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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS ALEXANDRE PILAN ZANONI DANÇA ENTRE SISTEMAS: O TRABALHO NO NOVO CAPITALISMOE A DUPLA ATIVIDADE DE UM ENGENHEIRO DANÇARINO CURITIBA 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS – SCH

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

ALEXANDRE PILAN ZANONI

DANÇA ENTRE SISTEMAS: O TRABALHO NO “NOVO CAPITALISMO” E A

DUPLA ATIVIDADE DE UM ENGENHEIRO DANÇARINO

CURITIBA

2016

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ALEXANDRE PILAN ZANONI

DANÇA ENTRE SISTEMAS: O TRABALHO NO “NOVO CAPITALISMO” E A

DUPLA ATIVIDADE DE UM ENGENHEIRO DANÇARINO

Monografia apresentada à disciplina Orientação Monográfica como requisito parcial à conclusão do curso de Bacharelado em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida da Cruz Bridi

CURITIBA

2016

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A Nataraj, rei dos dançarinos.

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AGRADECIMENTOS

Aos colegas e professores do curso de Ciências Sociais da UFPR, pela

solidariedade e paciência.

À Professora Doutora Maria Aparecida da Cruz Bridi, pelo apoio e zelo na

orientação desta monografia.

Aos trabalhadores brasileiros, pelo ensino gratuito e de qualidade.

Ao engenheiro dançarino, por aceitar participar das entrevistas e compartilhar

sua história de vida para a realização desta monografia.

À Marlise, pelas caronas e abacates.

À Camila, pelo suporte, motivação e inspiração.

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De que tratam as Ciências Sociais? Devem tratar do homem e da sociedade e por

vezes o fazem. São tentativas para nos ajudar a compreender a biografia e a história

e as ligações das duas numa variedade de estruturas sociais.

(C. Wright Mills, em A Imaginação Sociológica)

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RESUMO

O trabalhador idealizado pelo “novo capitalismo” é capaz de se adaptar a novas circunstâncias com rapidez e flexibilidade, está sempre atualizando seus conhecimentos de forma autônoma e possui habilidades subjetivas que lhe permitem trabalhar bem em equipes e com diferentes pessoas. O “novo capitalismo” vigora na esteira da estrutura social do informacionalismo, que emergiu com o advento das tecnologias da informação optoeletrônicas durante o século vinte, e passou a permear todas as esferas da vida social e a produzir valor a partir da inovação. Dado este contexto, esta monografia tentou compreender as ligações entre a biografia de um trabalhador que exerce duas atividades – i) dançarino profissional e professor de dança de salão, ii) engenheiro de computação, pesquisador em um importante instituto de tecnologia e inovação da cidade de Curitiba – e as estruturas sociais pelas quais sua história de vida se desenvolve, haja vista que este engenheiro dançarino está inserido no “novo capitalismo”, no qual a “flexibilidade” se faz presente de diferentes formas. A tentativa de compreensão de sua história de vida permitiu tecer metáforas e aproximações entre as duas atividades, nas quais é preciso continuamente aprender novas habilidades, inovar e interagir com diferentes pessoas. Também, apreenderam-se elementos em sua narrativa que indicam um processo de construção identitária de um trabalhador adaptado à organização flexível do trabalho e à impossibilidade de se fazer planos de longo prazo. Palavras-chave: “Novo capitalismo”. informacionalismo. trabalho flexível. história de vida.

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ABSTRACT

The ideal worker for the “new capitalism” is able to adapt to new circumstances quickly and flexibly, is always updating his or her knowledge autonomously and has subjective abilities that enable him or her to work well in teams and with different people. The “new capitalism” unfolds itself from the informationalism as a social structure that has emerged with the advent of optoelectronic information technologies during the twentieth century. It begins to permeate all spheres of social life and to produce value from innovation. In this context, this monograph study attempted to comprehend the relationships between the biography of a worker who performs two different activities – i) professional dancer and ballroom dance instructor, ii) computer engineer, working as a researcher for a well-established institute of technology and innovation at Curitiba – and the social structures by which his biography unfolds. Also given the fact that this engineer and dancer lives the “new capitalism”, in which “flexibility” is recurrent in different forms. The attempt to understand his life history allowed weaving metaphors and approximations between the two activities, as in both it is necessary to continuously learn new abilities, innovate and interact with different people. In addition, it was possible to apprehend from his narrative elements that point to the identity construction process of a worker adapted to the flexible organization of labor and to the impossibility of long term planning. Key words: “New capitalism”. informationalism. flexible labor. life history.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9

2 DISCUSSÃO E JUSTIFICATIVA METODOLÓGICA ............................................. 13

3 A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO “NOVO CAPITALISMO” ................................... 22

3.1 A ESTRUTURA SOCIAL DO INFORMACIONALISMO ...................................... 25

3.2 O TRABALHO FLEXÍVEL E O REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL ............ 37

3.4 O CONTROLE INERENTE À TÉCNICA MODERNA ........................................... 40

3.4 UM PANORAMA SOBRE A INDÚSTRIA DE TI EM CURITIBA .......................... 44

4 A HISTÓRIA DE VIDA DE UM ENGENHEIRO DANÇARINO................................ 53

4.1 PARA ALÉM DOS PASSOS BÁSICOS: SOBRE APRENDER O NOVO ............ 57

4.2 A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO POR PROJETOS ....................................... 64

4.3 “O PROGRAMADOR NÃO PODE TER VERGONHA DE ESTUDAR” ................ 69

4.4 O TRABALHO DO ENGENHEIRO PESQUISADOR ........................................... 74

4.5 “MAS EU NÃO TENHO PLANOS A LONGO PRAZO! NÃO TENHO MESMO!” . 84

4.6 A “DANÇA” PELA LIBERDADE ........................................................................... 88

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 91

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 94

APÊNDICE ............................................................................................................... 96

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1 INTRODUÇÃO

A realização desta monografia foi possível após um longo percurso que

percorri no curso de Ciências Sociais da UFPR e foi pensada a partir do projeto que

desenvolvi durante a primeira disciplina de orientação monográfica: “Novos aspectos

do trabalho no mundo informatizado: autodidatismo e a contratação por projeto”, no

qual pretendia articular essas duas novas realidades do mundo do trabalho

informatizado com base nas trajetórias e experiências de trabalhadores em tecnologia

da informação (TI).

Assim, o fio condutor deste trabalho será um jovem de 27 anos, professor de

dança de salão e trabalhador de TI, formado em engenharia de computação e

pesquisador em um tradicional instituto de tecnologia e inovação. Escolhi este

trabalhador a partir de uma seleção que fiz com possíveis informantes para a

realização de meu primeiro projeto, que infelizmente não pude finalizar à época, pois

tive que trancar o curso. No período que permaneci com o curso trancado percebi que

poderia ser uma excelente oportunidade focar minha pesquisa em apenas um único

trabalhador, que no caso reunisse e evidenciasse, nas atividades que executa, as

características e habilidades demandadas pelo “novo capitalismo”. Desta forma,

supus que seria possível apreender de forma mais aprofundada como se dá a relação,

que constituía o problema de pesquisa de meu primeiro projeto, entre a necessidade

de se atualizar constantemente e a forma como as empresas de TI organizam sua

produção, a saber, por projetos de duração variada e cada um com uma especificidade

técnica diferente.

Cabe dizer que eu mesmo tive uma experiência nesse setor e foi o que me

possibilitou, posteriormente, lançar um olhar crítico sobre como as formas de

contratação flexíveis impactam a vida e a experiência dos trabalhadores inseridos

nessa dinâmica. No ano de 2008, ao “abandonar” minha primeira graduação em

engenharia de computação, após um ano e meio de curso, viajei para a Irlanda, país

que devido à baixa carga tributária atrai empresas de todo o mundo a instalarem seus

complexos de escritórios e sedes administrativas, incluindo as maiores empresas de

TI, como a Apple, Google, Microsoft e outras. Nesse país tentei “a sorte” e estava

disposto a trabalhar em qualquer área (cheguei a trabalhar em uma cozinha de

restaurante e também como vendedor). Por sorte e devido aos meus conhecimentos

em TI, consegui um emprego temporário em uma empresa que prestava serviços

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terceirizados de análise de qualidade e tradução para as grandes produtoras de

videogames. Foi nesse contexto que me deparei pela primeira vez com a forma de

contratação por projetos e senti seu impacto: com o término do primeiro projeto em

que participei, fui desligado da empresa, e como havia a promessa de que poderiam

surgir futuros projetos, organizei minha estadia em tal país de forma a estar pronto

para quando me chamassem. Não podendo me manter sem trabalhar em um país

com altos custos de vida, desisti de esperar e prontamente procurei por outras

atividades. Curiosamente, eu viria a receber um convite daquela empresa para um

novo projeto após seis meses, porém já havia retornado ao Brasil.

Aqui, após iniciar o curso de ciências sociais e cursar a disciplina optativa de

Sociologia do Trabalho, pude perceber que a minha breve experiência constitui o

cotidiano de milhares de trabalhadores, haja vista que as empresas de TI no Brasil

tendem a seguir o mesmo modo de organização da empresa em que trabalhei na

Irlanda. Tal fenômeno não é nenhuma novidade para os estudos sociológicos que se

debruçam sobre as transformações recentes no mundo do trabalho e o crescente

fenômeno da “flexibilização” da produção.

Assim, tendo como base o modelo metodológico que se mostrou profícuo em

A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, do

sociólogo norte-americano Richard Sennet, procurei nessa monografia articular

sociologicamente a experiência pessoal e a trajetória profissional de um trabalhador

“emblemático” e que veio a se mostrar, após a análise de seus relatos, altamente

adaptado ao modo de organização flexível do “novo capitalismo”.

Conheci Dionísio1 quando fui seu colega no curso de engenharia de

computação. Anos depois sua trajetória como dançarino e engenheiro pesquisador

em uma empresa de alta tecnologia chamou minha atenção e fomentou minha

“imaginação sociológica”.

O problema que orientou esse estudo, portanto, partiu de minha observação

inicial sobre a característica altamente flexível de como ambas as atividades são

executadas por Dionísio. Quis compreender como a “flexibilidade” se dava no caso de

Dionísio, e se haveria, como constata Sennet (2006), impactos dessa em sua narrativa

de vida e assim responder se haveriam relações com o que o autor norte-americano

chama de “cultura do novo capitalismo”.

1 Nome fictício. Escolhi esse nome em alusão à divindade da mitologia grega Dionisos, pois, entre outros atributos, em seu culto a dança constituía um importante ato.

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Também, tive como hipótese que seria mais profícuo, comparado ao meu

primeiro projeto, apreender as possíveis relações entre o autodidatismo ou

capacidade de se atualizar constantemente e a organização por projetos de sua

empresa, ao tomar como objeto de estudo a narrativa de vida de Dionísio.

Considerando minha própria experiência, supus que devido às rápidas mudanças

tecnológicas, o trabalhador inserido nesse setor precisaria, em comparação a

trabalhadores de outros setores, constantemente aumentar seu leque de saberes a

fim de aumentar sua “empregabilidade” e se inserir em novos projetos.

Desta forma, supus que haveria, numa perspectiva histórica da vida de

Dionísio, elementos que se concatenassem e que fornecessem uma descrição mais

precisa de como um trabalhador de TI, em uma empresa de alta tecnologia, e,

portanto, inserida em um contexto de “inovação” e “criatividade”, emprega e

“administra” suas habilidades cognitivas. Mais ainda, percebi que em Dionísio a

capacidade de aprender novas habilidades se dava de maneira acentuada, posto que

enquanto estudante de engenharia iniciou seus primeiros passos na dança e veio a

se tornar em pouco tempo um profissional de dança altamente qualificado, isso em

um meio no qual as pessoas iniciam a aprendizagem, geralmente, ainda quando

crianças.

Ao fazer uma primeira consulta na bibliografia referente à sociologia do

trabalho na contemporaneidade, percebi que “flexibilidade” é um termo altamente

recorrente. Essa flexibilidade a que me refiro pode atuar, por exemplo, em como

tarefas são executadas dentro de uma empresa, em como salários e contratos são

negociados ou no local em que ocorre o trabalho. A tendência, de forma geral no “novo

capitalismo”, é que mais aspectos do trabalho sejam flexibilizados com a

intensificação do uso das tecnologias da informação. Portanto, acredito que as duas

atividades que Dionísio realiza, apesar de parecerem opostas em suas naturezas,

permitem que se façam aproximações entre a “cultura do novo capitalismo” e as novas

exigências do mundo do trabalho.

Feitas essas indagações e assentando-as em um referencial teórico

pertinente, analiso, a partir da narrativa de vida de Dionísio, a natureza, a condição e

o sentido do seu trabalho, bem como sua trajetória profissional e educacional,

considerando o que se pode constatar como novos aspectos do trabalho no “novo

capitalismo”: a criatividade, a autonomia, o autodidatismo, a organização por projetos

e o trabalho em equipe.

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Assim, meu objetivo com essa monografia é buscar entender as relações da

trajetória biográfica de Dionísio com o contexto histórico atual, tendo em vista o âmbito

da Sociologia do Trabalho em que essa monografia se insere. Desta forma, em

referência ao título proposto a este trabalho e tomando como metáfora a atividade

com a dança de Dionísio, tento mostrar como há uma “dança”, a qual envolve também

movimento e equilíbrio, mesmo que “entre sistemas” de alta tecnologia: da mesma

forma que se exige flexibilidade do corpo de um dançarino, no “novo capitalismo”

exige-se do trabalhador “flexibilidade” em diferentes âmbitos de sua vida.

Para tanto, no capítulo seguinte julguei importante fazer uma justificativa mais

extensa da metodologia escolhida, a saber, o da história de vida apreendida por meio

de entrevistas compreensivas, posto que não tem sido uma prática comum entre meus

colegas de graduação centrarem seus estudos em um único “informante”.

No capítulo três, apresento uma breve contextualização histórica do “novo

capitalismo”, salientando a emergência do “informacionalismo” como uma estrutura

social e seus efeitos no mundo do trabalho. Procurei, nos autores escolhidos,

concatenar alguns “conceitos-chave”, que, uma vez relacionados entre si, pudessem

fornecer tanto uma perspectiva histórica bem como descrever de modo geral as

características da empresa em que Dionísio trabalha como engenheiro pesquisador.

Nessa mesma esteira, procurei situar a emergência da “flexibilidade” como lógica de

produção predominante no setor de TI. Também julguei importante apresentar uma

breve discussão sobre a técnica moderna e como as tecnologias da informação são

uma intensificação das formas de controle na modernidade, posto os discursos

correntes que enxergam na flexibilidade uma possibilidade de liberdade para o

trabalhador. Com isso, prossigo com a contextualização da indústria de hardware e

software de Curitiba, a partir de estudos sociológicos locais sobre o trabalho no setor

de TI2.

Finalmente, no capítulo quatro, apresento a história de vida de Dionísio e ao

mesmo tempo a analiso tendo como base os conceitos discutidos no capítulo três.

2 Esses estudos se inserem dentro de um projeto guarda-chuva denominado “Redes de empresas, trabalho e relações de trabalho no setor de informática no Paraná”, com apoio do CNPq, coordenado por Maria Aparecida Bridi.

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2 DISCUSSÂO E JUSTIFICATIVA METODOLÓGICA

Richard Sennet em A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do

trabalho no novo capitalismo (2006) utiliza-se de narrativas de vida obtidas em

situações de seu cotidiano como fio condutor para uma discussão sobre a nova

realidade do trabalho e seus respectivos impactos na vida pessoal, nas relações

sociais e familiares dos trabalhadores no que vem a ser chamado de “novo

capitalismo”. Entre as narrativas que Sennet (2006) recolhe a partir de conversas

informais, destacam-se as narrativas de Enrico e Rico, pai e filho, ambos pertencentes

a gerações diferentes e que experenciaram formas distintas de organização do

trabalho. Enrico, consultor de tecnologia, expressa bem o estilo de vida de um

trabalhador flexível e em constante mudança, em contraposição ao seu pai, que por

muitos anos exerceu a mesma atividade, rotinizada.

Para Sennet (2006, p. 21), a mudança mais perceptível vivenciada por Enrico

se refere às formas de organização do tempo, sintetizadas no seguinte lema: “Não há

longo prazo”. O reflexo imediato da reorganização do tempo se dá dentro da empresa

e impacta diretamente em como o trabalho é executado: “(...) as empresas também

distribuíram muitas das tarefas que antes faziam permanentemente em suas

instalações por pequenas firmas e indivíduos empregados com contratos de curto

prazo” (SENNET, 2006, p. 22).

Decorre das novas formas de organização do tempo e do trabalho, uma

dificuldade inerente aos indivíduos em estabelecerem vínculos duradouros. Tal

consequência do trabalho no novo capitalismo, como vem a sugerir Sennet (2006),

pode ser transposta para outras esferas da vida social, como a da vida familiar: “’Não

há longo prazo’ significa mudar, não se comprometer e não se sacrificar” (Idem, p.

25). O conflito que emerge entre a oposição das novas exigências do trabalho e das

antigas formas de organização social faz Sennet (2006) lançar algumas questões

pertinentes:

Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. (SENNET, 2006, p. 27).

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Como resposta preliminar a estas questões, Sennet (2006) aponta para

importância dos indivíduos em tecerem uma narrativa de vida que organize uma

trajetória de constantes mudanças e imprevistos: “As narrativas são mais simples que

as crônicas dos fatos; dão forma ao movimento adiante do tempo, sugerindo motivos

pelos quais tudo acontece, mostrando suas consequências” (Idem, p. 31). Porém,

salienta que as novas condições do tempo no novo capitalismo minam a capacidade

de se construir uma narrativa sustentada, pois criam um conflito entre experiência e

caráter (Idem, p. 31).

Para delimitar o problema cerne desta pesquisa faço empréstimo da seguinte

observação feita pelo sociólogo C. Wright Mills:

A ciência social trata de problemas de biografia, de história e de seus contatos das estruturas sociais. (...) Os problemas do nosso tempo – que incluem o problema de natureza mesma do homem – não podem ser formulados adequadamente sem aceitarmos na prática a opinião de que a história é a medula do estudo social, e reconhecermos a necessidade de desenvolver mais uma psicologia do homem que seja sociologicamente fundamentada e historicamente relevante. (MILLS, 1965, p. 156).

Assim, tendo como base a interação de uma biografia com as estruturas

sociais presentes no atual cenário histórico, procurei contextualizar tais estruturas e

instituições sociais, a fim de tornar exitosa minha tentativa de compreender suas

ligações com a história de vida de um engenheiro de computação que se tornou

dançarino profissional. Devido às novas condições do trabalho no “novo capitalismo”,

este trabalhador percorre uma trajetória que evidencia a intensificação da flexibilidade

em relação ao trabalho de diferentes maneiras.

Dionísio, o engenheiro dançarino, jovem curitibano de 27 anos, exerce duas

atividades que parecem muito distintas entre si e que exigem qualificações e

habilidades, a priori, conflitantes. Logo após se formar em engenharia de computação

pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Dionísio foi efetivado como

pesquisador júnior na empresa XYZ (nome fictício), centro de referência em inovação

tecnológica no Paraná. Dionísio também se tornou um respeitado e requisitado

professor de dança de salão, tendo iniciado sua formação na dança já adulto. Além

de dar aulas, Dionísio também participa em competições de dança e espetáculos

artísticos. Como se pode observar, o perfil de Dionísio em muito destoa da imagem

que fazemos dos trabalhadores inseridos numa lógica fordista, que executam sempre

a mesma função de forma monótona e repetitiva e que pouco tempo e energia lhes

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sobram para dedicarem-se a outras atividades fora do expediente clássico que

corresponde a uma jornada de oito horas de trabalho.

Desdobram-se, a partir desta primeira problematização, algumas questões:

Como este trabalhador justifica a sua escolha em atuar em duas áreas e atividades

diferentes? Isso se deve às características do trabalho flexível, ou seja, à instabilidade

e imprevisibilidade das condições futuras em ambas as atividades, ou, principalmente,

isso se deve à natureza de sua atividade como pesquisador na área da tecnologia da

informação? Seria isso, em parte, o fenômeno descrito por Sennet, que afirma,

As incertezas da flexibilidade; a ausência de confiança e compromisso com raízes fundas; a superficialidade do trabalho em equipe; acima de tudo, o espectro de não fazermos nada de nós mesmos no mundo, de não “arranjarmos um galho” com o nosso trabalho. Todas essas condições levam as pessoas a buscar outra cena de ligação e profundidade. (SENNET, 2006, p. 165).

E sendo a dança, a “outra cena de ligação e profundidade”, como essa

também vem a se transformar em uma atividade profissional e não apenas uma

atividade de lazer e ócio?

Portanto, o objeto de estudo desta monografia centra-se na história de vida

de Dionísio. Após extensa revisão bibliográfica, julguei o método da história de vida,

apreendida a partir de entrevista compreensiva (em profundidade), como sendo uma

proposta metodológica adequada para realizar as necessárias mediações e

aproximações com o objeto em estudo, a fim de responder ao problema da pesquisa,

bem como compreender a dimensão social que constitui o objeto em análise.

De acordo com os pesquisadores portugueses Freire, Rego e Rodrigues

(2014, p. 11) o trabalho se caracteriza por um “fenómeno [fato] social total” e, portanto,

seu estudo merece um tratamento amplo que envolva as diferentes abordagens das

ciências sociais. Entre as técnicas de pesquisa capazes de fornecer tal amplitude e

profundidade de investigação, destaca-se a história de vida:

Também da técnica de pesquisa das histórias de vida se alimenta o principal ponto de contacto entre a sociologia do trabalho e as abordagens das histórias económica e social. Falamos daqueles objectos de estudo em que os protagonistas estão ainda vivos e capazes de serem interrogados acerca de acontecimentos por eles vividos ou presenciados. (grifos dos autores, FREIRE, J.; REGO, R.; RODRIGUES, C., 2014, p. 13).

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A história de vida3, que foi minha opção metodológica, se configura como uma

técnica de pesquisa qualitativa centrada na construção de uma narrativa biográfica.

Segue uma definição precisa, obtida em verbete de dicionário de sociologia:

A história de vida é um procedimento de investigação adotado pela Sociologia e pela Antropologia, que consiste, fundamentalmente, numa recolha intensiva de dados de carácter biográfico, sobre uma ou mais pessoas, sendo que o próprio ou os próprios são a fonte principal da informação, embora não necessariamente a única. Pressupõe, regra geral, a realização de uma série de entrevistas, cujo objetivo é reconstituir o percurso biográfico da pessoa em causa ou episódios e etapas particulares desse mesmo percurso, de acordo com os critérios preestabelecidos pelo investigador. A vida do sujeito não tem de ser uniforme nem integralmente narrada. Por vezes, procura-se estruturá-la em torno de momentos-chave, assinalados pelo próprio sujeito; outras, trunca-se o percurso biográfico apenas a um dado período de vida ou esfera de atividade do inquirido. Do ponto de vista dos fundamentos, esta metodologia de investigação assenta em pressupostos ideográficos, isto é, na valorização do singular, do irrepetível, consequentemente, do não generalizável, como objeto de estudo. (RAMOS, 2002, p. 192).

Na história de vida4 destaca-se “a valorização do singular, do irrepetível”

(RAMOS, 2002, p. 192) como objeto de estudo possível para a Sociologia do Trabalho.

Assim, o método de história de vida permite que a trajetória biográfica de Dionísio

constitua um objeto de estudo sociologicamente válido, mesmo que se apresentando

como “singular” e “irrepetível”.

Contudo, tal estudo só poderia justificar-se como sociológico compreendidas

a dimensão histórica e as estruturais sociais vigentes. Nas palavras de C. Wright Mills:

A biografia e o caráter do indivíduo não podem ser compreendidos apenas em termos do ambiente, (...). A compreensão adequada exige que apreendamos a inter-relação desses cenários íntimos com sua moldura institucional mais ampla, e que levemos em conta as transformações dessas molduras, e os efeitos consequentes sobre o ambiente. Quando compreendemos as estruturas sociais e as modificações estruturais que influem sobre cenários e as experiências mais íntimas, podemos compreender as causas da conduta e sentimentos individuais, dos quais os homens, nos ambientes específicos, têm consciência. (MILLS, 1965, p. 176).

No que toca à “recolha intensiva de dados de caráter biográfico” (RAMOS,

2002, p. 192), a fim de se tecer a história de vida, propus executá-la através de

3 Entre os primeiros estudos sobre o trabalho que se utilizou do método da história da vida destaca-se o livro de Sidney W. Mintz, Worker in the Cane: A Puerto Rican Life History, de 1960, no qual é relatada em profundidade a vida de um trabalhador dos canaviais de Porto Rico. 4 Bertaux (2005) faz uma distinção entre história de vida e relato de vida, uma vez que o relato de vida se difere da história de vida por ter a entrevista como principal meio de recolha de dados biográficos. Neste trabalho, usar-se-á os termos história de vida e relato de vida como sinônimos, haja vista a escolha da entrevista como método de reconstrução da história de vida em análise.

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entrevistas compreensivas. A entrevista compreensiva é uma elaboração

metodológica qualitativa proposta por Kaufmann (2011) que se desenvolve a partir da

sociologia compreensiva de Max Weber, e que, portanto, busca apreender o sistema

de valores dos indivíduos, mas não apenas isso, também busca executar uma

“explicação compreensiva do social”:

O processo compreensivo apoia-se na convicção de que os homens não são simples agentes portadores de estruturas, mas produtores ativos do social, portanto depositários de um saber importante que deve ser assumido do interior, através do sistema de valores dos indivíduos; ele começa, portanto, pela intropatia. O trabalho sociológico não se limita, entretanto, a esta fase. Ele consiste, ao contrário, na capacidade de interpretar e de explicar a partir de dados recolhidos. A compreensão da pessoa é apenas um instrumento, o objetivo do sociólogo é a explicação compreensiva do social. (KAUFMANN, 2001, p. 47).

De acordo com Bertaux (2005) o método do relato de vida (história de vida

apreendida por meio de entrevistas), tem sido comum em estudos sobre o que ele

denomina de quatro grandes âmbitos da existência e suas articulações: as relações

familiares e intrapessoais, a experiência da escola e da formação dos adultos, a

inserção profissional e o emprego. Nestes estudos, resume:

si recurre a los relatos de vida no es para compreender tal o cual persona em profundidad, sino para adquirir datos de quines han passado uma parte de su vida dentro de esse objeto social, para obtener informacionais y descripciones que, uma vez analizados y reunidos, ayuden a compreender su funcionamento y su dinâmica interna. (BERTOUX, 2005, p. 49).5

Com a respectiva técnica desenvolve-se o entendimento de que não se está

buscando apenas uma narrativa individual separada do enredo social, pelo contrário,

trata-se de uma técnica de pesquisa capaz de revelar o social imbricado na memória

e na fala do entrevistado, uma exposição detalhada da entrevista compreensiva pode

ser lida na seguinte síntese:

A sociologia, ao utilizar a entrevista compreensiva como fonte de informação/recolha, procura, entre outras coisas, entender o modo como os indivíduos vivenciam o seu quotidiano, em particular determinados acontecimentos ou mudanças, durante a sua vida. Na realidade, uma história de vida não é uma sequência “uniforme” de acontecimentos, mas é um traçado, por vezes sinalizado por acontecimentos marcantes, momentos de transição que confirmam trajectórias ou contribuem para as redefinir. Trata-

5 Tradução livre: “recorre-se aos relatos de vida não para compreender tal ou qual pessoa em profundidade, mas para adquirir dados de alguém que passou uma parte de sua vida dentro desse objeto social, para obter informações e descrições que, uma vez analisados e reunidos, ajudam a compreender seu funcionamento e sua dinâmica interna.”

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se ao mesmo tempo de olhar um conjunto de “pequenos fragmentos de vida” e de os situar num contexto mais alargado, em particular quando nos “detemos” nos momentos de transição do ciclo de vida. Estes momentos interessam, em particular, à análise sociológica, na medida em que são situações onde a história individual aponta para uma dimensão do contexto social, institucional, de representações e modelo em que o indivíduo em causa se insere. Não estamos perante retratos acabados de uma “identidade” particular, mas perante parcelas de um contexto onde se evidenciam as vivências individuais. (LALANDA, 1998, p. 877).

Apreende-se, desta forma, com a entrevista compreensiva, uma narrativa

composta por diferentes níveis de profundidade, continuidades, descontinuidades,

transições e rupturas. A construção da identidade faz-se revelar não de forma linear e

particular, mas capaz de abarcar a complexidade da trama social vivida por cada

indivíduo, mesmo que recontada a partir de uma miríade de fragmentos

aparentemente desconexos. Como observa Lalanda (1998), na construção da

identidade, a partir da coerência que o entrevistado confere às suas respostas e

narrativa, revelam-se “processos sociais estruturais”:

A estrutura identitária de uma “narrativa” não representa uma sucessão de etapas que se excluam mutuamente, porque o narrador, ao contar-se, constrói a sua identidade, reconstruindo o seu passado, revelando lugares de conflito, rupturas e aquisições/aprendizagens que fez com outros e consigo mesmo. A unidade identitária, que permite associar uma determinada narrativa a uma determinada história de vida, é uma construção dinâmica na medida em que, ao reconstruir de um modo diacrónico a sua própria identidade, o narrador integra diferentes momentos numa mesma experiência, conferindo-lhes coerência. Esta não resulta apenas dos traços individuais do narrador, nomeadamente da sua personalidade, mas contem “processos sociais estruturais”. (LALANDA, 1998, pp. 877-888).

Tal capacidade do método da história de vida em revelar “processos sociais

estruturais” veio de encontro às minhas indagações sobre Dionísio, posto que o

caráter flexível de ambas as atividades que ele executa não parte de uma

característica meramente pessoal. De acordo com a análise bibliográfica, o discurso

da flexibilidade presente no “novo capitalismo” é reforçado pelas instituições sociais.

Pode-se dizer que instituições sociais como a família, a universidade e o mercado de

trabalho, inseridos no “novo capitalismo”, estruturam a identidade do trabalhador a ser

adaptada ao discurso da flexibilidade.

Kaufmann (2001) sugere, para a condução das entrevistas, que as perguntas

não sejam lidas como no estilo de um questionário, pois tal procedimento acarretaria

em respostas limitadas ao tom da pergunta, produzindo, com efeito, uma entrevista

hierarquizada, capaz apenas de acessar os “pensamentos de superfície mais

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imediatamente disponíveis” (KAUFMANN, 2001, p. 79). Faz-se necessário, portanto,

romper com essa possível hierarquia na interação entre o pesquisador e o

entrevistado, assumindo o estilo da conversa:

O objetivo da entrevista compreensiva é quebrar essa hierarquia, o tom que se deve buscar é muito mais próximo de uma conversa entre dois indivíduos iguais do que aquele do questionário administrado de cima para baixo. (...) Para atingir as informações essenciais, o pesquisador deve se aproximar, de fato, do estilo da conversa sem se deixar levar por uma verdadeira conversa: a entrevista é um trabalho, exigindo um esforço constante. (KAUFAMANN, 2001, pp. 79-80).

Ainda de acordo com Lalanda (1998), a entrevista se realiza por meio de uma

relação interpessoal, não apenas marcadas por palavras, mas também por outros

gestos não verbais, vazios na fala, marcações de intensidade ou que expressam

alguma emoção. Assim, com o passar do tempo e intensificação da relação

interpessoal:

(...) a confiança se instala, o discurso adensa-se, a história deixa de ser banal e recheia-se de pormenores particulares. Acontece, por vezes, que a narrativa é feita em diferentes graus de profundidade; num primeiro tempo o entrevistado apenas situa espaços e personagens, marca datas numa história que parece igual a tantas outras. Só a atenção do investigador consegue dar conta de contradições, vazios de sentido e, não raras vezes, é num segundo momento que o entrevistado é levado a retomar o mesmo percurso, esclarecendo zonas de sombra deixadas na primeira “versão” da narrativa. A regra de ouro é não ter pressa de acabar. (LALANDA, 1998, p. 881).

Por isso, ao adotar o estilo da conversa, procurei realizar as entrevistas com

Dionísio de modo a permitir um aprofundamento nos detalhes em que sua narrativa

se desenvolvia. Repetidamente, pedi para que me explicasse melhor algum ponto

aparentemente desconexo com a pergunta que lhe havia feito, mas que por fim o fazia

aguçar sua memória e traçar relações mais pertinentes sobre o assunto da pergunta.

Também, por um problema técnico de meu gravador durante o primeiro dia das

entrevistas, perdi parte da gravação. Tal acontecimento veio a ser enriquecedor

posteriormente, pois pude retomar, assim como sugere Lalanda (1998), o mesmo

percurso, mas revelando novos elementos que não haviam aparecido no primeiro dia.

Conforme a sugestão de Kaufmann (2001), antes de iniciar as entrevistas,

construí uma grade de perguntas que serviu como um simples guia flexível no quadro

da entrevista compreensiva. De acordo com o autor, uma vez elaboradas, as

perguntas não precisam ser lidas ou ordenadas, elas auxiliam a estabelecer uma

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dinâmica que enriquece a conversação, também servem como fio condutor a fim de

que os informantes falem em torno de um tema e evitam que se fuja do mesmo

(KAUFMANN, 2001, p. 75). Sugere ainda que as perguntas sigam um ordenamento

lógico e que componham um conjunto coerente, com o intuito de que o entrevistado

se aprofunde em suas respostas (Idem, p. 75).

Essa abordagem se mostrou fundamental para que Dionísio adensasse suas

respostas. Percebi que havia escolhido uma boa metodologia quando Dionísio

começou a me relevar informações que segundo ele nunca haviam sido contadas para

outras pessoas, mas que eram fundamentais para o entendimento de sua trajetória

biográfica e que eu jamais poderia supor a priori.

A grade de perguntas foi feita tendo como base a revisão teórica e a

contextualização histórica do mundo do trabalho atual. Procurei assim como sugere

Kaufmann (2001), ordenar as perguntas de forma lógica em um conjunto coerente.

Tive como o objetivo traçar um percurso histórico nas perguntas capaz de abarcar

desde a sua formação educacional até o momento atual, contendo sua trajetória em

ambas as atividades. O roteiro que desenvolvi e que orientaram a grade de perguntas

foram as seguintes:

1) Explorar o percurso e a formação educacional do entrevistado.

2) Traçar sua trajetória dentro do curso superior, salientado estágios e outras

atividades que contribuíram para sua formação e posterior admissão no atual

emprego na área.

3) Procurar compreender o momento da intersecção da atividade da dança em

sua trajetória. O que o levou a procurar outra atividade? Houve algum momento

de incerteza sobre o futuro?

4) Como se deu o processo de conciliar duas atividades, como administrou seu

tempo? Por que as duas atividades e não apenas uma?

5) Contextualizar o seu ambiente de trabalho, as condições e natureza dos

trabalhos que realiza. Sugerir que se fale sobre suas atividades e tentar

apreender o processo de trabalho a partir de sua perspectiva.

6) Contextualizar o processo que o levou de praticante de dança a professor de

dança, como se dá seu trabalho de professor e como são organizadas as aulas.

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7) Apreender as relações do entrevistado com os seguintes aspectos do trabalho

informacional: criatividade, autonomia, autodidatismo, organização por projetos

e trabalho em equipe.

8) Indagar sobre os sentidos do trabalho e suas perspectivas de futuro, é possível

a construção de narrativas sobre o futuro?

A partir desses pontos levantados, formulei uma grade de perguntas, que se

encontra na seção dos apêndices desta monografia. A grade de perguntas foi dividida

em blocos por categorias, as quais foram construídas tendo como base e referência

elementos discutidos no próximo capítulo.

Foram necessárias, no total, duas entrevistas para percorrer todos os tópicos

do roteiro. As duas ocasiões em que entrevistei Dionísio se deram em seu

apartamento.

No primeiro dia de entrevista, Dionísio me recebeu em uma quarta-feira, no

período da tarde, oportunidade que não seria possível caso sua empresa não

conferisse como benefício a dispensa do registro ponto para os pesquisadores. Logo

em seguida, à noite, Dionísio receberia alunos particulares para uma aula de dança

de salão que ele daria ali mesmo na sala de seu apartamento, que devido a essa

finalidade não contém nenhum móvel, apenas uma pequena mesa e duas banquetas

de plástico. Portanto, sua residência também é um estúdio de dança improvisado.

À segunda ocasião, em uma manhã de terça-feira, Dionísio me recebeu logo

cedo, pois às 12h30 deveria estar na rodoviária onde embarcaria para Joinville, cidade

que escolheu para realizar seu mestrado na área de robótica.

Ambas as entrevistas foram “penosamente” combinadas com certa

antecedência, posto que a agenda de Dionísio está sempre cheia, apesar da

flexibilidade que sua empresa lhe confere em relação a horários. As entrevistas foram

posteriormente transcritas para a análise.

Passo, a seguir, ao capítulo que faço a contextualização histórica do “novo

capitalismo”, mas antes, constato que a dança fornece possíveis metáforas com a

contemporaneidade que vão além da atividade de Dionísio.

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3 A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO “NOVO CAPITALISMO”

Em 2004, o Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear (CERN) recebeu de

presente do Departamento de Energia Atômica da Índia, em celebração a uma relação

interinstitucional que começou na década de 1960, uma estátua de dois metros de

altura representando Shiva, divindade do panteão hindu, na sua manifestação

conhecida como Nataraj, “rei dos dançarinos”. A imponente estátua tem exibição

permanente próxima ao seu prédio principal, em Genebra, na Suíça, e tornou-se um

símbolo do referido centro, conhecido por ter construído o Grande Colisor de Hádrons

(LHC), maior acelerador de partículas do mundo.6

FIGURA 1 - ESTÁTUA EM EXIBIÇÃO NO CERN

FONTE: Kenneth Lu “CC-BY-2.0” (20/02/2016)

6 A complexa tecnoestrutura do CERN também foi responsável por criações secundárias, que a princípio tinham funções auxiliares aos projetos principais, mas não menos importantes tal como a World Web Wide, tecnologia de informação responsável pela comunicação entre os laboratórios do centro e que possibilitou o surgimento da internet como a conhecemos hoje.

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Na placa da estátua da divindade, exibida no CERN, lê-se: "Ó omnisciente,

incorporação de todas as virtudes, criador deste universo cósmico, Rei dos

dançarinos, que dança a Ananda Tandava no crepúsculo, saudações a Ti.”7 De acordo

com comunicado emitido pelo próprio CERN, a inscrição explica a crença de que o

universo teria vindo à existência, é mantido e, eventualmente, será extinguido pela

dança da respectiva divindade. A metáfora, feita inicialmente por Carl Sagan, físico

inglês, associa o moderno estudo da “dança cósmica” das partículas subatômicas à

“dança cósmica” de Nataraj.8

O referido ato em que se celebra a dádiva presenteada ao centro científico

europeu nos revela uma dimensão simbólica, imbricada no imaginário das pessoas

que fazem a ciência e a tecnologia desta época, como também uma nova realidade

das relações econômicas e internacionais, a qual se insere em um capitalismo

globalizado e que depende da colaboração de diferentes atores e nações.

Não por acaso, análoga representação dos atributos da divindade Nataraj, “rei

dos dançarinos” e cuja dança cria e destrói, reaparece no pensamento econômico do

ex-aluno de Max Weber, Joseph Schumpeter9, o qual reconhece a existência de um

processo de “destruição criadora”10 no cerne do capitalismo: “destruindo

incessantemente o antigo e criando elementos novos.” (SCHUMPETER, 1961, p.

107).

É devido a este processo, sugere o economista e sociólogo austríaco, que as

velhas formas do capitalismo são substituídas por novas: “É dele [do processo de

destruição criadora] que se constitui o capitalismo e a ele deve se adaptar toda a

empresa capitalista para sobreviver.” (Idem, Ibidem). Para o autor, portanto, o

capitalismo se transforma com o tempo de modo dinâmico e rítmico, da seguinte

maneira:

7 Tradução livre do Verso nº. 53 do Sivanandalahari de Sri Adi Sankara. 8 CDS, Boletim 27/2004, 5 de Julho de 2004. Acessível em: http://cds.cern.ch/record/745737 . 9 Lê-se em Castells (2001, p. 217): “O ̔espírito do informacionalismo̕ é a cultura da ̔destruição criativa̕, acelerada pela velocidade dos circuitos optoeletrônicos que processam seus sinais. Schumpeter encontra-se com Weber no espaço cibernético da empresa em rede.” 10 De acordo com Hugo Reinert e Erick S. Reinert no artigo “Creative Destruction in Economics: Nietzsche, Sombart, Schumpeter”, Schumpeter é reconhecido por ter desenvolvido o termo “destruição criadora” com maior minúcia e dado a este o reconhecimento que se tem hoje, mas é creditado ao sociólogo marxista alemão Werner Sombart o primeiro uso do termo, tendo como base a ideia de Karl Marx sobre como o capitalismo incessantemente desvaloriza formas de riqueza existentes para que haja espaço para a criação de novas riquezas. Também se supõe que Sombart tenha sido influenciado pelo misticismo oriental por meio dos escritos dos filósofos e orientalistas alemães Herder, Schopenhauer, Majer e Nietzsche. Disponível em: http://www.othercanon.org/papers/. Acessado em: 20/03/2016.

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De fato, a economia capitalista não é e não pode ser estacionaria. Nem se está simplesmente expandindo de maneira uniforme. É incessantemente revolucionada, de dentro, por novos empreendimentos, isto é, pela introdução de novas mercadorias ou novos métodos de produção ou ainda novas oportunidades comerciais, em sua estrutura industrial, como existem a qualquer momento dado. Quaisquer estruturas existentes e todas as condições econômicas estão sempre em processo de evolução. Cada situação está sendo alterada, antes que tenha tido tempo de se firmar. (SCHUMPETER, 1961, p. 44).

Assim, como em uma dança, a economia capitalista está sempre em

movimento e transformação, não há oportunidade para que uma “situação” tenha

“tempo de se firmar”. Nesse sentido novas teorias foram criadas para explicar as

mudanças recentes no mundo do trabalho, muitas delas alavancadas pela Revolução

Informacional. Tais teorias são sustentadas na tese de que estaríamos transitando de

uma sociedade industrial para uma pós-industrial.

Kumar (1997), em cuja obra expõe e sistematiza o debate sobre as

transformações em curso, destaca que são três os grupos de teorias principais que

descrevem e explicam os desenvolvimentos recentes no capitalismo e no mundo do

trabalho: a teoria da “sociedade de informação”, a do “pós-fordismo” e a do “pós-

modernismo”.

Mesmo havendo muitas convergências entre essas três teorias, há diferentes

parâmetros que cada uma delas emprega nas análises. Os teóricos da “sociedade de

informação”, segundo Kumar (1997) tendem a adotar um viés mais otimista e

evolucionista ao enfatizarem os grandes efeitos da inovação tecnológica. Assim, a

teoria da “sociedade de informação” releva as forças de produção enquanto que a

pós-fordista dá maior enfoque às relações de produção.

Em contraposição aos autores da “sociedade de informação” em sua vertente

otimista, a saber, Daniel Bell, Alvin Toffler e Peter Drucker, os autores da teoria “pós-

fordista”, entre os quais destaca-se o sociólogo francês Alain Touraine, tendem a ser

intelectuais de esquerda das mais variadas correntes, o que faz com que possam

avaliar uma nova situação tanto com otimismo quanto com apreensão (KUMAR, 1997,

p. 49).

A última das teorias, a do “pós-modernismo”, passa a fundir as estruturas, ou

“subsistemas”, que nas outras teorias foram passíveis de serem analisadas

separadamente, assim afirmando o pluralismo e a diversidade das sociedades

contemporâneas (Idem, p. 113). Kumar (1997) ainda salienta que para a teoria “pós-

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moderna” não há mais uma força controladora que dê forma à sociedade, tampouco

o pluralismo inerente a esta sociedade pode ser visto como algo organizado e

integrado de acordo a algum princípio discernível. O problema desta teoria, segundo

o autor, é o cariz eclético de suas origens bem como o caráter sincrético e ao mesmo

tempo sintético de suas manifestações, o que dificulta submetê-la a teste ou análises

habituais (Idem, p. 114).

Como não é a intenção desse trabalho fornecer uma análise mais

aprofundada sobre essas teorias e suas particularidades, apresento a seguir uma

breve contextualização histórica que situa a vigência da informação na economia

capitalista contemporânea, tendo como ênfase a emergência de uma nova estrutura

social.

3.1 A ESTRUTURA SOCIAL DO INFORMACIONALISMO

Como se deram as transformações mais recentes no capitalismo, haja vista a

importância das inovações tecnológicas no processo da “destruição criadora”? Nessa

esteira, o economista John Kenneth Galbraith11 (1988) propõe um significativo

percurso da história da economia dos últimos séculos tendo como perspectiva o

advento da tecnologia como um importante fator de mudanças na produção. Segundo

o economista, o capitalismo inaugura-se com a transição do poder, antes atribuído à

posse de terras, ao capital. A sociedade feudal, fundada no domínio das terras por

uma elite aristocrática e seus vassalos, tem sua estrutura do poder abalada pelo fato

histórico das navegações e do colonialismo, fato este que torna a terra um fator de

produção abundante. Naquele momento, a posse de capital passa a ser mais

determinante, pois sem a disponibilidade de capital não haveria meios de tornar as

novas terras produtivas, tornava-se preciso dispor recursos (sementes, ferramentas,

mão-de-obra, etc.) a serviço do colonialismo e de seu novo modo de produção.

O homem que possuía ou controlava o capital podia agora dispor de mão-de-obra e das terras necessárias. O controle sobre a mão-de-obra ou sobre a terra não conferia um poder recíproco de dispor do capital. [...]. Na era do capital, a terra era facilmente obtenível nas pequenas quantidades

11 John Kenneth Galbraith (1908-2006) foi um importante economista norte-americano, professor na Universidade de Harvard, trabalhou como conselheiro do presidente John F. Kennedy e foi apontado pelo mesmo como embaixador na Índia de 1961 a 1963, onde ajudou a fundar um dos primeiros departamentos de ciência da computação daquele país, no Instituto Indiano de Tecnologia, em Kanpur. (GALBRAITH, 1988).

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necessárias para o empreendimento industrial e, em quantidades cada vez maiores, para a agricultura. A mão-de-obra continuava a ser abundante. A posse da terra e da mão-de-obra não permitia que se dispusesse do capital; mas com o capital, a terra e a mão-de-obra podiam ser facilmente obtidas. O capital agora conferia poder na empresa e consequentemente na sociedade. (GALBRAITH, 1998, pp. 52-53).

Ainda de acordo com Galbraith (1988), conquanto a era do capital avança,

florescem os empreendimentos industriais, possibilitados por invenções tecnológicas

nas áreas da metalurgia e engenharia, marcando o surgimento da empresa moderna,

caracterizada pelo emprego do capital, da tecnologia avançada e da organização

complexa. O economista observa, assim, a ocorrência de uma bifurcação na

economia, por um lado:

A agricultura, as minas de extração manual, a pintura, a composição musical, grande parte de trabalhos escritos, as profissões liberais, certos vícios, o artesanato, certo comércio a varejo e grande número de serviços de consertos, limpeza, renovação, cosméticos e outros serviços do lar e de pessoais continuam ainda na esfera do proprietário individual. (GALBRAITH, 1988, p. 18).

Por outro lado, identifica-se a sociedade industrial moderna, “o mundo das empresas

tecnicamente dinâmicas, maciçamente capitalizadas e altamente organizadas”

(GALBRAITH, 1998, p. 19), constituída, entre outras, por:

Quase todas as comunicações, quase toda a produção e distribuição de energia elétrica, bancos e companhias de seguro, transportes aéreos e ferroviários, a maioria das indústrias de transformação e das minas, uma parcela substancial do comércio varejista e um volume considerável de diversões (...). (GALBRAITH, 1988, p. 18).

Este segundo grupo de atividades vem a ser chamado de “nova economia”,

de acordo com a proposição do economista, e faz uso necessário da tecnologia, que

significa “a aplicação sistemática de conhecimento científico ou outro conhecimento

organizado a tarefas práticas” (GALBRAITH, 1988, p. 22), e que tem como

consequência econômica a intensificação da divisão e subdivisão das tarefas,

chegando a suas partes componentes, com intuito de aumentar o desempenho

produtivo (Idem, p. 22). O economista observa seis consequências do emprego da

tecnologia pela “nova economia”:

1) Um intervalo de tempo cada vez maior separa o início do término de qualquer tarefa. O conhecimento é aplicado à microfração final da tarefa; depois à que está em combinação com alguma outra fração; em seguida

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a alguma outra combinação e, assim por diante, até ao término final (...). (GALBRAITH, 1988, p. 22).

2) Há um aumento no capital investido na produção, sem contar o ocasionado por maior produção. Prazo maior, e com isso maior investimento em mercadoria em processo, custa dinheiro. O mesmo se dá com o conhecimento que se aplica aos vários elementos da tarefa (...). (GALBRAITH, 1988, p. 22).

3) Com o crescimento da tecnologia, o emprego de tempo e dinheiro tende a ser feito de maneira cada vez mais inflexível com relação ao desempenho de determinada tarefa. Esta tem que ser definida com precisão antes de ser dividida e subdividida em suas partes componentes. Aplicam-se o conhecimento e o equipamento nessas frações, e são úteis somente para a tarefa como foi definida inicialmente. Se se modifica essa tarefa, é preciso aplicar novo conhecimento e novo equipamento. (GALBRAITH, 1988, p. 23).

4) A tecnologia exige mão-de-obra especializada. Isso é evidente. Conhecimento organizado só pode ser aplicado – o que não é de se admirar – por aqueles que o possuem. Contudo, não é apenas a tecnologia que requer mão-de-obra; o planejamento, (...), exige também um nível comparativamente alto de talento especializado. Prever o futuro em todas as suas dimensões e projetar as medidas apropriadas não exigem necessariamente alta qualificação científica. Requerem capacidade de organizar e empregar informações ou capacidade de reagir intuitivamente às experiências significativas. (GALBRAITH, 1988, pp. 23-24).

5) A contrapartida inevitável da especialização é a organização. É esta que

faz com que o trabalho de especialistas chegue a um resultado coerente. Se há muitos especialistas, essa coordenação torna-se uma tarefa de grande porte. De fato, tão complexa é a tarefa de organizar os especialistas que existem especialistas em organização e organizações de especialistas em organização. Talvez mais do que a maquinaria, as grandes e complexas organizações empresariais representem a manifestação palpável da tecnologia avançada. (GALBRAITH, 1988, p. 24).

6) Do tempo e capital que devem ser investidos, da inflexibilidade desse investimento, das necessidades da grande organização e dos problemas da atitude do mercado sob condições de tecnologia avançada, vem a necessidade do planejamento. (GALBRAITH, 1988, p. 24).

Esses seis pontos evidenciam o caráter de como o conhecimento é aplicado

cientificamente à produção, ou seja, de forma altamente racionalizada. Também,

infere-se que o conhecimento tem um custo e sua “gestação” requer um longo tempo

e planejamento prévio, o que torna investimentos nessa área “inflexíveis”, ou seja,

requerem sempre um fluxo constante de investimentos a fim de capacitar novos

especialistas e propiciar inovações constantemente, haja vista que cada

conhecimento específico se aplica apenas a uma parte específica da produção de

determinada mercadoria.

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Outro aspecto importante observado pelo economista, que pude apreender na

análise dos relatos de Dionísio sobre sua atividade como engenheiro pesquisador,

refere-se à capacidade dos especialistas “de organizar e empregar informações ou

capacidade de reagir intuitivamente às experiências significativas”. (GALBRAITH,

1988, pp. 23-24). Mais importante numa empresa de alta tecnologia do que seu

maquinário, é a maneira como a informação é produzida, organizada e comunicada

entre seus trabalhadores. Nesse sentido, aponto no capítulo seguinte que Dionísio,

além de possuir habilidades técnicas em computação, destaca-se em sua empresa

por também possuir habilidades subjetivas de comunicação que favorecem seu

trabalho em equipe, habilidades que acredito terem sido aprimoradas devido à sua

experiência com a dança.

Galbraith (1988) observa que com a necessidade do planejamento aliado ao

uso da tecnologia um novo tipo de organização empresarial emerge. Durante esta

transição na economia, o empresário individual, dono do capital, vê o controle da

empresa ser transferido à administração técnica e burocrática, dada a complexidade

das decisões a serem tomadas. O autor nomeia de “tecnoestrutura” esse novo tipo de

organização que se insere nas empresas e que passa a adquirir mais importância do

que o simples dispor de capital:

a decisão na empresa moderna é produto não de indivíduos, porém de grupos. Estes são numerosos, tão frequentemente formais como informais e sujeitos a constantes alterações em sua composição. Cada grupo contém os homens que possuem as informações ou com acesso a elas, que têm a ver com a decisão específica, e com eles, aqueles cuja habilidade consiste em extrair e analisar essas informações e obter uma conclusão. (GALBRAITH, 1988, p. 60).

A “tecnoestrutura” é formada, portanto, por um corpo de especialistas em

diferentes áreas e passa a compor os quadros decisórios das grandes empresas

modernas; o trabalho destes especialistas, das mais diferentes áreas, como observa

o economista, possui um caráter informacional, no sentido de processar informações

técnicas e a partir da análise destas informações tomar uma decisão coerente que

guiará as ações da empresa:

A organização empresarial moderna, ou a parte dela que tem a ver com a orientação e direção, consiste em inúmeros indivíduos que estão empenhados, em qualquer tempo determinado, em obter, dirigir ou trocar e analisar informações. Uma parte muito grande da troca e análise de informações é feita oralmente – uma discussão no escritório, ou por ocasião

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do almoço, bebendo ou pelo telefone. Mas o processo mais típico é através de uma comissão e da reunião dessa comissão. É um grande erro pensar na organização comercial como uma hierarquia de comissões. A coordenação, por sua vez, consiste em escalar para as comissões os talentos apropriados, intervir, vez ou outra, para forçar uma decisão e, confirme o caso, anunciar a decisão ou levá-la como informação para a decisão final de outra comissão ainda mais elevada. [...] Não se deve supor que este seja um processo ineficaz. Ao contrário, é, normalmente, o único processo eficiente. A participação numa comissão permite a cada membro conhecer os recursos intelectuais e a fidedignidade de seus colegas. A discussão das comissões possibilita aos membros reunir informações sob circunstâncias que permitem também um exame imediato para avaliar a relevância e fidedignidade das informações oferecidas. (GALBRAITH, 1988, pp. 59-60).

A descrição de Galbraith (1998) sobre a “tecnoestrutura” me permitiu entender

com maior profundidade o meio em que meu objeto de estudo está inserido. O modo

como o economista descreve a organização de uma empresa moderna de alta

tecnologia vai de encontro com o modo em que empresa de Dionísio foi concebida. O

cerne da produção de sua empresa é a maneira como as informações são obtidas,

trocadas e analisadas. Como mostro com mais detalhes no capítulo seguinte, a

empresa XYZ se organiza por setor e em equipes, de acordo com os projetos que está

concebendo e executando. A tecnologia da informação, portanto, não é o fim de uma

empresa de alta tecnologia, mas seu meio. Espera-se, portanto, observar em uma

empresa com essa natureza um processo de produção intrinsicamente marcado por

relações subjetivas e pessoais.

O sociólogo francês Alain Touraine, em A sociedade post-industrial (1970),

observou semelhante emergência de um novo tipo de sociedade, a qual pode ser

denominada, de acordo com o autor, de duas maneiras: de “sociedades

tecnocráticas”, se considerado a dinâmica do poder que as domina, ou de “sociedades

programadas”, se considerados os meios de ação ou as formas vigentes de

organização da produção. Esse novo tipo de sociedade também compreende novas

classes, conflitos e relações de classe.

Por um lado, distingue-se uma classe de burocratas e tecnocratas,

pertencentes aos quadros administrativos tanto do Estado quanto de corporações

privadas (TOURAINE, 1970, p. 58), esta “nova classe dominante define-se, em

primeiro lugar, pelo conhecimento, isto é, por um nível de educação” (Idem, p. 60),

diferentemente das antigas classes dominantes que derivavam seu poder da

propriedade e da posse dos meios de produção.

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Por outro lado, opõe-se um grupo de “empregados-técnicos”, que não mais

estão submetidos a tarefas “monótonas e penosas como as dos operários que

trabalham em cadeias de montagem” (Idem, p. 67), mas que passam a desempenhar

atividades “relativamente elevadas – agentes técnicos, desenhadores, empregados

superiores, colaboradores técnicos [etc.]” (Idem, p. 67).

Entre essas duas classes ou grupos de classes, a principal oposição não resulta do facto de uns possuírem a riqueza ou a propriedade e os outros não, mas do facto de as classes dominantes serem formadas por aqueles que administram o conhecimento, que detêm as informações. O trabalho define-se, cada vez mais, como uma tarefa num sistema de comunicações, portanto de relações sociais. (TOURAINE, 1970, p. 70).

Tal distinção permite situar o trabalho de Dionísio com maior precisão, posto

que o trabalho de um pesquisador altamente qualificado difere em sua “natureza”

daquele de um operário fabril do século dezenove. No entanto, não desaparecem as

relações de classe. Como sugere Touraine (1970), o conhecimento e a informação e

não apenas a posse do capital tornam-se fatores significativos em como as relações

de trabalho são estabelecidas.

É nessa mesma esteira, da emergência da informação como impactante nas

relações sociais e do trabalho, que se funda a perspectiva do sociólogo Manuel

Castells (2001). O autor de A sociedade em rede afirma estarmos vivendo em uma

nova sociedade e economia, cujas características fundamentais são sua escala global

e informacional. De acordo com o autor, a ocorrência de uma revolução no setor da

tecnologia da informação foi relevante para que houvesse, a partir dos anos 80, uma

reestruturação do sistema capitalista.12 Isso se justifica quando se entende “a

emergência do informacionalismo como a nova base material, tecnológica da

atividade econômica e da organização social. ” (CASTELLS, 2001, p. 32).

Ainda, segundo Castells (2001), com a emergência do informacionalismo e

consequentemente com a reestruturação do modo de produção capitalista, surge

também uma nova estrutura social. Esta, por sua vez, manifesta-se em todo o globo

e em concordância com as respectivas instituições e culturas locais. A emergência

12 De acordo com Castells (2001), a tecnologia da informação, àquela época, foi essencial, não apenas ao avanço das economias ocidentais, mas também, argumenta o autor, na política de reestruturação da então União Soviética, por meio da perestroyka. Contudo, sugere-se que a União Soviética, por não ter sido apta a utilizar com eficácia os princípios da tecnologia da informação, viu-se a colapsar. Assim salienta-se a importância histórica da implementação da tecnologia da informação tanto na economia como nas políticas de Estado.

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histórica de uma nova estrutura social, se fundamenta, no que o autor expõe, a partir

de relações historicamente determinadas, estas relações se dão em três âmbitos:

relações de produção, experiência e poder.

Produção é a ação da humanidade sobre a matéria (natureza) para apropriar-se dela e transformá-la em seu benefício, obtendo um produto, consumindo (de forma irregular) parte dele e acumulando o excedente para investimento conforme os vários objetivos socialmente determinados. Experiência é a ação dos sujeitos humanos sobre si mesmos, determinada pela interação entre as identidades biológicas e culturais desses sujeitos em relação a seus ambientes sociais e naturais (…). Poder é aquela relação entre os sujeitos humanos que, com base na produção e na experiência, impõe a vontade de alguns sobre os outros pelo emprego potencial ou real de violência física ou simbólica. (CASTELLS, 2001, p. 33).

A partir dessas três relações, historicamente determinadas, emergem as

instituições sociais, com o objetivo de fazer cumprir as relações de poder vigentes,

bem como as relações de classe que visam organizar a produção, e com isso

estruturam-se as experiências, delineando as personalidades e a interação simbólica

entre as pessoas. O poder, assegurado pelas instituições sociais, delimita e orienta

os deveres das pessoas, que por meio da comunicação simbólica, e em função da

produção, faz com que se formem, historicamente e geograficamente, culturas e

identidades coletivas (CASTELLS, 2001, p. 33).

É a partir das alterações históricas nos modos de produção, cada qual

caracterizado pela maneira como se dá a expropriação e o controle do excedente da

produção, que se pode vislumbrar as características centrais do modo informacional

de desenvolvimento. Se no modo de produção agrário, o excedente era criado por

meio do crescimento da mão-de-obra e da expansão dos recursos naturais, aí

incluindo a posse de terras; e no modo de produção industrial, por meio da inclusão

de novas fontes de energia; no modo de produção informacional o conhecimento

torna-se a fonte de produtividade. O processo de produção informacional, portanto,

difere-se dos demais ao ter sua fonte de produtividade no contínuo processo de

aprimoramento da tecnologia (CASTELLS, 2001, p. 35).

Assim, argumenta Castells (2001, p. 35): “a tecnologia e as relações técnicas

de produção difundem-se por todo o conjunto de relações e estruturas sociais,

penetrando no poder e na experiência e modificando-os.” O informacionalismo se faz

presente como uma estrutura social que caracteriza as sociedades atuais, “todas as

sociedades são afetadas pelo capitalismo e informacionalismo, e muitas delas

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(certamente todas as sociedades importantes) já são informacionais” (CASTELLS,

2001, p. 38). Ao reconhecer o informacionalismo como uma nova estrutura social,

Castells também constata a importância crescente que se dá à identidade13 neste

novo tipo de sociedade, “os primeiros passos históricos das sociedades

informacionais parecem caracterizá-las pela preeminência da identidade como seu

princípio organizacional” (CASTELLS, 2001, p. 39).

Estamos vivendo, a partir do fim do século XX, portanto, de acordo com

Castells (2001), uma “revolução da tecnologia da informação”14, tal como foram as

revoluções industriais, que ocorreram a partir do século XVIII. A característica desta

revolução tecnológica, argumenta o sociólogo espanhol, não reside apenas na

centralidade que a informação e o conhecimento adquirem, mas no uso e na aplicação

destes na “geração de conhecimentos e de dispositivos de

processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação

cumulativo entre inovação e seu uso” (Idem, pp. 50-51).

Mais ainda, Castells (2001) destaca que este processo se deu em três etapas

distintas, sendo que nas duas primeiras os usuários da tecnologia aprendiam e

produziam novas tecnologias por meio do uso, e na terceira e atual etapa, a tecnologia

passa a ser assimilada e aprendida simultaneamente à medida que é feita:

As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuários e criadores podem tornar-se a mesma coisa. Dessa forma, os usuários podem assumir o controle da tecnologia como no caso da Internet. Segue-se uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade). Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo. (CASTELLS, 2001, p. 51).

A expansão global da tecnologia da informação se tornou realidade a partir do

período do pós-guerra, com a invenção do transistor, em 1947, por pesquisadores da

Bell Laboratories, e com a criação do circuito integrado, pela Texas Instruments, em

1957. Mas é apenas a partir dos anos 70, mais precisamente no ano de 1971, com a

13 Castells define identidade como “processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais” (CASTELLS, 2001, p. 39). 14 Mostra-se interessante a abrangência do termo “tecnologias da informação”, que de acordo com Castells (2001, p. 49) são: “o conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação (software e hardware), telecomunicações/radiofusão, e optoeletrônica, [...] a engenharia genética e seu crescente conjunto de desenvolvimentos e aplicações”.

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invenção do microprocessador (computador em um único chip), por engenheiros

pesquisadores da empresa Intel15, que a microeletrônica se difunde por todo o globo,

fazendo emergir um novo paradigma tecnológico (Idem, pp. 58-59). Tais inovações,

salienta o autor, somente foram possíveis haja vista o processo que se deu,

inicialmente nos EUA e posteriormente em outros países, por meio da interface entre

“os programas de macropesquisa e grandes mercados desenvolvidos pelos governos,

por um lado, e a inovação descentralizada estimulada por uma cultura de criatividade

tecnológica e por modelos de sucessos pessoais rápidos” (Idem, p. 77).16

Esse novo paradigma tecnológico, resume Castells, desdobra-se a partir de

cinco aspectos fundamentais:

1) a informação é sua matéria-prima: são tecnologias para agir sobre a informação. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 79).

2) a penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. [...] todos os processos de nossa existência individual e coletiva são diretamente moldados [...] pelo novo meio tecnológico. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 79).

3) [a] lógica de redes [...] necessária para estruturar o não-estruturado, porém preservando a flexibilidade, pois o não-estruturado é a força motriz da inovação na atividade humana. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 79).

4) [a] flexibilidade [...]. O que distingue a configuração do novo paradigma tecnológico é sua capacidade de reconfiguração, um aspecto decisivo em uma sociedade caracterizada por constante mudança e fluidez organizacional. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 79).

5) [a] convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente

integrado, [...] a microeletrônica, as telecomunicações, a optoeletrônica e os computadores são todos integrados nos sistemas de informação. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 80).

Portanto, a informação torna-se crucial nesse novo paradigma tecnológico e

os meios tecnológicos capazes de lidar com a informação convergem entre si em um

grande sistema, evidenciando uma organização em rede, capaz de acessar a todos.

Seus efeitos imediatos se dão em todas as esferas sociais e impactam diretamente

nossas vidas. É nessa dinâmica que a “flexibilidade” emerge, pois como aponta o

sociólogo, o novo paradigma tecnológico tem sua “força motriz” nas inovações

15 Todas as empresas citadas são norte-americanas. 16 A influência do setor público, por meio de programas e contratos governamentais e militares, é crucial na nova economia baseada nas tecnologias da informação. O ENIAC, primeiro computador a válvulas, por exemplo, foi desenvolvido pelo exército americano durante a Segunda Guerra Mundial.

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contínuas, as quais não poderiam ser realizadas em um cenário de “rigidez”

organizacional.

Cabe, enfim, especificar o processo do trabalho nessa nova sociedade e

economia flexível. Para Castells (2001), a análise do trabalho é fundamental, isso

porque seu processo reside “no cerne da estrutura social” (CASTELLS, 2001, p. 224).

Isso é entendido ao se constatar que é por meio das relações produtivas e das

mudanças na tecnologia e na administração do trabalho que o paradigma

informacional e seu aspecto globalizante impactam a sociedade como um todo (Idem,

p. 224). Nos anos de 1990, com a intensificação da revolução das tecnologias da

informação, novas formas de divisão técnica e social do trabalho despontam,

transformando assim o processo de trabalho (Idem, p. 262).

O processo de trabalho orientado pelo informacionalismo gera valor por meio

da inovação, a qual depende intrinsicamente da geração de novos conhecimentos. A

inovação, por sua vez, se torna uma realidade aliando-se pesquisa e especificação,

ou seja, capacidade de se aplicar conhecimentos gerais em objetivos e casos

específicos, gerando novos produtos ou processos. Por fim, as atividades se tornam

mais eficientes à medida que processos repetitivos passam a ser automatizados,

enquanto que a capacidade humana se volta às atividades de adaptação e feedback,

assim corrigindo erros e aprimorando o processo produtivo (Idem, pp. 264-265).

Nessa dinâmica introduzida pelas tecnologias da informação, redefinem-se o

emprego e a estrutura ocupacional:

Embora um número substancial de empregos esteja melhorando de nível em relação a qualificações e, às vezes, a salários e condições de trabalho nos setores mais dinâmicos, muitos empregos estão sendo eliminados gradualmente pela automação da indústria e de serviços. [...] Qualificações educacionais cada vez maiores, gerais ou especializadas, exigidas nos cargos requalificados da estrutura ocupacional segregam ainda mais a força de trabalho com base na educação que, por si só, é um sistema altamente segregado, porque a grosso modo corresponde institucionalmente a uma estrutura residencial segregada. (CASTELLS, 2001, p. 272).

Pode-se observar, portanto, como se dá a transformação mais recente no

capitalismo, isso se nota nas formas como o trabalho passa a produzir valor. Se num

primeiro momento o capitalismo produzia valor por meio do trabalho braçal e físico,

com o capitalismo informacional os domínios da cognição se tornam passíveis desse

mesmo processo, no caso, por meio da inovação. O “novo capitalismo”, compreendido

sob este viés, representa, então, a intensificação de um processo histórico anterior,

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mas que na atualidade avança e adentra um maior número de esferas de

sociabilização, haja vista a capacidade de penetração dos efeitos das novas

tecnologias e a flexibilidade com que as organizações se reconfiguram, mesmo que

mantendo e reforçando velhas e segregadas estruturas.

A transformação histórica do capitalismo, tomada sob o viés do trabalho,

também pode ser apreendida consideradas as formas de motivação ou incentivo ao

trabalho reforçadas pelas classes dominantes. Galbraith (1988) constata quatro tipos

que se desenvolvem ao curso da história: o primeiro e mais antigo tipo de motivação

foi a compulsão física, por meio da qual um grupo força outro a aceitar seus objetivos

em troca de que se evite uma punição, “Atrás do homem com a pá existe outro com

um porrete” (GALBRAITH, 1988, p. 104); posteriormente surge a motivação pecuniária

(monetária), aceita-se um objetivo comum, o trabalhador oferece seu tempo e esforço

incondicionalmente, em troca de uma recompensa em dinheiro, “ao fim da vala há um

homem com dinheiro” (Idem, p. 104).

A seguir, com o tipo de trabalho motivado pela identificação, o trabalhador

passa a associar-se a um grupo identificando os objetivos destes como superiores

aos seus propósitos iniciais, “Se o fosso drena um pântano especialmente

nauseabundo e infestado pela malária, o indivíduo, ao associar-se aos escavadores,

pode então vir a conhecer a utilidade do trabalho conjunto” (Idem, p. 105). Por fim,

com a motivação guiada pela adaptação, o indivíduo passa a fazer dos objetivos da

organização a que trabalha refletirem seus próprios objetivos, “Sendo membro da

organização de escavação de fossos, espera que um fosso seja, em capacidade,

profundidade ou direção, mais conforme o seu ideal” (Idem, p. 105).

Reconhece-se que todas estas formas operam em conjunto e combinam-se

na atualidade informacional, cada qual em grau maior ou menor dependendo da

natureza do trabalho (Idem, p. 106). O importante é observar como as organizações

orientadas pelo informacionalismo motivam seus trabalhadores:

O conhecimento especializado e sua coordenação tornaram-se agora, [...], o fator decisivo para o êxito econômico. Isso exige que os homens trabalhem em grupos, passando o poder para estes. Os participantes são bem compensados; poucos são os que encaram com desinteresse a compensação. Mas ao associar-se ao grupo, o indivíduo vê-se atraído ou compelido pelos objetivos do grupo. E substitui seus próprios objetivos pelos do grupo. (GALBRAITH, 1988, p. 112).

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Compreende-se que é na esteira da identificação e da adaptação que a

flexibilidade das organizações passa a ser assumida pelo trabalhador como uma

condição a ser conformada e almejada. Pesquisas como a de Krein (2001), e outros

autores da Sociologia do Trabalho, fazem a crítica, no entanto, à flexibilidade que vem

implicando um trabalho intensificado, ou seja, a favor do capital e não do trabalhador.

Também, segundo Castells (2001, p. 292):

O modelo predominante de trabalho na nova economia baseada na informação é o modelo de uma força de trabalho permanente formada por administradores que atuam com base na informação [...] e uma força de trabalho disponível que pode ser automatizada e/ou contratada/demitida/enviada para o exterior, dependendo da demanda do mercado e dos custos do trabalho. (sublinhado do autor, CASTELLS, 2001, p. 292).

Esta segmentação das forças de trabalho vem de encontro com a forma de

organização em redes das empresas, a qual “permite a terceirização e a

subcontratação como modos de ter o trabalho executado externamente em uma

adaptação flexível às condições do mercado” (CASTELLS, 2001, p. 292). No tocante

à flexibilidade, palavra-chave da nova economia, e, portanto, central a esta discussão,

observa-se que a flexibilidade se dá em diferentes formas: “salários, mobilidade

geográfica, situação profissional, segurança contratual e desempenho de tarefas”

(Idem, Ibidem).

Estas formas de flexibilidade combinam-se e são experienciadas pelos

trabalhadores em correspondência às formas de motivação já mencionadas,

atenuando-se a linha que separa os interesses próprios dos trabalhadores dos das

empresas: “Muitas vezes, todas essas formas [de flexibilidade] são reunidas em uma

estratégia voltada para os próprios interesses, visando apresentar como inevitável

aquilo que, sem dúvida, é uma decisão empresarial ou política” (Idem, pp. 292-293).

As tecnologias da informação, por sua vez, desempenham papel fundamental

em generalizar as formas de flexibilidade, e não encontrando resistência, tendem a

fazer o sistema evoluir “para uma flexibilidade generalizada multifacetada em relação

a trabalhadores e condições de trabalho” (Idem, p. 293). Neste cenário de

transformações desencadeadas pelas tecnologias da informação:

O aumento extraordinário de flexibilidade e adaptabilidade possibilitadas pelas novas tecnologia contrapôs a rigidez do trabalho à mobilidade do capital. Seguiu-se uma pressão contínua para tornar a contribuição do trabalho a mais flexível possível. A produtividade e a lucratividade foram

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aumentadas, mas os trabalhadores perderam proteção institucional e ficaram cada vez mais dependentes das condições individuais de negociação e de um mercado de trabalho em mudança constante. (CASTELLS, 2001, p. 298).

Assim, de acordo com a teoria de Castells (2001), com a emergência de uma

sociedade em rede17, o trabalho, traduzido na crescente vulnerabilidade dos

trabalhadores em relação às empresas, desagrega-se, mesmo que mantendo sua

centralidade na produção de valor (Idem, pp. 298-299).

O trabalho, portanto, vem a apresentar uma nova configuração.

3.2 O TRABALHO FLEXÍVEL E O REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL

Harvey (2007), autor marxista e com uma visão crítica oposta ao otimismo dos

teóricos da “sociedade de informação”, analisa que no final do século XX uma

transformação “político-econômica” do capitalismo resultou em uma transição do

fordismo a um regime de “acumulação flexível”.

o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle de trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico (...), esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida mudança, fluidez e de incerteza. (HARVEY, 119, p. 119).

Essa transição é intensificada com a crise econômica da década de 1970

ocasionada pela recessão de 1973, levando as empresas capitalistas a “entrar[em]

num período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho

(...)” (HARVEY, 2007, p. 137). Com a intensão de reverter os efeitos da crise financeira

as empresas passam a ter como prioridade a “mudança tecnológica, a automação, a

busca de novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão geográfica para

zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo

de giro do capital” (Idem, p. 137).

17 Castells (2001, p. 498) define: “Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação [...]. Uma estrutura social baseada em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio. Redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na inovação, globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas [...]”

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Nesse âmbito a “acumulação flexível” vem a ser definida em contraposição à

rigidez do fordismo, e passa a flexibilizar processos de trabalho, mercados de

trabalho, produtos e padrões de consumo (Idem, p. 141). As consequências imediatas

para o trabalho desta nova política econômica tendem a causar altos níveis de

desemprego estrutural, bem como “rápida destruição e reconstrução de habilidades,

ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical”

(Idem, Ibidem). Harvey (2007) observa uma estruturação do emprego concêntrica,

permeada por diferentes modos de flexibilidade:

Observa-se que, no centro desta estrutura, concentram-se trabalhadores

fixos, mas que passam a exercer suas atividades de modo flexível. Esses

trabalhadores recebem uma série de benefícios e vantagens, segurança no emprego

e chances de promoção e se esperam deles adaptabilidade e flexibilidade (funcional)

(Idem, p. 144). Como pude constatar no caso de Dionísio, sua atividade de

pesquisador ocupa o “grupo central” no mercado de trabalho, dado o modelo

apresentado no gráfico acima. Como analiso no capítulo seguinte, o trabalho de

Dionísio requer uma flexibilidade funcional, ou seja, que se dá na maneira como as

tarefas são executadas dentro da empresa. Ademais, Dionísio goza de estabilidade

na forma da contração celetista. Também, por ser um profissional altamente

FONTE: (Flexible Patterns of Work, 1986 apud HARVEY, 2007)

FIGURA 2: ESTRUTURA DO MERCADO DE TRABALHO FLEXÍVEL

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qualificado e “raro” no mercado de trabalho, Dionísio não sofre os impactos da

“flexibilidade numérica”.

Fora deste núcleo central, a flexibilidade (numérica) tende a ser assumida nas

formas de contratação ou no tipo do trabalho, geralmente de fácil execução e de alta

disponibilidade no mercado, e que permitem maior rotatividade (Idem, Ibidem).

O capitalismo, de acordo com Harvey (2007, p. 151), apesar da aparente

dispersão, tende a ficar mais organizado à medida que emprega “pesadas doses de

inovação tecnológica, de produção e institucional.” Nesse âmbito, a produção de

conhecimentos e o processamento de informações passa a ser crucial:

as informações precisas e atualizadas são agora uma mercadoria muito valorizada. O acesso à informação, bem como seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados, tornaram-se essenciais à coordenação centralizadas de interesses corporativos descentralizos. (HARVERY, 2007, p. 151).

Neste contexto, portanto, as características do trabalho se transformam, o

contraste entre o fordismo e o regime de acumulação flexível, no que toca ao trabalho,

pode ser sintetizado no seguinte quadro:

QUADRO 1: O TRABALHO NO FORDISMO E NA ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL.

Trabalho no Fordismo Trabalho no regime de Acumulação Flexível

Realização de uma única tarefa pelo trabalhador

Múltiplas tarefas

Pagamento pro rata Pagamento pessoal (sistema detalhado de bonificações)

Alto grau de especialização de tarefas Eliminação da demarcação de tarefas

Pouco ou nenhum treinamento no trabalho

Longo treinamento no trabalho

Organização vertical do trabalho Organização mais horizontal do trabalho

Nenhuma experiência de aprendizagem

Aprendizagem no trabalho

Ênfase na redução da responsabilidade do trabalhador (disciplinamento da força de trabalho)

Ênfase na co-responsabilidade do trabalhador

Nenhuma segurança no trabalho Grande segurança no emprego para trabalhadores centrais (emprego perpétuo). Nenhuma segurança no trabalho e condições de trabalho ruins para trabalhadores temporários.

FONTE: Adaptada (SWYNGEDOUW18, 1986 apud HARVEY, 2007).

A atividade que Dionísio desempenha como pesquisador é altamente

marcada pelas características presentes na segunda coluna do quadro. De todos os

18 SWYNGEDOUW, E. “The socio-spatial implications of innovations in industrial organization”. In: Working Paper nº 20, Johns Hopkins European Center for Regional Planning and Research, Lile: 1986.

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itens listados, apenas não foi constado a forma de pagamento pessoal por meio de

um sistema detalhado de bonificações.

De forma geral, as características da flexibilidade mostradas na segunda

coluna do quadro podem ser observadas em algum grau junto aos trabalhadores em

tecnologia da informação. Contudo, julgo importante fazer uma breve digressão a

seguir e apresentar uma discussão sobre a natureza dessa flexibilidade. Não se pode

esquecer que tal flexibilidade no trabalho está inserida em uma modernidade científica

e, portanto, altamente racionalizada.

3.3 O CONTROLE INERENTE À TÉCNICA MODERNA

De acordo com o filósofo alemão Martin Heidegger, no ensaio “A questão da

técnica” (2002), os gregos antigos entendiam a técnica como um modo de se revelar

algo outrora encoberto: “(…) técnica é uma forma de desencobrimento. A técnica vige

e vigora no âmbito onde se dá o descobrimento e des-encobrimento, onde acontece

aletheia, verdade” (HEIDEGGER, 2002, p. 18). Posto de outra maneira, pertencia ao

entendimento grego que a produção do visível dava-se em sua totalidade por meio da

técnica, “O decisivo da techne não reside, pois, no fazer e manusear, nem na

aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado” (Idem, p. 18).

Ainda segundo Heidegger (2002), em contraposição à concepção antiga dos

gregos, ocorreu uma diferenciação fundamental na modernidade, a técnica moderna

passa a apresentar um novo tipo de desencobrimento ou modo de produção: “O

desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à

natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e

armazenada” (HEIDEGGER, 2002, p. 19).

Observa-se na técnica moderna, portanto, uma relação com a natureza que a

toma como um objeto passível de ser explorado, na concepção do filósofo:

O desencobrimento que domina a técnica moderna, possui, como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado, estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar são todos modos de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento não se dá simplesmente. Tampouco, perde-se no indeterminado. Pelo controle, o desencobrimento abre para si mesmo suas próprias pistas, entrelaçadas numa trança múltipla e diversa. Por toda parte,

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assegura-se o controle. Pois controle e segurança constituem até as marcas fundamentais do descobrimento explorador. (HEIDEGGER, 2002, p. 20).

Salienta-se a necessidade da técnica moderna pelo controle. Ainda, acerca

da essência da técnica moderna, o filósofo prossegue sua reflexão:

Quando tentamos aqui e agora mostrar a exploração em que se desencobre a técnica moderna, impõe-se e se acumulam, de maneira monótona, seca e penosa, as palavras “por”, dis-por”, “dis-posição”, “dis-positivo”, “dis-ponível, “dis-ponibilidade”, etc. (HEIDEGGER, 2002, p. 21).

Com a contextualização do conceito de técnica proposto por Heiddeger

(2002), passando dos antigos gregos à modernidade, vê-se claramente o lugar da

tecnologia da informação como mais um desdobramento da técnica moderna e de sua

característica intrínseca: o controle, mensurado e exato. No caso, a informação passa

a ser armazenada sob o mesmo viés em que eram armazenados os recursos

energéticos no início da revolução industrial, no século XVIII, e o armazenamento e

processamento tanto de informações quanto de recursos naturais torna-se

determinante no modo em que se dará o controle e a organização do trabalho. De tal

forma, vem a fazer parte da técnica moderna não apenas sua concretude, esta

realizada no momento que algo se torna visível, como na antiguidade, mas também

seu planejamento prévio e reproduzível, através da informação armazenada, que se

traduz no ato de dispor e tornar disponível. Curiosamente, não parece ser esvaziado

de sentido o nome que damos aos muitos instrumentos frutos da tecnologia da

informação: os “dispositivos" e, mais recentemente, os “dispositivos móveis”.

A técnica, acrescente-se, na visão sociológica do trabalho, torna-se uma

“variável independente” (FREIRE, J.; REGO, R.; RODRIGUES, C., 2014, p. 8),

portanto:

desde sempre presente nos espaços e processos produtivos mas que, na Modernidade, e sobretudo na nossa contemporaneidade, transbordou largamente para a esfera pessoal do consumo, da comunicação, e até da manipulação do saber codificado hoje tão visíveis nas inefáveis ‘TIC’ (tecnologias da informação e da comunicação). (FREIRE, J.; REGO, R.; RODRIGUES, C., 2014, p. 8).

Mais ainda, torna-se possível afirmar que não há trabalho sem “recurso à

técnica” (Idem, p. 9), fato que se intensifica na atualidade, momento histórico em que

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se observam mudanças nas “formas de trabalho das pessoas e das sociedades”

provocadas diretamente por “mudanças técnicas” (Idem, p. 9).

A necessidade pelo controle, inerente à técnica moderna, passa a atuar de

maneira determinante na disponibilidade da mão-de-obra. É possível constatar que a

moderna ciência administrativa é mais um desdobramento histórico dessa mesma

técnica moderna. Em apenas um século, passou-se das recomendações

administrativas de F. W. Taylor (1856-1915) a complexos sistemas informacionais

automatizados que aumentam a eficiência e controle de toda uma cadeia de produção.

Faz-se importante mencionar Taylor, engenheiro mecânico por formação, pois a

concepção cientifica da administração tornou-se determinante às formas de

organização do trabalho e a suas adaptações que ainda se fazem presentes. Em seu

célebre livro Princípios de Administração Científica, de 1911, é possível apreender em

essência do que se trata a cientificidade proposta. Tem-se, no seguinte fragmento,

acerca da atitude mental dos trabalhadores a ser buscada, o consequente resultado

positivo na produtividade:

A mudança da administração empírica para a administração científica envolve, entretanto, não somente estudo da velocidade adequada para realizar o trabalho e a remodelação de instrumentos e métodos na fábrica, mas também completa transformação na atitude mental de todos os homens, com relação ao seu trabalho e aos seus patrões. Foram efetuadas, com relativa brevidade, as modificações nas máquinas, para assegurar maior lucratividade e o estudo dos movimentos, seguido da minuciosa cronometragem do tempo com relógio de parada automática, para registro do tempo em que cada trabalhador devia fazer seu trabalho. A mudança, porém, na atitude mental e nos hábitos dos trezentos e muitos trabalhadores somente pode ser conseguida devagar e após séries de demonstrações concretas, que, finalmente, esclareceram cada homem a respeito de grande vantagem que a eles adviria, cooperando espontaneamente com a administração. Dentro de três anos, a produção da fábrica foi mais do que duplicada por homem e por máquina. (TAYLOR, F. W., 1990, p. 76).

De acordo com Kumar (1997) é possível entender a sociedade da informação

como uma intensificação de uma lógica anterior que perdurará mesmo em uma

sociedade pós-industrial, uma vez que os princípios da administração científica de

Taylor constituem um “poderoso sistema de organização do trabalho, capaz de

aplicação um tanto indefinida em uma grande variedade de contextos industriais”

(KUMAR, 1997, p. 31). Mesmo que o trabalho manual, com a crescente dominação

da cultura da técnica, venha a ser abolido, assim como profetiza André Gorz em

Metamorfoses do Trabalho (2003), o taylorismo como princípio organizacional pode

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ser “adaptad[o] não só ao trabalho burocrático de rotina, mas às funções de

numerosos profissionais de nível superior e técnicos especializados, novas e antigas”

(KUMAR, 1997, p. 32).

Para Gorz (2003), o último estágio do desenvolvimento da técnica culminaria

no total controle exercido pela tecnologia da informação, “a usina inteiramente

comandada por computador” (GORZ, 2003, p. 83). Nesse estágio, os operários se

transformariam em operadores, “resta apenas uma atividade puramente intelectual

ou, melhor, mental. Triunfo definitivo, absoluto, do que Husserl definia como “a

matematização da natureza” (Idem, p. 89).

Contudo, Kumar (1997) aponta que o desenvolvimento da tecnologia da

informação possibilitou acelerar ainda mais a aplicação da administração científica

taylorista em todos os níveis do trabalho informacional, tornando a “atividade

puramente intelectual” num ato repetitivo e rotinizado:

Mais notável de tudo, o desenvolvimento incessante dos computadores taylorizou os próprios profissionais do ramo. O trabalho com computadores seguiu o padrão conhecido de separação e decomposição de tarefas, resultando em trabalho cada vez mais rotinizado de um pequeno grupo de projetistas e pesquisadores. De início, os analistas de sistemas foram separados dos programadores, estabelecendo-se uma distinção importante entre os que concebiam e os que executavam programas de computador. Mais tarde, os programadores foram também separados de uma classe mais rotineira de operadores, que se concentravam principalmente em tarefas repetitivas de codificação. (KUMAR, 1997, p. 34).

Isso porque, como demonstrou Heidegger (2002), o controle reside no cerne

do modo de produção moderna, esse entendimento é corroborado por Kumar ao citar

o sociólogo James Beniger:

A sociedade de informação não é produto de mudanças recentes... mas, sim, de aumentos na velocidade do processamento material e dos fluxos através da economia material, que se iniciaram há mais de um século. Da mesma forma, o microprocessamento e a tecnologia da computação, ao contrário da opinião ora em moda, não representam uma nova força desencadeada apenas há pouco tempo sobre uma sociedade despreparada, mas tão somente a etapa mais recente do desenvolvimento contínuo da revolução do controle. (Beniger19, 1985 apud KUMAR, 1997, p. 30).

Seguindo esta linha de pensamento, deve-se atentar para a natureza do

trabalho e questionar o que de fato vem a constituir uma novidade na forma como o

19 BENIGER, J. R. The Control Revolution: Technological and Economic Origins of the Information Society. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 1986.

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trabalho é executado na sociedade atual. Com esse intuito, apresento, a seguir, uma

discussão de como está ocorrendo o processo de mudança no trabalho mediado pelas

tecnologias da informação no âmbito local.

3.4 UM PANORAMA SOBRE A INDÚSTRIA DE TI EM CURITIBA

No que toca aos estudos sobre o trabalho informacional no Brasil e no Paraná,

a pesquisa sociológica encontra-se em fase inicial e crescente. São recentes os

estudos sociológicos que começam a investigar as condições dos trabalhadores

imersos no novo paradigma informacional em nosso país.

De acordo com Bridi (2014), um significativo período de mudanças na indústria

brasileira de TI se deu a partir dos anos de 1990 com a reestruturação do setor

decorrente da liberalização de mercados por meio de políticas governamentais

neoliberais. Sem a proteção do mercado e, portanto, vulneráveis à concorrência

internacional, empresas que antes atuavam como produtoras passam à condição de

montadoras. Com isso, altera-se a demanda por capacitação técnica, resultando em

um cenário econômico em que a produção de softwares e processamento de dados

tornam-se mais viáveis que a produção de hardware e engenharia de manufatura, as

quais dependem, intrinsicamente, de investimentos em pesquisa e desenvolvimento

(P&D) (Tauile20, 2001, apud BRIDI, 2014).

Antes disso, Rodrigues (2012) traça o panorama do surgimento da indústria da

informática em Curitiba, salientando a importância de medidas governamentais que

tornaram a cidade o segundo polo de produção de softwares do país. Para tanto, a

autora contextualiza, inicialmente, a criação do PNI (Plano Nacional de Informática),

na década de 1970, fruto de uma partição conjunta do governo militar, do

funcionalismo técnico do governo e de profissionais universitários. O PNI foi

responsável por tornar o setor local detentor de mais de 50% do mercado nacional,

de uma grandeza estimada de U$ 2 bilhões, à época de 1985, e empregar mais de 30

mil trabalhadores (TAUILE, 2001, p. 218 apud RODRIGUES, 2012). Apesar do setor

não ter tido êxito em acompanhar as rápidas mudanças tecnológicas internacionais,

importando mais componentes do que exportando, mostrou-se capaz de projetar e

20 TAUILE, José Ricardo. Para (re)construir o Brasil contemporâneo: trabalho, tecnologia e acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

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adaptar computadores, mesmo que pelo processo de engenharia reversa

(RODRIGUES, 2012, p. 24).

Em 1973, mesma década da criação do PNI, criou-se em Curitiba a Cidade

Industrial de Curitiba (CIC), que veio a constituir um polo tecnológico nas décadas

seguintes por atrair empresas multinacionais cujos paradigmas tecnológicos se

baseavam nas tecnologias da microeletrônica e de informação. É no contexto da

produção flexível e da concessão de incentivos por parte do governo estadual que se

desenvolve a indústria da informática no Paraná (Idem, p. 26). A autora salienta, ainda,

que o surgimento do setor de informática no estado não foi por acaso, pois teve seu

desenvolvimento ligado às participações dos governos federal, estadual, e municipal,

bem como das universidades e de empresas particulares (Idem, p. 26).

Porém, com a Lei de Informática de 1991, fruto de novas políticas

governamentais, o setor, antes integrado e protegido pelo Estado, passa a perder

posições no mercado global, e com isso se dissolve entre produção de software e

hardware. A indústria de hardware, por sua vez, por necessitar de uma produção de

insumos não mais atendida pela produção local, se apequena diante do crescimento

do número de empresas de software, mais beneficiadas pela Lei de Informática e cujos

custos de instalação são menores (Idem, p. 25).

Para situar o desenvolvimento específico da indústria no Paraná a autora ainda

cita a criação da ASSESPRO-PR (Associação das Empresas Brasileiras de

Tecnologia da Informação), em 1982, e do CITS (Centro Internacional de Tecnologia

de Software), em 1992. Foi por meio da infraestrutura do CITS, explica a autora, que

Curitiba pode sediar o primeiro núcleo do SOFTEX (Sociedade Brasileira para a

Promoção e Exportação de Software), o que por fim, possibilitou a criação, em 1993,

do Parque de Software de Curitiba, situado na CIC, que tinha como objetivo oferecer

uma infraestrutura necessária para o surgimento e expansão das empresas do setor

(Idem, p. 27).

Ainda, em 2007, com o objetivo de ampliar o alcance das iniciativas antes

restritas à CIC, haja vista o crescimento do setor de TI e seu espalhamento geográfico

pela cidade, cria-se, por meio de lei municipal, o projeto do Tecnoparque,

abrangendo um conjunto de espaços urbanos caracterizados pela presença e interação de ativos tecnológicos, envolvendo o poder público, empresas privadas e instituições de ensino. O projeto abrange o Anel Logístico (onde estão localizadas a UFPR, PUC-PR, LACTEC e FIEP), o Anel CIC Norte (o

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Parque de Software), Setor Central Rebouças (UTFPR e Centro de Convenções) e o setor CIC Sul (Tecpar). (RODRIGUES, 2012, p. 27).

Rodrigues (2012), tendo feito este percurso, observa a importância da interação

entre os diferentes agentes para o desenvolvimento do setor de TI, salientando as

iniciativas governamentais sem as quais Curitiba não teria vindo a ser um destaque

no cenário econômico nacional. Segundo a autora, o contexto do desenvolvimento da

indústria de TI em Curitiba confirma a tese defendida por Castells, a qual atribui o

desenvolvimento das tecnologias de informação à atuação do Estado e participação

de diferentes agentes (Idem, p. 30).

É nesse contexto, portanto, que se inserem a XYZ, empresa que Dionísio

trabalha como pesquisador. Como se poderá apreender no próximo capítulo, essa

empresa tem como atividade principal a concepção e execução de projetos de

pesquisa e desenvolvimento (P&D), os quais, de acordo com o percurso histórico

acima apresentado, foram relegados a “um segundo plano” no contexto do setor de TI

no Brasil. Nesse sentido, a atuação de Dionísio com pesquisa de alta tecnologia em

muito difere, por se tratar de uma atividade “rara” no âmbito nacional, do trabalho mais

comum no setor de TI, que se intensificou em montagem de hardware e

desenvolvimento de softwares.

Bridi e Motim (2013), a partir de aproximações empíricas realizadas com o

objetivo de contextualizar a indústria da informática no Brasil e no estado do Paraná,

constatam que esta indústria se divide em dois segmentos: produção/montagem de

hardware e desenvolvimento de software, cada uma com suas especificidades e que

exigem trabalhadores com características distintas. A diferença mais marcante se dá

entre o montador de hardware, atividade que não requer mais do que o ensino médio

completo e treinamento in loco, e o livre desenvolvedor de software. Sobre o último,

as autoras constatam que o campo carece de pesquisas que respondam à questão

sobre se de fato essa atividade envolve liberdade, autonomia e criatividade, e de que

maneira isso se reflete nas formas de contratação e organização (BRIDI; MOTIM,

2013, pp. 110-111). As autoras sublinham que, na era informacional, segundo

Castells, “o conhecimento não é simplesmente uma ferramenta a ser aplicada, mas

um processo a ser desenvolvido” (CASTELLS, 2001 apud BRIDI; MOTIM, 2013, p.

108). Nesse sentido, as autoras questionam se nesse novo contexto de trabalho,

conforme supõe Castells, os trabalhadores passarão a ser menos passivos diante da

máquina, havendo mais integração e interação. Para Bridi e Motim (2013) isto é algo

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ainda a ser verificado, pois é preciso avaliar como se configura a relação homem-

máquina dentro da indústria da informática, que seria o núcleo dessas mudanças

anunciadas (Idem, Ibidem).

Bridi e Motim (2013) também dissertam acerca da complexidade no mundo do

trabalho e sobre como decorrem disso as antagônicas e diferentes interpretações

sobre o trabalho e os trabalhadores. As autoras questionam se realmente o trabalho

na chamada “sociedade pós-industrial” permite emancipação e a não fragmentação

do mesmo.

Mais ainda, afirmam que no setor de produção e desenvolvimento de software

e entre os trabalhadores, ainda que haja certa diferenciação nos modos de exercer

esse tipo de trabalho e vários meios de contratação e remuneração, o trabalhador em

seu ambiente de trabalho busca a maneira mais prática e eficiente e assim acaba por

inovar em seu processo de trabalho. As autoras ainda salientam que conforme idade,

experiência, qualificação e necessidade o trabalhador pode aceitar condições de

empregabilidade que fogem ao padrão de contratação de assalariado formal, podendo

trabalhar como Pessoa Jurídica, “CLT Flex”, trabalhos por projeto, em tempo parcial

e por prazo determinado (BRIDI; MOTIM, 2013, p. 114). A aceitação desses modos

de trabalho e formas de contrato de trabalho pode se dar por diferentes motivos:

“desde a aderência ao discurso do empreendedorismo ou o querer trabalhar ‘sem

patrão’ até outros problemas (...)” (Idem, Ibidem).

Braunert (2013) constata, a partir de pesquisa empírica realizada em

empresas de software de Curitiba, uma especificidade no trabalho do desenvolvedor

de softwares, “na maioria das vezes organizado também de uma forma peculiar, por

projetos” (BRAUNERT, 2013, p. 137). Em relação às características desses

trabalhadores, a autora resume bem: “são, em sua maioria, homens, jovens, com

curso superior, autodidatas, e atualizam-se constantemente para atender às

exigências de um mercado de trabalho dinâmico” (Idem, pp. 139-140). Nota-se

também a crescente flexibilidade nas formas contratuais, mas que não difere da lógica

observada nas relações entre capital e trabalho no geral (Idem, p. 141), sendo ainda

recorrente a presença de elementos tayloristas-fordistas nesta modalidade de

produção (Idem, Ibidem). O que se nota, ainda, é que os discursos que justificam as

atividades desses trabalhadores se moldam e se adaptam em relação às novas

formas de gestão da força de trabalho, e de uma indústria altamente heterogênea

(Idem, Ibidem).

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Bridi e Motim (2014) apontam para o fato de que a necessidade tanto de

conhecimento teórico como prático tende a atrair jovens iniciantes, sendo esta uma

das características do setor de informática cuja tendência é a da inserção de jovens

com idade entre 18 e 40 anos. Sendo assim, as autoras assinalam que tal aspecto

pode significar que o início da carreia no setor de TI ocorre a partir de um estágio ou

se dá na condição de empregado informal (BRIDI; MOTIM, 2014, p. 359).

As autoras ainda avaliam que as médias salariais nacionais do setor de TI

tendem a ser baixas ao serem comparadas com as promessas salariais propagadas

na mídia. A remuneração varia de acordo com a região, demanda, função, empresa,

competência e experiência do trabalhador, mas, sobretudo, a remuneração varia mais

de acordo com o tipo de empresa, função exercida e experiência do trabalhador do

que em função da atividade realizada (Idem, p. 365). As funções e atividades

exercidas pelos trabalhadores, conforme o estudo, têm fronteiras pouco delimitadas,

a maioria deles exerce mais de uma função (Idem, p.368).

Ainda de acordo com Bridi e Motim (2014), quanto às relações de trabalho, há

uma existência considerável de trabalhadores freelancers, autônomos e estagiários

que estão às bordas das empresas maiores. Citam o exemplo de uma empresa de

software localizada em Curitiba cujo núcleo necessita apenas de um pequeno grupo

de cerca de dez trabalhadores fixos altamente qualificados, que é expandido apenas

diante da demanda de novos projetos.

Segundo os depoimentos colhidos, alguns trabalhadores disseram valorizar a

flexibilidade e rotatividade no trabalho como meio de passar por novas experiências

profissionais de modo a atualizar e diversificar seus conhecimentos. Este seria um dos

fatores que explicaria a preferência por um trabalho flexível e instável, às vezes por

projetos, em detrimento de uma carreira mais estável em uma empresa com um

vínculo contratual indeterminado. Todavia, as autoras avaliaram que dentre os

trabalhadores mais velhos e em fase de constituir família as preocupações com uma

carreira mais estabilizada são maiores, de modo que estes chegaram a reconhecer

que a condição de assalariado oferece mais garantias (Idem, p. 372).

Outro aspecto a destacar levantado por Bridi e Motim (2014) é a questão da

criatividade no trabalho no setor de TI. O setor apresenta um conjunto de tarefas que

necessitam de criatividade, inventividade e conhecimento tecnológico avançado, ao

mesmo tempo em que apresenta uma gama de outros trabalhos que são monótonos

e repetitivos (Idem, p. 362-364). Entretanto as autoras avaliam que em certos casos a

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criatividade está limitada pelas ferramentas disponíveis (uma vez que o computador

tende a ser o objeto de trabalho) e, também, pela interferência do cliente no processo

de trabalho (Idem, p. 366). Salienta-se a presença da criatividade e da imaginação na

ciência, na técnica e na matemática, ressaltando que as habilidades comportamentais

exigidas, segundo os relatos dos entrevistados pelas pesquisadoras, são:

“concentração, lógica ou raciocínio lógico, análise e desenvolvimento com precisão e

eficácia, conhecimentos de hardware e de software, conhecimentos de sistemas

operacionais e linguagens de programação.” (Idem, p. 374). Ainda foram citadas

habilidades comportamentais como “facilidade no trato com o público, bom

relacionamento interpessoal, capacidade de aprender sozinho, de comunicar-se e ser

flexível” (Idem, Ibidem). Decorre de todos os aspectos levantados a conclusão de que:

Em meio às mudanças há permanências e adaptações de modelos produtivos em um quadro de um capitalismo que buscou se ancorar nas flexibilizações de diversas ordens, ou seja, nas relações salariais, de trabalho, de produção e, consequentemente, [buscar] também um trabalhador flexível. (BRIDI; MOTIM, p. 376).

Sendo assim, Bridi e Motim (2014) sugerem que na situação avaliada tem-se

um trabalho reconfigurado nos novos setores da economia e apontam para uma

crescente presença do trabalho em domicílio como uma modalidade central para as

pequenas, médias e grandes empresas de produção de software. Ainda foi notada a

tendência entre os trabalhadores de buscar por si mesmos, após adquirirem certa

experiência, algum meio de garantir segurança para planejar seu futuro e, desse

modo, buscarem contratos formais ou melhor remuneração (Idem, p. 377).

Bridi e Braunert (2015) salientam a utilização frequente de termos como

“gestão”, “solução” e “inovação” nos textos de apresentação das empresas. Tal uso

de termos aponta para o tipo de relação que essas empresas estabelecem tanto com

os clientes quanto com seus trabalhadores.

As autoras também identificaram, a partir de sua pesquisa, uma grande

variedade nas formas de contratação, entre elas: CLT, PJ e “CLT Flex”. A primeira

designa os trabalhadores contratados pelas normas da Consolidação das Leis do

Trabalho, a segunda refere-se àqueles que se constituem com Pessoa Jurídica

(empresa individual) e a terceira indica aqueles que, embora tenham contrato dentro

das leis trabalhistas, têm apenas parte da remuneração registrada na carteira de

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trabalho, sendo o restante do montante pago sem os devidos registros (BRIDI;

BRAUNERT, p. 5).

Portanto, consideram que o setor de produção de software caracteriza-se pela

utilização de diferentes formas de contratação, mas especialmente pela contratação

de PJ e “CLT Flex”. A fim de tentar compreender sociologicamente os motivos que

impulsionam as empresas a exercerem essas modalidades de contratação, as autoras

identificam três razões que podem explicar tal ocorrência:

i) o intuito de burlar a legislação trabalhista, para que as empresas, livres dos encargos sociais que incidem sobre a relação de trabalho, mantenham a competitividade no mercado globalizado; ii) a adequação dos contratos flexíveis de trabalho à forma como se organiza o processo produtivo de desenvolvimento de software, realizado por projetos; e iii) a adesão dos trabalhadores ao discurso das atuais formas de gestão, que tem em seu cerne noções como as de risco, individualismo e empregabilidade. (BRIDI; BRAUNERT, 2015, p. 8).

Para as autoras o tipo de contratação não modifica o tratamento que o

trabalhador recebe dentro da empresa, de forma que todos recebem tratamento

semelhante independentemente da modalidade de contratação. Sendo assim, Bridi e

Braunert (2015) puderam inferir que a contratação de trabalhadores por meios mais

flexíveis é um modo de afastar os encargos sociais trabalhistas, uma vez que o modelo

de contratação não implica em mudança nas condições e gestão do trabalho, que

continuam as mesmas. Afirmam ainda que esta variada gama de formas de

contratação relaciona-se, nesse tipo de indústria, à organização do processo produtivo

e à dinâmica que ele segue; os trabalhos são realizados sob encomenda, por etapas,

e por solicitação do cliente, havendo o fenômeno da “contratação por projeto” e,

dificilmente, após um projeto o trabalhador permanece vinculado à empresa pois elas

estariam (segundo os dados colhidos na pesquisa e apresentados pelas autoras)

focadas em resultados e não teriam interesse em esforçar-se por manter uma equipe

permanente. Esta estrutura fomenta a flexibilidade e a rotatividade da força de

trabalho (Idem, p. 9).

Bridi e Braunert (2015, p. 10) exemplificam que os trabalhadores parecem

reconhecer “a fluidez do mercado e a vulnerabilidade a que estão permanentemente

submetidos”. A partir das análises dos relatos dos trabalhadores, as autoras analisam

como a ideia de emprego estável tem ficado fora dos horizontes dos trabalhadores da

área de software, uma vez que eles demonstram estar cientes da condição fugaz de

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seu trabalho (Idem, p. 11). Mais ainda, as autoras atentam para o fato de que esses

trabalhadores têm absorvido o discurso das empresas e manifestam o pensamento

de que cada um é capaz de estabilizar-se por si sem depender das empresas, o que

corrobora para a crescente tendência na qual trabalhadores têm sido encorajados a

se perceberem como empreendedores (Idem, p. 12).

Por fim, concluem que “a lógica que comanda as relações de trabalho na

indústria de software nas empresas pesquisadas de Curitiba e Região, portanto, não

difere daquela que rege as relações entre capital e trabalho nos dias atuais para os

diversos setores da economia” (Idem, p. 13). Assim, os dados levantados pela

pesquisa problematizam a tese de que “essa forma de produção impulsionaria uma

emancipação política do ‘operário social’, possibilitada pela sua qualificação técnica,

levando ao fim da sociedade de classes e da exploração do trabalho pelo capital”

(Idem, Ibidem).

Bridi (2014) demonstra que há no setor uma prevalência das negociações não

formalizadas entre contratado e contratante, o que faz com que estas relações sejam

pautadas pela confiança. Analisa que os fatores seriam vistos como vantagem pelos

trabalhadores PJ seria “a flexibilidade de horário, trabalhar como se fosse um sócio,

não sofrer pressão de um celetista e a liberdade” (BRIDI, 2014, p. 294). Reitera, no

entanto, que a “pressão” a que se referem os trabalhadores está mais relacionada à

questão da subordinação, uma vez que continuam submetidos a uma série de

“pressões” diversas, como cumprir os prazos e adequar-se as exigências do cliente,

além da permanente atualização (Idem, ibidem).

Conclui, por fim, que o setor de tecnologia tem imbricado os velhos modelos

de produção com as novas formas de trabalho: a remuneração tende a seguir padrões

antigos enquanto que os regimes de contratação passam a ser mais fluidos. Desse

modo, constata que a formalidade e a informalidade se mesclam (Idem, p. 300). Sendo

assim, a autora aponta para a dificuldade de uma caracterização homogênea no setor

e das condições de trabalho, uma vez que este se apresenta complexo e repleto de

dualidades:

de um lado têm-se os trabalhadores de escolaridade mais baixo (nível médio) produzindo em moldes fordistas/tayloristas, ainda que nuançadas pela produção flexível e com ganhos modestos; de outro, têm-se trabalhadores com níveis de qualificação elevados, com visão global de seus processos de trabalho, vistos como criativos, proativos etc. (BRIDI, 2014, p. 301).

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A autora salienta que para captar as dualidades e nuances desse setor é

necessário um pensamento analítico que se volte tanto para o singular e para o novo

quanto para o que é repetitivo e “extensivo na economia capitalista” (Idem, Ibidem).

Assim, tendo feito essa síntese da bibliografia sociológica sobre o setor de TI

em Curitiba, foi possível identificar algumas das características do trabalho, das

relações de trabalho e das exigências de qualificação que circundam o objeto de

estudo desta monografia. Dionísio, engenheiro de computação e dançarino, figura

como um “protótipo” do trabalhador flexível altamente especializado. Cabe salientar

que a atividade de pesquisador de Dionísio, em uma empresa de alta tecnologia, que

tem como fim produzir inovações tecnológicas, situa-se no centro da estrutura

produtiva do setor de TI.

Mostro a seguir, a partir dos relatos de Dionísio, como as características do

trabalho flexível se configuram na sua especificidade.

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4 A HISTÓRIA DE VIDA DE UM ENGENHEIRO DANÇARINO

Richard Sennet, em A cultura do novo capitalismo (2012), afirma que apenas

um tipo de homem ou mulher ideal conseguiria prosperar em um contexto social

instável e fragmentado, e para tanto três desafios precisariam ser superados. O

primeiro deles, segundo Sennet, diz respeito ao gerenciamento do tempo, uma vez

que as instituições já não proporcionam um “contexto de longo prazo”, o indivíduo

precisa estar apto a improvisar, isso significa estar pronto para migrar de emprego,

tarefas e lugares em curto prazo. O segundo desafio refere-se ao talento, uma vez

que na nova economia muitas capacitações têm curto período de utilidade, o indivíduo

precisa estar sempre atualizado e ser capaz de renovar suas habilidades. Além do

fato de que o talento passa a ser uma questão cultural, de modo que a cultura moderna

passou a desvalorizar o ideal do artesanato, por exemplo, em favor de um conceito

de meritocracia que prefere as habilidades potenciais que as realizações passadas.

Sennet afirma, por fim, que disto decorre o terceiro desafio, que consiste na

capacidade de abrir mão e desapegar-se do passado. Frente à não garantia do

emprego, o indivíduo precisa estar disposto a abrir mão do que já vivenciou para estar

aberto às possibilidades (SENNET, 2012, pp. 13-14).

Dionísio21, fio condutor dessa discussão, como já destaquei anteriormente, é

dançarino profissional, professor de dança e engenheiro pesquisador em um instituto

de pesquisa e desenvolvimento de alta tecnologia cujo produto principal são soluções

e projetos inovadores para diferentes setores da indústria, incluindo TI, elétrica,

robótica e outros. Não seria um exagero afirmar que Dionísio em muito se aproxima

do trabalhador ideal descrito por Sennet. A partir das informações recolhidas nas

entrevistas realizadas com Dionísio, pude observar a recorrência de elementos em

sua narrativa que permitem tecer aproximações entre as duas atividades que Dionísio

exerce. De forma repetida pude notar que as atitudes que Dionísio desenvolveu

decorrente de sua prática com a dança o tornaram um profissional de TI mais

adaptado às novas configurações do trabalho, e à nova cultura do capitalismo, no

geral. Na sua narrativa se multiplicam os eventos em que teve que gerenciar o curto

tempo que lhe era disponível da melhor forma possível, improvisando e alternando

21 Nome fictício. Dionísio à época da entrevista tinha 27 anos. Residente na cidade de Curitiba, mora sozinho em um apartamento dos pais, na região central da cidade. Atua profissionalmente como engenheiro pesquisador júnior 2, na empresa XYZ, e como dançarino e professor de dança.

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atividades, ou tarefas dentro da empresa, de acordo com a situação. Também se nota

sua aptidão e abertura para a contínua prática de aprender e estudar, e devido a isso,

principalmente, galgou seu espaço tanto dentro do cenário local da dança, sendo

frequentemente procurado por novos alunos ou vencendo competições, como dentro

de sua empresa, tornando-se um trabalhador de que várias equipes e setores

dependem.

O homem ou mulher ideal para a nova economia aos quais Sennet (2012) se

refere, contudo, não surgem ao acaso. A história de vida de Dionísio mostra que houve

fatores determinantes para a sua formação. Fatores que, devo salientar, dificilmente

ocorreriam ou seriam facilitados em outras classes ou grupos sociais.

Ambos os pais de Dionísio são altamente escolarizados e profissionais de

destaque em suas respectivas áreas. A mãe, arquiteta e designer, aposentou-se como

professora universitária. O pai, engenheiro elétrico, é ainda professor universitário.

Além da atividade docente, ambos também executam atividades paralelas em suas

áreas. Dionísio descreve:

Meus pais sempre trabalharam bastante, não ficam parados em casa, não. Até hoje em dia se você chegar lá em casa eles vão estar trabalhando no computador. Isso que minha mãe se aposentou. Agora ela trabalha em projeto. […]. Ainda tem uns alunos que vem atrás, acho. Mas aí tem projeto, projeto de preservação de rios [e outros]. Meu pai, agora, passou... - ele ainda está dando aula - mas aí ele passou num projeto de utilizar, de utilizar..., é, tipo um museu, com vários tipos de iluminação, para crianças, aí ele passou nesse projeto, então também está trabalhando nesse projeto.22

Dionísio, desde sua infância, recorda-se de ver seu pais sempre trabalhando

em casa e no computador. Por isso, mesmo em uma época que computadores não

eram acessíveis à população no geral, o computador era disposto de maneira central

à rotina de trabalho de seus pais. No entanto, Dionísio raramente o utilizava:

Naquela época o único computar era o que a minha mãe tinha, né, que ela usava para trabalhar, depois, muito depois, acho meu pai pegou para ele também, e o que eu fazia era... na escola era só o computador do laboratório, e eu tinha mais contato com as coisas que eu gostava, que era judô, era música. Eu fazia aula de música, desenho, isso eu fiz sempre, mas contato com computador mesmo... eu tinha o videogame que usava dos meus primos, mas só. […] minha mãe tinha muito trabalho para corrigir, aluno para orientar, eu não lembro nem se na época ela chegava a fazer algum serviço de arquitetura. Eu lembro, por exemplo, que a nossa casa foi ela que desenhou, a casa que

22 Todas as citações sem referência que seguem neste capítulo são fragmentos transcritos dos relatos de Dionísio obtidos nas entrevistas.

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a gente morou depois. Mas eu mesmo sempre tive pouco tempo, contato, no máximo pega ali para joguinho, jogava cinco minutos aí... enquanto ela dava um intervalo, mas não era um negócio que eu ficava mexendo direto.

Um contexto, portanto, muito diferente do de hoje, no qual o uso de

computadores, smartphones, tablets, etc. perpassa todas as faixas etárias, servido,

muitas vezes, de brinquedos para crianças. Nos anos de 1990, o computador ainda

era um equipamento restrito ao ambiente de trabalho.

Dionísio, nos tempos de escola, sempre foi incentivado a participar de

atividades extracurriculares. Fez aulas de artes, de inglês, de judô e passou do piano

para a flauta transversal quando sua mãe trouxe uma após viagem realizada ao Japão.

Por isso, não seria um erro supor que sua aptidão para lidar com diferentes atividades

e administrar o tempo é um hábito construído ao longo dos anos. Nesse sentido, nota-

se a forma estruturante com a qual a família, centrada na atividade dos pais, orienta

as ações e a construção de hábitos de seus novos membros. Isso se deve, num

primeiro momento, à escassez de tempo que os pais possuíam decorrente de suas

atividades profissionais, mas também à própria natureza de seus ofícios, que tinham

sua sustentação no contínuo hábito de aprender e estudar.

Observei que no caso de Dionísio, sua família desempenhou papel fundamental

em sua escolha pelo curso universitário. Em um primeiro momento, a intenção do

futuro engenheiro era de se tornar um desenhista, e por isso, ao cursar o terceiro ano

do ensino médio, iniciou aulas de desenho técnico para melhor se preparar para as

provas específicas do vestibular. Contudo, suas expectativas iniciais foram frustradas

ao perceber que o trabalho do designer envolvia práticas e exercícios maçantes e

repetitivos, não diretamente ligados às ilustrações japonesas que lhe inspiravam:

Eu lembro que entrei no terceiro ano querendo fazer design, porque eu queria desenhar, e daí eu lembro que comecei a fazer aquelas aulas técnicas com foco específico, umas aulas de desenho, só que eram aulas de desenho... muito chatas, desenho técnico, tipo desenhar caixa, caixa de tênis... e acho que achei isso muito chato na época... gostava de mangá, essas coisas.

Diante disso, sua alternativa imediata foi voltar-se à área em que seu pai se

tornara um especialista, contudo lembra que não foi uma decisão muito racional.

Levou em consideração o prestígio de ser um curso novo e com uma das maiores

concorrências de entrada, por isso optou pelo curso de engenharia de computação,

recém-criado na UTFPR (antigo CEFET-PR):

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Daí meu pai é engenheiro elétrico, acho que deve até ter me influenciado também nessa parte quando eu estava desanimado do design e tal. E tinha acabado de abrir um curso no CEFET, de engenharia de computação, eu achei legal né, curso novo e tal, engenharia de computação! Achei que iria fazer mouse... placa de vídeo... aí eu entrei, e na época era um dos cursos mais concorridos, é o curso mais concorrido do CEFET, e daí você fica lá, né, “porra”, fica se achando... mas foi meio “na louca” assim acho, naquela época você não sabe o que vai fazer.

Mesmo tendo considerado o fator social de seu curso ser um dos mais

almejados pelos estudantes de sua época, não o optou, de início, por uma questão

profissional, pois confessa que não havia pesquisado a fundo sobre as condições de

emprego e mercado de trabalho para os profissionais formados no respectivo curso.

Perguntado sobre qual era sua percepção sobre o mercado de trabalho, responde:

Olha, como eu estava numa área tecnológica, eu lembro que os professores falavam muito que teria emprego garantido... e tudo mais, mas eu mesmo não tinha pesquisado muito a fundo na área. Felizmente, assim, no caso, não precisei trabalhar cedo, e acho que isso também me ajudou com certeza a conseguir estudar. Mas na época, não, eu não tinha essa percepção, de realmente... uma noção exata de como era o mercado, isso foi mais depois que o pessoal começou a trabalhar, a procurar emprego.

Nota-se novamente que as condições de sua família possibilitaram a Dionísio

um espaço para mudanças em sua trajetória, por isso Dionísio não se prendeu, a

princípio, ao provável destino que o curso lhe ofereceria quando formado. Apesar de

ter realizado uma iniciação científica logo nos primeiros semestres do curso, na área

de redes sociais, que lhe fez ver que suas possibilidades eram mais amplas do que

havia previsto, passou por um forte período de incertezas que o levaram a trancar o

curso. Esse momento é crucial para o futuro de sua narrativa, pois terá sido aí que

Dionísio começou a frequentar aulas de dança de salão a convite de uma de suas

primas. Até então Dionísio nunca havia feito aulas de dança, tão pouco demonstrava

alguma habilidade para tal. Também, usou esse período em que trancou o curso para

se envolver com maior intensidade com a música e artes no geral:

Aí tranquei um semestre. Aí nesse semestre, cara... foi música na verdade, só fiz música nesse semestre, participei de um musical, toquei num musical com o pessoal de teatro, ensaiava flauta... eu não lembro se foi aí que eu comecei a fazer, não lembro muito bem quando, o momento exato que comecei a dançar, a fazer essas aulas experimentais, não sei se foi aí ou foi um pouquinho depois, mas foi tudo meio junto esse período, esse período em que eu não sabia se ia trocar de curso, se estava gostando... foi um semestre que eu até cheguei a fazer cursinho, passei na primeira fase do vestibular...

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mais aí me informaram de uma lei que não podia fazer duas públicas, e como eu já tinha feito metade do curso, dois anos, aí: “puts... cancelar o curso...” aí meu pai falou: “pô, falta metade só”. Terminar eu termino.

Com o incentivo dos pais, Dionísio retoma o curso de engenharia de

computação, juntamente com sua nova atividade: a dança de salão, inicialmente como

aluno de muito afinco e que participava de todas as aulas que a escola lhe oferecesse.

4.1 PARA ALÉM DOS PASSOS BÁSICOS: SOBRE APRENDER O NOVO

Ao iniciar as aulas de dança de salão em uma conhecida escola da cidade,

não demorou muito para que Dionísio começasse a questionar os métodos

pedagógicos empregados nas aulas. Antes disso, foi convidado a participar como

“bolsista” dessa escola, o que lhe possibilitava participar de todas as aulas que

quisesse em troca de se voluntariar em aulas nas quais faltassem pessoas para formar

“par”.

E comecei fazendo uma aula no sábado, uma hora e meia, depois gostei, acho que aí aumentei e comecei a fazer duas aulas... no mesmo dia, depois pegava a tarde inteira e dançava. Daí nas escolas de salão tem um negócio que se chama de bolsista, que... para fechar par, às vezes falta par, né, então tem que ter pessoas voluntárias, que ou não pagam nada para fazer as aulas ou pagam um valor simbólico, que em troca de poder fazer várias aulas liberadas eles ajudam também fechando par: se precisa de um voluntário eles vão lá naquela turma básica, não necessariamente aquela aula que você precisava fazer. E, só que... nossa... para quem está começando a dançar é muito bom, porque aula de dança de salão não sai muito barato fazer várias, tem uns pacotes de aula liberada... mas não é sempre que tem. Então eu fazia duas turmas lá, e passei a fazer todas. E lembro que em pouco tempo entrei como bolsista, acho que foi até convite de uma professora, que fiz um teste e virei bolsista, comecei a ir todo dia quase, e sexta-feira tinha uma aula para bolsistas, e nisso fiquei dois meses como bolsista. Eu brinco que fui um dos bolsistas com vida mais curta de bolsista (risos), do pessoal de dança em geral, tinha acabado de começar a dançar e virar bolsista, só que chegou uma época que comecei a ficar com raiva assim... chegou uma hora que eu achava que todas as turmas já não estavam mais me acrescentando muito, e a turma de sexta que era para ser para bolsista mesmo não estava sendo muito boa.

Seu comprometimento em aprender tudo que fosse possível logo entregou

em choque com a maneira como os professores desta primeira escola lhe transmitiam

o conhecimento.

E eu comecei a notar que os professores que eu tinha não eram tão bons, quando você entra na dança você não tem muito parâmetro, você não sabe

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quem é bom ou ruim, tem uma certa noção, mas não sabe, não conhece aquilo, e conforme você vai estudando você começa a ter uma certa noção. Eu lembro que comecei a me sentir enganado...

Dionísio não se contentou em executar apenas um passo por aula, acreditava

estar sendo enganado e limitado. Sem se sentir preso a esta escola que havia lhe

oferecido a condição de bolsista, após quatro meses mantém apenas aulas com uma

professora e passa a fazer aulas em uma segunda escola, desta vez seguindo um

professor que possuía uma concepção pedagógica menos rígida e mais flexível.

Na escola tinha um professor que eu gostava, e minha prima também, e ele saiu dessa escola, e eu fui com ele na escola nova dele lá, fui acompanhá-lo, aí já sai como bolsista. Aí nessa escola antiga que eu estava eu só continuei com uma turma, que era no sábado com uma professora de fora. Foi bem curta a minha vida de bolsista, dois meses. Eu lembro que sai com um pouco de mágoa dessa escola, nesse negócio de: “há estão me enganando”, me senti enganado, queria estar aprendendo um monte e depois percebi que tinham professores ruins lá...

Esse professor, que à época fazia curso de formação para professores,

oferecia “aulas de laboratório” nas quais testava em seus alunos conceitos novos que

aprendia, incluindo aulas de improvisação e “de contato”. Os ânimos de Dionísio se

renovaram à medida que passou a ver nas aulas de dança uma possibilidade mais

livre para aprender e estar em contato com outras pessoas. Após um ano

frequentando aulas, foi convidado a participar de um congresso em Belo Horizonte,

oferecido por uma conhecida companhia de dança. Essa companhia de dança,

descreve Dionísio, era conhecida por levar ao palco apresentações de dança de salão

“descontruídas”, nas quais adaptavam a dança de salão de maneira a “preencher” o

palco de uma forma mais artística, ao contrário das aulas rotineiras:

(...) na dança de salão assim geralmente a turma regular é um passinho, passam por blocos, né... vão pegar um ritmo, por exemplo, pega o bolero, vão te ensinar o passo básico, vão te ensinar uma saída, vão te ensinar uma virada. São bloquinhos, né. Você vai juntando os bloquinhos, então você vai dançar e você vai juntando os bloquinhos na música. Seria uma fase mais avançada você começar a fazer mais misturas dos blocos, há uma dinâmica, uma velocidade para você estar executando aquele bloco. E há outra... uma etapa mais avançada seria você começar a descontruir, você mudar a forma com que você está fazendo aquele bloco, não fazer mais daquele jeito aquele passo.

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Contudo, antes de ir para o congresso, Dionísio começou a fazer aulas

particulares com uma professora, a fim de se aperfeiçoar no Zouk, estilo de dança

derivado da lambada:

(...) na dança de salão em geral, os mais comuns que você aprende no começo são Bolero, Forró, um pouquinho de Samba de Gafieira, Soltinho, que é uma manifestação do rock, abrasileirado, e.... deixa eu ver: Bolero, Forró, Samba e Soltinho, é.... geralmente esses quatro. Tem Salsa, essas coisas, mas é externo, aula a parte. Mas se você fala em dança de salão geralmente são esses quatro... E daí eu ia muito em bailes, eu era viciado, nossa! Eu ia todo final de semana, além de todas as aulas, no final de semana sempre tem baile, ia no Forró, no Trevo, todo domingo. Porque o Forró você aprende mais rápido, você já consegue sair dançando, isso é legal. E as vezes tinha baile que tinham ritmos que eu não sabia, como por exemplo o Zouk. Que nunca foi forte em Curitiba esse ritmo, né, apesar de ser uma dança brasileira, em Curitiba nunca pegou tanto, mas no baile sempre tocou, e as meninas me tiravam para dançar e eu não sabia dançar Zouk direito, fazia uma horinha no sábado só. Então [pensei:] “para Minas vou ter que aprender esse negócio direito”, né. Então peguei umas aulas particulares com essa professora, que ela... é muito boa por sinal. E peguei umas dez aulas assim, pegava por pacote por ser mais barato assim. E daí aula particular é só você e o professor, então é bem mais especifico para o seu corpo, não é uma aula generalizada, então, por exemplo, se eu achava a aula regular lenta, o ritmo que eu pegava as coisas, na aula particular eu pegava no meu ritmo.

Dionísio em nenhum momento de sua narrativa demonstra ter adotado uma

postura passiva em relação à aprendizagem, seja na dança, ou na engenharia. Sua

motivação em aprender cada vez mais e de não se intimidar com o desconhecido o

levaram a interagir com as outras pessoas com uma postura aberta, o que lhe

possibilitou absorver conhecimentos de uma forma dinâmica e ativa.

E daí eu fui para Minas, com quase um ano de dança, devia ter nove meses de dança, e lá era um curso de uma semana, e tive contato com músicos... pessoas de psicologia que trabalhavam contato... aulas de dança de salão, e tive contato com outros ritmos, com o pessoal da própria companhia, os bailes de lá....

Durante esse congresso, e muitos outros em que viria a participar, Dionísio

teve contato com diferentes subjetividades e maneiras de se dançar. Em Minas, em

particular, chamou-lhe a atenção a maneira como os mineiros dançavam e recebiam

elogios das parceiras. Não intimidado, mas com postura aberta a aprender, não

hesitava em lhes perguntar:

Eu lembro que na época as meninas falavam: “nossa, o pessoal de Minas dança... com eles parece que você está nas nuvens, que você está

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flutuando”. Eu lembro que eu chegava lá e pedia para os caras fazer comigo, para eu tentar descobrir o que que era. Mas essas técnicas, assim, só descobri muito depois o que era. Depois você descobre que é técnica, né. Olha, na primeira escola os caras não sabiam, era coisa totalmente braçal, você vai fazer um passo e taca o braço na menina para forçar uma movimentação, né. Depois você vê que não precisa disso, de toda essa força, às vezes é o seu tronco, você vira o tronco e a menina acompanha teu tronco, você está com seu braço firme, você vira seu tronco e o braço vem junto... né! Se eu vou com meu tronco e deixo meu braço, depois vou ter que trazer a menina com o que? Com o braço...né. Então são técnicas que... como podia falar... o mais leigo não tem tanto essa técnica apurada, não sabe, muito menos passar isso.

Muito da sensibilidade que Dionísio veio a desenvolver com a dança se deve

ao contato e trocas que teve com outros dançarinos e dançarinas. Mas isso não era

tudo, ainda. Uma prática comum à dança de salão são as apresentações em palco,

seja por motivos artísticos, seja por interesses em divulgar comercialmente uma

determinada escola ou professores de dança. Com a introdução da dança de salão

em palco, Dionísio salienta que as suas percepções espaciais e sua dança, no geral,

tiveram que ser adaptadas. Acrescenta-se a essa prática a noção de se estar sendo

observado, e, quando em uma competição, avaliado. Mesmo assim, os dançarinos

devem transmitir aos espectadores um efeito de “autenticidade” que prenda suas

atenções, e é devido a isso que Dionísio justifica as intermináveis e incontáveis seções

de ensaios coreográficos.

Para aperfeiçoar suas apresentações, Dionísio novamente procurou por

novas atividades que contribuíssem para sua desenvoltura e preparo físico em palco.

(...) eu fiz aula de jazz, fiz teatro, por fora também fiz circo, fiz ginástica olímpica, fiz um monte de atividades... muito pra frente eu comecei hip hop... eu lembro que fiz bastante jazz e teatro, o teatro foi muito bom... acho que uma das coisas das artes que mais me causou impacto, na gente que vem da engenharia que não está acostumado... na dança de salão, uma, que você já aprende a ter contato, a encostar, a ter contato com outras pessoas.

Enquanto isso, Dionísio não deixou de cursar as disciplinas obrigatórias do

curso de engenharia de computação. Nesse aspecto, durante sua graduação, fez

apenas as disciplinas da grade semestral e à medida que lhe sobrava tempo. Conta

ainda que pegou algumas “DPs” (reprovações) mas que no geral conseguia se

organizar e mesclar os horários da universidade com as atividades da dança. Devido

a isso, demorou sete anos para se formar, mas seu lema sempre foi: “não tem pressa”.

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Após dois anos de dança, Dionísio foi convidado a lecionar, para tanto,

primeiro teve que frequentar aulas específicas e trabalhar como estagiário em uma

escola, auxiliando as aulas de sua professora.

Dava aula de segunda à quinta, e sábado. Então acho que por isso que enchia meu horário, não ia ter como trabalhar com outra coisa, né? Porque eu tinha as aulas da faculdade, que eu fazia pingado, mas fazia, eu tinha... todas as noites eu dava aula de dança de salão, e sábado e nos horários livres, nas janelas da faculdade, ou depois das aulas regulares, eu ensaiava. Sexta-feira, o dia que eu não dava aula, eu ensaiava.

Durante a graduação, o que mais lhe interessou foram as disciplinas de “Oficina

de Integração”, pois nelas o futuro engenheiro podia “pôr a mão na massa”. De acordo

com o projeto político pedagógico23 do curso de Engenharia de Computação, da

UTFPR, as disciplinas de “Oficina de Integração” têm como objetivo possibilitar aos

alunos uma formação geral e multidisciplinar, nas quais por meio de oficinas e projetos

integradores os alunos são incentivados pelos professores a pesquisar e a

desenvolver projetos de software ou hardware que envolvam os conteúdos comuns

da grade curricular. Na primeira das três disciplinas distribuídas ao longo do curso,

Dionísio e seus colegas de equipe optaram por desenvolver um software que auxiliaria

alunos de uma escola com a aprendizagem de determinados conteúdos, contudo,

devido à burocracia envolvida ao se trabalhar com uma escola e alunos, acabaram

por fazer apenas um protótipo. Já nas disciplinas seguintes, Dionísio voltou-se a área

da robótica, o que viria a contribuir para seu projeto desenvolvido durante o trabalho

de conclusão de curso (TCC). É interessante notar como Dionísio integrou seu

conhecimento, não só apenas aquele que adquiriu nas aulas da faculdade, mas

também o conhecimento inscrito em seu corpo devido à prática de dança. Para seu

TCC, portanto, propôs-se a criar, incialmente, um braço mecânico tele operado

remotamente. Havia a possibilidade de trabalhar em equipe, porém Dionísio lamenta

que seus colegas de curso estavam mais interessados apenas com o

desenvolvimento de softwares.

23 FONSECA, K. V. O.; DELGADO, M. R. B. S.; MACHADO NETO, V. “Projeto político pedagógico do curso de engenharia de computação: um desafio para a nova universidade tecnológica”. In: Congresso Brasileiro de Educação em Engenharia, 2007, Curitiba. Anais do XXXV Cobenge. Curitiba: Unicemp, 2007. v. 1. p. 1-13. Disponível em: http://www.abenge.org.br/CobengeAnteriores/2007/artigos/266-Keiko%20Fonseca.pdf. Acessado em: 08/05/2016.

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No meu TCC eu queria ir para área de braços, membros artificiais, na área da robótica, e eu queria mexer nessa parte. E o que eu queria: eu queria fazer uma luva que captasse os movimentos da mão e que isso fosse reproduzido remotamente numa outra mão robótica. Chamam de tele operação, né. Eu queria que o que a outra mão pegasse eu sentisse nessa mão [robótica], então o que eu precisava: eu precisava captar meus movimentos, reproduzir, e ainda dar um feedback de força, para sentir o que a mão pegasse. E eu tinha que pensar como eu ia desenvolver isso, como desenvolver esse mecanismo, o que eu iria usar... um exoesqueleto? Foram surgindo muitas ideias, e o que me ajudou foi uma ideia que eu tive que veio da dança, foi do contato que no Tango a gente tem, um contato de evasão e ausência...

Inspirado pelos movimentos do Tango, Dionísio aplicou o conceito de evasão

e ausência, pelo qual o casal de dançarinos percebe um ao outro e orienta seus

passos seguintes:

Então eu usei no meu TCC o conceito de evasão e ausência, que tem que ter essa pressão mínima, tanto de um braço quanto do outro, cada um vai ter um contato, uma pressão mínima... e essa pressão mínima, o que acontece: me permite perceber quando alguém está cedendo espaço, porque aí tem uma pressão mínima, que vai diminuir, então se o corpo vai sair, a pressão vai diminuir, o outro percebe que ele está saindo... então por exemplo: no Tango quando você percebe que ele está saindo e ai você vai e acompanha, se eu for o Cavalheiro: com pressa mínima eu vou pra trás, estou cedendo pressão, minha dama vai perceber que estou perdendo pressão e aí ela vai avançar, para acompanhar o movimento. E a evasão, seria eu invadir o espaço da dama, e aí ela vai perceber uma força contra ela, e aí ela vai ceder e vai caminhar para trás.

Devido à complexidade de se criar uma mão robótica por completo, o que

requereria de Dionísio conhecimentos de outras áreas, como por exemplo a mecânica,

procedeu à maneira científica de um engenheiro: reduziu o braço a uma pinça.

Então eu pensei nisso aí no meu TCC... claro, tive que simplificar para o TCC, não ia conseguir fazer uma mão inteira, então eu tinha simplificado para ser uma garra, uma pinça... que é uma das funções principais do ser humano, que o diferencia do macaco, que não consegue pegar um lápis, então a nossa pinça foi muito importante para o desenvolvimento do humano, né. E, então, eu simplifiquei todo o meu braço robótico para isso.

Para servir ao propósito inicial de se tele operar esta pinça remotamente,

Dionísio criou uma segunda pinça, que serviria como um controle remoto e

reproduziria os movimentos de sua própria mão:

Então o que eu fiz: fiz duas pinças dotadas... operadas por motores, então essas pinças que tinham na minha mão tinham um motorzinho e sensores de força que eu coloquei na ponta, então elas percebiam a pressão que elas estavam exercendo sob os meus dedos, então quando eu fazia força para fechar minha mão, ela cedia, igual no Tango... o controle da pinça cedia, e ele sempre dava uma força para manter uma pressão mínima nesses

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sensores, e quando eu abria minha mão, a força diminuía e a pinça acompanhava.

Dionísio, contudo, confessa não ter contado aos professores sobre essa influência da dança.

Como se fosse no Tango, a menina te acompanhando. Foi isso que usei, e daí isso reproduzindo na outra [pinça, remotamente] (...). É como por exemplo: vou dançar com uma menina, se ela está com uma resistência baixa, vou dar um pouquinho de força e ela já vai sair, se ela está querendo ficar ali, ela vai fazer força e eu vou ter que aplicar mais força para ela sair, entendeu? Então foi isso que fiz, fiz totalmente essa parte da mão baseada nessa teoria do contato, só que no meu TCC eu não expliquei isso, né... expliquei só dessas coisas da força...

Concomitante ao término de seu TCC, restava ainda a Dionísio cumprir a

carga horária do estágio obrigatório. Indicado por um amigo, conseguiu uma posição

como estagiário na empresa XYZ. Apesar de Dionísio precisar apenas de um

montante de horas que somaria não mais que três meses, a empresa só ofereceria o

estágio por seis meses a um ano. Com a intenção de aprender, Dionísio decidiu

aceitar a posição por um ano, o que viria atrasar mais ainda sua formatura.

eu gostei da indicação porque a XYZ era famosa por você não ganhar tão bem, mas por aprender bastante, e eu: “pô, eu quero aprender”... meu objetivo sempre foi esse. (...) Então eu já tinha terminado todas as matérias quando fiz o estágio na XYZ, deixei para fazer o estágio obrigatório só para o final, para daí fechar o curso e me formar, e apresentei o TCC durante o estágio, então já tinha feito todas as matérias, e só faltava isso aí, o estágio obrigatório... até tomei um susto, né, depois que entreguei o TCC, eu já não tinha mais nenhuma pendência de matéria, e eu não fiz matricula, e me deu como aluno desistente, e para fazer esse estágio obrigatório eu precisava ter o atestado... o comprovante de matricula... aí foi uma confusão, tive que ir atrás de coordenação do curso, para conseguir fazer o estágio obrigatório... “pô!” Imagina perder anos de curso, o TCC... (risos).

A empresa XYZ, é uma empresa privada, sem fins lucrativos, que a partir do

ano de 2000 passa a ser certificada pelo Ministério da Justiça, por meio da Lei 9.780,

como uma como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Vale

citar a apresentação disponível em seu respectivo website, pois aí estão contidos

elementos importantes de seu discurso empresarial:

Aqui, a inovação está presente em cada projeto, em cada serviço que prestamos. Isso é ser inovador. [A empresa XYZ] são um dos maiores centros de ciência e tecnologia do país, sendo referência em soluções inovadoras para o segundo setor – como empresas, indústrias e concessionárias de energia. Possui cinco unidades na cidade de Curitiba (PR) nas quais abriga

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seu corpo técnico qualificado e multidisciplinar e sua rede de laboratórios próprios. São pesquisadores, técnicos, engenheiros, professores, consultores e funcionários administrativos preparados para buscar resultados de excelência para os mais diversos segmentos. [Empresa XYZ]: inovadores por natureza.24

Dionísio não estava ciente, à época, que as disciplinas da graduação com

ênfase em projetos estariam lhe preparando para um contexto econômico e social

fortemente marcado pela organização por projetos e que necessitam de inovação

tecnológica contínua. Durante sua formação, o então recém-criado curso de

engenharia de computação da UTFPR criou o espaço necessário para que Dionísio

praticasse a concepção, o planejamento e a execução de projetos. Após o término do

estágio e de sua formatura, Dionísio foi efetivado na empresa XYZ como pesquisador

júnior, contratado pelo regime CLT.

4.2 A ORGANIZAÇÂO DO TRABALHO POR PROJETOS

Boltanski e Chiapello (2009), em uma revisão e análise sociológica de

manuais de empreendedorismo das décadas de 60 e 90, constatam o surgimento de

um “novo espírito do capitalismo”. Concomitante a esse “novo espírito do capitalismo”

surgem também novas configurações ideológicas e organizacionais. Segundo os

autores, os atores sociais imersos em um dado tipo de organização social se valem

de um quadro de legitimidade que orientam suas ações: “O conceito de cidade é

orientado pela questão da justiça. Visa modelizar os tipos de operações a que os

atores se dedicam, durante as polêmicas que os opõe, quando confrontados ao

imperativo de justificação.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, pp. 55-56).

Posto de outro modo, o conceito de cidade engloba as justificativas utilizadas

pelos atores sociais quando confrontados com alguma possibilidade de crítica. Mas

esse conceito de cidade, ou quadro de justificações, se altera na mesma medida em

que o espírito do capitalismo se transforma. Boltanski e Chiapello (2009) encontram

seis cidades na história da sociedade contemporânea: “cidade inspirada”, “cidade

doméstica”, “cidade da fama”, “cidade mercantil”, “cidade industrial”, e, por último e

mais recente, “cidade por projetos”. Esta, em específico, vai de encontro e fornece

elementos para a compreensão das atividades ligadas às tecnologias da informação,

24 Adaptado do website da empresa. Acessado em: 08/05/2016.

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as quais têm sua gênese na esteira dessa nova cidade. Mais especificamente, no que

se refere à natureza do trabalho na cidade por projetos, tem-se:

o equivalente geral, aquilo pelo que se mede a grandeza das pessoas e das coisas, é a atividade. Mas, ao contrário do que se verifica na cidade industrial, em que atividade se confunde com trabalho, e ativos são, por excelência, aqueles que dispõem de trabalho assalariado, estável e produtivo, na cidade por projetos a atividade supera as oposições entre trabalho e não trabalho, estável e instável, trabalho assalariado e não assalariado, ações motivadas por interesse e filantropia, entre aquilo que é avaliável em termos de produtividade e aquilo que, não sendo mensurável, escapa a toda e qualquer avaliação contábil. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 141).

Soma-se que a “cidade por projetos” é concebida em uma sociedade em rede.

Assim, um projeto se define como “oportunidade e o pretexto para a conexão”

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 135). Mas ainda, o projeto se apresenta “como

um segmento de rede fortemente ativado durante um período relativamente curto, mas

que permite criar laços mais duradouros, que permanecerão adormecidos, mas

sempre disponíveis” (Idem, p. 135). A organização por projetos permite que conexões

sejam feitas e desfeitas com maior rapidez e facilidade, respondendo diretamente às

demandas do planejamento administrativo. Imerso nesse mundo de conexões

voláteis, diluídas, encontra-se um trabalhador que precisou readaptar seu modo de

vida:

Ao invés de ficar ligado a um ofício ou preso a uma qualificação, o grande [trabalhador com maior valor de grandeza neste tipo de cidade] se revela adaptável, flexível, capaz de oscilar de uma situação para outra muito diferentemente e ajustar-se a ela; mostra-se polivalente, capaz de mudar de atividade ou de instrumentos, segundo a natureza da relação na qual entra, com os outros ou com os objetos. Exatamente essa adaptabilidade e essa polivalência o tornam empregável, ou seja, no universo da empresa, em condições de inserir-se num novo projeto. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 140).

Exige-se desse trabalhador, portanto, autonomia e flexibilidade. Agora, na

cidade por projetos, o trabalhador é ainda dependente daqueles que de fato controlam

a produção, ou na terminologia da rede, que ligam e religam as pontas de uma

conexão, porém, soma-se ainda a responsabilidade sempre presente e frequente que

recai no trabalhador em produzir suas relações e estar disponível para uma nova

conexão na rede. É desta forma, portanto, que o trabalho passa a ser entendido como

atividade, salientando-se a observação de que, na cidade por projetos, “a atividade

supera as oposições entre trabalho e não trabalho” (Idem, p. 141).

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Tal forma de organização do trabalho não se restringe apenas ao setor da

tecnologia. A “cidade por projetos” também é vivida por Dionísio no âmbito de sua

atividade com a dança. Recentemente, Dionísio passou a integrar um grupo de dança

que escreve projetos artísticos para concorrer a editais por meio de leis de incentivo

à cultura e com isso captar recursos para bancar ensaios e apresentações. Sobre

isso, afirma:25

estou dançando num grupo agora que está com espetáculo pronto, e também está escrevendo um projeto para tentar aprovar, e que daí te pagariam para você ensaiar, muitas vezes você está dançando e está ensaiando, e só está ganhando com a aula de dança que você está dando, e o ensaio na companhia dificilmente é pago. Às vezes mesmo em companhias profissionais... tenho amigos que vivem de projetos, amigos de Joinville e Belo Horizonte, estão sempre escrevendo projetos...

Já no âmbito da tecnologia, a empresa XYZ, em que Dionísio trabalha como

pesquisador, também se insere na “cidade por projetos”, uma vez que entre os dois

ramos de atividades que desempenha, o desenvolvimento de projetos se faz central:

Eles são um instituto de pesquisa, então eles desenvolvem projetos de P&D. Tipo a Copel, essas empresas, elas têm um dinheiro que elas têm que investir em pesquisa, então eles vão lá e eles sabem que na empresa XYZ eles sabem fazer, porque se você faz um projeto mal feito, que não é inovador, depois eles não conseguem aprovar o projeto, daí aquele dinheiro que você investiu não é aceito, né. E, também eles oferecem serviços, tipo testar um transformador... testar uma lâmpada. Então tem a parte da pesquisa e a parte de serviço.

Devido à natureza da “mercadoria-projeto”, a empresa necessita que os

trabalhadores possam conceber e contribuir na elaboração de novos projetos. Para

tanto, requer-se atualização contínua, condição que só pode ser obtida por meio de

muito estudo. Pelo fato da XYZ ser uma empresa especializada em vender projetos

inovadores à outras empresas, Dionísio enfatiza: “Tem que ser inovador, tem que

provar que o negócio é inovador, e por isso tem que estar sempre pesquisando e

estudando também, né. Para mexer em soluções diferentes... “P&D”...”.

O carro chefe da empresa XYZ são os projetos de Pesquisa e

Desenvolvimento (P&D) inscritos em leis ou programas que incentivam ou obrigam

empresas a investirem em projetos inovadores.

25Ver: http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/leideincentivo/o-que-e/. Acessado em: 10/05/2016.

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No que toca ao seu trabalho como pesquisador, à medida em que Dionísio

ascende aos cargos centrais da empresa, passa a ter mais contato com a gestão de

projetos, mesmo ainda desempenhado as atividades que iniciou quando era

estagiário, mas que agora procura passar aos novatos:

Então na XYZ eu trabalho muito com projeto, então além desses... eu faço muito... programação, automação, mas passo isso para estagiário. Agora estou como pesquisador júnior 2, então trabalho mais com projeto, com gestão de projeto. (...) e são muitos tipos de projetos diferentes, agora estou conseguindo pegar projeto na área de robótica, que eu gosto, (...) que também envolve várias áreas diferentes e não só as minhas áreas de conforto, né. Eu tenho muita facilidade com programação e eletrônica. Então na robótica você tem que ter contato com mecânica, parte hidráulica às vezes, são outros setores do conhecimento (...).

Dionísio destaca que em sua empresa é preciso ter auto inciativa, e procurar

por si próprio as atividades a serem realizadas, o que julga ser um fator positivo e que

o possibilita desenvolver suas aptidões e interesses, mesmo recebendo uma

remuneração à baixo da média do mercado. Contudo, mais uma vez, Dionísio utiliza

como parâmetro o mercado de aulas de dança, o qual paga muito menos pela hora-

aula, sem contar a incerteza decorrente da sazonalidade das aulas:

(...) a XYZ é um lugar que só fica parado quem quer, né. Só que reclamam que não pagam tão bem e tal... mas [não] para mim que vim da dança, né. Por exemplo: eu estava vivendo de dança, por muito tempo fiquei vivendo só de dança, como trabalho, e o que eu ganhava dando aula de dança todos os dias e no sábado, não era mais do que eu ganhava como estagiário. Isso que a empresa XYZ não era muito boa pagadora... é que na dança é muito instável, né, uma área de artes... Como, eu lembro, “o pessoal na crise a primeira coisa que cortam é a academia”, não falam isso? A dança é a mesma coisa, primeira coisa que cortam é a dança. Ou, tem um feriado, você está de férias, você não vai fazer aula de dança... então janeiro, dezembro... é morto. Então o cara tem que se programar para isso. Aula particular... isso era o que dava melhor retorno, aula particular tem alguns alunos regulares e outros não.

Demarca assim o caráter instável e sazonal do trabalho com a dança, além

do baixo salário. Outro fator que motivou Dionísio a retomar seus estudos na

engenharia e posteriormente a trabalhar na área foi a tendência de as escolas de

dança apresentarem problemas administrativos e de gestão, o que demanda um

trabalho burocrático que Dionísio não estava disposto a fazer em detrimento de

apenas dar aulas de dança: “ah se for para me estressar com a dança, já que não vou

conseguir muito viver só disso, então eu vou me estressar na engenharia”.

Como pesquisador e imerso em um ambiente de inovações, Dionísio pode, de

forma autônoma, direcionar suas atividades a projetos que vão de encontro a seus

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interesses, no caso, a robótica. Assim, também passou a evitar o trabalho rotineiro e

burocrático em sua atividade mais recente com a dança, vindo a participar de um

grupo que desenvolve projetos artísticos.

De acordo com o website da XYZ, a empresa capta recursos por meio de três

principais programas de incentivo a projetos de P&D. No que toca à área de TI em

específico, a empresa responde à Lei da Informática26.

Enquanto que em outros setores de tecnologia a empresa responde aos

programas de P&D Finep27, e P&D Aneel28. Evidenciando, assim, a importância de

políticas públicas governamentais e o papel fundamental do Estado no incentivo à

inovação.

As atividades que Dionísio desempenha em sua empresa estão intimamente

relacionadas com a necessidade de se escrever e propor projetos inovadores que

possam ser aprovados por tais programas de incentivo, isso porque o fator “inovação”

é um dos pré-requisitos a serem cumpridos na formulação de um projeto para sua

aprovação. Assim, a atividade de um pesquisador se torna crucial nesse contexto,

posto que uma de suas atribuições principais é a de gerar novos conhecimentos ou

articular de maneira inovadora tecnologias já conhecidas. Não foi em um ambiente

diferente que o primeiro microprocessador em um único chip foi desenvolvido por

pesquisadores da empresa Intel, nos anos de 1970. Um feito que, segundo Castells

26 “Por meio da Lei de Informática (Leis 8.248/91, 10.176/01 e 11.077/04) empresas do setor de tecnologia são capazes de reduzir de 80% a 100% o valor do IPI de seus produtos habilitados ou incentivados na Lei. Como contrapartida, as empresas precisam investir ao menos 5% do seu faturamento bruto em atividades de pesquisa e desenvolvimento em tecnologia da informação, com instituições credenciadas pelo Comitê da Área de Tecnologia da Informação (Cati) do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).”. Disponível no website da empresa. Acessado em: 08/05/2016. 27 “A Finep – Inovação e Pesquisa – é uma empresa pública vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Seu apoio financeiro abrange todas as etapas e dimensões do ciclo de desenvolvimento científico e tecnológico: pesquisa básica, pesquisa aplicada, inovações e desenvolvimento de produtos, serviços e processos. [A empresa XYZ está] habilitad[a] para receber recursos desses financiamentos, atuando em projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ligados a diversos programas e linhas da Finep”. Disponível no website da empresa. Acessado em: 08/05/2016. 28 “Por meio do programa, empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas de distribuição, transmissão e geração de energia elétrica devem aplicar anualmente um percentual mínimo de sua receita operacional líquida no Programa de Pesquisa e Desenvolvimento do Setor de Energia Elétrica. A intenção é incentivar a busca constante por inovações e fazer frente aos desafios tecnológicos do setor elétrico. A obrigatoriedade na aplicação desses recursos está prevista em lei e nos contratos de concessão, cabendo à Aneel regulamentar o investimento no programa, acompanhar a execução dos projetos e avaliar seus resultados. Ela também estabelece diretrizes e orientações que regulamentam a elaboração de projetos de P&D.” Disponível no website da empresa. Acessado em: 08/05/2016.

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(2001), fomentou a Revolução Informacional. É nessa esteira que a capacidade de

aprender e produzir novos conhecimentos se insere.

4.3 “O PROGRAMADOR NÃO PODE TER VERGONHA DE ESTUDAR”

É inerente à atividade de conceber, gerir e executar projetos, a necessidade

de se buscar “soluções diferentes”, e para tanto, Dionísio é incentivado, em seu local

de trabalho a estudar.

Porque se eu não tenho uma formação em tal curso, e se eu não estou pesquisando, se não estou estudando... como que o cara vai pegar uma área totalmente diferente? Se o cara não é um doutor para dar conta, como ele vai fazer um projeto desses? Vão aprovar um desses projetos que eles estão escrevendo um monte agora, mas chega lá e não tem gente capacitada para fazer e faz o que, terceiriza tudo?

No “novo capitalismo”, mais aspectos surgem em concomitância ao

trabalhador que passa a ter que produzir a si mesmo, uma vez que sua

empregabilidade vem a ser fruto da auto-gestão do seu próprio capital humano. Gorz

(2005), comentando um possível mundo do trabalho pós-salarial, resume:

Nessa concepção, haverá apenas empresas individuais de prestação de serviços individuais. Cada um deverá se sentir responsável por sua saúde, por sua mobilidade, por sua adaptação aos horários variáveis, pela atualização de seus conhecimentos. Cada um deverá gerir seu capital humano ao longo de sua vida, deverá continuar a investir em estágios de formação e compreender que a possibilidade de vender sua força de trabalho depende do trabalho gratuito, voluntário, invisível, por meio do qual ele sempre poderá reproduzi-la. (GORZ, 2005, p. 24).

Nessa perspectiva, o desemprego seria imposto como responsabilidade do

trabalhador que não foi capaz de produzir a si mesmo de maneira satisfatória.

Afastado do fluxo de informações que caracteriza o processo de produção imaterial o

trabalhador desempregado corre o risco de se tornar incapaz de reinserir sua

subjetividade “desatualizada”, seu conjunto de saberes vividos, na produção social

vigente, geradora de valor, uma vez que “a atividade de se produzir é a chave que dá

acesso ao mundo social” (GORZ, 2005, p. 50).

Mesmo na condição de celetista, Dionísio adapta-se à lógica de

constantemente se atualizar, não motivado por uma possível ameaça de demissão,

mas em acordo com os próprios valores propagados pela empresa:

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dizem que o programador não pode ter vergonha de estudar. Eu não posso ter vergonha de estar no meu trabalho e estar estudando aquilo que estou fazendo. É que são inúmeras formas de estar fazendo aquilo, então às vezes quero programar de uma forma melhor, então estou testando outra forma de fazer aquilo lá. E eu tenho que estar me atualizando né, se não, digamos assim: eu só trabalho, só faço o que sei, estou só "me dando" lá... isso não é tecnologia. A tecnologia está sempre mudando. Tem que estar sempre estudando...

Em um estudo sobre a qualificação em TI, Bridi e Ieger (2014) salientam que

as atividades realizadas pelos trabalhadores do setor de TI são intensivas em

conhecimento, devido ao nível de escolaridade e às exigências de habilidades

cognitivas neste meio serem mais altos que em outros. As autoras assinalam que com

o advento do regime flexível também passou a ser requerido dos trabalhadores não

apenas uma qualificação “vinculada ao posto de trabalho, mas que abarcasse as

exigências da produção flexível”. (Idem, p. 269). Assim, a qualificação profissional

passa a estar diretamente ligada ao emprego, à remuneração e às condições de

trabalho. As empresas, segundo as autoras, exigem dos trabalhadores maior

versatilidade na aplicação de seus conhecimentos técnicos e nas suas competências.

Nesse sentido, sublinham que o conceito de “competência” está estreitamente ligado

a uma perspectiva individual e o indivíduo passa a ser o único responsável pelas suas

“competências”, que vêm a ser um “produto” passível de ser trocado no mercado de

trabalho (Idem, Ibidem).

As autoras ainda descrevem que as empresas exigem dos profissionais já

formados aspectos como: flexibilidade de tempo a ser dedicado ao trabalho,

disponibilidade para hora extra, domínio de diferentes habilidades dentro da área,

capacidade de gestão do próprio tempo a fim de cumprir metas e a produtividade

esperada, capacidade de gestão de pessoal e de relacionamento interpessoal. Além

disso, é necessária flexibilidade cognitiva, flexibilidade no uso de diferentes

linguagens de programação, criatividade, concentração e foco para a resolução de

problemas complexos (Idem, p. 18). Constatam ainda que o mercado de trabalho tem

exigido profissionais dinâmicos, polivalentes e flexíveis (Idem, p. 276).

Outro fator importante desta indústria para o qual as autoras chamam a

atenção é a alta rotatividade dos trabalhadores. Os conhecimentos adquiridos pelos

profissionais na formação acadêmica não são o suficiente para as exigências do meio,

assim esses trabalhadores precisam estar em constante atualização, de modo que

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muitos são autodidatas a fim de suprirem a necessidade de mais conhecimento para

aumentar sua gama de “competências” (Idem, p. 277).

Dionísio estuda por conta própria, não há, em sua empresa, nenhuma

orientação explícita, ou um programa de estudos a ser cumprido. Portanto, cabe ao

próprio trabalhador buscar os meios pelos quais realiza seus estudos: “Eu estudo

sozinho. Tem as necessidades, e tal, mas aí vou participando de fóruns, e

conversando com o pessoal, vendo as tecnologias que eu posso estar aplicando...”.

Devido à sua aptidão e interesse por aprender aliados à sua capacidade de lidar com

diferentes pessoas, Dionísio desempenhou de forma autônoma, já a partir do estágio

que realizou antes de ser efetivado, as mais variadas atividades, como programação

e automação de processos manuais. A seguir, descreve como a autonomia é uma

capacidade incentivada pela empresa, vindo a determinar sua contratação:

no estágio eu fazia de tudo lá... porque na empresa XYZ é assim: se você não procura as coisas eles também não vão atrás de você, não. Eles te deixam meio largado, te dão uma liberdade, você está lá para estudar, então você vai estudar, eles te passam alguma coisinha ou outra, mas se você não correr atrás... eles não vão te passar, não tem um cara te puxando pela mão, né. É um instituto de pesquisa, então você tem que procurar alguma coisa para fazer e aí eles começam a passar mais coisas para fazer. Lá eu fazia muito programação, e automação, aplicativo de Windows, e então como eu comecei a fazer muita coisa lá (...) cria uma necessidade, né... e daí quando eu me formei correram para me contratar.

Dionísio exemplifica como se dá esse processo, no qual busca conhecimentos

em diferentes áreas do conhecimento para aprimorar produtos ou serviços prestados

pela sua empresa:

(...) eu estava muito fazendo aplicativo para Windows, para desktop, e eu gosto muito dessa parte de interface homem-máquina, então eu comecei a pesquisar para fazer o design de interação. Comecei a pesquisar sobre formas de fazer uma interface melhor para o usuário. Até cheguei a pedir uns livros lá, de psicologia, envolvendo interface homem-máquina e psicologia, mas não chegou ainda. Pesquisei outras formas de fazer interface, de programar interface, isso não tive muito no curso de graduação, né. Então já aprendi design de interfaces... que eu já tinha interesse, estudei formas de estar programando... então além de resolver o problema em si, que eles teriam lá, como uma automação, eu estava estudando formas de fazer uma interface interessante, mais amigável, digamos assim, não só uma interface de engenheiro, com as coisas largadas...

Ocorreu também de Dionísio propor soluções, a princípio, que não seriam

necessárias, mas que no fim mostraram-se otimizar procedimentos realizados por

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outras equipes. Assim, Dionísio galgou o reconhecimento entre os colegas, reforçando

seus elos com as demais equipes e setores da empresa:

esses softwares eu não faço muito dentro dos projetos. Já ajudei projeto arrumando softwares já existentes, mas as vezes eu faço para outras equipes que tem uma necessidade, por exemplo, um cara que fazia medições "na mão" [manualmente], eu fui lá e fiz um software que faz tudo aquilo que ele fazia “na mão”, e agilizou, e "puts", me tratam com respeito, eles veem a qualidade daquele serviço. Então eles já me veem com outros olhos: “o cara que manja da computação”... Coisa de computação e programação eles vão lá me procurar. E tem um departamento de TI na empresa XYZ, eu não trabalho no departamento de TI, entendeu? Mas muitas vezes eles vão me procurar. Mesmo muitas coisas especificas eu não sei, a própria programação, a tecnologia, é muito ampla, tem muitas áreas. Então não dá para ser muito especialista, tem muitas áreas, muita coisa, então eu vou estudando alguns campos, algumas áreas, o que aparece de necessidade eu vou estudando, né.

As habilidades técnicas de Dionísio em computação são utilizadas por

equipes de outros projetos não ligados diretamente à TI. Mas revelam-se

fundamentais para potencializar e tornar viável outras inovações. Assim, a fala de

Dionísio expressa a sua própria flexibilidade. Ele é um trabalhador flexível, que pode

ser acionado por diferentes equipes para os mais variados projetos. Desta forma, o

reconhecimento que obtém em sua empresa mostra-se um grande mobilizador de

suas ações e atividades.

Sobre a categoria do reconhecimento, em específico, o filósofo Axel Honneth

(2003) observa que na modernidade a solidariedade é a forma de reconhecimento

principal entre sujeitos individualizados e autônomos. Essa se dá à medida que se

valoriza, no outro, suas habilidades particulares e únicas, pelas quais objetivos

comuns possam ser realizados. Assim, cada indivíduo tem a oportunidade de

experienciar suas próprias realizações e vicissitudes como valiosas para a práxis

comum.

Dionísio, portanto, devido a sua autonomia em relação ao conhecimento, mas

também à forma solidária com que se dispôs a colaborar com outras equipes e setores

de sua empresa, conseguiu receber o convite para ser efetivado após o término do

seu estágio: “Você começa a fazer umas coisas que não tem ninguém lá que faz. Tipo

[cria] uma dependência... mesmo em tempo de ‘vacas magras’ eles deram um jeito de

me contratar“. Com isso, mostrou-se um trabalhador polivalente e altamente

valorizado pela sua empresa.

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Manter-se atualizado, contudo, continua sendo um dos requisitos da empresa

em que Dionísio passou a atuar como pesquisador júnior. Como é do interesse da

empresa que seus funcionários se qualifiquem permanentemente, esta oferece como

benefício, por meio da troca do expediente, a possibilidade de cursarem

especializações ou pós-graduação nas respectivas áreas dos projetos em que atuam.

Assim, não há uma obrigação formal, mas tacitamente posta como de livre escolha:

“eles incentivam a estudar, eles me liberam do trabalho para eu ir fazer aula do

mestrado. Eu estou fazendo mestrado em Joinville, eles me deram liberdade de viajar

para Joinville para estudar para o mestrado.”

Dionísio conta que foi convencido pelo seu gerente, por meio de conversas

informais, a buscar um mestrado.

na época do mestrado, de tomar a decisão, foi ele que conversou bastante, foi ele que me deu a ideia de fazer na UFSC. Ele mesmo fazia um doutorado, acho que em Florianópolis, né. Porque a minha ideia inicial eu não tinha muita vontade de fazer o mestrado ou doutorado, eu não via o porquê. Só estou fazendo o mestrado porque realmente, “pô, eles estão me bancando no trabalho”, não é só uma bolsa, estão me bancando lá, só estudando... por dois anos, aí resolvi aproveitar. E estudar uma área que eu gosto, também... se eu fosse fazer o mestrado só por fazer eu não ia querer fazer, e como eu consegui pegar uma área que eu gosto, que é robótica, e lá na UFSC vou trabalhar com robótica subaquática... achei isso superinteressante. Mas acho que se não fosse isso eu não teria pego, não.

Desta forma, Dionísio acrescenta à sua apertada agenda diária mais uma

atividade, que ainda inclui constantemente estudar, ensaiar para espetáculos de

dança e lecionar aulas de dança particulares. O mestrado que Dionísio está a cursar,

na área de robótica subaquática, complementará ainda mais suas habilidades dentro

de sua área e contribuirá para a execução dos projetos em que está trabalhando ou

virá a trabalhar. Desse modo, amplia seu leque de possibilidades de inserção em

novos projetos e também a sua própria “empregabilidade”.

4.4 O TRABALHO DO ENGENHEIRO PESQUISADOR

Procurei explorar na construção narrativa de Dionísio elementos que

indicassem sua atitude perante o processo criativo, tanto na dança, quanto na

engenharia. Nesse sentido busquei na análise que o sociólogo Norbert Elias (1995)

fez da vida de Mozart, músico e compositor austríaco, uma categoria de “criatividade”

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que permitisse pensar o trabalho inovador. Sobre a suposta genialidade de Mozart, o

sociólogo elucida:

Quer dizer que Mozart sabia fazer coisas que a grande maioria das pessoas não sabia, que estão além de seus poderes de imaginação: Mozart sabia dar rédea livre às fantasias. Elas borbulhavam num fluxo de padrões sonoros que, quando ouvidos por outras pessoas, estimulavam seus sentimentos de maneiras as mais diversas. O fator decisivo nisto é que, apesar de sua imaginação se expressar em combinações de formas que se situavam na estrutura do padrão social de música que ele tinha assimilado, tais formas iam muito além das combinações já conhecidas e dos sentimentos que despertavam. Esta capacidade de criar inovações no campo do som que comunicam uma mensagem real ou potencial aos outros, produzindo neles uma ressonância, é o que tentamos classificar em conceitos como "criatividade" quando aplicados à música e, mutatis mutandis, à arte em geral. (ELIAS, 1995, p. 60).

A criatividade, portanto, se dá na capacidade de fazer “novas combinações

de formas” já existentes e assimiladas. Para tanto, é preciso dominar o leque de

conhecimentos disponíveis. Por isso, é significativa a importância que Dionísio dá

tanto a ensaiar quanto a estudar. Essas são atividades que Dionísio observa serem

indispensáveis para o êxito na dança artística e na pesquisa tecnológica.

A atividade da dança pode confundir um observador menos atento e que não

esteja ciente das incontáveis horas de ensaio que um único passo necessitou para

ser aperfeiçoado, mais difícil ainda seria imaginar uma apresentação inteira, a dois.

Mas há uma linha tênue, permeável e de contornos borrados, que observei e acredito

ser possível de ser apreendida das falas de Dionísio, esta linha marca alternadamente

duas faces do processo criativo: os ensaios coreográficos extenuantes e raros

momentos de inovação, nos quais se percebe que decorrente da continua repetição

surge uma notável evolução e mudança na execução do passo ensaiado.

Isso se deve, antes de tudo, às limitações que os estilos impõem aos

dançarinos. Contudo, ao invés de pensarmos em uma limitação no sentido negativo,

melhor seria supormos que os estilos de dança orientam as possíveis ações dos

dançarinos, fornecendo a eles parâmetros facilmente identificáveis que evidenciam

qualquer tipo de desvio aparente. Seriam o que Elias (1995, p. 60) chamou de “formas

que se [situam] na estrutura do padrão social.”

Há de se salientar a importância da música para a dança e seus respectivos

estilos. A música é fundamental, pois fornece um tempo e ritmo ideal para a execução

de cada passo. Mesmo que ao se dançar um determinado estilo haja uma liberdade e

flexibilidade na escolha dos movimentos, não há uma liberdade que permita, por

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exemplo, confundir Hip-hop com Samba de Gafieira, a não ser que uma

desconstrução e nova estilização sejam propostas.

Extrapolando essa observação para o mundo do trabalho em TI, também se

notará como a determinação do tempo e do ritmo para a execução das tarefas é crucial

para o conjunto final da obra tecnológica.

Mais aproximações podem ser feitas quando consideramos que a inovação

se tornou a fonte de valor na nova economia, por isso mesmo, para que qualquer tipo

de inovação seja possível de emergir, as empresas afrouxam os ritmos outrora rígidos

e repetitivos. Mas essas mesmas empresas, tendo concebido uma ideia inovadora,

rapidamente acionam em suas organizações o estreitamento do tempo para que o

produto possa vir a ser produzido, é nesse momento, que as habilidades meramente

criativas e imaginativas são postas em espera para que atividades rotineiras e

minuciosas sejam despendidas.

Há de se supor que tal processo não ocorra de maneira estática, e que tão

pouco seja, a um observador externo, facilmente discernível. Sobretudo porque a

criação passa a ser rotinizada. Mais ainda, os corpos das organizações empresariais

se estruturam, como observado por Galbraith (1988), Touraine (1970) e Castells

(2001), de forma que as decisões e o processamento de informações cruciais sejam

centralizados em grupos de especialistas altamente qualificados, e

consequentemente atividades mais rotineiras sejam delegadas a outros membros que

ocupem posições periféricas na estrutura.

Não só os produtos devem ser inovadores nas novas empresas, mas também

o próprio processo produtivo, que constantemente se encontra em processo de

reestruturação e aperfeiçoamento, é nessa dinâmica que ocorrem nas empresas as

movimentações dos funcionários dentro das estruturas organizacionais, de equipe a

equipe, de setor a setor. À medida que o jovem trabalhador ganha reconhecimento e

aperfeiçoa suas habilidades, tende a subir aos quadros centrais, e após anos de

atividades mais rotineiras, caso seja um trabalhador qualificado, esperar-se-á dele a

habilidade de inovar e fornecer soluções inovadoras. Há de se notar também que à

medida que se adentra a esses círculos decisórios das empresas, o trabalho tende a

ficar mais informacional e subjetivo do que manual.

A seguinte passagem de A nova cultura do capitalismo resume com precisão

o que se espera de um trabalhador inserido no “novo capitalismo”:

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Uma organização em que os conteúdos estão constantemente mudando requer mobilidade para resolver problemas; qualquer envolvimento profundo num problema seria contraproducente, pois os projetos terminam tão abruptamente quanto começaram. O analista de problemas que pode seguir em frente, cujo produto é a possibilidade, parece mais afinado com as instabilidades que governam o mercado global. A capacitação social exigida por uma organização flexível é a faculdade de trabalhar bem com outro em equipes de curta duração, mas não haverá tempo para conhecer os outros bem. Toda vez que a equipe se dissolve e o indivíduo entra para um novo grupo, o problema a ser resolvido é entrar em ação com a possível rapidez junto a esses novos colegas. “Posso trabalhar com qualquer um”, eis a fórmula social da aptidão potencial. Não importa quem é a outra pessoa; nas empresas sempre em rápida mudança, não pode importar. A capacitação do indivíduo está na cooperação, quaisquer que sejam as circunstâncias. (SENNET, 2012, p. 117).

É nessa esteira que o trabalho em equipe, altamente dependente de

qualidades subjetivas dos trabalhadores, torna-se crucial. Também, considerada a

alternância de projetos, alteram-se e reorganizam-se frequentemente as equipes,

independentemente do tipo de vínculo contratual que se tem com a empresa. Essa

dinâmica requer que o trabalhador esteja apto a se relacionar, a depender da natureza

do projeto a ser realizado, com diferentes pessoas, por vezes com outros perfis e

trajetórias profissionais e educacionais. Nesse aspecto, a atividade de dança de

Dionísio serve novamente como uma possível aproximação com o trabalho em equipe

que Dionísio desempenha em sua empresa, pois em ambas as atividades é

necessário se relacionar com diferentes pessoas:

(...) eu gosto de congresso de dança, e que daí tem gente de tudo quanto é tipo, se dança com gente diferente, acho que é uma das coisas mais legais da dança de salão, é isso, é você dançar com gente diferente. E outra coisa que é muito “massa”... é por exemplo: você vai num baile, e tira alguém para dançar que você nunca viu na vida, que você não conhece, e a dança é legal pra caramba, cara, isso é muito, muito legal, na dança de salão. Então quando você vai num congresso que vai gente do Brasil inteiro, as vezes do mundo inteiro, dependendo do ritmo, e você tem contato com um monte de gente, é uma experiência muita rica, muito rica, (...).

Suas habilidades comunicativas também foram trabalhadas durante as várias

atividades paralelas à dança que tinham como objetivo aprimorar suas aulas e

apresentações em palco. Isso se deve, portanto, à própria busca de Dionísio por

aprender novas habilidades do que à própria prática de dança em si.

Eu lembro que eu notava muito isso nos outros colegas da engenharia, né. Por exemplo, o olhar. A pessoa se olhar, a pessoa olhar para você quando fala. Contato mesmo. Eu lembro que eu tinha uma aula de teatro que o professor fazia você ficar olhando para o outro, e você não podia rir, que rir

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era uma forma de fuga, né... “você está falando com a pessoa e começa a rir, você está se escondendo”, né, “não está olhando para a pessoa”. Aí eu já comecei a notar isso né, você começa a olhar para notar o olhar das pessoas. Lá na engenharia a pessoa não consegue olhar para você quando está falando...

Com frequência, em sua narrativa, Dionísio não se identifica diretamente com

o papel de engenheiro. Por vezes, menciona seus ex-colegas de curso e de trabalho

como “pessoal da engenharia”, marcando assim uma construção identitária que

abarca características pessoais e habilidades subjetivas não presentes nos demais

engenheiros. Isso é corroborado pelas diferenças que Dionísio percebe entre si e o

perfil do “pessoal da engenharia”, tendo sido sua atividade na dança, inicialmente, que

possibilitou essa sua nova identidade.

Eu lembro que estranhava um pouco os colegas, né. (...) Sabe aquela visão que tem: “ah, o engenheiro não dá muita bola para as questões sociais”. (...) [por exemplo] Teve uma apresentação uma vez ali na XYZ, mesmo, o cara era doutor, com uma ideia superinteressante! E ele não sabia apresentar aquilo, não sabia se expressar... então isso é muito um defeito desses caras da TI e da engenharia, não vou generalizar, mas especificamente na engenharia de computação tinha muito esse perfil: tinha gente muito boa, mas que não sabia se comunicar... faltavam habilidades sociais.

A capacidade de Dionísio em se relacionar bem com diferentes pessoas o

torna um trabalhador “disponível na rede”29. O trabalho organizado por redes também

foi observado por Sennet (2006), sendo que as formas de contratação a curto prazo,

por contrato ou episódio são modos que as empresas buscam para remover camadas

burocráticas de suas organizações, tornando-as planas e flexíveis, em oposição à

organização piramidal (SENNET, 2006. p. 23). Outra face deste tipo de organização

do trabalho moderno é a constate formulação e reformulação das equipes de trabalho,

lógica esta que valoriza a “sensibilidade aos outros; exige ‘aptidões delicadas’, como

ser bom ouvinte e cooperativo; acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a

adaptabilidade às circunstâncias” (Idem, p. 118), portanto, o trabalho de equipe vem

a constituir a ética de trabalho na economia política flexível (Idem, Ibidem).

Contrastando-se à ética do trabalhador protestante observada por Weber, a

ética do trabalho de equipe promove um novo caráter: “É o homem motivado, decidido

29 Sobre o trabalhador de TI, suas estratégias e formas de inserção na rede ver a tese de doutorado de Marcos José Valle, “As estratégias de inserção e permanência na rede de trabalho em tecnologia da informação”, 2016.

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a provar seu valor moral pelo trabalho” e que também “é intensamente competitivo,

mas não pode gozar do que ganha. ” (Idem, p. 125).

Dionísio mostra-se um trabalhador valorizado pela sua empresa, isso se

apreende pelo fato de estar apto a colaborar e desempenhar atividades com diferentes

equipes ou setores dentro de sua equipe.

Eu sou o faz tudo lá! Eu fazia coisa para todo mundo, para tudo quanto é setor, principalmente a parte de programação. Só que na parte de projeto não tem como eu me dividir lá, então acabo dando prioridade, então hoje em dia eu ajudo mais num projeto ou outro. Tem uma equipe, no papel, né, a qual eu faço parte, mas às vezes eu faço mais coisas para as outras equipes do que para a minha.

Mais ainda, o tempo passa a ser racionalizado de forma flexível em

concordância à divisão das tarefas específicas de curto prazo, nas quais a

responsividade mútua se sobrepõe à confirmação pessoal (SENNET, 2006, pp. 126-

127). Por fim, no trabalho de equipe onde o que se produz juntamente por várias

pessoas não é de natureza material, o ato da comunicação passa a ser mais

importante que os fatos comunicados, portanto, criando dentro das equipes um

espaço para a conversa necessariamente aberto e acessível (Idem, p. 128).

Em relação ao processo de trabalho, Castells (2001) observa que a nova

divisão do trabalho introduzida na nova economia se baseia mais nas capacidades

individuais dos trabalhadores e menos na organização das tarefas, haja vista a

capacidade das redes em integrarem a fragmentação das tarefas desempenhadas em

diferentes locais (CASTELLS, 2001, p. 499). Como relata Dionísio, ele é chamado a

contribuir em muitas frentes, junto a diferentes equipes, mas a partir de suas

prioridades, uma vez que possui autonomia para definir suas tarefas:

Todo mundo me pede coisa lá, as vezes eu programo uma coisa aqui, uma coisa ali, preciso ajudar ali, ajudar lá. Mas as prioridades são os projetos, né, então eu ajudo a gerenciar um projeto... então eu faço essas coisas... se tem pressa... mas já tenho outras pendências, né. Mas eu mesmo vou fazendo minha prioridade ali, né. Tem os projetos P&D. E tem coisas que as vezes eles me pedem para ajudar algum serviço, algo mais especifico, que me pedem para ajudar, mas eu que organizo as prioridades.

O trabalho que Dionísio realiza como pesquisador e também como dançarino

pode ser definido como “trabalho imaterial”. Lazzarato e Negri (2002) e Gorz (2005)

utilizam-se do conceito de “trabalho imaterial” ao se referirem às transformações que

o conceito de trabalho clássico sofreu com o avanço tecnológico e advento do

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capitalismo cognitivo na sociedade pós-industrial. De acordo com Lazzarato e Negri

(2001) o “trabalho imaterial” se situa em uma nova relação entre produção e consumo,

“a produção audiovisual, a publicidade, a moda, a produção de software, a gestão de

território etc. são definidas através da relação particular que a produção mantém com

seu mercado e os seus consumidores” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 45). A

mercadoria produzida pelo trabalho imaterial, diferentemente daquela do trabalho

material, traz à tona às relações sociais que a produziram:

A particularidade da mercadoria produzida pelo trabalho imaterial (pois seu valor de uso consiste essencialmente no seu conteúdo informativo e cultural) está no fato de que ela não se destrói no ato do consumo, mas alarga, transforma, cria o ambiente ideológico e cultural do consumidor. (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 46).

Um bom exemplo da nova relação entre produção e consumo, que caracteriza

o trabalho imaterial, encontra-se na mercadoria software30. Raros são os softwares

que não necessitam de um contínuo aperfeiçoamento ou correção, conhecidos como

updates. Além de corrigir erros técnicos, as frequentes atualizações englobam novas

demandas de seus consumidores, assim (i)materializando-se em um processo

dinâmico e contínuo de produção, consumo e reprodução. A característica, portanto,

do trabalho imaterial, constitui-se em produzir simultaneamente tanto valor de uso

quanto subjetividade (Idem, p. 47). A subjetividade, expressa através da comunicação

e da linguagem, passa a ser produtiva, “o trabalho imaterial produz acima de tudo uma

relação social (uma relação de inovação, de produção, de consumo) e somente na

presença desta reprodução a sua atividade tem um valor econômico” (Idem, p. 46).

Segundo Gorz (2005, p. 17) “a informatização da indústria tende a transformar

o trabalho em gestão de um fluxo contínuo de informações”. É neste fluxo contínuo

que o trabalhador passa a exercer sua atividade, não mais como um mero executante

de operações pré-definidas, mas ativamente, produzindo-se ao mesmo tempo que

produz. A subjetividade, portanto, passa a ser central na criação de valor. Esse

trabalho “repousa sobre as capacidades expressivas e cooperativas que não se

podem ensinar, sobre uma vivacidade presente na utilização dos saberes e que faz

30 Sobre esse mesmo aspecto, Castells (2001, p. 464) exemplifica com o seguinte exemplo: “no setor de software em meados dos anos 90, as empresas começaram a distribuir seus produtos on-line para atrair clientes em ritmo mais acelerado. O fundamento lógico atrás dessa desmaterialização final dos produtos de software é que lucros devem ser obtidos a longo prazo, principalmente a partir de relacionamentos personalizados com os usuários sobre o desenvolvimento e as melhorias de um determinado programa. ”

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parte da cultura do cotidiano” (GORZ, 2005, p. 19). Assim, Dionísio ao mostrar

interesse e “correr atrás” das atividades, conquista a confiança de seus superiores:

Agora eu estou trabalhando com projeto de robótica, e tem o gestor do projeto lá, o responsável pelo projeto, e o que aconteceu: estava bem centralizado para ele, e ele começou a passar as coisas para mim, como eu tinha me interessado. Ou eu ajudo em algumas partes, como a parte de software, né, então sou responsável por toda essa parte do software que estou ajudando, os requisitos, a lógica de controle do robô... então a gente tem a liberdade, tem o gerente do setor né, mas ele não fica em cima do projeto, assim. Os pesquisadores que ficam responsáveis por seus projetos, né.

É na esteira da lógica de organização por projetos inovadores e pela

necessidade constante de aprimorar as habilidades subjetivas que se insere o

trabalho de Dionísio. Portanto, pela natureza de seu trabalho como pesquisador, a

empresa não controla de forma rígida o expediente, ao contrário do que acontece com

outros funcionários da empresa que trabalham como técnicos e estão inseridos no

setor de prestação de serviços.

Assim, a autonomia no trabalho é uma característica para Dionísio, mas que

não pode ser generalizada para todos os trabalhadores da sua empresa e do setor de

TI em sua totalidade. Como apontam Bridi e Motim (2014), o setor de TI é heterogêneo

e há diferenças na natureza do trabalho dependendo da função que é exercida. Sobre

a especificidade de sua atividade como pesquisador, Dionísio relata:

eu entrei como pesquisador, eu não bato cartão, mas... não tem um cara me enchendo o saco o tempo inteiro falando o que eu tenho que fazer, né. Eu sei as coisas que eu tenho que fazer, o fluxo do que eles estão pedindo, mas a ordem para fazer isso, como eu vou fazer isso, sou eu que me organizo. E isso às vezes para alguns é muito difícil, não sabe como agir, tem gente que não faz nada, né. Eu fico fazendo um monte... nossa! Para mim falta tempo lá. Os tempos livres são usados para estudar programação, usados para estudar algumas ferramentas, porque as coisas que eu fazia lá muitas vezes eu não tive na engenharia, a engenharia é tipo uma base. Tipo uma linguagem de programação tal, lá vai ser outra, então estou sempre aprendendo. E lá como é um instituto de pesquisa você tem vários tipos de projeto.

Como assinala De La Garza et. al. (2009), as novas formas de trabalho e suas

conceitualizações incluem tanto a dimensão cognitiva quanto outros aspectos

subjetivos. Com a frequente inclusão dos clientes no processo produtivo, o trabalhador

passa a interagir nos níveis emocionais, morais e estéticos, ou seja, aspectos

subjetivos, criando a possibilidade de uma produção “puramente simbólica” (DE LA

GARZA et. al., 2009, p. 123).

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A “mercadoria-projeto” requer um canal de comunicação direto entre a

empresa de Dionísio e seus clientes. Devido a isso, e à medida que Dionísio ascende

na hierarquia como pesquisador, mais reuniões se tornam frequentes.

Tem as reuniões... eu tenho que ter contato com as pessoas das outras empresas, de serviço terceirizado... de todo o projeto, mesmo. Não digo nem a gerência de pessoas, mais de projetos. Eu ainda não peguei um projeto que eu sou o responsável, acho que daria mais trabalho ainda, né. Estou mais auxiliando os projetos, mas sobra bastante coisa.

De forma geral, Dionísio observa o controle do tempo em sua empresa de

maneira flexível, mesmo havendo no acordo contratual a definição de seu expediente

como sendo das 8h às 17h.

geralmente, seria das oito às cinco, mas eu tenho flexibilidade, né. Então se eu precisar chegar às oito e meia, não tem problema, e se eu precisar eu fico até às seis horas, ou até o meio-dia. Então eu tenho essa flexibilidade. Se eu tenho coisas eu fico mais, se estou mais tranquilo e tenho que sair para alguma coisa, aí saio antes. Por exemplo: tenho que sair para fazer a matéria, ou para falar com o professor antes... aí eu saio, né.

A lógica de organização por projetos requer das equipes flexibilidade para se

ajustarem às especificidades de cada projeto. Dionísio fornece uma informação que

evidencia essa lógica, por vezes, projetos demoram anos para serem aprovados:

Os projetos são escritos, e o pessoal esquece, e são aprovados anos depois. Isso é até uma dificuldade, né, porque para tentar ser inovador tem que ser rápido. Mas é uma dificuldade da burocracia deles lá. Por exemplo: esse projeto que eu entrei de robótica foi escrito anos atrás. E agora, eu escrevi... eu ajudo a escrever projetos, ideias de projetos, para tentar passar, né, porque o cliente tem que aceitar, então você vai vendo projetos para serem aprovados para daqui a alguns anos...

A flexibilidade oferecida aos funcionários, portanto, é uma necessidade

produtiva da empresa. Dionísio observa que apesar de haver um discurso que a

flexibilidade e a liberdade de atividades a serem desempenhadas seriam um benefício

ao trabalhador, isso na verdade consiste em uma estratégia da empresa. Esta, por

depender de trabalhadores altamente qualificados, mas não lhes remunerar como as

demais empresas do setor, oferece algumas vantagens aos trabalhadores para

mantê-los na empresa. Mais ainda, apesar de formado em engenharia de

computação, Dionísio é contratado como pesquisador, assim possibilitando a empresa

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lhe remunerar abaixo do piso salarial da categoria. O mesmo se aplica a seus colegas

pesquisadores:

E essa flexibilidade na verdade, que a gente vê como benefício, mas é uma forma da empresa XYZ segurar esses profissionais, porque como eu falei: ele paga pouco se for comparar com outras empresas, e ele não contrata como engenheiro, o salário como engenheiro é mais alto, né, então como ele vai manter esse profissional lá, como que ele vai me manter? Com esses benefícios. Tem plano de saúde, previdência... eles dão essa flexibilidade, é para manter o cara lá, se não ele vai sair.

Além do “benefício” da flexibilidade, a empresa ainda oferece uma gama de

benefícios e auxílios. De acordo o “Acordo Coletivo de Trabalho 2013/2014”31, são

oferecidos como benefícios: Vale alimentação no valor de R$550,00 mensais; Auxílio

creche no valor de R$380,00 mensais, para filhos com até 6 anos; seguro de vida;

curso de inglês; complementação ao auxílio doença e auxílio acidente; horário de

trabalho diferenciado para docentes e discentes; dispensa do registro ponto para os

pesquisadores.

Ao analisar esse documento, indago-me sobre a lógica assumida pela

empresa ao oferecer benefícios ao invés do correspondente monetário desses.

Supõe-se que para as finanças da empresa, não faria diferença numérica transferir os

custos dos benefícios aos salários dos trabalhadores, proporcionalmente. Contudo,

ao considerar a importância da construção narrativa da flexibilidade como um

benefício, somado às outras “benesses”, entende-se que os trabalhadores adotam o

discurso da empresa, emprestando desse discurso elementos para construir suas

próprias narrativas.

Assim, torna-se mais valoroso para a empresa investir em benefícios que

corroborem com seu discurso, do que apenas pagar salários acrescidos dos custos

dos benefícios. Outro aspecto a ser considerado nesse caso, é de como a empresa

estrutura o consumo e as ações dos seus trabalhadores fora do ambiente de trabalho,

no sentido, por exemplo, de oferecer creches para os filhos dos trabalhadores, e com

isso fazê-los poupar tempo dentro e fora do trabalho. Ou possibilitar que cursem

especializações durante o expediente, assim, consequentemente, fazendo com que

seus trabalhadores transfiram novos conhecimentos acadêmicos para os projetos e

31 Disponível no diretório de arquivos do sindicato SENGE-PR (link retirado para preseravar a anonimidade da emprsa). Acessado em: 08/05/2016.

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serviços da empresa, etc. Pode-se supor, também, que se a empresa apenas pagasse

salários mais altos, o funcionário tornar-se-ia mais livre para mudar de emprego ou

menos adaptado ao discurso da empresa.

Mesmo assim, Dionísio reafirma em suas falas que o seu trabalho como

engenheiro lhe sustenta, apesar do salário menor comparado às outras empresas.

Ainda, compõe a narrativa de Dionísio, confrontado com a possibilidade de vir a perder

seu emprego atual como pesquisador, sua capacidade de trabalhar “por fora”, fazendo

freelances ou trabalhando apenas com a dança. Dionísio acredita que essa

capacidade se deve ao curso de engenheira de computação, pois, em comparação

com colegas de outras áreas da engenharia, não depende apenas de um emprego

fixo por possuir conhecimentos que lhe possibilitam trabalhar com softwares em

trabalhos avulsos. Devido a isso, também, são-lhe constantemente oferecidos tais

trabalhos, como afirma:

Me aparece muito! Mesmo eu não correndo atrás, mas... seria uma área se eu não estivesse trabalhando, se eu tivesse mais tempo livre. Que isso é o legal da engenharia de computação, sabe, que às vezes eu vejo o pessoal da engenharia elétrica, eles são muito limitados, "pô", ele precisa de uma empresa que empregue ele, o cara é preocupado com o emprego, "vou ser mandando embora", não sei o que... Cara, se eu for mandado embora eu não estou muito preocupado, cara... eu me viro sozinho, faço freelance, não sou muito preocupado. Não dependo da XYZ... "puts se me despedirem é o fim do mundo", porque eu vejo muita gente que é assim, né. O cara não sabe o que vai fazer se for despedido. Eu não me vejo assim: estou ali por opção, se eu quiser sair eu saio, consigo me virar. Claro que fazendo freelance não tem essa comodidade, plano de saúde e tal... mas não é o fim do mundo. Eu consigo fazer freelances, é mais inconstante, né, mas dá para sobreviver.

Questionado sobre como se dá a progressão da carreira dentro da sua

empresa, Dionísio lamenta que não tenha acréscimos de salários significativos ao

subir de cargo ou nível (o salário inicial para pesquisador se dá na faixa dos

R$4.000,00) e acredita que é devido a isso que alguns trabalhadores deixam a

empresa, apesar de todos os benefícios e da possibilidade da flexibilidade.

Isso é um problema lá deles, né, porque eles investem muito para você estudar, né, mas o salário eles não estão aumentando. Eles investem para você ser um doutor, só que o salário de doutor deles não é tão bom. Então é o que eles não conseguem fazer (...). Então você pega um doutorado ou algo assim, não vai acrescentar muito. Então isso é um problema deles, eles não conseguem segurar gente. E eles são um instituto de pesquisa! Então eles precisam de gente especializada, só que eles não estão conseguindo segurar (...). Tinha um colega lá meu, superinteligente, doutor, e foi dar aula no CEFET, e no CEFET, sei lá, quanto que eles pagam? 10 mil para um professor... a empresa XYZ não paga nem perto disso, então eles não

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conseguem segurar esse cara. Como é que vai competir? E eles precisam desse cara... então esse é o problema da empresa XYZ hoje em dia, tem muita gente entrando, um saindo outro entrando. E tem o cara mais velho que está lá há muito tempo, mas não tem um cara no meio. O cara no meio ali para segurar as pontas para quando o cara mais velho se aposentar, por exemplo. Então esse é o problema atual da XYZ...

Dionísio, portanto, dança ao ritmo da empresa, da melhor forma possível, sem

errar um único passo. Diferencia-se dos demais, porém, constata-se, por depender

apenas de sua própria vontade para interromper o baile ou mudar de “estilo”.

4.5 “MAS EU NÃO TENHO PLANOS A LONGO PRAZO! NÂO TENHO MESMO!”

O trabalho se faz central na vida de Dionísio e marca profundamente a

construção de sua identidade e subjetividade.

Dionísio tem em sua atividade como pesquisador, primeiramente, sua fonte

de renda principal. O que, por consequência, tem-lhe possibilitado despender mais do

seu tempo livre em ensaios coreográficos e práticas de dança não remuneradas. Haja

vista que, à época em que apenas tinha sua fonte de renda na atividade de professor

de dança, pouco tempo lhe sobrava para de fato dançar e ensaiar. Contudo, continua

a lecionar aulas a grupos ou alunos particulares, que incessantemente lhe procuram.

Sobre o trabalho com a dança, relata:

A engenharia é a minha principal fonte de renda. A dança... atualmente não estou mais com turma regular. Eu pego grupos fechados, então se precisar eu alugo uma sala, pego aula particular, sempre dou aqui em casa uma aula ou outra. Daí o que acontece: a engenharia me banca, certo? Então eu não preciso estar dançando para sobreviver. Então eu consigo ir dançar... e o pessoal me procura, às vezes, para ter aula. E como eu competia e tal... o pessoal me conhece muito pelo Zouk, que eu me especializei melhor, assim. Então às vezes uma escola me procura para dar aulas... e eu falo, olha: “meu valor é tal”, se eles não quiserem me pagar, para mim não vai fazer diferença, porque eu já tenho minha fonte de renda, então não preciso ficar barateando. Tenho pouco horário livre... então meu horário livre é valioso, então dou um valor e que se não quiser pagar, para mim não vale a pena.

Mais do que sustentá-lo, Dionísio vê na sua atividade como pesquisador uma

oportunidade para que continue a aprender, que foi sempre seu objetivo dentro da

engenharia. Assim, a possibilidade de estudar e aplicar seus novos conhecimentos no

local de trabalho tornam-se uma motivação para Dionísio:

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a área que eu estou lá é gostosa de estar estudando e de estar pesquisando. Chega segunda-feira e não é aquela parada: "meu Deus, vou ter que trabalhar!", eu gosto... eu fico depressivo é no Domingo, "nossa, Domingo, não tem nada para fazer." Acho que sou um cara meio viciado no trabalho, né. Quando não tenho nada para fazer... eu sou acostumado com essa "vida louca", de estar trabalhando, de estar dançando, e se não tem nada para fazer... "meu Deus!". Tem gente que não, é o contrário: gosta de não fazer nada, na segunda já está morrendo... eu não, eu tenho que estar fazendo um monte de coisas. Então eu não me sinto mal em ir trabalhar, eu não acho aquilo uma tortura. Eu tenho um amigo meu, ex-colega, que trabalha num banco, super estressado: “como é ruim trabalhar num banco, "foda-se" você para o banco, você é só mais um, só mais um peãozinho ali, "foda-se" a sua opinião própria"...

Apesar de questionar os relativos baixos salários, Dionísio se alinha ao

discurso da empresa ao deixar de lado o interesse meramente monetário: “Muita gente

trabalha na empresa XYZ pela qualidade de vida, né. E não pelo dinheiro. E pelo que

eu ganho e o estilo de vida que eu levo, assim, é o suficiente. Não tenho carro, não

tenho filho, então estou tranquilo...”

Faz-se necessário, contudo, indagarmo-nos sobre se de fato Dionísio não

procura ter filhos ou gastos maiores por vontade própria ou devido à adequação à

narrativa da empresa. Acredito que tal dinâmica somente é possível de ser

compreendida imaginando a interação entre a empresa e o trabalhador como um

movimento contínuo e dialético. Contudo, deve-se salientar, há uma construção de

narrativa de futuro pelo negativo, em oposição a dos trabalhadores que Dionísio

acredita estarem inseridos em uma lógica diferente, e nisso se reforça sua construção

identitária:

o futuro é incerto.... Eu não penso em ter filhos... sou meio egoísta. Porque se eu tiver filho eu não vou conseguir fazer tudo isso que eu faço. Aí vou ter que viver para a família. E eu, hoje em dia, não tenho essa vontade: de parar tudo que eu faço para ter filho. Por exemplo: quando eu vim morar sozinho todo mundo perguntava se eu ia trazer ela [a namorada] junto, e eu dizia: "calma, calma..."

Com frequência, reaparecem nas falas de Dionísio elementos de sua

construção identitária que se opõe ao do engenheiro tradicional:

O pessoal que se forma... vejo amigo meu se formando e está em coisa que não sabe o que fazer da vida, entra em desespero... o objetivo é se formar e quando acaba o curso não sabe o que fazer, se forma e depois se perdem... Como eu fiz um monte de coisa eu não tive essa parada. Toda época eu estou trabalhando, estou dançando, estou fazendo mestrado... não tem tempo que eu fique parado.

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Faz parte de sua construção identitária decorrente das atividades que exerce,

não apenas noções sobre como lidar com o tempo ou com o trabalho em si, mas

também, pelo que se apreende, noções de corpo e de família diferentes. O que

evidencia, mais uma vez, a importância de se compreender as relações de trabalho e

seus impactos em diferentes esferas de sociabilização:

eu vejo colegas da engenharia, o que aconteceu: se formaram, casaram, tão ali “barrigudinho”, daqui a pouco tem filhos, alguns tem já... está ali acomodado né, cara! Não é um estilo de vida que eu vejo para mim: acomodado... tomando uma cervejinha, tudo “certinho”, “beleza”... Cara, não é o que eu vejo para mim. Não é o estilo de vida que eu quero.

Apesar de Dionísio estar inserido em uma lógica de organização por projetos,

os quais se iniciam e terminam constantemente, devido à natureza da empresa como

sendo um instituto de pesquisa e um OSCIP sem fins lucrativos, não se apresentam

contundentemente incertezas sobre se haverá ou não novos projetos. Não depende

disso, portanto, o vínculo que a empresa mantém com seus trabalhadores, mas

reforça a noção de que é preciso sempre estar se atualizando para estar apto a

participar de prováveis novos projetos. Isso, por fim, vai de encontro aos objetivos de

Dionísio e reforça seu vínculo com a empresa, pois de outra forma, não poderia estar

trabalhando na área de robótica que tanto lhe interessa:

Ali eu tenho contato com um pouco mais dessa parte de pesquisa, no sentindo que às vezes uma empresa, mesmo sendo uma empresa boa de trabalhar, tem um foco diferente, você fica focado num produto, e tem aquela pressão de venda e de prazo. E na XYZ... claro que tem prazo, projeto, e tal, mas não tem aquela loucura de “acabou o projeto”... a XYZ não pode estar comercializando aquele produto, pelo tipo de instituto que ele é. Então cada projeto é um projeto, e não tem essa loucura de estar vendendo num mercado, e dando todo o ciclo de vida do produto, né. É diferente o dia-a-dia, né. Não que eu não aprendesse num trabalho de engenharia aí numa empresa boa, daria para aprender bastante coisa, mas são experiências diferentes. Por exemplo a parte de robótica, é uma coisa mais especifica, que ali na área acadêmica tem bastante coisa, mas às vezes comercialmente seja mais limitado, né. E é realmente uma área mais limitada. Eu só estou conseguindo trabalhar com essa área porque eu estou ali na XYZ, estudando isso.

No que concerne à sua atividade como professor de dança de salão, continua

a lecionar, mesmo tendo entrado em um grupo de dança que tem como objetivo ser

remunerado pelas apresentações, pois vê como significativo acompanhar o processo

de aprendizagem de novos dançarinos. Dionísio enfatiza que somente dança com

alguém devido à sua vontade antes de tudo, e também porque pensa ser importante

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compartilhar o que sabe com quem quer aprender. Assim, sua atividade com a dança

não adquire o sentido de um trabalho penoso e que o faz para sobreviver. Por isso,

não leciona por dinheiro:

Eu não gosto de dar aula de entretenimento, por exemplo: [...] o trabalho de personal dancer, aquele cara contratado para dançar, num cruzeiro de dança... a senhora contrata o cara para dançar com ela no navio. Eu nunca gostei desse trabalho. Eu não gosto do fato de estar dançando contigo por estar sendo pago, por obrigação... não gosto disso. Se eu vou dançar com alguém é porque quero dançar. E quando se está dando aula você está ensinando, está dando conhecimento. Não é só um corpo ali para satisfazer a pessoa, tipo um gigolô, né!

Na última pergunta que fiz a Dionísio indaguei sobre quais eram seus planos

para o futuro. Num ato de surpresa, pois haviam lhe perguntado isso recentemente,

confessou não pensar nisso e espontaneamente repetiu o lema do trabalhador

flexível, constatado por Sennet (2006): “não há longo prazo”.

Sei que daqui uns dois anos vou terminar o mestrado. E depois do mestrado? Sei lá. Não parei para pensar nisso. Vou continuar na empresa XYZ? Não sei. Espero continuar dançando, né. Dançar esse espetáculo aí, e depois acho que começar um trabalho novo. Mas eu não tenho planos a longo prazo! Não tenho mesmo! Eu sei o que vou fazer até daqui a dois anos.... Atualmente não penso em fazer doutorado, muito especifico, acho que vai ser muito pesado. Mas não tenho plano ao longo prazo, não. Por enquanto estou fazendo um monte de coisa, e pretendo continuar fazendo. Se der para dançar mais ainda, pretendo. Para ir melhorando a dança, porque a dança é um negócio sem fim, você está sempre ensaiando. Por mim eu ensaiaria mais ainda, enquanto o corpo aguentar, né.

Como na dança, o trabalho no “novo capitalismo” parece ser uma atividade

sem fim. E assim, a construção de uma narrativa de futuro fica impossibilitada, pois

torna-se um ato impossível prever quais atividades se estará exercendo a longo prazo,

no entanto, não se deve nunca parar de ensaiar. Assim, por fim, como em Sennet

(2006, p. 161): “No presente flexível e fragmentado, talvez pareça possível criar

narrativas apenas sobre o que foi, e não mais narrativas previsíveis sobre o que será.”

A incerteza de futuro vivenciada por Dionísio, contudo, configura-se de modo

diferente do que ocorre com trabalhadores das classes menos favorecidas, posto que

diante da incerteza ainda se lhe apresentam um leque de possibilidades e atividades

a serem desempenhadas. Desta forma, Dionísio mostra-se adaptado para uma

economia em constante mutação.

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4.6 A “DANÇA” PELA LIBERDADE

No penúltimo capítulo de A imaginação sociológica, “Da Razão e Liberdade”,

Mills (1961) apresenta uma discussão acerca da crescente racionalização da

sociedade e o lugar possível da liberdade. De acordo com o sociólogo, os indivíduos

estariam presos aos ambientes limitados de suas vidas diárias, impossibilitados de

raciocinar sobre as grandes estruturas nas quais estariam imersos. Desta forma, os

indivíduos aparentam estar realizando atos de muita racionalidade, quando na

verdade não sabem para que fim servem; “Até mesmo homens de inteligência

tecnicamente suprema podem, eficientemente, executar o trabalho que lhes é

determinado, e não obstante não saber que ele resultará na primeira bomba atômica”

(MILLS, 1961, p. 183).

Apesar de o número de organizações burocráticas, altamente racionais, ter

aumentando, em pouco se alterou a razão do homem na sua individualidade. Esse

crescimento das organizações e, consequentemente a multiplicação da divisão do

trabalho, salienta Mills (1961), criou mais esferas de vida, trabalho e ócio dentro das

quais refletir sobre o porquê das ações realizadas se tornou um ato difícil ou

impossível.

A ciência, no final de contas, não é um Segundo Advento tecnológico. O fato de que suas técnicas e sua racionalidade tenham um lugar central numa sociedade não significa que os homens vivam razoavelmente e sem mito, fraude ou superstição. A educação universal pode levar ao idiotismo tecnológico, e ao provincialismo nacionalista, ao invés de promover a inteligência informada e independente. A distribuição em massa da cultura histórica pode não elevar o nível da sensibilidade cultural, mas simplesmente banalizá-la – e competir poderosamente com a oportunidade de inovação criadora. (MILLS, 1961, p. 183).

Escapa aos homens comuns, imersos nesses ambientes altamente

racionalizados, as forças necessárias para controlar seus destinos. “As famílias, bem

como as fábricas, o ócio, bem como o trabalho, as vizinhanças, bem como os Estados

– também eles tendem a tornar-se parte de uma totalidade funcionalmente racional”

(Idem, Ibidem). Surge, então, um “homem dotado de racionalidade, mas sem razão, e

cada vez mais auto-racionalizado e também cada vez mais constrangido” (Idem, p.

184). Mills observa com clareza, nessas circunstâncias:

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(...) o indivíduo faz “o melhor que pode”. Entrosa suas aspirações e seu trabalho com a situação em que está, e da qual não pode encontrar saída. No devido tempo, não procura saída: adapta-se. Aquela parte de sua vida que sobra do trabalho, ele a usa para jogar, para consumir, para “distrair-se”. Não obstante, essa esfera de consumo também está sendo racionalizada. Alienado da produção, do trabalho, também está alienado no consumo, do ócio autêntico. (MILLS, 1961, p. 184).

É nessa esteira, portanto, que as organizações racionais alienam os

indivíduos, destruindo as possibilidades de liberdade à medida que a racionalidade

organizacional subtrai a razão individual. Assim, questiona Mills: “entre os homens

contemporâneos, chegará a predominar, ou até mesmo a florescer, o que podemos

chamar de Robô Alegre?” (Idem, p. 185). O “Robô Alegre”, em outras palavras, seria

uma metáfora ao homem alienado, mas que na contemporaneidade surgem novos

meios de torná-lo um robô: “meios químicos e psiquiátricos, pela coação permanente

e pelo controle do ambiente. Mas também pelas pressões ocasionais e pelas

sequências de circunstâncias não-planificadas [“não há longo de prazo”]” (Idem,

Ibidem). E, cabe uma questão mais importante ao homem da atualidade: “Mas poderá

ser levado a querer transformar-se num robô alegre e voluntário? Poderá ser feliz

nessa condição, e quais são as qualidades e os sentidos dessa felicidade?” (Idem,

Ibidem).

Nesse âmbito, a possibilidade de liberdade é ameaçada:

A liberdade não é apenas a oportunidade de fazer o que queremos; nem é apenas a oportunidade de escolher entre alternativas fixas. A liberdade é, em primeiro lugar, a possibilidade de reformular as escolhas existentes, discuti-las – e então, a oportunidade de escolher. É por isso que a liberdade não pode existir sem um maior papel da razão humana nas questões humanas. Dentro da biografia do indivíduo, e dentro da história de uma sociedade, a tarefa social da razão é formular escolhas, ampliar o alcance das decisões humanas no processo histórico. O futuro das questões humanas não é apenas um conjunto de variáveis a serem previstas. O futuro é o que está por ser decidido – dentro dos limites, sem dúvida, da possibilidade histórica. Mas essa possibilidade não é fixa; em nossa época, os limites parecem realmente muito amplos. (MILLS, 1961, p. 189).

Antes de iniciar este trabalho e realizar as entrevistas, problematizei que

Dionísio, devido à natureza altamente flexível de ambas as atividades que executa,

equilibrava-se entre uma e outra, de forma estática, dedicando-se àquela que no

momento parecesse ser a mais favorável economicamente. Não imaginava, contudo,

que além desse equilíbrio necessário em tempos de incerteza econômica, Dionísio

também “dançava” à sua maneira dentro de ambas as atividades. Por não ter a busca

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pelo dinheiro como objetivo central em sua biografia, Dionísio dançou ao ritmo do novo

e do desconhecido, evitando e se esquivando de atividades que lhe parecessem

rotineiras ou que tivessem apenas interesse explícito pelo lucro. Evitou a engenharia

quando essa parecia resultar em um trabalho burocrático e estressante, destino o qual

muitos de seus ex-colegas de curso tiveram e hoje atuam a preencher planilhas.

Também evitou dar aulas de dança quando de si foi exigido servir aos interesses de

escolas que vendiam aulas de um único estilo da “moda”, a alunos com objetivos

contrários a aprender a complexidade que faz da dança uma arte.

Por isso, prefiro supor que a “dança” de Dionísio é uma forma de resistência

à eminência de tornar-se, ele próprio, o “Robô Alegre” de Mills. Nessa contínua e

dinâmica resistência ao trabalho alienante, Dionísio acaba por aprofundar-se em sua

humanidade e interação com a alteridade, aprendendo mais sobre si mesmo, e,

curiosamente, transferindo aos robôs que desenvolve características e qualidades

humanas, como o fez em seu trabalho de conclusão de curso ao criar uma mão

robótica inspirada nos princípios de movimento do tango.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredito que a tentativa de compreender uma história de vida veio a constituir

um meio sociologicamente adequado para se apreender as generalidades do meio no

qual essa se insere. Procurei mostrar, com os relatos de vida de Dionísio, como

determinadas instituições sociais, apreendias a partir de sua narrativa,

desempenharam um papel decisivo na sua formação como um trabalhador flexível e

adaptado ao “novo capitalismo”. A família, a escola (universidade) e o mercado de

trabalho mostraram reproduzir o modo como essa flexibilidade é tornada viva na

identidade e no corpo de Dionísio.

Por meio do recorte proposto, apreendi o contínuo movimento inerente ao

trabalho flexível de Dionísio como pesquisador em uma empresa cuja atividade

principal são projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Seu trabalho é

organizado por projetos, executado por equipes e demanda uma contínua atualização

do conhecimento, seja de conhecimentos especificadamente técnicos, como também

de aptidões pessoais e interpessoais.

A técnica de pesquisa da entrevista compreensiva, escolhida para a recolha

dos dados, mostrou-se muito profícua ao fornecer em profundidade muitas

informações significativas que me possibilitaram tecer a história de vida de Dionísio e

tentar responder aos problemas que nortearam esta monografia. Infelizmente, devido

ao recorte necessário diante do rico e farto material que pude recolher, ficaram de fora

alguns elementos da trajetória de Dionísio dentro do cenário da dança, os quais,

acredito, poderiam constituir uma rica monografia à parte. Portanto, optei por utilizar

parte dessas informações, uma vez considerado o âmbito que a monografia se insere,

como um motivo que orientou suas ações dentro de sua atividade como engenheiro

pesquisador.

Com repetida frequência em sua narrativa, pude constatar que Dionísio

exerce suas atividades com a mesma disposição e atitude. Em ambas, deve-se estar

disposto a fazer novas combinações de formas já conhecidas, portanto, inovar e ser

criativo. Assim, na formulação tanto de uma nova coreografia para um espetáculo

quanto de um novo projeto de engenheira, faz-se necessário estar a par de tudo que

já foi previamente feito por outros dançarinos ou engenheiros. A mera cópia não se

coloca como uma possibilidade viável para Dionísio. Nesse sentido, não há outra

alternativa a não ser desenvolver o hábito de uma aprendizagem contínua.

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Na dança de salão, aprender significa ensaiar e pôr o corpo em movimento.

Isso somente é possível em uma relação a dois. Não obstante, o trabalho que se

poderia supor puramente intelectual de um engenheiro pesquisador revela-se possível

de ser realizado somente devido a um tipo de conhecimento interpessoal que se

inscreve no corpo. Esse conhecimento determina como o trabalhador se relaciona e

interage socialmente com outras pessoas. Saber olhar, ouvir, prestar atenção e dirigir

a palavra ao outro são como passos de uma complexa dança. A sensibilidade ao

outro, portanto, figura como uma capacidade tão importante quanto o conhecimento

puramente técnico. Como foi visto, no “novo capitalismo” a organização do trabalho

por projetos e em equipes requer do trabalhador habilidades comunicativas que lhe

garantam sua contínua inserção “na rede”. Se um dançarino executa sem precisão

seus passos, dificilmente outros parceiros o convidarão para uma nova dança. No

caso de Dionísio, em seu trabalho como pesquisador, soube se relacionar bem e

colaborar com diferentes setores e equipes de sua empresa, vindo a desempenhar

tarefas que impactaram o andamento de projetos de inovação. Assim como na dança

de salão, na qual Dionísio tornou-se um exímio especialista dos mais variados estilos,

na sua atividade como engenheiro pesquisador continua a se aprimorar em mais

áreas do conhecimento tecnológico que lhe permitirão participar em novos projetos.

A análise bibliográfica realizada no terceiro capítulo permitiu situar o trabalho

de Dionísio historicamente e estruturalmente. Foi possível apreender como o

informacionalismo se estrutura e como o trabalho se configura em relação à posição

que se ocupa nessa estrutura. No caso de Dionísio, sua atividade como pesquisador

em uma empresa de alta tecnologia, cuja ênfase são projetos de pesquisa e

desenvolvimento, permitiu abordar uma perspectiva do trabalho informacional ainda

pouco vislumbrada. Assim, pode-se observar o contraste de sua atividade com o

trabalho que é realizado pela maioria dos trabalhadores que estão inseridos no setor

de TI em Curitiba. A autonomia e criatividade que são condições para a realização do

trabalho de Dionísio, muitas vezes apenas aparecem como um vago discurso na

maioria das empresas produtoras de software, enquanto que nas montadoras de

hardware tais possibilidades para os trabalhadores nem sequer podem ser

vislumbradas.

Acredito, nesse sentido, que não seja um equívoco supor que Dionísio esteja

em um caminho ascendente, ou melhor, em direção ao centro da “tecnoestrutura” de

sua empresa e do setor de TI no geral. Dionísio parece reunir todas as características

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do trabalhador flexível ideal para essa nova economia e sociedade. Suas habilidades

interpessoais, estimuladas e aperfeiçoadas por meio de atividades artísticas, fizeram-

no destoar do perfil “clássico” e estigmatizado do engenheiro de computação que

apenas sabe se relacionar com computadores. Assim, tornou-se um profissional

valorizado em uma economia cuja ética principal é o do trabalho em equipe.

É preciso salientar, ainda, que vivemos uma intensificação das modernas

formas racionais de controle, ao ponto que é possível “flexibilizar” o trabalho em um

determinado setor da economia sem perder com isso a eficácia produtiva. É nesse

contexto histórico que a criatividade, o lazer e o ócio tornam-se possíveis de serem

inseridos no “novo capitalismo” como atividades produtivas. Não se pode deixar de

inferir, contudo, que a flexibilidade é uma forma avançada de controle do trabalho. Se

no passado os grilhões que prendiam os escravos ao local de trabalho eram a forma

de controle mais eficaz que as classes dominantes dispunham, hoje a flexibilidade se

mostra uma forma de controle mais sutil e racionalizada.

A dança de Dionísio, no entanto, pareceu-me uma forma de resistência a um

controle cada vez mais preciso que se exerce sobre os trabalhadores, ainda mais

naqueles inseridos no setor tecnológico altamente racionalizado. Nesse sentido, a

forma de controle, por mais eficiente que possa ser, parece nunca conseguir dominar

por completo aquele que dança. O vínculo de Dionísio com a dança foi sendo firmado

à medida que ele enxergava nessa forma de expressão artística uma oportunidade

para se relacionar com diferentes pessoas de forma mais humana e menos mediada

pela exatidão dos dispositivos optoeletrônicos.

Por fim, lembro ainda que luta e dança se confundiam na capoeira dos

escravizados no Brasil pré-republicano. A dança dos capoeiristas era inspirada pelo

desejo pela liberdade, dançava-se, portanto, a luta pela liberdade. Analogamente, a

busca por um contato mais estreito e intenso com outras pessoas e não apenas com

máquinas foi o que levou Dionísio a se aprofundar em sua atividade com a dança de

salão. Como se apreende, a dança é uma forma de expressão humana que perpassa

todas as culturas. Nesse sentido, ao se exprimir por meio da dança, Dionísio está a

marcar sua distância em relação a uma condição de um mero robô, perfilado com

exatidão milimétrica em uma linha de produção. No entanto, Dionísio não se opõe ao

trabalho na sua totalidade, que se faz central em sua identidade, mas apenas a um

tipo de trabalho em específico, que aliena e tolhe sua vontade por aprender e criar.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – ROTEIRO DE ENTREVISTA

1 PERFIL

1. Nome?

2. Idade?

3. Escolaridade?

4. Estado civil?

5. Mora com quem (condições de habitação)?

2 FORMAÇÃO EDUCACIONAL

1. Que colégios frequentou durante o ensino primário e secundário? Eram instituições

privadas ou públicas?

2. Havia aulas de informática? Quando foi sua primeira aula de informática na escola? O que

se ensinava?

3. Havia disponibilidade de computadores para livre acesso dos alunos? Eram dispostos em

laboratórios de informática específicos ou em uma biblioteca? Havia acesso à internet?

4. Os professores das disciplinas comuns incentivavam o uso de computadores para a

execução de trabalhos ou atividades?

5. Havia algum outro tipo de laboratório ou aulas específicas disponíveis nas áreas da

tecnologia, (robótica, programação, etc.)?

6. Você participou de algum tipo de evento, competição ou olímpiada de conhecimentos

(Olímpiada de matemática, física, programação, etc.)?

7. Em casa: quando foi que você teve acesso ao seu primeiro computador? Seus pais

controlavam e/ou incentivavam o seu uso do computador de alguma forma? Você se lembra

da opinião deles sobre o uso de computadores? Qual era seu uso preferido dos

computadores? (Jogos, leitura, internet, etc.?).

8. Seus amigos ou círculo de amizades compartilhavam da mesma possibilidade de acesso a

computadores ou aparelhos eletrônicos como videogames, etc.? Vocês se utilizavam de tais

equipamentos para brincar ou, já quando adolescentes, para diversão?

9. Além das atividades escolares obrigatórias, você mantinha alguma outra atividade

extracurricular, tanto dentro como fora da escola? Se sim, quais e com que frequência?

10. Como você decidiu cursar um curso na área da tecnologia da informação no ensino

superior? Quais foram suas motivações?

11. Havia alguma influência pessoal marcante (familiar, profissional de renome, etc.)?

12. Quais foram os fatores que lhe fizeram escolher a respectiva instituição de ensino?

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13. Durante os primeiros semestres do curso superior, qual foi sua percepção da área? Você

se identificou com o curso ou ainda havia dúvidas sobre sua escolha?

14. Você poderia descrever as atividades, projetos ou trabalhos que considera terem sido

marcantes para sua formação? Os trabalhos exigidos pelos professores eram desafiantes e

exigiam que você estudasse conteúdo fora das ementas das disciplinas? Se sim, descreva.

15. Você mantinha alguma atividade extracurricular dentro e/ou fora da universidade? Quais?

16. Você trabalhou e/ou fez estágios durante sua formação? De que maneira isso contribuiu

para sua formação ou trabalho de conclusão de curso?

17. Em que momento você começou a dançar ou fazer aulas de dança? Como você conciliava

esta atividade com os estudos? Após quanto tempo de prática de dança você começou a

lecionar aulas de dança?

18. No momento você cursa ou procura cursar alguma especialização ou pós-graduação?

3 TRAJETÓRIA PROFISSIONAL E MERCADO DE TRABALHO

1. Em quantas empresas você já trabalhou como profissional de TI? E como professor de

dança?

2. Você é financeiramente independente? Se sim, há quanto tempo?

3. Quais atividades exerce atualmente? Descreva.

4. Qual seu cargo ou atribuição atual na empresa em que trabalha e a quanto tempo o ocupa?

5. Como foi o processo de seleção? Quais fatores você acredita contribuíram para sua

contratação?

6. Como se deu sua passagem de praticante de dança a professor de dança?

7. Houve algum momento em que a atividade de professor de dança foi sua única fonte de

renda?

5 FORMA DE CONTRATAÇÃO

7. Que tipo de vínculo contratual vigora em ambas as atividades? CLT, PJ, informal, outros?

Qual destes tipos de vínculos foi predominante durante sua trajetória profissional?

4. É contratado por projeto ou período fixado em contrato? Se sim, qual é a média de tempo

do contrato ou projeto?

6 CONDIÇÔES E NATUREZA DO TRABALHO

1. Como é sua jornada de trabalho comumente? Você conseguiria descrever uma rotina ou

isso é variável?

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2. Como se dá a remuneração em ambas as atividades (Salário fixo mensal, renda variável,

etc.)?

3. Qual das duas atividades melhor remunera?

4. Você acha que o mercado remunera bem o profissional de TI?

Perguntas referentes à atividade em T.I:

5. Qual seu cargo e que posição hierárquica ocupa em sua empresa? Há planos de carreira

na empresa? Quais são as funções exercidas e cargos dos outros membros da sua equipe

ou setor?

6. Descreva o local de trabalho. Você executa todas as tarefas na empresa ou também leva

trabalho para casa?

7. Como é dividido o trabalho em sua equipe ou setor?

8. Como são tomadas as decisões em sua empresa? Qual seu grau de participação nessas

decisões?

9. A que mercado ou tipo de clientes sua empresa atende?

10. Qual o papel do cliente na sua atividade? Como se dá sua relação com esses clientes?

11. Qual é a natureza das atividades que executa (programação, hardware, manutenção,

etc.)?

12. Há controle sobre o seu trabalho? Como Se dá? Como você considera sua empresa em

relação ao grau de exigência e cobrança?

13. Você está sindicalizado? Qual sua opinião sobre a atuação de sindicatos em sua

atividade?

Perguntas referentes à atividade de professor de dança:

14. Dá aulas particulares ou em escolas? O que determina sua remuneração (número de

alunos, número de aulas, etc.)?

15. Se trabalha em escolas, descreva os locais de trabalho.

16. Como são promovidas e divulgadas as aulas? Você participa ativamente desse processo?

17. Há atividades não remuneradas, como participação em eventos, competições, etc., as

quais você acredita serem importantes para sua imagem profissional? Se sim, como isso

contribui para suas aulas?

18. Descreva como são temporalmente organizadas suas aulas e como são ministradas.

19. Quais são os perfis de seus alunos/clientes? O que eles buscam em suas aulas?

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6 NOVOS ASPECTOS DO TRABALHO: CRIATIVIDADE, AUTONOMIA, AUTODIDATISMO,

PROJETOS, TRABALHO EM EQUIPE

1. Haja vista as constantes mudanças e inovações no setor da tecnologia da informação,

como você se mantem atualizado?

2. Há problemas em seu trabalho que lhe exigem soluções criativas e/ou inovadoras? Se sim,

você poderia citar situações ou exemplos?

3. Há em sua empresa divisão de tarefas por projetos? Se sim, como e quem organiza esses

projetos? Qual é a sua participação? Ao termino de um projeto, você já sabe quais serão suas

atividades ou projetos futuros?

5. Espera-se de você soluções e tomadas de decisões autônomas? Você tem autonomia no

seu trabalho? Como?

6. Se o trabalho é organizado em equipes, como se dá a dinâmica de grupo? Como são

organizadas as equipes? Como se dá a alternância dos membros da equipe?

6 SENTIDO DO TRABALHO

1. Você observa alguma relação entre as duas atividades que exerce? Qual?

2. O que lhe incentiva a trabalhar na sua atividade de engenheiro? E na de professor de

dança?

3. Você está satisfeito com as possibilidades de desenvolver suas habilidades e aptidões

como engenheiro? Você acredita que o seu trabalho atual contribuí em que aspecto

profissional e/ou pessoal? Explique.

4. Você se sente confiante e satisfeito com os resultados do seu trabalho como engenheiro?

Se sente valorizado? Explique.

5. Repetir perguntas 3 e 4, mas em relação à atividade de professor de dança.

6. O que você mudaria em cada uma das atividades caso fosse possível?

7 PERSPECTIVAS DE FUTURO E VIDA PESSOAL

1. Como sua família e/ou círculo de amizades enxerga sua dupla atividade?

2. Quais são suas atividades de lazer? Elas estão relacionadas de alguma forma aos seus

trabalhos? Como?

3. Quais são seus projetos para o futuro em relação a ambas as atividades?