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UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU
Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao Fsica
Doutorado
ELISABETE DOS SANTOS FREIRE
A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS
E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS
Orientadora: Prof. Dr. Maria Luiza de Jesus Miranda
So Paulo
Junho 2012
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UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU
Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao Fsica
Doutorado
ELISABETE DOS SANTOS FREIRE
A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS
E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS.
Tese de Doutorado apresentada
Universidade So Judas Tadeu, como
requisito parcial obteno do grau de
Doutora em Educao Fsica, sob a
orientao da ProfaDraMaria Luiza de Jesus
Miranda.
So Paulo
Junho 2012
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Freire, Elisabete dos SantosF866d A construo de valores nas aulas de Educao Fsica: habitus e illusio
no cotidiano de trs professoras / Elisabete dos Santos Freire. -- SoPaulo, 2012.
186 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Maria Luiza de Jesus Miranda.Tese (doutorado) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2012.
1. Educao fsica escolar. 2. Educao fsica - Valores. 3. Professoresde educao fsica. I. Freire, Elisabete dos Santos. II. Universidade SoJudas Tadeu, Programa de Ps-Graduao stricto sensu em Educao
Fsica. III. Ttulo
CDD 22 -- 613.2082
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca daUniversidade So Judas Tadeu
Bibliotecrio: Ricardo de Lima - CRB 8/7464
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ELISABETE DOS SANTOS FREIRE
A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUS
E ILLUSIO NO COTIDIANO DE TRS PROFESSORAS.
Tese de Doutorado apresentada Universidade So Judas Tadeu, como
requisito parcial obteno do grau de
Doutora em Educao Fsica, sob a
orientao da ProfaDraMaria Luiza de Jesus
Miranda.
Banca Examinadora
_______________________________________________Profa. Dra. Maria Luiza de Jesus Miranda
Universidade So Judas Tadeu
_______________________________________________Profa. Dra. Maria Amlia Santoro Franco
Universidade Catlica de Santos
_______________________________________________Profa. Dra. Jeane Barcelos SorianoUniversidade Estadual de Londrina
_______________________________________________Profa. Dra. Sheila Aparecida Pereira dos Santos Silva
Universidade So Judas Tadeu
_______________________________________________Profa. Dra. Graciele Massoli Rodrigues
Universidade So Judas Tadeu
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Aos meus queridos Caio, Luisa, Guilherme e
Valdison, que me ensinaram o significado do
amor.
Aos meus pais, Jesuino e Iracy, que no
tiveram acesso escola e que, no entanto, me
ensinaram a amar o conhecimento.
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Agradecimentos
Meu primeiro agradecimento no poderia deixar de ser para a Profa. Maria
Luiza de Jesus Miranda. Mais que orientadora, voc tem sido uma grande amiga,
uma parceira para todas as situaes. Muito obrigada por acreditar mais em mim
que eu mesma.
Agradeo aos diretores da escolas acompanhadas durante a pesquisa, que
me receberam de forma atenciosa e me confiaram observar professores e alunos.
Da mesma forma, agradeo aos estudantes das turmas observadas, que
foram sempre muito gentis comigo e que me deixam saudosa.
Agradeo s trs professoras participantes da pesquisa pela disponibilidade,
pelo carinho e pelo interesse que demonstraram em todas as etapas de
investigao. Sem vocs, este estudo no poderia ser realizado. Espero poder
retribuir toda a ateno que tm me dedicado.
Las Freire de Oliveira e Alessandra Barreto pela ajuda na difcil tarefa de
transcrever as entrevistas realizada.
Flaviana Felleger Molina, uma amiga que abriu mo de suas prprias
necessidades para me ouvir e compartilhar crenas e ideias. Voc tem sido um
grande exemplo a seguir.
Quero agradecer a todos os meus amigos de trabalho na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, que compartilham comigo alegrias e angstias, sucessos e
frustraes, vividos por todos que se dedicam intensamente ao desafio de viver.
s minhas amigas Valeria Grabellos Peres e Clia Maria Pereira de Queiroz
pelas conversas pessoais e virtuais. Agradeo pela possibilidade de desabafar e de
ouvi-las e pela presena em todos os momentos.
Sabrina Teixeira, que tanto contribuiu para a realizao deste estudo. Com
voc pude experimentar a interligao entre aprender e ensinar. Agora difcil saber
quem ensina e quem aprende.
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Agradeo tambm aos amigos, professores, gestores e funcionrios, da
Universidade So Judas Tadeu. Agradeo pela confiana em minha competncia e
pela construo de um ambiente de respeito, dedicao e bom humor.
Agradeo tambm Profa. Luciana Venncio, cujo trabalho comecei a
admirar h alguns anos e que hoje considero uma amiga. Muito obrigada por toda
ajuda na realizao deste trabalho.
Profa. Dra. Marilia Velardi pelas sugestes feitas durante a construo
deste trabalho, que foram essenciais para modificar minhas concepes de cincia e
que hoje se refletem no texto final apresentado.
s professoras Doutoras Maria Amlia Lacerda e Sheila Aparecida Pereira
Santos Silva, pelas sugestes, crticas e comentrios apresentados durante a
elaborao do projeto e por atenderem meu convite para participar de banca de
defesa de doutorado.
s Professoras Doutoras Graciele Massoli Rodrigues e Regina Brando por
gentilmente aceitarem participar da banca de defesa de doutorado.
todos os funcionrios e professores que fazem parte do Programa de Ps-
Graduao Stricto Sensu da Universidade So Judas Tadeu, que contriburam direta
ou indiretamente para a concluso deste trabalho.
Agradeo tambm Profa. Dra. Rita de Cassia Garcia Verenguer, com quem
tenho orgulho de trabalhar, conviver e aprender h 15 anos. Obrigada por estar
sempre ao meu lado e por confiar em mim.
Por fim, agradeo minha grande amiga, Profa. Dra. Jeane Barcelos Soriano.
Sem sua ajuda, provavelmente no teria realizado o mestrado e no estaria hoje na
carreira acadmica. O que dizer? Muito obrigada, minha amiga, por me ouvir quando
mais precisava, por ser meu exemplo e por me apoiar em todos os momentos.
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Deve-se escrever da mesma maneira como as
lavadeiras l de Alagoas fazem seu ofcio. Elas
comeam com uma primeira lavada, molham a
roupa suja na beira da lagoa ou no riacho torcem
o pano, molham-no novamente, voltam a torcer.
Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas
vezes. Depois enxaguam, do mais uma
molhada, agora jogando a gua com a mo.
Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e do
uma torcida e mais outra, torcem at no pingar
do pano uma s gota. Somente depois de feito
tudo isso que elas dependuram a roupa lavadana corda ou no varal, para secar. Pois quem se
mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A
palavra no foi feita para enfeitar, brilhar como
ouro falso; a palavra foi feita para dizer.
Graciliano Ramos
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RESUMO
Valores so contedos das aulas de Educao Fsica, disseminados por
alunos e professores, de forma consciente ou inconsciente. Entretanto, embora
muito se fale sobre a relao entre Educao Fsica e construo de valores, pouco
sabemos sobre como essa construo se d no cotidiano das aulas e como esses
valores se apresentam no currculo. Mediar a construo de valores no depende
apenas da vontade, da competncia ou da boa inteno do professor de Educao
Fsica. Inmeros fatores agem nessa construo, dificultando a interveno docente.
Pesquisas tm indicado que alguns professores identificam dificuldades para
implementar a construo de valores. Quais so as dificuldades percebidas poresses professores? Qual a origem dessas dificuldades? Para responder estas
questes, elaborei o presente estudo com o objetivo de compreender o que dificulta
o trabalho de professores que se propem a fazer das aulas de Educao Fsica um
espao para a construo dos sistemas de valores de seus alunos. A Hermenutica
Crtica constitui a base epistemolgica deste estudo, no qual procurei me aproximar
do cotidiano escolar, local onde as dificuldades tornam-se concretas. Acompanhei a
prtica de trs professoras, escolhidas intencionalmente. Para buscar asinformaes necessrias no cotidiano escolar dessas professoras utilizei como
recursos a observao e a entrevista semiestruturada com professoras e alunos.
Constru notas de campo para registro de observaes das aulas e de aspectos
relevantes das entrevistas, que foram devidamente gravadas e transcritas. A partir
da anlise dos dados identifiquei diversas dificuldades enfrentadas, relacionadas
aspectos internos e externos s professoras, como aquelas relacionadas
infraestrutura e aos recursos materiais disponveis na escola; organizao escolar;aos valores e atitudes da equipe escolar; concepo de educao fsica presente
na cultura escolar; elaborao e aplicao das aulas de educao fsica; ao
relacionamento com os alunos ; e ao estado emocional das professoras. Contudo
possvel identificar a existncia de uma interrelao entre interioridade e
exterioridade, medida que as concepes das professoras sobre as possibilidades
de estimular os alunos a construir valores na escola constituem seu habitus
profissional e interferem nas expectativas construdas e na percepo das
dificuldades enfrentadas. O habitus, numa relao dialtica com fatores conjunturais,
produz as prticas, que exteriorizam as disposies interiorizadas, e tendem a
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reproduzir a estrutura social que definiu as condies para sua produo. E parte do
habitus de professor de Educao Fsica a disposio para fazer de suas aulas
espao para a construo de valores morais. Esta disposio uma forma de iluso,
inconscientemente utilizada pelo professor, na tentativa de construir um sentido para
sua prtica. Ela tem levado ao estabelecimento de expectativas irreais, incoerncia
entre discurso e interveno e, no caso das professoras participantes deste estudo,
ao sentimento de frustrao ou de impotncia. Romper com esta iluso essencial
para que o professor possa adotar uma perspectiva crtica, reconhecendo-se como
agente social que tem possibilidades e limites em sua interveno, como faz uma
das professoras investigadas. Nessa medida, preciso rever o espao que a
construo de valores morais deve ter nas aulas de Educao Fsica e criarmaneiras de trabalhar valores de forma relacionada ao contedo especfico da
disciplina.
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ABSTRACT
Values are contents of the Physical Education classes, disseminated by
students and teachers, conscious or unconsciously. Although there is much talk
about the relationship between Physical Education and building of values, we know
few about how this building occurs in the day to day of the classes and how these
values are inserted in the curriculum. To facilitate the building of values does not
depend solely of our own will, skills or the good will of the Physical Education
teacher. Many factors act in this building, making difficult the intervention of the
teacher. Research has indicated that some teachers have difficulties to implement
the building of values. Which are the difficulties perceived by these teachers? What isthe origin of these difficulties? This project was developed aiming to understand what
hinders the work of teachers whose proposal is to create in the classes of Physical
Education a space for the building of the values systems of their students. Critical
Hermeneutics is the epistemological foundation of this study in which I looked for
being closer to the day to day of the classes, a place where the difficulties become
concrete. This is a Multiple Case Study, following the practice of three teachers,
chosen intentionally. In the search for the information needed the resources ofobservation and a semi-structured interview with teachers and students were used. I
took fieldwork notes to record the observations of the classes and the relevant
aspects of the interviews, which were audiotaped and transcribed. As from the
analysis of the data I have identified many difficulties teachers face, related to
internal and external aspects, as the ones related to infrastructure and to the material
resources available in the school; to the organization of the school; to the values and
attitudes of the scholar team; to the physical education conception underlying theschool culture; to the devising and practicing of physical education classes; to the
relationship with the students and to the teachers emotional state. However, it is
possible to identify an interrelationship between interiority and exteriority as far as the
teachers conceptions about the possibilities of stimulating the students to build
values at school are their professional habitus and they interfere in the expectations
built and in the perception of the difficulties found. Habitus, in a dialectic relationship
with conjuncture factors, creates the practices which externalize the interiorized
dispositions and tends to reproduce the social structure that has defined the
conditions for its production. It is an integral part of the habitus of the Physical
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Education teacher the willingness to make from his/her classes a space for the
building of moral values. This willingness is a kind of illusion, used unconsciously by
the teacher in an attempt to make sense for his/her practice. This has led to the
establishment of unreal expectations, incoherence between discourse and
intervention and, in the case of the teachers participating in this study, to the feeling
of frustration or impotence. To break up with this illusion is important so that the
teacher could adopt a critical perspective, recognizing himself/herself as a social
agent who has possibilities and limits in his/her intervention, as one of the
investigated teachers does. In this sense, it is needed to review the space that the
building of moral values should have in the Physical Education classes and to create
ways to work on values in relation to the specific content of the subject.
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SUMRIO
APRESENTAO ................................................................................................................................ 14
1 O BOSQUEJO DO PROJETO: ORIGEM DAS INQUIETAES ................................................ 17
1.1 CONSTRUO DE VALORES E EDUCAO ESCOLAR.................................................................... 21
2 REFORANDO OS TRAOS E DELIMITANDO AS FORMAS ................................................... 31
3 DEFINIO DO DESENHO: ESTRUTURA, ACESSRIOS E CORES ....................................... 36
3.1 ACONSTRUO DO MEU OLHAR:AHERMENUTICA COMO CAMINHO.......................................... 38
3.1.1 A Hermenutica aplicada anlise da ao .................................................................... 43
3.2 UM PROJETO EM AO:CONCRETIZANDO A PESQUISA.................................................................. 45
4 INTERPRETANDO O COTIDIANO: ALGUMAS CARACTERSTICAS DO TRABALHO DAS
PROFESSORAS .......................................................................................................... ......................... 52
5 A EXTERIORIDADE: ESCOLA E SOCIEDADE COMO GERADORAS DE DIFICULDADES
PARA ESTIMULAR A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA ......... 60
5.1 DIFICULDADES RELACIONADAS INFRAESTRUTURA E AOS RECURSOS MATERIAIS DISPONVEIS NA
ESCOLA.............................................................................................................................................. 61
5.2 DIFICULDADES RELACIONADAS ORGANIZAO ESCOLAR............................................................ 65
5.3 DIFICULDADES RELACIONADAS AOS VALORES E ATITUDES DA EQUIPE ESCOLAR............................ 67
5.4 DIFICULDADES RELACIONADAS CONCEPO DE EDUCAO FSICA PRESENTE NA CULTURAESCOLAR. ........................................................................................................................................... 74
6 A INTERIORIDADE: PESSOAL E PROFISSIONAL COMO GERADORES DE DIFICULDADES
PARA ESTIMULAR A CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA ......... 78
6.1 DIFICULDADE RELACIONADAS ELABORAO E APLICAO DAS AULAS DE EDUCAO FSICA......... 79
6.2 DIFICULDADE RELACIONADAS AO RELACIONAMENTO COM OS ALUNOS........................................... 81
6.2.1 conflito entre a construo da autonomia e a doutrinao ............................................... 84
6.3 DIFICULDADE RELACIONADAS AO ESTADO EMOCIONAL DAS PROFESSORAS.................................. 94
7 CONSTRUO DE VALORES NAS AULAS DE EDUCAO FSICA: HABITUSE ILLUSIONARELAO DIALTICA ENTRE EXTERIORIDADE E INTERIORIDADE ............................................ 98
7.1 ILUSO E CURRCULO OCULTO.................................................................................................. 107
7.2 ILUSO,IMPOTNCIA E FRUSTRAO......................................................................................... 112
8 ALGUMAS CONCLUSES... PROVISRIAS ............................................................................ 118
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................................. 122
ANEXOS .......................................................................................................................................... ... 139
APNDICE .......................................................................................................................................... 143
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APRESENTAO
Fomos para a outra sala, onde nos aguardavam apenas 10 alunos da 4aC. Dois delesestavam com alguns brinquedos e Mariana pediu para que eles guardassem os
objetos. Assim como na turma anterior, os meninos estavam bastante agitados.
Vinicius no guardou os brinquedos logo e ela usou como estratgia contar at 10.
Esse seria o tempo mximo para que ele atendesse solicitao da professora. Os
demais alunos contaram junto com ela. Ele a atendeu.
Aps esse incidente, os alunos permaneceram sentados em duplas e Mariana
tentava explicar o que aconteceria na aula. Porm, no conseguia atingir seu
objetivo. Eles brincavam e falavam junto com ela. Em vrios momentos alguns alunos
faziam perguntas sem qualquer relao com a aula, desviando completamente o
rumo da conversa. Ora falavam srio, ora brincavam. Mariana procurava responder
s perguntas e, com isso, no conseguia explicar porque a aula estava acontecendo
na sala.
Num determinado momento, motivada pelo discurso de um dos alunos, Mariana
perguntou aos alunos quem deve pagar quando um estudante quebra um vidro da
sala de aula. Eles respondem a pergunta de forma incoerente. Um deles diz que o
pai e no o aluno. Relacionando com as aulas de Educao Fsica, Mariana
questiona a falta de cuidado de alguns com os materiais usados em aula. Explica quemuitos j foram com outras pessoas, fora da escola. Em seguida, um aluno explica
que h muitas bolas no lago do CEU. Outros alunos falam sobre passear no lago.
Algum comenta comigo que a professora os levou para subir nas rvores. Ela
explica como foi a atividade.
Enfim, No h um dilogo organizado entre o grupo. Cada um parece estar numa
conversa prpria, enquanto Mariana tenta participar de todas elas. Porm, sempre
que ela tenta apresentar um argumento, respondendo a pergunta de um aluno, um
novo assunto apresentado e a conversa muda de rumo. Acredito que eles esto
conversando consigo mesmos e no ouvem Mariana. Como possvel tanta
confuso entre nmero to pequeno de alunos?
O mesmo acontece quando a professora, irritada com a atitude de Douglas. tenta
conversar com ele. Enquanto Mariana respondia pergunta de um colega, Douglas
gritou para que outro aluno calasse a boca. Ela, alterando o tom de voz, diz a ele
que, talvez por ser aluno novo, no saiba como se resolvem os problemas na escola.
Interessante notar que, nesse momento, todos esto prestando ateno no que ela
diz.
Em sua conversa com Douglas Ela explica que, na escola, deve-se resolver os
conflitos pela conversa. Diz que, caso ele no adote tal atitude em sua casa ou
quando est na rua, dentro da escola dever rever seu comportamento, adequando-
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se s normas escolares. At esse momento ele a escutava de cabea baixa,
brincando com um objeto em suas mos, como se no desse ateno ao que ouvia.
Mas, de repente, indignado respondeu Mariana, dizendo que no fica na rua.
Parecia ofendido com essa ideia, talvez por associar o ficar na rua com
delinquncia. Ela ento tentou mostrar que era apenas um exemplo e continuou
tentando explicar que ele precisava resolver os conflitos pela conversa. Mas, em sua
explicao, acabou repetindo o mesmo exemplo mais duas vezes, comparando um
possvel comportamento dele em casa e na rua. Ele parecia no escuta-la e s
repetia que no ficava na rua. (Nota de campo: Mariana 17/02/11)
No trecho apresentado acima tento descrever parte de uma aula de Educao
Fsica, na qual podemos identificar aes dos indivduos participantes da aula,
aes essas que evidenciam alguns de seus valores. De um lado, temos os valores
da professora Mariana (nome fictcio, assim como os outros apresentados em todo o
texto), que acredita falar em nome da escola ao defender o dilogo como
instrumento para soluo de conflitos. De outro lado est Douglas (e alguns outros
alunos) que, ao contrrio da professora, acredita que pode utilizar da violncia, seja
ela verbal ou fsica, para garantir sua vontade pessoal. Como a prpria professora
diz, possvel e provvel que no cotidiano do aluno, em sua casa ou na rua,
estejam presentes valores opostos aos defendidos no ambiente escolar. Para tentar
mudar o comportamento e os valores do aluno, Mariana se utiliza de um discurso
que Douglas parece no compreender.
Inicio a apresentao dessa pesquisa com a descrio da situao acima por
acreditar que olhar para o cotidiano da escola nos permite ver com mais nitidez a
complexidade envolvida no processo de construo de valores nas aulas de
Educao Fsica e nos outros ambientes escolares. Meu propsito chamar a
ateno para algo que, embora possa parecer bvio para alguns, com frequncia
desconsiderado por pesquisadores e professores da rea.
Venho me dedicando preparao de professores h 13 anos, atuando em
cursos de graduao e ps-graduao. Nesse contato com graduandos e graduados
identifico uma caracterstica comum: a crena de que um dos objetivos principais
das aulas de Educao Fsica na escola a formao de valores. Em seus
discursos, os professores da rea, assim como seus futuros colegas de profisso, os
estudantes de graduao, defendem que honestidade, respeito, igualdade, entreoutros valores, podem ser construdos a partir das atividades realizadas.
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Ao ouvir esses discursos sempre me senti incomodada, por dois motivos. O
primeiro deles que tal crena, historicamente construda, me parece um tanto
ingnua, repetida sem crtica e sem fundamentao cientfica. Ingnua porque
desconsidera a complexidade envolvida na construo do sistema de valores de
uma pessoa. O segundo motivo que nesses discursos, implicitamente, se refora a
ideia de que a construo de valores uma das principais atribuies da Educao
Fsica, principalmente aqueles relacionados convivncia humana, sendo mais
relevante que qualquer outra funo que se possa esperar dela, ou seja, deixa-se de
lado a sua especificidade.
Tentar desconstruir essa crena foi uma das motivaes iniciais desse
relatrio de pesquisa que agora apresento. Ele est organizado em oito captulos.No primeiro deles pretendo descrever a histria dessa pesquisa, que se mistura com
minha prpria histria com a Educao Fsica. Apresento tambm alguns dos
autores que fundamentaram a construo inicial do projeto e como outros autores
me levaram a questionar esta fundamentao inicial. A seguir, no captulo 2,
apresento a problemtica, o problema e o objetivo que escolhi para nortear a
realizao desta tese de doutorado, que hoje entendo como uma etapa de minha
investigao sobre o tema valores e Educao Fsica, que merecer minha atenopor mais algum tempo.
No terceiro captulo apresento minha forma de olhar para o processo de
produo do conhecimento cientfico e procuro explicitar a base epistemolgica
escolhida e o desenho da pesquisa. Assim, descrevo o processo seguido para
acesso ao cotidiano investigado, as formas de contato com os participantes do
estudo, alm dos procedimentos para obteno e anlise de informaes.
A seguir, apresento o trabalho das professoras, apresento algumascaracterstica do trabalho das professoras, como a forma de organizao das aulas,
os objetivos perseguidos por elas, os temas trabalhados em aula e o relacionamento
estabelecido com seus alunos. Nos dois captulos seguintes descrevo minha
interpretao do discurso e da prtica adotadas pelas professoras, analisando
aspectos interiores e exteriores que interferem na forma como se envolvem com a
tarefa de estimular o desenvolvimento dos valores. No captulo sete procuro
relacionar aspectos interiores e exteriores e defender a tese escolhida. Por fim,
apresento algumas consideraes finais sobre a interpretao realizada, entendida
como provisria, para ser fiel hermenutica crtica.
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1 OBOSQUEJODOPROJETO: ORIGEMDASINQUIETAES
Difcil precisar o momento em que esta pesquisa se origina, pois, embora sua
forma atual seja uma construo recente, diferentes experincias que ocorreram no
cotidiano escolar, desde meu ingresso na escola, como professora, contriburam
para a formulao das questes que hoje procuro responder. Assim, pretendo agora
apresentar como vejo a histria da construo desse projeto de pesquisa.
Minha relao com a escola sempre foi bastante positiva. Eu via nela o
principal espao para o convvio social, j que a regio perifrica da cidade de So
Paulo, onde passei minha infncia e adolescncia, no oferecia outras
oportunidades para o lazer e de interao com amigos. Langhout e Mitchell (2008)afirmam que os alunos apresentam um envolvimento maior com sua aprendizagem
quando se identificam com a escola. Esse foi o meu caso.
Grande parte das lembranas que trago comigo vm do que hoje conheo por
cultura escolar, definida e analisada mais adiante. Imagens de conversas com os
amigos e professores, das festas juninas, dos passeios e do primeiro beijo, so
marcantes. Lembro-me bem dos vrios rituais, prticas e brincadeiras que
pertenciam aos alunos. No caderno de enquete, registrvamos respostas aperguntas indiscretas, revelando segredos sobre uma sexualidade que aflorava.
Passeios realizados tambm foram marcantes. Fica evidente, portanto, que a vida
escolar teve uma imensa influncia na construo dos meus valores e que isso se
reflete na pesquisa que realizo.
Entre 1987 e 1990 realizei meu curso de Graduao. Este foi um perodo que
tambm deixou muitas influncias sobre a forma como vejo a escola e os valores a
ela atribudos. Meu ingresso no curso no foi motivado pelo interesse em atuar naescola. Ao contrrio, como tantas outras pessoas, considerava que a Educao
Fsica Escolar era componente de reduzida relevncia. No entanto, percebo que
grande parte das pessoas interessantes que encontrei na universidade foram
justamente aquelas apaixonadas pela educao escolar. Eles foram meus outros
significantes, pessoas que tiveram grande impacto em minha formao social,
mesmo no fazendo parte dos meus grupos de convvio dirio. Ao concluir a
graduao no via sentido em outra possibilidade de trabalho que no fosse a
docncia na educao bsica.
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Nesse espao, eu tomei contato com diferentes teorias pedaggicas,
apresentadas em diferentes disciplinas do meu curso de graduao, que influenciam
a forma como vejo a escola. Merecem destaque os estudos sobre currculo,
especialmente as teorias crticas, como a da Violncia Simblica, apresentada por
Bourdieu e Passeron (1975). Com esses autores pude compreender que a escola
no uma instituio social neutra mas que tem por funo expressar e reproduzir
as caractersticas da sociedade. Com certeza, a fundamentao nesses autores foi
determinante para a aproximao com o tema proposto neste estudo.
Vale destacar, ainda, que o fato de ter realizado minha graduao no final da
dcada de 1980, perodo de grande questionamento acadmico da rea, trouxe uma
influncia determinante sobre minha formao. Tomei contato com diversos dosautores responsveis pela chamada crise de identidade vivida pela rea
acadmica, muitos dos quais defendiam a Educao Fsica como instrumento de
mudana social, como Vera Lucia Ferreira, Valter Bracht, Joo Batista Freire e Celi
Taffarel. Essa foi a base que me fez refletir sobre minha experincia escolar e
construir crenas a respeito da Educao Fsica que subsidiaram um projeto para
meu retorno escola, agora como uma educadora.
Em 1992, quando ingressei rede municipal de ensino de So Paulo,atuando na mesma escola em que conclura o antigo primeiro grau, via naquele
espao um instrumento de reproduo social, mas lutava para transform-lo e,
consequentemente, fazer dele um local de conscientizao e mudana. Sonhos de
uma professora em incio de carreira, que construa uma colcha de retalhos formada
por tecidos de diferentes caractersticas: teorias cientficas, experincias pessoais,
construes cotidianas a partir dos erros e acertos.
Marcava minha interveno a tentativa de influenciar a construo dosvalores de meus alunos, valores esses que determinariam suas atitudes e seu modo
de ver a convivncia humana, seu corpo, a escola, o esporte, a Educao Fsica. No
incio, meu objetivo principal era construir uma nova viso sobre a Educao Fsica
como componente curricular. Os aprendizes no eram apenas os estudantes, mas
tambm os professores, os funcionrios e a equipe de gestores. A inteno era que
eles valorizassem a rea. Mas, o trabalho utilizado era bastante intuitivo. Muitas
dificuldades surgiam e eu tentava e acreditava que poderia super-las. Quem sabe
dizer se as estratgias utilizadas foram eficientes? Naquele momento muitas
incertezas estavam presentes. Questionava o currculo construdo. Seriam esses os
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conhecimentos necessrios aos meus alunos? Questionava a metodologia de
ensino. Seriam as estratgias escolhidas as mais adequadas para que a
aprendizagem acontecesse? Com certeza, o questionamento da poca ainda se faz
presente.
O ingresso no curso de mestrado em 1996, motivado pela necessidade de
responder alguns desses questionamentos, tambm tem relao direta com a
pesquisa aqui apresentada. Nesse momento pude estudar de forma mais profunda a
construo do currculo. Assim, por um lado tomei contato com autores da sociologia
do currculo. Por outro lado, conheci a proposta de organizao curricular
apresentada por Cesar Coll, com a tipologia dos contedos, teoria esta que
fundamentou a elaborao da dissertao de mestrado. A sociologia do currculoficou adormecida porque, embora acreditasse nas proposies apresentadas, no
sabia bem como integrar conhecimentos da psicologia e da sociologia no currculo.
Foi ento, a partir dessas leituras, que comecei a pensar na possibilidade de
um doutorado. Aprofundar a compreenso sobre a dimenso conceitual nas aulas
de Educao Fsica parecia interessante. Mas, outro tema comeava a tornar-se
mais atraente. Em 1998, ainda durante a realizao do Mestrado, tive a
oportunidade de iniciar minha carreira no ensino superior, ao assumir aresponsabilidade por uma disciplina denominada tica Profissional e Dimenses
Sociais da Educao Fsica, parte da grade curricular do curso de graduao da
Universidade So Judas Tadeu. Nas aulas, analisava com os futuros profissionais
da rea o papel social desempenhado, bem como questes sobre moral e tica
relacionadas com sua interveno. Assim, num determinado momento, pude
perceber que pensar a construo de valores era o que eu fazia desde que iniciei
meu curso de graduao (talvez at antes disso). Percebi que faria todo o sentidotrazer aspectos de minha histria para o doutorado e comecei a construir um projeto
de pesquisa para investigar a dimenso atitudinal dos contedos, que me fora
apresentada por Coll, nas aulas de Educao Fsica. Mas, como concretizar esse
projeto?
Foram sete anos me acercando do tema e procurando opes de
orientadores e programas diferentes para desenvolver meu projeto de pesquisa. Por
vrias vezes, abandonei o projeto e optei por estudar outros assuntos, para melhor
me adequar s linhas de pesquisa disponveis. No entanto, a discusso sobre os
valores nas aulas de Educao Fsica estava sempre presente. Em 2007 consegui,
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juntamente com a Profa. Dra. Rita de Cassia Garcia Verenguer, o financiamento do
Mackpesquisa para realizar um projeto sobre o tema. A realizao da pesquisa me
permitiu amadurecer algumas ideias a partir da comparao entre o conhecimento
cientfico presente no referencial terico escolhido e a realidade da interveno dos
professores pesquisados, realidade esta construda a partir de uma combinao
heterognea que se configura no que Certeau (1999, p.46) denomina como
patchworks do cotidiano. Assim, foi possvel encontrar algumas respostas iniciais
para meus questionamentos. Por outro lado, muitas outras incertezas surgiram.
Eu sabia que os valores estavam presentes na escola, nos ritos, linguagens e
formas de organizao escolar (SILVA, 2006), mas no eram considerados
contedos de ensino, sendo frequentemente aprendidos pelos estudantes de formainconsciente e sem que os prprios educadores percebessem. Li autores que
ressaltavam a necessidade de explicitar valores, atitudes e normas como contedos
da educao formal, como Abreu e Masetto (1990), Zaballa (1997), Saviani (1997) e
Coll (2000).
A prpria Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (BRASIL, 1996)
apresenta como um dos objetivos do Ensino Fundamental a formao de atitudes e
valores. Nos Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997a), tendo comosuporte o referencial adotado pela reforma educacional espanhola, tambm se
defende que a dimenso atitudinal dos contedos deve aparecer de forma mais
enftica no currculo escolar.
Percebia, nas recentes propostas pedaggicas para o ensino da Educao
Fsica na escola, que era cada vez mais frequente a defesa de aulas que
viabilizassem no apenas a aprendizagem de contedos das dimenses
procedimental e conceitual, mas tambm a construo de valores, atitudes enormas. Brasil (1997b), Freire e Mariz de Oliveira (2004), Darido e Rangel (2005),
Sanches Neto e Betti (2008), Rodrigues e Darido (2008) so exemplos de autores
que advogam a aprendizagem de uma dimenso atitudinal dos contedos na prtica
pedaggica dos professores de Educao Fsica. Assim, se constitua um discurso
preconizando a presena da dimenso atitudinal e de valores no ensino da
Educao Fsica, tanto entre os professores, quanto entre estudiosos da rea.
Porm, esse discurso me incomodava porque no conseguia v-lo se
transformar em ao. Repensava minha interveno na escola e identificava
diversos entraves para aplicar as ideias presentes nos discursos. No encontrava
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uma discusso mais aprofundada sobre como essa dimenso atitudinal se
configurava no cotidiano das aulas. Por vezes, o tema parecia ser tratado com
superficialidade e ingenuidade, semelhana do que aconteceu no passado,
quando se argumentou que o esporte deveria fazer parte das aulas de Educao
Fsica porque contribui para a formao do carter ou ensina a perder e a ganhar.
Nessa medida, ao pensar sobre os valores no ensino da Educao Fsica,
muitas questes surgiam, como: Quais valores o professor de Educao Fsica
pretende que seus alunos construam? Os professores elegem de forma consciente o
que dever ser construdo pelos alunos? Que resultados esses professores
acreditam alcanar com a realizao de seu trabalho? Que valores os alunos
constroem a partir das aulas de Educao Fsica? Qual a percepo dos estudantessobre os valores disseminados em aula?Que prtica pedaggica tem sido adotada
pelos professores de educao fsica para abordar a dimenso atitudinal dos
contedos? Quais estratgias de ensino tm sido utilizadas por esses professores
para estimular em seus alunos a construo de valores? O trabalho do professor
est integrado proposta pedaggica escolar?
Na tentativa, bastante prepotente, de encontrar respostas para estes
questionamentos, dei incio a elaborao da presente tese. Aos poucos, percebi queno seria possvel responder a todas elas. Compreendi, ento, a necessidade de
delimitar meu objeto de estudos: valores e educao.
1.1 Construo de Valores e Educao Escolar
Compreender o significado e a importncia dos valores na existncia humana
tem sido preocupao de inmeros filsofos (GOUVA, 2008; GOERGEN, 2005),
preocupao esta que d origem a um ramo filosfico especfico, a axiologia, que
surge no sculo XIX, desenvolvida por um grupo de filsofos de inspirao
neokantiana (GOUVA, 2008 ). Goergen (2005) afirma que diferentes teorias tm
sido apresentadas na tentativa de explicar o que so os valores, teorias estas
influenciadas pelas caractersticas sociais do perodo histrico em que so
construdas. Por isso mesmo, diferentes sentidos so atribudos ao termo valor.
Hessen (1967), tambm reconhecendo a dificuldade presente ao se tentar
conceituar os valores, afirma que estabelecer tal conceito no possvel. Em vriosmomentos eu tambm tenho me questionado sobre a possibilidade e a necessidade
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de construir tal conceito. Hessen (1967) argumenta que ele est entre os conceitos
supremos, como os de ser, existncia, etc, que no admitem definio (p. 37).
Contudo, como afirma o autor, atribuir valor faz parte da essncia humana.
Embora um conceito nico e rigoroso no exista, Hessen (1967) tenta se acercar
dele e discutir seu contedo. Talvez, mais importante que elaborar um conceito de
valores seja compreender o que nos leva a atribuir um valor. Nessa perspectiva, o
autor argumenta que os valores esto relacionados com as necessidades humanas,
sejam elas ticas, religiosas ou estticas. Assim, uma pessoa valoriza algo que
satisfaz suas necessidades humanas. Ele afirma que valor tudo aquilo que for
apropriado a satisfazer determinadas necessidades humanas (p. 42).
Este argumento apresentado por Hessen (1967) tem marcado a pesquisacientfica sobre os valores desde seu incio, que ademais bastante recente
(GOUVA, 2008). Ele continua presente hoje nas pesquisas psicolgicas que
focalizam o tema. Desta forma, desde os estudos iniciais de Rokeach (1973, 1979),
passando pelos realizados por Schwartz (1996), assim como nas pesquisas
atualmente apresentadas por Gouveia (2003), se defende a ideia de que as
necessidades humanas determinam, predominantemente, os valores adotados pelos
indivduos (PEREIRA, CAMINO E DA COSTA, 2005). Partindo desta premissa, aspesquisas tendem a enfatizar excessivamente aspectos psicolgicos na construo
do sistema de valores do indivduo, dando reduzido espao para a influncia social
nesta construo.
Os estudos realizados por Rokeach (1973, 1979) e Rokeach e Ball-Rokeach
(1989) tiveram papel determinante no desenvolvimento das pesquisas sobre valores,
sendo sua influncia percebida ainda hoje. Para este autor, os valores so ideias ou
crenas presentes em toda sociedade sobre estados finais de existncia ou modosde comportamento desejveis (1979, p. 49).
Para Rokeach e Ball-Rokeach (1989) os valores podem ser classificados em
dois grupos: instrumentais e terminais. Valores terminais constituem objetivos finais
da existncia, como sabedoria, igualdade e paz. So instrumentais os valores que
permitem atingir os valores terminais, como ser honesto e perdoar. Eles so
organizados de forma hierrquica, formando sistemas que orientam as condutas,
escolhas e decises dos indivduos, a partir de suas necessidades e motivaes
(PEREIRA, LIMA e CAMINO, 2001).
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Tomando como base os estudos de Rokeach (1973, 1979), Schwartz (1996)
apresenta uma outra proposta de classificao dos valores, que podem ser
organizados em dez tipos motivacionais: poder, realizao, hedonismo, estimulao,
auto direo, universalismo, benevolncia, tradio, conformidade e segurana.
Para o autor, esses tipos motivacionais so universais e representam necessidades
humanas bsicas (FERNANDES et al., 2007).
Tambm entendendo que os valores esto relacionados com as
necessidades bsicas humanas, Gouveia (2003) toma como base os estudos de
Schwartz e prope a existncia de 24 valores humanos bsicos, organizados no
modelo funcionalista dos valores humanos. Neste modelo so propostas duas
funes para os valores: guiar o comportamento humano, segundo uma orientaopessoal, central ou social; e expressar as necessidades humanas, seguindo uma
motivao materialista ou humanista. Derivam destas duas funes, seis
subfunes. Apresento uma sntese da proposta do autor no quadro 1.
Subfuno Necessidades Orientao Valores Observaes
materialista
Existncia Fisiolgicas bsicase de segurana
central SadeSobrevivnciaEstabilidade
pessoal
Principal no motivadormaterialista Mais presente em contextos deescassez econmica.
Realizao Auto-estima pessoal xitoPrestgio
Poder
Mais apreciados por jovensadultos
Normativa Controle(demandas
institucionais esociais)
social TradioObedincia
Religiosidade
Reflete a relevncia atribudapara a preservao da cultura edo cumprimento das normasconvencionais
humanista
Suprapessoal Necessidadesestticas e de
cognioAuto-realizao
central ConhecimentoMaturidade
beleza
Auxilia na construo de umsentido para a vida
Quem adota tal valor tomadecises a partir de critriosuniversais
Experimentao SatisfaoPrazer
(hedonismo)
pessoal SexualidadePrazer
Emoo
Adotados, principalmente porjovens Contribuem para a promoode mudanas sociais.
Interacional PertenaAmor
Afiliao
social AfetividadeConvivnciaApoio Social
Estabelece, regula mantemrelaes interpessoais
Quadro1: modelo funcionalista dos valores humanos de Gouveia(2003)
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Nas pesquisas apresentadas acima, Rokeach (1973, 1979), Rokeach e Ball-
Rokeach (1989), Schwartz (1996) e Gouveia (2003) atribuem s necessidades
humanas papel preponderante na adoo dos valores individuais e, nessa medida,
embora no desconsiderem o papel do ambiente sobre os valores adotados, pouco
exploram este papel (PEREIRA, CAMINO e DA COSTA, 2005). Seriam os valores
definidos individualmente?
Uma perspectiva diferente sobre a influncia da sociedade na construo do
sistema de valores das pessoas adotada por Inglehart (1971, 1981). Para o autor,
a organizao social a principal responsvel por esta construo. Em estudos
realizados em diferentes pases da Europa, Inglehart (2008) verificou que h uma
diferena entre os valores adotados pelas novas geraes, que se preocupam maiscom a autonomia e a liberdade de expresso, valores ps-materialistas, enquanto as
geraes anteriores, tinham entre seus principais valores a segurana fsica e
econmica, valores materialistas.
O autor acredita que a mudana econmica e poltica desses pases
determinante para a diferena entre essas geraes. Argumenta que o sistema de
valores se forma de maneira mais estvel na passagem entre adolescncia e idade
adulta, sendo que a conjuntura do pas, nessa fase, ter grande efeito na adoo devalores materialistas ou ps-materialistas. Entretanto, embora as pesquisas
realizadas por Inglehart (1971, 1981) resultem num questionamento da perspectiva
psicolgica sobre os estudos de valores, assim como Rokeach (1973) e Schwartz
(1996), ele ainda considera como fonte dos valores as necessidades bsicas
humanas, descrita na teoria de Maslow (PEREIRA, CAMINO e DA COSTA, 2005).
Considerando a relevncia das duas vertentes apresentadas acima, Pereira,
Lima e Camino (2001), Pereira, Ribeiro e Cardoso (2004) e Pereira, Camino e DaCosta (2005), apontam uma necessidade de articular a perspectiva psicolgica com
a teoria sociolgica proposta por Inglehart (1979, 1981, 2008) e defendem uma
anlise psicossociolgica. A partir de vrios estudos realizados com estudantes
universitrios (PEREIRA, LIMA e CAMINO, 2001; PEREIRA, RIBEIRO E
CARDOSO, 2004; PEREIRA, TORRES e BARROS, 2004) os autores procuraram
analisar como a opo por um determinado sistema de valores pode influenciar o
envolvimento poltico e social desses estudantes.
A partir dos resultados obtidos nesses estudos, os autores afirmam que a
fonte dos valores adotados pelos indivduos est na identidade ideolgica vigente na
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sociedade e no resulta apenas de motivaes individuais. Assim, Pereira, Camino
e Da Costa (2005, 17) propem uma abordagem societal dos valores, na qual os
valores so entendidos como conhecimentos socialmente estruturados a partir dos
diversos contedos ideolgicos contidos na sociedade (p. 18). Nesta abordagem, os
autores propem uma taxonomia dos valores para a sociedade brasileira,
organizados em 4 sistemas: hedonista, religioso, materialista e ps-materialista.
Valores relacionados satisfao sexual, como sexualidade e prazer
constituem o sistema hedonista, enquanto que no sistema religioso esto os valores
ligados espiritualidade e f crist. J o sistema materialista envolve aqueles
relacionados com o bem estar econmico e estratificao social, como riqueza e
status. O quarto sistema proposto por Pereira, Camino e Da Costa (2005) seorganiza em trs subsistemas: dos valores relacionados ao trabalho e ao bem estar
profissional, dos valores relacionados ao bem estar social e, por fim, os valores
relacionados ao bem estar individual. Adoto, neste estudo, a abordagem societal e,
assim como Pereira, Camino e Da Costa (2005), entendo que os valores so
construtos sociais e que todos os valores so sociais, medida que so produzidos
nas interaes entre os homens (p.22).
A escola um dos principais espaos sociais a propiciar a possibilidade deinteragir socialmente e influencia a construo de valores. Por isso mesmo,
possvel encontrar inmeros autores que se propem a discutir e produzir
conhecimento sobre o tema, como Puig (1998), Menin (2002), Halstead e Taylor
(2000), Nucci (2000), Goergen (2005), Martn Garcia e Puig Rovira (2007), Cortella e
La Taille (2007) e Thornberg (2008).
Entretanto, grande parte desses autores adota uma premissa psicolgica em
seus estudos, influenciados pelas poucas, mas relevantes obras sobre o tema,escritas por Piaget. Consequentemente, com frequncia a anlise sobre a presena
dos valores na escola tem se limitado sua dimenso moral, o que acontece
tambm em obras que discutem valores fora do ambiente escolar, como afirma
Viana (2007). Valdivia (1998, p.2), por exemplo, chega a afirmar que educar en los
valores es educar moralmente, porque son los valores los que ensean al individuo
a comportarse en la sociedade.... Para Halstead and Taylor (2000), Thornberg
(2008) e Lovat (2010) a expresso educao em valores tem sido utilizada como
sinnimo de educao moral.
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Nesses estudos, parte-se do pressuposto que, para entender a presena de
valores no currculo percurso obrigatrio a anlise sobre a educao moral e a
tica na escola, discusso esta que tem merecido ateno especial, estimulada por
uma suposta crise de valores na sociedade atual (NUCCI, 2000; CORTELLA e LA
TAILLE, 2007). Por crise de valores se entende que h, na sociedade atual, o
abandono de valores que, na percepo de alguns, estavam presentes no passado.
Esta ideia aparece, por exemplo, nos trabalhos de Baliulevicius e Macrio (2005),
Ortega et al. (2008), Moreno e Salas (2009) e Durea-Tardelli (2009).
Por vezes, para comprovar tal perda de valores, se aponta o aumento na
violncia, na intolerncia e no comportamento indisciplinado dos alunos nas escolas.
Concordando com Cortela e La Taille (2007), acredito que essa queixacomportamental que considera os alunos indisciplinados e desrespeitosos, por
vezes apenas uma lamria frequente sobre a conduta dos estudantes, que nem
sempre tem relao com a tica e com a moral.
Para Nucci (2000), a ateno que se d formao moral na atualidade est
relacionada com as rpidas transformaes sociais e tecnolgicas. H um
desconforto e um temor de que valores bsicos desapaream. Assim, muitas vezes
se argumenta sobre a necessidade de retomar valores tradicionais - como sehouvessem existido no passado - enfatizando a formao de crianas boazinhas,
ou seja, bem educadas, respeitosas, e que, em geral, tratam as pessoas com
justia(p. 73). O autor critica esta ideia, mostrando que nem sempre crianas
boazinhas tornam-se pessoas crticas para combater desigualdades e injustias
sociais.
Para Cortella e La Taille (2007) vivemos uma crise de sentido, que tem
implicaes ticas e morais. H, na viso dos autores, uma perda de sentido ou umesboroamento na capacidade de vida coletiva (p.11), como denomina Cortella, que
afeta primeiro aos pais. Nas palavras de La Taille o problema est antes neles do
que nos seus filhos, os alunos (p.11). Pensando na escola, podemos entender que
alm dos pais, so influenciados por essa crise tambm os professores, o que pode
ter relao direta com a indisciplina dos alunos.
Mas o fato que tica e moral esto presentes na escola, no se pode
negar. Aranha (2006), fundamentando-se em Reboul, afirma que o professor
responsvel pelo ensino da moral e da tica em suas aulas, seja de forma proposital
ou involuntria. Da mesma forma, Paulo Freire (1996) ressalta a presena da moral
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na interveno do educador quando declara que o ensino dos contedos no pode
dar-se alheio formao moral do educando (p. 33).
Uma das reas que mais tem se dedicado compreenso da moralidade tem
sido a psicologia, com destaque para os estudos realizados por Piaget e por
Kohlberg. Embora Piaget tenha se dedicado pouco discusso sobre o
desenvolvimento moral, seus trabalhos sobre o tema influenciaram e ainda
influenciam grande parte dos pesquisadores atuais. Para Freitas (1999), Piaget
iniciou seu projeto sobre a construo do juzo moral em 1932 e, embora tenha
voltado ao tema em momentos posteriores, no conseguiu conclu-lo. A autora
argumenta que ele procurou explicar como o homem se transforma, passando de
um mundo amoral na infncia possibilidade de ao tica na idade adulta.Piaget (1994), ao analisar o juzo moral, afirma que a criana inicialmente
apresenta uma moral heternoma, que se deve coao exercida pelo adulto.
Nesse perodo a criana apresenta um respeito unilateral s normas e acredita que
o adulto quem determina o que certo ou errado. Em seguida, passa por uma fase
intermediria, na qual aparece a internalizao e generalizao das regras. Mais
tarde, ela atinge a autonomia moral, quando passa seguir regras por acreditar nelas,
sem qualquer presso exterior (p.155). Neste perodo, a criana passa a percebera importncia das regras e a possibilidade de modific-las. Puig (1998), em
concordncia com Piaget (1994), acredita que a construo moral influenciada
pelo ambiente social, mas que h uma sequncia comum no desenvolvimento moral,
influenciado tambm por aspectos cognitivos e pela afetividade.
J Kohlberg, citado por Araujo (2000), baseou-se nos estudos realizados por
Piaget para propor seis estgios de desenvolvimento moral, divididos em trs nveis:
pr-moral, convencional e ps-convencional. Procurou realizar suas pesquisastambm com adultos de diferentes culturas. A partir destes estudos, concluiu que
predomina entre a populao mundial o nvel convencional de desenvolvimento
moral. Para Vilarasa e Marimon (2000), os estudos conduzidos por Kohlberg
sobrevalorizam os aspectos cognitivos da moral, em relao afetividade e, por
isso, tm sido criticados. Outra crtica apresentada pelas autoras que os estudos
realizados se fundamentam num paradigma tradicional de pesquisa, que
desconsidera a complexidade envolvida no pensamento moral.
Uma viso diferente sobre o desenvolvimento moral tem sido proposta por
outros autores, como afirma Arajo (2000). A autora apresenta diversas pesquisas
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que estudam essa temtica de forma mais abrangente, entendendo como aspecto
cognitivos e afetivos aparecem de forma interligada no desenvolvimento moral. Para
La Taille (2002) a articulao entre cognio e afetividade, embora ressaltada nos
estudos mais recentes, um problema central das pesquisas sobre a psicologia
moral. Ele afirma que nos estudos realizados pouco se pode ver essa integrao.
Uma proposta para o entendimento da moralidade de uma forma mais
integrada aparece com Puig (1998) que defende a personalidade moral no como
algo que desenvolvido, mas como uma construo a partir de diferentes
reguladores morais. Os reguladores inferiores so de natureza biolgica e
sociocultural. J o regulador superior denominado de conscincia moral autnoma.
Sobre esta conscincia, o autor explica que h crticas quanto a expresso, poisvrios autores questionam a existncia de uma moral autnoma. Porm, para ele a
conscincia moral construda com base nos reguladores inferiores, ou seja, na
interao entre fatores biolgicos e sociais. Os aspectos sociais so determinantes
na construo moral, mas no se pode desconsiderar, tambm, a possibilidade de
interveno do indivduo na tomada de decises. No possvel acreditar que toda
reflexo ou ao moral seja determinada socialmente.
Puig (1998) atribui grande valor conscincia moral autnoma e salienta queela tem sido construda pelo homem, aparecendo como um novo regulador, com a
inteno de auxiliar o processo de adaptao do ser humano. Esse novo regulador
assume grande destaque por sua capacidade de tambm influenciar os reguladores
inferiores.
Em sntese, para Puig (1998) a moralidade, que tem como papel possibilitar a
criao de condutas que permitam uma boa convivncia social, tem sido estudada
segundo diferentes abordagens. Ao discutir a personalidade moral, afirma que ela construda a partir das relaes sociais. Porm, tambm influenciada por aspectos
individuais. Por oferecer referncias sobre o que se considera bom ou mau, a escola
um espao importante para a construo da moralidade dos estudantes.
Valle (2001) salienta que a associao entre tica e educao evidente uma
vez que escola se atribui a responsabilidade por formar os futuros cidados. No
entanto, para Goergen (2005), ainda que a preocupao com a educao tica
aparea frequentemente no discurso dos educadores, no cotidiano escolar o tema
tratado de maneira restrita e superficial. Para o autor, nas prticas pedaggicas
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escolares a tica ocupa um lugar bastante singelo, muitas vezes restrito a um
recorte disciplinar ou, quando muito, a uma atividade transversal (p.985).
La Taille, Souza e Vizioli (2004) apresentam algumas hipteses para explicar
essa situao. Segundo os autores, h uma crena por parte de alguns educadores
de que no cabe escola realizar o trabalho de educao moral. Esta crena se
apoia na experincia histrica com a educao moral e cvica durante a ditadura
militar, gerando certa resistncia realizao desse trabalho. Outra hiptese que
h um temor em relao ao tema, sendo que a ausncia de propostas na escola no
estimula a produo de pesquisas cientficas.
Para La Taille (2001) apesar de ser estudado h mais de um sculo, a
educao moral na escola apresenta ainda muitas incertezas e polmicas poisesto em jogo valores nem sempre consensuais (p. 113). De acordo com o autor,
necessrio cautela para tratar do tema pois um trabalho com a educao moral
pode resultar em alunos acrticos e conformistas, como aconteceu no Brasil, durante
a dcada de 1970.
Em pesquisa realizada para identificar a presena da tica na literatura
pedaggica, La Taille, Souza e Vizioli (2004), verificaram que apenas em dois
artigos analisados existem propostas pedaggicas para a construo da moralidade.Assim, os autores afirmam que na discusso sobre tica e educao, a prtica a
grande ausente (LA TAILLE, SOUZA E VIZIOLI, 2004, p.103). Um dos trabalho que
prope estratgias para realizar a educao moral na escola apresentado por
Nucci (2000). Para o autor os professores podem influenciar o desenvolvimento da
capacidade dos alunos para agir em seus mundos sociais e morais (p.83). Para
isso preciso compreender que a forma de estmulo deve ser adequada s
caractersticas do desenvolvimento do estudante e que o papel do professor no seresume a orientar os alunos para alcanarem determinados estgios de
desenvolvimento moral, mas deve criar situaes que levem as crianas a
compreender as situaes complexas presentes em seu cotidiano e priorizar os
aspectos morais presentes nas questes sociais.
possvel encontrar estudos que focalizam a influncia da Educao Fsica e
do Esporte na formao moral dos alunos. Nesses estudos se analisa juzo moral,
justia, fair play e olimpismo. Um desses estudos foi realizado por Prinz (2002), que
investiga como os alunos podem tomar conscincia de valores como disponibilidade
para ajudar, justia e respeito mtuo. Outro objetivo do autor foi verificar como esses
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alunos podem ser estimulados a perceber valores positivamente e aplic-los em sua
vida fora da Educao Fsica.
A aplicao de programas para a construo do fair play nas aulas de EF
investigada por Bronikowsky (2006) que apresenta estudo experimental aplicado por
3 anos e constata que no houve mudanas expressivas no comportamento dos
alunos. Hassandra et al (2007) avaliaram os resultados da aplicao de um projeto
construdo a partir da combinao de elementos das teorias propostas por Bandura
e por Kohlberg. Verificaram que houve o desenvolvimento social dos participantes e
que esses resultados foram mantidos dois meses aps a concluso do programa.
Proios e Proios (2008) verificaram a interferncia do estilo de ensino adotado
pelo professor no desenvolvimento moral dos alunos. Aplicaram dois estilos deensino, propostos por Mosston, que permitem aos alunos tomar decises nas aulas.
Aplica tambm uma proposta construda a partir da integrao entre esses dois
estilos, partindo do pressuposto que esta combinao ter influncia maior sobre os
alunos. No entanto, a hiptese dos autores no foi confirmada. Eles acredita que a
durao de aplicao do projeto foi curta e talvez, no seja possvel verificar os
resultados nesse curto tempo. J Vidoni e Ward (2009) adotam metodologia
qualitativa para avaliar a aplicao de programa para estimular habilidades sociaisrelacionadas com o fair play. Os autores constataram que houve mudana no
comportamento dos participantes e que a essa mudana foi observada com
facilidade e indicam a necessidade de incluir o fair play como tema das aulas de
Educao Fsica. A influncia positiva da Educao Fsica sobre o comportamento
social dos alunos aparece tambm nos trabalhos de Prinz (2002), Mouratidou,
Goutza e Chatzopoulos (2007) e Lacrcel, Gonzales e Murcia (2009).
A realizao dos estudos sobre educao moral tem trazido contribuiesindiscutveis para compreenso da presena dos valores na escola. Entretanto, alm
dos valores relacionados moral, outros tantos, no morais, esto presentes na
sociedade e na escola (SALVADOR ET AL, 2000; GOUVEIA, 2003; HOFFE, 2004;
ARAUJO, 2007) e merecem ser compreendidos. Nessa perspectiva, considero que a
aplicao da abordagem societal dos valores, proposta por Pereira, Camino e Da
Costa (2005) pode trazer contribuies para ampliar a compreenso dos valores na
escola, na medida em que apresenta, em sua classificao, a identificao de
valores no morais.
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2 REFORANDOOSTRAOSEDELIMITANDOASFORMAS
Partindo desse bosquejo inicial e tendo aprofundado o conhecimento sobre os
valores, pude perceber a necessidade de aperfeioar o desenho de minha pesquisa,
estabelecendo de forma mais ntida seu contorno e apagando traados
considerados secundrios. Dessa forma, era preciso definir a problemtica central
do estudo, a questo de pesquisa a ser respondida, bem como o objetivo que
orientaria sua realizao.
Entendo que essa reestruturao tem como ponto de partida a constatao
da existncia de um discurso que defende a Educao Fsica escolar como espao
para estimular a construo de valores por parte dos alunos. Como afirmam Bayleyet al. (2009) existe uma crena, partilhada por professores e pesquisadores, de que
a participao nas aulas de Educao Fsica leva a criana a respeitar a si e aos
outros. Silva e Freire (2007), num trabalho inicial, identificaram esta crena no
discurso de professores. Ela compartilhada tambm por Guimares et al. (2001),
Nicoletti (2003), Grau e Prat (2003) e Botelho e Grau (2008).
Tenta-se, dessa forma, legitimar a presena da Educao Fsica na escola e,
para tal, chega-se a afirmar que nesse componente curricular esto reunidas ascondies mais apropriadas para estimular o desenvolvimento scio-moral dos
estudantes. Grau e Prat (2003), por exemplo, defendem a tese de que o maior
interesse dos alunos pelos temas da Educao Fsica e as caractersticas das
atividades propostas so facilitadores para a construo de valores nas aulas. As
autoras afirmam que
el juego, la actividad fsica y el deporte destacan por su carcter vivencial y
ldico, el gran potencial de cooperacin y superacin que conllevan, la
cantidad de interacciones personales que generan y la presencia constante
de conflictos, con lo que se convierten en unas herramientas privilegiadas
para la educacin en valores (p.113).
Entretanto, essa viso pode ser utilizada para reforar a crena de que a
construo de valores nas aulas de Educao Fsica acontece de forma automtica.
Assim, a frequente presena de conflitos em aula por vezes entendida como
estmulo para que os alunos busquem solucion-los e, consequentemente,desenvolvam habilidades para o convvio social. Nesse entendimento se negligencia
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o fato de que, historicamente, essas aulas tem disseminado valores outros, que no
a cooperao e o respeito ao prximo. Desrespeito, individualismo e autoritarismo
tambm aparecem nas aulas de Educao Fsica como j comprovaram vrios
autores, como por Moreira (1988), Bassani, Torri e Vaz (2003).
O discurso defendido por professores e pesquisadores, embora tenha como
base o reconhecimento de que toda interveno pedaggica se fundamenta num
conjunto de valores, quando repetido de forma superficial e acrtica, por vezes tenta
tratar, de forma simplista, tema que se reveste de uma imensa complexidade. Por
conseguinte, as afirmaes veiculadas em discurso no so concretizadas no
cotidiano das aulas.
Por vezes, embora o professor acredite ou declare ensinar determinado valorpode, a partir de seu exemplo e de suas atitudes, estimular outros. Essa incoerncia
entre o discurso do professor e a realidade de sua interveno aparece no trabalho
realizado por Langhout e Mitchell (2008), que investigaram a forma como o
estabelecimento de regras sem a participao dos estudantes pode gerar o
desinteresse do aluno pela escola. As autoras verificaram que a professora
participante acredita realizar um trabalho que estimula o envolvimento dos alunos
com as atividades acadmicas e que os resultados obtidos so positivos para seusalunos. Entretanto, como evidenciam Langhout e Mitchell (2008), as estratgias
utilizadas valorizam mais a conduta moral dos alunos que a aprendizagem dos
conhecimentos propostos e disseminam ideias implcitas que, ao contrrio do pensa
a professora, desestimulam o envolvimento do aluno com sua aprendizagem.
Outro estudo que comprova a existncia de incoerncia entre discurso e
interveno, agora no contexto da Educao Fsica, apresentado por Bassani,
Torri e Vaz (2003), que realizaram pesquisa etnogrfica, investigando a educao docorpo na escola. Durante a entrevista realizada com a professora que fora
acompanhada durante o estudo, aparece um discurso no qual se enfatiza que a
performance dos alunos no est entre os objetivos das aulas, ou seja, a professora
declara no valorizar o rendimento fsico ou a qualidade da execuo realizada.
Entretanto, durante as observaes os autores puderam verificar que, a todo o
momento, ela ridicularizava os meninos que no apresentavam o nvel de habilidade
motora esperado, que eram comparados s meninas, que tm desempenho
considerado inferior, na perspectiva da professora.
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Este distanciamento entre o discurso do professor e a realidade de sua
interveno pode estar relacionado com uma dificuldade em perceber quais so
seus prprios valores e em realizar uma leitura crtica da realidade na qual se est
imerso. A percepo prejudicada permite que os valores permaneam ocultos no
currculo.
Alguns estudos tm discutido como os valores, embora sempre presente nas
interaes sociais entre professores, alunos e demais integrantes da comunidade
escolar, por vezes so pouco percebidos e fazem parte de um currculo oculto,
ideia apresentada em 1968 por Jackson (1990) e ampliada por autores da teoria
crtica do currculo, como Apple e Giroux.
Apple (1982, p. 127) define o currculo oculto como um conjunto de normase valores que so implcita porm efetivamente transmitidos pelas escolas e que
habitualmente no so mencionados na apresentao feita pelos professores dos
fins e objetivos. Outra definio semelhante apresentada por Silva (2002) como
um currculo constitudo por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem
fazer parte do currculo oficial, explcito, contribuem, de forma implcita, para
aprendizagens sociais relevantes (p.78).
Giroux (2001) afirma que valores e crenas so interiorizados a partir dasregras que normatizam as relaes pessoais na escola e na sala de aula. Assim,
valores, normas e crenas, geralmente presentes nos cdigos disciplinares, esto
entre os contedos escolares apresentados aos estudantes, ainda que de forma
tcita e, como afirma Moreira (2002), por vezes influenciam mais o seu processo de
socializao que os contedos presentes no currculo explcito.
Langhout e Mitchell (2008) verificaram que o currculo oculto expressa
mensagens, inconscientemente produzidas pelos professores, reproduzindo naescola a estrutura de poder e de desigualdade presente na sociedade. As autoras
identificaram tambm influncias do currculo oculto no comportamento da
professora acompanhada no estudo. A partir de mensagens implcitas dos demais
professores se evidencia que ela deve controlar o comportamento de seus alunos,
ou no ser uma boa professora. Para as autoras, o currculo oculto explica o motivo
da inconsistncia entre aquilo que a professora acredita fazer por seus alunos e o
que realmente faz.
A disseminao do currculo oculto um dos mecanismos utilizados pela
escola para realizar a funo de reprodutora da sociedade. Tese apresentada em
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Bourdieu e Passeron (1975) e aprofundada em outras obras de Bourdieu. Em seus
estudos, Bourdieu procurou compreender os mecanismos que levam produo e
reproduo da estrutura e da desigualdade social. A partir da anlise do ensino
universitrio na Frana, Bourdieu (2007a) explica que, ao chegar escola, o aluno
traz como herana um capital cultural, que influencia seu sucesso escolar, j que a
formao educacional dos pais influencia o rendimento escolar dos filhos, mais que
sua condio scio-econmica.
Contudo, embora desde muito cedo a criana seja influenciada pelo capital
cultural adquirido, a escola tem grande responsabilidade na reproduo desse
processo de construo que se inicia fora dela. Assim, Bourdieu (2007b) explica
como essa instituio tem exercido seu papel, contribuindo para a internalizao dohabitus que, como explica Thiry-Cherques (2006, p.33) constitui a nossa maneira
de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a nossa forma de agir, corporal e
materialmente. O habitus um cdigo comum, construdo socialmente, como um
conjunto de esquemas implantados desde a primeira educao familiar, e
constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetria social restante
(MICELI, 2007, p. XLII).Ao mesmo tempo, ele uma construo histrica, medida que
permite a apropriao de disposies, costumes e teorias produzidos ao longo da
histria humana (BOURDIEU, 2009). Assim, o habituscarrega em si as percepes e
esquemas que permitem a tomada de decises de forma automatizada sem,
necessariamente, exigir alguma reflexo.
Os valores esto presentes no habitus, constituindo o ethos, definido por
Bourdieu (2007a, p.42) como um sistema de valores implcitos e profundamente
interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face ao capital
cultural e instituio escolar. O professor, autoridade estatutria, autorizadosocialmente a exercer o papel de agente na disseminao do ethos e habitus
escolar. Essa funo exercida pelo professor de forma inconsciente.
A partir dos conceitos apresentados possvel compreender porque os
valores no so tratados explicitamente no currculo. Sendo interiorizados de forma
profunda e de modo implcito, professores (e alunos) geralmente no percebem sua
presena, um dos motivos da incoerncia entre discurso e interveno. Mesmo
entendendo que professores e alunos no so apenas receptores de informao,
mas tambm a produzem e mediam (Giroux, 2001, p.58) e que h professores
construindo formas diferentes de explicitar no currculo escolar os valores que
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pretende estimular nos alunos, evidente que o caminho percorrido por esses
educadores, que procuram atuar de forma intencional e crtica, marcado por
desafios, contratempos ou dificuldades.
Mediar a construo de valores no depende apenas da vontade, da
competncia ou da boa inteno do professor de Educao Fsica. Obviamente,
inmeras variveis agem nessa construo, variveis que no podem ser
controladas pelos professores. Alguns professores de Educao Fsica percebem a
complexidade presente em seu cotidiano, quando se propem a realizar um trabalho
voltado para a construo de valores, como um dos entrevistados por Baliulevicius
e Macrio (2006). Shoval, Erlich e Fejgin (2010) tambm relatam que os professores
participantes no estudo realizado, que eram recm-formados, declaram enfrentargrandes dificuldades para implementar a construo de valores. provvel que
professores experientes tambm percebam tais dificuldades. Mas, quais so as
dificuldades percebidas por esses professores? Qual a origem dessas dificuldades?
Para responder estas questes, elaborei o presente estudo com o objetivo de
compreender o que dificulta o trabalho de professores que se propem a fazer das
aulas de Educao Fsica um espao para a construo dos sistemas de valores de
seus alunos.Entendo que o professor enfrenta inmeras dificuldades ao se propor a
estimular a construo de valores, dificuldades originrias de uma relao dialtica
entre exterioridade e interioridade presente na interveno docente. Assim, as
percepes do professor sobre suas possibilidades de interferncia na construo
do sistema de valores de seus alunos influencia sua percepo sobre as dificuldades
enfrentadas e, consequentemente, as prticas adotadas. Ao realizar este estudo
pretendo explicitar essas dificuldades, compreender sua origem e evidenciar aincoerncia de um discurso simplista que idealiza o trabalho do professor e suas
possibilidades de interveno.
Quero argumentar que o professor de Educao Fsica tem priorizado a
construo de valores morais e, vendo seu trabalho de forma idealizada, assume
objetivos que s podem ser atingidos a partir de um trabalho coletivo. Defendo a
tese de que a concepo da Educao Fsica como espao propcio para construir
valores morais disposio incorporada ao habitus do professor, disposio esta
que tem por funo gerar uma iluso e, nessa medida, assegurar uma prtica
reprodutora da sociedade, legitimada pelo prprio professor. Esta iluso pode gerar
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parte das dificuldades enfrentadas pelos professores ao tentar estimular a
construo de valores, uma vez que origina conflitos internos ao professor, que nem
sempre consegue demonstrar coerncia entre o discurso adotado e a prtica
construda.
3 DEFINIODODESENHO:ESTRUTURA,ACESSRIOSECORES
Para compreender o que torna difcil a tarefa do professor de Educao Fsica
de possibilitar a construo de valores em suas aulas entendo que essencial
buscar uma aproximao com o contexto desse professor, local onde surgem as
dificuldades que so objeto desse estudo. Dessa forma, escolhi realizar uma
pesquisa no cotidiano escolar por entender que, como afirma Oliveira (2001), este
um espao onde professores, alunos, gestores, funcionrios, pais e todos aqueles
que constituem a comunidade escolar interagem socialmente e constroem um
universo particular.
Concordando com Andr (2008), acredito que pesquisar o cotidiano pode
permitir uma melhor compreenso sobre a forma como a escola influencia o
processo de construo dos diferentes smbolos culturais, entre eles os valores. Aautora afirma que a realizao de pesquisas mais prximas do cotidiano escolar
tornou-se mais frequente a partir dcada de 1980, acompanhando a ampliao dos
estudos que seguem uma abordagem qualitativa de pesquisa em educao, j que a
proximidade com o cotidiano uma das caractersticas desse tipo de abordagem
(BOGDAN e BIKLEN, 1994). Assim, o pesquisador que no passado era visto como
um sujeito de fora, nos ltimos dez anos tem havido uma grandevalorizao do olhar de dentro, fazendo surgir muitos trabalhos em que se
analisa a experincia do prprio pesquisador ou em que este desenvolve a
pesquisa com a colaborao dos participantes (ANDR, 2001, p.54).
Estas pesquisas realizadas no cotidiano escolar tm sido influenciadas pelos
estudos apresentados por Certeau (1999) sobre a construo do cotidiano. Nestes
estudos ele argumenta que o homem comum produz formas silenciosas para lidar
com uma realidade opressora, subvertendo o uso de normas e prticas que lhes soimpostas. Essas formas de ao, denominadas tticas, surgem a partir da
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criatividade de algum que, embora parea submisso, encontra formas de
resistncia.
Assim, investigar o cotidiano procurar por tticas aplicadas pelos sujeitos
investigados, ultrapassando a pura descrio de informaes e discursos. assumir
o desafio de mergulhar nestes cotidianos, buscando neles mais do que as marcas
das regras gerais de organizao social e curricular, outras marcas, da vida
cotidiana (OLIVEIRA, 2001, p.42). Alm disso, preciso entender que o
pesquisador tambm parte do cotidiano investigado (FERRAO, 2001).
Raras so as pesquisas que, ao investigar os valores no Ensino da Educao
Fsica, apresentam caractersticas semelhantes as desse estudo que apresento, ou
seja, seguindo uma abordagem qualitativa e que, como tal, se preocupa emcompreender o objeto em seu contexto. Em levantamento realizado em trs bases
de dados internacionais, identifiquei que o paradigma tradicional de pesquisa
predominante nos estudos publicados nos ltimos dez anos. Grande parte deles, se
aproximam da escola para colher uma grande quantidade de dados fornecidos por
professores e alunos. A partir desses dados, geralmente coletados por intermdio de
questionrios fechados, os pesquisadores procuram compreender opinies,
percepes ou crenas dos sujeitos investigados, sem incluir na coleta informaessobre suas aes ou sobre o contexto que produz tais formas de pensamento.
Exemplo desse tipo de pesquisa aparece em Ebbeck e Gibbons (2003), Behets e
Vergauwen (2004), Meek e Cutner-Smith (2004) e Guan, McBride e Xiang (2005).
importante ressaltar que no desconsidero a validade e relevncia desse tipo de
estudo. Entretanto, entendo que h a necessidade de encontrar outros modos de
olhar para o fenmeno aqui investigado.
possvel encontrar estudos que se propem a interferir na realidade daescola, aplicando pesquisas experimentais ou quase-experimentais, na tentativa de
entender uma possvel relao causa-efeito na construo de valores, como se
observa em Chen et al. (2008), Gao, Newton e Carson (2008), Leopold e Junio
(2008) Dean, Adans e Comeau (2010). Entretanto, nesses estudos os autores no
analisam dados construdos no processo de interveno presente na pesquisa. So
analisados apenas os resultados da interveno, com a valorizao do produto, em
detrimento do processo educacional desenvolvido.
O predomnio de pesquisas emprico-analticas no resultado que chega a
surpreender, do ponto de vista da produo do conhecimento em Educao Fsica,
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j que a rea, por sua proximidade com as cincias da sade e por sua constituio
acadmica, tem valorizado o paradigma tradicional de pesquisa. Entretanto, essa
forma de investigar o objeto de estudo proposto mostra-se incongruente e limitada.
Portanto, preciso buscar novas formas de fazer pesquisa na rea. Para
compreender a Educao Fsica na escola preciso lanar mo de mtodos,
metodologia e epistemologia prprias da pesquisa educacional, na qual tem crescido
o nmero de investigaes que optam por outras vertentes epistemolgicas
(Gamboa, 2007). Alm disso, concordando com Silverman e Manson (2003) acredito
que muitas questes de pesquisa da Educao Fsica, inclusive aquelas que
problematizam a construo de valores, no podem ser respondidas apenas com a
aplicao da metodologia quantitativa.Assim como Camir e Trudel (2010) entendo que a pesquisa qualitativa tem
papel relevante quando procuro entender um fenmeno complexo, como acontece
com a construo de valores, justificando a necessidade de realizar novos estudos
sobre o tema, adotando metodologia qualitativa de pesquisa e procurando encontrar
formas de aproximar o pesquisador do cotidiano escolar.
3.1 A Construo do meu olhar: a hermenutica como caminho
Na tentativa de responder as questes que originam este estudo, um dos
maiores desafios que tenho enfrentado a reconstruo de minhas concepes
sobre o ato de pesquisar. Meu processo de formao acadmica tem sido
intensamente marcado pelo modelo cientfico fundado da racionalidade tcnica, que
tem como grandes marcas a nfase na medio, na fragmentao e na busca pela
objetividade do pesquisador, que negligencia a complexidade dos fenmenos
investigados (SANTOS, 1988; GHEDIN e FRANCO, 2008).
Contudo, a opo por pesquisar objetos de estudo de natureza social, ligados
ao ensino da Educao Fsica na escola, h algum tempo tem me aproximado de
um paradigma diferente de cincia, discutido por Santos (1988). Assim, ao
desenvolver pesquisas numa abordagem qualitativa, venho procurando
compreender suas caractersticas. Tenho priorizado a investigao do objeto de
estudo na realidade onde acontece, elemento caracterstico das investigaes que
adotam a abordagem qualitativa, como explicam Bogdan e Biklen (1994) e Turato(2005). Entrevistas e observaes tm sido as principais formas utilizadas para me
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aproximar do objeto investigado. No entanto, concepes e prticas originrias num
paradigma tradicional de pesquisa ainda podem ser percebidas em algumas
situaes, evidenciando certa incoerncia nas propostas metodolgicas que me
propunha a aplicar.
Entendendo que essa incoerncia era resultado de um conflito interno entre
os dois paradigmas de pesquisa adotados nos estudos que realizava, identifiquei a
necessidade de repensar minhas concepes e, como proposto em Ghedin e Franco
(2008), construir um novo olhar sobre a produo do conhecimento cientfico,
diferenciando percepo de compreenso. Um novo olhar que permita compreender
uma realidade complexa, cujos significados no se revelam naturalmente, mesmo ao
observador atento (GHEDIN, 2004).Ghedin e Franco (2008), assim como Ricoeur (2008), entendem que a
compreenso est diretamente ligada explicao e afirmam que a realizao ou o
resultado de um trabalho de pesquisa na rea das cincias humanas so a
consequncia de um processo de explicao, compreenso e interpretao da
realidade (p.83). Compreender e explicar so termos diretamente interrelacionados.
Na cincia tradicional, por vezes eles foram conceituados como aes distintas. No
entanto, como afirmam Ghedin e Franco (2008), para compreender o sentido dosatos humanos, preciso passar pela explicao. A compreenso resultado,
inacabado, de um processo de explicao (p. 83).
Como pesquisadora, busco compreender-explicar as dificuldades que
enfrenta um professor de Educao Fsica ao estimular a construo de valores de
seus alunos. Nesse processo, estarei envolvida na interpretao de uma dada
realidade. Para compreender como se d essa interpretao e, ao mesmo tempo,
para me compreender como intrprete, busquei o suporte da hermenutica crtica(KINCHELOE e MACLAREN, 2006; RICOEUR, 2008).
O termo hermenutica tem origem nas palavras gregas hermeneuein e
hermeneia e significa a arte de interpretar textos (LIMA, 2008). Durante muitos
sculos ela foi entendida como um mtodo de anlise de textos aplicado, de forma
predominante, para a interpretao de textos religiosos (exegese) (GADAMER,
1999; RICOEUR, 2008). A partir dos estudos de Schleiermacher e de Dilthey a
hermenutica muda seu curso e passa a ser entendida como uma tcnica de
compreenso passvel de aplicao a toda forma de texto (LIMA, 2008).
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Mas uma grande transformao da hermenutica acontece com a publicao
de verdade e mtodode Gadamer (1999) que, tomando como referncia a obra de
Heidegger, apresenta as bases para uma hermenutica filosfica. Dessa forma, ele
ressalta que sua inteno, ao apresentar sua teoria, no foi a descrio de um
conjunto de tcnicas ou mtodos de pesquisa que levem compreenso, mas
explicitar as condies que permitem que ela acontea (GADAMER, 1999). Ainda
assim, como afirma Hekman (1990), inegvel a implicao da hermenutica
filosfica sobre a metodologia da pesquisa nas cincias humanas, medida que
define uma perspectiva filosfica que revoluciona de tal forma o modo como as
cincias sociais so concebidas que pe em questo a nossa prpria noo de
mtodo (p. 145-146). Assim, embora Gadamer (1999) no se proponha a discutirum mtodo para a anlise de textos, ao apresentar suas teoria, influencia opes
metodolgicas dos pesquisadores e, portanto, interfere nos mtodos escolhidos por
eles.
Em seu trabalho Gadamer (1999) argumenta que compreender e interpretar
so aes interligadas e que no possvel realizar uma interpretao que garanta
objetividade cientfica, defendida pelas chamada cincias da natureza, j que o
interprete no algum neutro, mas que carrega consigo um conjunto de crenas evalores, que pertence a uma cultura e que, portanto, est situado historicamente.
Dessa forma, a interpretao um processo marcado pela subjetividade, no qual
esto presentes preconceitos, que orientam a compreenso do texto.
Partindo dessa premissa, busco apoio na hermenutica porque entendo que
eu, pesquisadora, trago uma srie de conceitos previamente elaborados, que
influenciam meu olhar ou, nas palavras de Gadamer (1999), estou imersa em
tradies e perteno histria. Condicionada, possuo crenas e valores queimplicam numa interpretao prvia do problema investigado, ou seja, tenho meus
preconceitos. Fica evidente, portanto, que a interpretao depende do olhar daquele
que interpreta (Ghedin e Franco, 2008).
Mas, se por um lado a existncia de preconceitos pode limitar a validade da
interpretao, tornando-a superficial e arbitrria, por outro lado ela condio da
existncia da hermenutica. Hekman (1990) destaca que a