verinotio vitor sartori. heidegger e lukacs

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Espaço de interlocução em ciências humanas n. 11, Ano VI, abr./2010 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X Verinotio revista on-line de educação e ciências humanas O segundo Heidegger e Lukács: alienação, história e práxis Vitor Bartoletti Sartori * Resumo: A relação existente entre o segundo Heidegger e os marxistas será tratada tendo em conta as temáticas comuns existentes entre o segundo Heidegger, principalmente aquele da Carta ao humanismo, e o Lukács da Ontologia e da Estética. Partir-se-á da crítica de ambos às filosofias pretéritas e de suas relações com o idealismo alemão, remetendo-se posteriormente à relação existente entre a alienação e a manipulação – no que a história aparecerá de distintas maneiras, aspecto central à oposição entre os dois pensadores, que se embaterão também sobre o espaço público. Pretende-se demonstrar, assim, a relação existente entre a crítica de Heidegger ao materialismo, à história e à alienação e o seu posicionamento concreto oposto ao de Lukács. Palavras-chave: Lukács; Heidegger; alienação; história; práxis. The second Heidegger and Lukács: alienation, history and práxis Abstract: The relationship between Heidegger and the marxists will be treated taking in account the common thematics between the second Heidegger, the author of Letter to the humanism, and Lukács on the Ontology and the Esthetics. The point of departure is the critique, made by Lukács and Heidegger, to the previous philosophy, the relations with the German philosophy and the relation between alienation and manipulation. Here, history appears differently in each thinker and is the object of the debate that takes place among them in the public realm. So, the heideggerian critique on materialism, history and alienation makes explicit his position, which is the very opposite of Lukács ideas. Key words: Lukács; Heidegger; alienation; history; praxis. * Mestrando em história pela PUC-SP e doutorando em filosofia do direito pela Universidade de São Paulo (USP).

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  • O segundo Heidegger e Lukcs: alienao, histria e prxis

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    Espao de interlocuo em cincias humanas n. 11, Ano VI, abr./2010 Publicao semestral ISSN 1981-061X

    Verinotio revista on-linede educao e cincias humanas

    O segundo Heidegger e Lukcs: alienao, histria e prxis

    Vitor Bartoletti Sartori*

    Resumo:

    A relao existente entre o segundo Heidegger e os marxistas ser tratada tendo em conta as temticas comuns existentes entre o segundo Heidegger, principalmente aquele da Carta ao humanismo, e o Lukcs da Ontologia e da Esttica. Partir-se- da crtica de ambos s filosofias pretritas e de suas relaes com o idealismo alemo, remetendo-se posteriormente relao existente entre a alienao e a manipulao no que a histria aparecer de distintas maneiras, aspecto central oposio entre os dois pensadores, que se embatero tambm sobre o espao pblico. Pretende-se demonstrar, assim, a relao existente entre a crtica de Heidegger ao materialismo, histria e alienao e o seu posicionamento concreto oposto ao de Lukcs.

    Palavras-chave:

    Lukcs; Heidegger; alienao; histria; prxis.

    The second Heidegger and Lukcs: alienation, history and prxis

    Abstract: The relationship between Heidegger and the marxists will be treated taking in account the common thematics between the second Heidegger, the author of Letter to the humanism, and Lukcs on the Ontology and the Esthetics. The point of departure is the critique, made by Lukcs and Heidegger, to the previous philosophy, the relations with the German philosophy and the relation between alienation and manipulation. Here, history appears differently in each thinker and is the object of the debate that takes place among them in the public realm. So, the heideggerian critique on materialism, history and alienation makes explicit his position, which is the very opposite of Lukcs ideas.

    Key words: Lukcs; Heidegger; alienation; history; praxis.

    * Mestrando em histria pela PUC-SP e doutorando em filosofia do direito pela Universidade de So Paulo (USP).

  • Vitor Bartoletti Sartori

    Verinotio revista on-line n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-061X

    O presente texto tem como escopo averiguar os pontos de oposio existentes entre o segundo Heidegger e o Lukcs da Ontologia do ser social por meio do tratamento dado por ambos a temas importantes na tradio marxista, como a tcnica, a histria e a prxis. Para tanto, primeiramente, preciso que se explique o que deve ser entendido como o segundo Heidegger no presente texto.

    A diviso da obra de Heidegger no pacfica e aqui ser utilizada a diviso (a mais comum dada obra do autor alemo) segundo a qual h no autor um primeiro perodo marcado pelas reflexes sobre a ontologia fundamental de O ser e o tempo e uma segunda fase em que o autor denuncia a obra de 1926 como ainda contaminada por resqucios de transcendentalismo oriundos principalmente da fenomenologia de Husserl. Ressalta-se tambm que essa mudana na posio de Heidegger coincide com sua negao daquilo chamado primeiro por Lukcs e hoje por Tertulian de o realismo herico. Assim, quando se diz segundo Heidegger, no presente escrito, pretende-se referir sobretudo ao Heidegger que abandona a centralidade da problemtica da de-ciso e se foca em uma crtica filosofia moderna, entendida como uma filosofia metafsica trata-se da fase em que a crtica da tcnica se liga crtica da modernidade e da filosofia moderna, como ser demonstrado mais abaixo. Assim, quando se diz segundo Heidegger tambm se pretende tratar das obras do autor alemo em que a questo da tcnica aparece de maneira central, o que acontece a partir do final da dcada de 1930, poca em que o autor j perdeu todas as suas esperanas no desenvolvimento dado Alemanha da poca, o que tambm significa que a perspectiva de uma mudana fundamental no desenvolvimento da modernidade tambm vem a ser deixada de lado pelo autor. preciso se notar que o presente escrito no tem a temtica da diviso da obra de Heidegger por central, pois no questo fundamental ao desenvolvimento do tema aqui tratado, embora a problemtica possa ser de grande importncia numa anlise mais detida da obra do autor, o que tambm no constitui objeto do presente texto1. Assim, adota-se a diviso mais comum da obra do autor, sendo talvez a Carta sobre o humanismo a obra mais difundida dessa fase do autor.

    No que se pode comear, aps essa pequena ressalva, com a referida obra, publicada em 1947 e que tem seu impulso nos apontamentos (feitos por cartas do filsofo francs Jean Beaufret a Heidegger) sobre a situao da relao entre humanismo e o existencialismo na Frana. Na obra, Heidegger tece o seguinte comentrio acerca de Marx: Pelo fato de Marx, enquanto experimenta a alienao, atingir uma dimenso essencial da histria, a viso marxista da histria superior a qualquer outro tipo de historiografia (Heidegger, 2005, p. 49).

    A passagem de interesse na medida em que remete questo da alienao e prpria histria. No entanto, j na passagem, notam-se dificuldades. Heidegger coloca lado a lado Marx e a viso marxista da histria remetendo Marx no a uma viso autntica da histria, mas a uma historiografia a qual, para Heidegger, liga-se cincia de parmetros tcnicos e manipulatrios. Veja: em Heidegger, a crtica cincia moderna, tecnologia e historiografia amparada na crtica a um tipo de pensamento que seria calculista e que, para o pensador, no chega quilo o verdadeiro pensar deve chegar, ao prprio ser; assim

    O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca pra, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula no um pensamento que medita, no um pensamento que reflete sobre o sentido que reina em tudo o que existe. (Heidegger, 2001, p. 13)

    Na abordagem do autor, o pensamento de Marx sobre a histria seria superior s demais historiografias, mas permaneceria preso a um raciocinar que calculista medida que se pretende uma cincia e tambm quando o pensamento de Marx, na viso de Heidegger, no caracterizado pela serenidade do meditar, mas pelo apelo prxis, como ser explanado posteriormente. Para o autor da Carta sobre o Humanismo, o marxismo no caminhou para uma compreenso ontolgica amparada pela noo de ser, continuando em meio manipulao dos entes sendo, pois, ligado quilo que caracteriza a metafsica na viso heideggeriana, o entendimento do ser enquanto o conjunto de entes e a supresso da distino entre o ser e os entes2. Assim, embora o marxismo tenha proporcionado uma viso da histria superior a qualquer outro tipo de historiografia, trata-se de uma iniciativa em que na base dos elementos historiogrficos so construdos balanos, so concedidas taxaes, cotas de participao e custos so calculados os quais o homem necessita cobrar ao longo da histria (Heidegger, 2008 , p. 86). No que se percebe que essa crtica ao calculismo do pensamento moderno, que Heidegger advoga com recurso crtica da metafsica, aplicada pelo autor ao marxismo que, assim, encontrar-se-ia amparado na manipulao planetria que tem sua origem nesse pensar calculista cujas consequncias estariam presentes no ps-Segunda

    1 Essa anlise sequer poderia deixar de considerar os escritos de Heidegger anteriores a O ser e o tempo, em que a influncia neokan-tiana ainda muito presente. Assim, em rigor, poder-se-ia mesmo falar em trs fases de Heidegger, opo essa que no adotada no presente texto por no ser essencial ao desenvolvimento da temtica central ao escrito e por ser uma opo razoavelmente pouco difundida, embora adotada por importantes tericos como Gianni Vattimo. 2 Veja-se Heidegger sobre a questo: A Metafsica representa realmente o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas ela no pensa a diferena entre ambos. A Metafsica no levanta a questo da verdade do ser-ele-mesmo. Por isso ela jamais questiona o modo como a essncia do homem pertence verdade do ser. (Heidegger, 2005, p. 23)

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    Guerra que, para Heidegger, marcado principalmente pelo desenvolvimento da cincia (vista pelo autor como algo pejorativo) e por aquilo que acredita ser a consequncia disso, a tecnologia nuclear e a bomba atmica. Nota-se tambm nesse ponto que, da crtica ao pensamento que tem o ser como o conjunto dos entes, Heidegger chega crtica da tecnologia atmica e de suas consequncias, mtodo esse que ser tratado posteriormente com referncia questo da atividade humana automediada. A passagem em que o autor se refere a Marx, pois, s pode ser compreendida se se tiverem em conta aspectos que ligam, ao mesmo tempo em que distanciam, Heidegger ao marxismo, o que deve ser feito por meio das afinidades temticas existentes entre os autores escolhidos nesse texto, Heidegger e Lukcs.

    No que mais um ponto aparece na passagem: a questo da alienao, a qual estaria calcada no esquecimento do ser, no esquecimento da verdade do ser, em favor da agresso do ente impensado em sua essncia (Heidegger, 2005, p. 36), para que se use a explicao que o prprio autor d ao termo. Por conseguinte, a tematizao do pensamento moderno (e da modernidade) como aquele em que h o domnio do ente, da agresso do ente, pode ser ligada sua noo de inautenticidade, a qual se conecta alienao, que, por seu turno, vista pelo autor como a perda do homem de si, como sua imerso em meio tcnica e ao cotidiano moderno no que h de se explicitar: o posicionamento de Heidegger ao colocar o marxismo em meio tcnica e ao clculo se d na medida em que, quando diz que Marx atinge uma dimenso essencial da histria enquanto experimenta a alienao, h um confronto com o autor de O capital, quem, para Heidegger, ficaria preso na dimenso que experimenta ao no ser capaz de remeter para alm dos entes e de chegar ao prprio ser, como se explicar melhor posteriormente. Por trs desta compreenso heideggeriana da histria, que tambm ser explicitada depois, coloca-se a questo da alienao, ligada a um confronto com o marxismo, sendo sua abordagem dada sobre a metafsica, a tcnica e a atuao essenciais para a elucidao das duas posies que se pretende tratar no texto, a do segundo Heidegger e aquela do Lukcs da Ontologia.

    O comentrio de Heidegger sobre Marx dbio. Ao mesmo tempo em que o pensador reconhece mritos na tradio marxista, v essa ligada ao que mais combate Marx experimenta a alienao, o que no o mesmo que conseguir tratar dela da maneira correta, podendo ocorrer mesmo o oposto. Nesse sentido, os termos usados pelo pensador alemo para desqualificar o marxismo no so fortuitos, remetendo significativamente sua crtica da manipulao e da tcnica modernas. Problemtica essa que no pode deixar de levar a questes muito caras tradio marxista, como a relao entre a alienao e o desenvolvimento das relaes modernas de produo. No que se deve perceber tambm que questes tratadas pelo marxismo, sem dvida, esto presentes em Heidegger. A passagem citada sobre a historiografia, por exemplo, ampara-se numa crtica a certa forma de racionalidade formal e calculista em que h uma viso parcelar, a qual incapaz de remeter para alm de si mesma e tem como pressuposto a separao estanque entre o sujeito do conhecimento e o objeto. E a questo foi tratada com maestria por Lukcs em Histria e conscincia de classe remetendo totalidade. Heidegger, porm, remete ao Ser em seu tratamento da questo. E Lucien Goldmann esclarecedor nesse ponto, embora possa exagerar na semelhana entre os dois autores no tratamento da problemtica: a consequncia disso que, para expressar suas ideias afins e por vezes quase idnticas, Lukcs fala de totalidade quando Heidegger emprega a palavra ser; de homem quando Heidegger cria o termo Dasein (existncia); de prxis, onde Heidegger diz Zuhandenehit (aproximadamente manipulao) (Goldmann, 1973, p. 57)3. Assim, mesmo que o apontamento de Goldmann diga respeito s obras dos autores as quais estes mesmos julgam superadas, resta que h uma inegvel afinidade nas questes tratadas por Heidegger e por Lukcs j em suas obras de juventude. E no s: se Heidegger reconhece mritos ao marxismo, h de se convir que a polmica dirigida ao pensamento marxista seja tida como essencial ao pensador. Essa oposio do autor, pois, se explicita conforme a oposio ao marxismo, que se d quando Heidegger trata de questes afins ao pensamento marxista, torna-se mais importante no pensador alemo. Ao opor ser e ente, histria e historiografia, o autor de Carta sobre o humanismo marca posies, opondo-se quilo que v como a viso marxista da historia, expresso que pode ser vista como uma crtica, j que no deixa de remeter problemtica das vises de mundo (Weltanschauung), em que uma abordagem principalmente epistemolgica (muito criticada pelo filsofo alemo) est presente. Por conseguinte, o comentrio de Heidegger acerca de Marx traz questes essenciais ao posicionamento do autor da Carta sobre o humanismo, posicionamentos esses que sero vistos em oposio a Lukcs.

    E a polmica, como se pretende demonstrar, passa pelas questes da histria, da alienao e da prxis, sendo a alienao, juntamente com a reificao, muito presente tanto em Lukcs quanto em Heidegger; como bem ressaltou Tertulian, intil insistir na presena marcante, nos escritos de Heidegger e de Lukcs, dos conceitos

    3 La consecuencia de ello es que, para expressar ideas afines y a veces casi identicas, Lukcs habla de totalidad, donde Heidegger emplea la palabra ser; de hombre, donde Heidegger crea el trmino Dasein (existencia); de prxis, donde Heidegger dice Zuhan-denehit (aproximadamente: manipulidad).

  • Vitor Bartoletti Sartori

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    de alienao de e de reificao (Tertulian, 2009, p. 27)4. E esse ser o tom dado na polmica entre o segundo Heidegger e o Lukcs da Ontologia. Porm, a proximidade temtica entre certas concepes de Heidegger e de Lukcs continua ainda em outro aspecto. Lucien Goldmann e Nicolas Tertulian estabeleceram uma ligao entre a mais famosa obra de Heidegger, O ser e o tempo, e a mais famosa obra de Lukcs, Histria e conscincia de classe. A questo no pode ser tratada aqui, j que se pretende tratar justamente dos pensadores que j renegaram parte substancial de suas primeiras obras, porm, Lukcs, em seu famoso prefcio obra Histria e conscincia de classe, tece uma afirmao importante para a questo ora debatida. Aps fazer referncia ao debate em torno de seu livro de juventude, menciona um grande mrito do livro:

    Trata-se do problema da alienao, que, pela primeira vez desde Marx, foi tratado como questo central da crtica revolucionria do capitalismo e cujas razes histrico-tericas e metodolgicas remetem dialtica de Hegel. Naturalmente, o problema pairava no ar. Alguns anos mais tarde, desloca-se para o centro das discusses filosficas com O ser e o tempo de Heidegger, mantendo essa posio ainda hoje, sobretudo em consequncia da influncia exercida por Sartre, assim como por seus discpulos e oponentes. Podemos renunciar, portanto, questo filolgica levantada principalmente por Lucien Goldmann ao identificar em algumas passagens da obra de Heidegger uma rplica ao meu livro, ainda que este no seja mencionado. (Lukcs, 2003, p. 23)

    Aparece a questo da alienao, entendida em Histria e conscincia de classe por meio do clculo e da reificao, temas recorrentes tambm no segundo Heidegger. Assim, embora o pensador hngaro no tenha atribudo relevncia a sua eventual influncia exercida sobre o pensador alemo, reconhece a clara afinidade temtica entre sua obra e a de Heidegger. No somente: reconhece tambm a atualidade (o texto de 1967) da questo. O que faz com que um acerto de contas com Heidegger tenha importncia no meramente acadmica. Se Heidegger trata de questes analisadas pela tradio marxista, Lukcs igualmente rebater as idias do autor da ontologia fundamental e da crtica ao humanismo, sendo que, como apontou Tertulian, nenhum outro filsofo contemporneo lhe suscitou um interesse compatvel um interesse crtico, certamente como se um jogo sutil de afinidades e repulso o unisse ao seu pensamento (Tertulian, 1996, p. 82). Ambos os autores tratados aqui rejeitam tanto o idealismo abstrato como o materialismo vulgar, presos a plos igualmente unilaterais, tambm medida que, como j mencionou o jovem Lukcs, neles a conscincia reificada deve permanecer prisioneira na mesma mediada e igualmente sem esperana, nos extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abstrato (Lukcs, 2003, p. 184). A temtica comum, certamente embora a questo ganhe entornos e posies importantes como ser mostrado posteriormente. Nicolas Tertulian chega mesmo a ver uma relao ainda mais ntima entre ambos os pensadores, afirmando sobre a Esttica de Lukcs: se poderia tambm ler essa obra, juntamente com o seu fundamento, a Ontologia do ser social, como a contrapartida lukacsiana ao livro de Heidegger, O ser e o tempo (Tertulian, 2007, p. 238). H, assim, questionamentos sobre uma relao ntima entre o pensamento de Lukcs e Heidegger, o que d ensejo a uma leitura feita por meio da afinidade temtica entre ambos, ou seja, por seu tratamento dispensado s questes da alienao, da reificao e da histria, as quais aparecem de maneira explcita na passagem em que Heidegger liga o marxismo historiografia.

    Duas distintas ontologias e a razo: os universais, a histria e a prxis

    Tanto a abordagem lukacsiana como a heideggeriana pretendem crticas contundentes s filosofias pregressas e ao idealismo filosfico em particular. No que se deve primeiramente verificar as posies de ambos quanto ao carter do dilogo que estabelecem com as vertentes mencionadas, para depois se averiguar a maneira com que a crtica realizada efetivamente, principalmente tendo em conta a filosofia clssica alem.

    Novamente, h aposies concomitantes s aproximaes. Segundo a feliz expresso de Tertulian, h um jogo sutil de afinidades e repulso: enquanto Lukcs dialoga com a filosofia clssica alem de maneira a tratar das contradies dessa em meio s relaes sociais do capitalismo, Heidegger refere-se tambm filosofia clssica alem, principalmente a Kant e a Hegel (nesse ponto, adota o mesmo procedimento que Lukcs), mas de maneira distinta. Sem tratar do desenvolvimento do capitalismo e de sua influncia na obra dos autores mencionados, o autor da Carta sobre o humanismo oposto ao marxista hngaro. E Heidegger tambm pretende uma ruptura com a filosofia clssica alem, como Lukcs mas essa ruptura deveria passar principalmente pelos gregos, em especial pelos filsofos pr-socrticos, e deveria ser oposta a quaisquer impulsos dialticos no sentido da superao da filosofia clssica. Lukcs, por seu turno, enfoca justamente a superao dialtica, a qual seria realizada no marxismo

    4 (...) il est inutile dinsister sur la forte prsence commune, dans les crits de Heidegger et de Lukcs, des concepts dalination ou de rification.

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    no seio da modernidade capitalista se o filsofo alemo busca as origens intelectuais de sua poca nos primeiros pensadores gregos, Lukcs se volta filosofia indissolvel da sociedade capitalista, de maneira que enquanto Lukcs dialoga durante toda a sua obra marxista com Kant e com Hegel visando romper tanto com o transcendentalismo de Kant quanto com o sujeito-objeto idntico de Hegel, Heidegger primeiramente tem seu enfoque em Kant (publica Kant e o problema da metafsica em 1929, por exemplo) e s depois tem a filosofia de Hegel como detido objeto de estudo, tratando de Hegel justamente em sua fase referida no presente texto5. Pode-se mesmo dizer que a oposio de Heidegger a Hegel ganha importncia nos anos que caracterizam a sua segunda fase e isso til para a temtica tratada no presente texto porque Heidegger no v distino essencial entre Hegel e Marx, colocando Marx (e Nietzsche) como aquele que inverteu a metafsica absoluta de Hegel, o que significaria, para o autor, permanecer preso nesta6.2O que tambm deve ser ressaltado na medida em que as noes de histria e de alienao so essenciais a Hegel e a Marx (embora de maneiras diferentes, evidentemente). Assim, h uma contraposio entre Lukcs e Heidegger, contraposio que se torna mais forte quando Heidegger explcito no s em sua rejeio da noo de histria enquanto processo de desenvolvimento do homem em meio a relaes sociais (noo que estaria ligada historiografia mencionada anteriormente), mas quando se diz oposto noo de superao (Aufhebung).

    E a compreenso da questo tratada aqui remete aos objetivos com os quais so tratados Kant e Hegel nesse ponto.

    De um lado, Lukcs trava uma polmica com a filosofia clssica alem vendo essa em meio a uma sociedade em que as potencialidades humanas se desenvolvem de maneira sem igual ao mesmo tempo em que a personalidade do homem aviltada tratar-se-ia de uma filosofia que detm qualidades e vicissitudes da sociedade em que emerge, pois remetida ontologicamente a essa e efetiva; doutro, Heidegger, que v no dilogo com as filosofias precedentes um embate em que se deve buscar pontos nodais que fariam parte do descobrimento do ser em meio ao encobrimento existente junto aos entes; para Heidegger, aqueles pontos que tivessem uma acepo errnea deveriam ser criticados e seria necessrio remeter a um ponto anterior em que a acepo errnea ainda no estivesse presente na filosofia, no que seria central um dilogo com os pr-socrticos. E vale destacar um apontamento de Heidegger na questo do dilogo travado com as filosofias pretritas:

    Para Hegel o dilogo com a histria da filosofia que o precede tem o carter de sobressumir (Aufhebung), isto , da compreenso mediadora no sentido da fundao absoluta. Para ns o carter do dilogo com a histria no o sobressumir (Aufhebung), mas o passo de volta. (Heidegger, 2006, p. 58)

    A rejeio de Heidegger do Aufhebung hegeliano (apropriado criticamente por Marx e por Lukcs) leva o autor de Carta sobre o humanismo a um desejo no s de acertar as contas com a filosofia clssica alem, mas tambm a um embate com as origens mais remotas do pensamento ocidental, embora o passo de volta no signifique somente isso, como o autor alemo sempre destaca e como ser tratado posteriormente7. Assim, ao criticar a filosofia clssica alem, Lukcs se depara com aquilo que considera o pensamento mais desenvolvido da filosofia e da poca burguesa, enquanto Heidegger ope-se a algo que considera parte de uma tradio mais ampla, que deveria ser tratada no pela superao dialtica, mas pelo passo de volta. Adota, pois, um procedimento oposto no s ao de Hegel, mas tambm ao de Marx e ao de Lukcs8. Assim, enquanto Lukcs critica a filosofia pregressa tendo em conta o desenvolvimento histrico das relaes sociais (principalmente as capitalistas) Heidegger se ope tradio ocidental como desenvolvida na modernidade, apropriando-se mais noes da filosofia antiga anteriores a Scrates que da filosofia clssica alem j que essa ltima teria por base uma concepo metafsica, em que o ser entendido como o conjunto dos entes e como o mais abstrato, relegando o pensamento sobre o ser s evidncias proclamadas nas distintas filosofias modernas; se Lukcs trata principalmente da filosofia clssica alem, associando-a ao desenvolvimento das contradies da sociedade civil-burguesa, Heidegger v a filosofia moderna como uma filosofia metafsica, ou seja, como uma filosofia que no remete ao ser, mas que fica presa ao ente e vem a v-lo de maneira manipulatria.

    5 Os textos sobre Hegel podem ser encontrados em portugus e em espanhol. Um texto em que Heidegger trata largamente de Hegel O que isso a filosofia: identidade e diferena, publicado em portugus. J quanto aos textos em espanhol, podem ser en-contrados pelos ttulos: A negatividade, uma confrontao com Hegel desde o plano da negatividade e A introduo filosofia do esprito de Hegel, sendo consultada para o presente texto a edio argentina, em que os dois textos so publicados juntamente, tendo o livro o nome de Hegel.6 A Metafsica absoluta faz parte com suas inverses, atravs de Marx e Nietzsche... (Heidegger, 2005, p. 42).7 Heidegger refere-se interpretao falsa de sua expresso, a opinio de que o passo de volta consiste no retorno histrico aos primeiros pensadores da filosofia ocidental (Heidegger, 2006, p. 61).8 Veja-se Heidegger sobre a sua oposio a Hegel: O passo de volta, como re-gresso representa o movimento contrrio do passo para diante, como pro-gresso, de Hegel. (Heidegger, 2006, p. 59)

  • Vitor Bartoletti Sartori

    Verinotio revista on-line n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-061X

    Trata-se certamente de distintas crticas feitas hipertrofia do sujeito cognoscente, o que associado por Lukcs ao o primado ontolgico da razo e por Heidegger ao esquecimento do ser, j aludido anteriormente. No entanto, o mtodo de ambos oposto. Pode-se mesmo dizer que o marxista hngaro critica o capitalismo e a filosofia que emerge nesse, propondo uma nova filosofia a qual deve acompanhar a superao do prprio capital; Heidegger, por outro lado, no remete ao desenvolvimento unitrio do capitalismo em que das contradies pode surgir uma superao antes, o autor busca o contedo positivo de sua concepo na experincia da antiguidade e dos pr-socrticos.

    Diante dessa oposio, devem ser vistas as crticas de ambos aos universais e noo de razo como desenvolvida na poca. Lukcs busca uma superao dialtica das prprias formas de ser, das determinaes de existncia, quando Heidegger tem em mente restabelecer o solo originrio ao pensamento ocidental, que estaria passando por uma crise sem igual. Assim, os termos da filosofia da poca (burguesa e tambm em crise, para Lukcs) seriam essencialmente epistemolgicos, relegando questes ontolgicas; partindo de um sujeito pretensamente colocado acima da objetividade e das relaes sociais concretas, formar-se-ia um dualismo em que de um lado estaria a matria, de outro o esprito: haveria, pois, uma ciso em que o sujeito visa captar o objeto pela representao, dominando-o unilateralmente. E, sendo esse procedimento amparado pela noo de adequao encarada por meio de modelos a priori, aos quais a objetividade deveria curvar-se, caberia ao pensamento, por meio de modelos e de pressupostos, dominar o objeto (para Heidegger, o ente) control-lo embora, preciso dizer, a noo de representao, em si, no errneo para Lukcs, que trata da questo por meio da noo de reificao9 . No que certo que as abordagens de Lukcs e de Heidegger so distintas: Lukcs, por exemplo, embora perceba a conscincia e a realidade exterior como indissociveis, v ambas como distintas, sempre enfatizando a existncia do mundo independentemente do sujeito. O que se liga intimamente ao posicionamento materialista do autor hngaro, amparado por Marx quando diz que ser e pensar so, portanto, certamente, diferentes, mas [esto] ao mesmo tempo em unidade mtua (Marx, 2004, p. 108). Heidegger, por seu turno, fala do falso problema da realidade exterior. Pode-se apontar um terreno comum: a crtica atividade cognitiva amparada por um sujeito concebido epistemologicamente e visto mais ou menos dissociados das relaes concretas. Terreno esse que trabalhado de maneira a se desenvolver em meio a afinidades e repulses, que foram elencadas acima na medida em que a posio materialista de Lukcs destacada e a ligao estabelecida por Heidegger entre representao, dominao e a verdade como adequao enfatizada10. Para o autor alemo as noes da filosofia clssica alem, bem como as noes de sujeito, de objeto, de representao e de realidade exterior seriam problemticas, devendo-se, por meio do passo de volta, defender um apartar-se daquilo que se apresenta imediatamente e reivindicar um questionar sobre o prprio ser, dialogar com uma filosofia anterior, a grega, em que as questes essenciais apareceriam de maneira menos mediada pela razo moderna e pelas circunstncias modernas.

    Nessa tnica, as diferenas dos autores se explicitam.Por ora, as diferentes posies podem ser vistas por suas distintas crticas noo de razo e pelo tratamento

    que do aos universais. O que, pelo que se colocou acima, no pode ser somente um exerccio de comparao entre autores tratando exatamente das mesmas questes trata-se, antes, de uma anlise em que a afinidade aparece justamente no tratamento diferenciado, amparado, j metodologicamente, de maneira diversa e mesmo oposta. Assim, enquanto Heidegger trata de duas acepes dadas ratione j no incio da filosofia, Lukcs trata da autonomizao dos universais, tendo em mente a questo da mediao, a modernidade e as relaes sociais capitalistas. E, como se pretende demonstrar, tambm no plano do contedo, h uma aproximao entre os dois autores, que, como vem acontecendo at o momento, tambm ser uma separao e uma relao em que tambm est presente aquele jogo sutil mencionado por Tertulian.

    Primeiramente Heidegger. Aponta o pensador no ser o termo razo algo fcil de compreender. Discutindo a afirmao de Ccero segundo a qual Nihil est sine ratione, traduzida pelo autor da Carta sobre o humanismo como nada sem fundamento, o filsofo indica haver uma dupla acepo pela qual o termo ratione foi visto: de um lado, viu-se esse termo como fundamento, doutro, como razo, havendo, para Heidegger, duas abordagens na primeira delas:

    Ratio significa conta. Quando ns contamos, representamos aquilo que, com o qual e sobre o qual numa coisa contada, se deve manter em vista. Aquilo assim contado e computado d a razo daquilo que consequncia

    9 preciso usar o termo representao com a necessria cautela, uma vez que, depois de formado, o mundo conceitual retroage sobre a observao e sobre a representao. (Lukcs, 1981a, p. 31). Por outro lado, como indicou Dulce Critelli, para Heidegger, no h como tomar a representao como ligada a algo que no a metafsica: Representao a recriao do real na medida do clculo da razo. O real a reconstruo calculadora do real: re-presentao do real. Em outras palavras, o real a idia do real (Critelli, 2002, p. 86).10 Contra a noo de adequao e de correo, Heidegger ope o descobrimento e o encobrimento, ressaltando que a verdade no sentido de correo no da mesma essncia que a verdade entendida como descobrimento (Heidegger, 2008, p. 47).

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    de uma coisa, do que est nela como aquilo que dela determinante. Na razo manifesta-se aquilo onde reside o motivo de uma coisa ser como ela . (Heidegger, 2000, p. 146)

    J na segunda acepo:

    O princpio do fundamento na segunda tonalidade no um princpio pensado metafisicamente, mas um princpio histrico-ontolgico. (...) Histrico-ontologicamente, inicialmente, ser e fundamento so o mesmo, e assim permanecem tambm, mas numa pertena recproca, que se ramifica numa diferena historicamente transformvel.Ao seguirmos a segunda tonalidade, j no pensamos mais o ser a partir do ente, seno que o pensamos como ser, isto , como fundamento, isto , no como ratio, no como causa primordial, no como fundamento racional, mas como um deixar existir concretamente. (Heidegger, 2000, p. 160)

    Na primeira acepo a ratione entendida como ratio havendo uma correlao entre o pensar e o contar, e o clculo e o raciocinar Heidegger, pois, v a razo moderna principalmente por esse prisma, considerado metafsico nos termos expostos anteriormente, o que, caso se tenha em conta o papel da noo de razo na modernidade, pode ser considerado um tanto quanto redutor, mas decorre do mtodo de Heidegger, o qual ao invs de realizar uma crtica imanente sociedade capitalista moderna, como Lukcs, busca a experincia dos antigos para depois transp-la modernidade. Continuando: nessa acepo criticada pelo filsofo alemo seria preciso representar corretamente os entes verificando a adequao deles em relao a algum modelo, de maneira que ter em conta um parmetro racional, por si s, j indicaria a filiao ao clculo, proporo, e manipulao trata-se, pois, dos mesmos elementos presentes em sua afirmao citada anteriormente sobre Marx e a historiografia, bom que se note. Para Heidegger, na metafsica (que teria seu destino na alienao) a essncia da verdade como veritas e rectitudo, passa para a ratio do homem (...) transformando-se no autoajustar-se calculativo da ratio (Heidegger, 2008, p. 79). Portanto, o pensamento tornar-se-ia um instrumento apartado alheio e ligado manipulao dos entes, o que, tendo em conta a crtica noo de racionalidade moderna, no pode deixar de remeter crtica lukacsiana da reificao, embora a tonalidade dada por Heidegger questo seja distinta, e mesmo oposta. Para o autor alemo, a manipulao dos entes decorreria de um procedimento pelo qual a origem (do ente e no do ser) vista por meio de uma causalidade operacionalizada: a razo de alguma coisa estaria no procedimento pelo qual ela passou em meio ao raciocinar reificado, o que j denota que a ontologia heideggeriana, por meio dessa crtica, no poderia recorrer a uma anlise em que as relaes de causalidade tornam-se independentes do homem e do margem a uma anlise onto-gentica que considera a dialtica entre a teleologia e a causalidade nos moldes da ontologia lukacsiana; no poderia Heidegger, assim, remeter o pensamento ontologicamente a uma realidade histrico-social que feita pelo homem em situaes legadas. Portanto, a crtica da filosofia pregressa, em Heidegger, no s atinge a hipertrofia do sujeito cognoscente: ela rechaa a prpria noo de razo enquanto relao causal de se isso, ento..., o que faz com que a valorizao da histria aparea no autor alemo enquanto nega a perspectiva em que a pesquisa historiogrfica e de gnese de relaes concretas sejam autnticas. Para que se use a dico anteriormente mencionada, Heidegger contrrio historiografia, que caracterizaria, dentre outros, Marx.

    lcito comentar, portanto: a acepo criticada por Heidegger foi atribuda anteriormente tambm a Marx e ao marxismo, que, tambm sob esta perspectiva, encontrar-se-iam presos metafsica, entendida como o esquecimento do ser ligado manipulao dos entes. Desta maneira, a questo da histria tambm contornada Heidegger vem mesmo a negar a validade do pensar por meio dos nexos se... ento, de tal feita que as cadeias causais pelas quais se desenvolvem os complexos sociais vm a ser deixadas de lado pois so enquadradas em um pensar julgado autntico pelo pensador, o que se torna mais claro ao se verificar a outra tonalidade dada ao princpio pelo autor.

    A posio advogada por Heidegger seria oposta quela criticada. A ratione no deveria ser compreendida como ratio, conta, razo, mas sim como fundamento, como aquilo que transcende a manipulao dos entes e remete ao prprio ser, que, para o autor, no pode ser pensado metafisicamente, mas Histrico-ontologicamente. claro a Heidegger que a tonalidade que prevalece na modernidade a que critica e que tem na metafsica a sua verdade. O raciocinar por relaes de meios e fins, com o auxlio do clculo e das propores seria nefasto tratar-se-ia de uma concepo j calcada na tcnica, uma concepo que teria seu cume na cincia moderna, que vista sempre com tons pessimistas, pois, para ele, a cincia sempre um assalto tcnico ao ente e uma interveno tendo em vista uma orientao ativa, produtiva, operosa e comercial (Heidegger, 2008, p. 17). Perder-se-ia um pensar autntico na medida em que a razo seria niveladora, podendo ser tomada tambm no sentido de proporo; um pensamento baseado em tais premissas colocaria as coisas em sries quantificveis como se pudessem ser subsumidas nas mesmas categorias, concebidas por um sujeito cognoscente. Assim, no s seria o ser relegado

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    por este pensar; haveria uma tirania do pensamento calculante sobre as coisas. Percebe-se, pois, que a crtica heideggeriana razo alude inclusive a ligao entre a esfera da circulao das mercadorias e a reificao ao tratar do clculo, por exemplo. Porm, isso se d medida que se trataria de uma forma moderna de pensar, que no estaria baseada na prpria circulao mercantil assentada sobre a produo capitalista, como ocorre em Lukcs, mas sobre uma tonalidade dada noo de ratione, uma tonalidade metafsica. Nisso, o pensador alemo tambm oposto ao pensador hngaro: enquanto Heidegger v na preponderncia de uma tonalidade dada ratione na modernidade algo que levaria reificao, Lukcs v a alienao e a reificao historicamente determinadas no capitalismo como aquilo que est no mago do raciocnio calculista que prepondera na modernidade por meio do fetichismo da mercadoria.

    Percebe-se que a crtica de Heidegger ao que denomina pensamento metafsico11 o leva de maneira imediata a uma crtica contundente prpria modernidade. Ao remeter somente ao mundo dos entes, a primeira tonalidade dada ao princpio do fundamento estaria ligada tcnica e manipulao modernas, sendo necessrio que a autenticidade de um pensamento baseado em um princpio histrico-ontolgico se opusesse a esse tratamento. Ao contrrio da instrumentalizao do pensar, da prioridade do clculo e da manipulao, a segunda acepo, defendida por Heidegger, no imporia um modelo concebido idealisticamente ao ser; por conseguinte, sequer seria ilcito dissociar o ser do fundamento ser e fundamento seriam o mesmo (note-se que Lukcs concordaria que ser e fundamento no podem ser dissociados embora entenda por fundamento e por ser algo distinto de Heidegger porm, no concordaria que so o mesmo, o que somente poderia ser concludo com a negligncia de mediaes, que, para Lukcs, so concretas e sociais). Percebe-se que a sustentao dos entes remeteria para alm deles, para algo em verdade, transcendente (algo que Heidegger certamente negaria, mas que est presente em seu posicionamento que separa radicalmente o ser e os entes), o que somente seria possvel rechaando o pensar sobre a gnese e a razo da objetividade que se apresenta no cotidiano: para o terico alemo, o fundamento aquilo, sobre o qual se apia tudo o que para todos os entes existe como sustentado (Heidegger, 2000, p. 181). Assim, ao criticar a positividade (justamente o ponto que Lukcs v no jovem Hegel relacionado alienao) Heidegger remete ao fundamento, mas no especifica, pois ao dizer que o fundamento trata do apoio de tudo e do sustentar, o pensador d uma noo tautolgica e no trata das mediaes existentes entre as distintas relaes que permeiam os entes. O autor alemo, assim, acaba deixando subjacente a toda a sua crtica apresentada em sua segunda fase ao sujeito cognoscente uma noo de fundamento que nada mais diz alm de que o fundamento remete ao ser e no aos entes, o que no decorre seno daquilo postulado por Heidegger desde incio de sua crtica.

    Ao contrrio do conhecimento dialtico em que h o desenvolvimento que vai do abstrato ao concreto por meio de contradies concretas e histricas, o mtodo heideggeriano postula verdades que remetem para alm dos prprios entes, e, partindo dessas verdades fundamentais, estabelece suas posies, de maneira que o papel da atividade humana automediada, que tem seu modelo, sua protoforma, no trabalho, deixado de lado em favor de um deixar existir concretamente mencionado pelo autor na passagem. O que leva a concluir que o mtuo e progressivo processo de transformao do sujeito e da objetividade ligado pelo autor da Carta sobre o humanismo inevitavelmente tcnica e manipulao dos entes, que seriam ligados pelo autor a sua noo de metafsica. No segundo Heidegger, assim, no parece haver espao para a atuao humana autntica, ao contrrio do que ocorre, verdade que com consequncias desastrosas, no Heidegger da dcada de 3012. Agora, nessa acepo defendida, o pensamento deixa o ser se revelar h uma tentativa de remeter o pensamento concretude (que Lukcs acredita ser uma pseudoconcretude), buscando o prprio ser em sua historicidade que no pode relacionar-se s causas e historiografia, mas que deve ser pensada histrico-ontologicamene por meio de uma atitude serena de um deixar existir concretamente. No que se deve perceber algo essencial: quando Heidegger fala de um princpio histrico-ontolgico, no h qualquer similitude com Lukcs. Ocorre antes o oposto. Heidegger, ao se opor ao pensar por relaes de meios e fins (que em Lukcs se relacionam concretamente por meio do trabalho e pelas categorias da teleologia e da causalidade), ope-se tambm dialtica em que o homem faz sua prpria histria em condies que no so de sua escolha para o autor alemo, a prpria noo

    11 Veja-se como o autor delimita a questo na histria da filosofia: todo o pensar do ocidente, de Plato a Nietzsche, pensa em termos dessa delimitao da essncia da verdade como correo. Essa delimitao da essncia da verdade o conceito metafsico de verdade (Heidegger, 2008, p.79).12 A busca dessa atuao autntica associada ao realismo herico presente no primeiro Heidegger. Como j ressaltado, essa po-sio, juntamente com ao seu apoio ao nazismo, so rechaadas pelo autor em sua segunda fase. Para ilustrar a posio de Heidegger na poca, vale mencionar uma carta a Herbert Marcuse em que se refere ao controvertido fato de ter aceitado a posio de reitor em 1933 da seguinte maneira: Eu esperava do nacional socialismo uma reconciliao dos antagonismos sociais e a salvao do Dasein ocidental dos perigos do comunismo (Heidegger, 1998, p. 354).

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    de se fazer a histria j estaria balizada pela dominao dos entes13. Sua posio, pois, deve ser oposta. Ao negar a possibilidade de uma prxis transformadora autntica, o princpio histrico-ontolgico no pode se relacionar s relaes sociais contraditrias que do a tonalidade da histria em Lukcs: a valorizao deste princpio, antes, diz respeito oposio prxis transformadora, o que traduzido pelo pensador pela atitude de serenidade com os entes, pela noo de pastor do ser e pela necessidade de um deixar existir concretamente. De maneira que, na acepo do princpio do fundamento advogada pelo autor, no se trataria nunca de um fundamento racional a partir do qual se percebe os nexos causais existentes na prpria materialidade; tratar-se-ia, sim, dos diversos modos de ser que se revelam em um movimento de encobrimento e descobrimento que compe aquilo chamado pelo autor de transformao da essncia da verdade, a qual, para o autor, no outra coisa que a histria. Assim, ao invs da prxis transformadora, h um apelo a um modo de ser autntico, passivo, de tal feita que a verdadeira compreenso do ser se daria na medida em que o Descobrimento conseguido do encobrimento, em luta com ele (Heidegger, 2008, p. 35) trata-se sempre de um descobrir e no de um transformar, um revolucionar, no que, novamente, Heidegger se ope a Lukcs.

    A questo merece cuidado. Para Heidegger, o descobrimento e o encobrimento no so algo que conseguido pelo sujeito em um processo em que ao atuar sobre a realidade, com uma prvia ideao, h uma atividade retroativa do reflexo da realidade, de maneira que a objetividade e a subjetividade tm uma determinao ontoprtica. Isso seria impossvel para o autor que nega a distino entre sujeito e objeto o Dasein do Heidegger da segunda fase entendido como ser-no-mundo de maneira que a oposio entre a objetividade e a subjetividade faz, para o autor, parte de um raciocinar que se prende ao ente, de um raciocinar metafsico. Assim, a posio do homem como ser-no-mundo tem como corolrio a negao da progressiva dialtica entre objetividade e subjetividade. Como consequncia, o descobrimento e o encobrimento no seriam algo conseguido no atuar concreto e transformador (que vem a ser relegado inautenticidade) seriam eles constitutivos da prpria existncia do ser; o descobrimento, nesse sentido, seria um revelar que se manifesta quando h uma abertura em meio alienao que penetra na compreenso do mundo como o conjunto de entes, o que seria conseguido com uma postura serena em que o pensar metafsico deixado de lado e se pode chegar ao prprio ser. Seria necessrio, portanto, estar aberto para as questes, para as perguntas que compe a essncia da verdade, sendo essas questes aquelas que levariam possibilidade de se pensar o ser14. Assim, em Heidegger, errado dizer que o ser se transforma e que conflitante ou contraditrio o princpio histrico-ontolgico defendido pelo autor tem sentido oposto, mesmo que o pensador trate da luta com o encobrimento, j que a essncia conflitante da verdade para ns, e para o pensar ocidental, j h longo tempo estranha. A verdade vale, ao contrrio, como o que est para alm de toda a luta e por isso deve permanecer no-conflitante. (Heidegger, 2008, p. 36) Assim, o pensamento de Heidegger, novamente oposto ao de Lukcs, para quem , ao contrrio, o ser um processo do tipo histrico (Lukcs, 1969, p. 19). As noes de encobrimento e de descobrimento, pois, ligadas crtica heideggeriana da manipulao dos entes e a sua compreenso profundamente contrria cincia tambm tm como pano de fundo uma noo anti-histrica de ser, a qual indissocivel de sua posio quanto prxis transformadora. Se, em Lukcs, as questes essenciais ao homem aparecem em meio sua atividade automediada e em sociedade, Heidegger tem uma posio em que as questes e as corretas indagaes tambm so importantes, mas so vistas por um deixar existir concretamente relacionado a uma atitude frente s questes que se apresentam no cotidiano que deve se amparar no passo de volta, que tambm tem como funo se desgarrar da alienao dos entes, j que se movimenta para fora da metafsica (Heidegger, 2006, p. 60).

    Em Heidegger, a verdade ou inverdade no tm como critrio a prxis. Ocorre o oposto. O deixar existir concretamente tem como pressuposto a crtica prxis transformadora, que Heidegger vem a nivelar, apressadamente e sem recurso a um estudo pormenorizado das mediaes sociais, com o agir por meio da tcnica moderna. Isso decorre de seu prprio mtodo, aludido acima. Mas, certamente, efetivo e remete ontologicamente realidade na medida em que, desta maneira, quaisquer possibilidades de uma prxis transformadora alheia manipulao so relegadas pelo autor. A atividade transformadora seria, assim como a cincia, uma agresso,

    13 Note-se que a oposio entre as ontologias de Lukcs e de Heidegger so marcantes nesse ponto. A questo da finalidade da ao humana (indissocivel do trabalho, que tem por essencial o carter mediador do ltimo) e da sua relao com a objetividade sempre foi importante para Lukcs no s na elaborao de sua teoria, mas tambm pelo papel que o autor atribui questo no desenvolvimento de todo o pensamento filosfico da modernidade, principalmente naquele da filosofia clssica alem. Veja-se, por exemplo, o comentrio do autor hngaro acerca da questo em sua obra O jovem Hegel: No s desempenhou um papel decisivo em toda a histria da filosofia clssica alem, como tambm pertence a esses pontos em que Hegel, como disse Lenin, se converte em um precursor do materialismo histrico. (Lukcs, 1963, p. 335) 14 A professora da Faculdade de Direito da USP Jeannette Maman, em conversa com o autor do presente texto, chegou a sugerir que a tematizao dada por Lukcs ao homem como ser que responde a perguntas colocadas por ele mesmo tem tambm um ca-rter de dilogo com o Heidegger de O ser e o tempo. No entanto, a questo no pode ser tratada no presente texto, embora se tenha indicado a oposio existente entre o segundo Heidegger e Lukcs no que toca o aparecimento das questes em meio atividade automediada do homem.

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    um assalto ao ente, que decorreria de um pensar metafsico, sempre dominador. A oposio reflete a posio do autor sobre a histria e sobre a prxis, e se desenvolve na medida em que, ao negar a centralidade da prxis, Heidegger nega a centralidade da atividade automediada e amparada pelo trabalho do homem. De tal feita, o atuar concretamente frente a condies objetivas, que muitas vezes se opem ao que o homem tem em mente ao iniciar a atividade, visto pelo pensador como uma condio em que o assenhoramento, a dominao, propiciado. Por outro lado, a abertura serena em relao ao descobrimento, poderia propiciar um modo de ser autntico, em que se abandona o pensar metafsico e a compreenso do ser tem lugar. A oposio resumida por Heidegger da seguinte maneira: o homem no senhor do ente. O homem o pastor do ser (Heidegger, 2005, p. 51). Sua oposio tcnica e metafsica, assim, tambm uma oposio modernidade e prxis, que relegada inautenticidade de um mundo calcado na manipulao dos entes.

    Assim, embora critique de seu modo as antinomias do pensamento burgus, essas vm a se impor em seu pensamento de maneira patente, pois ao renegar a centralidade da atividade automediada do homem, mesmo que mudando radicalmente a linguagem, Heidegger permanece preso na atitude de passividade que no capta as contradies e os diferentes momentos presentes na prpria realidade social. A crtica heideggeriana filosofia pregressa tambm no feita de acordo com uma perspectiva que tem o ser e a conscincia como indissociveis, pois a prpria noo de conscincia descartada pelo autor e considerada como metafsica. O ser seria, antes, revelado que transformado, de tal feita que quaisquer tentativas racionais de apreenso das relaes dos entes so ligadas pelo terico tentativa de se assenhorear desses, quando o homem deveria ser somente pastor do ser. Consequentemente, o fato de Heidegger nunca tratar de maneira direta das relaes sociais que compem a histria est fortemente enraizado em seu pensamento o qual vem a se opor atividade transformadora e permanece preso nas mesmas antinomias que critica, pois essas so inerentes forma de sociabilidade desenvolvida pelo capital, que nunca sequer tratada pelo autor.

    No que h de se perceber que Heidegger muda a terminologia, trata de diferentes acepes dadas ratione e se coloca como contrrio manipulao dos entes e ao desenvolvimento da tecnologia moderna, que o autor relaciona Era Atmica. No entanto, aquilo que subjaz por trs da racionalidade calculista que tanto critica deixado de lado, levando-o a uma posio em que, ao menos no horizonte prximo, para que se use um jargo muito comum hoje em dia, no h alternativa que possa superar (ltimo termo esse que renega) a alienao que impera em sua poca. O autor abdica tambm de certas problemticas centrais em O ser e o tempo, de tal maneira que as esperanas de outrora so abandonadas e o homem moderno seria aquele que, aps ser separado de seu solo originrio, concebe a razo como ratio e manipula os entes em meio prxis cotidiana (o marxismo estaria inserido no seio dessa tendncia tambm). Nesse sentido, conceber o homem como racional, como um animal racional, seria errneo no s porque retiraria o pensamento de seu solo, mas porque partiria de uma concepo segundo a qual a nfase no carter humano do homem tem como central o clculo e o carter tcnico do pensamento. Assim, para Heidegger, o homem segundo a definio mencionada o ser vivente contador, contar entendido no sentido vasto da palavra ratio, uma palavra originalmente da linguagem de negcios romana.... (Heidegger, 2000, pp. 183-4) A crtica heideggeriana metafsica, pois, chega modernidade de maneira clara e que conflui com a tematizao da reificao que se d no capitalismo: isso determina para o futuro como uma consequncia da nova transformao da essncia da verdade, o carter tecnolgico do moderno, isso , da tcnica da mquina (Heidegger, 2008, p. 79) Note-se: a tcnica moderna e a metafsica andariam lado a lado, e os universais que aparecem na modernidade desaguariam justamente na manipulao moderna da era atmica; no h, pois, um processo dialtico em que o desenvolvimento das potencialidades humanas no coincide necessariamente com o desenvolvimento da personalidade do homem h uma transformao na essncia da verdade o que, para Heidegger significa que o pensamento autntico deve levar em conta essa transformao para que se coloque um princpio histrico-ontologico como base do pensamento. O histrico, assim, no aquilo que pode ser superado antes, aquilo que revela o ser por meio da busca de questes que escapem do pensar metafsico e, assim, possam fazer parte da essncia da verdade; a rememorao e o trazer para o presente dessas questes correspondem, em Heidegger, ao histrico. No que o clculo e a tcnica, amparados pelo esquecimento do ser, dariam a tnica da modernidade, que, assim, tambm vista, com tons irracionalistas. Seria a modernidade marcada, dentre outras coisas, pelo materialismo (a questo ser tratada abaixo) assim, para o filsofo alemo, seriam indissociveis o materialismo (que, como ser mostrado depois, relaciona-se ao trabalho e, em ltima anlise ao prprio marxismo), a tcnica e a manipulao. Sua crtica s abstraes que se apresentam na modernidade tambm uma crtica ao materialismo da modernidade que teria grande apreo pelo raciocinar pela correlao entre meios e fins, o que, para o pensador, caracteriza um pensamento tecnolgico15.

    A polmica de Heidegger acerca das duas acepes dadas ao princpio do fundamento, pois, tem o deixar

    15 Como restar claro depois, sua crtica modernidade tambm uma crtica influncia exercida pelo pensamento materialista, que o autor associa diretamente a Marx e que no pode deixar de remeter ao forte anticomunismo que marca Heidegger durante toda a sua obra.

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    existir concretamente como central, tratando-se de uma crtica no s a toda concepo que tem a transformao da realidade pelo homem como essencial, mas tambm quilo que subjaz por trs disso, o desenvolvimento das foras produtivas, que visto de maneira um tanto quanto unilateral pelo autor, como se viu acima. Heidegger v a alienao em meio a relaes de produo alienadas, isso claro. Porm, tanto por seu mtodo como pela maneira como apresenta a questo, permanece preso a uma concepo irracionalista que tem o desenvolvimento da tcnica como absolutamente malfico a tcnica alienaria o homem de seu mundo e o colocaria como aquele que busca o assenhoramento e a dominao, a qual teria seu cume na concepo moderna de cincia. Se o Heidegger de O ser e o tempo tinha por essencial a de-ciso, o segundo Heidegger, ao negar o agir tcnico junto com o pregresso decisionismo, nega a possibilidade de uma prxis autntica e permanece fortemente resignado. Trata-se um pensamento fortemente oposto cincia, tcnica e centralidade da atividade transformadora automediada, ltimo ponto esse que tem como corolrio necessrio a forte oposio dialtica, cujo embate, como se viu, ganha importncia crescente em Heidegger. No que Lukcs, tendo em conta a negao da dialtica, afirma: toda filosofia antidialtica, portanto, desprovida de compreenso verdadeira para a histria, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma lei eterna ou uma existncia eterna. (Lukcs, 1967, p. 55) Assim, aquilo que se mencionou sobre o autor da Carta sobre o humanismo combatido fortemente pelo autor hngaro, como denota a passagem de Marx e de Lukcs, embora compartilhem com Heidegger algumas temticas e, mesmo havendo novamente afinidade e repulso no tocante a Lukcs, so opostos ao pensamento desse autor no essencial. Vejamos Marx:

    O homem, por meio do trabalho alienado, no s produz a sua relao com o objeto e com o ato de produo como com homens estranhos e hostis, mas produz ainda a relao dos outros homens com sua produo e com o seu produto, e com relao a ele mesmo e outros homens. (Marx, 2001, p. 119)

    Enquanto Heidegger v na conceituao do homem como essencialmente racional justamente a preponderncia da manipulao e da tcnica, no a tcnica em si o problema para Lukcs e para Marx, mas a relao social na qual ela est inserida: uma relao social reificada, que, entretanto, pressupe o homem que se produz em meio a um processo automediado pelo trabalho. Nota-se que no entendem o mesmo por tcnica, certamente; em Heidegger h um sentido mais abrangente e isso faz com que o tratamento dado por ele passe por cima justamente daquilo que central a Lukcs e a Marx: a particularidade do capitalismo; enquanto em Heidegger a tcnica ligada metafsica e ao domnio do ente, Marx e Lukcs vem a tcnica em meio sociedade que a permeia, possuindo ela uma funo concreta nessa sociedade. A diferenciao ausente em Heidegger entre o trabalho produtor de valores de uso e o trabalho abstrato ilustrativa, nesse sentido, sendo toda a atividade teleolgica remetida pelo autor da Carta sobre o humanismo metafsica e agresso do ente, de maneira que a atividade laborativa que, em Lukcs, tem como essencial o carter de mediao entre o homem e a natureza, e que tem como momentos indissociveis a teleologia e a causalidade, para Heidegger , tambm, calcada no impulso de assenhoramento. Para Marx e para Lukcs, a produo social calcada no trabalho abstrato no s produziria a manipulao imposta ao trabalhador ao ter que efetuar o trabalho em situaes ordenadas pela acumulao capitalista; produziria a prpria alienao do homem em relao ao homem, j que aquilo que produzido pelo trabalhador lhe estranho de maneira dplice quando no tem acesso ao produto do trabalho e quando a classe social que usufrui desses produtos a detentora dos meios de produo, a classe dominante. Assim, se em algum momento o telos da ao realizada pelo trabalho alheia, isso se d devido s mediaes sociais que se impem na sociedade civil-burguesa. Por conseguinte, h uma fora alheia que impe ao homem a sua atividade o prprio telos da prxis social, assim, , de certa maneira, estranho a quem a efetiva, mas a questo abordada de maneira distinta daquela de Heidegger, tratando-se de uma situao em que a reproduo da totalidade da sociedade civil-burguesa se impe, depois de colocada sobre seus prprios ps porm, no se trata nunca de uma situao calcada em qualquer lei eterna; antes, existem relaes sociais em que o carter alheio da atividade humana no decorre de nenhum elemento transcendente, j que o capital no uma relao do homem com uma coisa, mas uma relao estabelecida entre homens, mas mediada por coisas. Em meio alienao capitalista, as prprias relaes sociais parecem ter vida autnoma, e a universalidade do capital subsume os indivduos que se apresentam como meras personificaes de relaes alienadas. Pela mediao do trabalho alienado, formar-se-ia, do ponto de vista de Lukcs, a manipulao e a aparente naturalidade da formao histrica do capital. Ao contrrio de Heidegger, portanto, a histria social concreta aparece relacionada ontologia. Heidegger parte de sua ontologia fundamental (inspirada na experincia grega) para criticar a modernidade; Lukcs e Marx sequer separam suas concepes da emergncia da contraditria modernidade capitalista. Ao se tratar da manipulao e da tcnica, portanto, deve-se trat-las em sua particularidade e especificidade, que so indissociveis das relaes sociais capitalistas.

    Ao dar centralidade ao trabalho, a abordagem de Lukcs distinta no tratamento dado filosofia precedente. A crtica de Lukcs rompe o dualismo estabelecido entre a realidade exterior e o homem, afirmando a centralidade do trabalho na compreenso dessa relao ao mesmo tempo em que reafirma a existncia de uma realidade objetiva independente da vontade humana. A representao, tendo isso em conta, no seria um reflexo fotogrfico da realidade, de tal feita que, na prpria prxis, h uma relao necessria e uma complementaridade entre o momento

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    de prvia ideao e o se deparar com a realidade exterior, tratando-se de um processo real e unitrio em que a teleologia e a causalidade se entrelaam pela mediao da prpria prxis social. Assim, concebem-se as categorias como formas de ser, nas palavras de Marx, elas so formas de ser, determinaes de existncia16 (Marx, 1993, p. 106) de maneira que as categorias so reflexos da prpria realidade em que a mediao entre a objetividade e a subjetividade no seno aquela da prpria atividade humana automediada. E a questo da universalidade se apresenta de maneira indissolvel da questo, j que, como indica Lukcs,

    Marx considera a universalidade como uma abstrao realizada pela prpria realidade, e ento s ento ela se torna uma justa idia, isto , quando a cincia reflete adequadamente o desenvolvimento vital da realidade em seu movimento, em sua complexidade e em suas verdadeiras propores (Lukcs, 1968, p. 87).

    A diferena quanto a Heidegger marcante nesse ponto. Aqui, os universais no so fruto de um sujeito cognitivo, mas uma abstrao razovel17 realizada pela prpria realidade, de maneira que mais que legtimo tratar dos universais que se apresentam na sociedade civil-burguesa, j que a cincia deveria captar as leis gerais do movimento da realidade estabelecendo o carter de justa ideia a essa. Em oposio ao autor da Carta sobre o humanismo, portanto, Lukcs d crditos cincia e prope-se a realizar um trabalho cientfico. Ou seja, ao no descartar a noo de categoria, o marxista hngaro se dedica a justa apreenso desta e v as categorias como determinaes de existncia. Por conseguinte, no s a apreenso correta das categorias importante para a correo do pensamento como a apreenso uma apropriao ontoprtica, a posio daquele que pretende compreender de maneira correta a realidade essencial nessa tarefa a qual, para Lukcs, tambm supe e exige uma correta compreenso da histria. A compreenso ontolgica, que v o universo categorial como reflexo da prpria realidade em que e pela qual as abstraes so realizadas, percebe-se da indissociabilidade entre o sujeito e o objeto, a teleologia e a causalidade, a liberdade e a necessidade e rompe com a compreenso antinmica da realidade de maneira oposta a de Heidegger, pois as noes da filosofia clssica alem (que no so seno aquelas legadas pelo prprio desenvolvimento histrico do capitalismo) so apropriadas criticamente por Lukcs ao passo que o autor da Carta sobre o humanismo, com recurso ao passo de volta tenta abster-se no s da prxis transformadora, que no poderia escapar da inautenticidade da manipulao dos entes, como tambm da apropriao em relao filosofia clssica alem que, embora sempre tratada pelo autor, muito mais vista como algo a se contrapor.

    E nesse momento, deve-se passar crtica de Lukcs autonomizao dos universais, questo que indissolvel de uma compreenso incorreta sobre as categorias.

    Para Lukcs, j em Plato, haveria graves distores, que teriam sido levadas ao absurdo pelas filosofias decadentes do imperialismo. Veja-se a questo da relao entre as categorias do universal, do particular e do singular:

    O perigo da autonomizao do universal, percebido por Aristteles, e que, antes dele, assumira forma clara em Plato, se aprofunda na filosofia medieval com o realismo conceitual. Uma importante componente desse perigo, para o problema de que tratamos, a no apreenso da singularidade, da particularidade e da universalidade como determinaes da realidade, mesmo nas relaes dialticas de umas com as outras. Ao contrrio, uma s dessas categorias passa a ser considerada como mais real em confronto com as outras, e at como a nica real, a nica objetiva, ao passo que s outras se reconhece somente uma importncia subjetiva. (Lukcs, 1968, p. 6)

    Assim como Heidegger, portanto, Lukcs percebe concepes errneas j no tratamento dado pelos gregos na questo. No entanto, sempre a questo filosfica uma questo histrica e as categorias so determinaes concretas de existncia. A questo tratada por Heidegger e Lukcs semelhante e diz respeito s categorias (termo que Heidegger rejeita, como j mencionado) entendidas como construtos mentais apartados e, tambm, tal dissociao daria origem ao dualismo entre o ser e o pensamento, gerando universais aparentemente autnomos. No entanto, as solues de ambos, embora se embasem em ontologias, so opostas, como se percebe pelo colocado acima. Para se contrapor suposta autonomia dos universais, e do pensamento em geral, o autor hngaro traz tona sua compreenso segundo a qual as categorias so formas de ser inseridas na prxis social ao ressaltar que o universal, o particular e o universal so determinaes da prpria realidade, Lukcs tem isso em mente. Conceber essas determinaes de maneira apartada seria incorrer no erro criticado, o qual d privilgio a uma delas, vendo as outras de maneira subordinada, chegando a negar-lhes um estatuto ontolgico. Dessa maneira, na posio criticada, traa-se o dualismo existente entre a objetividade e a subjetividade, dualismo manifesto de maneiras diversas na filosofia, mas presente na compreenso dada s categorias entendidas como construtos mentais concatenados de forma antinmica e logicizada. O que pressupe uma separao estanque entre sujeito e objeto. Negligenciariam, as concepo antidialticas, a importncia da automediao do homem, da mediao

    16 () express forms of being, the caracteristics of existence.17 A questo profundamente estudada por J. Chasin (2009).

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    do trabalho, modelo, protoforma, da prxis social; no que Heidegger tambm oposto a Lukcs, como ressalta Tertulian, quando critica Heidegger por ocultar o lugar central do trabalho na gnese da especificidade (....) do gnero humano (Tertulian, 2009, p. 29)18. Enquanto Heidegger v no trabalho um agir instrumental, Lukcs v nele o elemento mediador pelo qual possvel uma compreenso efetivamente ontolgica.

    Sem o recurso categoria da mediao, o pensamento permaneceria preso a antinomias que se apresentam mais ou menos de maneira arbitrria, como ser demonstrado melhor abaixo quando se verificar as posies de Lukcs e de Heidegger na questo do pblico e do privado. Esse aprisionamento decorreria do fato de a categoria da mediao oferecer o suporte pelo qual se estabelecem relaes entre os distintos complexos (sociais) entrelaados em um todo unitrio em que as determinaes da realidade so reflexivas. Ao mesmo tempo, porm, a mediao tem outra funo essencial, no s explicitando os nexos existentes no complexo social total, mas tambm, por meio do trabalho (que tem um carter essencialmente intermedirio) que a mediao pela qual o homem produz o prprio mundo em que vive. Assim, a adequada compreenso da categoria da mediao no s possibilita a superao de um pensamento antinmico; possibilita tambm a percepo da base material da atividade humana, o trabalho, o qual estabelece primariamente a relao entre o homem, a natureza e a sociedade com isso em mente, a adequada percepo da questo leva a uma dialtica em que so essenciais as noes de determinao reflexiva e de momento predominante, deste modo pode-se dizer que, sem a tematizao das mediaes, perde-se o solo ontolgico da reproduo material (que o momento predominante na reproduo do complexo social total) e se perde tambm as conexes existentes entre os diferentes complexos que, se vistos como opostos, so percebidos de maneira fetichista e no como determinaes indissociveis, reflexivas.

    Na viso hierarquizada da realidade que percebe o universal como superior ao particular ocorre justamente isso, que analisado por Lukcs no s no que toca a filosofia decadente de sua poca (na qual o prprio Heidegger se enquadraria), mas tambm em relao aquilo que haveria de melhor, no idealismo alemo. A questo, por exemplo, seria clara em Kant medida que h no filsofo da Crtica da razo pura uma oposio rgida entre as sensaes e o racional, o inteligvel e o emprico, o universal e o particular, o que se mostraria principalmente no tratamento dado tica, mas que j estaria contida em sua separao antidialtica das faculdades humanas to valorizadas por epgonas como Arendt.

    onde Kant assinala razo uma importncia decisiva na tica , a contraditoriedade desaparece completamente para ele e ele s reconhece a oposio rgida, antinmica, entre o comando da razo e as sensaes humanas, entre o eu inteligvel e o eu emprico. Por isso, na sua tica, estabelece-se uma sujeio exclusiva e incondicionada ao dever ser; e nela no h lugar para uma dialtica dos conflitos ticos. (Lukcs, 1968, pp. 8-9)

    A dicotomia traada levaria a uma oposio rgida entre a razo e sensibilidade, o que pressupe uma hierarquia conceitual, criticada anteriormente, em que sequer as esferas chegam a adquirir estatuto ontolgico. Tratar-se-ia de uma compreenso fundamentalmente epistemolgica em que coisa-em-si atribuda objetividade e a atividade cognoscente que deve apreender, por meio das distintas faculdades, os fenmenos de maneira subjetiva. Perceba-se: tratando o processo do pensamento como atividade somente subjetiva perde-se o processo real em que se relacionam a universalidade da razo o particularismo da sensibilidade individual. E, dissociando-se o indissocivel, deve-se recorrer a solues que desconsideram o liame umbilical e socialmente mediado existente entre distintas determinaes de existncia. Nesse sentido, Kant teria dado centralidade categoria da subsuno, que busca a adequao do particular no universal. Tratar-se-ia de um procedimento em que a contraditoriedade do real tida como suprimida e o pensamento toma a forma de uma apreenso da realidade realizada pela representao dominada pela hierarquia entre o universal, o singular e o particular, o que resulta, no raro, na tirania do universal sobre o particular em meio ao prprio particularismo.

    Nisso haveria no s uma antinomia entre a razo e a sensibilidade, o inteligvel e o emprico o dualismo entre o mundo sensvel e o transcendental j estaria presente nessa apreenso. H, assim, um estatuto dbio no idealismo subjetivo Kant, com a adequao calculada perfeitamente por um lado enquanto por outro se busca um dever transcendente, ou seja, de um lado aparecem as relaes do mundo sensvel em que h de se contar com as falhas do homem e com o particularismo, doutro, o dever incondicionado que deve ignorar justamente essas falhas na apreenso de sua universalidade. Lado a lado, pois, aparecem a hipertrofia da razo, quando legisladora de deveres incondicionados, e a impotncia desta quando no se busca a apreenso da coisa-em-si e se parte somente do mundo fenomnico. Na hipertrofia, calcada na valorizao exacerbada do universal, negligencia-se o sensvel, o particularizado. Assim como em Heidegger, portanto, em Lukcs, h uma crtica primazia de universais abstratos. No entanto, enquanto o autor da Carta sobre o humanismo acredita se tratar de algo inerente compreenso metafsica, compreenso do ser enquanto conjunto de entes, Lukcs v tal questo como algo essencialmente

    18 (...) en occultant la place centrale du travail dans la gense de la spcifi... du genre humain.

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    ligado realidade histrica e social, sendo os modos de pensar presentes em Kant inerentes determinada forma de sociabilidade calcada em antinomias, a sociabilidade burguesa o que ocorre ao pensador hngaro desde Histria e conscincia de classe, mas que tratado com maior rigor em sua Esttica e em sua Ontologia do ser social.

    Hegel, tido por Lukcs como um dos seus principais interlocutores e, como visto, estudado com mais profundidade por Heidegger justamente no perodo tratado no presente texto, j percebera alguns problemas do raciocnio kantiano. De tal feita, justamente o primeiro a ter como central a questo da mediao do trabalho, tambm faz crticas contundentes a Kant. Nesse aspecto, o pensador hngaro aponta entre Kant e Hegel a importante diferena ontolgica de que, em Kant, o objeto do conhecimento apenas o mundo fenomnico, enquanto em Hegel o prprio ente-em-si (Lukcs, 1979b, p. 37), e, neste sentido, Hegel, poder-se-ia dizer, vai contra a impotncia da razo kantiana quando trata de apreender a coisa-em-si e chega perto do caminho para uma concepo coerente e efetivamente ontolgica. O autor teria tentado romper com as antinomias kantianas por meio de um procedimento afetivamente racional o qual quebraria o apriorismo kantiano e superaria as dicotomias traadas pelo autor da Crtica da razo pura. No entanto Hegel teria permanecido um idealista, tomando a razo como algo presente na prpria realidade: haveria uma logicizao do real, prevalecendo no o movimento concreto do real, mas o movimento especulativo da ideia, expresso no real. Esse seria um dos grandes problemas da dialtica de Hegel, esta ltima que, por isso, no poderia ser objetivada por meio de concepes ontolgicas coerentes, como apontou Lukcs em sua anlise da ontologia de Hegel19.

    O autor da Enciclopdia das cincias filosficas colocou-se da seguinte maneira sobre a apreenso kantiana: ela exprime o objeto na medida em que se abstrai de tudo o que ele para a conscincia, de todas as determinaes do sentimento, como de todos os pensamentos determinados [a respeito] do objeto (Hegel, 1995, pp. 114-5). A apreenso kantiana prevaleceria formalista na medida em que no concebe o prprio sujeito no objeto, retirando do objeto parte essencial dele, tudo que ele para a conscincia, todas as determinaes do sentimento e todos os pensamentos determinados a respeito do objeto. Hegel capta adequadamente o formalismo kantiano, porm, vem a recorrer ao sujeito-objeto idntico, que tem como corolrio necessrio a racionalizao do real, estendendo, assim, a lgica ao real e hipertrofiando idealisticamente a noo de razo. Assim, se Hegel teria acertado sobre a impotncia da razo kantiana na apreenso da coisa-em-si, seu idealismo objetivo erra o alvo ao logicizar o real, sendo sua dialtica, embora tenha em conta a mediao do trabalho, igualmente idealista20.

    Para Lukcs, na antinomia entre a universalidade e a particularidade, no capitalismo, encontrar-se-ia a manipulao medida que se transita de um plo a outro de maneira a suprimir peculiaridades e a se conceber as categorias de maneira idealista: na apreenso das categorias como construtos mentais mais ou menos arbitrrios, abre-se a possibilidade para o subjetivismo que pondera por meio de um raciocnio reificado, por vezes com recurso lgica do mercado capitalista. Assim, de um lado, aparecem as relaes concretas, doutro a subjetividade; de um lado, a necessidade, doutro a liberdade; e a assim por diante. A crtica a tal dualismo essencial a Lukcs e s pde ser realizada quando o autor colocou como central em seu pensamento a ontologia do ser social calcada no trabalho. Assim, embora, trate de questes tambm caras a Heidegger, Lukcs no v a razo como ratio e ratione, como razo no sentido do calculado e como fundamento a distino que Heidegger busca nos primrdios no pode ser transposta modernidade; e essa ltima, que tida por Heidegger de maneira um tanto quanto esquemtica, justamente aquela que deve ser estudada a fundo, tratando-se de perceber o movimento do real que se d em meio s relaes de produo capitalistas, objetivadas em meio s particularidades de cada formao social singular21. Ao criticar o idealismo objetivo de Hegel, Lukcs critica a logicizao da realidade; e ao criticar o idealismo subjetivo de Kant critica as antinomias kantianas e a referncia necessria de Kant categoria da subsuno, no que embora Hegel tenha um tratamento dialtico mediado pela categoria do trabalho, sucumbe com o idealismo objetivo. V-se, pois, que as ponderaes de Lukcs acerca da noo de razo no podem relacion-la de maneira alguma a um movimento teleolgico pressuposto como ocorre em Hegel, devendo entend-la em meio s prprias relaes reais e prpria vida cotidiana, que se entrelaam dialeticamente em uma relao necessria de continuidade e descontinuidade.

    Nesse sentido, o pensador hngaro aponta ser necessrio ver a noo de razo no como algo que rege o real (pois esse sntese de determinaes concretas inseridas em meio a complexas relaes sociais), mas como um

    19 Sobre o assunto, Cf. Lukcs (1979b).20 Vejamos a questo em Marx, segundo Lukcs: em Marx, o ponto de partida no dado nem pelo tomo (como nos velhos ma-terialistas), nem pelo simples abstrato (como em Hegel). Aqui, no plano ontolgico, no existe nada anlogo. Todo o existente deve sempre ser objetivo, ou seja, deve sempre ser parte (movente e movida) de um complexo concreto. Isso conduz, portanto, a duas consequncias fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto visto como um processo histrico, em segundo lugar, as categorias no so tidas como enunciados sobre algo que ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da prpria matria: formas de ser, determinaes de existncia (Lukcs, 2008b, p. 226).21 A noo de particularidade usada aqui no uma logicizao, mas, como ressalta Chasin, a particularidade no se revela simples nexo lgico, mas se evidencia como espessura ontolgica fundamental (Chasin, 1999, p. 67),

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    nexo existente na vida dos homens concretos partindo-se do se... ento, distinguindo-se a ontologia marxiana (advogada por Lukcs) da hegeliana por afastar todo o elemento lgico-dedutivo e, o plano da evoluo histrica, todo o elemento teleolgico (Lukcs, 2008b, p. 226). De tal feita, embora no veja a distino entre ratione e ratio como essencial modernidade, Lukcs capta na prpria realidade caractersticas tpicas do capitalismo manipulatrio criticadas por Heidegger ao tratar da ratione entendida como razo. No que se percebe que a ausncia da reflexo sobre a mediao social e concreta, tornada necessria no momento em que o trabalho relegado inautenticidade, leva Heidegger a negar tout court a razo moderna, juntamente com os progressos conseguidos na contraditria modernidade. Desta maneira, enquanto Heidegger percebe a racionalidade da ratio como algo que tenta se impor de maneira absoluta, Lukcs acredita que a racionalidade moderna possui inmeras qualidades, devendo, porm, a racionalidade calcada no sujeito burgus ser criticada contundentemente, principalmente depois do perodo em que a burguesia no mais progressista. Veja que Lukcs no rechaa a razo; ocorre antes o oposto, na medida em que a racionalidade nunca ser uma racionalidade absoluta, mas, ao contrrio sempre como ocorre nas tentativas de realizar algo se tratar de uma racionalidade concreta de um nexo Se... ento (Lukcs, 1981a, p. 44). Ou seja, desse ponto de vista, pode-se falar de razo em uma situao concreta ligada prxis ontologicamente ancorada em relaes sociais histricas concretas em que h alternativas que operam por diversas possibilidades vistas pelo nexo se... ento. Por conseguinte, ontologia, razo e histria se ligam necessariamente j que o homem encontra-se em sociedade e em meio a relaes de produo e a foras produtivas que objetivamente se desenvolvem de modo progressivo, desenvolvendo as potencialidades humanas.

    Ao contrrio de Heidegger, portanto, a soluo dos problemas da modernidade no escapa da nfase dada prxis, antes, passa por ela. Conforme h um desenvolvimento objetivo das foras produtivas, as relaes de produo tornam-se ultrapassadas e a nica concepo capaz de romper com tal situao aquela que busca a transformao (associada por Heidegger a um agir tecnolgico) da totalidade da sociedade civil-burguesa, buscando uma sociedade efetivamente racional.

    Alienao, esfera pblica e histria em Heidegger e Lukcs

    As questes tratadas acima ganham concretude quando se verifica de maneira mais direta o posicionamento dos autores sobre questes essenciais de suas pocas. Assim, vale verificar as suas abordagens quanto poca posterior tensa dcada de 30 e ao incio da Segunda Guerra Mundial, poca em que ambos do os delineamentos definitivos de suas obras. Desta maneira, ambas as contribuies colocam-se como efetivas e remetem ontologicamente s relaes sociais historicamente situadas. As distintas abordagens sobre questes afins, pois, no so, como sempre lembrou Lukcs, inocentes, de maneira que o carter objetivo das ideologias resta claro na posio dos dois pensadores sobre a questo da alienao e da histria.

    Heidegger, entretanto, como j mencionado, raramente vai diretamente aos fatos, histria concreta, real, de seu tempo caso assim fizesse estaria tratando dos entes e no do ser, para que se use sua dico embora pretenda alcanar a histria entendida como transformao da essncia da verdade, ou seja, como um conjunto de eventos que levam, por meio de um movimento de encobrimento e de descobrimento ao prprio ser, como tambm j se mencionou mais a cima. Para ele, as tenses das relaes e dos antagonismos de classe estariam elas mesmas na esfera da manipulao dos entes; por isso, sua teoria coloca as questes essenciais de sua poca em termos muito distintos daqueles do marxismo de Lukcs. A interveno do pensador alemo mediada por consideraes sobre o raciocinar moderno e sobre o que chamou de metafsica. Trata-se, porm, de uma interveno concreta, e como disse Tertulian, Heidegger no hesita em inserir suas reflexes nos combates ideolgicos da poca (Tertulian, 2009, p. 26)22. Assim, o pensamento de Heidegger sempre ir se bater com as questes de sua poca, mesmo que por meio de ataques modernidade ou ao pensamento metafsico trata-se, por isso, de um pensamento engajado de sua maneira, o que j ficou claro anteriormente, mas que ganha maior concretude quando o pensador se aproxima de questes mais diretamente polticas.

    No que preciso mencionar passagens ilustrativas do autor da Carta sobre o humanismo, sem dvida, uma obra que busca uma interveno na poca em que a questo do humanismo levantada, dentre outros, pelo gauchie Sartre na Frana23. No que Heidegger argumenta que na modernidade o pensamento tornar-se-ia instrumento de formao (Heidegger, 2005, p. 13), o que se daria na medida em que se rompe com a noo grega segundo a qual acto e potentia, existentia e essentia havendo um movimento de encobrimento e de descobrimento no se

    22 Heidegger n hsitait pas insrer sa rflexion dans les combats idologiques de lpoque.23 interessante ressaltar que tanto Lukcs como Heidegger no tm boas impresses sobre a interpretao dada a suas obras pelo existencialismo francs.

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    dissociam e na medida em que prepondera um pensamento nivelado no espao pblico, criticado ardorosamente pelo pensador. E h de se perceber que, novamente, Heidegger busca no pensamento grego as questes da modernidade, o que, para Lukcs, seria errneo, j que as formas de ser, as determinaes de existncia, presentes na Grcia seriam distintas daquelas da modernidade e estariam ontologicamente ligadas forma de sociabilidade grega em que, sequer, as noo de indivduo e a oposio entre o materialismo e o idealismo (central para o pensador hngaro) estariam sendo tratadas por Heidegger, do ponto de vista de Lukcs, de modo idealista. Heidegger, por seu turno, relaciona a modernidade, e a poca em que fala em particular, com o prprio momento em que o pensar chegaria ao seu fim, o que se liga no autor da Carta sobre o humanismo a uma posio que v o intelectual livre desaparecendo e dando lugar ao intelectual, na poca, engajado, que intervm constantemente no espao pblico. O fortalecimento de tendncias de pensamento que se apresentam coletivamente de maneira organizada tambm visto com maus olhos pelo pensador para quem a perda do status quase que aristocrtico dos intelectuais parece coincidir com momento em que, nas palavras do autor

    No se pensa mais; ocupamo-nos da Filosofia. Na concorrncia dessas ocupaes elas ento exibem-se publicamente como ismos, procurando sobrepujar uma a outra. O domnio dessas expresses no causal. Ela reside, e isso particularmente nos tempos modernos, na singular ditadura da opinio pblica. A assim chamada existncia privada no , entretanto, ainda o ser-homem essencial e livre. Ela simplesmente crispa-se numa negao do que pblico (Heidegger, 2005, pp. 13-4)

    A primeira questo a ser ressaltada a variedade de temas colocados por Heidegger em um pargrafo, estando justaposto o tema da existncia privada e pblica e o tema da crise do pensamento moderno mencionado acima. Isso ocorre conforme Heidegger associa certa maneira de raciocinar com o moderno, e isso sem as mediaes sociais necessrias a tal empreitada, como j visto. H tambm uma crtica prpria configurao da filosofia de sua poca enquanto cincia especializada em que o tema do humanismo emerge junto com a manipulao o pesador alemo, assim, refere-se configurao do raciocinar por meio de ismos (dentre eles o marxismo, certamente), os quais seriam meros instrumentais para a interveno amparada pela opinio pblica manipulatria de tal feita que expulso da verdade do ser, o homem gira, em torno de si mesmo, como animal rationale (Heidegger, 2005, p. 51). No que a crtica de Heidegger concepo de homem enquanto animal racional ganha concretude: rechaando a dialtica entre meios e fins, entre a prvia ideao e a causalidade posta (para que sejam usados os termos de Lukcs), Heidegger nivela toda a atividade teleolgica ao agir inautntico; assim, uma teoria e um pensamento que se propem uma finalidade, como a supresso do modo de produo capitalista, por exemplo, seria levada pela alienao radical e inevitavelmente. Os ismos estariam associados ditadura da opinio publica sobre a qual as filosofias modernas aparecem procurando sobrepujar uma outra, em uma vulgar competio; fica claro que, para Heidegger, tal pensamento meramente instrumental e indissocivel da tcnica que se impe, tornando-se o prprio pensar instrumento tcnico na medida mesma de seus apelos ao pblico e aos universais do humanismo. O pensamento que intervm publicamente com uma finalidade, pois, condenado pelo autor da Carta sobre o humanismo aos meios e fins se relacionarem na esfera pblica.

    Aqui tambm necessrio cuidado com a questo, pois, no pensamento de Heidegger, para que fosse possvel se conceber uma esfera pblica, seria necessria uma existncia privada e, ao ressaltar isso, no pode deixar de vir tona a presena no pensamento do autor da to famosa distino entre o burgeois e o cytoien a qual sempre teve papel central na crtica marxista. Lukcs, inclusive, explcito ao afirmar a superioridade de Heidegger quanto aos pensadores de sua poca: ele se distingue, com grande vantagem, dos crticos da democracia que se detm (...) em sua prpria existncia puramente privada da glorificao do Essencial e da Autenticidade (Lukcs, 1949, p. 50)24. Nesse sentido, ao romper com a dicotomia pblico/privado como concebida pela ideologia burguesa, Heidegger teria captado aspectos essenciais da modernidade, escapando da tentao de opor uma esfera outra unilateralmente, percebendo-as, assim, como indissociveis. Porm, a sua crtica ditadura da opinio pblica no deixa de ter um carter fortemente elitista, pois descarta a priori quaisquer debates que possam vir tona e atingir as classes populares, tratando-se no s de uma crtica s disputas (muitas vezes fteis) da intelectualidade da poca, mas tambm de uma crtica ao que sempre o incomodou, a discusso poltica (especialmente a socialista) levada ao grande pblico, com mpeto transformador. A crtica dos ismos e da prxis transformadora ganha concretude, pois. A questo esclarecida quando vista lado a lado com o ferrenho anticomunismo, que, embora implcito no texto mencionado, tem grande influncia na definio heideggeriana do materialismo, apontado pelo autor, como tpico da modernidade.

    Explicita-se tambm outro aspecto da crtica heideggeriana dicotomia pblico/privado: entre ambos no haveria uma diferenciao essencial, sendo, de certa maneira, ilusria a contraposio; e, nesse ponto, a unidade

    24 Il se distigue par contre, son grand advantage, de ces critiques de la dmocracie qui....pour entourer, fort content d eux-mmes, leus proper existence purement priv de la gloriole d Essenciale e de la Autentique.

  • O segundo Heidegger e Lukcs: alienao, histria e prxis

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    dialtica entre os polos opostos tomada por Heidegger como uma indiferenciao que perde a mediao existente entre os distintos complexos sociais e vem a obscurecer a compreenso das relaes sociais capitalistas. Ao invs de tratar da complexa relao entre sociedade civil-burguesa e Estado, o pensador v a unidade como indistino isso se d na medida em que a prpria ontologia heideggeriana se ope anlise caracterizada por Lukcs como onto-gentica, o que significa que o desenvolvimento das contradies da histria concreta no tem espao na obra do autor, que remete histria somente ao ver os diferentes momentos da filosofia em um embate em que seria possvel se perceber aspectos de uma concepo que levaria ao pensamento do ser, tarefa essa a que dedica a sua prpria filosofia. Esse trao de indistino, por seu turno, um expediente muito criticado por Lukcs para quem a totalidade a unidade do diverso e no algo que se impe suprimindo a particularidade e as especificidades dos distintos complexos sociais.

    Em Heidegger, a opinio pblica estaria configurada de forma alienada, de acordo com algo impessoal e evidente na manipulao do cotidiano tratar-se-ia de um modo de ser amparado na alienao. Note-se que h ecos de sua obra O ser e o tempo nessa anlise, ecos esses que percorrem toda a obra do pensador alemo, reforando o papel que a tematizao da alienao tem em seu pensamento. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:

    Na utilizao dos meios de transporte pblico, no emprego de meios de comunicao e notcias (jornal), cada um com o outro. Este conviver dissolve inteiramente a prpria pr-sena no modo de ser dos outros e isso de tal maneira que os outros desapaream ainda mais em sua possibilidade de diferena e expresso. O impessoal desenvolve sua prpria ditadura nessa falta de surpresa e de possibilidade de constatao. Assim, nos divertimos e nos entretemos como impessoalmente se v e julga; tambm nos retiramos das grandes multides como impessoalmente se retira; achamos revoltante o que impessoalmente se considera revoltante. O impessoal que no nada determinado mas que todos so, embora