos direitos de seus membros, em especial de suas crianças, adolescentes, jovens, idosos e pessoas com deficiência, além da geração de outros fenômenos como, por exemplo, pessoas em situação de rua, migrantes, idosos abandonados que estão nesta condição não pela ausência de renda, mas por outras variáveis da exclusão social. Percebe-se que estas situações se agravam justamente nas parcelas da população onde há maiores índices de desemprego e baixa renda dos adultos (BRASIL, 2005, p. 36).
Em vinte de outubro de 2003, como medida provisória, nº 132, foi criado o Programa
Bolsa-Família como política de transferência direta de renda e transformado em lei,
no dia 9 de janeiro de 2004 – a Lei nº 10.836. Atualmente, o Programa Bolsa-Família
integra o Plano Brasil Sem Miséria, cujo objetivo é beneficiar as famílias que vivem
situações de pobreza e de extrema pobreza, em todo o território brasileiro. O
Programa possui três eixos principais: promover o alívio direto das condições de
pobreza; reforçar os acessos aos direitos sociais básicos – educação, saúde e
assistência social; promover o desenvolvimento e emancipação das famílias
beneficiárias, de modo que elas consigam superar a situação de “vulnerabilidade
social” em que se encontram (BRASIL, MDS, 2014).
A transferência de renda do Programa Bolsa-Família contribuiu para amenizar as
desigualdades e situações de pobreza da parcela pobre das famílias brasileiras
entre 1999 e 2009, conforme dados levantados pela Pesquisa Nacional por
Amostras de Domicílios (SOARES; SOUZA; OSÓRIO; SILVEIRA, 2010). O
Programa, na análise de Marques e Mendes (2007), alterou as condições de vida
das famílias beneficiadas, pois as retirou da pobreza absoluta; no entanto, como
49
suas ações não alteram a estrutura da sociedade, consequentemente não
neutralizam os determinantes da pobreza, não evitam o surgimento de novos
contingentes, muito menos possibilitam a essas famílias, a médio e longo prazo,
viver sem esses benefícios.
É inegável que as políticas públicas, por meio de programas sociais, ainda deixam
muito a desejar, por causa da limitação de recursos. Assim, essas ações acabam se
tornando mais uma vez compensatórias e não universalistas. Para Ferrrari e
Kaloustian (2011, p. 13), “[...] por detrás da criança excluída da escola, nas favelas,
no trabalho precoce urbano e rural e em situação de risco, está a família
desassistida ou inatingida pela política oficial”.
No contexto atual, milhares de crianças circulam pelas ruas, instituições de
assistência e proteção, embora tenham pais e parentes. Parte dessas crianças
retornará para seus lares; outras permanecerão nas ruas, serão encaminhadas para
abrigos ou casas de internação, clínicas e outros tipos de instituição e poderão
nunca mais retornar às famílias (RIZZINI; RIZZINI; NAIFF; BAPTISTA, 2006). Com
relação ao encaminhamento de crianças e adolescentes para os abrigos,
constatamos uma história antiga, especialmente quando nos remetemos à parcela
mais pobre da população (RIZZINI; RIZZINI; BAKER; SCHULER; VOGEL apud
NAIFF, 2012).
A proteção integral à criança e ao adolescente é garantida pela Constituição Federal
e pelo ECA, cujas leis responsabilizam a família, a sociedade civil e o Estado pelo
zelo da população infantil e jovem. No entanto, em contrapartida, em consequência
da degradação socioeconômica de muitas famílias brasileiras, o convívio saudável
familiar fica comprometido, sobretudo para as crianças nos seus primeiros anos de
vida. A questão é que, muitas vezes, essa situação contribui para o desequilíbrio e a
desintegração da família. O que não se pode “repetir é o grande equívoco
perpetrado em nossa história que deu origem ao processo de institucionalização de
crianças em abrigos” (RIZZINI apud NAIFF, 2012), cujo processo sempre teve a
justificativa da proteção, mas surge como uma sistemática desautorização da família
em sua função de cuidar de seus filhos (NAIFF, 2012).
50
No Brasil, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças
e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), aprovado, em
dezembro de 2006, em Assembleia conjunta pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) e Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS), surgiu com o objetivo de propiciar uma discussão acerca das práticas de
atendimento à família, à criança e ao adolescente.
O Plano é fundamentado nas seguintes diretrizes (BRASIL, 2006):
Centralidade da família nas políticas públicas;
Primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio à família;
Reconhecimento das competências da família na sua organização interna e na superação de suas dificuldades;
Respeito à diversidade étnico-cultural, à identidade e orientação sexuais, à equidade de gênero e às particularidades das condições físicas, sensoriais e mentais;
Fortalecimento da autonomia da criança, do adolescente e do jovem adulto na elaboração do seu projeto de vida;
Garantia dos princípios de excepcionalidade e provisoriedade dos Programas de Famílias Acolhedoras e de Acolhimento Institucional de crianças e de adolescentes;
Reordenamento dos programas de Acolhimento Institucional;
Adoção centrada no interesse da criança e do adolescente;
Controle social das políticas públicas.
Essas diretrizes fundamentam todas as políticas, os programas e os projetos que
tenham como foco o atendimento à criança e ao adolescente, norteada pela
Doutrina de Proteção Integral.
Nesse sentido, a família exerce um papel fundamental no direcionamento de
políticas de assistência. Isso significa, portanto, focalizar e direcionar recursos e
energias às políticas públicas inclusivas para as famílias pobres, de forma a evitar a
situação de risco social da população infantojuvenil (BRASIL, 2005).
O histórico da questão social da criança e da família no Brasil revela parte da
complexidade desse quadro e acreditamos que há, ainda, muito sobre o que
conhecer em relação às famílias que sobrevivem com poucos recursos materiais e
com grandes dificuldades para atender às necessidades básicas dos filhos. Como
este trabalho focaliza a criança sob tutela pública, nesse momento cabe-nos uma
51
breve retomada da história política de atendimento à criança “desvalida”, no contexto
brasileiro, e, em seguida, das conquistas garantidas por lei, com a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Brasil.
2.3.3 A história política de atendimento à criança e ao adolescente
no Brasil: do período colonial à década de 1980
Não será a primeira vez que o saudável exercício de “olhar para trás” ajudará a iluminar os caminhos que agora percorremos, entendendo melhor o porquê de certas escolhas feitas por nossa sociedade.
Mary Del Priori
A política de atendimento à criança e ao adolescente, no Brasil, passou por um
processo de transformação que merece uma retrospectiva com o objetivo de
compreender as políticas sociais voltadas para a infância com um enfoque histórico,
assim como situar os avanços conquistados para essa população na
contemporaneidade.
No início da colonização brasileira, destacamos o papel dos jesuítas na educação
das crianças em espaços coletivos. Os jesuítas dirigiam-se às crianças com o intuito
de batizá-las e incorporá-las ao trabalho. Para catequizá-las, a partir de 1550, foram
criadas as Casas dos Machucados, custeadas pela Coroa Portuguesa. Essa prática
de ensinamento retirava as crianças de suas comunidades indígenas, com o intuito
de inculcar-lhes outra cultura, facilitando o processo de colonização; além disso,
essas casas também recebiam crianças abandonadas e enjeitadas de Portugal. Nas
palavras de Sposati (apud BAPTISTA, 2006, p. 21), essas casas eram “protoformas
dos abrigos e internatos educacionais que perduram até hoje”.
52
Ainda no Brasil-colônia, a política social embrionária adotada para atender às
questões envolvendo a criança foi a roda de expostos13. A roda foi criada em
decorrência do número excessivo de crianças abandonadas pelo caminho, ruas,
bosques, igrejas, que acabavam morrendo de fome, de frio ou mesmo sendo comida
por animais. Esse sistema teve sua gênese na Europa medieval; de cunho
missionário, era uma assistência oferecida sob a égide da caridade. No Brasil, não
foi muito diferente, a roda era administrada por instituições religiosas, com suas
obras de caridade que contavam com subsídios provenientes de órgão público, por
um longo tempo, como as Câmaras Municipais. Vale ressaltar que o sistema de
rodas garantia o anonimato do expositor, com o intuito de estimulá-lo a colocar a
criança não desejada na roda e, assim, evitar que ela fosse abandonada.
A roda dos expostos foi uma das mais duradouras instituições de assistência à
infância, tendo atravessado os três grandes regimes políticos do Brasil, os períodos:
colonial, imperial e republicano. A primeira roda foi criada em 1726, em Salvador; a
segunda, no Rio de Janeiro, em 1738; e a terceira, em Recife, em 1789. Durante a
sua história, foram criadas treze rodas no Brasil. A roda permaneceu em São Paulo
até 1948 e só foi extinta, definitivamente, em 1950 (MARCÍLIO, 2003).
Segundo Marcílio (2003), as mudanças ocorridas na Europa, durante o século XVIII
– que se inspiravam no progresso da ordem e da ciência –, influenciaram os juristas
brasileiros, no início do século XX, a lutar pela extinção das rodas. Eles iniciaram
uma mobilização em prol da elaboração de leis que protegessem as crianças
abandonadas e, também, do ajustamento dos problemas sociais concernentes à
adolescência infratora que, naquela época, já incomodava a sociedade brasileira.
É necessário compreender o contexto sociopolítico e econômico do Brasil, no final
do século XIX. Esse período marcou o processo de urbanização que caminhava em
direção à industrialização, cujas mudanças demandavam do Estado brasileiro uma
nova organização das forças políticas e sociais. Nessa conjuntura, nas primeiras
décadas do Brasil República, marcada pelo crescimento populacional urbano, a
saúde ganhava particular atenção dos higienistas (representados pelos médicos) e
13 A roda dos expostos tinha forma cilíndrica, oca, de madeira e giratória. Eram instaladas nos muros
das construções (MARCÍLO, 2003).
53
das filantropias que, preocupados com as epidemias e a degenerescência da
espécie humana, propuseram práticas interventivas nas condições higiênicas,
sobretudo nas instituições e nas famílias. Os olhares preocupados dos médicos
voltaram-se para a criança; estes sugeriram a inspeção escolar e familiar, assim
como a criação de escolas e internatos, em substituição às rodas dos expostos.
Quanto aos juristas, estes propuseram a criação dos tribunais especiais e as
colônias correcionais para atender aos adolescentes em situação irregular.
As primeiras décadas do século XX constituíram-se como um período profícuo na
história da legislação brasileira para a infância e a adolescência. Surge um grande
número de leis para regular a situação da infância, que passa a ser alvo de inúmeros
discursos inflamados, nas Assembleias das Câmaras Estaduais e do Congresso
Federal. Em 1923, foi autorizada a criação do Juízo de Menores; somente a partir
desse período, os juristas passaram a ser os principais protagonistas desse
movimento, com a criação dos Códigos de Menores, em 1927 (RIZZINI, 2011). Este
Código ficou conhecido como Código Mello Mattos, em homenagem ao titular do
Primeiro Juizado de Menores, que ocorreu em 1924, Dr. José Cândido Albuquerque
Mello Mattos. Segundo Rizzini (2011, p. 113),
A infância foi nitidamente “judicializada” neste período. Decorre daí a popularização da categoria jurídica “menor”. Comumente empregada nos debates da época. O termo “menor”, para designar a criança abandonada, desvalida, delinquente, viciosa, entre outros, foi naturalmente incorporado na linguagem, para além do círculo jurídico.
Com efeito, as leis oriundas do Código de Mello Mattos, sobretudo sua
reformulação, no ano 1979, denominada Código de Menores, a forma como se
dirigiam às crianças e aos adolescentes em situação irregular disseminaram um
paradigma de criança e de adolescente como menores carentes, abandonados,
inadaptados e delinquentes. No contexto da época, quanto ao “menor”, assim era
especificado no Código (COSTA, 2006, p.14):
1. Carentes: menores em perigo moral em razão da manifesta incapacidade dos pais para mantê-los.
2. Abandonados: menores privados de representação legal pela falta ou ausência dos pais ou responsáveis.
3. Inadaptados: menores em grave desajuste familiar ou comunitário,
4. Infratores: menores autores de infração penal.
54
No período em que a Lei do Código de Menores vigorou, a criança e o adolescente
passaram a ser considerados objetos de intervenção jurídico-social do Estado e
essa “vigilância” contribuiu para a elaboração de uma Política do Bem-Estar do
Menor (PNBEM) em 1964, durante a ditadura militar.
Assim, todas as crianças e adolescentes que se enquadravam nas características
acima citadas eram encaminhadas para o juizado, que os reencaminhava à
Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (Febem), órgão existente em vários
estados da federação.
O lado mais perverso de tudo isso reside no fato de que os mecanismos normalmente utilizados para o controle do delito (polícia, justiça, redes de internação) passaram a ser utilizados em estratégias voltadas para o controle social da pobreza e das dificuldades pessoais e sociais de crianças e adolescentes problemáticos, mas que não chegaram a cometer nenhum delito (COSTA, 2006, p. 15).
A legislação brasileira, nesse aspecto, dirigia-se apenas às crianças e aos
adolescentes que julgavam menores e em situação irregular e não para o conjunto
da população infantojuvenil. As leis elaboradas para os “menores” até então,
visavam, sobretudo, a exercer o controle social do delito e, com isso, controlar as
mazelas sociais geradas pela imensa desigualdade oriunda da concentração de
renda no Brasil. Consideram-se praticamente inexistentes as políticas públicas que
garantissem educação, saúde, esporte e cultura para as crianças e adolescentes
pobres do país, mas, ao contrário, a política brasileira destinava a este grupo a
segregação e a separação. Essa realidade representava “o ciclo perverso da
institucionalização compulsória – apreensão, triagem, rotulação, deportação e
confinamento” (COSTA, 2006, p. 15).
A partir de 1980, a realidade do Código de Menores fomentou uma luta ético-política
em prol dos direitos da criança e do adolescente. Assim, consolidou-se uma
articulação do setor público com a sociedade civil organizada por meio de um
movimento que conseguiu transformar em preceito constitucional concepções
fundamentais da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do
Adolescente, antecipando-se a sua aprovação, em 1989.
55
Na Constituição Federal de 1988, os direitos da criança e do adolescente foram
inseridos pelo artigo 227, culminando com a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990 (VOGEL, 2011).
2.4 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UMA
LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi aprovado em 13 de julho de 1990,
mediante a sanção presidencial da Lei 8.069. Foi elaborado a partir do Artigo 227 da
Constituição Federal de 1988, com o objetivo de regulamentar e assegurar os
direitos da criança e do adolescente. O ECA adota uma nova concepção de criança
e adolescente, a de sujeitos de direitos. Do ponto vista conceitual, o Estatuto rompe,
definitivamente, com o paradigma do “menor em situação irregular” e adota o
princípio da “proteção integral à infância e ao adolescente”. Nesta perspectiva, o
ECA não se constitui numa legislação com exceções, mas inclui e explicita o direito
de todos (BASÍLIO, 2008); sua Doutrina de Proteção Integral adotada, basicamente,
assenta-se em três princípios (FERREIRA, 2010, p. 41):
Criança e adolescente como sujeitos de direito – deixam de ser objetos passivos para se tornarem titulares de direitos.
Destinatários de absoluta prioridade.
Respeitando a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Refletir sobre a criança e o adolescente nessa perspectiva significa reconhecê-los
como pessoas que necessitam de atendimento e cuidados especiais, para que
possam desenvolver-se plenamente.
Considerar as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, reconhecer sua
condição peculiar de desenvolvimento físico, pessoal, psicológico, social e cultural e
seu processo de formação requerem, portanto, uma prioridade absoluta desse grupo
na agenda política do nosso país.
56
Outra prerrogativa importante, colocada pela Doutrina da Proteção Integral, é a
questão da responsabilidade concernente à concretização dos direitos assegurados
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no Artigo 4º:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O Artigo 4º deixa explícito que a responsabilidade legal pela garantia dos direitos da
criança e do adolescente cabe a todos, igualmente. Ressalta, ainda, no Artigo 4º,
parágrafo único, que, para que a Doutrina da Proteção Integral seja realmente
assegurada, o ECA compreende uma série de garantias:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Um dos princípios norteadores na elaboração dos direitos da criança e do
adolescente estabelecidos pelo ECA foi a compreensão da população infantojuvenil
como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e sujeitos de direitos
fundamentais. As crianças e adolescentes estão em processo de formação e são
detentoras de direitos especiais, uma vez que não dispõem de todos os meios
necessários para satisfazer suas necessidades básicas; desse modo, necessitam do
adulto para prover suas necessidades e para orientá-los. E, para que essa
população possa ter seus direitos garantidos, várias ações nas áreas das políticas
sociais básicas, da assistência social, da proteção especial e das garantias foram
estabelecidas pelo Estatuto e essas ações devem ser articuladas entre as três
esferas de governo: União, Estado e Município, assim como de organizações não
governamentais.
As políticas sociais básicas referem-se àquelas reconhecidas legalmente como
direito de todos e dever do Estado, como saúde, educação, moradia e outras
políticas. A assistência social é destinada às pessoas que se acham em estado “de
vulnerabilidade e risco social”, como auxílio temporário, abrigos, entre outros. A
57
proteção especial diz respeito às medidas especiais de proteção adotadas à criança
e ao adolescente que estão sob risco pessoal e com seus direitos ameaçados e/ou
violados e que, de alguma forma, trazem prejuízos para a sua integridade física e
psicológica. No que tange à garantia de direitos, o estatuto refere-se aos direitos
individuais e coletivos da criança e do adolescente que estão envolvidos em conflitos
de natureza jurídica, como a assistência judiciária.
Tendo como norte a garantia dos direitos da criança e do adolescente, o ECA
propõe a criação de um Sistema de Garantias, composto por organismos e
instituições públicas e não governamentais, bem como a sociedade civil.
O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente atua na defesa dos
direitos relativos à sobrevivência, ao desenvolvimento pessoal e social e à
integridade física, psicológica e moral da população infantojuvenil e compreende três
grandes eixos: promoção, defesa e controle social. Abaixo, citamos quem é o
Sistema de Garantia:
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda);
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca);
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;
Conselho Tutelar;
Fundo para Infância e Adolescência14;
Juiz da Infância e da Juventude;
Vara da Infância e da Juventude;
Assistência Judiciária;
Ministério Público;
Segurança Pública.
14 O Fundo para Infância e Adolescência (FIA) foi criado por lei, em âmbito nacional, estadual e
municipal, e está vinculado aos respectivos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. É constituído com recursos administrados pelos Conselhos de Direitos, previstos no Art. 88, inciso IV do ECA.
58
O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente caracteriza-se por
uma articulação e interação de espaços, instrumentos e atores que, de modo
sistematizado, têm, essencialmente, a missão de exigir o cumprimento dos direitos
assegurados à população infantojuvenil e devem ser acionados sempre que esses
direitos forem violados e/ou ameaçados. Ressaltamos a relevância pública que tem
o Conselho Tutelar, pois este deve oferecer à sociedade um atendimento pautado
na eficiência do serviço prestado, ou seja, a proteção da criança e do adolescente.
Enfim, vale ressaltar que, no Artigo 70, o ECA coloca como responsabilidade de
todos a prevenção de ocorrências de ameaça ou violação dos direitos da criança e
do adolescente. Dentro dessa lógica, o Estatuto atribui aos profissionais que lidam
com as crianças e adolescentes a responsabilidade de notificar os casos que
envolvam a suspeita ou a confirmação da violação dos direitos fundamentais da
criança.
Os artigos citados no ECA (2005) e, vale lembrar, respaldados pela Constituição
Federal de 1988, apontam um elenco de direitos, cujo propósito é garantir o pleno
desenvolvimento da criança e do adolescente, que são considerados sujeitos de
direitos pelas leis vigentes. Ao Estado e à sociedade organizada cabe a formulação
de medidas com vistas à proteção e à defesa da população infantojuvenil e velar
pela garantia desses direitos é dever de todos.
A concretização de uma legislação específica representou um passo importante na
construção da cidadania na área da infância e adolescência; no entanto, para alguns
teóricos, a atual política de atendimento à população infantojuvenil está muito longe
daquela idealizada pelos movimentos sociais. Basílio (2008, p. 30) questiona:
Por que, afinal de contas, depois de tanto tempo decorrida a promulgação desta Lei, a prática social com relação à infância continua sendo marcada por violência, negligência e incompetência na esfera pública?
As questões envolvendo a criança e o adolescente, a partir do ECA, também
despertam em nós inquietações que emergiram na leitura dos trabalhos de Montes
(2006) e Prestes (2010): onde está o caráter de excepcionalidade e provisoriedade
do abrigo, se as crianças e adolescentes chegam a permanecer anos na instituição?
E quanto ao desmembramento de irmãos nas casas de acolhimento, o que justifica
59
essa separação? O que leva as crianças a perceberem o abrigo como um colégio
interno e não como um grupo familiar? Quais são os impactos na vida psíquica da
criança quando o abrigo, literalmente, torna-se um lugar de “espera”? Reis (2001)
permite-nos pensar também sobre essas questões à luz da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, uma vez que o espaço escolar tem dificuldades em lidar com
a criança sob a perspectiva do abrigamento.
Esses questionamentos são alguns de tantos outros que surgem a partir do
momento em que nos apropriamos das leis que regulamentam os direitos da criança
e do adolescente. Atentamos para o fato de que (FERREIRA, 2010, p. 108):
[...] o Estatuto da Criança e do Adolescente funciona como um instrumento que possibilita a luta para a concretização da cidadania infantojuvenil. A missão da Lei é mudar uma cultura de injustiça, ilegalidade, abusos e opressões que sempre marcou a infância brasileira.
O Estatuto comemora, em 2014, vinte e quatro anos, mas ele é um instrumento legal
conhecido, estudado? Como esse debate tem sido articulado entre os diferentes
setores que atendem à população infantojuvenil?
Nosso trabalho não visa, prioritariamente, a responder essas questões, mas, como
trilharemos o caminho da infância, na sua problemática inserção em uma entidade
de acolhimento e no cotidiano escolar, procuramos compreender as implicações
dessas experiências no processo de produção de subjetividade de duas crianças a
partir de outros olhares; em outras palavras, da criança como sujeito de direito e
que, na condição de pessoa em desenvolvimento, estará sempre sob os cuidados
de um profissional no contexto das políticas públicas.
A partir das premissas aqui elencadas, com o intuito de dar consistência às nossas
indagações, consideramos importante ressaltar alguns pontos referentes às
normativas estabelecidas pelo ECA quanto às entidades que desenvolvem
programas de acolhimento e à educação escolar como direito público subjetivo.
60
2.4.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente e as instituições de
acolhimento: uma medida de proteção
A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem
à criança e ao adolescente o direito de serem criados e educados no ambiente
familiar de origem e, quando for necessário, em família substituta. Sendo assim,
quando a criança está “desprotegida”, em situação de “risco”, em “vulnerabilidade”,
exclusão social, cujos direitos estão ameaçados e/ou violados, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, Artigo 101, define o acolhimento institucional como última medida,
de caráter provisório e excepcional, quando estiverem esgotadas todas as
possibilidades de a criança permanecer com familiares. Vale ressaltar que o ECA
diferencia a criança vitimizada15 da população infantojuvenil com conflitos de
natureza jurídica, antes vistas homogeneamente pelo Código de Menores. O
Estatuto propõe medidas interventivas diferenciadas para cada um desses grupos.
Para os adolescentes infratores, além de medidas de proteção, ocorrem também
medidas socioeducativas16.
Segundo o ECA, Artigo 92, as entidades que desenvolvem programas de
acolhimento devem atender aos seguintes princípios:
I- preservação dos vínculos familiares;
II- integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;
III- atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV- desenvolvimento de atividades em regime de coeducação;
V- não desmembramento de grupos de irmãos;
VI- evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;
VII- participação na vida da comunidade local;
VIII- preparação gradativa para o desligamento;
IX- participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
15 Crianças órfãs, vítimas de maus tratos, abusadas sexualmente, em situação de rua, entre outros. 16 Conferir no Capítulo IV do ECA – Das Medidas Socieducativas. Também pode ser encontrado no
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), disponibilizado na íntegra no sítio: <http://www.promenino.og.br/Portals/0/Legislacao/Sinase.pdf>
61
Observa-se que a política de atendimento destinada à criança em situação de risco,
proposta pelo ECA, rompe com o paradigma das práticas institucionalistas de
legislações anteriores, pois estas se configuravam como práticas segregacionistas e
de confinamento.
A população infantojuvenil, encaminhada para acolhimento institucional, conforme
decisão judicial ou do Conselho Tutelar17, muitas vezes se acha em condições
físicas e psíquicas fragilizadas; além disso, como já referido, essas pessoas são
seres em condição peculiar de desenvolvimento. Portanto, ao assegurar os direitos
fundamentais da criança e do adolescente, o ECA estabelece uma série de
exigências, para as instituições que desenvolvem programas de acolhimento,
prevista no Artigo 92, acima citado, mas também nos Artigos 90, 91, 93 e 94.
No Artigo 101, o documento trata de medidas específicas de proteção, como:
ambiente com boas instalações físicas e em condições adequadas de higiene,
habitabilidade, salubridade e segurança; preservação da identidade; garantia da
assistência médica, psicológica, odontológica e farmacêutica; encaminhamento para
educação escolar; alimentação e vestuário adequado à faixa etária; esporte, cultura
e lazer (ECA, 2005). Um documento legal que vem acrescentar e regulamentar a
garantia dos direitos da criança e do adolescente já enunciados pela Constituição
Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, já referido em outro
momento, é o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, criado em 2006. O
Plano:
[...] é um produto histórico da elaboração de inúmeros atores sociais comprometidos com os direitos das crianças e adolescentes brasileiros. O Conanda e o CNAS, ao aprovar o documento, esperam contribuir para a construção de um novo patamar conceitual que orientará a formulação de políticas para que cada vez mais crianças e adolescentes tenham seus direitos assegurados e encontrem na família elementos necessários para seu pleno desenvolvimento (BRASIL, 2006, p. 20).
A promoção, a proteção e a defesa do direito à convivência familiar e comunitária
são a premissa do Plano. Suas diretrizes fundamentam todas as ações políticas que
tenham como foco o atendimento à população infantojuvenil, incluindo o abrigo, cuja
17 Encaminhamentos de crianças ao abrigo por parte do Conselho Tutelar devem se comunicados à
Vara da Infância e Juventude.
62
âncora é a Doutrina da Proteção Integral. Portanto, articular as ações de políticas
sociais estabelecidas para as instituições de acolhimento infantojuvenil às diretrizes
sistematizadas pelo Estado e a sociedade civil organizada é uma forma de superar
os obstáculos e avançar na garantia dos direitos fundamentais desse grupo, entre
elas: o reordenamento de programas de acolhimento, visando a cumprir seu caráter
excepcional e provisório; o investimento da reintegração na família; a preservação
de vínculos de irmãos; e a participação comunitária.
Assim, para efeito desta pesquisa, uma vez que adentraríamos no universo do
acolhimento institucional, fomos impelidos a conhecer um pouco da realidade do
funcionamento das políticas de proteção à criança e ao adolescente, no Estado do
Espírito Santo. Assim, nos aproximamos da Comissão Estadual Judiciária de
Adoção do Estado do Espírito Santo (Ceja-ES), no âmbito da Corregedoria da
Justiça do ES, cujo órgão tem a função de garantir à criança e ao adolescente o
convívio familiar, preconizado pela Lei Federal nº 8.069/90 e o Estatuto da Criança e
do Adolescente.
O Estado do Espírito Santo – desde 2010, junto com os estados de Santa Catarina e
Rio Grande do Sul – possui um sistema de informação que mantém dados
atualizados sobre a situação de todas as crianças sob a tutela do estado, aos
cuidados de instituições de acolhimento. No ano de 2013, havia, no estado, 93
casas de acolhimento institucional que acolhiam 716 crianças e adolescentes, sendo
396 do sexo masculino e 320 do sexo feminino. Destas, 101 crianças já estavam sob
a tutela pública há mais de cinco anos. Em 2012, 188 crianças foram adotadas no
estado (Ceja-ES, 2013). Na Tabela1, abaixo, o número de crianças e adolescentes
por motivo de acolhimento:
Tabela 1 – Número de crianças e adolescentes por motivo de acolhimento – ES
(Continua)
Motivo do acolhimento Números de crianças e adolescentes
Abandono 133
Transferência de outra instituição de acolhimento 127
Negligência 95
63
Tabela 1 – Número de crianças e adolescentes por motivo de acolhimento – ES
(Conclusão)
Motivo do acolhimento Números de crianças e adolescentes
Alcoolismo/dependência química dos pais 92
Maus-tratos 59
Violência sexual 25
Conflitos familiares 23
Situação de rua 19
Violência física 14
Doença familiar 10
Consentimento pai/mãe 4
Óbito dos pais 3
Outros 112
Fonte: Ceja-ES, 12/4/2013
É interessante observar que, no estado, de acordo com a tabela, a prática do
abandono compõe o primeiro motivo do acolhimento institucional de crianças e
adolescentes, seguido de transferência de outra instituição de acolhimento e
negligência.
Quando é analisada a prática do abandono de criança no Brasil, observam-se
ambiguidades. Segundo Venâncio (apud SANTOS, 2006), as leituras dos bilhetes
que acompanhavam as crianças deixadas nas rodas dos expostos, por exemplo,
tinham uma série de informações, nome, caso já tivesse, se eram ou não batizadas,
os motivos do abandono; enfim, expunha o sofrimento dos familiares envolvidos,
pois quando não conseguiam apoio público para criar seus filhos, a roda dos
expostos era o único recurso para protegê-los.
No Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede de
Serviços de Ação Continuada (SAC) realizada pelo Ipea, em 2003, considerando
todos os motivos que se podem relacionar à pobreza familiar, conclui-se que esta é
responsável pela entrada de mais da metade, 52%, das crianças e adolescentes nos
abrigos (SILVA, 2004), conforme mostra a Tabela 2, a seguir.
64
Tabela 2 – Brasil: motivos de ingresso em abrigos (Rede SAC) relacionados à pobreza
Motivos Percentual
Carência de recursos materiais da família/responsável (pobreza) 24,1
Abandono pelos pais ou responsáveis 18,8
Vivência de rua 7,0
Submetido a exploração no trabalho, tráfico e/ou mendicância 1,8
Fonte: Silva, 2004, p. 57
Nas pesquisas realizadas por Montes (2006) e Prestes (2010), a miséria e a pobreza
também foram apontadas como alguns dos principais motivos para a inserção de
crianças e adolescentes em abrigos.
Os dados e as pesquisas revelam a longa tradição de inserção de crianças e
adolescentes nos abrigos por causa das enormes dificuldades das famílias pobres
em cuidar dos seus filhos.
O que nos chama atenção, de fato, e provoca questionamentos é se a garantia dos
direitos fundamentais, como moradia, saneamento, o provimento da alimentação de
qualidade e o acesso à saúde e à educação estão sendo respeitados,
principalmente, quando se leva em consideração que estes direitos, na atualidade,
são garantidos por Lei e é de obrigatoriedade do Estado.
O acolhimento institucional, como afirma Rizzini e Rizzini (apud BORBA; PALUDO,
2014, p. 2), “[...] não pode ser um fim em si, mas um recurso a ser utilizado quando
necessário”. Além disso, a prática de acolher, no aspecto legal, “[...] está associada
ao referencial de direitos humanos e refere-se à noção de que viver com dignidade é
um direito do cidadão” (RIZZINI; RIZZINI; NAIFF; BAPTISTA, 2006, p. 53). O abrigo
tem caráter provisório e deve cumprir o princípio da brevidade, para que as crianças
tenham direito de viver em liberdade e com seus direitos fundamentais respeitados.
65
2.4.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Educação:
educação escolar como direito público subjetivo
O Estatuto da Criança e do Adolescente, concretizado em 1990, ao substituir o
Código de Menores, introduz um novo modelo de atendimento à população
infantojuvenil. Deixando à margem do caminho o caráter centralizador e
assistencialista de legislações anteriores, o ECA assume uma nova ordem legal que
desencadeia uma série de diretrizes, com uma vertente descentralizadora,
emancipatória e garantidora dos direitos fundamentais, dentre eles, a educação.
No ECA, o capítulo IV, Artigos 53 a 59, é destinado à educação, à cultura, ao
esporte e ao lazer. Os preceitos esmiúçam os artigos 6º, 205 a 214 e 227 da
Constituição Federal, que estabelece a educação como direito de todos e dever do
Estado e da família, promovida e incentivada pela sociedade.
Segundo esse Estatuto, Artigo 53, o direito à educação objetiva:
o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente;
preparo para o exercício da cidadania;
a qualificação para o trabalho.
A regulamentação da educação ainda prossegue nos incisos do Art. 53, que trata
dos direitos da criança e adolescente:
I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II- direito de ser respeitado por seus educadores;
III- direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;
IV- direito de organização e participação em entidades estudantis;
V- acesso a escola pública e gratuita próxima a sua residência.
O ECA, como política pública, representa um marco significativo na vida de crianças
e adolescentes no Brasil, assim como para todos aqueles que, direta ou
indiretamente, são responsáveis pela efetivação dos direitos estabelecidos
referentes à educação. Os artigos que compõem o Estatuto, no que diz respeito à
escolarização, têm uma profunda relação com o cotidiano escolar, sobretudo,
66
contêm elementos que visam à concretização da cidadania da população
infantojuvenil.
Cabe ao Estado, quanto à educação, oferecer ensino obrigatório para o ensino
fundamental e este constitui direito público subjetivo, o que significa que o acesso à
educação deve ser garantido a todas as crianças em idade escolar. O não
oferecimento do ensino obrigatório ou irregularidades na oferta por parte do Poder
Público implica na responsabilização da autoridade competente. Também cabe ao
Estado a extensiva obrigatoriedade e gratuidade do ensino médio, assim como a
oferta de creches e pré-escola e atendimento especializado para as crianças e
adolescentes com deficiência. O atendimento educacional no ensino fundamental
deve ser contemplado por programas suplementares de material didático,
alimentação, transporte e assistência à saúde (ECA, 2005).
O ECA ainda frisa a responsabilidade dos pais ou responsáveis pela matrícula dos
filhos ou pupilos em idade escolar; também versa sobre o direito dos responsáveis
em participar da definição de propostas educacionais. O não cumprimento das
responsabilidades acarreta, aos pais e responsáveis, medidas repressivas de
natureza civil e penal (ECA, 2005).
Ao estabelecimento de ensino, o ECA, Artigo 56, também impõe obrigações, ou
seja, comunicar ao Conselho Tutelar situações que envolvam o aluno quanto a
maus-tratos, faltas injustificadas, evasão, esgotamento de recursos escolares e
elevados níveis de repetência.
Constata-se que o Conselho Tutelar é parceiro necessário das diretorias de ensino, dos diretores de escola e dos professores. Isto porque este setor lida com uma população em que se encontram vítimas de injustiça social, contra a qual o Conselho deve atuar para minorar as consequências (FERREIRA, 2010, p. 72).
Neste aspecto, a garantia do direito à educação, envolve os profissionais da escola
e o Conselho Tutelar. A interação estabelecida entre os profissionais de ambos os
espaços é fundamental para se alcançar esse direito. Ademais, quando esses dois
segmentos caminham de forma harmoniosa, além de contribuir para a formação
acadêmica dos alunos, pode contribuir para a realização plena dos direitos
67
fundamentais como: vida, saúde, liberdade, respeito, dignidade, convivência familiar
e comunitária e cultura.
Por meio da abordagem de alguns temas contidos no Estatuto da Criança e do
Adolescente, buscamos evidenciar a importância deste instrumento legal nas ações
políticas voltadas para a população infantojuvenil.
Com relação a esta pesquisa, que tem como objetivo analisar a interferência do
abrigo e da escola na constituição subjetiva da criança em idade escolar, que, por
algum motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se acha sob tutela pública,
focamos, nessa Lei, os artigos que contemplavam a regulamentação das instituições
que desenvolvem programas de acolhimento e a educação escolar.
Diante do exposto, tendo como norte o arcabouço teórico discutido neste capítulo e
a temática deste trabalho, que é a criança sob tutela pública que frequenta uma
escola pública nos anos iniciais do ensino fundamental, esta pesquisa teve como
objetivos específicos:
compreender quem são as crianças e os adolescentes assistidos por um
programa de acolhimento institucional;
identificar as condições de acolhimento de crianças e adolescentes, no abrigo, no
que se refere às garantias, estabelecidas em lei, aplicáveis às instituições que
desenvolvem programas de acolhimento sob tutela pública;
identificar as condições de acolhimento e de trabalho educativo instituídos na
escola em relação às crianças abrigadas que são os sujeitos da pesquisa.
68
3 PERCURSO METODOLÓGICO
O objetivo deste estudo, que foi analisar a interferência do abrigo e da escola na
constituição subjetiva de crianças, levou-nos a escolher uma abordagem qualitativa
de pesquisa e do estudo de caso. Pretendemos investigar a constituição subjetiva
dos sujeitos a partir de suas vivências, de situações típicas, como a sua instalação
provisória em uma instituição de acolhimento.
Na pesquisa qualitativa, o pesquisador preocupa-se com aspectos que não podem
ser quantificados, buscando aprofundar e compreender a realidade de um grupo
social, de uma instituição, de uma trajetória (GOLDENBERG, 2003). Assim, ao
elegermos a abordagem qualitativa, nosso trabalho não se consistiu em saber o que
as pessoas pensam sobre algo, mas, a partir do contato com as vivências e/ou
experiências de um grupo em particular, buscamos compreender seu aspecto mais
íntimo possível.
Portanto, para um bom desenvolvimento da pesquisa qualitativa, na nossa
concepção, suas características devem estar bem clarificadas e cuidadosamente
seguidas, entre elas:
A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento [...]. Os dados coletados são predominantemente descritivos [...]. A preocupação com o processo é muito maior que o produto [...]. O significado que as pessoas dão as coisas e à sua vida é foco de atenção especial do pesquisador [...]. A análise dos dados tende a seguir um processo indutivo (BOGDAN; BIKLEN apud LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p 11-13).
O interesse pelo estudo de caso decorre da particularidade do objeto estudado.
Lüdke e André (1986, p.17) afirmam que, quando “[...] queremos estudar algo
singular, que tenha um valor em si mesmo, devemos escolher um estudo de caso”.
Para Yin (apud GIL, 2009, p. 7):
Um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos.
69
Como esboço de pesquisa, o estudo de caso, embora de caráter flexível, não deixa
de ser rigoroso. Seu procedimento indica princípios e regras a serem observados ao
longo de todo o processo de investigação. Os estudos de caso envolvem etapas de
formulação e delimitação do problema, seleção da amostra, determinação dos
procedimentos para coleta de dados, bem como modelos para sua interpretação
(GIL, 2009).
Para Gil (2009), são características essenciais do estudo de caso: apresentar um
delineamento de pesquisa; preservar o caráter unitário do fenômeno pesquisado;
investigar um fenômeno contemporâneo; não separar o fenômeno da pesquisa; ser
um estudo em profundidade; e utilizar múltiplos procedimentos de coleta de dados.
A proposta de pesquisa, neste trabalho, seguindo os critérios estabelecidos
metodologicamente, possibilitou-nos uma visão em profundidade sobre as situações
ou particularidades em que se acha um grupo infantil: estar sob tutela pública, aos
cuidados de uma casa de acolhimento e frequentar uma escola de ensino regular.
A pesquisa com um grupo infantil, particularmente a criança, levou-nos a refinar a
metodologia de pesquisa quanto aos sujeitos que pretendíamos estudar. Por isso,
almejamos um estudo que privilegiasse os relatos infantis, ou ainda, durante a coleta
de dados, consideramos a criança como interlocutora capaz de falar de si mesma.
Demartini (2005) alerta-nos sobre as crianças com dificuldades de falar as quais
alguns pesquisadores abandonam por não poderem colher seus relatos.
Dependendo do sujeito e contexto da pesquisa, este aspecto deve ser levado em
conta e observado criteriosamente – de algum modo, todas as crianças falam. Vale
ressaltar, um estudo de caso é sempre um estudo em profundidade.
Como um estudo de caso requer múltiplos procedimentos de coleta de dados e
levando em consideração as particularidades da infância, exploramos as diferentes
formas de linguagens e narrativas que a criança pode expressar. Afinal, a criança
expressa seu modo particular de pensamento por intermédio de diferentes
modalidades de linguagem.
Nesta pesquisa, além da oralidade da criança, exploramos duas modalidades de
comunicação entre elas: a história e o desenho infantil. Consideramos o desenho
70
infantil um revelador dos olhares e concepções sobre o contexto social, histórico e
cultural, do que é vivido, sentido e pensado (GOBBI, 2005).
Dentre os procedimentos de recolhimento do material empírico, as estratégias
escolhidas foram a observação participante e a entrevista, instrumentos básicos
para a coleta de dados em pesquisa educacional, dentro da perspectiva da
abordagem qualitativa. A observação direta permite que o pesquisador aproxime-se
da “perspectiva dos sujeitos”, importante alvo nas pesquisas de caráter qualitativo,
assim como a descoberta de aspectos novos de um problema. Vale ressaltar que,
durante a pesquisa, nas práticas de observação não se pode perder a perspectiva
da totalidade, sem desviar demasiadamente de seus focos de interesse (LÜDKE;
ANDRÉ, 1986).
Com relação às entrevistas, tratadas aqui como uma das principais técnicas de
trabalho de pesquisa das Ciências Sociais, estas se constituíram como importante
instrumento de coleta de dados. Segundo Lüdke e André (1986, p. 34), “[...] uma
entrevista bem feita pode permitir o tratamento de assuntos de natureza estritamente
pessoal e íntima, assim, como temas de natureza complexa e de escolhas
nitidamente individuais”. Realizamos entrevistas semiestruturadas, em particular,
com a criança, mas também, com os diferentes profissionais e voluntários que
desempenhavam alguma atividade na Casa-Lar Santa Cecília; porém, de forma
mais densa, com o coordenador e o assistente social; com estes utilizamos o
gravador. Quanto aos profissionais da escola, entrevistamos o gestor, a equipe
pedagógica e professores; com estes utilizamos normalmente o diário de campo.
3.1 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
Para a realização desta pesquisa, o primeiro passo consistiu em levantar o número
de instituições que ofereciam programas de acolhimento institucional para crianças,
no município de Vila Velha – ES. O número foi fornecido por um Conselheiro, que
71
atuava no Conselho Tutelar da Região Cinco do município e nos cedeu o número de
telefone de sete instituições. Conseguimos fazer contato com cinco delas e, num
primeiro momento, agendamos duas entrevistas, entre elas a Casa-Lar Santa
Cecília.
Na primeira instituição, de acordo com os agendamentos, o responsável por nos
atender não estava, sendo assim, não foi permitido adentrar ao recinto e nos
pediram para ligar novamente. Na mesma semana, estava agendada a entrevista
com uma das coordenadoras da Casa-Lar Santa Cecília. O primeiro contato com a
instituição foi impactante, naquele dia fizemos uma opção por aquele espaço. A
instituição era diferente de qualquer outra instituição conhecida no município, por ser
contemplada pelo verde e sua beleza arquitetônica; além disso, nossa chegada a
casa coincidiu com a presença das crianças no pátio, aguardando a chegada do
ônibus escolar, dentre as crianças, Noah18; elas conversavam entre si e caçoavam
umas das outras. Acreditamos que, além da exuberância da casa, ver as crianças e
observar a interação entre elas foi fundamental para nossa escolha. Naquele dia, de
acordo com a coordenação, a pesquisa era viável e possível, mas era necessária
uma conversa com toda a equipe técnica.
Alguns meses depois, retornamos à instituição e, segundo as orientações do setor
administrativo, nossa pesquisa no local só seria possível depois de análise do
projeto de pesquisa com as ponderações feita pela professora-orientadora; assim
feito, entregamos uma cópia do projeto para verificação.
A análise durou pouco mais de um mês, até que, finalmente, obtivemos permissão
para começar. Claro ficou para nós que a análise do nosso trabalho e a nossa
permissão sofreriam algumas implicações, por causa do ambiente que se pretendia
pesquisar.19 Juntamente com uma das coordenadoras e a assistente social, foram
acordados 12 dias distribuídos em dois meses – junho e julho. No entanto, como as
atividades religiosas eram abertas à comunidade, passamos a frequentar a
instituição nos fins de semana, no horário das celebrações; portanto, mantivemos
18 Todos os nomes apresentados neste estudo são fictícios. 19 Essa preocupação com a pesquisa justifica-se, uma vez que é de responsabilidade da instituição
preservar a criança; portanto, foi analisada criteriosamente a forma como os sujeitos seriam abordados.
72
contato com a instituição até o mês de outubro. Ademais, as entrevistas com os
profissionais também foram estendidas para os meses seguintes, de acordo com a
disponibilidade de cada um.
Uma vez selecionada a instituição de acolhimento e nossa entrada no campo,
tínhamos que solicitar à escola em que as crianças estavam matriculadas nossa
permissão para também realizarmos pesquisa nesse espaço.
Com relação à escola, agendamos um encontro com o diretor que, com sua
aprovação, nos encaminhou para o setor pedagógico. A pedagoga, responsável
pelas turmas nas quais os sujeitos da pesquisa estavam matriculados, apresentou-
-nos às professoras responsáveis pelas turmas nas quais desenvolveríamos a
pesquisa – 3º ano B e 3º ano C. Para as professoras, nossa entrada na sala era
possível e imediata.
Também nos foi permitido pelos professores acompanhar as aulas das disciplinas de
Artes, Educação Física, Informática e Ensino Religioso. Como não houve restrições
em relação à escola, frequentamos esse espaço por três meses, entre agosto e
outubro, no mínimo três vezes por semana. Diferentemente da Casa-lar, nossa
entrada na escola foi muito mais ágil. Segundo Graue e Walsh,
as escolas são mais acessíveis do que os internatos, os asilos para os sem- -abrigo ou os grupos de apoio para mães solteiras adolescentes. O desejo dos responsáveis de proteger a privacidade dos que têm ao seu cuidado é compreensível e louvável, mas existem grupos de crianças acerca dos quais não se conhece, necessitando por isso de aprofundar esse conhecimento (apud PRESTES, 2010, p. 18).
Talvez tenha sido este o nosso grande desafio na pesquisa, ou quem sabe, o maior
obstáculo: o acesso à privacidade dos sujeitos da pesquisa, como, por exemplo, os
motivos do abrigamento e dados sobre a família genealógica. A proteção e o
cuidado que cabia aos responsáveis por essas crianças consistia, também, em zelar
pelo seu passado, ou seja, não revelá-lo a ninguém.
Seguindo os princípios éticos da pesquisa, foram entregues aos responsáveis pelas
duas instituições o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE A).
Nossa inserção na Casa-Lar Santa Cecília e na escola “Profa. Petronilha Vidigal”
consistiu num exercício constante e ininterrupto de observação do espaço
73
institucional como um todo, de interação com os sujeitos da pesquisa e seu
cotidiano, assim como de aproximação e interação com os profissionais, tanto no
abrigo quanto na escola. Com o intuito de registrar os dados coletados, utilizamos o
tempo todo o diário de campo.
Tendo em vista que o estudo buscou apreender questões subjetivas de um grupo de
crianças em idade escolar, a partir das interferências da escola e da instituição de
acolhimento, como já referido, e que procuramos explorar as diferentes formas da
criança se comunicar, propusemos, no espaço institucional da Casa-Lar Santa
Cecília, duas oficinas: uma com o desenho; e outra com a história fictícia da
literatura “Ciça”, constituída de dois volumes.
Na atividade com o desenho, o material utilizado foi tinta guache, pincel e papel
sulfite, cujo objetivo era a elaboração de um desenho utilizando apenas esses
materiais. Participaram da oficina duas crianças e dois adolescentes. Utilizamos o
refeitório para a realização da oficina. A princípio, todos se engajaram na atividade,
porém, logo, um dos adolescentes manifestou sua dificuldade em desenhar; por
causa disso, nos aproximamos dele. Todos fizeram um desenho, com exceção de
uma criança que fez dois, um deles era para presentear uma das coordenadoras.
Depois de todos os desenhos prontos, anexamos no quadro de avisos que fica na
varanda do prédio central. Passados alguns dias, pedimos para recolher o material e
tomá-los para análise.
A oficina de contação de histórias foi dividida em dois momentos. O primeiro
volume20, Ciça, foi contado para todos acima de seis anos, no espaço da
brinquedoteca. Por causa dos brinquedos, que eram diversos naquele espaço, a
princípio, foi difícil mantê-los atentos à história. Depois da contação da história, a
personagem Ciça foi desenhada pelos participantes, portanto, cada um recebeu um
papel sulfite e lápis para confeccionar seu desenho. Também foi disponibilizado para
o grupo lápis de cor, no entanto, seu uso foi livre. Concluído o desenho, entregaram-
no à pesquisadora.
20 Possatti, N. J. Ciça. São Paulo: Paulinas, 2012.
74
O segundo volume do livro, Ciça e a rainha21, foi trabalhado apenas com os dois
sujeitos da pesquisa, separadamente. Com cada um deles foi retomada a história do
primeiro volume, contada a história do segundo volume de maneira bem interativa e,
por fim, foi solicitado a eles que confeccionassem uma casa utilizando apenas
massinha de modelar sobre uma prancha de papelão, a partir da pergunta: “Imagine
que a rainha vai ajudar a Ciça a ganhar uma nova casa, como seria?”
Ainda, quanto ao acesso à produção infantil, no contexto escolar, obtivemos a
colaboração dos professores que nos cederam atividades relacionadas a desenhos,
principalmente do professor de Arte, que disponibilizou alguns trabalhos realizados
pelos sujeitos da pesquisa.
Enfim, para análise dos dados, utilizamos os diários de campo, que continham os
registros por escrito das vivências ocorridas tanto no abrigo quanto na escola, as
anotações em relação aos desenhos feitos pelos sujeitos da pesquisa, bem como as
transcrições das gravações das entrevistas feitas com os profissionais do abrigo.
Foram feitas a releitura das falas dos sujeitos, as análises dos desenhos, assim
como das impressões e questionamentos, também anotadas no diário de campo.
Em seguida, foram selecionadas as falas e os desenhos tendo como referência
nosso objetivo e a fundamentação teórica que deu sustentação a este trabalho.
21 Possatti, N. J. Ciça e a rainha. São Paulo: Paulinas, 2012.
75
3.2 O CENÁRIO DA PESQUISA
3.2.1 A Casa-Lar22 “Santa Cecília”23
“Um sítio... Sem muros... Muito verde...”
Muros altos, arames, cadeados, era o que, até então, havia vislumbrado com
relação às casas que ofereciam acolhimento institucional para crianças e
adolescentes, no município de Vila Velha; no entanto, a Casa-Lar “Santa Cecília” era
diferente. Em toda sua volta, um gramado de um verde impressionante, gramíneas,
flores, árvores frutíferas e, completando o cenário verdejante e bem cuidado, as
construções de estilo rústico. Logo na chegada, nos deparamos com uma grande
construção que compreendia: escritório, cozinha, refeitório, sala de estudo, sala da
assistente social, sala do pensamento24, brinquedoteca e uma grande varanda com
assentos e uma mesa de madeira. À esquerda desse prédio, seguindo um caminho
entre as gramíneas, outro prédio, de dois andares: na parte superior, a obra estava
em conclusão; na parte inferior, residiam dois irmãos. Logo, vimos outra construção
que também compreendia duas casas. No primeiro andar, residiam meninos, até 6
anos, e meninas, até 10 anos. No segundo andar, meninos entre 10 e 16 anos.
Levando em consideração o todo, somavam-se sete dormitórios. Ainda à esquerda
dessa casa, avistamos outra, também em estilo rústico.
À direita do prédio central, avistavam-se uma capela e um grande pátio cimentando.
Seguindo um pouco mais à direita, havia uma construção de dois andares, naquele
22 Com respeito à filosofia da instituição pesquisada, adotamos o termo Casa-Lar, uma vez que os
profissionais preferem chamá-la assim. 23 A escolha pelo nome fictício Santa Cecília ocorreu por dois motivos. Primeiro, porque a casa é uma
instituição mantida por religiosos. E, segundo, Cecília é nome da personagem contada na história trabalhada com os sujeitos da pesquisa e ambas, as crianças e a personagem, têm em comum o acolhimento institucional.
24 Esta sala assim é chamada porque é um espaço destinado à criança pensar, isto quando esta se comporta de modo inadequado.
76
momento, desativada. Por detrás de todas essas construções, descendo a ladeira,
notavam-se um campinho de futebol e um lago.
“Espaço como esse, acho que aqui nenhuma casa-lar tem [...] acho que é o maior do
estado”, diz um funcionário do abrigo. Mas, como? Quem sustentaria uma instituição
deste porte e bem diferente dos demais programas de acolhimento existentes no
município de Vila Velha? Para uma das coordenadoras da Casa-lar: “Esta é uma
obra que nasceu dentro da igreja”. Sim, a Casa-Lar Santa Cecília não é uma
instituição que ascendeu com recursos oriundos de cofres públicos.
A Casa-Lar Santa Cecília tem uma história marcada pela inspiração religiosa, pela
história de religiosos católicos que pertenciam a vários grupos de oração ligados ao
movimento chamado “Renovação Carismática”. Os religiosos ligados a este
movimento eram considerados, por outros religiosos do mesmo credo, cristãos de
muita oração e de pouca ação. Movidos pelo desejo de realizar obras concretas,
quatro religiosos, de três grupos de oração diferentes, discutiram a possibilidade de
realizar um trabalho social. Simultaneamente ao desejo do grupo, no Santuário de
Vila Velha, discutia-se a necessidade de se criar uma secretaria cujo objetivo era a
ação social. Assim, esses quatro religiosos, mais outros que se foram integrando ao
grupo, fundaram a “Secretaria Marta”, que tinha como missão a promoção humana.
Como trabalho inicial, o grupo fez uma opção pela infância carente do bairro
Primeiro de Maio. O trabalho consistia em acolher as crianças em uma igreja local,
oferecer atividades recreativas, como música, teatro, brincadeiras, entre outras; além
disso, lanche e cesta básica para suas famílias. O trabalho era possível em função
das doações de pessoas de diferentes comunidades religiosas, aliás, nessa época,
o trabalho já contava com a participação de muitos voluntários. No entanto, o grupo
encontrou algumas dificuldades em continuar com o trabalho por causa da atuação
do tráfico, pois o trabalho exercido pelo grupo oferecia outra atividade para a criança
que não fosse a venda de drogas ilícitas. O grupo transferiu-se para outro bairro,
tendo como referência a casa de um dos integrantes da Secretaria Marta; ali eram
depositadas diversas doações: alimento, vestuário, móveis, entre outros. As
doações eram destinadas a famílias carentes, no entanto, mais uma vez a equipe
percebeu outras implicações: os objetos doados às famílias necessitadas eram
trocados por drogas. Como o público-alvo era a criança, o projeto ganhou outros
77
moldes. A criança passou a frequentar a casa desse integrante do grupo no horário
inverso ao seu horário na escola; ali fazia suas refeições e participava de oficinas e
reforço escolar. Nessa fase, o projeto já contava com mais de 60 voluntários.
Tendo em vista a dimensão do trabalho e o uso do espaço privativo, o diretor
espiritual da Secretaria Marta, um padre, orientou o grupo a ter um espaço físico
próprio. Assim, na procura por um espaço para alugar, uma das fundadoras do
projeto achou um sítio à venda, localizado em área considerada rural a,
aproximadamente, 15 km do centro da cidade. Naquele momento, a proprietária,
muito religiosa, cuja propriedade tinha uma capela, desejava vender seu sítio para
um religioso católico, para alguém que mantivesse a devoção a Deus. Movidos pelo
desejo de um novo espaço, os integrantes da Secretaria Marta realizaram
campanhas para levantar capital e adquirir o imóvel. Além disso, uma das
fundadoras da Secretaria, de maior poder aquisitivo, também ofereceu seu
apartamento em troca do sítio.
Assim, nasceu a Casa-Lar Santa Cecília, uma instituição filantrópica, orientada por
princípios religiosos, que acolhe crianças de ambos os sexos. É uma entidade que
está sob os princípios estabelecidos por lei, sobretudo aquelas que orientam as
políticas de atendimento à infância e à adolescência. Em decorrência do papel que
desempenha, mantém vínculos com a Vara da Infância e Juventude, o Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e a Secretaria Municipal da
Assistência Social.
3.2.2 As crianças da Casa-Lar Santa Cecília, um recorte
Na Casa-Lar Santa Cecília, as crianças e adolescentes chegam por meio de
medidas judiciais e deixam a Casa, geralmente, por causa da transferência para
outra instituição de acolhimento, retorno à família de origem, adoção ou por terem
alcançado a maioridade, ou seja, 18 anos completos. Durante o período da
pesquisa, assistimos a duas adoções, em outras palavras, duas partidas; um
78
processo de desligamento, que não tivemos oportunidade de acompanhar
plenamente, por causa do tempo da pesquisa. Soubemos, também, do retorno de
um ex-residente da casa, inclusive, irmão de um dos acolhidos.
Durante a investigação, tivemos contato com 17 sujeitos assistidos pela Casa-Lar
Santa Cecília, conforme a Tabela 3.
Tabela 3 – Caracterização das crianças e adolescentes da Casa-Lar Santa Cecília
Faixa etária Sexo F Sexo M Total Adotados
(durante a pesquisa)
0-3 anos incompletos 2 1 3 -
3-7 anos incompletos 3 3 6 1
7-12 anos incompletos 2 1 3 1
12-17 anos completos - 5 5 -
Fonte: Dados da pesquisa
Observando a tabela, considerando a faixa etária coerentemente com o que
estabelece o Estatuto da criança e do Adolescente, a maioria dos sujeitos acolhidos
é criança, totalizando 12, num grupo de 17 abrigados. A maioria também é do sexo
masculino, somando 10, enquanto, em relação ao sexo feminino, o total é sete.
Dentre os acolhidos, identificamos cinco grupos de irmãos; apenas três crianças e
um adolescente não tinham irmãos na Casa-Lar. Quanto ao tempo de acolhimento,
identificamos, tendo o mês de outubro como referência, crianças acolhidas, no
mínimo, por dois meses; e, no máximo, por 13 anos completos. Vale ressaltar que
havia três adolescentes que já estavam na Casa-Lar “Santa Cecília” há mais de 12
anos.
As instituições de acolhimento institucional, com a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, passaram a ter caráter provisório e excepcional. Além
disso, em 2009, foi promulgada também a Lei 12.010, denominada “Lei da Adoção”,
cujo artigo 19, § 2º, define: “[...] a permanência da criança e do adolescente em
programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 anos, salvo
79
comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente
fundamentada pela autoridade judiciária”. Apesar da instituição da Lei, inclusive, de
grande relevância, crianças ainda continuam vivendo sua infância em abrigos, o que
caracteriza, de fato, a infância institucionalizada, na fala de Prestes (2010), “são
criadas pelo Estado”.
Montes (2006), em sua pesquisa, chama atenção para o fato de crianças
permanecerem anos em instituições, uma vez que os sujeitos pesquisados por ela
percebiam a casa de abrigo como um internato ou escola distante de uma
configuração familiar, influenciando negativamente no modo como elas se
percebiam nesse espaço.
Das 12 crianças abrigadas, selecionamos duas, as quais atendiam aos seguintes
critérios: ter entre seis e 12 anos incompletos, uma vez que para o Estatuto da
Criança e do Adolescente o sujeito nesta faixa etária é considerado criança; e estar
matriculado no Ensino Fundamental.
No início da pesquisa, na Casa-Lar Santa Cecília, as crianças, entre seis e 12 anos
incompletos, frequentando a escola, totalizavam quatro. Um, de seis anos, estudava
no turno matutino; e três, entre oito e dez anos, estudavam no turno vespertino e na
mesma escola.
Em razão do desencontro em relação ao turno em que as crianças estudavam,
fizemos, a princípio, uma opção pelas três crianças entre oito e dez anos que
estudavam no mesmo turno e na mesma escola.
Ainda no início da pesquisa, uma delas foi adotada, a criança de oito anos; portanto,
para o estudo ficou acordado com a instituição o acompanhamento de duas
crianças, ambas com dez anos, uma do sexo feminino e outra do sexo masculino.
A Tabela 4 apresenta a caracterização dos sujeitos selecionados para a pesquisa:
80
Tabela 4 – Caracterização dos sujeitos da pesquisa
Participante Idade Sexo Série Tempo de acolhimento
(abril/13)
Sofia 10 F 3º B 1 mês
Noah 10 M 3º C 1 ano e nove meses
Fonte: Dados da pesquisa
3.2.3 O quadro de funcionários permanentes na Casa-Lar Santa
Cecília
Na análise da situação do quadro permanente dos funcionários da Casa-Lar Santa
Cecília, os profissionais achados no período da pesquisa foram classificados em
quatro grupos, em função das atividades desempenhadas e/ou pelos serviços que
são prestados pela instituição, quais sejam: administração institucional, equipe
técnica, cuidados diretos e apoio operacional.
No grupo da administração institucional, que respondia pela concepção e condução
do programa da instituição, a entidade possuía uma Diretoria composta por cinco
pessoas: presidente, vice-presidente, diretor financeiro, diretor de captação de
recursos e secretário; todos que compunham este quadro não eram remunerados.
Além disso, não frequentavam diariamente a instituição e se reuniam de acordo com
as necessidades da casa. Também havia duas coordenadoras, sendo que uma
pediu afastamento ainda quando a pesquisa estava em andamento. Dessas duas,
uma integrava o grupo dos fundadores da Casa-Lar Santa Cecília. No momento da
pesquisa, a coordenação compreendia o quadro de funcionários, portanto, era
remunerada. Ainda na área administrativa, cujos serviços eram remunerados, havia
uma advogada.
Quanto à equipe técnica – cuja atividade compreendia a organização do projeto
político-pedagógico da instituição com a coordenação –, a instituição contava
apenas com uma assistente social, única contratada pela rede municipal de Vila
81
Velha. Durante a pesquisa, o município disponibilizaria outro técnico, o psicólogo, no
entanto, não chegamos a ver a contratação deste profissional. Este atendimento,
durante a pesquisa estava sendo realizado por estudantes da Universidade de Vila
Velha, totalizando cinco pessoas, que frequentavam a instituição uma vez por
semana.
Já em relação aos responsáveis pelo cuidado direto e cotidiano das crianças e dos
adolescentes, na instituição havia cinco cuidadoras; todas tinham vínculo
empregatício com a instituição.
O apoio operacional, que diz respeito às pessoas que são responsáveis pela
organização diária e manutenção da instituição, somava um total de cinco
funcionários com vínculo empregatício, entre eles: cozinheira, auxiliar de cozinha,
jardineiro, auxiliar de limpeza e motorista.
Um dentista e um médico pediatra atendiam às crianças e jovens, como voluntários
e/ou parceiros da instituição.
3.2.4 A escola “Profa. Petronilha Vidigal”25
“O que eu mais gosto é da Educação Física”26
Situada em torno de 5 km distante da Casa-Lar Santa Cecília, a escola “Profa.
Petronilha Vidigal” também conta com uma paisagem privilegiada em seu entorno.
Ao nos aproximarmos da escola, sentíamos o vento oriundo do mar e também da
grande lagoa, que ficava em frente à escola. No entanto, ao adentrar na escola,
percebemos que sua estrutura já sofreu profundas modificações. É uma unidade que
oferta o ensino fundamental e atende a crianças de vários bairros e a maioria chega
25 Nome fictício. 26 Durante a pesquisa, essa frase foi emitida por vários alunos, mas tínhamos a impressão que eles
estavam falando do pátio, onde as recreações e/ou brincadeiras ocorriam, era o espaço mais “fervilhante da escola”.
82
até a escola utilizando transporte escolar. A demanda cresceu tanto que os espaços
abertos – como a quadra esportiva – foram substituídos por salas de aula, o que nos
deu a sensação de que os sujeitos que compartilhavam aquele espaço foram,
literalmente, “espremidos”.
A escola tem pequena extensão territorial, segue um modelo horizontal, com um
pátio interno, bem pequeno, localizado no centro das instalações, à frente do portão
de entrada. Neste pequeno pátio, também funcionam as aulas de Educação Física.
À direita da entrada da escola, localizam-se salas de aula, refeitório, cozinha, sala
dos professores, sala do pedagógico, sala do gestor, banheiro feminino e masculino,
secretaria e uma pequena biblioteca. À esquerda, mais salas de aula e o laboratório
de informática; neste lado, as construções são provisórias, construídas com material
de PVC.
A escola atende aos dois turnos consecutivos (manhã/tarde). No turno matutino, é
ofertado o ensino do 5º ao 9º ano; e no turno vespertino, do 1º ao 4º ano. No
vespertino, havia três turmas de 1º ano, duas de 2º, quatro de 3º e quatro de 4º ano.
A pesquisa foi realizada no turno vespertino, em duas turmas de 3º ano.
Quanto ao quadro de funcionários, o turno vespertino é contemplado por pedagogos
e professores: dos anos iniciais, de Educação Física, de Artes, de Ensino Religioso,
de Informática, da Educação Especial; além de coordenadores, auxiliar de biblioteca,
auxiliares de secretaria, auxiliares de serviços gerais e vigilância.
Em relação ao trabalho de acompanhamento pedagógico, este era feito por duas
pedagogas, uma, responsável pelos 1ºs e 2ºs anos; e outra, pelos 3ºs e 4ºs anos.
Estas planejavam com os professores e promoviam intervenções quanto aos alunos
que apresentavam “problemas de aprendizagem”, como, por exemplo, o
acompanhamento das crianças com baixo rendimento. Neste caso, costumavam
solicitar o comparecimento da família à escola.
Na parte final da investigação, na escola deu-se início ao programa denominado
“Mais Educação”, que se aproximava da escola integral; em média, cinquenta alunos
retornavam para a escola no contraturno para atividades extras. Embora sem
83
espaço físico suficiente, o programa funcionava no refeitório. Os alunos estavam sob
os cuidados do seu coordenador e dos monitores responsáveis pelas atividades.
As atividades do turno vespertino iniciavam-se às 13 horas, depois do sinal. No
entanto, à medida que as crianças iam chegando, se dirigiam para o pátio interno
onde já se organizavam em duas filas, por série, uma de meninas e outra de
meninos. Aliás, a fila era algo comum, pois compreendia uma norma, era feita na
entrada, ao término do recreio e no percurso da sala de aula ao laboratório de
informática. É importante ressaltar que, à frente da fila, estava sempre o professor
da turma, era este profissional que conduzia os alunos. A movimentação dos alunos
durante o horário escolar, como ida ao banheiro, biblioteca, entre outras atividades
dependia sempre da autorização do professor.
Essas práticas cotidianas, no âmbito da Umef Profa. Petronilha Vidigal, imprimiam,
ao contexto escolar, a padronização comum aos estabelecimentos de ensino, o que
possibilitava uma delimitação bem marcada do lugar institucional que cada membro
ocupava: gestor, coordenadores, professores, alunos e demais profissionais da
escola. Essas práticas permitiam às crianças e aos adolescentes compreenderem
que os sujeitos ocupam lugares determinados pela própria dinâmica social na
instituição escolar e que a esses lugares correspondiam funções que cada um
desempenhava nesse espaço e também determinadas obrigações.
As atividades desenvolvidas na escola – processo que ocorre em tantas outras –
obedeciam ao tempo cronológico: hora de entrada, aulas de cinquenta minutos, hora
do recreio, hora da saída. Como passamos um bom tempo na escola, ficou claro
para nós que o horário de Educação Física e o do recreio eram as atividades mais
esperadas pelas crianças. Eram nestas atividades que percebíamos que as crianças
ocupavam lugares diferenciados: meninas com meninos brincando de futebol;
crianças que auxiliavam outras crianças, especialmente aquelas com necessidades
especiais; enfim, vivenciavam uma diversidade de papéis a partir das diferentes
brincadeiras que ocorriam.
Em função da dimensão do pátio e do número de alunos, o recreio era realizado em
dois momentos: às 15 horas, intervalo do 1º e do 2º ano; e, às 15h30min, do 3º e do
4º ano. Quase sempre, o pequeno pátio era utilizado tanto para recreio quanto para
84
a Educação Física, pois, no intervalo das 15 horas, havia uma turma fazendo
Educação Física. Como as atividades das crianças deveriam ser concentradas no
pátio, o professor de Educação Física sempre colaborava com a coordenação,
posicionando-se de maneira que as crianças não fossem para os corredores que
davam acesso às salas.
De modo geral, nossas observações consideraram o modo como a escola Profa.
Petronilha Vidigal estava organizada e como isso afetava as relações sociais dos
sujeitos escolares. A forma como o contexto escolar era organizado exigia das
crianças uma rotina de disciplina imposta a elas em função da organização
estabelecidas pelos adultos.
85
4 CASA-LAR SANTA CECÍLIA: SUA ROTINA, SEUS SUJEITOS,
RELAÇÕES E AFETOS
É preciso descobrir mais sobre as crianças, antes que alguém comece a inventar. E tudo o que é inventado sobre elas afeta suas vidas, o modo como as percebemos e as decisões que tomamos em nome delas
Graue e Walsh
Neste capítulo, discutiremos a dinâmica do cotidiano das crianças e adolescentes
que residiam na Casa-Lar Santa Cecília, bem como das relações estabelecidas
entre os sujeitos que compunham este universo. Enfocaremos, sobretudo, os efeitos
dessas relações no modo como as crianças e adolescentes se percebiam nesse
processo, sem perder de vista que esses sujeitos estavam sob tutela pública,
assistidos por um programa de acolhimento institucional.
4.1 SUA DINÂMICA E ROTINA
Ainda que tenhamos feito uma opção por denominar a instituição como casa-lar,
respeitando a proposta pedagógica da casa, gostaríamos de enfatizar que, de
acordo com as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2008) estabelecidas pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de
Assistência Social (CNAS), os parâmetros de funcionamento da Casa-Lar Santa
Cecília, em alguns aspectos, também se aproximam do abrigo institucional.
A principal diferença entre a modalidade “casa-lar” e “abrigo institucional” está no
número de crianças e adolescentes acolhidos e a presença do cuidador/educador.
Numa casa-lar o número de acolhidos, por cuidador, é bem pequeno; os pais sociais
– ou apenas uma mãe social – residem na casa e são responsáveis pelos cuidados
86
prestados às crianças e adolescentes e pela organização da rotina da casa. Já no
abrigo institucional, o número de crianças e adolescentes, por cuidador/educador, é
maior e este não reside na casa (BRASIL, 2008).
Na Casa-Lar Santa Cecília, nenhuma das cuidadoras reside na instituição, estas
nem mesmo são denominadas mães sociais. Quanto à coordenação da casa, cuja
função é equiparada ao guardião, nenhuma das duas residia na instituição, porém,
uma delas, Tereza, também fundadora da casa, era chamada, com algumas
exceções, pelas crianças e adolescentes, de mãe; a outra de tia, tia Alzira.
Ainda no que diz respeito às orientações técnicas aos serviços de acolhimento para
crianças e adolescentes, os espaços internos da casa devem manter os aspectos
semelhantes de uma residência comum à nossa cultura e, também, seguir o padrão
arquitetônico da comunidade local. A configuração desse espaço deve oferecer às
crianças e aos adolescentes atividades cotidianas similares aos padrões da
normalidade, ou seja, comum à infância e à adolescência (BRASIL, 2008).
As residências da instituição pesquisada, ou seja, onde as crianças residem, somam
três espaços que são compostos por quarto, sala, banheiro e uma cozinha; além
disso, varanda. Ainda que o espaço físico das residências seja doméstico, no geral,
a Casa-Lar Santa Cecília possui adaptações bem institucionais. A cozinha, por
exemplo, está no prédio central e segue um modelo arquitetônico de uma instituição
de médio porte, cuja circulação não é livre. Anexo a esta, fica o refeitório, composto
por longas mesas acompanhadas por dois extensos bancos cada uma. Também no
prédio central, fica a sala de estudos, cuja dinâmica é muito semelhante a uma sala
de aula, geralmente, usada pelas crianças e adolescentes para a realização das
atividades escolares, bem como atividades para aqueles que já estão em idade
escolar, mas não frequentam a escola; para estes últimos, é a “escolinha”. Aliás, o
material escolar das crianças e adolescentes que estudam permanece na secretaria.
Portanto, em função da atividade a ser realizada, as crianças e os adolescentes
dirigem-se para determinados espaços e, muitas vezes, acompanhados por um
profissional ou voluntário, principalmente os “pequenos”27.
27 Denomino de “pequeno”, pois esta é a forma como os adultos da casa dirigem-se aos mais jovens,
ou seja, aqueles que têm menos de 7 anos.
87
Segundo nossas apreensões, alguns objetos não poderiam ser levados para a casa
onde residiam, especialmente os mais jovens. Realizamos uma atividade de
desenho com os “pequenos”, na brinquedoteca; Fabíola, aproximadamente cinco
anos, permaneceu com a pesquisadora. Depois da atividade, ela pediu para deixar
um lápis azul com ela, mas segundo a orientação da coordenadora, o lápis poderia
ficar aos seus cuidados. Um lápis pode ser utilizado para outros fins, como rabiscar
a casa, portanto, algumas medidas eram tomadas para o zelo da casa e, também,
das crianças. Quando foi abordado sobre o atendimento personalizado, um técnico
respondeu que a instituição faz o possível para realizar esse tipo de atendimento.
Vale ressaltar, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Artigo 92, um dos
princípios cabíveis às instituições que desenvolvem programas de acolhimento
institucional é o “atendimento personalizado e em pequenos grupos”, o que inclui a
criação de espaços privados, onde os objetos pessoais possam ser guardados,
especialmente aqueles que, de alguma maneira, “contam” a história de vida da
criança, inclusive fotos. Prestes (2010) destaca que, durante o período de sua
pesquisa, as crianças abrigadas pediam-lhe qualquer coisa que lhes pudessem
pertencer, pois, segundo suas apreensões, havia uma necessidade de possuir algo
que fosse delas, como se as coisas as individualizassem em oposição ao coletivo.
Na Casa-Lar Santa Cecília, algumas normas, de certa forma, impediam as crianças
de obter e, ao mesmo tempo, guardar seus objetos, como o lápis de cor que Jéssica
havia ganhado; mas, por outro lado, por causa do pequeno número de adolescentes
abrigados e das residências disponíveis, foi possível disponibilizar um quarto para
cada um, o que favorecia a individualidade e o respeito à privacidade.
É importante ressaltar que a Casa-Lar Santa Cecília revela instalações físicas
bastante adequadas, todas em bom estado, e segue o padrão arquitetônico local,
coerentes com as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2008). Além disso, possui espaços alternativos
que favorecem o desenvolvimento infantojuvenil, como parquinho, brinquedoteca e
campinho de futebol. Também possui uma variedade de material pedagógico, livros
literários, jogos, entre outros. Portanto, o cotidiano dos acolhidos pela casa é bem
dinâmico.
88
A instituição está registrada no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, como preconiza o ECA. Durante a pesquisa, pudemos assistir a uma
reavaliação da casa realizada por profissionais da rede municipal de Vila Velha que
atuam no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Um dos abrigos pesquisado por Prestes (2010) era privado, também situado fora do
espaço urbano, com ótimas instalações e uma diversidade de espaços: playground,
quadra poliesportiva e salão de festas. O abrigo pesquisado por Montes (2006)
também era uma instituição privada com um espaço físico muito rico, bastante
voltado para as atividades profissionais, fato também encontrado por Prestes.
É interessante observar como as instituições que desenvolvem programas de
acolhimento possuem natureza não governamental. Entre os abrigos da Rede SAC
pesquisados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada predominavam as
instituições não governamentais, totalizando 68,3%, a maioria de orientação
religiosa (SILVA; MELLO, 2004). Como estabelecido no Estatuto da Criança e do
Adolescente, Artigo 86, “a política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e
não governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”.
Para Silva e Mello (2004), o número de abrigos não governamentais que declara
manter algum vínculo ou orientação religiosa não surpreende, uma vez que os
cuidados dos órfãos e abandonados foram assumidos pelas Santas Casas de
Misericórdia desde o final do século XVIII.
Vale ressaltar, durante a elaboração deste trabalho, praticamente, não tivemos
nenhum acesso aos abrigos mantidos por órgãos públicos. Identificar onde estão e
como desenvolvem suas atividades supõem outra pesquisa com o intuito de
conhecê-los e avaliar suas ações no âmbito da política de atendimento à criança e
ao adolescente.
Na Casa-Lar Santa Cecília, que é de orientação católica, o espaço é contemplado,
ainda, por um templo. As crianças e adolescentes ali acolhidos têm atividades
religiosas semanais, assim distribuídas: catequese, celebração e momentos de
adoração. Constantemente, a instituição recebe um padre para celebrar a missa. O
89
dia a dia também segue alguns rituais cristãos; antes das refeições, por exemplo,
são feitas orações e estas contam com a participação de todas as crianças e jovens,
exceto os três mais novos, pois ainda não dominam a linguagem.
Também era comum ocorrerem atividades festivas dentro da casa. Quando havia
aniversariantes no mês, havia comemoração no último domingo, com o intuito de
reunir todos eles. Havia celebrações que pessoas de fora organizavam na Casa-lar,
sobretudo, nos meses de outubro e dezembro, em função do dia das crianças e do
Natal.
Festas típicas de nossa cultura também eram comuns, como as festas juninas ou
julinas. Durante a pesquisa pudemos participar de festa junina, em que havia muita
comida, pescaria, danças, entre outros. Nesse evento, constatei que as crianças e
adolescentes estavam bem-arrumados, literalmente, a caráter.
Embora a Casa-Lar se distancie, de algum modo, do ponto de vista geográfico da
realidade de origem das crianças e dos adolescentes, por estar situada numa área
campal, o que fere aquilo que é estabelecido no Plano Nacional de Promoção,
Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária (2006), a instituição proporcionava às crianças vínculos com a
comunidade. Aliás, as atividades religiosas, como as celebrações aos domingos e
festas típicas eram abertas à comunidade. As crianças, em idade escolar,
frequentavam a escola da região e outros serviços oferecidos aos moradores locais,
como a Unidade de Saúde. Havia crianças exercendo outras atividades, uma delas,
o balé. No entanto, a oferta de vagas na região para a Educação Infantil era bem
inferior em relação à procura; as crianças entre quatro a cinco anos, na Casa-Lar
Santa Cecília, não frequentavam a escola.
Enfim, a dinâmica da Casa-Lar Santa Cecília era permeada de afazeres que
envolviam tanto os adultos quanto as crianças; a rotina comportava rituais comuns
ao cotidiano, como se alimentar, cuidar da casa, estudar, entre outros; mas também
seguir rituais religiosos.
90
4.2 RELAÇÕES SOCIAIS, SENTIDOS, DESEJOS E AFETOS
Como já referido em outro momento, na perspectiva Histórico-Cultural do
Desenvolvimento Humano, para Pino (2005), num sistema de relações sociais, as
posições e o papéis associados a essas posições definem como os sujeitos se
situam uns em relação aos outros dentro de uma formação social, ou seja, define a
“função social” de cada um. As posições e as funções passam, portanto, pela
significação que lhes é atribuída numa determinada formação social, caracterizada
por uma dinâmica que define como as relações sociais devem funcionar.
A organização de uma entidade que desenvolve acolhimento institucional para
crianças e adolescentes compõe-se de uma conjuntura estrutural que lhe é própria.
Ela é constituída por crianças afastadas, temporariamente ou definitivamente, do
ambiente familiar em função de uma decisão judicial e passam a ser assistidas por
uma equipe multiprofissional sob a responsabilidade de um guardião.
Na Casa-Lar Santa Cecília, às crianças e aos adolescentes está destinado o lugar
de ser o centro de um conjunto relacional que se propõe a zelar por eles enquanto
se encontram sob tutela pública. Se “sob tutela pública” significa estar sob a
responsabilidade do Estado, que figura humana compete ao poder de guardião em
relação às crianças e aos adolescentes? Lembrando, as crianças e adolescentes da
Casa-Lar Santa Cecília, na sua maioria, são indivíduos destituídos do poder familiar,
ou seja, suas famílias perderam o direito sobre eles e, segundo o novo Código
Civil28, isso acarreta em extinção do poder familiar e, consequentemente, tornam-se
aptas para a adoção.
As posições e/ou papéis construídos na história pessoal de um indivíduo
concretizam-se no dia a dia das práticas sociais no interior de uma história pessoal,
portanto, a criança atualmente sob tutela pública esteve antes em outros lugares
sociais constituídos historicamente de acordo com os arranjos sociais próprios aos
contextos que estava inserida.
28 Conferir no Código Civil, artigos 1.635 e 1638.
91
Conforme já foi abordado, na Casa-Lar Santa Cecília o zelo para com os acolhidos é
compartilhado por quatro categorias: administração institucional, equipe técnica,
cuidados diretos e apoio operacional. Para tratar das relações sociais desse
universo pesquisado, enfocaremos os atores que estiveram ligados mais
diretamente à pesquisa: as duas coordenadoras (administração institucional), a
assistente social (equipe técnica), três cuidadoras (cuidados diretos), duas
cozinheiras, o motorista e o jardineiro (apoio operacional) e, é claro, as crianças e os
adolescentes acolhidos.
Nesse extenso grupo, cabia à criança e ao adolescente, como em qualquer
conformidade familiar, obedecer. Nesse espaço, em que várias pessoas eram
responsáveis pelos cuidados com as crianças, a figura de referência a ser obedecida
era a coordenação, composta por duas mulheres. Observamos que a autoridade
centralizava-se, especialmente, na pessoa de Tereza e a única a que assistimos,
pelo menos por alguns, a ser chamada de mãe. Aliás, tendo como referência a Lei
de n° 2.01029, diríamos que esse segmento equiparava-se ao guardião.
Observamos que a figura de autoridade de Tereza era invocada, na maioria das
vezes, quando era preciso conter determinados comportamentos considerados
inaceitáveis. Certo dia, todas as crianças pequenas foram conduzidas, por uma das
cuidadoras, da casa onde residiam à brinquedoteca e, por ser a mais velha do
grupo, Sofia permaneceu na casa para ajudar nos afazeres domésticos. Amanda, 8
anos, amiga de Sofia, pediu para ficar na casa também, no entanto, seu pedido foi
negado. Já no pátio externo da casa, ela agachou e começou a “resmungar”. A
cuidadora que estava na casa replicou:
Cuidadora: Amanda, vai pra brinquedoteca [...]
Amanda: Vai tomar no cu [...]
Cuidadora: Eu ouvi o que você disse [...]. Vou falar com a tia Tereza
Naquele momento, o desejo de Amanda era de permanecer na casa junto de Sofia e
não acompanhar os “pequenos” à brinquedoteca. Instalada uma situação de
29 Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à
convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente.
92
“conflito”, a cuidadora reportou-se à figura de Tereza, já que nesse espaço constitui-
se uma figura a quem se deve obedecer.
A questão da autoridade de Tereza não veio à baila somente entre funcionários e as
crianças, mas também entre as próprias crianças. No parquinho, para conseguir
subir o balanço, Fabíola, aproximadamente 5 anos, surpreendeu Sofia da seguinte
maneira: “Me sobe, se não eu conto pra tia Tereza aquele negócio”. Sofia até
procurou esquivar-se, mas acabou cedendo: “Tá bom”.
No entanto, os indícios apontam que a manifestação de sentimentos por parte das
crianças e dos adolescentes não estava circunscrita somente no respeito à
autoridade. A primeira oficina foi realizada no espaço do abrigo, atividade que tinha
como objetivo o desenho livre utilizando apenas tinta guache, pincel e papel sulfite,
cujos participantes eram Sofia, Noah, Gabriel, 14 anos, e Marcos, aproximadamente,
16 anos, durante a atividade Sofia manifestou o desejo de presentear Tereza com
um desenho:
Sofia: Tia, me ajuda a fazer um coração de uma grande família, vamos entregar pra tia Tereza.
Pesquisadora: Qual o tamanho?
Sofia: Assim (mostra com o dedo circulando no ar). Tem que colocar o nome de todo mundo, depois eu e Gabriel vamos ‘entrega’ pra tia Tereza. Tia, você tem que escrever o nome de todo mundo.
Pesquisadora: Mas, quem são essas pessoas?
Sofia: As daqui.
Assim concluído, conforme apresenta a Figura 1:
93
Figura 1 – Desenho grande família
Fonte: Dados da pesquisa
Esse coração continha o nome de todas as pessoas que compunham o quadro da
Casa- Lar Santa Cecília. Dentro dele, o nome dos funcionários e fora dele, o nome
das crianças e adolescentes acolhidos pela instituição. No ato da entrega do
coração, Tereza notou a falta do nome do motorista, Áureo. Pediu que
acrescentassem. Eles, então, pedem à pesquisadora para acrescentar e novamente
foram entregar para Tereza. Sofia, Gabriel e Tereza colaram o desenho no quadro
que fica anexado na parede da varanda do prédio central. Essa produção não foi a
única a ser entregue à Tereza. Observamos muitos outros gestos de carinho
dirigidos à Tereza, bem como à Alzira e a outros que pertenciam ao quadro adulto
da casa.
Dentre as atividades executadas pela coordenação, durante o dia, embora raro,
estavam os cuidados diários das crianças, mas sua função estava atrelada,
principalmente, à gestão da casa. Os cuidados cotidianos e íntimos às crianças
ficavam ao encargo das cuidadoras, grupo que tinha a figura feminina como única
94
responsável por este trabalho, durante a pesquisa; era composto por cinco mulheres
e eram chamadas, quase sempre, por “tia” ou pelo próprio nome.
De acordo com as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2008), para garantir a oferta de atendimento
adequado a esses sujeitos, toda instituição deve elaborar a proposta de um projeto
político-pedagógico que contemple, entre vários aspectos, uma relação afetiva e
individualizada com os cuidadores, assim colocado:
Para que o serviço de acolhida cumpra de fato sua função de proteção, é fundamental que seja construída uma relação afetiva e estável entre o(a) cuidador(a)/educador(a) de referência e a criança ou adolescente. Os cuidadores/educadores devem ter qualificação específica para desempenhar esse papel e compreender sua importância no desenvolvimento de relações afetivas positivas e seguras com as crianças e adolescentes. As condições de trabalho e apoio, por parte da equipe técnica e coordenação do serviço, são fundamentais para evitar a rotatividade de cuidadores/educadores de serviços de acolhimento (BRASIL, 2008, p. 13).
Se a relação criança-cuidador deve nortear-se por um ambiente afetivo e estável, na
casa pudemos assistir a relações de afeto entre ambas as partes. Deparamo-nos
com situações em que a densidade do envolvimento de adultos com as crianças era
capaz de despertar sentimentos envolvendo um desejo de acolhimento muito maior
do que a profissão de cuidadora podia oferecer; em outras palavras, acolher como
mãe, sentimento demonstrado pela cuidadora Virgínia à pesquisadora que, naquele
momento, segurava Jaqueline, de dois anos, no colo: “Se eu pudesse, eu ia adota
Jaqueline”. Por outro lado, também houve situações em que a cuidadora nos pediu
para abrandar o contato físico com as crianças. Estávamos na casa dos pequenos,
Jaqueline se apegara à pesquisadora e ficava em seu colo, mas foi abordada pela
cuidadora Marta: “Tia, não fica com ela no colo direto, senão depois ela só quer
colo”.
Quando nos foi pedido para abrandar as possibilidades de colo à Jaqueline, a
cuidadora Virgínia, que no momento estava por perto, em outra ocasião, fez a
seguinte observação: “[...] Eu gosto quando tem visitante, eu não ligo se pega as
crianças no colo, pois assim me ajuda”.
Interessante observar que, no mesmo dia e em outra circunstância, duas irmãs,
Luísa, aproximadamente 4 anos, e Amanda, caminhavam com a pesquisadora no
95
pátio; Luísa dirigiu-se à pesquisadora, estendeu os braços e pediu colo. Amanda,
bruscamente, interrompeu Luísa, repreendendo-a: “Luísa, já disse pra você, só na
casa da mamãe tem colo, aqui colo é só pra bebezinho”.
As manifestações “afetivas” – que permeiam os discursos acima – requerem nossa
apreciação, embora o termo afetividade apresente certa dificuldade de conceituação
e análise. Trata-se, portanto, da maneira como os indivíduos são afetados pelos
acontecimentos da vida, aliás, dos sentidos desses acontecimentos que o indivíduo
tem para si (PINO, mimeo). Logo, os aspectos que mais fortemente afetam o sujeito
em sua natureza sensível referem-se às atitudes e às reações do outro com ele
próprio.
Assim sendo, parece mais adequado entender o afetivo como uma qualidade das relações humanas e das experiências que elas evocam [...] São as relações sociais, com efeito, as que marcam a vida humana, conferindo ao conjunto da realidade que forma seu contexto (coisas, lugares, situações etc.) um sentido afetivo (PINO, mimeo, p. 131).
Dessa maneira, pode-se supor que a qualidade das interações – entre as crianças e
os adultos, no contexto do abrigo, como experiências vivenciadas – marca e confere
aos lugares sociais um sentido afetivo. Para nós, uma indagação foi pertinente:
como as crianças “maiores” são afetadas, subjetivamente, quando, num
determinado contexto, as práticas sociais tendem a eliminar as possibilidades de
colo para quem já alcançou certa idade? Aliás, para os bebês, o colo também não
pode ser uma prática constante. Os adultos30 que têm como função o cuidado para
com as crianças, de certa forma, ocupam uma posição de “autoridade” que lhes
permite dizer o que é possível ou não nessa relação.
No entanto, o colo era possível em outro contexto, na casa da “mãe”,
independentemente da idade. Vale salientar, Amanda e Luísa, naquele momento, só
estavam aguardando a autorização judicial para colocação em família substituta,
porém, já frequentavam a casa da família. Durante a pesquisa, em relação às duas,
uma cena nos chamou atenção. No dia da festa junina, na igreja, na missa31 de
abertura, Amanda estava sentada junto à pesquisadora, do banco avistava-se o
portão de entrada. Quando entrou um casal, Amanda exclamou, com alegria:
30 Neste caso, as cuidadoras. 31 Ritual religioso comum no catolicismo.
96
“Mamãe chegou!”. Imediatamente, foi recebê-la com um caloroso abraço; em
seguida, também abraçou seu esposo. Logo, Luísa também se aproximou e todos
escolheram um banco para sentar. Durante o período em que estiveram na igreja,
Luísa permaneceu no colo dos dois. Outras vezes, assistimos à alegria de Amanda
ao receber o comunicado de que ia para a casa de Vanda, a mulher que desejava
adotá-la: “Eu vou pra casa de minha mãe!”, assim exclamava.
As manifestações de Amanda apresentaram-nos aspectos significativos com relação
aos vínculos que foram se constituindo no processo de saída, ou seja, sua inserção
na família substituta. A sua alegria traduzida nas suas expressões ofereceu-nos
indícios que nos fizeram supor sua preferência pela casa de Vanda.
Lidar com as necessidades e individualidades das crianças, num ambiente de
educação coletiva, como ocorre em instituições de acolhimento institucional, parece
ser um desafio a ser enfrentado por essas entidades, uma vez que o acolhimento,
no sentido mais amplo da palavra, nem sempre é possível. Por outro lado, a família
de Vanda parece ser muito mais acessível quanto ao atendimento às necessidades
e individualidades de Luísa e Amanda.
A adoção visa a garantir uma família à criança sob tutela pública; na letra jurídica,
constitui uma medida que objetiva garantir o direito à convivência familiar e
comunitária prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Constituição
Federal e outros documentos legais. Se a família constitui-se como um direito, para
Amanda e Luísa representa muito mais que isso e, segundo nossas observações,
outros na casa compartilham o mesmo sentimento. Um dia, brincávamos com as
crianças no parquinho, João se aproximou da pesquisadora, segurou sua mão e fez
um pedido:
João: “Tia, você me adota?”
Pesquisadora: Adotar...
João: É me leva pra sua casa.
O pedido de João, na nossa percepção, foi um dos mais fortes de nosso campo até
então, pois seu olhar e sua voz pedindo para levá-lo para casa tocaram-nos
profundamente. Embora em condições de ser adotado, João não possuía grandes
possibilidades de sair por essa via, uma vez que não atendia às expectativas dos
97
candidatos à adoção, que, na sua maioria, declaram desejar uma criança branca, do
sexo feminino, e, no máximo, dois anos de idade. Ser adotado aos cinco anos, idade
de João, é um fato considerado uma dádiva, pois se trata de uma adoção tardia
(PRESTES, 2010; MONTES, 2006).
E se, por um lado, as expectativas giram em torno da adoção, outras giram em torno
da “maioridade”. Gabriel, que também estudava na escola Profa. Petronilha Vidigal,
no 3º ano, era um aluno, segundo as apreensões de alguns profissionais da escola,
com problemas de aprendizagem; por isso, quando possível, era assistido por um
professor da Educação Especial. Numa conversa informal com o profissional, este
relatou que Gabriel comentava, às vezes, sobre suas expectativas em relação ao
que a Casa-Lar Santa Cecília poderia fornecer por ocasião da “chegada à
maioridade”, como por exemplo, ajudá-lo a procurar um emprego. Na sua
concepção, Gabriel ansiava por chegar à maior idade e alcançar sua independência.
Se a enunciação possibilita compreender os sentidos que os sujeitos imprimem aos
processos vivenciados na realidade histórica e cultural, é possível empreender que o
“abrigo” é sentido como um lugar de passagem ou, pelo menos, é o que se espera.
Ademais, o caráter provisório de uma instituição de acolhimento não é algo que
circula só nos enunciados das crianças e adolescentes abrigados. As instituições de
acolhimento foram criadas para oferecer cuidado e proteção à criança e ao
adolescente que tiveram seus direitos violados. “O abrigo é de medida provisória e
excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família
substituta, não implicando privação de liberdade” (ECA, Art. 101, Parágrafo Único,
2005). Deste modo, o cotidiano da Casa-Lar Santa Cecília é permeado por palavras
e gestos que legitimavam este espaço como um lugar de passagem.
Sob a perspectiva de Van Gennep, Victor Turner (1974) afirma que os rituais de
passagem ou de “transição” compreendem três fases: a “separação” (limiar em
latim), ou seja, quando o indivíduo se separa de um ponto fixo na estrutura social; a
“transição”, o período liminar, uma condição que não se assemelha nem com sua
condição anterior e nem ao estado futuro; e a “reagregação” ou “incorporação”, na
qual se consuma a passagem, um novo estado a ser desempenhado.
98
Pensar sobre abrigamento, na perspectiva de Turner, significa dizer que as crianças
e os adolescentes assistidos por um programa de acolhimento institucional estão em
estado de “transição”, ou seja, na liminaridade. Para Turner (1974, p. 117):
Os atributos da liminaridade, ou de personae (pessoas) são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.
Desse modo, na perspectiva de Turner (1974), no momento da passagem, a criança,
o ser transicional que deixou de fazer parte de um estado (estado familiar não
apropriado), ainda não passou completamente para sua nova condição (estado
familiar considerado “ideal”). Ela não estaria situada em nenhum lugar, estão no
“meio” (SNIZEK, 2008). No nosso entendimento está “entre”: entre o que ficou para
trás (a sua família biológica), a institucionalização (ser acolhido por um programa de
acolhimento institucional) e a possibilidade de saída (retorno à família, pela adoção
ou maioridade).
99
5 A CRIANÇA, O ABRIGO E A ESCOLA: A CONSTITUIÇÃO DA
SUBJETIVIDADE
Estas vidas, por que não ir escutá-las lá onde falam por si próprias?
Foucault
Nosso objetivo, a princípio, no primeiro rascunho deste projeto, era analisar os
impactos da educação escolar na constituição subjetiva da criança que, por algum
motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se achava sob tutela pública. No
entanto, quando pela primeira vez adentramos no espaço institucional da Casa-
-Lar Santa Cecília e no contato com as crianças, percebemos que corríamos o risco
de fraturar um conteúdo importante e rico para nossa pesquisa – os efeitos do
acolhimento institucional na vida da criança. Portanto, a partir de então, nosso
trabalho girou em torno da escola e do abrigo.
Como nosso sujeito era a criança em idade escolar, optamos por Noah e Sofia,
ambos com dez anos de idade. Por quatro meses, acompanhamos essas duas
vidas, de trajetórias distintas que, no entanto, compartilhavam o fato de estar sob
tutela pública e, no ato da pesquisa, eram crianças destituídas do poder familiar; em
outras palavras, aptas para adoção e, além disso, frequentavam a mesma escola e a
mesma série, o 3° ano.
Neste capítulo, pretendemos abordar algumas implicações do abrigo e da escola na
história de vida de Noah e Sofia, bem como conhecer melhor as interferências de
diferentes relações e interlocutores nos dois espaços, os lugares sociais ocupados
pela criança, e os sentidos/significações que advêm desses lugares que ocupam,
nas relações e, principalmente, alguns dos impactos disso na constituição subjetiva
desses sujeitos.
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5.1 SOFIA: O SILÊNCIO
O silêncio não são as palavras silenciadas que se guardam no segredo, sem dizer.
O silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge.
M. Le Bot
Sofia, 10 anos, estava na casa há poucos meses, na verdade, era a mais nova
integrante. Estava em outro abrigo, cuja instituição também acolhera sua irmã, já
adolescente. Segundo um profissional do abrigo, o motivo da transferência estava
relacionado à influência que a irmã exercia sobre Sofia, levando-a a praticar
comportamentos indesejáveis. Como medida de proteção, Sofia foi transferida para
a Casa-Lar Santa Cecília.
Na Casa-Lar Santa Cecília, já havia outra irmã, Sônia, de aproximadamente dois
anos de idade, irmã da qual não pôde participar da gestação e nem viu nascer. Os
motivos pelos quais as duas não se encontraram antes não foram compartilhados
conosco. Ademais, para os funcionários do abrigo, relatar as histórias pregressas
das crianças não era algo comum, pois significava expor os sujeitos. Sendo assim,
tivemos pouco acesso à vida vivida por Sofia antes do abrigamento e do
acolhimento institucional anterior.
Ainda que não tenhamos obtido êxito com relação ao número exato de irmãos, bem
como à condição deles, ficou claro para nós que a inserção de Sofia e seus irmãos,
numa casa de acolhimento institucional, não ocorreu coerentemente com o que é
estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente, que prega o não
desmembramento de irmãos. Montes (2006) e Prestes (2010), também, em suas
pesquisas, perceberam que, na prática, a regra jurídica nem sempre condiz com a
realidade, ambas acharam grupos de irmãos acolhidos por abrigos diferentes.
Para Prestes (2010), a manutenção dos vínculos entre irmãos, de fato, justifica-se
quando se leva em conta que as crianças acolhidas institucionalmente já foram
drasticamente desvinculadas do restante da família de origem, bem como da
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totalidade de seus bens. Dessa forma, manter esses laços coloca-se com uma
tentativa de garantir uma unidade mínima de referência. Vale ressaltar, em sua
pesquisa no interior do abrigo, que nomear qualquer uma das mulheres que
atuavam no abrigo de mãe era muito mais fácil do que chamar outra criança, não
consanguínea, como irmão.
Na Casa-Lar Santa Cecília, percebemos que, com relação a grupo de irmãos, dentro
das possibilidades da instituição, é feito o possível para mantê-los juntos, bem como
realizar intervenções para manter os vínculos parentais. No caso de Sofia, por
exemplo, que conheceu Sônia no espaço institucional e não dentro do seu grupo de
parentesco, foi preciso certo esforço para que Sofia a reconhecesse como irmã. Na
verdade, para alguns profissionais do abrigo, havia muita resistência por parte de
Sofia em aceitar Sônia como irmã.
Reportando-se à Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, a
criança nasce em um meio social permeado de significações socialmente definidas,
que se configuram em um processo de interação socialmente organizado. No
momento em que a criança sofre um desligamento do seu grupo social, ela fica, de
certo modo, impedida de acompanhar as mudanças ocorridas dentro dessa
organização, bem como a emergência de novas significações, como o nascimento
de um novo irmão e o lugar por ele ocupado nessa organização. Sendo assim, os
profissionais da Casa-Lar Santa Cecília tornaram-se os principais mediadores entre
Sofia e aqueles que compunham seu grupo de parentesco.
Em uma das visitas ao abrigo, um dia, pela manhã, no parquinho, acompanhávamos
a cuidadora Virgínia na recreação com as crianças. Junto a nós, estavam uma
voluntária e uma visitante. Depois de um bom tempo de interação com as crianças e
os adultos ali presentes, a visitante perguntou para Sofia: “Sofia, você é a única que
não tem irmão aqui?”; Sofia responde: “tenho sim, a Sônia”. Aliás, por várias vezes
assistimos a Sofia e Sônia brincarem juntas no parquinho.
No caso de Sofia, os profissionais do abrigo procuraram, como diria Prestes (2010,
p. 174), “atar os fios soltos em torno de sua biografia”. E, segundo o que
apreendemos em relação à Sônia, este fio foi atado.
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No entanto, se havia fios sendo atados, outros, tínhamos impressão, era o desejo de
Sofia desatá-los. Dos três desenhos da família de Sofia a que tivemos acesso,
mesmo considerando a multiplicidade dos arranjos parentais, algo nos inquietava: o
quantitativo de pessoas que representava para ela como sua família era bastante
distinto quando comparados os três desenhos. Além disso, os sujeitos familiares,
quando identificados, eram referenciados pelo nome. Achamos por bem investigar
os motivos pelos quais a palavra “pai”, ou “mãe”, não era utilizada por Sofia em seus
desenhos: inexistência ou omissão?
Foi no contexto escolar que questões relacionadas à sua família de origem
emergiram. Isto porque utilizamos desenhos propostos pela professora da turma,
bem como criamos situações, em parceria com o professor de Artes, para que as
crianças pudessem se expressar por meio do desenho.
A chegada de Sofia à escola “Profa. Petronilha Vidigal” coincidiu com a semana de
avaliações; sua professora permitiu que ela fizesse as atividades sem prejuízo em
relação aos seus rendimentos.
Uma questão da avaliação de Geografia tinha o seguinte enunciado: Vivemos em
comunidade: temos nossa história, nossa casa, nossos documentos, nossa vida...
Ninguém vive sozinho! A primeira comunidade da qual fazemos parte é a nossa
família. Desenhe você e sua família.
A Figura 2 contém a representação de família feita por Sofia.
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Figura 2 – Desenho família Sofia I
Fonte: Dados da pesquisa
Sofia não nomeia os indivíduos que compõem sua família, no entanto, um dos
sujeitos do sexo feminino sugere ser Sofia, pois a atividade pedia para desenhar a si
própria. E os outros dois, quem seriam? Alguns de seus irmãos? Outro desenho,
também feito em contexto escolar, sob nossa orientação, denota outro arranjo
familiar, com muito mais integrantes, como mostra a Figura 3, abaixo.
Figura 3 – Desenho família Sofia II
Fonte: Dados da pesquisa
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Sobre esse desenho, havia três personagens sem nomeação; tivemos oportunidade
de perguntar quem eles eram, e ela complementou: “Sandra, Sílvia” e quanto ao
terceiro personagem, ela silenciou. “E esta, Sofia”, perguntou a pesquisadora: “É
uma amiga”, respondeu. Observa-se que agora a família está bem maior, cujos
integrantes são nomeados pelo próprio nome, porém, um personagem que sugere o
sexo feminino não é nomeado, nem em função de nossas indagações. Os sentidos
atribuídos por Sofia à família de origem, bem como os sujeitos que a compõem,
parecem ser permeados de ambiguidades, marcados por fraturas, lacunas e
omissões.
Certo dia, na escola, no horário de intervalo, ao correr no pátio, Sofia chocou-se
bruscamente com um menino e caiu com o rosto no chão, causando-lhe inchaço na
altura da face. Ela foi acolhida pela coordenadora que a deixou sentada no término
do corredor próximo à mesa da coordenação. Aproximamo-nos dela para saber o
que aconteceu, mas logo a coordenadora chegou e, ao observar o rosto de Sofia,
percebeu uma cicatriz em sua testa e perguntou: “O que foi isso?”, Sofia respondeu:
“Meu pai ‘chego’ em casa, procurou a chave, achou que estava com minha irmã, aí
acertou a corrente em mim em vez de acertar nela”.
Do tempo em que passamos com Noah e Sofia, esse foi o único enunciado ouvido
em relação à família de origem; de qualquer maneira, ouvir relatos sobre a família
biológica de quaisquer outros abrigados foi uma raridade, a única exceção foi
Gabriel, que comentou sobre o falecimento da mãe. Sobre a história pregressa, não
se diz, o que se percebe é o silenciamento. Concordando com Orlandi (1992, p. 70),
consideramos que, nesse caso, “a hipótese de que partimos é que o silêncio é a
própria condição de sentido” (ORLANDI, 1992, p. 70).
Orlandi (1992), para tratar da questão do silêncio, faz um paralelo entre o silêncio e
o mar. Do disperso e profundo mar, a única coisa visível são as ondas, no entanto, é
nas profundezas das águas, no silêncio, que está seu real sentido. As ondas (o
limite) são apenas o ruído, o movimento periférico (as palavras).
O ruído – desta vez, mais intenso – de algum modo desvela aquilo que era mais
profundo, nutrido pelo silêncio: o histórico da agressão. Além daquilo que é dito, o
movimento mais periférico, as marcas deixadas no corpo, o signo da violência,
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presentificam o sentimento da dor e da angústia das feridas acesas no contexto
familiar, na relação com o outro, com seu pai.
O silêncio tão presente no contexto do abrigo marca profundamente o lugar ambíguo
que a criança sob tutela pública ocupa. E, se o passado é tenebroso, é melhor
mantê-lo nas profundezas; o que se percebe são os ruídos, algumas vezes
expressos nas palavras. Talvez, por causa disso, a única justificativa que
conseguimos ouvir sobre o motivo pelo qual Sofia foi afastada da família foi a
expressão: “A negligência e os maus-tratos”, enunciada por um profissional do
abrigo.
Além do silêncio ou negação de algumas crianças em falar de sua família de origem,
observamos também a própria imposição do silêncio, uma vez que o motivo do
abrigamento é algo que os profissionais do abrigo procuram esconder ou, quem
sabe, “apagar”; fato também observado em outras pesquisas como a de Prestes
(2010) e de Mendes (2007), pois tratar do parentesco biológico, bem como do
processo de desligamento da família de origem, parecia violar um tabu.
De acordo com o Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes
da Rede SAC, a violência doméstica (maus-tratos físicos e/ou psicológicos
praticados pelos pais ou responsáveis) apareceu em terceiro lugar entre os
principais motivos do acolhimento institucional no Brasil (SILVA, 2004).
A violência física, no âmbito doméstico, traduz-se pelo uso da força física ou pelos
pais ou pelos responsáveis, no relacionamento com a criança e adolescente. “Essa
relação de força baseia-se no poder disciplinador do adulto e na desigualdade
adulto-criança” (BRASIL, 1997, p. 11). Sofia traz no corpo as marcas da violência. O
que nos angustiava é que ela não era a única no abrigo, vimos marcas muito mais
explícitas e profundas.
É inegável o quantitativo de trabalhos e documentos em torno da importância e dos
direitos da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária. No livro
intitulado “Família brasileira, a base de tudo”, produzido em parceria com a Unicef,
Kaloustian (2011, p. 12) considera-se que:
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[...] A família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência de desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais membros, independentes do arranjo familiar ou da forma como vêm se estruturando. É a família que propicia os aportes afetivos e, sobretudo, materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes.
Dentre os direitos assegurados no Estatuto da criança e do Adolescente, o Artigo 18
destaca o direito à dignidade, pondo-os a salvo de toda e qualquer forma de
exploração, violência, tratamento desumano, humilhante ou constrangedor, vexatório
e aterrorizante. Quando há ameaça e/ou violação desses direitos, algum ente
(família, sociedade ou Estado) é responsabilizado por ação ou omissão dos direitos
assegurados em Lei.
Muito embora a destituição do poder familiar seja vista como uma medida que fere
os direitos da criança e do adolescente de conviver com sua família biológica,
percebe-se que essa destituição – visando a assegurar à criança e/ou adolescente a
proteção dos direitos que foram violados por seu pai e/ou mãe – torna o acolhimento
institucional uma medida de relevante importância; pois, constatada a
impossibilidade do convívio com a família biológica, no contexto legal, o programa
objetiva garantir a oportunidade de participação da criança e/ou adolescente em
uma nova família. Entretanto, essa separação não ocorre também sem prejuízos
para a própria criança.
Para Wallon (1975, p. 174), “o grupo é indispensável à criança não só para sua
aprendizagem social, mas também para o desenvolvimento da sua personalidade e
para a consciência que pode tomar dela”. Portanto, em nossa sociedade, à família,
como grupo, tem sido atribuído um papel fundamental no desenvolvimento físico e
psíquico da criança.
As expectativas, os valores e as normas difundidos no âmbito familiar fornecem os
contornos que permitem ao sujeito significar aquele contexto e a si próprio. Quando
o indivíduo de referência do grupo familiar, ou seja, a figura paterna agride
fisicamente seus filhos, amedrontando-os, quais sentidos são produzidos pela
criança sobre esse “pai” e o lugar por ela ocupado nessa relação? Além disso, quais
os impactos da agressão na constituição subjetiva dessa criança?
Na concepção de Bakhtin (1992, p. 378):
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Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros [...], e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da representação que terei de mim mesmo [...]. Assim como o corpo se forma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a consciência do homem desperta envolta na construção do outro. É mais tarde que o indivíduo começa a reduzir seu eu a palavras e a categorias neutras, a definir-se enquanto homem, independentemente da relação do eu com o outro.
Desse modo, os sentidos que a criança atribui de si mesma ao longo de seu
desenvolvimento estão profundamente relacionados ao modo como os adultos à sua
volta a significam e é por meio desse processo de significação, estabelecido pela
interação do eu-outro, que a criança vai tomando consciência do próprio eu.
Portanto, a maneira como o adulto, principalmente quando este é referência paterna,
relaciona-se afetivamente com a criança, seja ela boa ou ruim, vai refletir no
decorrer da sua história de vida. Assim, se para o adulto, insensível à dor da criança,
esta pode ser agredida, deixando marcas em seu corpo; por outro lado, para a
criança que experiencia a dor – ou as muitas dores que perpassam a agressão e a
violência por aqueles que deveriam ser os primeiros a protegê-las – as marcas
deixadas por essa experiência são muito profundas. Isso nos leva a questionar
sobre as possibilidades que essa criança tem de elaborar-se e reestruturar-se, no
decorrer do tempo, sem um apoio psicoterapêutico.
Em relação à Sofia, as agressões sofridas no contexto familiar dificultam a
concretização das representações acerca do progenitor. Sofia não insere no
desenho da família o pai que bateu nela com uma corrente, na maioria dos
desenhos sugerem-se apenas os irmãos.
Quanto à figura materna, Sofia tinha um desenho de uma casa e nela dois sujeitos
do sexo feminino, uma acompanhada com a palavra “mãe” e outro com a palavra
“filha”.
A Figura 4 ilustra essas imagens.
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Figura 4 – Desenho Sofia
Fonte: Dados da pesquisa
Ao contrário dos outros desenhos, esse não foi feito em função da necessidade de
se representar simbolicamente a sua família. A criança tinha apenas que desenhar
uma casa, no entanto, nesse espaço, ela acrescentou essas duas pessoas. Estaria
se referindo à mãe biológica, quando nomeia uma das figuras femininas de “mãe”? E
a filha seria a si própria? O que está implícito no desenho – uma realidade ou um
desejo sublimado? Por que motivo a mãe não aparece em outros desenhos em que
há um pretexto concreto para se representar a própria família?
O abrigamento é um processo desencadeado em função da impossibilidade de
convivência com a família de origem; quando ocorre a destituição do poder familiar,
esse processo caracteriza-se pelo rompimento definitivo em relação ao grupo de
parentesco. Indagamos, então: como as crianças se ajustam a essas condições tão
críticas? Depois de abrigadas, quais são suas perspectivas, uma vez que o grupo
familiar de origem deixou de ser uma possibilidade?
Entre vindas e idas, as crianças percebem que as casas de acolhimento institucional
são concebidas para ser lugares de passagem e a história de cada um é regida por
esse movimento. Quando, na ida de Amanda e Luísa, irmãs de Noah, consumou-se
a passagem para uma família considerada ideal, foi nos olhos de Sofia que
percebemos a ansiedade de quem circula nesse sistema sem saber ao certo qual
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será o seu “destino”. Para Sofia, que não tinha possibilidades de voltar para a família
de origem, e cujos irmãos seguiam por caminhos diferenciados, ou seja, dispersos
por instituições diferentes, parecia que a adoção era algo desejado. Na ocasião em
que a visitante perguntou à Sofia se era a única sem irmãos no abrigo e ela
respondeu dizendo que tinha Sônia, ela concluiu a resposta da seguinte maneira:
“Eu ia ser adotada junto com meu irmão, mais aí me ‘truxeram’ prá cá”. De onde
parte a elaboração de Sofia da possibilidade real de ser adotada e de que só não o
foi porque a separaram de seu irmão? Do tempo que passamos com Sofia, tínhamos
a impressão de que a possibilidade real de adoção estava muito mais relacionada à
esperança de um caminho possível para uma vida feliz do que uma adoção com um
irmão.
Para Amaral (2006), no abrigo, as crianças apresentam diferentes expectativas em
relação ao futuro, algumas desejam e, realmente, esperam voltar para a casa da
família originária. Outras, porém, lutam para garantir o contato cada vez mais
próximo das pessoas que se vão constituindo como uma família afetiva, na
perspectiva de que sejam adotadas por elas.
No contexto escolar, foi possível perceber o quanto era difícil para Sofia colocar-se
como uma criança institucionalizada, condição que a diferenciava dos seus pares e
de tantas outras crianças nas quais convivia boa parte da semana.
A nossa presença, no primeiro dia em que adentramos a escola e nas duas
semanas que se seguiram, foi tratada com certa neutralidade ou até mesmo
indiferença por parte de Sofia. Sendo assim, procuramos agir com muita
naturalidade e espontaneidade, sempre nos envolvendo e interagindo com as
crianças de sua turma. Como, na maioria das vezes, a interação consistia no auxílio
às tarefas escolares, ao entrarmos na sala, imediatamente, algumas delas já pediam
para que sentássemos com elas, uma vez que durante as atividades a professora
permitia que as auxiliassem.
Passamos a sentar de forma estratégica, de maneira que pudéssemos interagir com
as meninas que compunham o círculo de amizade de Sofia, principalmente nas
aulas de artes, cuja dinâmica permitia maior interação. Uma aula de artes contribuiu,
significativamente, para “quebrar” o distanciamento entre nós e Sofia. Nesta aula,
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nós sentamos em grupo para pintar um desenho distribuído pelo professor. Durante
a aula, Sofia interagiu conosco, olhou a bolsinha de lápis e caneta da pesquisadora,
pediu a lixa de unha emprestada, brincou e sorriu bastante.
Em poucos dias, ao entrar na sala para a observação diária, Sofia, que até então
mantinha distância, pediu para que sentássemos com ela e assim fizemos. Nesse
dia, ela estava sentada na última carteira e, de certo modo, “escondida”, pois estava
entre a parede e o armário da professora; à nossa frente, um aluno, chamado Pedro.
Conversávamos sobre a atividade proposta quando, ao diminuir o tom de voz, Sofia
perguntou:
Sofia: Tia, você lembra de Maria Júlia?
Pesquisadora: Sim.
Sofia: Ela ‘rancou’ a cabeça do dedo na porta.
Pesquisadora: Levaram ela para o hospital?
Sofia: Tia Alzira levou, ela tá com a mão toda ‘infaxada’. Tia, você ficou de me dar um pirulito e não deu.
Pesquisadora: Dei, sim, eu levei a tua casa aquele dia e deixei com a tia Tereza.32
Embora conversando em tom baixo, Pedro, que estava sentado à frente, ouviu
nossa conversa e interferiu: “Você já foi 'na' casa dela, tia?”. Sofia, com os olhos
arregalados, olha para pesquisadora, assustada, com receio de que a conversa
prosseguisse, cerra os lábios com o dedo indicador, sinalizando que nada podia ser
dito naquele momento. Silenciamo-nos. Para Pedro, a pesquisadora respondeu: “É
só uma conversa entre ‘eu’ e Sofia, tudo bem?”. Pedro balançou a cabeça,
concordando, e acrescentou: “Tudo bem”.
Chamou-nos atenção a expressão facial de Sofia, que supunha medo, susto e
ansiedade; intrigou-nos o gesto, que encerrou a conversa, pedia silêncio, pedia
“segredo”. Medo de quê? Segredo de que e por quê?
Se respondêssemos à pergunta de Pedro, talvez ele tivesse alguma chance de se
apropriar do universo vivido por Sofia, qual seja, a vivência institucionalizada, a
vivência com um grupo de crianças que se achava instalada no abrigo e estava sob
32 Há, aproximadamente, uma semana desse episódio, Sofia havia pedido um pirulito; como estava
agendada entrevista com a coordenação no abrigo, no fim de semana seguinte ao ocorrido, levamos pirulito para todas as crianças.
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os cuidados de um grupo que difere das configurações familiares comuns a nossa
sociedade. Ainda que tenha tido uma família comum a tantas outras crianças, no
caso de Sofia, essa família falhou.
Nesse ponto, é importante relembrar que a partir de um estigma de abandono, as crianças abrigadas estão em situação que gera profundo estranhamento no restante da sociedade. Existe uma dificuldade de se conceberem crianças em situações outras que fora de uma vida familiar nos moldes da “família estruturada”, assim, o senso comum produz saberes, práticas e discursos sobre os horrores do abrigamento (SNIZEK, 2008, p. 83).
A passagem por uma instituição de acolhimento representa, portanto, um desvio,
uma diferença, uma incompletude, tão dolorosa de ser suportada que é melhor
mantê-la em segredo, mesmo entre crianças. Ao sinal de qualquer ameaça, antes
camuflar a “verdade” do que se expor. A verdade que gira em torno da “negação”
por parte de quem deveria acolhê-la e amá-la; do rompimento dos vínculos em
consequência dessa negação marcada pela agressão física.
Outro fato interessante aconteceu também na aula de Artes. Em decorrência do mês
do folclore, agosto, o professor lançou um desafio para a turma: decifrar as
“adivinhações”. Sentamos junto ao grupo em que Sofia estava, desta vez, também,
no seu círculo de amizade. Foi uma aula descontraída, ríamos muito enquanto
tentávamos desvendar as adivinhações. Entre as adivinhações, uma era: “de noite
tem seis pés e de manhã só tem quatro pés”. Quando chegamos a esta questão,
Flávia, amiga de Sofia, logo disse: “É a cama, quando tô acordada, minha cama tem
quatro pés e, quando deito, ela tem seis”. No entanto, Bianca, uma colega do grupo,
retrucou: “Nem toda cama de noite tem seis pés”. “É verdade, a minha, por exemplo,
tem oito; quatro pés da cama, dois pés são meus, os outros dois, do meu marido”,
disse a pesquisadora. Sofia clamou: “O meu tem seis, pois eu durmo sozinha”.
Analisando o enunciado num contexto mais amplo que o engloba, percebemos que
os sentidos dos discursos evocam um objeto pessoal, a cama, bem como de um
espaço “privado”, o próprio quarto e, este por sua vez, compreende um cômodo da
própria casa.
Entretanto, Sofia não dormia sozinha, ela dividia a cama com as outras meninas,
portanto, sua cama era de uso coletivo, bem como o quarto onde dormia e a casa
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onde residia. E se, porventura, dissesse que sua cama tinha oito ou mais pés, corria
o risco de dizer, também, com quem dormia, como fez a pesquisadora? E como
explicar, caso alguém perguntasse? Por outro lado, quando se dorme sozinho
representa o mínimo de individualização, de alguém que possui o seu próprio quarto.
Sendo assim, descartaria qualquer possibilidade de que usufrui coletivamente de
uma cama, do quarto, da casa. Acrescentando a isso, implícito no discurso, um
desejo sublimado, o de ter o seu próprio quarto. Afinal, no contexto do abrigo, Sofia
já havia manifestado o desejo de ter um quarto só para ela. No espaço que
utilizávamos para nos reunirmos com as crianças, havia vários cômodos e estes se
aproximavam de uma casa, uma pequena cozinha, quartos e sala. Um cômodo tinha
um colchão e, ao indagarmos sobre ele, Sofia expressou seu desejo: “Ai... eu queria
ter um quarto só pra mim”.
Na interação entre pares, na escola, as conversas podiam girar em torno das tarefas
escolares, dos objetos pessoais, do lanche, de uma infinidade de coisas. De tudo,
pareceram-nos bastante peculiares os discursos referentes ao cotidiano familiar: “Eu
cuido do meu irmão”; “Minha mãe trabalha”, “Mamãe me ensinou fazer bolo”; “Vou
pedir minha mãe pra comprar picolé, amanhã”; “Vou ‘na’ igreja com meu pai”; Eu
estava faltando, porque meu avô faleceu”33. Estes enunciados representam apenas
um recorte de tantos outros que repercutiam nas vozes das crianças matriculadas no
3º ano B, turma à qual pertencia Sofia.
Quando seu círculo de amizade pretendia organizar uma festinha ou um piquenique,
na hora do intervalo, os acordos sobre o que cada uma levaria dependeriam dos
daqueles estabelecidos, primeiramente, entre elas e suas mães. Do piquenique do
qual pudemos participar, havia pipoca, que a mãe de Lorena estourou, bem como a
toalha cedida por ela; o refrigerante que a mãe de Sandra comprou; e o biscoito que
a mãe de Flávia deu. Além dessas três, o piquenique contava com a presença de
Sofia e Brunela, estas, por sua vez, não levaram lanche.
Se todo discurso deixa transparecer marcas que revelam aquele que enuncia,
alguns dos discursos infantis da turma do 3º ano B revelaram o universo constituído
por laços de identidade com a família.
33 Esses são alguns dos enunciados proferidos pelas crianças em sala, na sua maioria, pelo círculo
de amizade de Sofia.
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No campo do parentesco, naquele momento, Sofia só convivia com Sônia, criança
que conhecera há poucos meses, e ambas estavam inseridas em lugar onde não
foram concebidas, aliás, acolhidas temporariamente, estavam à espera de uma
família que pudesse adotá-las.
Durante o tempo que permanecemos na escola, de modo particular, no 3º ano B, na
relação entre pares não presenciamos, por parte de Sofia, nenhum relato verbal
sobre a família de origem, nem mesmo as experiências vividas na Casa-Lar Santa
Cecília; nem sequer mencionou o nome dos integrantes da instituição, pelo
contrário, nos discursos infantis, quando havia referências do cotidiano familiar,
Sofia silenciava. A única exceção foi em relação à pesquisadora, com ela,
compartilhava alguns fatos que se passavam na casa, embora isso só tenha
ocorrido com o tempo. Ao comentar, falava em segredo, voz baixa, na ausência do
círculo de amizade.
Para Bakhtin (2012), é nas relações com os outros, na intersubjetividade, partilhado
no diálogo, que eu toma consciência de si mesmo, de sua realidade social. Sendo
assim, na nossa compreensão, tornar pública uma vivência institucional pode ser
ainda mais doloroso, uma vez que no confronto com a experiência do outro vivencia-
-se a alteridade de seu próprio interior. Por outro lado, esse mesmo outro que, na
interação com ele, marca o limite daquilo que nos falta, ou seja, nossa incompletude,
também potencializa outros modos de se sentir no contexto escolar.
Sofia tinha um bom relacionamento com seus pares. Durante o tempo de pesquisa
na escola, presenciamos vários momentos de interação com as crianças, bem como
o desejo de querer participar das atividades com os colegas de sala, sobretudo com
seu círculo de amizade. Nas atividades de grupo, era sempre chamada por uma das
meninas do seu círculo de amizade, principalmente, por Flávia e Sandra. Os
materiais escolares eram compartilhados e estava sempre envolvida com seus
colegas nas tarefas escolares. Nas atividades de Educação Física, nos jogos de
competição, era uma parceira bastante disputada, em função do seu físico e
agilidade. No contexto do abrigo, sobre a escola, certa vez, disse: “Eu gosto de ir
‘na’ escola, gosto dos meus amigos”.
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No grupo a que pertencia, mantinha fortes vínculos de amizade. Era um grupo
dinâmico e, com espírito de liderança, organizava festinhas realizadas em sala, bem
como os piqueniques que, eventualmente, aconteciam no intervalo. Sofia podia não
ter trazido nada para o lanche coletivo, entretanto, mesmo assim, estava junto a
elas, participando. Certo dia, no recreio, o short de Sofia rasgou na altura da
nádega, imediatamente as meninas que compunham seu grupo fizeram um paredão
com o intuito de esconder o rasgado da roupa da colega. Todas foram juntas pedir
socorro à coordenadora.
Sofia demonstrou também, várias vezes, gestos de carinho em relação a sua
professora. No abrigo, quando, com a ajuda da pesquisadora, confeccionou o
desenho de um coração com o nome de uma grande família, pediu para que
colocasse o nome da professora: “Tia, como este coração é meu, você também
coloca o nome da minha professora, Verbênia”. Sofia também já ouviu, por parte de
sua professora, um elogio, embora tecer elogios em relação aos seus alunos não
fosse uma prática comum; entretanto, um dia, quando a pesquisadora estava com
Verbênia em sua mesa, Sofia aproximou-se e fez uma pergunta em relação ao
exercício e sua professora respondeu às suas questões, dizendo: “Está vendo?
Você é inteligente, Sofia”. No dia do aniversário de Verbênia, Sofia escreveu uma
carta para entregar a ela, na festa-surpresa que um grupo de meninas organizou,
conforme a Figura 5.
Figura 5 – Carta à professora de Sofia
Fonte: Dados da pesquisa
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Sob a ótica da Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, o
significado das ações humanas e os sentidos produzidos nas práticas sociais
tornam-se significativos para os sujeitos, de acordo com o lugar e o que se espera
deles em razão desse lugar. Sendo assim, a internalização dessas práticas torna-se,
essencialmente, uma questão de pertencer e participar delas, em que o sujeito, na
interface com o outro, constitui-se nas relações significativas com esse outro.
Desse modo, no tempo que permanecemos na escola Profa. Petronilha Vidigal,
podemos dizer que, na relação entre pares e entre adultos, as experiências
vivenciadas por Sofia despertaram nela um sentimento de pertença, nutrido por
vínculos afetivos que contribuíram para que percebesse esse espaço como um lugar
de valor, transformando-o em um lugar de sua infância.
Da mesma forma que Sofia “invade” nossa pesquisa sem pedir licença, traz suas
falas, experiências, um recorte de sua vida, Noah também chega; com seu jeito
ríspido e sorridente, também compartilha conosco suas experiências, sua dor e
expectativas.
5.2 NOAH: O CHORO E OS COMPORTAMENTOS INADEQUADOS
Todo inventor, por mais genial que seja, é sempre produto de sua época e de seu ambiente.
Sua obra criadora partirá dos níveis alcançados anteriormente e também se apoiará nas possibilidades que existem fora de si.
Vigotski
Quando chegamos à Casa-Lar Santa Cecília, Noah, dez anos, já estava na
instituição há quase dois anos; aliás, não só ele como também seus quatro irmãos,
dentre eles Amanda e Luísa, crianças citadas no texto anterior, Isaac, de
aproximadamente cinco anos, e David, aproximadamente três anos de idade.
116
Quando o grupo de irmãos chegou à Casa, eram seis, mas, neste espaço de tempo,
o mais velho foi adotado. Na compreensão de alguns profissionais do abrigo, foi um
grande acontecimento, pois se tratava da adoção de um adolescente, algo incomum
na adoção brasileira. Da mesma forma, foi uma alegria, por parte dos profissionais, a
iniciação do processo de adoção de Amanda e Luísa, pois, a princípio, somente
Luísa seria acolhida pela família de Vanda, no entanto, pelo fato de ela ter uma
única irmã e haver relação próxima entre as duas, Vanda pediu a guarda das duas.
Na verdade, a adoção de irmãos biológicos também não é uma prática comum no
Brasil. Vale pontuarmos que, segundo a nova Lei de Adoção de nº 12.010, Art. 28, §
4º,
[...] Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais.
A Lei determina que os grupos de irmãos devam ser colocados numa mesma
família, salvo quando seja comprovado algum risco que justifique a separação.
Quais as possibilidades de uma única família brasileira adotar um grupo de seis
irmãos? Este foi um dos questionamentos de alguns profissionais do abrigo, quando
foram abordados sobre a adoção de irmãos. Para a equipe que compõe o quadro
profissional da Comissão Estadual Judiciária de Adoção do Estado do Espírito Santo
(Ceja-ES), entre a possibilidade de adotar parte deles e não adotar nenhum, pois há
este risco, é preferível que, pelo menos, se adote uma parte; e se o grupo for
extenso, que se adotem pequenos grupos.
Se, em função de um grupo extenso de irmãos, fosse necessário dividi-los em
pequenos grupos para facilitar e agilizar o processo de adoção, como se daria esse
processo? Há preferência por adoções na mesma cidade ou região? Há
compromisso dos pais adotantes em manter um mínimo de contato? Nosso objetivo
maior não é discutir adoção, no entanto, na história de vida de Noah, segundo as
apreensões de um profissional do abrigo, os vínculos familiares ocupam lugar
importante: “Noah chorou muito, quando falamos que Amanda e Luísa iriam ser
adotadas [...] chorou muito”. Aliás, na entrevista com alguns profissionais do abrigo,
117
um dos comportamentos marcantes de Noah era o seu choro, muito frequente nos
primeiros meses de estadia na Casa-Lar Santa Cecília.
No processo da pesquisa, uma de nossas tarefas foi tentar compreender o motivo de
tantas lágrimas. Noah tinha uma história, uma criança que é assistida por um
programa de acolhimento institucional supõe a desvinculação de sua família de
origem, desse modo, fomos impelidos a buscar, além da sua condição atual,
alicerces na sua história de vida que pudessem clarificar o porquê de tanto choro.
Não foi algo fácil, uma vez que, para os funcionários do abrigo, falar sobre o assunto
significava expor os sujeitos, logo, isso nos custou um esforço muito grande, para
obter um mínimo possível de informações que sustentassem nossa análise.
Noah vem de uma família extensa, na verdade, possui mais irmãos34 além dos que
estavam e haviam passado pela Casa-Lar Santa Cecília. A intervenção estatal
surgiu na vida da família quando passaram a haver denúncias relacionadas à
“negligência”; sim este é o termo mencionado na entrevista com um dos
profissionais do abrigo, tratando-se, no entanto, de situações “extremamente
complexas, pois envolvem grandes sobreposições de problemas” (RIZZINI; RIZZINI;
NAIFF; BAPTISTA, 2006, p. 45). As denúncias giravam em torno das faltas
escolares, má alimentação e presença frequente das crianças nas ruas, inclusive, à
noite. As abordagens e intervenções realizadas pelo poder público não foram
suficientes para sanar as dificuldades daquela família, por fim, veio a destituição do
poder familiar. Segundo o profissional do abrigo, houve o reconhecimento da mãe
em não poder criá-los e acabou entregando os filhos para adoção; no entanto,
mesmo a pedido dela, não foi possível despedir-se dos filhos, apenas visualizá-los
em uma sala, por um espelho, de maneira que só ela os via; as crianças, ao olharem
para o espelho na parede, viam apenas o próprio reflexo. Ainda segundo esse
profissional, foi uma despedida de muitas lágrimas e, também, muito triste para
quem estava por perto.
34 Com relação aos seus outros irmãos não foi possível obter informações sobre eles, uma vez que
nem os profissionais do abrigo tinham.
118
Naquele momento, consolidava-se uma desfiliação, um rompimento, a separação.
Naquele instante, a mãe estava transferindo para o Estado a responsabilidade por
aquelas crianças, enfim, elas se tornavam crianças sob tutela pública.
Analisando num contexto mais amplo, o reconhecimento por parte da mãe de não
poder criar os filhos traduz, na verdade, a falta de investimento público ou recursos
disponíveis às famílias, especialmente às de baixa renda, para enfrentar os
problemas cotidianos. Afinal, a dor da mãe expressa na despedida oferece-nos
indícios do sofrimento que também passou ao abrir mão dos filhos. Nesse contexto,
não é difícil perceber que o processo de exclusão social, ou seja, “as milhares de
famílias sem-terra, sem casa, sem trabalho, sem alimento, enfrentam situações
diárias que ameaçam não só seus corpos [...] mas, simultaneamente, seus vínculos
e subjetividades” (VICENTE, 2011, p. 47).
A destituição do poder familiar prova que o vínculo biológico não garante a filiação,
nem mesmo a permanência deste vínculo, muito pelo contrário, ela é passível de
novas atualizações. Porém, uma vez instituída uma filiação, de ser filho biológico de
alguém, de carregar o seu sobrenome, o que significa para uma criança passar por
um processo de desfiliação?
A “transição” gerada pelo afastamento do lar originário e sua inserção em uma
instituição de acolhimento coloca a criança numa condição que em nada se
assemelha a sua condição anterior. Para uma criança com mais idade, como o caso
de Noah, o passado não deixa de existir, ela carrega na memória a profundidade de
vínculos anteriores, o que tornará mais fácil ou difícil a internalização de sua
realidade institucional. Para um profissional do abrigo, o choro representava a
saudade: “Ele chorava muito quando chegou aqui, porque sentia saudade da família
[...] Noah era conhecido como chorão”.
Na concepção Bakhtiniana, o signo, como fruto social, tem uma função constituidora
e organizadora do psiquismo. E, para o autor, “um signo é um fenômeno do mundo
exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos
signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior”
(BAKHTIN, 2012, p. 33). Tendo como ponto de partida essa concepção, Oliveira
(2001) toma o choro como signo e não apenas como expressão de estados
119
emocionais. O choro tem seus aspectos orgânicos, no entanto, os sentidos que o
atravessam têm natureza social, pois não se produzem independentemente da
participação do contexto em que esse choro emerge.
Até aqui questionávamos sobre a legitimidade da destituição do poder familiar em
relação aos pais de Noah; seria uma negligência, ou é parte de um contexto mais
amplo, a desigualdade socioeconômica que compromete a garantia dos direitos
básicos da família brasileira, sobretudo das crianças e adolescentes?
É em função disso que acreditamos que o choro de Noah expressava sentimentos
relacionados à tristeza, uma vez que ocorria, na maioria das vezes, em situações de
“perdas”, da partida de alguém da família de origem. Quando Amanda e Luísa
estavam para ir, definitivamente, para a casa de Vanda, a assistente social chegou a
manifestar suas preocupações com Noah: “Como vou dizer isso pra ele? Ele vai
sentir muito”.
Na perspectiva de Nobert Elias (2001), é inútil procurar sentido nas palavras e na
vida de alguém independentemente do que essa vida significa para outras pessoas.
Na dinâmica das interações sociais, a relação entre os sentimentos de um indivíduo
e a consciência de que ele é significativo ou não estão intimamente ligadas ao
quanto ele é significativo ou não para outros. Diante disso, podemos dizer que o
choro expresso por Noah não é esvaziado de ecos dos sentimentos dos outros.
Em nenhum momento dos contatos que tivemos com Noah, foram feitos comentários
sobre sua família de origem, mas, vale lembrar, nossa metodologia de pesquisa
também privilegiou outras formas de expressão da linguagem e foi no desenho que
pudemos perceber que a família de origem era, ainda, para Noah a unidade de
referência. No primeiro trimestre do ano letivo escolar de 2013, quase dois anos sob
tutela pública, como parte da atividade da disciplina de História, Noah fez um
desenho de sua família, como representa a Figura 6.
120
Figura 6 – Família de Noah
Fonte: Dados da pesquisa
A questão é que, mesmo na condição de destituído, a linguagem pictórica expressa
concepções bem cristalizadas da família à qual ele pertence ou, pelo menos,
considerava pertencer. Para Oliveira (2001), o modo como, historicamente, se
constituiu uma relação entre pai e filho e, uma vez instituída a relação e os lugares
nela ocupados, tornam-se permanente. Um filho até pode ocupar a posição de pai e
avô, do mesmo modo que o pai também pode ocupar o lugar de filho e neto. Porém,
ainda que um desses indivíduos não reconheça a si próprio ou o outro como parte
da relação, não é possível ser ex-pai e ex-filho. Esse lugar não existe na
configuração dessa relação.
Desse modo, podemos afirmar que a posição social, entendida aqui como lugar que
o eu ocupa em relação ao outro, com relação a Noah, o eu “filho” que existiu em
função da existência de mãe e pai biológicos constituída na história passada, ainda
o constitui e interfere no modo como ele se vê como sujeito.
A família constitui o primeiro grupo responsável pelo desenvolvimento da criança.
Como grupo, a família compreende “o veículo ou o iniciador de práticas sociais
puramente subjetivas de pessoa para pessoa” (WALLON, 1975, p. 178). Isto
121
significa que a iniciação das crianças, no contexto cultural ao qual pertencem, dos
valores e normas de sua sociedade, começa na família. É nela que a criança se
reconhece primeiro como parte de uma coletividade, bem como o seu lugar nessa
coletividade.
No entanto, se a criança, de acordo com a decisão judicial, é separada
definitivamente de sua família de origem, sem chances de permanecer com outras
pessoas de seu parentesco, rompe-se um processo de constituição, abre-se uma
lacuna no processo da constituição da criança como sujeito. Além disso, as relações
de parentesco que configuravam uma identidade socialmente reconhecida “filho de
tais pessoas”, por exemplo, deixa de existir à medida que a criança é inserida no
contexto do abrigamento. A lembrança registrada na memória é parte do pouco que
a criança leva consigo, quando adentra na instituição que pratica o acolhimento
institucional.
Vale ressaltar, no espaço do abrigo, com relação a Noah, o parentesco originário se
sobrepôs aos novos relacionamentos estabelecidos na casa. Noah, em momento
algum, chamou uma das coordenadoras de mãe ou qualquer mulher da casa; de
irmãos, denominava somente aqueles que eram consanguíneos. Uma cena, durante
a pesquisa, foi bem marcante. Num domingo, pela manhã, fomos participar da
celebração na capela do abrigo. Quando entramos no recinto, observamos Noah
sentado junto a Isaac segurando sua mão e assim permaneceu por um bom tempo.
Naquele momento, Isaac era uma das duas pessoas na Casa-Lar Santa Cecília que
ainda estabelecia uma ponte com o contexto familiar “perdido”.
Das oficinas realizadas com as crianças, uma delas chamou muito nossa atenção.
Quando, na primeira atividade, Sofia pediu para desenharmos um coração e
escrever os nomes de uma grande família em torno dele, ou seja, o nome de todas
as pessoas que residiam na Casa-Lar Santa Cecília, Noah interveio:
Noah: Tia, não coloca o meu nome.
Sofia: Coloca sim, tia.
Noah: Não vai colocar.
Sofia: Tia, coloca, sim.
Pesquisadora: Vamos ouvir o que ele tem a dizer.
Noah: Tá bom. Coloca bem ‘piquinininho’.
122
A resistência de Noah em colocar o seu nome, na nossa compreensão, traduz o
modo como ele se vê nesse sistema de relações sociais existente na Casa-Lar
Santa Cecília. O lugar destinado a ele por essa instituição, concretizado nas práticas
sociais pelo grupo que ali reside, não despertou nele o sentimento de pertencimento
a esse grupo, a esse “lugar”.
Do ponto de vista institucional, casas-lares não produzem famílias, só o
abrigamento. É um espaço de “espera”, um intervalo de tempo entre o que a criança
foi como filho na família desfeita e o que poderá vir a ser em uma futura e incerta
adoção. E, se há proposta de ser família, essas podem ser instituições baseadas em
modos familiares de relação, mas ainda são instituições (SNIZEK, 2008).
No tempo em que passamos na Casa-Lar Santa Cecília, tivemos a impressão de
que, em função do sistema de transitoriedade que caracteriza o abrigo, as histórias
vividas deixam de ser rememoradas; aliás, seu espaço físico não guarda nenhum
vestígio ou registro do passado. Trata-se de uma experiência que em nada se
integra à história vivida pela criança.
Para Vigotski (2007, p 50), “a verdadeira essência da memória humana está no fato
de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda dos
signos”, portanto, a memória organiza-se em torno de apoios sociais. Neste aspecto,
podemos aferir que as relações sociais estabelecidas no contexto do abrigo,
mediada na e pela linguagem, signo por excelência, tende a inibir a memória
pregressa. Da história anterior vivida, a criança leva muito pouco ou quase nada. No
caso de Noah, ao que tudo indica, não há objetos, fotografias que lembrem o
passado. Não houve despedida da mãe. A maior fonte de lembranças são os
irmãos, que, aos poucos, vão indo embora, desaparecendo do seu campo de visão,
da sua vida. A história de Noah, na infância, vai se constituindo como uma história
de negligência, perdas, dores e solidão. Ainda, parte das profundas desigualdades
sociais, da pobreza e dos processos de expropriação de bens materiais e simbólicos
a que é submetida a maior parte da população brasileira.
No campo dos estudos que pesquisam os modos sociais de construção da memória,
o esquecimento é apontado por alguns estudiosos como produção social tanto
quanto as lembranças (MIDDLETON; EDWARDS apud OLIVEIRA, 2001). Assim
123
sendo, supomos que, quando colocadas em um abrigo, existe um esforço por parte
daqueles que cuidam da criança para a reconstrução de sua história. O silêncio em
relação ao passado, vivido em contexto familiar, é um recurso para possibilitar que
sofram um processo de “distanciamento” e esquecimentos, para facilitar a adoção.
Assim sendo, o modo de funcionamento das casas-lares tende a suprimir o registro
da experiência vivida no passado. De alguma forma, esse processo fere uma
dimensão subjetiva de pertencimento a um grupo, a um “lugar”.
Quando olhamos para Noah e pensamos a respeito dele no contexto do abrigo, é a
criança assujeitada que vemos. Afetado pelo processo de ruptura da família de
origem, vive a incompletude. Nessa situação-limite, em que os afetos são vividos e
significados sob a eminência de virem a ser desfeitos a qualquer hora, a dor e a
angústia batem à porta. Sem chances de ter de volta a convivência familiar perdida e
diante da espera por uma suposta saída, essa condição ambígua incomoda, revolta.
Como parte deste trabalho, Noah também foi observado em outro contexto – o
escolar. Depois do abrigo, é dentro da escola que passa boa parte de seu tempo, na
relação com seus pares e com os adultos.
A escola é uma instituição constituída historicamente pelos indivíduos e é um
importante instrumento no processo de formação dos próprios homens. As relações
pedagógicas que concernem aos indivíduos seus lugares neste espaço e no
processo formativo são também resultado do desenvolvimento socio-histórico. Neste
contexto, é possível identificar dois papéis já cristalizados no âmbito escolar, quais
sejam o professor35 e o aluno.
Para Sacristán (2005), a categoria aluno é uma construção social histórica criada
pelos adultos, uma vez que estes últimos organizam a vida dos não adultos. E, por
acreditarem que são “menores”, sua voz é desconsiderada e não costumam ser
consultados quando os adultos desejam elaborar ou reconstruir a ideia de quem eles
são. Sendo assim, vemo-nos diante de uma situação que ainda perdura no contexto
escolar: o professor é aquele que sabe, o detentor do conhecimento; e o aluno é
35 Nessa categoria, incluem-se também aqueles que estão atuando em outras esferas no âmbito
educacional, como coordenação, gestão, pedagogia.
124
aquele que não sabe. O saber garante ao professor o estatuto de poder sobre o
aluno.
Nessa relação, o lugar e a função de um se define pelo lugar e função do outro: só pode haver um professor que sabe e ensina se houver um aluno que não sabe e precisa/deve ser ensinado. Um aspecto central que define essa relação é o fato de que ela se configura, fundamentalmente, em um espaço apropriado para tal. Um espaço que regulariza e orienta as formas de instituição dessa relação: a escola (OLIVEIRA, 2001, p. 39).
Dessa forma, no processo da pesquisa, percebemos a necessidade de analisar os
mecanismos que asseguravam a organização da escola Profa. Petronilha Vidigal,
principalmente a prática pedagógica, a fim de compreendermos de que maneira
esses mecanismos, a partir do trabalho educativo, interferiam na constituição
subjetiva da criança.
No contexto da escola Profa. Petronilha Vidigal, a organização do cotidiano escolar,
as atividades desenvolvidas no processo de ensino, enfim, as relações pedagógicas
eram pautadas numa relação unilateral em que a criança estava submetida às
regras estabelecidas pelo corpo docente. O não cumprimento das tarefas, infração
das regras, entre outros, implicavam em ocorrências, ligação para os pais e, quando
se manifestavam várias vezes, o setor pedagógico comparecia à sala de aula, fazia
suas observações, inclusive, alertava os alunos sobre a possibilidade de
acionamento do Conselho Tutelar.
Para Margareth, professora de Noah, no que dizia respeito às atividades solicitadas
por ela, o cumprimento das tarefas, Noah era um bom “aluno”, uma vez que ele se
apropriava do conteúdo abordado. Entretanto, era agressivo. Desse modo, algumas
intervenções eram necessárias, entre elas, pedir aos meninos que evitassem brincar
com ele.
Na primeira semana em que estávamos na escola, pudemos presenciar uma
ocorrência36 feita pela coordenação por causa de suas brincadeiras consideradas
inadequadas. Segundo o coordenador, na fila que se formava para entrar na sala,
Noah e vários coleguinhas estavam brincando de luta, machucando uns aos outros,
bem como atrapalhando a entrada dos alunos.
36 As atitudes consideradas inadequadas no ambiente escolar são registradas em um livro e
assinadas pelo aluno, o que se chama de ocorrência.
125
Como a ocorrência era uma prática social diária na escola, perguntamos ao
coordenador se havia outros registros em relação a Noah; segundo ele, havia sim,
embora nem toda “transgressão” fosse registrada, uma vez ou outra, as crianças
eram apenas abordadas ou chamadas para uma conversa, em particular. Na
concepção do coordenador, as ocorrências estavam perdendo sua função, pois
mesmo as assinando, as “transgressões” continuavam. Perguntamos também se era
possível conferir o conteúdo dos registros aferidos a Noah, ao longo do ano
corrente, o que nos foi concedido, desde que o utilizássemos para fins da pesquisa,
e assim fizemos. Para nossa surpresa, havia cinco registros – quatro se referiam às
agressões aos colegas. Com relação aos registros, geralmente, constavam o motivo
da “transgressão”, o nome dos alunos envolvidos e a série e, por fim, a assinatura
do aluno. Nos casos que envolviam agressão, o termo utilizado no livro também era
agressão.
Na última semana da nossa pesquisa, Noah recebeu outra ocorrência. Segundo a
professora da Educação Especial, que no momento também estava supervisionando
o recreio, Noah agrediu o colega: “Ele sentou os pés na cabeça do menino [...]. Você
fala com ele e ele é indiferente, parece não ter sentimento”. Segundo a direção, em
consequência da agressão, Alzira, coordenadora do abrigo, deveria ser convocada a
comparecer na escola imediatamente.
Dois aspectos nos chamam atenção, no comentário feito pela professora: a maneira
como vê a criança e os seus comportamentos. Na concepção dela, Noah “parece
não ter sentimentos”. No entanto, como compreender esse enunciado, quando o
confrontamos com as experiências de Noah no abrigo, com o seu choro constante?
Afinal, na visão dos profissionais do abrigo, o choro expressava a saudade que tinha
dos seus familiares e a dor que sentia ao ver seus irmãos “partirem” por causa da
adoção; deste modo, saudade e dor eram sentimentos “vivos”, frequentemente
manifestados no choro. Entretanto, uma “agressão” ao colega, na visão da
professora, anula toda possibilidade de existência de sentimentos na criança, bem
como a necessidade de compreender os motivos que o levaram a se comportar
dessa maneira. E suas necessidades educativas? Para alguns profissionais do
abrigo, em situações tensas, como a partida de Amanda e Luísa, era preciso se
aproximar de Noah com o intuito de amenizar a dor da separação. Entretanto, na
126
instituição de ensino, levando em consideração o comentário da professora, mas
também da gestora, que convocou a coordenadora do abrigo a comparecer
imediatamente à escola, os comportamentos expressos pelos alunos são
compreendidos, sejam eles “agressivos” ou não, como algo inerente a cada aluno, e
parecem não se articular com sua história de vida. Nos discursos da gestão, por
exemplo, houve situações em que ela comparecia às salas de aula para alertar aos
alunos sobre o risco de transferência escolar quando manifestassem
comportamentos indisciplinados.
A constituição da subjetividade, conforme foi discutida anteriormente, coloca-se
como um processo constituído socialmente. Os traços de cada indivíduo estão
intimamente vinculados às interações com o meio. Desse modo, é possível afirmar
que o comportamento “mais ou menos indisciplinado de um determinado indivíduo
dependerá de suas experiências, de sua história educativa, que, por sua vez,
sempre terá relações com as características do grupo social e da época histórica em
que se insere” (REGO, 1996, p. 96).
Portanto, tomando como referência a constituição humana, na Perspectiva Histórico-
Cultural do Desenvolvimento Humano, conceber a “agressividade” ou a “indisciplina”
apresentada na escola como algo unicamente próprio do aluno representa um grave
equívoco. Desse modo, a nossa compreensão sobre determinados comportamentos
deve levar em consideração uma multiplicidade de fatores e/ou influência que
recaem sobre o indivíduo (REGO, 1996).
Sob esse aspecto, as situações problematizadoras experienciadas por Noah, no
contexto escolar, desafiaram-nos a repensar sobre o papel da educação escolar
mediante a criança que, de algum modo, apresenta uma característica peculiar em
seu comportamento. Na perspectiva de Vigotski (2010), o olhar compreensivo sobre
o indivíduo em contexto escolar deve levar em conta aspectos da vida particular do
aluno, ou seja, a sua experiência pessoal, e esta deve ser a base principal de todo
trabalho pedagógico.
Desse modo, os pressupostos vigotskianos indicam que os acontecimentos
observados no cotidiano escolar devem ser analisados a partir da vida cotidiana da
criança na interação e apropriação sociocultural do meio em que ela está inserida,
127
levando-se ainda em consideração suas frustrações, desapontamentos, angústias,
medos e também anseios.
Ademais, nossa aproximação com a escola Profa. Petronilha Vidigal fez-nos
perceber algumas das suas peculiaridades, entre elas, o número expressivo de
crianças sob tutela pública, uma vez que atende a crianças oriundas de duas casas
de acolhimento institucional, uma a Casa-Lar Santa Cecília e outra, também de
caráter filantrópico e religioso, que abriga crianças portadoras do vírus HIV. Para a
pedagoga da escola, houve épocas em que a escola tinha, no turno vespertino, em
torno de dez crianças somente da Casa-Lar Santa Cecília, muitos deles
apresentavam comportamentos atípicos, acompanhados de agressão; segundo ela,
no recreio, muitas vezes essas crianças ficavam sob sua observação. Numa escola
com essa especificidade, é possível criar, reinventar e enriquecer o ambiente
escolar, de maneira que possa contribuir para alguma transformação na vida dessas
crianças?
Quando se pensa que o indivíduo se desenvolve na interação com o meio,
transformando-o e sendo por ele transformado, mediado na e pela linguagem, o
modo como a criança se vê e vê o outro no contexto escolar pode associar-se ao
modo como os discursos acerca das crianças e/ou alunos refletem-se no cotidiano
pelos professores e funcionários da escola, bem como as intervenções propostas
por eles. Ainda nos remetendo ao pensamento de Vigotski, podemos afirmar que o
outro desempenha papel fundamental na constituição subjetiva do indivíduo, no
contexto social; nas palavras do pensador, “[...] a personalidade é o conjunto de
relações sociais. As funções psíquicas superiores criam-se no coletivo” (VIGOTSKI,
2000, p. 9). Dessa forma, torna-se importante compreender o modo como as
intervenções são determinadas e mantidas, uma vez que a partir delas se veicula
um sistema de significações, tendo em vista que é o sentido, subjacente ao sistema
de significação, um dos aspectos responsáveis pela forma como a criança e/ou
aluno se vê e percebe o outro, no contexto das relações que são estabelecidas na
escola.
Na interação entre pares e as rotinas de brincadeiras na sala e no pátio, por
exemplo, observamos vários episódios de oposição ou conflito entre Noah e seus
coetâneos, os quais podiam ou não sofrer sanções por parte dos adultos. Alguns
128
desses confrontos, na sua maioria, estavam relacionados às relações competitivas
durante o jogo; outras, desencadeadas por uma “provocação” de Noah, como
relatado no diário de campo do dia 21 de agosto.
Sentam juntos a pesquisadora, Noah e Hugo, estando a pesquisadora sentada entre os dois. Noah estende o braço e risca o caderno de desenho de Hugo. Hugo pede a Noah: “Pare com isso”. Novamente Noah faz outro risco em seu caderno. Hugo pede para parar. Hugo tenta riscar o caderno de Noah, mas não consegue. Noah mais uma vez tenta riscar o caderno de Hugo, no entanto, em clima de “tensão”, Hugo se afasta, com lágrimas nos olhos, pede mais uma vez: “Já pedi pra para Noah” e acrescenta: “Vou riscar seu caderno” e Noah retruca; “Vão vê se vai” (Diário de campo, 21/08).
Poucos dias depois desse evento, também pudemos perceber um desentendimento
entre Noah e Vitória, aluna com quem compartilhava, com frequência, as tarefas
escolares. A aula estava encerrando e, naquele momento, tirávamos as dúvidas de
um aluno com relação ao exercício de matemática. De repente, fomos surpreendidos
pelo tom alterado da voz de Vitória: “Leite condensado branco!”. A professora
interveio, Vitória se explicou: “Noah me chamou de preta”. Noah, então, se dirigiu a
Vitória e disse: “Leite condensado preto!”. Quando a professora disse que ia chamar
a coordenação ou os responsáveis, ambos se silenciaram. Com relação a esse
episódio, perguntamos à professora, em outro momento, se houve outra intervenção
por parte dela; segundo ela, não foi necessário.
Conflitos e reações de descontentamento por parte de outros alunos diante das
atitudes de Noah também foram percebidas em outros momentos:
A aula é de Língua Portuguesa. Houve contação da história, João e o pé de feijão. Logo após a leitura, a professora distribui um desenho da história, este deve ser pintado e recortado, uma vez que pode ser utilizado como quebra-cabeça. Durante a atividade de pintura pedem aos alunos para sentarem em grupo. Sentam a pesquisadora, Noah, Naiani e Jonas. Noah é o primeiro a terminar. Estamos próximo à janela, venta muito, os papéis já recortados voam em função do vento. Naiani fecha a janela para não voar os papéis. Noah vai e abre a janela, os papéis voam. As crianças dizem em coro “Ô, Noah”. Naiani intervém: “Fecha, Noah, senão voa”. Quando as crianças voltam a fazer as atividades, Noah abre a janela de novo, os papeis voam. “Para, Noah”, pedem as crianças. Ele fecha, mas continua abrindo a janela aos poucos. Quando Naiani vai montar seu quebra-cabeça percebe que está faltando uma peça e se dirige a Noah: “Aí, Noah, tá vendo, sumiu uma peça do meu quebra-cabeça, você abriu a janela”, ele retruca: “Agora tudo é eu!", responde, inquieto (Diário de campo 23/08).
129
Um evento observado em relação ao modo como repercutiam em nós outras
atitudes de Noah se deu quando a professora de Educação Especial teve que
assumir a turma dele, 3º C, por algumas horas.
Passamos em frente à sala de Noah, paramos na janela, a professora está sentada junto a Noah. Quando alguns alunos percebem a presença da pesquisadora chamam-na: “Tia, dá um jeito no Noah”; “Tia, leva esse menino”; “Ele tá fazendo bagunça”; “Ele está atrapalhando” Pedimos autorização para entrar, nos aproximamos da professora e perguntamos o que estava acontecendo, ela se dirige e Noah e responde: “Esse está fazendo gracinha, por isso estou sentada aqui”. Apenas olhamos para ele como se estivéssemos perguntando o que está acontecendo, porém com gestos (Diário de campo, 22/10).
Nos eventos descritos acima, é possível perceber que, na relação entre pares,
quando Noah toma uma postura rígida, pouco flexível, evidencia-se uma
multiplicidade de sentidos envolvendo o modo como seus coetâneos o significam na
relação – aquele que atrapalha, o culpado, o “leite condensado”, o bagunceiro.
Alguns, supomos, são reforçados pela opinião do adulto, como afirma a professora
da Educação Especial: “Este está fazendo gracinha”. E procura sentar-se ao lado
dele para conter seu comportamento.
Para o adulto, seu comportamento é inadequado e esta concepção é difundida e, de
certo modo, apropriada pelos demais, naquela circunstância e naquele contexto. Até
que ponto as palavras dos outros são tomadas por Noah como palavras próprias em
relação a sua própria condição? Como isso afeta a relação dele consigo mesmo e
com o outro?
Ao nos determos nestes momentos, fica expresso, então, que nas relações entre os
alunos, sejam elas de conflito ou não, o modo como elas vão repercutir na vida de
cada um deles vai depender também do olhar e do modo como o adulto coloca-se
nesse processo, seja ele professor ou outro funcionário da escola. Com relação a
Noah, os “confrontos” eram constantes, no entanto, na nossa compreensão, os
instrumentos utilizados para amenizar os conflitos entre Noah e seus pares giravam
em torno da ocorrência ou um chamado de atenção feita pelo adulto e, em situações
mais graves, a responsabilidade recaía, principalmente, na coordenadora do abrigo,
Alzira.
130
Por outro lado, Noah também mantinha com seus pares uma relação agradável e
estável, nas atividades escolares e nas brincadeiras; na sala de aula, era com Luiz
Cláudio, seu amigo, com quem sempre jogava, além disso, nas atividades em grupo,
trabalhavam sempre juntos. Durante a pesquisa, quando se sentava conosco, como
não tinha autonomia para pedir, Noah, muitas vezes, solicitava: “Tia, chama Luiz
para sentar com a gente”. Interessante ressaltar, na interação entre pares dentro de
sala, durante a pesquisa, Luiz foi o único a não questionar Noah.
Entretanto, foi no pátio, nas aulas de Educação Física, que tivemos oportunidade de
presenciar um modo particular de interação com seus pares, sobretudo com os
meninos, pelo menos entre aqueles considerados “bons de bola”. Havia apenas uma
menina, Naiani, que, por gostar muito de futebol, brincava com os meninos. Certo
dia, indagamos Noah sobre a participação de Naiani nos jogos de futebol: “Naiani é
melhor do que muito menino aqui na sala”, afirmou Noah.
Segundo Fernandes (2006), o pátio se caracteriza como um espaço onde as
crianças têm possibilidade de interagir de forma mais livre, de relacionar-se com os
seus colegas e de criar brincadeiras variadas. Foi neste espaço que vislumbramos,
nas relações entre pares, nas discordâncias e processos de negociação, subsídios
necessários para se inventar e reinventar o jogo. No rosto de Noah era perceptível a
alegria, gestos que exprimiam euforia e contentamento nas situações de
brincadeiras, principalmente, quando ganhava as partidas do jogo.
Vale ressaltar, onde havia uma quadra de esportes, foi necessário construir salas de
aula e o que restou foi apenas um pátio interno, localizado no centro das instalações
à frente do portão de entrada; ali, na maioria das vezes, duas turmas faziam aulas
de Educação Física ao mesmo tempo, no entanto, mesmo sendo um espaço
exprimido, todas as crianças envolviam-se nas atividades. Durante o recreio, as
crianças também se concentravam nesse espaço e, por causa do número de
crianças, havia dois recreios, um com os 1º e 2º anos, denominado pela
coordenação de recreio dos “pequenos”; e outro, com os 3º e 4º anos, denominado
recreio dos “maiores”. Esse momento também era de grande interação, em que a
brincadeira preferida de Noah também era o futebol.
131
Tomando como referência o cotidiano da escola Profa. Petronilha Vidigal, as
expectativas de Noah giravam em torno das atividades oferecidas no pátio, portanto,
as aulas de Educação Física e o recreio eram os momentos mais esperados. Uma
expectativa que incluía o outro. Certo dia, em uma aula que antecedia a de
Educação Física, ou seja, a aula de Língua Portuguesa, de acordo com as
orientações da professora, era preciso concluir as atividades da disciplina para
poder participar da próxima aula. Vitória, que sentava próximo a Noah e Diogo,
insistia em conversar com Diogo; Noah, meio que furioso, interveio: “Vitória, você
fica conversando com Diogo, quer ‘tirar ele’ da Educação Física?”.
Foram várias as aulas de Educação Física de que participamos; Noah sempre
participava de todas as atividades, na maioria das vezes, era o futebol sua atividade
preferida. Os jogos de competição propostos pelo professor, fossem individuais ou
em dupla, Noah sempre ganhava. Numa brincadeira de competição individual, Noah
teve como seu adversário o aluno mais alto da turma, ao “derrotá-lo” proclamou em
voz alta “Sou campeão, né, tio”, “Sim”, respondeu o professor, e Noah afirmou mais
uma vez, todo eufórico e saltitante: “Eu sou campeão!”. Numa conversa informal com
o professor de Educação Física, ele relatou o quanto Noah era competitivo: “Noah
gosta de esporte, é competitivo, ele é maior que os outros, quer ganhar [...] Chega a
ser desleal”.
A competitividade e o anseio por ganhar as partidas do jogo, mais do que jogá-las,
também puderam ser observados na sala de aula. Na semana do dia da criança, a
professora propôs uma gincana. A brincadeira consistia em acertar as atividades
indicadas no quadro, bem como ganhar pontos nos jogos pedagógicos. A turma foi
dividida em dois grupos; a primeira tarefa foi resolver operações matemáticas no
quadro – duas continhas eram colocadas uma em cada lado do quadro e uma
criança de cada grupo tinha que resolvê-las, ganhava o ponto quem terminava
primeiro e tivesse respondido corretamente a questão. Noah foi o primeiro do grupo
a ir para o quadro e garantiu a primeira pontuação do grupo. A ideia era que não se
repetisse o jogador, no entanto, Noah insistiu tanto para voltar ao quadro, que foi
mais de uma vez. A princípio, seu grupo estava indo bem, acertaram quase todas as
operações do quadro, Noah vibrava, saltitava, todo eufórico. Entretanto, a certa
altura do jogo, o grupo adversário virou o jogo, dificultando a situação do seu time. A
132
euforia transformou-se em nervosismo, irritou-se com o colega que errou a partida
do jogo pedagógico: “Ah Bruno, você é o maior ruim”. A última partida da gincana
era a brincadeira do “vivo ou morto” e a professora queria duas equipes. Noah se
prontificou imediatamente. A partida foi dura, mas o grupo adversário venceu o jogo
e a gincana; Noah saiu irritado do jogo.
No contexto observado até aqui, indagamo-nos a respeito dos sentidos que vão se
construindo, para Noah, no espaço da escola Profa. Petronilha Vidigal, suas
relações com outros e o impacto dessa interação no modo como ele significa a si
próprio e a sua vida. O que dizer daquilo que está escondido no olhar, nos gestos,
nas palavras de Noah, quando se apropria das situações de jogo? Que sentimento é
esse tão explícito comparado aos colegas de sala, carregado de euforia pelo prazer
do jogo e da competição e do desejo de vencer?
A princípio, parece-nos relevante destacar como Noah e seus pares colocam-se no
jogo interativo. Ainda que Noah fosse um garoto competitivo e, impetuosamente,
procurasse vencer todas as partidas do jogo, era alguém com quem se podia
brincar, formar pares, sentar junto. Parece possível dizer que, nessa situação, o
lugar ocupado por eles, individualmente, e a relação que mantinham entre si sugere
cada um deles como um ser significativo para o outro.
No contexto escolar, na nossa análise, evidenciou-se a multiplicidade de sentidos
envolvendo o modo como os indivíduos são significados no jogo das relações
sociais, cujas significações são atravessadas por uma série de fatores. Os sentidos
atribuídos ao outro, portanto, não é único. Em relação a Noah e seus pares,
observamos sentimentos até contraditórios, ora pelo interesse de seus colegas em
mantê-lo no jogo das relações, ora de “expulsá-lo” em razão das sensações
desconfortáveis que ele provocava. Na relação com os adultos, situação em que
lhes cabia ditar as “regras” com relação às práticas sociais existentes na escola,
Noah deveria ser apenas “aluno”, alguém que estava ali para aprender e acatar as
“regras” estabelecidas por eles para o aprimoramento das habilidades cognitivas.
Como sujeito, o indivíduo é afetado, de diferentes modos, pelas muitas formas de
produção nas quais ele participou e/ou participa na história das relações com os
outros. Acrescentando-se a isso,
133
a atribuição de significado acontece em uma situação objetiva que necessita da intervenção do outro. O que significa dizer que o processo sígnico se dá num primeiro momento nas relações concretas. O outro dá significado à situação que, posteriormente, é significada pela criança (MOLON, 2010, p.100).
É com esta afirmação de Molon (2010) que procuramos concluir este capítulo. Neste
pequeno espaço, trouxemos um recorte das histórias de vida de Noah e Sofia,
trajetos nada fáceis de acompanhar. São histórias marcadas pela dor da separação
e pela “violência”. Debruçamo-nos sobre o choro e o silêncio. Também pela
incompreensão, por parte de alguns profissionais, do “peso” que as crianças
abrigadas “carregam” diariamente e, muitas das vezes, “carregam” sozinhas. E se a
história está marcada pela separação, pela violência e pela incompreensão dos
outros por aquilo que está sentindo ou “carregando”, como a criança significa a sua
própria vida?
Noah não tem mais chances de ter de volta sua família de origem e, impelido por
este sentimento de perda, chora, irrita-se, agride. São as expressões da dor que
sente em consequência da degradação familiar, que talvez, gostaria que fosse
diferente, no entanto, não há nada que ele possa fazer, sob tutela do Estado, só
resta apenas esperar.
Por outro lado, a dor deixa marcas, ou seja, o signo da violência está no próprio
corpo. A dor está presente no silêncio, no medo da exposição das próprias feridas.
Para Sofia, estar abrigada também significa esperar. Esperar por uma adoção, um
convívio familiar.
E é sobre os impactos da educação escolar, na vida dessas duas crianças, que
concluímos este capítulo, citando um texto de Nobert Elias sobre o sentido da vida:
É um grande apoio – encontrar eco dos seus sentimentos nos outros que se ama e a quem se está apegado, e cuja presença faz surgir um sentimento terno de pertencer à família humana. Essa afirmação mútua das pessoas através dos seus sentimentos, o eco dos sentimentos, entre duas ou mais pessoas, desempenha um papel central na atribuição de significado e sentido de realização para uma vida humana – afeição recíproca, por assim dizer, até o fim (ELIAS, 2001, p. 100).
Se, por um lado, o cotidiano escolar da Profa. Petronilha Vidigal estava repleto de
uma visão homogênea das crianças e de regras que dão norte aos comportamentos
infantis, por outro, esse espaço revelou-se como um lugar significativo tanto para
134
Noah quanto Sofia. O grupo de amizade que eles foram constituindo ao longo do
percurso escolar, involuntariamente, configurou-se como um grupo de apoio, pois o
lugar ocupado pelos componentes desse grupo no jogo das relações expressava o
quanto cada um deles era um ser significativo para o outro, por isso o sentimento de
pertença ao grupo persistia apesar de qualquer desavença ou diferença.
5.3 ESTADO, FAMÍLIA, ABRIGO E CRIANÇA
Do capítulo VII da Constituição Federal, sobre os aspectos “da Família, da Criança,
do Adolescente, do Jovem, do Idoso”, consta, no artigo 226, que “a família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”. Sendo assim, entende-se que esta
proteção deve concretizar-se a partir de ações articuladas que envolvam também
governo e sociedade. Essas ações devem basear-se no reconhecimento de que
diferentes políticas públicas devem ter centralidade na família.
Embora se tenha avançado bastante no aspecto legal, parcela significativa de
famílias brasileiras continua sob risco social, vivendo em habitações precárias, em
bairros sem infraestrutura e de pouco acesso aos serviços públicos, como educação
e saúde. O afastamento da mãe e/ou do pai para o trabalho, muitas vezes, implica
na demanda à atenção e aos cuidados básicos às crianças. Sem creches ou
atividades complementares à escola, como os Centros de Referência Social (CRAS),
os pais não encontram apoio para criar seus filhos.
Para Vicente (2011, p. 51), tendo como referência a própria Constituição, quando
não há possibilidade que a família e a sociedade civil garantam a vida dentro do
alcance da dignidade, cabe ao Estado assegurar tais direitos, com o intuito de a
criança desfrutar de bens que somente a dimensão afetiva pode oferecer. “O vínculo
tem, portanto, uma dimensão política quando, para sua manutenção e
desenvolvimento, necessita de proteção do Estado”.
135
Sabe-se que as crianças e adolescentes que chegam aos abrigos, em princípio, não
deveriam ser separados de suas famílias. Aliás, a maioria delas possui vínculos
familiares. Lá chegam e, em alguns casos, até permanecem, pela impossibilidade de
seus pais de prover o essencial para sua sobrevivência. Continuam, pois, a existir as
filas de crianças nas portas das instituições em consequência da pobreza, da fome e
da negligência. São velhos problemas atrelados à falta de condições dignas de vida
de um grande número de famílias brasileiras. A destinação de famílias substitutas,
ou seja, a adoção como solução para a pobreza, é um grave equívoco de políticas
públicas que atuam na área de atenção à população infantojuvenil (RIZZINI,
RIZZINI; NAIFF; BAPTISTA, 2006; KALOUSTIAN, 2011).
Embora a pobreza não seja motivo para o acolhimento institucional, crianças e
adolescentes pobres estão nos abrigos, encaminhados pela Vara da Infância e pelo
Conselho Tutelar. Isso é uma violação da Lei, uma vez que a pobreza não se
caracteriza como motivo para afastar a criança do convívio familiar, como afirma o
Artigo 23, do ECA, “[...] a falta de recursos materiais não constitui motivo suficiente
para a perda ou suspensão do poder familiar”37. Acrescentado em parágrafo único:
“Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança
ou o adolescente serão mantidos em sua família de origem, a qual deverá
obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio”. E se na atualidade
as pesquisas ainda apontam a institucionalização de crianças como um recurso para
amenizar o sofrimento da família pobre, significa dizer que a vida de muitas famílias
brasileiras é marcada pela ausência de políticas públicas de apoio ao fortalecimento
dos vínculos familiares.
Assim, ações e/ou programas que desenvolvam projetos com as famílias podem
alcançar as crianças e os adolescentes e resgatar uma qualidade de vínculo que
lhes permita amenizar ou extinguir o êxodo circular urbano, bem como a
transferência do cuidado dos filhos para o Estado. A inserção de crianças e/ou
adolescentes em programas de acolhimento institucional, com vistas à proteção e ao
desenvolvimento, deve ser feita; no entanto, a família não pode ser excluída desse
processo, pelo contrário, deve ser acompanhada e receber o apoio necessário
37 Expressão substituída pela Lei nº 12.010, de 2009.
136
visando à reintegração de seus filhos, pois ela constitui um espaço privilegiado de
convivência (VICENTE, 2011).
Reafirmando a importância do convívio familiar, o Plano de Promoção, Proteção e
Defesa da Convivência Familiar e Comunitária (2006) estabelece parâmetros e
ações que possam garantir esse direito à criança e ao adolescente. O próprio
Estatuto da Criança e do Adolescente garante à criança e ao adolescente o direito
de serem criados e educados no seio familiar de origem e, em caso extraordinário e
necessário, devem ser colocados em família substituta.
Nesse sentido, também cabe ao Estado fazer valer o que é estabelecido no Estatuto
da Criança e do Adolescente e também na Lei nº 12.010, “Nova Lei de Adoção”,
promulgada em 2009, quanto ao caráter excepcional e provisório – que é promover
a reintegração ou reinserção familiar e comunitária à criança e ao adolescente sob
tutela pública, num prazo máximo de dois anos, salvo quando comprovada a
necessidade que atenda ao superior interesse da criança, porém, fundamentada
judicialmente. Entretanto, este trabalho encontrou crianças que passaram mais de
uma década assistidas por um programa de acolhimento institucional, deixando a
instituição apenas por terem alcançado maioridade.
Outro ponto de grande relevância diz respeito à manutenção das instituições que
desenvolvem programas de acolhimento institucional. Às organizações não
governamentais, o ECA reserva um papel estratégico, ao incluí-las no bojo da
política de atendimento aos direitos da população infantojuvenil: “A política de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á por meio de um
conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios” (ECA, 2005, Art. 86). Entretanto,
constatamos o quanto o Estado toma medidas paliativas no que tange ao cuidado
das crianças acolhidas pela Casa-Lar Santa Cecília. Como a verba pública
destinada a esta instituição é bem inferior às suas necessidades, a casa depende,
significativamente, de doações e caridades para manter os serviços prestados aos
seus residentes.
Ainda que se julgue significativo o quadro de funcionários na Casa-Lar Santa
Cecília, encontramos trabalho voluntário em todas as atividades e/ou serviços
137
prestados – administrativo, operacional, técnico e cuidados diretos -– e, na sua
maioria, feito por religiosos católicos que desempenhavam alguma função em nome
de sua cristandade, como afirmou um voluntário: “O que me motiva estar aqui:
primeiro Deus, segundo Nossa Senhora e terceiro eles38 [...] É por eles...” (olhos
cheios de água) – voluntário há dez anos no abrigo.
Além do voluntariado realizado dentro do espaço institucional, observamos uma
participação significativa de voluntários na captação de recursos fora do ambiente
institucional. Para ilustrar, lembramos o caso da senhora que pratica, mensalmente,
o que ela denomina de “broa solidária”, além de organizar, anualmente, uma
feijoada, cujos rendimentos são doados para a instituição. Outra participação
significativa na captação de recursos são os voluntários que atuam no Bazar,
principal recurso financeiro da casa.
O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da rede SAC,
realizado pelo Ipea, em 2003, revelou a presença significativa do voluntariado,
especialmente de religiosos, na implementação de um direito social, entre eles, de
acolhimento, proteção e assistência a crianças e adolescentes em situação de risco
pessoal e social. Suas atividades iam desde a responsabilidade legal para assistir,
cuidar e educar as crianças e os adolescentes, passando pelo apoio técnico e
administrativo até as funções envolvendo atividades de lazer, de recreação e de
profissionalização, entre outras (BEGHIN; PELIANO, 2004).
Isso sinaliza que as entidades não governamentais, além de relevantes, são
essenciais na implementação das políticas de proteção especial à infância e à
adolescência. A predominância desse tipo de entidade na prestação de serviços de
acolhimento institucional reforça ainda mais a responsabilidade do poder público –
federal, estadual e municipal – no cumprimento de seu papel de coordenar um
sistema, com vistas à efetiva implementação de uma política de proteção especial
conforme estabelecido no ECA, assim como na garantia do apoio técnico e
financeiro imprescindível às ações realizadas pela sociedade civil (BEGHIN;
PELIANO, 2004).
38 “Eles” são as crianças e adolescentes da Casa-Lar Santa Cecília.
138
Compactuamos com RIZZINI, RIZZINI, NAIFF, BAPTISTA (2006), ao afirmar que a
assistência social é responsabilidade do Estado e que as iniciativas não
governamentais, ainda que apresentem bons resultados, sozinhas não têm
condições de dar conta das múltiplas demandas existentes.
Durante o período em que estivemos na Casa-Lar Santa Cecília, pudemos assistir
às atribuições que cabiam ao Estado e este não estava presente, tanto que
indagávamos se aquelas eram, de fato, crianças sob tutela pública, ou seja, sob
proteção do Estado. Onde estava o Estado naquele contexto?
Ao tomar como referência a abordagem teórica que sustenta este trabalho, a
Perspectiva Histórico-Cultural do Desenvolvimento Humano, que defende a
constituição cultural da criança como pessoa, entendemos que isso tem implicações
bem mais amplas e profundas do que se pode imaginar. Privar uma criança das
condições básicas de existência humana (aquelas que definem os Direitos
Humanos) coloca em risco sua constituição como uma pessoa humana (PINO,
2005).
Nessa perspectiva, chamamos a atenção para a constituição subjetiva da criança
sob tutela pública. As instituições de acolhimento, sob a perspectiva teórica adotada
nesta pesquisa, constituem-se em contextos de desenvolvimento. O projeto político-
-pedagógico adotado pela instituição – bem como as ações implantadas pelo
Estado, visando à garantia dos direitos assegurados em lei às crianças e aos
adolescentes – interfere no desenvolvimento desses sujeitos, seja positivamente ou
negativamente, o que revela a necessidade de políticas consistentes por parte do
Estado para essas crianças e adolescentes.
Talvez seja essa a função deste capítulo: reforçar a necessidade da seriedade das
políticas públicas na vida das crianças que estão sob tutela pública, bem como
daquelas que vivem uma condição de expropriação de seus direitos básicos e que
tanto necessitam da proteção e da defesa desses direitos para que se desenvolvam
e cresçam dignamente.
139
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta pesquisa foi discutir as interferências do acolhimento institucional e
da educação escolar na constituição da subjetividade da criança que, por algum
motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se encontrava sob tutela do
Estado, aos cuidados de uma casa-lar, no município de Vila Velha. Trilhar por este
caminho não foi nada fácil. Em uma era em que se avança com relação à
constituição de leis que garantem ao cidadão a cidadania e a dignidade, ainda nos
deparamos com a criança desassistida, especialmente pelo Estado.
A questão é que algumas ações de enfrentamento dos problemas relacionados às
fragilidades das famílias em atender às necessidades de seus filhos ainda são
marcadas pelo trabalho das organizações não governamentais de caridade,
sobretudo, das entidades que desenvolvem programas de acolhimento institucional.
Reconhecemos o papel social que a sociedade civil desempenha em relação ao
cumprimento da lei quanto à garantia dos direitos do cidadão, bem como da
importância das organizações não governamentais no desenvolvimento dos direitos
sociais; no entanto, há entidades filantrópicas, de inspiração religiosa, como a Casa-
-Lar Santa Cecília, que necessitam de verbas e de profissionais, como psicólogo, e,
naquele momento, só poderia contar com o voluntariado e a caridade.
Lidar com a violação dos direitos e o impacto disso na vida das crianças não é uma
tarefa fácil, entretanto, as crianças que residiam na Casa-Lar Santa Cecília, desde o
momento em que chegam até a partida, necessitam de acolhimento. Chamamos
atenção, em especial, ao papel dos cuidadores, que são os responsáveis pelos
cuidados diários das crianças e com quem elas passam a maior parte do tempo.
Estabelecer momentos para discutir, pedagogicamente, o modo como se pretende
relacionar com as crianças pode favorecer a construção de relações afetivas, bem
como propiciar um ambiente acolhedor.
Do mesmo modo, nos referimos à escola Profa. Petronilha Vidigal, que há alguns
anos vem recebendo crianças e adolescentes oriundos de casas que desenvolvem
programas de acolhimento institucional. Cada criança sob tutela pública tem suas
140
particularidades, com uma história que lhe é própria, carências e dificuldades
peculiares, mas é, também, um ser humano com potencialidades e talentos que, ao
ser reconhecido e estimulado, pode desenvolvê-los. Tomando como referência a
perspectiva vigotskiana (2010), o aspecto emocional do educando é tão importante
como outros aspectos e deve ser objeto de preocupação da educação escolar nas
mesmas proporções que o são a inteligência e a vontade. O amor pode vir a se
tornar um talento39 tanto quanto a genialidade. Nos dois casos, o comportamento
humano toma formas exclusivas e grandiosas. Portanto, espaços coletivos de
formação e de articulação teórica e metodológica podem contribuir, positivamente,
para uma ação educativa que conduza ao melhor equilíbrio emocional e ao
desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes que, de modo particular,
necessitam desse atendimento.
Nossa passagem por uma casa de abrigo possibilitou-nos empreender que o
“abrigo” é sentido como um lugar de passagem e de espera. Percebemos, assim,
que a singularidade de cada criança e/ou adolescente que reside na Casa-Lar Santa
Cecília é movida pelo desejo de voltar para sua família de origem. Algumas aceitam
a possibilidade de viver com outras famílias. Há, ainda, aquelas que esperam,
ardentemente, pela adoção, mas há também aquelas que não esperam ser
acolhidas por uma família, pois alcançaram a maioridade, portanto, as expectativas
são outras, giram em torno da independência financeira.
Mas, foi em duas crianças em particular que esta pesquisa se debruçou: Noah e
Sofia, ambas destituídas do poder familiar e matriculadas no 3º ano das séries
iniciais. Não podemos deixar de apontar, aqui, que tanto o choro inconsolável de
Noah quanto o silêncio de Sofia foram marcantes do ponto de vista da pesquisa.
Evidenciamos a dor e a saudade que Noah sentia de seus familiares de origem,
sobretudo, daqueles que, com o tempo, foram se distanciando, à medida que a
justiça direcionava seus caminhos, no caso de seus pais, seu irmão, e suas duas
irmãs, Amanda e Luiza. Os impactos do desmantelamento do grupo familiar e do
abrigamento foram tão intensos que não foi possível elaborá-los, ainda. Em razão
39 Termo utilizado pelo autor. Na nossa compreensão, refere-se às potencialidades humanas que
cada um carrega dentro de si e só se tornam realidade quando são valorizadas e incentivadas no contexto social.
141
disso, identificamos a intensificação da rispidez e da intolerância, dos atritos com
seus pares, enfim, da raiva que sentiam ao acompanhar a dispersão do grupo
familiar de origem.
Encontramos as marcas da violência, nas cicatrizes deixadas no corpo em
decorrência dos maus-tratos que Sofia e outros de seus colegas do abrigo traziam
no corpo. Além da própria degradação familiar, a institucionalização, de alguma
forma, marca a diferença, denuncia a alteridade. Como a realidade vivida não se
desvanece, o silêncio impera. Talvez, por causa de um passado doído, as
expectativas de Sofia girassem em torno da adoção, de outro caminho diferente do
abrigamento.
Enfim, a violação dos direitos fundamentais e a vivência das práticas culturais da
institucionalização não aniquilaram a vontade de viver dessas crianças. No olhar de
Sofia e no sorriso de Noah, a ternura e a brandura, a alegria de poder encontrar no
outro o apoio – sentimentos explícitos tanto na Casa-Lar Santa Cecília quanto na
escola Profa. Petronilha Vidigal. E é sobre o contexto escolar que desenhamos
nossas penúltimas40 palavras. Queremos ressaltar a importância desse espaço na
vida de Noah e Sofia. A educação escolar pode contribuir para a formação dos
sujeitos em todas as suas dimensões (REGO, 2002) e foi na interação entre pares,
nas brincadeiras, enfim, nos jogos infantis, que pudemos evidenciar os ecos dos
sentimentos dos outros na vida de Noah e Sofia, bem como o impacto desses
sentimentos na constituição subjetiva de cada um deles; em outras palavras, o
sentimento de pertencer a um grupo e de ter um lugar na vida das crianças que
compõem este grupo.
Diante do exposto, não há como compreender a infância sob tutela do Estado
distante das situações concretas que perpassam seus sentimentos, do seu contexto
social, das relações. Da mesma forma, não há como potencializar a infância
“desvalida” sem restituir-lhe a voz, sem o reconhecimento de que são crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos.
40 Penúltimas, por acreditarmos que nunca haverá a última, o conhecimento é construído num
processo contínuo.
142
Tomando como referência a abordagem teórica que deu norte a este trabalho, não
existe uma condição de sujeito inato, mas são as ações desenvolvidas no ambiente
sociocultural que propiciarão as possibilidades e/ou limites na constituição da
subjetividade. Deste modo, acreditamos que nossa contribuição neste trabalho está
na ressignificação do lugar que nós, profissionais, ocupamos na relação com a
criança; de modo particular, aquelas mais vulneráveis, o que significa dizer que
podemos ser o outro que propicia muito mais possibilidades do que limites.
143
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144
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APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Declaro, por meio deste Termo, que concordei e permiti a observação das crianças, pelas quais sou responsável, assim como assumir as possíveis entrevistas para a realização da pesquisa intitulada “O abrigo e a escola na constituição subjetiva da criança sob tutela pública” desenvolvida por _____________________.
Fui informado(a), ainda, que a pesquisa é coordenada e orientada por _________________________________, a quem poderei contatar/ consultar a qualquer momento que julgar necessário pelo telefone: ______________________ ou pelo e-mail: ___________________________________.
Afirmo que aceitei participar por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui informado(a) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais, deseja analisar os impactos da educação escolar e do acolhimento institucional na constituição subjetiva da criança que, por algum motivo, foi afastada da família e/ou responsável e se encontra sob tutela pública, aos cuidados de uma casa-lar no município de Vila Velha.
Fui esclarecido(a) de que os usos das informações por mim oferecidas estão submetidos às normas éticas, e a identidade do sujeito da pesquisa será preservada.
Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta prejudicado(a), assim como o sujeito da pesquisa, pelo qual sou responsável, poderei contatar a pesquisadora ou o seu orientador.
A pesquisadora principal do estudo ofertou-me uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Fui informado(a) de que posso me retirar desse estudo a qualquer momento, sem prejuízo para meu acompanhamento ou sofrer quaisquer sanções ou constrangimentos.
Vila Velha, ____ de _________________ de _______.
Assinatura do participante: ______________________
Assinatura do pesquisador:______________________