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ÍNDICE
Página
Introdução 3
A génese do pensamento de Paulo Freire educador 6
Por uma escola democrática 12
Comunicação educativa em Paulo Freire 15
Reflexões finais de Cartas a Cristina 20
Conclusão 23
Bibliografia consultada/referenciada 26
2Cartas a Cristina, Paulo Freire.
INTRODUÇÃO
3Cartas a Cristina, Paulo Freire.
“Gostaria [disse Cristina a Paulo, um dia] que você fosse me escrevendo cartas
falando algo de sua vida mesma, de sua infância; aos poucos fosse dizendo das idas e
vindas em que você foi se tornando o Educador que está sendo. “ (1994:9)
Cartas a Cristina, texto de Paulo Freire, escrito a pedido de sua sobrinha
Cristina, tinha ele 72 anos, tinha como objectivo saber dos caminhos percorridos e das
influências sentidas que permitiram chegar não só ao grande educador que era, mas
também à pessoa que estava sendo.
Esta obra está organizada em duas partes ou dois momentos, contendo a
primeira treze cartas e a segunda, cinco cartas, respectivamente. As primeiras centram-
se essencialmente na descrição do menino, do jovem e homem que Paulo Freire foi, a
maneira como pensava, como submeteu a sua prática a uma reflexão teórica, como
tentou desvanecer a distância entre o que dizia e o que pensava. Descreveu momentos
de alegria, de sofrimento e de experiências pessoais que moldaram o ser humano que
foi.
Num segundo momento, são apresentadas algumas reflexões, nomeadamente
sobre a relação estreitamente vincada entre democracia e educação, autoridade e
liberdade, sempre direccionadas para uma prática educativa que se quer libertadora e
não oprimida.
Tece ainda algumas considerações sobre a questão da discriminação, o problema
da orientação de dissertações de mestrado ou de teses de doutoramento, apontando
claramente qual o papel de seus intervenientes: o orientador e o orientando, bem como
se debruça sobre a discussão relativa aos processos de dominação e de libertação,
recusando a índole mecanicista que muitos teimam em conferir-lhes, não esquecendo, já
na derradeira carta, a referência a alguns temas que marcam, na opinião do autor, o final
do século XX, como sejam as relações Norte-Sul (países ricos vs países do terceiro
mundo ou em desenvolvimento), a questão da fome e da violência, o ressurgir da
ameaça nazi-fascista ou ainda a questão do papel da subjectividade na história, isto é, a
acção do homem enquanto ser pensante, capaz de transformar o mundo.
Cartas a Cristina constitui-se, desde logo, como um texto que relata memórias e
reflexões. É um lembrar de idas e vindas, de experiências e momentos marcantes, em
criança e jovem adolescente, nomeadamente no seio familiar, com particular destaque
para a relação privilegiada que este tinha com o pai.
Aparece ainda o Paulo educador, nos meandros das vicissitudes de sua vida e,
sobretudo, no papel de observador curioso, atento e crítico da realidade que o rodeia,
4Cartas a Cristina, Paulo Freire.
despertando nele um poderoso espírito humanista, insatisfeito e interventivo, espírito
esse que o levará a criticar acerbamente qualquer dogmatismo político, reaccionarismo
autoritário e mecanicismos, marcando todo o seu percurso político-pedagógico e social,
bem patente nesta ” obra resumo” das principais linhas de pensamento e pensadores que
lhe traçaram o percurso invulgar que todos conhecemos, muito para além das fronteiras
e da realidade do seus país, o Brasil.
Contudo e no que ao desfiar de memórias diz respeito, podemos dizer que não se
trata de um lembrar ensimesmado, tal como ele diz: “ quando hoje, tomando distância
de momentos por mim vividos ontem, os rememoro, devo ser, tanto quanto possível, em
descrevendo a trama, fiel ao que ocorreu, mas, de outro lado, fiel ao momento em que
reconheço e descrevo, o momento antes vivido. Os “olhos” com que “revejo”, já não
são os “olhos” com que “vi”. ” (1994:17).
A reflexão e a memória aparecem como momentos privilegiados para “rever
criticamente” o já vivido, contribuindo para a melhoria constante do ser em movimento
e em permanente (re)construção, aquele que está sendo e que não é estático ou
definitivo, aquele que, enquanto ser humano, tem vocação para o ser mais.
5Cartas a Cristina, Paulo Freire.
A GÉNESE DO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE EDUCADOR
6Cartas a Cristina, Paulo Freire.
Segundo Adriano S. Nogueira, amigo de Paulo freire que prefaciou a obra: “
Paulo “chegou” à Educação pelo vigor coerente de uma convicção: o Ser Humano extrai
de si e de suas interacções uma sobre-humanidade (a que ele denomina de vocação de
ser mais). E educar (exducere) é extrair ou, usando termos “freireanos”, é partejar. O
Ser Humano parteja sua sobre-humanidade educando-se para ela.” (1994:13) Por outras
palavras, e no entender de Paulo Freire, o ser humano encerra em si incompletude e
inconclusão; pois, por um lado, este precisa dos outros para sobreviver, construir-se e
ser, isto é, sobrevivo e reconheço-me porque existe outro diferente de mim. Por outro
lado, e enquanto ser submetido à evolução, este não é um ser estático, definitivo,
concluído ou impermeável a tudo e todos, é antes um ser em perpétua transformação:
não se é, está-se sendo. Tendo consciência dessas limitações, através do despertar da
consciência de si mesmo e do mundo que o rodeia, o ser humano procura superar-se, de
modo a deixar de somente “ser” para “ser mais”, com vista à sua conclusão e
completude.
Logo, a chave de qualquer conhecimento encontra-se na experiência pessoal e na
capacidade de aprender a partir das vivências e das impressões retiradas da vida
quotidiana. Paulo Freire foi conhecendo o mundo à medida que crescia e o observava
atenta e criticamente, com curiosidade. Pretendia fazer uma leitura da realidade onde
podia articular “objectividade/subjectividade, corporalidade/abstracção, poesia/ciência.”
(1994:14) Ou seja, aprendemos com a “leitura” que fazemos do mundo que nos rodeia.
A “leitura” ou “interpretação” deste são os veículos para todas as nossas aprendizagens.
É na vocação ontológica do ser humano que reside a vocação, o talento de ser
mais. Toda a prática educativa progressista deve estimular democraticamente o gosto
pela liberdade para que o Homem se humanize, quer dizer, seja mais, tal como ele
próprio afirma: “tendo-se tornado historicamente o ser mais a vocação ontológica de
mulheres e homens, será a democrática a forma de luta ou de busca mais adequada à
realização da vocação humana do ser mais.” (1994:184)
Para se perceber a sua inclinação progressista e todos os ideais por ele
defendidos, no que concerne à sua perspectiva educacional, torna-se imprescindível
levar a cabo uma retrospectiva vivencial.
A sua infância e adolescência foram etapas altamente decisivas, um autêntico
formigueiro de sensações, lembranças e reflexões que, a pouco e pouco, foram
construindo o ser humano e, mais tarde, o educador que foi.
7Cartas a Cristina, Paulo Freire.
A figura paterna foi muito marcante na sua vida. Seu pai ensinava-lhe o que era
a democracia através das suas vivências e das suas atitudes. Era um homem que
respeitava os outros, defendia os fracos “contra a arrogância e prepotência dos
poderosos”, recusando qualquer tipo de opressão ou autoritarismo, ameaças da
verdadeira democracia.
Durante a sua infância presenciou uma época de autoritarismo, em que as classes
populares eram oprimidas, os fracos eram os mais prejudicados injustamente. Aprendeu
com seu pai e tio a defender os fracos e a combater a opressão das classes populares.
Considerava que recordar a infância era “um acto de curiosidade necessário” ,
permitindo-lhe correlacionar a experiência amargurada de menino que foi, com a prática
educativo-política do homem no qual se tornou.
As circunstâncias de vida na sua infância marcaram-no imenso. Viveu, ou
melhor, sentiu a fome, viu a miséria, tendo-lhe valido a gravata de seu pai e o piano da
tia Lourdes, símbolos “de fachada” que permitiam a solidariedade e o reconhecimento
entre classes sociais diferentes.
A mudança de cidade quando ainda era um menino permitiu uma mudança de
psicologia: novos modos de ser, uma nova forma de ler a realidade. A propósito de
Jabotão, o autor relembra que foi um dos locais que mais o marcou, sobretudo pela
miséria que presenciou e que contribui grandemente para definir o seu percurso e a sua
vontade, cada vez mais crescente, de mudar o mundo: “Mas num mundo também em
que a exploração e a miséria dos camponeses iam se revelando a nós em seu dramático
realismo. É aí que se encontram as mais remotas razões da minha radicalidade”.
(1994:92)
A curiosidade, própria da infância, foi bem orientada pelos diálogos que
mantinha com seus pais e com a professora. Com os pais, que sempre o ensinaram a
viver de acordo com os valores da compreensão e da tolerância, apostando no diálogo
aberto. Com a professora, pois ele, aluno, não era reduzido a um depósito vazio pronto a
encher, era antes convidado a indagar para conhecer; a sua curiosidade era devidamente
aguçada e incentivada em detrimento da memorização sem sentido e mecânica de
conteúdos que castravam, à partida, qualquer desenvolvimento da expressividade escrita
e oral do aluno. Aprende, assim, quer com os pais ou com a professora, a reconhecer
não só a importância e o valor do diálogo, palavra tão cara à prática educativa e arma de
grande peso contra os opressores e violências diversas, bem como reconhece e
8Cartas a Cristina, Paulo Freire.
desenvolve a necessidade intrínseca de perguntar, de desafiar, em suma, de ser curioso e
inconformado.
De alguns professores tem boas e inesquecíveis recordações, aprendeu a amar a
linguagem, a sua beleza e estética, descobrindo mais tarde o seu poder valioso,
referindo-se a Maria de Albuquerque como a figura que “aguçou em mim o quão
gostoso e fundamental era perseguir o momento estético, a boniteza da linguagem.”
(1994:73) Aprendeu muito nas relações que mantinha com professores, colegas e até
mesmo com os próprios alunos.
A morte de seu pai foi portadora de dor e vazio, mas também de esperança, de
reinvenção e de luta por um mundo melhor porque, diz-nos “a experiência do luto, que
resulta da morte, só é válida quando se expressa através da luta pela vida. Viver o luto
com maturidade é assumir a tensão entre a desesperação provocada pela perda e a
esperança na reinvenção de nós mesmos. Ninguém que sofre perda substantiva continua
a ser o mesmo. A reinvenção é um a exigência da vida.” (1994:101)
Significa que esses momentos de sofrimento e de perda trouxeram igualmente
momentos de aprendizagem, como refere: “na sucessão de aprendizagens de que
participamos, vai sendo enfatizado em nós o amor à vida ou o amor à morte. (…) Assim
ensinamos e aprendemos a amar a vida ou a negá-la.” (1994:101)
Já adulto e casado, no Recife, dedicava-se essencialmente a “leituras críticas de
gramáticos brasileiros e portugueses”, à filosofia da linguagem e à linguística,
permitindo-lhe o aproximar da educação. (1994:106) O seu estudo da linguagem
também lhe desvendou a beleza e a estética da mesma. Segundo ele, “Escrever bonito é
dever de quem escreve, não importa o quê e sobre o quê”. (1994:106)
A sua passagem pelo SESI (Serviço Social da Indústria – 1947/1957) foi crucial
para a sua formação política e pedagógica, foi “um tempo fundante”, na medida em que
lhe permitiu contactar directamente com populares (operários), professores e alunos,
contribuindo todos eles para delinear o seu pensamento político-pedagógico, com
implicações de ordem variada (éticas, ideológicas, históricas, etc.).
O SESI, enquanto instituição patronal de índole assistencial criada pela classe
dominante, pretendia ser o garante da ideologia dominante ao manter as classes
populares sob seu jugo, no entanto, Freire era veementemente contra o facto de este
organismo se tornar “assistencialista”, isto é, era da opinião que o mesmo deveria
assentar a sua prática numa lógica “problematizante”, promovendo junto dos “assistidos
9Cartas a Cristina, Paulo Freire.
discussões capazes de desocultar verdades, de desvelar realidades, com o que poderiam
os assistidos ir tornando-se mais críticos na sua compreensão dos fatos”. (1994:110)
Paulo Freire, sendo ele um educador progressista, jamais poderia compactuar
com tal situação, “não podia, em nome do dever de evitar maiores sofrimentos às
classes populares, limitar o universo de sua curiosidade epistemológica a conhecimentos
de objectos devidamente despolitizados.” (1994:113) Não podia contribuir para manter
as classes populares no obscurantismo, negando-lhes a sua cidadania, a sua
oportunidade de ser para, mais tarde e após a sua conscientização, estar sendo.
A posição progressista adoptada por Freire, por influência cristã, opunha-se à
injustiça, à discriminação, ao saber puramente livresco. Não conseguia compreender a
conciliação feita entre “o discurso de esquerda e a prática discriminatória, de sexo, de
raça, de classe.” (1994:115) Ou seja, não entendia a discrepância abismal entre a teoria
e a prática, pelo que, no seu entender, era preciso compatibilizar a teoria com a prática.
Paulo Freire critica ainda a pedagogia autoritária que se presenciava quando
frequentava a escola. Recordava-se de ver as palmatórias, símbolo de castigo, onde
estava escrito “acalma coração”, como se o castigo fosse o meio eficaz para uma boa
prática pedagógica.
Opõe-se à pedagogia tradicional, por ele chamada de “pedagogia do tapa” e da
licenciosidade em que às crianças era dada total liberdade. Quer uma, quer outra
limitavam a liberdade, sem contribuir para qualquer aprendizagem profícua. O autor
pretendia uma prática baseada na democracia onde a liberdade e a autoridade
caminhassem de mãos dadas.
Em seu entender, o educador dever encarar-se como “sujeito que pensa a prática
educativa” (1994:107) e que tem consciência de que todas as suas vivências, sejam elas
pessoais ou profissionais, influenciam grandemente o seu percurso e mundividência.
Todas elas devem propiciar a possibilidade de reflectir mais criticamente sobre a sua
prática.
Mais, o educador deve pensar e repensar a sua prática diariamente, ser
respeitador e humilde, no sentido de ter a consciência de que não é detentor de todo o
saber, devendo também ouvir, valorizar e usar como ponto de partida os conhecimentos
do educando.
Deve ainda encarar-se como um ser finito mas não acabado, procurando sempre
aperfeiçoar-se, desenvolver e apurar o seu sentido crítico e de questionamento, bem
como a sua curiosidade epistemológica e sentido de coerência. De certo modo, podemos
10Cartas a Cristina, Paulo Freire.
dizer que a prática freiriana aponta para a metodologia da investigação-acção e do
profissional enquanto ser reflexivo e autónomo, na busca incessante da melhoria,
recorrendo também à teoria e apostando na sua capacidade de transformação, superação
e criação.
Por outras palavras, trata-se de “pensar teoricamente a prática, para praticar
melhor”. (1994:126) Assim sendo, a teoria e a prática apresentam uma relação dialéctica
e indicotomizável. Uma não existe sem a outra e vice-versa. Ou seja, “a prática sozinha,
que não se entrega à reflexão crítica, iluminadora, capaz de revelar, embutida nela, sua
teoria, indiscutivelmente ajuda o seu sujeito a, reflectindo sobre ela, melhorá-la. Mesmo
sem se submeter à análise crítica e rigorosa, que permitiria a seu sujeito ir mais além do
“senso comum”, a prática lhe oferece, não obstante, um certo saber operativo. Não lhe
dá, contudo, a razão de ser mais profunda do próprio saber”. (1994:140)
O autor finaliza a décima primeira carta referindo o quão importante foi a sua
passagem pelo SESI, não só enquanto educador, como também pelo facto de ter lidado
directamente com a “tensa relação entre prática e teoria”. (1994:140)
11Cartas a Cristina, Paulo Freire.
POR UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA
12Cartas a Cristina, Paulo Freire.
Paulo Freire sempre se bateu por uma escola democrática, escola essa que
envolvesse valores e ideias tão importantes quanto a participação (de todos os
intervenientes no processo educativo), a liberdade, a autonomia, a valorização das
experiências dos alunos, enquanto sujeitos activos e construtores de conhecimento, em
contraponto da pedagogia tradicional que os considerava tábuas rasas, a igualdade e o
respeito, o diálogo problematizador, desafiador e desocultador de verdades, a partilha
de saberes entre educadores e educandos, o incentivo da curiosidade e desenvolvimento
do espírito crítico, do saber pensar, de um “pensar certo”, a conscientização de si
próprio, dos outros e do mundo, ou ainda e não menos importante, o desenvolvimento
da cidadania, decorrente de todos os outros valores despertados.
Um dos seus maiores desafios e batalhas era o seu empenho em “fazer uma
escola democrática, estimulando a curiosidade crítica dos educandos, uma escola que,
sendo superada, fosse substituída por outra em que já não se apelasse para a
memorização mecânica dos conteúdos transferidos, mas em que ensinar e aprender
fossem partes inseparáveis de um mesmo processo, o de conhecer. Desta forma, ao
ensinar, a educadora reconhece o já sabido, enquanto o educando começa a conhecer o
ainda não sabido. O educando aprende na medida em que apreende o objecto que a
educadora lhe está ensinando.” (1994:117)
A educação poderia, segundo Freire, contribuir para o processo de mudança há
muito desejado. A educação é a prática da liberdade e, nesse sentido, pode ajudar à
libertação das classes oprimidas, nomeadamente através da alfabetização de adultos,
campo no qual o autor também teve um papel fulcral. Este, enquanto conceito-chave da
pedagogia freiriana, é visto como um processo de mediação, cujo objectivo é capacitar o
adulto para que este incorpore, entenda o que lê no contexto em que o discurso se
inscreve, ou seja, é fundamental que o educador conheça e entenda o processo de
produção cultural das classes populares, ou dos oprimidos melhor dizendo.
Em último recurso, a alfabetização tem por fulcro habilitar os adultos para a
produção de conhecimentos e para o entendimento do mundo que os rodeia, em todas as
suas vertentes (históricas, sociais, económicas, políticas, etc.), o que levará os mesmos a
participarem mais activamente no mundo, transformando-o, pois só podemos mudar
aquilo que conhecemos e entendemos.
Deste modo, o autor tinha como objectivo principal fundar uma escola
democrática onde os operários e as famílias pudessem aprender democracia, criticando,
13Cartas a Cristina, Paulo Freire.
denunciando partindo das suas vivências, da sua prática. Pretendia inverter o rumo
autoritário que a escola tradicional tinha trilhado. Esta providenciava o “ensino
bancário”, ensino esse que assentava na mera transferência mecânica e acumulação de
conteúdos, sendo que deveria ser substituída por uma forma crítica de ensinar e pensar,
uma forma própria de produzir pensamentos e ideias.
A escola democrática apresentava como pressupostos basilares o respeito por
todos os agentes educativos (pais, alunos, famílias, professores, etc.) e a sua
envolvência/participação activa na educação, na formulação do currículo e “nos
destinos da escola”, tendo em consideração e respeitando a sua própria identidade
cultural, necessidades e mundividência.
Para Paulo Freire era importante partir da premissa de que a formação devia
abranger não apenas os docentes mas também os pais dos educandos, pois a
aprendizagem está envolta de obstáculos e facilidades inerentes à experiência
intelectual. É de salientar que o fracasso escolar não pode ficar apenas do lado dos
educandos, como defendia a pedagogia tradicional, a responsabilidade é de todos os
agentes educativos.
14Cartas a Cristina, Paulo Freire.
COMUNICAÇÃO EDUCATIVA
15Cartas a Cristina, Paulo Freire.
Para prosseguir com o sonho até à sua efectiva realização, o educador teria de
evitar a dicotomia existente entre a teoria e a prática, entre informação e formação tal
como ele diz: “era preciso, contudo, estarmos de olhos abertos para evitar,
rigorosamente, qualquer dicotomia entre fazer e pensar, entre prática e teoria, entre
saber ou aprender técnicas e conhecer a razão de ser da própria técnica entre educação e
política, entre informação e formação.” (1994:130)
O autor chama a atenção para a distância e o discernimento que um educador
deve ter para com a informação e a formação. A primeira deve evoluir para a segunda,
caso contrário não se dá o conhecimento, não se estabelece a comunicação educativa.
“ Na verdade toda a informação traz em si a possibilidade de seu alongamento
em formação, desde que os conteúdos constituintes da informação sejam assenhoriados
pelo informado e não por ele engolidos ou a ele simplesmente justapostos. Neste caso, a
informação não comunica, veicula comunicados, palavras de ordem.” (1994:130)
Efectivamente, só existe comunicação quando a informação que é veiculada se
transforma em formação, quando a informação ultrapassa o acto de receber. A formação
implica crítica do já informado, excede o mero saber utilitário.
É nessa óptica que Paulo Freire se dedicou à tentativa de transformação da
sociedade brasileira, que descurava a voz das classes populares e na qual vigorava o
autoritarismo. O seu sonho tornar-se-ia mais realizável a partir do momento em que se
associou ao Movimento de Cultura Popular (MCP), que tinha como objectivo trabalhar
com as classes populares “e não sobre elas, de trabalhar com elas e para elas.”
(1994:142)
Criticava, imbuído nessa luta, a sociedade autoritária, injusta e perversa,
aspirando a transformá-la numa sociedade democrática que defendia a justiça e a
lealdade. Inspirado por ideais democráticos, o “ MCP se inscrevia entre quem pensava a
prática educativo-política e a acção político-educativa como práticas desocultadoras,
desalienadoras, que buscavam um máximo de consciência crítica com que as classes
populares se entregassem ao esforço de transformação da sociedade brasileira.”
(1994:166)
O seu ideal de educação passava por uma experiência de esperança, de fazer jus
à vocação ontológica do ser humano de ser mais. Desse modo, deve apostar-se numa
educação enquanto “experiência de decisão, de ruptura, de pensar certo, de
conhecimento crítico. Uma experiência esperançosa, e não de desesperançada, já que o
futuro não é um dado dado, uma sina, um fado. “ (1994:145)
16Cartas a Cristina, Paulo Freire.
A sua passagem pelo SESI permitiu-lhe trazer grandes contributos para o MCP,
a sua atitude democrática vem evidenciar a importância do diálogo para o acto do
conhecimento. O sujeito cognoscente era afectado pelo objecto cognoscível, numa
relação dialógica “desde a própria escolha dos objectos cognoscíveis e em que por isso
mesmo, conhecer não era receber conhecimento mas produzi-lo.” (1994:155)
Preocupado com a prática educativa vigente - da escola tradicional, do
autoritarismo, mecanicista – projectou uma instituição onde educadores e educandos se
unem no acto de conhecer, não anulando a oposição entre ambos. Tratava-se do projecto
de Educação de Adultos. Deste nasceram dois centros, o Centro de Cultura e o Círculo
de Cultura. A formação era permanente, tratava-se de um espaço onde dialogicamente
se aprendia e ensinava, não se fazia transferência de conhecimentos, mas a sua
produção. Constroem-se, desse modo, novas formas de ler a realidade, o mundo.
Para a realização do projecto partiu de pressupostos inerentes à prática
educativa: o espaço onde se realiza, os agentes envolvidos, o objecto de conhecimento,
o objectivo a atingir, a dimensão ética que a envolve e o processo em si. Considera,
assim, o autor que “o espaço em que se vive a situação educativa é tão importante para
educadores e educandos quanto me é importante o em que trabalho em minha casa, o
em que escrevo e leio.” (1994:157) e que “ a existência, na prática educativa, de
sujeitos, educadores e educandos (…) são todos sujeitos do processo de conhecer, que
envolve ensinar e aprender.” (1994:162).
Nesta orientação e consecução do projecto não poderia faltar a sua vertente ética,
pois “a prática educativa neutra não pode levar educadora ou educador a pretender ou a
tentar, por caminho sub-reptícios ou não, impor aos educandos os seus gostos, não
importa quais sejam. “ (1994:163)
Segundo Paulo Freire, a alfabetização de adultos impunha princípios que teriam
de ser respeitados. Era importante demonstrar que o conhecimento teria de ser
produzido pelo educando, assumindo um papel activo e não passivo como acontecia na
pedagogia tradicional. A relação entre os agentes no processo educativo tinha como
alicerce o diálogo. Aspirava, assim, diminuir a distância entre as universidades e as
classes populares, não descurando o rigor e a seriedade próprias da docência em tais
instituições. Só assim poderá haver uma aproximação entre ambas. Pois “em nome da
democratização da universidade, não podemos fazê-la pouco séria com relação a
qualquer dos momentos do ciclo gnosiológico. “ (1994:169) O ciclo do conhecimento
implica e exige que ensinar é formar, é pesquisar.
17Cartas a Cristina, Paulo Freire.
Assim sendo, é inegável o contributo de Freire para a compreensão dos
processos de comunicação e cognição e para a inter-relação entre educação e
comunicação, uma vez que reflectiu sobre a problemática da comunicação humana,
nomeadamente a comunicação popular (classes oprimidas) e a sua proposta dialógica: a
interacção entre emissor e receptor e a vertente problematizadora, sendo estes os
alicerces do seu método pedagógico.
Por outras palavras, a comunicação é um elemento-chave para transformar as
pessoas em sujeitos. A educação é entendida como um processo da comunicação, uma
vez que se trata de uma construção partilhada do conhecimento, através do contacto
entre o homem e o mundo.
Ora etimologicamente a palavra “comunicação” vem do latim communis, que
significa “tornar comum”. Nessa perspectiva, Paulo Freire entende o verbo “comunicar”
como “tornar comum, partilhar, dialogar”. A comunicação não é um produto mas sim
um processo de interacção, que tem por base a linguagem verbal, gestos,
comportamentos ou ainda símbolos culturais. (RODRIGUES, 1999)
Não se trata, desde logo, de comunicação passiva ou acrítica, à semelhança do
que acontece na pedagogia tradicional, pelo que não se pode transferir conhecimentos
como se os educandos fossem máquinas ou tábuas rasas, estes são ser pensantes e
comunicantes com uma dimensão individual. “A relação de conhecimento não termina
no objeto, ou seja, a relação não é a do sujeito cognoscente com o objeto cognoscível.
Esta relação se prolonga a outro sujeito, sendo, no fundo, uma relação sujeito-objeto-
sujeito, e não sujeito-objeto. (…) Eu me proponho diante do diálogo como quem,
pensando em torno de pensar, percebe que o pensar não se dá na solidão do sujeito
pensante, porque, inclusive, o pensar se faz na medida em que ele se faz comunicante.
Por isso mesmo é que, então, o pensar não acaba no pensamento, mas se dá em torno de
um objeto que mediatiza a extensão de um primeiro pensante a um segundo pensante.”
(FREIRE & GUIMARÃES, 1984: 102 e 131-2)
A relação dialéctica entre subjectividade e objectividade é crucial no
pensamento de Freire; a aprendizagem permite a acção sobre o mundo, mundo esse que
está sendo e acontecendo, ou seja, a aprendizagem leva à acção e à transformação da
realidade, por parte do sujeito, assumindo este último um papel interventivo decisivo
para se libertar de estruturas altamente opressoras.
A educação aparece como um momento privilegiado de discussão, de
comunicação e de prática da cidadania, pois permite partejar, trocar ideias e levar ao
18Cartas a Cristina, Paulo Freire.
entendimento entre pessoas. A comunicação aparece no centro do pensar e da prática
pedagógica de Freire, sendo para este um eixo fundamental das relações humanas, não
esquecendo a inter-relação dos seus elementos básicos no âmbito do processo educativo.
Para chegar ao entendimento, é imprescindível existir uma relação social igualitária e
baseada no diálogo entre as pessoas, só assim resultará numa prática social
transformadora.
De referir novamente que esta relação dialógica e de igualdade e respeito não
implica apenas os educandos, mas todos os intervenientes no processo educativo, tal
como Freire vivenciou quando estava no SESI.
Podemos então dizer que o modelo pedagógico de Freire assenta essencialmente
numa perspectiva horizontal (interacção e intercâmbio), democrática, dialógica e
libertadora dos oprimidos.
A comunicação é o veículo que permite a transformação das pessoas em sujeitos
activos e intervenientes na sua própria história. Numa relação dialéctica, em permanente
diálogo, são levados a uma consciência crítica e à transformação tão desejada por
Freire. Transformação essa que vai muito para além da esfera individual, pois para este,
a transformação não é possível se não levar à mudança das estruturas sociais, ou seja, à
uma mudança colectiva. Portanto, a esfera individual só ganha força e faz sentido
quando inserida no todo.
19Cartas a Cristina, Paulo Freire.
REFLEXÕES FINAIS DE CARTAS A CRISTINA
20Cartas a Cristina, Paulo Freire.
No final de Cartas a Cristina, Freire aproveita as últimas cartas para tecer
algumas considerações sobre várias temáticas, nomeadamente a questão da educação e
da democracia, que subentendem o binómio liberdade/autoridade, ou ainda a natureza
ética deste.
Acredita que a humanização das pessoas e a transformação ou “reinvenção do
mundo” tem por base o respeito, a igualdade, a participação activa, a não discriminação,
a tolerância e a liberdade. Liberdade essa que não é sinónima de licenciosidade nem tão
pouco de autoritarismo. Enfatiza ainda, como aconteceu ao longo do seu relato, a
importância de as acções serem o reflexo fiel do discurso e vice-versa.
Segundo este, “o futuro não é um dado dado, mas um dado dando-se. O futuro é
problemático e não inexorável”. (1994:192) Logo, quer o presente ou o futuro são
“tempos em construção”, dependem da acção directa dos sujeitos, sujeitos esses que se
devem responsabilizar pelos seus actos, pois não são seres determinados.
Na verdade, “responsável em face da possibilidade de ser e do risco de não ser,
minha luta ganha sentido. Na medida em que o futuro é problemático, e não inexorável,
a práxis humana – acção e reflexão – implica decisão, ruptura, escolha. Implica ética”.
(1994:205) Estão aqui bem patentes laivos da corrente existencialista ao afirmar que o
homem tem livre arbítrio e é responsável pelas suas escolhas. Nada está pré-
determinado, não há nenhum destino inexorável que leve as classes oprimidas a serem
oprimidas para sempre.
Na décima sexta carta, Freire reflecte sobre o problema da orientação de
dissertações de mestrado ou de teses de doutoramento, apontando claramente qual o
papel de seus intervenientes: o orientador e o orientando. O primeiro acompanha o
segundo, de forma aberta e amiga, com respeito e humildade, estimulando a discussão e
o indagar, sempre de forma coerente, rigorosa e séria. O orientando, por sua vez, deve
pautar-se pelo esforço, dedicação e sentido de responsabilidade. Em suma, “o
orientando é tão gente quanto o orientador, gente que sente, que sofre, que sonha, que
sabe e pode saber mais, que ignora, que precisa de estímulo. Gente, não coisa!”
(1994:214) Ou seja, a relação peculiar entre educador (orientador) e educando
21Cartas a Cristina, Paulo Freire.
(orientando), tão cara a Freire, é transversal, independentemente do nível de ensino em
causa.
É na décima sétima carta que o autor se debruça, mais pormenorizadamente,
sobre a discussão relativa aos processos de dominação e de libertação, recusando a
índole mecanicista que muitos teimam em conferir-lhes, como se não houvesse outras
alternativas, os dominados estariam “condenados” a ser oprimidos para todo o sempre.
Na sua opinião, “O novo homem e a nova mulher jamais serão o resultado de
uma ação mecânica, mas de um processo histórico e social profundo e complexo. O
novo homem nasce aos poucos, vem tornando-se, não nasce feito”. (1994:216). É nesse
sentido que a educação tem um papel preponderante no processo de libertação, claro
está a educação crítica e desocultadora, nunca a “bancária”.
Por fim e no que à décima oitava carta diz respeito, Freire faz referência a alguns
temas que, no seu entender, marcam o final do século XX, como sejam as relações
Norte-Sul (países ricos vs países do terceiro mundo ou em desenvolvimento), a questão
da fome e da violência, o ressurgir da ameaça nazi-fascista ou ainda a questão do papel
da subjectividade na história, isto é, a acção do homem enquanto ser pensante, capaz de
transformar o mundo.
Sucintamente, destacamos um ponto de particular interesse e que, de certa
forma, abarca as outras temáticas abordadas, nomeadamente o facto de o autor esperar
que o sul deixe de ser “norteado” e passe a “sulear”; não tem dúvidas de que “o
caminho não seria este mas o da interdependência, em que um não pode ser se o outro
não é. Neste caso, ao “nortear”, o Norte se exporia ao “suleamento” do Sul e vice-
versa”. (1994:222) Esta discrepância Norte/Sul ou relação “senhor/escravo” constitui
um travão ao avanço da democracia global, tal como acontece com a questão da fome e
da violência ou ainda o renascer da ameaça nazi-fascista.
22Cartas a Cristina, Paulo Freire.
CONCLUSÃO
23Cartas a Cristina, Paulo Freire.
Após a leitura atenta de Cartas a Cristina, apraz-nos dizer que a educação, para
Paulo Freire, é entendida como uma prática de liberdade, tendo como um dos seus
objectivos maiores a passagem da tomada de consciência ingénua para a
conscientização, que permite a transformação da sociedade e o desabrochar da
democracia. Democracia essa que, tal como a Educação, exige liberdade, respeito,
humildade, tolerância, diálogo, partilha, compromisso (entre teoria e prática),
responsabilidade, escolha e sentido crítico.
No tocante aos seus, o povo brasileiro, Paulo Freire, enquanto educador
profundamente humanista e militante, vê a educação e a comunicação como veículos de
emancipação das classes oprimidas, nomeadamente através da alfabetização de adultos.
Para tal, os procedimentos privilegiados são o diálogo e a estreita articulação
entre a teoria e a prática, a colaboração/interacção e intercâmbio, a união e a síntese
cultural.
A perspectiva dialógica de Freire pressupõe uma relação horizontal entre as
pessoas, pois a educação é comunicação, é diálogo, uma vez que não é de todo uma
mera transferência de saberes, é antes um encontro entre sujeitos pensantes, ou melhor,
entre dois interlocutores. Para este, o diálogo é inerente à própria natureza humana, é
dialogando que o ser humano se encontra para poder transformar a realidade e
progredir.
“Se, por um lado, a prática educativa não é a chave para as necessárias
transformações de que a sociedade precisa para que aqueles direitos e outros tantos se
encarnem, de outro, sem ela, essas transformações não se dão. (1994:196) Freire não
acreditava que a educação era neutra, antes, era potenciadora de uma reorganização a
nível tanto social quanto político da sociedade brasileira. Daí o recurso à pedagogia do
diálogo, essencialmente democrática, crítica, problematizadora e libertadora, com vista
a acabar com a opressão e as desigualdades sociais.
Todo o seu discurso e percurso relembram grandes filósofos, filósofos esses que
reconheciam potencial criador e transformador da realidade ao homem enquanto sujeito
pensante, activo, crítico e responsável. Entre eles, destacam-se, a título de exemplo,
Sócrates ou ainda Sartre, o primeiro pela sua atitude desafiadora e questionamento
constante, o segundo, pelo facto de recusar determinismos ou fados inexoráveis,
responsabilizando os homens pelos seus actos e admitindo que estes são não só os
mestres das suas vidas, como também sujeitos capazes de transformar o mundo presente
24Cartas a Cristina, Paulo Freire.
e futuro. Na verdade, os homens não são, estão sendo e é essa característica que os leva
a querer ser mais, podendo, desta feita, transformar o mundo.
25Cartas a Cristina, Paulo Freire.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA/REFERENCIADA
26Cartas a Cristina, Paulo Freire.
FREIRE, P. & GUIMARÃES, S (1984) Sobre educação (Diálogos – Volume 2), Rio de
Janeiro, Paz e Terra.
FREIRE, P. (1994) Cartas a Cristina, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
RODRIGUES, A. D. (1999) Comunicação e Cultura. A experiência cultural na era da
informação. Lisboa, Editorial Presença.