valor116-2009-atos secretos e normas

Upload: fabio-wanderley-reis

Post on 14-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 VALOR116-2009-Atos Secretos e Normas

    1/3

    A cereja do bolo?

    Fbio Wanderley Reis

    Em conversa sobre os atos secretos do Senado, algum salientava

    com exasperao que se trata do descumprimento de uma norma que visa a

    permitir a vigilncia quanto observncia das normas. Com efeito, h algo

    de peculiar e revelador nos fatos agora denunciados. Fazem-se normas para

    assegurar conduta ajustada ao bem pblico; como tais normas com

    frequncia no so cumpridas, preciso vigiar seu cumprimento. Faz-se

    ento norma que manda dar publicidade s aes relevantes; mas as

    pessoas deixam de cumprir tambm essa norma. Que fazer? Normamandando cumprir as normas?

    O que a situao contm de confuso e mesmo paradoxal tem a ver

    com o fato de que normas cuja efetividade dependa de vigilncia so

    precrias como normas, no sendo objeto da adeso pronta e supostamente

    espontnea que prescinde da reflexo e do clculo. A vigilncia, trazendo a

    ameaa de sanes de um tipo ou outro (punies ou prmios) conforme a

    conduta se afaste das normas ou se ajuste a elas, visa justamente a impor oclculo nas decises sobre como agir, o que implica salientar nessas

    decises as consideraes de interesse: se fao isto ou aquilo, que em

    princpio corresponde ao meu interesse, sofro consequncias negativas (vou

    preso...) e meu interesse fortemente contrariado, melhor no fazer a

    menos que possa esconder o meu ato.

    Num livro de anos atrs, O Surgimento do Racionalismo

    Ocidental, Wolfgang Schluchter prope a distino entre moralidade,entendida como algo que diz respeito ao indivduo, e tica, entendida como

    de natureza coletiva e, em alguma medida, convencional. Apesar do

    paradoxo envolvido na ideia importante de uma moralidade no

    convencional, em que o indivduo pondere os princpios de sua conduta de

    maneira reflexiva e autnoma perante a coletividade, a questo prvia e

    decisiva de como se caracteriza, do ponto de vista moral-tico, a poltica

    (ou a economia, ou a vida privada em geral) a de tornar convencionais

    certas regras fazer que elas se transformem propriamente numa tica, nosentido de Schluchter, difundindo-se na coletividade e tornando

    1

  • 7/30/2019 VALOR116-2009-Atos Secretos e Normas

    2/3

    automtica, natural e irrefletida a adeso a elas no plano da moralidade dos

    indivduos, justamente, em grau importante, pela presso difusa da

    coletividade.

    A indagao complicada que os atos secretos sugerem a de como

    lidar com as limitaes da tica coletiva no condicionamento das aes dos

    indivduos (de sua moralidade), o que envolve o reconhecimento de que

    essa tica pode ela prpria ser precria como tal, ou seja, em sua difuso e

    penetrao junto coletividade. Resta, nesse caso, a possibilidade de que,

    em vez de contar com a adeso moral s normas e seus efeitos na

    motivao das pessoas, a intensificao da vigilncia (que supe o

    artificialismo da ao legal e institucional da aparelhagem do Estado)

    altere apropriadamente essa motivao por meio dos fatores cognitivos

    associados ao clculo dos interesses. Com a eficcia da fiscalizao e das

    sanes ocorrendo de maneira duradoura e corroborando regularmente as

    expectativas correspondentes que os agentes venham a desenvolver, pode-

    se eventualmente chegar ao que promete velho preceito sociolgico:

    expectativas que se reiteram e corroboram acabam por se transformar em

    prescries ou normas, e o resultado seria propriamente uma cultura ou

    tica efetiva.

    Infelizmente, alm da perspectiva de longo prazo e o que pode conter

    de desalentador, h pelo menos um aspecto adicional nas complicaes do

    assunto. Pois a aposta em percepes e expectativas (cognitivas) que

    acabem por transformar-se em boas normas esquece algo que as anlises e

    pesquisas mostram h tempos, isto , o fato de que fatores de ordem

    cognitiva remetem a um problema de coordenao que se acha na raiz da

    prpria precariedade da situao de que se parte. Se a consolidao das

    normas em normas reais e mesmo a eficcia da vigilncia dependem

    amplamente da ao dos demais, que tende geralmente a ser ao esperta

    e orientada pelo interesse prprio, estarei sendo simplesmente otrio ou

    trouxa ao agir de maneira moral e condizente com uma tica que na

    realidade no prevalece. Em outras palavras, at mesmo a percepo que eu

    chegue a ter da conexo entre minha ao imediata e meu interesse maior

    depender da percepo do grau em que existe uma cultura ou tica efetiva.

    2

  • 7/30/2019 VALOR116-2009-Atos Secretos e Normas

    3/3

    Como no cabe contar com a converso mais ou menos sbita e

    convergente de todos, no h alternativa verdadeira aposta nos

    artificialismos da ao estatal, com seu componente repressivo, e no

    eventual amadurecimento e frutificao culturais deles em direo

    propcia. De toda maneira, o problema a esclarecer no o de que se

    chegue a ter atos secretos no Senado (que surgem, de certa forma, como

    uma espcie de cereja do bolo dos nossos muitos desregramentos menos ou

    mais recentes), mas antes o do que estar por detrs de algo mais que aqui

    tenho lembrado s vezes: o fato de que o Brasil, em pesquisas que se

    repetem h anos, com sobras o campeo mundial na proporo dos que

    pensam que, em geral, no se pode confiar nas pessoas. O que sugere uma

    cultura errada j enraizada com fora especial.

    Valor Econmico, 22/6/2009

    3