violencia contra o idoso - relevância para um velho problema

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783 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(3):783-791, mai-jun, 2003 ARTIGO ARTICLE Violência contra idosos: relevância para um velho problema Violence against the elderly: the relevance of an old health problem 1 Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4036, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361 Brasil. [email protected] Maria Cecília de Souza Minayo 1 Abstract This article presents data on morbidity and mortality due to “external causes” among the Brazilian elderly and a review of the Brazilian and international literature on the theme. The data refer to the period from 1980 to 1998.The main sources were the Mortality Information Sys- tem (SIM) and the Hospital Information System of the Unified National Health System (SIH- SUS). The basic cause of death was evaluated according to the 9th Review of the International Classification of Diseases (ICD9) for 1980 to 1995 and based on the 10th Review since then. The Brazilian and international literature review was based on texts from MEDLINE, LILACS, and Informa. Accidents and violence are the 6th most common cause of death among individuals 60 years of age and older in Brazil. The majority of hospitalizations from external causes involve le- sions from falls and injuries to older pedestrians by motor vehicles. However, violence against el- derly Brazilians is more widespread and varied than this, as reflected by cases of physical, psy- chological, sexual, and financial abuse and neglect that fail to reach the health care system; rather, such cases are “taken for granted”, seen as basically natural within the daily routine of family relations and various forms of social and public policy neglect. Key words Violence; Aging Health; Health Services Resumo Este artigo apresenta dados sobre mortalidade e morbidade em idosos brasileiros por “causas externas”, bem como uma revisão da literatura nacional e internacional sobre o tema. As informações referem-se ao período de 1980 a 1998. Como fontes principais, utilizaram-se bancos do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH- SUS). Avaliou-se a causa básica dos óbitos segundo a 9 a revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID9), de 1980 até 1995; e de acordo com a 10 a revisão, a partir de então. A revisão da literatura nacional e internacional teve por base textos do MEDLINE; do LILACS e do Infor- ma. Acidentes e violências são a sexta causa de morte de idosos com 60 anos de idade ou mais no Brasil. A maioria das internações por causas externas são devidas a lesões e traumas provocados por quedas e atropelamentos. As violências contra idosos, porém, são muito mais abrangentes e disseminadas no país, evidenciando-se em abusos físicos, psicológicos, sexuais e financeiros e em negligências que não chegam aos serviços de saúde: ficam ‘naturalizadas’, sobretudo, no cotidia- no das relações familiares e nas formas de negligência social e das políticas públicas. Palavras-chave Violência; Saúde do Idoso; Serviços de Saúde

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(3):783-791, mai-jun, 2003

ARTIGO ARTICLE

Violência contra idosos: relevância para um velho problema

Violence against the elderly: the relevance of an old health problem

1 Centro Latino-Americanode Estudos sobre Violência e Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública,Fundação Oswaldo Cruz.Av. Brasil 4036,Rio de Janeiro, RJ,21040-361 [email protected]

Maria Cecília de Souza Minayo 1

Abstract This article presents data on morbidity and mortality due to “external causes” amongthe Brazilian elderly and a review of the Brazilian and international literature on the theme. Thedata refer to the period from 1980 to 1998. The main sources were the Mortality Information Sys-tem (SIM) and the Hospital Information System of the Unified National Health System (SIH-SUS). The basic cause of death was evaluated according to the 9th Review of the InternationalClassification of Diseases (ICD9) for 1980 to 1995 and based on the 10th Review since then. TheBrazilian and international literature review was based on texts from MEDLINE, LILACS, andInforma. Accidents and violence are the 6th most common cause of death among individuals 60years of age and older in Brazil. The majority of hospitalizations from external causes involve le-sions from falls and injuries to older pedestrians by motor vehicles. However, violence against el-derly Brazilians is more widespread and varied than this, as reflected by cases of physical, psy-chological, sexual, and financial abuse and neglect that fail to reach the health care system;rather, such cases are “taken for granted”, seen as basically natural within the daily routine offamily relations and various forms of social and public policy neglect.Key words Violence; Aging Health; Health Services

Resumo Este artigo apresenta dados sobre mortalidade e morbidade em idosos brasileiros por“causas externas”, bem como uma revisão da literatura nacional e internacional sobre o tema. Asinformações referem-se ao período de 1980 a 1998. Como fontes principais, utilizaram-se bancosdo Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS). Avaliou-se a causa básica dos óbitos segundo a 9a revisão da Classificação Internacionalde Doenças (CID9), de 1980 até 1995; e de acordo com a 10a revisão, a partir de então. A revisãoda literatura nacional e internacional teve por base textos do MEDLINE; do LILACS e do Infor-ma. Acidentes e violências são a sexta causa de morte de idosos com 60 anos de idade ou mais noBrasil. A maioria das internações por causas externas são devidas a lesões e traumas provocadospor quedas e atropelamentos. As violências contra idosos, porém, são muito mais abrangentes edisseminadas no país, evidenciando-se em abusos físicos, psicológicos, sexuais e financeiros e emnegligências que não chegam aos serviços de saúde: ficam ‘naturalizadas’, sobretudo, no cotidia-no das relações familiares e nas formas de negligência social e das políticas públicas.Palavras-chave Violência; Saúde do Idoso; Serviços de Saúde

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Introdução

Com este artigo, pretende-se contribuir paracompreender a situação de violência que boaparte dos idosos brasileiros vivencia. Esta con-tribuição se encaminha em dois sentidos: apre-sentar uma análise exploratória sobre os dadosde morbidade e de mortalidade por violênciadesse grupo populacional e discutir a dimen-são do problema por meio de uma revisão dabibliografia internacional e nacional, enfati-zando, a partir de uma visão mais ampliada, asprincipais questões universais e específicas queesse grupo populacional vive. Tendo em vistaas diferentes delimitações encontradas sobre oassunto, neste texto considera-se como idosa apopulação de 60 anos em diante, ponto de cor-te mais comumente adotado internacionalmen-te, sobretudo, nos estudos epidemiológicos.

As violências contra pessoas mais velhasprecisam ser vistas sob, pelo menos, três parâ-metros: demográficos, sócio-antropológicos eepidemiológicos. No primeiro caso, deve-se si-tuar o recente interesse sobre o tema, vincula-do ao acelerado crescimento nas proporçõesde idosos em quase todos os países do mundo.Esse fenômeno quantitativo repercute nas for-mas de visibilidade social desse grupo etário ena expressão de suas necessidades. No Brasil,por exemplo, dobrou-se o nível de esperançade vida ao nascer em relativamente poucas dé-cadas, em uma velocidade muito maior que ospaíses europeus – que levaram cerca de 140anos para envelhecer.

No entanto, apesar de toda essa veloz mu-dança, a maioria dos velhos está na faixa de 60a 69 anos (a faixa onde a vitimação por violên-cia, incide mais freqüentemente), constituin-do-se em menos de 10% da população total. Jána Europa, são os grupos acima de 70 anos osque mais crescem (Veras, 1994). De qualquerforma, sendo mais de 13 milhões de cidadãosbrasileiros, é impossível que os idosos e os pro-blemas que lhes dizem respeito passem des-percebidos no país. Embora a vitimação dosvelhos seja um fenômeno cultural de raízes se-culares e suas manifestações, facilmente reco-nhecidas, desde as mais antigas estatísticas epi-demiológicas, esse problema não tem se apre-sentado como relevância social. Neste momen-to histórico, a quantidade crescente de idososoferece um clima de publicização das informa-ções produzidas sobre eles, tornando-as um te-ma obrigatório da pauta de questões sociais.

Antropológica e culturalmente, a idade cro-nológica é ressignificada como um princípionorteador de novos direitos e deveres. Isso querdizer que a infância, a adolescência, a vida

adulta e a velhice não constituem proprieda-des substanciais que os indivíduos adquiremcom o avanço da idade. Pelo contrário, “o pro-cesso biológico, que é real e pode ser reconheci-do por sinais externos do corpo, é apropriado eelaborado simbolicamente por todas as socieda-des, em rituais que definem, nas fronteiras etá-rias, um sentido político e organizador do siste-ma social” (Minayo & Coimbra Jr., 2002:14).

Geralmente, nos diferentes contextos his-tóricos, há uma atribuição de poderes para ca-da ciclo da vida. Mas também faz parte da his-tória um “desinvestimento” político e social napessoa do idoso. A maioria das culturas tende aseparar esses indivíduos, segregá-los e, real ousimbolicamente, a desejar sua morte. Em umestudo sobre diferentes etnias africanas Riffio-tis (2000) demonstra como, nessas tribos ondeimpera uma rígida divisão de funções etárias,essa intenção de aniquilamento político dosvelhos é ritualizada, pois em uma determinadafase da vida, eles são levados para morrerem,em cavernas distantes dos seus povoados. Emnossas sociedades, esse desejo social de mortedos idosos se expressa, sobretudo, nos conflitosintergeracionais, maus-tratos e negligências, cu-ja elaboração cultural e simbólica se diferenciano tempo, por classes, por etnias, e por gênero.

Seria de esperar, então, que os velhos seconformassem com seu lugar na divisão cultu-ralmente atribuída de direitos e deveres por ci-clos de vida. Mas não é o que parece ocorrer. Aforma como a sociedade adulta e jovem discri-mina os velhos se contrapõe às expectativasque eles alimentam sobre as comunidades emque vivem. É ainda hoje bastante significativaa pesquisa do antropólogo Simmons (1945) so-bre a visão e a expectativa de velhos em 71 so-ciedades indígenas, em relação a suas tribos eao lugar que ocupavam. Essa investigação nãofoi replicada, mas, pela sua relevância mereceser citada quase 60 anos após ser feita. O autorafirma que, em todas elas, encontrou os seguin-tes desejos expressos pelos idosos: viver o má-ximo possível; terminar a vida de forma dignae sem sofrimento; encontrar ajuda e proteçãopara a sua progressiva diminuição de capaci-dades; continuar a participar das decisões dacomunidade; prolongar, ao máximo, conquis-tas e prerrogativas sociais como propriedades,autoridade e respeito. Será que, em nossa so-ciedade contemporânea, variariam as expecta-tivas da população mais velha?

No caso brasileiro, as violências contra a ge-ração a partir dos 60 anos se expressam em tra-dicionais formas de discriminação, como o atri-buto que comumente lhes é impingido como“descartáveis” e “peso social”. Por parte do Es-

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tado, esse grande regulador do curso da vida, oidoso hoje é responsabilizado pelo custo insus-tentável da Previdência Social e, ao mesmotempo, sofre uma enorme omissão quanto apolíticas e programas de proteção específicos.É bem verdade que em 1994 foi promulgada aLei Federal 8.842 (Brasil, 1994), buscando orde-nar a proteção aos idosos. No entanto, como éo caso de muitas leis no Brasil, a implementa-ção é ainda precária. No âmbito das institui-ções de assistência social e saúde, são freqüen-tes as denúncias de maus tratos e negligências.Mas nada se iguala aos abusos e negligênciasno interior dos próprios lares, onde choque degerações, problemas de espaço físico, dificulda-des financeiras costumam se somar a um ima-ginário social que considera a velhice como“decadência” (Minayo & Coimbra Jr., 2002).

A epidemiologia evidencia os indicadorescom os quais o sistema de saúde mede a mag-nitude das violências no cotidiano da vida, dasinstituições e do próprio Estado. Para isso, usao conceito de causas externas que é preciso di-ferenciar de violência. Causas externas consti-tuem uma categoria estabelecida pela Organi-zação Mundial da Saúde (OMS) para se referiràs resultantes das agressões e dos acidentes,traumas e lesões. “Violência” é um conceito re-ferente aos processos, às relações sociais inter-pessoais, de grupos, de classes, de gênero, ouobjetivadas em instituições, quando empregamdiferentes formas, métodos e meios de aniqui-lamento de outrem, ou de sua coação direta ouindireta, causando-lhes danos físicos, mentaise morais. As violências contra idosos, também,freqüentemente, são denominadas maus tratose abusos, mas vou me omitir de fazer uma ava-liação sobre as últimas duas noções, utilizan-do-as como sinônimo de violência. Esse con-junto de termos se refere a abusos físicos, psico-lógicos e sexuais; assim como a abandono, ne-gligências, abusos financeiros e autonegligên-cia. Ressalto, por pertinente, que a negligência,conceituada como a recusa, omissão ou fracas-so por parte do responsável pelo idoso em apor-tar-lhe os cuidados de que necessita, é uma dasformas de violência mais presentes tanto emnível doméstico quanto institucional em nossopaís. Dela advêm, freqüentemente, lesões etraumas físicos, emocionais e sociais para apessoa. Ambos os termos, causas externas eacidentes e violências devem ser usados quan-do se trata do impacto desses fenômenos sobrea saúde, pois referem-se a resultantes e a pro-cessos relacionais e ambos estão oficializadosno documento de Política Nacional de Reduçãoda Morbimortalidade por Acidentes e Violên-cias, do Ministério da Saúde (MS, 2001).

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Material e método

Os dados quantitativos sobre a mortalidade e amorbidade da população idosa brasileira, noperíodo de 1980 a 1998, que aqui se apresen-tam, são retirados de um trabalho de levanta-mento e interpretação dessa realidade, elabo-rado por Souza et al. (2001), pesquisadores doCentro Latino-Americano de Estudos sobre Vio-lência e Saúde Jorge Careli (CLAVES) da Fun-dação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), utilizando ométodo geométrico para estimar as populaçõesintracensitárias utilizadas no cálculo das taxasde mortalidade. As fontes principais dos dadosforam os bancos do Sistema de Informação deMortalidade (SIM), do MS (no caso dos óbitos);e o Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) a partir da “autorização de internaçãohospitalar”, para o caso da morbidade. A causabásica dos óbitos foi avaliada segundo a 9a re-visão da Classificação Internacional de Doen-ças (CID9 – OMS, 1985) de 1980 até 1995; e deacordo com a 10a revisão, a partir de então. Nanona, o grupo das chamadas “causas externas”abrangia os códigos E800 a E900 do capítulosuplementar; e na décima, são categorizadasnos códigos V01-Y98, comportando os homicí-dios, os suicídios e os óbitos por acidentes emgeral. A morbidade está classificada no capítu-lo XIX da CID10 (OMS, 1995), referindo-se a le-sões por violências e envenenamentos.

A revisão bibliográfica foi realizada a partirdo MEDLINE e do LILACS (2000-2001) e da baseInforma Biblioteca Eletrônica do CLAVES, Fio-cruz (de toda a década de 90). Todo este mate-rial foi analisado, considerando-se as bases teó-ricas da reflexão e os dados quantitativos e qua-litativos apresentados sobre o grupo social: avítima, o agressor; as formas mais reincidentesde violência e as sugestões de cuidados clíni-cos, sociais e de políticas públicas. Aqui só se-rão referidos os textos que ajudam a configuraro quadro das violências e das causas externas.Tal decisão se deve ao fato de haver, em todo omaterial pesquisado, muita repetição de da-dos, de conceitos, ou de que, em grande partedos artigos, são analisadas realidades locais deforma apenas descritiva, o que desaconselha asua generalização. O estudo da base Informaabrangeu toda a década de 90 porque são ape-nas 11 as referências brasileiras sobre a proble-mática aqui tratada no período.

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Mortalidade e morbidade de idosos por causas violentas no Brasil

Dentre as principais causas de morte em ido-sos no Brasil, nos anos de 1980 a 1998, as cau-sas externas representaram 3,5% da mortalida-de geral, ocupando, nesse conjunto, o sexto lu-gar. Os dados indicam tendência de queda des-se tipo de óbitos que, já em 1998, significou3,2% da mortalidade geral nessa faixa etária(ou seja, na população de 60 anos ou mais),tendo sido superado pelas doenças infecciosase parasitárias (DIP), que estavam logo abaixono ranking das causas de mortalidade. Em 1998,morreram 13.184 idosos por acidentes e vio-lências no país, significando, por dia, cerca de37 óbitos.

No período de 1980 a 1998, as taxas de óbi-tos da população de 60 anos e mais, por todasas causas, no país, apresentaram comporta-mento decrescente em ambos os sexos, com pi-cos entre 1984, 1988 e 1993. Em 1980, essas ta-xas para o sexo masculino foram de 4.425,4 por100 mil habitantes e em 1998, de 4.191. No sexofeminino foram, respectivamente, 3.531,8 e3.180,6.

Tomando-se como base os anos de 1980 e1998, verificou-se que, exceto em 1998, na faixaetária de 80 anos ou mais, a mortalidade doshomens idosos, por causas violentas, predomi-nou sobre a do grupo de mulheres, mesmosendo a população feminina muito mais eleva-da em todas as faixas. Na faixa citada, em 1998,a proporção foi de 3,3 mortes masculinas paracada óbito feminino. Tal relação passou para2,0 entre 70 a 79 anos; e para 0,9 na populaçãode 80 anos ou mais, evidenciando-se diferen-ças estatisticamente significativas entre gruposetários e entre os sexos, pois a razão mais cons-tante é de 2,2 óbitos masculinos para cada óbi-to feminino.

No conjunto das violências, as que mais vi-timaram os idosos no período estudado foramos acidentes de trânsito e transporte, as quedase os homicídios. Essas três causas específicasrepresentam 54,1% do total dos óbitos por vio-lência entre os idosos em 1980; e 55,8%, em1998. É importante destacar que, embora ain-da sejam a causa violenta mais significativa demortes da população com mais de 60 anos, osacidentes de trânsito e transporte decresceramproporcionalmente no ano de 1998. Ao contrá-rio, os homicídios e as quedas apresentaramcrescimento proporcional, passando, respecti-vamente, de 7,2% e 13,7% do total das mortespor acidentes e violências, em 1980, para 9,6%e 16,6%, em 1998. Não é desprezível a propor-ção de suicídios, no conjunto das mortes vio-

lentas, tendo se elevado de 6,7% para 7,8%, noperíodo. Ressalta-se, ainda, o alto percentualde óbitos por causas e intencionalidade ignora-das em 1980 (19,4%), o que felizmente vem de-crescendo, chegando em 1998 a 11,9%. Esse úl-timo campo de classificação ainda fala alto so-bre problemas de notificação, mas também in-dica o êxito dos esforços acadêmicos e institu-cionais para esclarecimento de causas básicasde mortes violentas. Portanto, é importante in-dagar sob a plausibilidade de que os aumentosdetectados nas proporções de falecimentos porcausas específicas reflitam real incremento oumelhor qualidade das informações sobre ascircunstâncias que envolveram o evento fatal.

Seis Unidades da Federação destacam-secomo as mais violentas para os idosos: Goiás,Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia,Roraima e Rio de Janeiro, com taxas que variamde 133,7 a 249,5 óbitos por 100 mil habitantes.Piauí e Maranhão evidenciam as taxas maisbaixas, cerca de 52/100 mil.

Na distribuição espacial das causas especí-ficas, os acidentes de trânsito e transporte quevitimaram os idosos têm as maiores taxas emRoraima (135,1/100 mil), Rondônia (59,9), Goiás(50,9), Espírito Santo (50,5), Paraná (48,7) eDistrito Federal (47,7) e Acre (42,0). Bahia, Ser-gipe e Maranhão foram os Estados da Federaçãoque apresentaram as menores taxas de morta-lidade, por essa causa específica, em 1998: 12,7,14,5 e 15,2 por 100 mil, respectivamente.

As quedas, causa específica cuja relevânciasó é considerada pelos óbitos por lesões e trau-mas provocadas por acidentes e violências notrânsito, têm as maiores taxas encontradas noDistrito Federal (37,5), Paraná (34,2), Rio de Ja-neiro (33,9), Minas Gerais (26,2), Espírito Santo(25,2) e Pernambuco (19,6). Para este tipo deagravo, as menores taxas foram encontradas noMaranhão (2,5) e no Amapá. Esse último nãoapresentou nenhum caso notificado de morteem idosos por essa causa específica, em 1998.Em um estudo realizado por Uchikawa & Go-mes (1999) em um grande hospital geral de SãoPaulo sobre os arquivos hospitalares de 1995,evidenciou-se que 54% dos idosos internadospor causas externas o foram por quedas, e 63%desse grupo apresentavam traumatismo crâ-nio-encefálico. Do total dos internados, 23%foram a óbito.

A distribuição espacial da mortalidade porhomicídios evidencia as maiores taxas ocorren-do no Amapá (62,3) e em Roraima (52) em 1998.Piauí e Sergipe destacam-se como as unidadesda Federação com as menores taxas de morta-lidade por homicídios de idosos, também em1998 (2,9 e 3,4 por 100 mil, respectivamente).

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Em um estudo focalizado sobre o Estado doRio de Janeiro, Souza et al. (1998) mostraramque aí predominam, como causas violentas demorte de idosos, acidentes de trânsito e quedas.Estas últimas vitimam, sobretudo, mulheres nafaixa dos 70 ou mais anos de vida. Porém, é evi-dente também o crescimento de óbitos por su-focação no período de 1980 a 1994, indicandofalhas nos serviços assistenciais e ausência deprestação de cuidados médicos.

Na maioria das capitais das regiões metro-politanas, a mortalidade de idosos por violên-cias e acidentes ocupou entre o sexto e o séti-mo lugar no conjunto das causas de óbito em1998. As causas externas estão na sexta posiçãono Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em SãoPaulo, em Curitiba e em Porto Alegre. E no séti-mo lugar, em Belém, Fortaleza e Recife.

Nas capitais de regiões metropolitanas, exis-tem algumas especificidades dignas de nota: asde Recife e Curitiba apresentaram as mais ele-vadas taxas de violência em idosos: respectiva-mente, em 1998, 491,6/100.000 e 388,3/100.000.Recife se destaca pelas altas proporções de ho-micídios nesse grupo etário (14,5% em 1998); eCuritiba se evidencia pelos suicídios que atin-giram, em 1998, 16,3% do total dos óbitos porcausas externas. Também em Curitiba é consi-derável o aumento proporcional de mortes porquedas, que passaram de 1,7%, em 1980, para26,4%, em 1998.

Salvador apresentou uma relação de cincoóbitos masculinos para cada óbito femininopor violências e acidentes, na faixa etária de 60a 69 anos, em 1998. Nessa capital, constatou-sea relação entre os sexos mais elevada do país. Aanálise de séries temporais no período de 1980a 1998 indicou haver uma tendência de cresci-mento na vitimização desse grupo etário emBelo Horizonte. Em Porto Alegre, é importanteevidenciar três questões: a melhoria na quali-dade dos dados sobre causas externas que pro-vocam a morte dos velhos, havendo um de-créscimo considerável na proporção de infor-mações sobre causalidade e intencionalidadeignoradas: passaram de 36,6% em 1980 para3,5% em 1998. Em segundo lugar, deve-se res-saltar a elevada proporção de suicídios em ido-sos. Essas proporções passaram de 10,9% em1980, para 15,8% em 1998. Por fim, é digno denota o considerável aumento nas mortes porquedas, nessa capital, indo de 2%, em 1980, pa-ra 32,2%, em 1998, no conjunto das causas ex-ternas. É claro que a melhoria de qualidade dosdados, graças ao investimento na vigilânciaepidemiológica da região metropolitana, estárefletida no crescimento das proporções de óbi-tos por causas específicas.

No Brasil, as informações sobre morbidadepor causas violentas em idosos ainda são pou-co consistentes, fato observado também na li-teratura internacional que ressalta a sub-noti-ficação em todo o mundo. Por meio de investi-gações mais localizadas, com trabalho de cam-po e busca ativa, alguns autores estimam quecerca de 70% das lesões e traumas sofridos pe-los velhos não estão incluídos nas estatísticas(Chavez, 2002). Considerando essa limitação,entende-se que os dados existentes permitemperceber a gravidade dos problemas e observaronde devem ser realizados investimentos dosistema de saúde e das políticas sociais de pro-teção. Por isso, a opção é trabalhar a partir doque existe, buscando melhorar as informaçõesdesde sua origem.

A análise do Sistema de Informações Hos-pitalares do SUS revela que, em 1999, registra-ram-se 69.637 internações por violências noSIH/SUS. Destas, 55% deveram-se a quedas; e23,4%, a acidentes de transporte e trânsito, so-bretudo a atropelamentos (Souza et al., 2001).Desse conjunto, 63,2% se referiram a fraturas;19,7%, a lesões traumáticas; 6,3%, a ferimen-tos; 3,5%, a luxações; e 3,1%, a amputações.Além dos dados hospitalares, pode-se verificar,analisando-se os registros policiais, que pes-soas idosas são vítimas de seqüestros, roubos,assaltos, invasão de domicílio, roubo de pro-priedade e de veículos, em proporção menor,mas da mesma forma que outros grupos popu-lacionais (Souza et al., 2001).

Alguns estudos internacionais e nacionais(Payne et al., 1992; Souza et al., 1998, 2001) re-ferem que, enquanto os acidentes de trânsito ede transporte são a primeira causa específicade mortes de idosos, quedas são o principal ti-po de agravo que leva à internação desse grupopopulacional e o mais importante motivo desua demanda aos serviços de emergência. Fre-qüentemente, as quedas que provocam lesõese traumas ocorrem entre o quarto e o banheiro,dentro do ambiente doméstico; ao atravessaras ruas e ao subir nos ônibus ou ao se locomo-verem dentro deles. Associam-se, na maioriadas vezes, a enfermidades e fragilidades comoosteoporose, instabilidade visual e posturalmais típicas da idade e podem indicar tambémnegligências em prover proteção aos idosos.

Souza et al. (2001) ressaltam a existência deuma razão de três quedas não-fatais para cadaqueda fatal. E observam que a elevada relaçãoentre óbitos e lesões também costuma ser umaexpressão de vários tipos concomitantes demaus-tratos por parte dos familiares ou doscuidadores, dentro dos lares ou nas instituiçõesde abrigo. Um terço desse grupo que vive em

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casa e a metade dos que vivem em instituiçõessofrem pelo menos uma queda anual. A fraturade colo de fêmur é a principal causa de hospi-talização e metade dos idosos que sofrem essetipo de lesão falece dentro de um ano. Grandeparte dos que sobrevivem fica totalmente de-pendente do cuidados de outras pessoas. Issorepresenta altos custos financeiros e sociais(Kleinschimdt, 1997; Sijuwade, 1995).

Discussão dos dados frente à bibliografia internacional e nacional

Por mais que impressionem os números relati-vos aos 13.184 idosos mortos por violências(cerca de 37 pessoas por dia) em 1998 e os69.637 que ficaram internados por lesões e en-venenamentos em 1999, a violência contra osidosos é muito mais intensa, muito mais disse-minada e muito mais presente nas sociedadese também na sociedade brasileira do que osnúmeros revelam. Na verdade, como já se ex-plicitou, os registros de morte e de morbidadepor “causas externas” referem-se, exclusiva-mente, aos casos de lesões, traumas ou fatali-dades que passam pelos serviços de saúde oupelo Instituto Médico Legal, constituindo-sena ponta do iceberg de uma cultura relacionalde dominação, de conflitos intergeracionais oude negligências, familiares ou institucionais.

A partir dos dados coletados na literaturainternacional e nacional, pode-se concluir quea violência contra os idosos constitui um pro-blema universal. Estudos de várias culturas ede cunho comparativo entre países têm de-monstrado que pessoas de todos os status so-cioeconômicos, etnias e religiões são vulnerá-veis aos maus-tratos, que ocorrem de váriasformas: física, sexual, emocional e financeira.Freqüentemente, uma pessoa de idade sofre,ao mesmo tempo, vários tipos de maus-tratos(Chavez, 2002; Menezes, 1999; Wolf, 1995). Essaclassificação pode ser entendida como uma ti-pologia universalizada, pois todos os autoresque fazem investigação empírica ou têm anali-sado arquivos de Emergências Hospitalares ede Institutos Médico-Legais comprovam even-tos dessa natureza como bases de lesões e trau-mas físicos, mentais e emocionais (Chavez,2001; Menezes, 1999; MS, 2001; Pavlik et al.,2001). Por exemplo, Wolf (1995), em uma revi-são de várias pesquisas canadenses, ressalta,como abusos mais freqüentes, os de origem fi-nanceira (12,5%), a agressão verbal (1,4%) e asagressões físicas (0,5%).

Países com maior acumulação de conheci-mento sobre o tema, como Estados Unidos e

Canadá, revelam uma prevalência de maus tra-tos de 10% para toda a população idosa. (Cha-vez, 2002; Kleinschmidt, 1997; Wolf, 1995), fatoque não se pode comprovar no Brasil, pelo es-tado incipiente das investigações.

No caso nacional, embora a violência queocorre no âmbito familiar seja apresentada co-mo de indiscutível presença (Menezes, 1999;MS, 2001; Souza et al., 1998), há outras trêsquestões que disputam com ela um espaço derelevância. Em primeiro lugar, um tipo de ne-gligência social difusa que se manifesta comouma cultura de relação com os idosos, juntan-do, em sua configuração, o Estado que se omi-te quanto a programas de proteção e quanto àavaliação das instituições que oferecem assis-tência; instituições que abrigam e cuidam dosvelhos como se eles estivessem em um corre-dor de espera da morte; e famílias que, por di-ficuldades financeiras e vários outros motivos,costumam abandonar seus familiares em asi-los e clínicas (Machado et al., 2001). Em segun-do lugar, como uma derivação dessa culturanegligente, assinala-se a violência institucio-nal, cuja maior expressão são os asilos de ido-sos, sobretudo os conveniados com o Estado,onde são comuns processos de maus-tratos, dedespersonalização, de destituição de poder evontade, de falta ou inadequação de alimentose, também, omissão de cuidados médicos es-pecíficos e personalizados. Freqüentemente,os idosos são vistos como ocupantes de um lei-to a mais para obtenção de financiamento pú-blico. Esse problema crucial tem no caso daClínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, suaexpressão paradigmática (Guerra et al., 2000;Souza et al., 2002).

Em terceiro lugar, ressalta-se a questão dostransportes públicos e do trânsito, assunto quediz respeito à vida urbana e à circulação dosidosos pelas cidades. Essa forma de violênciacomeça no design dos ônibus com escadas deacesso muito altas e roletas apertadas ou difí-ceis de mover. Evidentemente, a comodidade ea adequação desses veículos até hoje não têmlevado em consideração os velhos ou quais-quer pessoas portadoras de deficiência. Mas odesrespeito se expressa, sobretudo, na insensi-bilidade de motoristas e cobradores. Muitosnão param nos pontos quando os vêem; arran-cam e freiam bruscamente. Por vezes, usuáriosdos coletivos não lhes oferecem lugares de as-sento aos que, pretensamente, teriam priorida-de. Esse tema foi intensamente trabalhado porMachado et al. (2001), em estudo qualitativocom idosos do Rio de Janeiro.

Na maioria dos estudos internacionais, en-fatiza-se, como a mais freqüente forma de vio-

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lência contra os idosos, a que acorre no âmbitofamiliar. Chavez (2002) e Kleinschmidt (1997)demonstram que 90% dos casos de maus-tra-tos e negligência contra as pessoas acima de 60anos ocorrem nos lares. Essas pesquisas reve-lam que cerca de 2/3 dos agressores são filhose cônjuges dos idosos vitimizados (Chavez, 2002;Reay & Browne, 2001; Williamson & Schaffer,2001). Tais dados, além de mostrar o ambientefamiliar como conflituoso, abusivo e perigoso,ressaltam também o fato de a questão do idosocontinuar a ser, na maioria das sociedades, res-ponsabilidade das famílias. Para o Brasil, algu-mas pesquisas como a de Menezes (1999) de-monstram também a alta prevalência de vio-lência familiar, mas o estado atual dos traba-lhos existentes não permite explicitar a propor-ção em que esse fenômeno incide sobre o con-junto das violências e acidentes em idosos.

Estudos nacionais (Menezes, 1999; MS, 2001)e internacionais (Anetzberger et al., 1994; Ort-mann et al., 2001; Wolf, 1995) evidenciam queexiste um perfil do abusador familiar: por or-dem de freqüência, costumam ser, em primei-ro lugar, os filhos homens mais que as filhas; ea seguir, noras e genros; e esposos. Sanmartinet al. (2001), em uma amostra de 307 idososmaltratados acima de 70 anos, encontraram oseguinte perfil de agressores: 57% eram filhos efilhas; 23% eram genros e noras: 8%, um doscônjuges. Anetzberger et al. (1994) tambémevidenciaram, como principais agressores, fi-lhos homens em 56,5% dos casos; e filhos ho-mens solteiros com idade inferior a 49 anos,em 78,3% dos casos, em um estudo qualitativorealizado com abusadores e não-abusadores,nos Estados Unidos.

A caracterização do agressor foi mais apro-fundada por alguns autores que se pergunta-ram pelas situações de risco que os idosos vi-venciam nos lares, ressaltando as seguintes:agressor e vítima viverem na mesma casa; o fa-to de os filhos serem dependentes financeira-mente de seus pais de idade avançada; ou de osidosos dependerem da família de seus filhospara sua manutenção e sobrevivência; o abusode álcool e drogas pelos filhos, outros adultosda casa ou pelo próprio idoso; haver, na famí-lia, ambiente e vínculos frouxos, pouco comu-nicativos e pouco afetivos; isolamento socialdos familiares e da pessoa de idade avançada;o idoso ter sido ou ser uma pessoa agressivanas relações com seus familiares; haver histó-ria de violência na família; os cuidadores teremsido vítimas de violência doméstica; padece-rem de depressão ou qualquer tipo de sofri-mento mental ou psiquiátrico (Anetzberger et.al., 1994; Chavez, 2002; Laschs et al., 1998; Me-

nezes, 1999; Ortmann et al., 2001; Reay & Brow-ne, 2001; Sanmartin et al., 2001; Williamson &Schaffer, 2001; Wolf, 1995).

Dentre todos os fatores, a maioria dos estu-diosos referidos ressalta a forte associação en-tre maus-tratos aos velhos e dependência quí-mica. Segundo Anetzberger et al. (1994), 50%dos abusadores que entrevistaram tinham pro-blemas com bebidas alcoólicas. Esses autores eChavez (2002) assinalam que os agressores físi-cos e emocionais dos idosos usam álcool e dro-gas em uma proporção três vezes mais elevadado que os não-abusadores.

Alguns pesquisadores vêm desmistificandoa idéia de que os cuidadores familiares seriamos maiores agressores e que as situações demaus-tratos e negligências tenderiam a piorar,quanto mais o idoso fosse dependente e maistempo exigisse de atenção e dedicação. Kleins-chmidt (1997) e Reay & Browne (2001) consta-taram que essa relação, sem dúvida estressan-te, só se transforma em violenta quando o cui-dador se isola socialmente; quando sofre dedepressão ou problemas psiquiátricos; quandosão frouxos os laços afetivos entre o idoso e ele;ou quando quem assiste à pessoa idosa foi víti-ma de violência por parte dela. Afirmam Wil-liamson & Schaffer (2001) que análises multi-variadas sugerem ser a qualidade da relaçãopré-enfermidade ou anterior ao estado de de-pendência do idoso em relação ao cuidadorque determina a forma positiva ou negativa co-mo este último percebe seu trabalho (comocastigo ou como ato de dedicação amorosa),sendo preditiva de estados de depressão e depossíveis comportamentos violentos. É muitoilustrativo o trabalho de Caldas (2002), que, pormeio de uma abordagem fenomenológica, ou-ve e interpreta a ótica dos cuidadores sobre oimpacto em suas pessoas e em suas famílias,da convivência com idosos em processo de de-mência. Em seu estudo, Caldas chama atençãopara o processo de sofrimento dos cuidadoresque, “com toda a dificuldade e mesmo semapoio, conseguem cuidar, fazendo adaptaçõesque geram grandes custos materiais e compro-metem sua saúde física e mental” (Caldas,2002:70). Suas falas evidenciam uma urgente eprofunda necessidade de suporte material, ins-titucional e comunitário.

No que concerne à especificidade de gêne-ro, estudos demonstram que, no interior da ca-sa, as mulheres, proporcionalmente, são maisabusadas que os homens; e ao contrário, narua, eles são as vítimas preferenciais. De am-bos os sexos, os idosos mais vulneráveis são osdependentes física ou mentalmente, sobretu-do quando apresentam déficits cognitivos, al-

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terações no sono, incontinência, dificuldadesde locomoção, necessitando assim, de cuida-dos intensivos em suas atividades da vida diá-ria. E concomitantemente, as conseqüênciasdos maus-tratos provocam neles experiênciasde depressão, desesperança, alienação, desor-dem pós-traumática, sentimentos de culpa enegação das ocorrências e situações de maus-tratos (Wolf, 1995).

Conclusões

Pode-se observar uma convergência entre ascausas externas específicas de mortalidadede idosos, entre os motivos de internação pormaus-tratos e as expressões de violência, mui-to mais amplas, difusas, naturalizadas e repro-duzidas na cotidianeidade das relações sociaisno interior das famílias, nas instituições e emdiferentes contextos sociais. Mortes no trânsito(primeira causa específica de morte) e quedas(primeira causa específica de internação) re-sultam, na maioria das vezes, de negligências,omissões e maus-tratos. É importante ressaltar,também, a universalidade do problema e suadimensão histórica, presente nas sociedadescomplexas e contemporâneas e nas comunida-des primitivas, como se evidenciou neste texto.

Em qualquer política de prevenção e aten-ção à violência contra os idosos, atualmente,precisa-se considerar as diferentes formas deconfiguração do problema. Devem ser objetode atenção: políticas públicas que redefinam,de forma positiva, o lugar do idoso na socieda-de e privilegiem o cuidado, a proteção e suasubjetividade, tanto em suas famílias como nasinstituições, tanto nos espaços públicos comonos âmbitos privados. Por exemplo, a travessiamais segura das ruas, a conservação das vias, areeducação de motoristas de coletivos para ga-rantirem a segurança na subida e no interiordos veículos, maior tempo de sinalização paraa travessia podem colaborar para a prevençãode acidentes nesta faixa etária. Do mesmo mo-do, cuidados básicos de segurança, principal-mente nas moradias, apoio nos banheiros, ta-petes antiderrapantes e melhor iluminação,entre outros, poderiam evitar a ocorrência dequedas fatais. Embora as campanhas publici-tárias tenham efeito duvidoso quando feitasisoladamente, é importante usar esse instru-mento ou outras formas criativas de comuni-cação para sensibilizar a sociedade quanto aoenvelhecimento da população e ao cuidadosque a maior idade demanda.

No caso dos serviços de saúde, é preciso queos profissionais, tanto os dedicados à atenção

primária como os do setor de emergência sepreparem cada vez melhor para a leitura daviolência nos sinais deixados pelas lesões e trau-mas que chegam aos serviços ou levam a óbi-tos. Em vários estudos, demonstra-se o poucoenvolvimento das equipes para ir além dos pro-blemas físicos, mesmo quando em seu diag-nóstico fica evidente a existência de violênciascomo causa básica das ocorrências. A lógicaque define seu não-envolvimento costuma sera consideração do problema dos maus tratos,como sendo do âmbito privado, portanto, forada competência da medicina. O texto de Hirsch& Loewy (2001), escrito especialmente para mé-dicos, alerta-os para a necessidade de melho-rarem seu diagnóstico em casos de maus-tra-tos e ensinando-lhes a reconhecerem algunssinais. Os autores afirmam que é preciso pres-tar atenção à aparência desse cliente; ao fatode que procure seguidamente seus cuidadospara o mesmo diagnóstico; a suas repetidas au-sências às consultas agendadas; aos sinais físi-cos suspeitos; e às explicações improváveis defamiliares para determinadas lesões e traumas.E concluem instruindo os médicos para, no ca-so de observarem a ocorrência de abusos ounegligências, providenciarem um monitora-mento mais cuidadoso que inclua visitas domi-ciliares periódicas, e se for o caso, que denun-ciem, às autoridades competentes, a existênciados maus-tratos, para que se tomem providên-cias relativas a proteção dos idosos e à penali-zação dos abusadores.

Em todas as formas de aumentar o respeitoà população mais velha, todas as políticas pú-blicas voltadas para sua proteção, cuidado equalidade de vida precisa-se considerar a par-ticipação dos idosos, grupo social que despon-ta como ator fundamental na trama das orga-nizações sociais do século XXI. Ricos ou pobres,ativos ou com algum tipo de dependência, mui-tos sustentam famílias, dirigem instituições emovimentam um grande mercado de serviçosque vão do turismo, lazer, estética, cosmética,produtos e assistência médica e social.

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Recebido em 29 de abril de 2002Versão final reapresentada em 31 de julho de 2002Aprovado em 29 de agosto de 2002