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110 RPCV (2015) 110 (593-594) 110-115 Utilização do cateter epidural em cadela portadora de bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz tipo II submetida a mastectomia total bilateral: relato de caso Use of epidural catheter in a bitch carrying Mobitz type II second-degree atrioventricular block underwent total bilateral mastectomy: a case report Liliane D. Medeiros 1 , Caroline M. Bastos 2 , Marcelo Abidu-Figueiredo 2 , Carlos A. Santos-Sousa 2 , Rodrigo Mencalha 1 1 Faculdade de Medicina Veterinária de Valença - FMVV, Valença, Rio de Janeiro, Brasil 2 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ- Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil. Resumo: A utilização de fármacos anestésicos tem sido associa- do a ocorrência de arritmias e complicações cardiovasculares. No presente trabalho foi relatado o caso de uma cadela portadora de bloqueio atrioventricular (BAV) de 2° grau Mobitz tipo II, detec- tado na avaliação cardiológica pré-cirúrgica, a qual foi submetida ao procedimento de mastectomia total bilateral. Em decorrência da urgência do procedimento optou-se pela realização da cirurgia de forma imediata. A cadela foi anestesiada com 6mg/kg de propofol e mantida sob vaporização de isoflurano. Ademais, foi inserido um cateter epidural entre o espaço intervertebral lombossacro sendo este posteriormente deslocado cranialmente até o dermátomo cor- respondente a terceira vértebra torácica. Através deste dispositi- vo foi administrando 2mg/kg de ropivacaína 1% e 0,1mg/kg de morfina 1% de modo a conferir adequada analgesia e reduzir as doses necessárias dos anestésicos gerais. Durante o procedimento cirúrgico, a arritmia manteve-se presente, com frequência cardíaca média de 37 batimentos por minuto, e arresponsiva a utilização de parassimpatolíticos (sulfato de atropina). As variáveis pressão arterial sistólica, diastólica e média se mantiveram dentro dos va- lores aceitáveis para a espécie ao longo de todo o ato cirúrgico. A abordagem do paciente com distúrbio de condução AV é de suma importância para o adequado planejamento anestésico-cirúrgico. As técnicas de bloqueios locorregionais surgem como valiosas ferramentas no que tange o controle da dor trans e pós-operatória, estabilidade hemodinâmica e ajuste adequado do plano anestésico. Palavras-chave: arritmias, cateter epidural, ropivacaína, anestesia Summary: The use of anesthetics has been associated with the occurrence of arrhythmias and cardiovascular complications. In this paper we report the case of a bitch carrying a Mobitz type II second-degree atrioventricular block (AVB) detected in the preop- erative cardiac evaluation, which was submitted to total bilateral mastectomy procedure. Due to the urgency of the procedure we opted for the surgery immediately. The dog was anesthetized with propofol 6mg/kg and maintained under isoflurane vaporization. Moreover, an epidural catheter was inserted between the lum- bosacral intervertebral space and this subsequently shifted cra- nially to the third thoracic vertebra corresponding dermatome. Through this device were administered 2mg/kg of ropivacaine 1% and 0,1 mg/kg of morphine 1% in order to give adequate analgesia and reduces the general anesthetics doses. During the surgical procedure, the arrhythmia remained present, with a heart rate average of 37 beats per minute, and the use of para- sympatholytic drugs (atropine) were unresponsive. The variables systolic, diastolic and mean arterial blood pressure remained in acceptable values throughout the surgery. The management of patients with AV conduction disturbance is of summary im- portance for the appropriate anesthetic and surgical planning. Locoregional anesthesia techniques emerge as valuable tools in terms of trans and postoperative pain control, hemodynamic sta- bility and adequate adjustment of anesthetic depth. Keywords: arrhythmias, epidural catheter, ropivacaine, an- esthesia Introdução O bloqueio cardíaco é um distúrbio da condução do impulso que pode ser permanente ou transitório, secun- dário a um comprometimento anatômico ou funcional. Pode ocorrer em qualquer local no qual impulsos elé- tricos sejam conduzidos, entretanto, é mais frequente entre o nodo sinoatrial (SA) e o átrio (bloqueio do SA), entre átrios e ventrículos (bloqueios atrioventriculares) e dentro do ventrículo (bloqueios intraventriculares) (Wogan et al., 1993; Barold, 2002). O bloqueio atrioventricular (BAV) Mobitz tipo II é o mais avançado grau de bloqueio que ocorre na junção atrioventricular (AV), feixe de His, ou abaixo, poden- do inclusive progredir até ao bloqueio cardíaco total. As causas incluem fibrose idiopática, estenose heredi- tária do feixe de His, cardiopatia hipertrófica, infiltra- ção neoplásica metástica e desequilíbrios eletrolíticos (Wogan et al., 1993). Tal enfermidade é uma alteração eletrocardiográfica significativamente grave, pois pode *Correspondência: [email protected] Centro de Ensino Superior de Valença - Faculdade de Medicina Veterinária de Valença, CEP: 27600-000, Valença, Rio de Janeiro, Brasil. Tel: + 55 (24) 2453-1888.

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Utilização do cateter epidural em cadela portadora de bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz tipo II submetida a mastectomia total bilateral: relato de caso

Use of epidural catheter in a bitch carrying Mobitz type II second-degree atrioventricular block underwent total bilateral mastectomy: a case report

Liliane D. Medeiros1, Caroline M. Bastos2, Marcelo Abidu-Figueiredo2,Carlos A. Santos-Sousa2, Rodrigo Mencalha1

1Faculdade de Medicina Veterinária de Valença - FMVV, Valença, Rio de Janeiro, Brasil2Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ- Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil.

Resumo: A utilização de fármacos anestésicos tem sido associa-do a ocorrência de arritmias e complicações cardiovasculares. No presente trabalho foi relatado o caso de uma cadela portadora de bloqueio atrioventricular (BAV) de 2° grau Mobitz tipo II, detec-tado na avaliação cardiológica pré-cirúrgica, a qual foi submetida ao procedimento de mastectomia total bilateral. Em decorrência da urgência do procedimento optou-se pela realização da cirurgia de forma imediata. A cadela foi anestesiada com 6mg/kg de propofol e mantida sob vaporização de isoflurano. Ademais, foi inserido um cateter epidural entre o espaço intervertebral lombossacro sendo este posteriormente deslocado cranialmente até o dermátomo cor-respondente a terceira vértebra torácica. Através deste dispositi-vo foi administrando 2mg/kg de ropivacaína 1% e 0,1mg/kg de morfina 1% de modo a conferir adequada analgesia e reduzir as doses necessárias dos anestésicos gerais. Durante o procedimento cirúrgico, a arritmia manteve-se presente, com frequência cardíaca média de 37 batimentos por minuto, e arresponsiva a utilização de parassimpatolíticos (sulfato de atropina). As variáveis pressão arterial sistólica, diastólica e média se mantiveram dentro dos va-lores aceitáveis para a espécie ao longo de todo o ato cirúrgico. A abordagem do paciente com distúrbio de condução AV é de suma importância para o adequado planejamento anestésico-cirúrgico. As técnicas de bloqueios locorregionais surgem como valiosas ferramentas no que tange o controle da dor trans e pós-operatória, estabilidade hemodinâmica e ajuste adequado do plano anestésico.

Palavras-chave: arritmias, cateter epidural, ropivacaína, anestesia

Summary: The use of anesthetics has been associated with the occurrence of arrhythmias and cardiovascular complications. In this paper we report the case of a bitch carrying a Mobitz type II second-degree atrioventricular block (AVB) detected in the preop-erative cardiac evaluation, which was submitted to total bilateral mastectomy procedure. Due to the urgency of the procedure we opted for the surgery immediately. The dog was anesthetized with propofol 6mg/kg and maintained under isoflurane vaporization. Moreover, an epidural catheter was inserted between the lum-bosacral intervertebral space and this subsequently shifted cra-

nially to the third thoracic vertebra corresponding dermatome. Through this device were administered 2mg/kg of ropivacaine 1% and 0,1 mg/kg of morphine 1% in order to give adequate analgesia and reduces the general anesthetics doses. During the surgical procedure, the arrhythmia remained present, with a heart rate average of 37 beats per minute, and the use of para-sympatholytic drugs (atropine) were unresponsive. The variables systolic, diastolic and mean arterial blood pressure remained in acceptable values throughout the surgery. The management of patients with AV conduction disturbance is of summary im-portance for the appropriate anesthetic and surgical planning. Locoregional anesthesia techniques emerge as valuable tools in terms of trans and postoperative pain control, hemodynamic sta-bility and adequate adjustment of anesthetic depth.

Keywords: arrhythmias, epidural catheter, ropivacaine, an-

esthesia

Introdução

O bloqueio cardíaco é um distúrbio da condução do impulso que pode ser permanente ou transitório, secun-dário a um comprometimento anatômico ou funcional. Pode ocorrer em qualquer local no qual impulsos elé-tricos sejam conduzidos, entretanto, é mais frequente entre o nodo sinoatrial (SA) e o átrio (bloqueio do SA), entre átrios e ventrículos (bloqueios atrioventriculares) e dentro do ventrículo (bloqueios intraventriculares) (Wogan et al., 1993; Barold, 2002).

O bloqueio atrioventricular (BAV) Mobitz tipo II é o mais avançado grau de bloqueio que ocorre na junção atrioventricular (AV), feixe de His, ou abaixo, poden-do inclusive progredir até ao bloqueio cardíaco total. As causas incluem fibrose idiopática, estenose heredi-tária do feixe de His, cardiopatia hipertrófica, infiltra-ção neoplásica metástica e desequilíbrios eletrolíticos (Wogan et al., 1993). Tal enfermidade é uma alteração eletrocardiográfica significativamente grave, pois pode

*Correspondência: [email protected] de Ensino Superior de Valença - Faculdade de Medicina Veterinária de Valença, CEP: 27600-000, Valença, Rio de Janeiro, Brasil. Tel: + 55 (24) 2453-1888.

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reduzir o débito cardíaco e inclusive culminar a morte do indivíduo (Tomiyasu et al., 1999).

Na clínica de animais de companhia, a incidência do BAV de segundo grau é relativamente alta, sendo a exposição aos fármacos anestésicos, tal como o halota-no, isoflurano, sevoflurano, desflurano uma das princi-pais causas dessas intercorrências (Nunes et al., 2004; Trujillo et al., 2005; Ferreira et al., 2008). Dessa for-ma, é determinante ao anestesista amplo conhecimento da farmacologia e técnicas anestésicas de modo a ter o completo entendimento sobre a dinâmica orgânica do paciente a ser anestesiado.

Pacientes submetidos à anestesia geral, comumente já apresentam alterações importantes em sua fisiologia, portanto, podem sob efeitos de fármacos, desenvolve-rem distúrbios fisiológicos importantes e até incoercí-veis, se não identificados e tratados a tempo. É nesse sentido, que se torna possível afirmar que não se uti-liza técnicas anestésicas, mesmo as mais simples, sem que se acompanhem os sinais vitais do paciente, dando assim uma maior segurança ao ato anestésico, pois, permite identificar a tempo uma eventual alteração que coloque em risco a vida do animal.

O acompanhamento da frequência e ritmo cardíacos é de extrema importância na anestesia, principalmen-te em pacientes que dão entrada no centro cirúrgico já com histórico de alterações de condução. Fato este que atribui uma maior responsabilidade ao anestesista que terá que estabelecer técnicas corretivas e a utili-zação de fármacos que não intensifiquem o problema (Nunes, 2002).

Dentre os conceitos da moderna anestesia, o uso de bloqueios locorregionais surgem como uma valiosa ferramenta de modo a diminuir as doses dos anesté-sicos gerais, sabidamente depressores do sistema car-diovascular de maneira dose-dependente, portanto, o adequado conhecimento das técnicas de bloqueios anestésicos é de suma importância de modo a fornecer analgesia, relaxamento muscular e minimizar os efei-tos deletérios da anestesia geral.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso da utili-zação do cateter epidural em uma cadela portadora de bloqueio atrioventricular (BAV) de 2° grau Mobitz tipo II, detectado na avaliação cardiológica pré-cirúrgica, a qual foi submetida ao procedimento de mastectomia total bilateral em função da presença de nódulos ul-cerados.

Relato de Caso

Uma cadela mestiça de seis anos de idade foi aten-dida pelo setor de oncologia de uma clinica veterinária privada na cidade do Rio de Janeiro. As queixas prin-cipais relatadas pelos proprietários foram de emagre-cimento progressivo e presença de tumores na região mamária. Ao exame físico, observou-se intenso san-gramento em diversos nódulos mamários em função de áreas de ulcerações. Após realização dos exames físico e complementares foi constatada a presença de uma intensa leucocitose (92.800 cells/mm3) com des-vio de neutrófilos nucleares a esquerda regenerativo e presença de bradicardia sinusal com marca-passo mi-gratório e bloqueio atrioventricular de 2° grau Mobitz tipo II (Figura 1). Os demais parâmetros clínicos e laboratoriais estavam dentro da faixa de normalidade para a espécie.

Posteriormente, o animal em questão foi encami-nhado para o serviço especializado em cirurgia geral da clínica supracitada, e após elucidações quanto ao procedimento cirúrgico-anestésico e assinatura do consentimento esclarecido, a cadela foi submetida ao procedimento de mastectomia total bilateral e ovarios-salpingohisterectomia.

Após minuciosa avaliação pré-anestésica, foi optado pelo profissional anestesiologista abolir a etapa de me-dicação pré-anestésica, pois, em função das alterações prévias cardiovasculares, achou-se prudente evitar o uso de mais fármacos depressores do sistema citado. Portanto, após tricotomia, assepsia e punção venosa o animal foi submetido à pré-oxigenação com oxigênio a 100% de modo a aumentar a PaO

2 e consequentemente

as reservas orgânicas deste gás. Na sequência, proce-deu-se a indução anestésica com 6mg/kg de propofol, por via intravenosa, e, após relaxamento laríngeo e abolição dos reflexos protetores o animal foi intuba-do com sonda endotraqueal com balonete adequada ao porte físico. Dessa forma, a cadela foi conectada ao circuito anestésico com reabsorvedor de gás carbô-nico e a manutenção anestésica foi realizada através da oferta de isoflurano em oxigênio a 100%. O plano anestésico foi regulado com base nos estágios de Gue-del e a monitoração realizada através de um monitor multiparamétrico com os módulos de eletrocardiogra-fia, oximetria de pulso com pletismografia, pressão ar-terial não invasiva e temperatura.

Figura 1 - Traçado eletrocardiográfico registrado em derivação DII e amplitude 2N com velocidade de 25 mm/s registrado antes do procedimento cirúrgico. As setas mostram o bloqueio atrioventricular de 2° grau Mobitz tipo II

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De modo a atender as exigências da moderna aneste-sia, foi procedida a realização do bloqueio do neuroeixo através da inserção de um cateter epidural. Após trico-tomia da região lombossacra e rigorosa assepsia, foi introduzido um cateter no espaço epidural sendo este dispositivo deslocado cranialmente até o dermátomo correspondente à terceira vértebra torácica (Figura 2). Tendo estabelecido essa via de administração, foi injeta-da uma solução de cloridrato de ropivacaína 1% (2mg/kg) e sulfato de morfina 1% (0,1mg/kg) sem conservan-tes de modo a fornecer analgesia e adequado relaxamen-to muscular.

Durante todo o procedimento cirúrgico, a frequência cardíaca se manteve entre 37±4 batimentos por minuto com presença de bloqueio atrioventricular de 2 grau Mo-

bitz tipo II; a pressão arterial sistólica, diastólica e mé-dia oscilaram entre 95±7 mmHg, 63±6 mmHg e 73±3, respectivamente. As variáveis saturações de oxigênio na hemoglobina (SPO

2), frequência respiratória e tempera-

tura corporal se mantiveram em níveis fisiológicos du-rante o ato operatório. Vale ressaltar que a administração de sulfato de atropina durante o procedimento anestési-co-cirúrgico foi procedida de modo a tentar controlar a bradicardia, entretanto, não houve êxito farmacológico.

Após o término do procedimento, o animal recebeu alta e foi encaminhado ao serviço de internação o qual permaneceu por 72 horas. Neste período, a cadela per-maneceu com o cateter epidural para adequada analge-sia, onde fora administrado 0,1 mg/kg de morfina 1% (a cada 24 horas) (Figura 3). Ademais, foram realizados

Figura 2 – A: Introdução da agulha espinhal; B: Mensuração do tamanho do cateter epidural; C: Introdução do cateter epidural

Figura 3 - A: Administração pós-operatória de morfina por via epidural; B: Retirada do cateter no dia da alta médica.

Figura 4 - Traçado eletrocardiográfico registrado em derivação DII e amplitude 2N com velocidade de 25 mm/s registrado após o procedimento cirúrgico. A seta mostra o bloqueio atrioventricular de 2° grau Mobitz tipo II.

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eletrocardiogramas seriados de modo a acompanhar o desenvolvimento da arritmia, e, em todos os exames, o padrão arrítmico manteve-se presente (Figura 4).

Durante todo o período de internação o animal foi ri-gorosamente monitorado no que tange o controle da dor através do uso da Escala Analgésica da Universidade de Melbourne. Não houve necessidade de intervenção analgésica ou alteração do protocolo em questão.

Foi solicitado ao proprietário do animal o acompanha-mento cardiológico periódico, entretanto, até o presente momento não houve retorno.

Discussão

O Bloqueio atrioventricular de segundo grau visí-vel esta relacionado a uma diminuição da condução atrioventricular (AV) (Barold e Herweg, 2012). A li-teratura contém numerosas definições de bloqueio AV de segundo grau, especialmente o bloqueio AV Mobitz tipo II de segundo grau. O uso difundido de inúmeras definições do bloqueio do tipo II é o principal respon-sável por muitos problemas quanto ao diagnóstico des-ta condição clínica. Ainda segundo Barold e Herweg (2012) o bloqueio AV de segundo grau tipo II descre-ve o que parece ser uma condução tudo-ou-nada sem alterações visíveis no tempo de condução AV, antes e após o impulso bloqueado. O diagnóstico do bloqueio do tipo II requer uma taxa de despolarização sinusal estável, pois, a ausência de desaceleração sinusal é um critério importante neste bloqueio tendo em vista que uma onda vagal pode causar desaceleração sinusal si-multânea e bloqueio nodal AV, que pode se assemelhar superficialmente ao bloqueio de tipo II. Estes dados corroboram com os observados no presente relato de caso o qual observou-se uma estabilidade sinusal em todos os traçados observados.

Segundo Barold (2002), tal condição clínica é mar-cada pela presença de um prolongamento progressivo, ciclo a ciclo, no tempo de condução atrioventricular, até o aparecimento de uma despolarização atrial sem resposta ventricular. O conjunto de ciclos com pro-longamentos dos intervalos PR, até a perda da res-posta ventricular, constitui os chamados períodos de Wenckebach. O bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz tipo II, é identificado pela presença de um padrão atrioventricular variável, porém, sempre mostrando um tempo de condução atrioventricular fixo nos batimentos que apresentam resposta ventricular. O bloqueio da condução Mobitz II é, geralmente, inter-mitente e, normalmente ocorre dentro do nó atrioven-tricular.

As anormalidades de condução AV podem ser cau-sadas por tônus vagal excessivo, fármacos (digitálicos, bloqueadores de canais de cálcio, anestésicos gerais, agonistas alfa-2 adrenérgicos, etc) e doença intrínseca do nodo AV e/ou do sistema de condução intraventri-cular. O bloqueio AV vagalmente mediado pode ser

definido como um bloqueio AV paroxístico, localiza-do dentro do nó AV e associada à diminuição da taxa de despolarização. Todos os tipos de bloqueio AV de segundo grau podem estar presentes (Alboni et al., 2013).

Na clínica de animais de companhia, a incidência do BAV de segundo grau é relativamente alta (Saunders et al., 2003; Voet et al., 2003) e segundo Schrope e Kelch (2006) O implante de marcapasso deve ser fortemente considerada em todos os cães com bloqueio persistente de segundo ou terceiro grau independentemente de si-nais clínicos evidentes. Se o tratamento médico for jus-tificada, medicamentos vagolíticos pode ser a melhor escolha. A exposição aos fármacos anestésicos parece ser uma das causas mais importantes na instalação do BAV em pacientes livre de enfermidades primárias nas vias de condução elétrica do coração. (Nunes et al., 2004; Trujillo et al., 2005; Ferreira et al., 2008).

Os anestésicos gerais estão entre os fármacos que mais alteram a fisiologia do sistema cardiovascular (Day e Muir, 1994; Voss et al., 2002). Dessa forma, todo o planejamento anestésico-cirúrgico deve ser ri-gorosamente calculado de modo a evitar intercorrên-cias no período trans ou pós-operatório. Neste procedi-mento, foi escolhido o propofol como fármaco indutor da anestesia em função de sua menor influência nas vias de condução cardíaca do coração do cão (Ikeno et al., 1999; Warpechowski et al., 2010).

Com a inserção dos novos conceitos que norteiam a anestesia moderna, a anestesia balanceada ou mul-timodal surge como uma grande alternativa para mi-nimizar os efeitos deletérios dos anestésicos gerais (Ilkiw, 1999; Tonner, 2003). No presente estudo preco-nizou-se atender os princípios da anestesia balanceada a fim de evitar maiores repercussões sobre a dinâmica orgânica do animal.

Os bloqueios locorregionais compõem o entendi-mento da moderna anestesia que tem como objetivo a associação de fármacos e/ou técnicas de modo a explo-rar efeitos sinérgicos, reduzindo dessa forma a quan-tidade ofertada dos anestésicos gerais sabidamente promotores de efeitos cardiodepressores. A anestesia balanceada, portanto, está cada vez mais presente no cotidiano do anestesiologista propiciando inquestioná-veis benefícios como analgesia, relaxamento muscular, hipnose e diminuição do tempo de recuperação anesté-sico-cirúrgico (Ilkiw, 1999; Tonner, 2003; Columbano et al., 2012; Wakoff et al., 2013).

A anestesia epidural é a técnica de bloqueio locorre-gional mais utilizada na rotina médico-veterinária con-ferindo potente analgesia retroumbilical e relaxamento muscular (Valverde, 2008). A partir desta consagrada técnica, surgiu a possibilidade da implantação de um dispositivo biocompatível no espaço epidural, de modo que de forma contínua fosse estabelecido uma via im-portante para administração de fármacos.

A utilização do cateter epidural é uma das ferramen-tas mais eficazes para controle e alívio da dor pós-ope-

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ratória. O cateter epidural é um dispositivo de material biocompatível, descartável, radiopaco, resistente e fle-xível, que se ajusta facilmente às particularidades ana-tômicas da coluna vertebral. A agulha apropriada para a punção epidural é de ponta romba, com fundo cego, dificultando dessa forma a canulação de vasos sanguí-neos ou a perfuração da dura-máter. Em cães este ca-teter é introduzido por meio da punção com agulha de Tuohy no um espaço intervertebral lombossacro e des-locado cranialmente até a região do dermátomo cor-respondente a área desejada. As principais indicações da cateterização epidural se relacionam a cirurgias cruentas que cursem com dor de magnitude moderada a severa em região abdominal, torácica, membros pél-vicos e torácicos (Swalander et al., 2000). No presente relato de caso, optou-se pelo uso desta técnica em fun-ção do alto nível de dor relacionado ao procedimento cirúrgico associado ao fato da alteração de condução AV. Os profissionais envolvidos com o caso, visaram minimizar ao máximo a exposição ao gás anestésico de escolha (isoflurano) através do completo bloqueio anestésico do neuroeixo. Durante todo o procedimento os parâmetros cardiovasculares e respiratórios perma-neceram dentro de padrões de normalidade conotando dessa forma uma excelente estabilidade de plano anes-tésico.

O uso de analgésicos opióides por via epidural está relacionado com a diminuição da concentração alveo-lar mínima dos anestésicos gerais (Muir et al., 2003; Credie et al., 2010; Campagnol et al., 2012), dessa forma, em associação ao uso da ropivacaína em nosso estudo, foi possível a manutenção superficial do plano anestésico.

As principais intercorrências observadas com a cate-terização epidural se relacionam ao deslocamento in-devido do cateter, obliteração, dobras e falha na técni-ca, e os efeitos adversos farmacológicos estão de acor-do com a escolha das drogas em questão (Swalander et al., 2000). Vale ressaltar que neste relato nenhuma das intercorrências e ou efeitos adversos supracitados foram observados.

O sulfato de atropina é uma droga parassimpatolítica rotineiramente utilizada em âmbito cirúrgico (Winter et al., 2011). No presente relato, utilizou-se este fárma-co no período transoperatório de modo a tentar estabi-lizar o ritmo AV. Em cães com bloqueio AV de primeiro grau ou segundo grau Mobitz tipo I, a falta de condu-ção elétrica adequada através do nó AV é tipicamente um resultado do aumento do tônus do parassimpático, o que provoca um aumento na dispersão do grau de refratariedade do AV. Após a administração de atropina nestes cães, a condução AV tende a voltar ao normal. Em cães portadores de bloqueio AV de segundo grau Mobitz tipo II é mais frequentemente observarmos causas associadas a doença do nodo AV orgânica e, geralmente, estes não respondem à administração de atropina (Moise, 2000). Tal como esperado, no presen-te relato, não observou-se nenhuma melhoria na con-

dução ou ritmo cardíaco após a administração de 0,04 mg/kg de sulfato atropina por via intravenosa. Ainda de acordo com a literatura, fármacos alternativos como a teofilina os antagonistas de adenosina, e isoprotere-nol podem ser utilizados (Moise, 2000). Neste caso clí-nico, optou-se por não administrar outros fármacos de eleição, pois, apesar da severa bradicardia e alteração de ritmo AV a pressão arterial manteve-se dentro de valores considerados satisfatórios.

Conclusão

Dessa forma, a abordagem do paciente com dis-túrbio de condução AV é de suma importância para o adequado planejamento anestésico-cirúrgico. As técni-cas de bloqueios locorregionais, como o bloqueio do neuroeixo, surgem como valiosas ferramentas no que tange o controle da dor trans e pós-operatória, estabili-dade hemodinâmica e ajuste adequado do plano anes-tésico. Não obstante, vale ressaltar a refratariedade do bloqueio AV de segundo grau Mobitz tipo II as drogas parassimpatolíticas como o sulfato de atropina.

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