01 textos Álvaro sizag

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  • indice global

    Guiao de leitura ................................................................................... 5 Sem paredes, nem portas, nem janelas .............................................. 7 Os 153 Textos de Alvaro Siza ........................................................... 17 indice geral dos Textos .................................................................... 405 indice remissivo dos Textos ............................................................ 409

    RicardoHighlight

  • Ficha tecnica

    Copyright 2009 Civiliza9ao Editora Todos os direitos reservados

    Autor Alvaro Siza Editor de texto Carlos Campos Morais Coordena~ao editorial Rita Vanez Design graflco Susana de Campos Moraes

    Crtlditos Pormenor de manuscrito na contracapa de Alvaro Siza Pagina~Ao Servi9os Tecnicos da Civiliza9ao Editora lmpressao e acabamento CEM, Aries Gnificas, para Civiliza9ao Editora, em Abril de 2009

    CEM, Aries Graficas Parque Industrial ACIB- Apartado 28 4750 Barcelos Tel. 226 050 900 [email protected]

    Civiliza9ao Editora Rua Alberto Aires de Gouveia, 27 4050-023 Porto Tel. 226 050 900 [email protected] www.civilizacao.pt

    ISBN 978-972-26-2923-2 Dep6sito Legal 291007/09

    02 0,6 ,2o()~ /Jfl.f.C

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  • Guiao de leitura

    Os 153 textos que se seguem, escritos por Alvaro Siza, entre 1963 e 2008, apresentam-se organizados do seguinte modo:

    Ordenados do mais antigo para o mais recente, sao consequente-mente numerados, para facil referenciavao e datados.

    Atraves de uma curta transcrivao, procura-se introduzir o leitor no espirito do texto, dando-se antes informayao complementar, quando julgada util.

    Relativamente aos textos que tinham sido ja anteriormente publica-des da-se informavao sobre os locais de publicavao. A pesquisa a esse respeito foi abrangente, mas sem garantia de exaustividade. Alguns dos textos ja anteriormente divulgados foram revistos pelo autor.

    Apresenta-se, ainda na primeira linha, uma identificavao da tema-tica, que consta do indice remissivo final.

    Os textos sem local de publicavao sao (ou supoe-se serem) ineditos. Toda a informavao anteriormente referida aparece em fonte de ta-manho reduzido, acima do inicio de cada texto, ocupando os tres campos que se descreveram.

    Ha cinco publicav5es que, por possuirem urn numero apreciavel de textos a referenciar, se identificam por urn s6 nome. A saber:

    5

  • [UPC] refere-se a Alvaro Siza, Escrits, Carlos Muro, edi9ao bilingue (portu-gues/catalao), Edicions UPC, Universitat Politecnica de Catalunya, 1994.

    [EJecta] refere-se a Alvaro Siza, Obras e Projectos, ed. Electa, 1995. Catalogo editado par Pedro de Llano e Carlos Castanheira da Exposi9ao no Centro Galego de Arte Contemporanea e na Camara Municipal de

    Matosinhos de 6 de Maio a 28 de Julho de 1996.

    [Skyra] refere-se a Alvaro Siza, Scritti di Architettura, ed. Skyra e Gustavo Gilli, 1997.

    [Figueirinhas] refere-se a As Cidades de Alvaro Siza, ed. Carlos Castanheira, Chiara Porcu, Liv. Figueirinhas, Lisboa, Porto, 2001.

    [Saint-Etienne] refere-se a Des mots de rien du tout, Palavras sem im-portancia. Textes reunis et traduits par Dominique Machabert. Bilingue. Publications de L:Universite de Saint-Etienne, 2002.

    A referencia9ao dos textos ja publicados faz-se indicando a pagina, ou pagi-nas em que eles aparecem na publica9ao. Excepto em [Figueirinhas] vista no livro As cidades de Alvaro Siza nao existirem numeros de pagina.

    Os 153 textos aqui apresentados remetem para 21 temas: Apresenta9ao, Arquitectura, Arte, Bibliotecas, Casas, Cidades, Desenho, Design, Discurso, Diversos, Ensino, Exposi96es, Familia, Homenagem, M6veis, Museus, Outros Arquitectos, Pedagogia, Poetica, Reflexao e Viagens.

    6 01 textos par Alvaro Siza

  • Sem parades, nem portas, nem janelas ... Carlos Campos Morais

    A prop6sito da arquitectura dos museus, Alvaro Siza diz que deveria ser idea/mente sem paredes, nem portas, nem janelas1, com a brisa medi-terrfmica entrando suavemente e substituindo-se, na pintura, no ferro, no bronze, na gente, por magia, ao pesadelo opressor e miasmatico da climatizac;ao hightech. As pessoas passam de sa/as a patios, sobem e descem escadas normais. As portas estao escancaradas e os faunas espreitam de cada canto, olham com ironia mais do que piedade. Em Antibes, no Museu Picasso. Como almejaria um musico venerador do silencio: um Musico; ou um poeta adverso a loquacidade: um Poeta; ou um amador de objectos de colecc;ao: um Amador2 .

    Demandas a procura das nascentes do Nilo surgem a cada passo no ideario de Siza, como, num texto a prop6sito de Barragan, quando escreve: Nenhuma inova9ao abandona a antiqufssima razao. Nao ha inovar;ao3 ( .. .) Ha o reencontrar da inoc{mcia, uma conquista do Estado de Gra9a, para que se nao perca a memoria. Ou, quando, evocando um passeio na cidade de Bogota, diz: a Arquitectura desa-parecera quando a humanidade for feliz, parafraseando Vargas Llosa

    1 Texto N 117.

    2 0 objecto perfeito sera urn espelho sem moldura nem lapidado - o fragmento de urn espelho - 0 :--poisado no chao ou encostado a urn muro. Texto N 031, ponto 4. 3 Texto N 050. Hoje, a inovac;:ao, de tao invocada em vao, como o santo nome de deus, corre o risco de se tornar numa palavra vazia. A palavra, sem acto.

    7

  • --

    ao referir-se a Literatura4 . Ou, sabre Manuel Cargaleiro, lhe exalta um gesto de Alegria Originaf5.

    Vozes se tern ouvido mostrando a vontade - necessidade - de ler mais sabre Siza, por Siza6 . Algumas acentuam o valor eo caracter re-t6rico da sua arquitectura, da sua escrita, obras que geram luz, que nos criam luz. Outras mostram a continuidade entre o que traya, o que desenha ... o que escreve, como descreve. Ret6rico7: expositivo, discursive, persuasive, cortezmente predominante e convincente, ex-pondo as suas regras de bern dizer. Mas, obviamente, nao ret6rico: excessive, empolado, gong6rico, vazio.

    Assim a sua escrita, escrita. Uma escrita em que se escreve bern. Para escrever bern e preciso ler bern, em silencio, usar com parcim6-nia a pontuayao, a ironia, usando-as a cada passo. Aprende-se (caso se aprenda) a escrever com esta escrita, e ret6rica8 , no sentido nobre, coexistindo com uma imensa e belissima obra.

    4 Texto N 097. 5 A sabedoria tecnica, a intelig{mcia e experiencia que a obra revel a sao parte de um gesto que continua irreprimivel, um gesto de Alegria Original. Texto N 069. 6 E sobre a arquitectura, em geral: a imagem, na sua redundtincia e carisma, tem substituido a necessidade do discurso (. .. ). Entre o flash das coisas que estao a acontecer, Iemos que comeyar a falar. Jorge Figueira (A Escola do Porto: um mapa crltico. Ediyao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciencias e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2002, p. 137) 7 Curt Meyer-Ciason, citado por Brigitte Fleck, Alvaro Siza, Rel6gio d'Agua Ed., 1999, p. 139, diz que, nos portugueses, a linguagem nao e a da ret6rica, mas e ret6rica. Ao que B. Fleck acrescenta: A arquitectura de Siza e ret6rica. 8 Por exemplo, no Texto N 006, ponto 6: Nao gostaria de executar com as pr6prias maos o que desenho. Nem de desenhar sozinho. Seria: esterilizar. Dois verbos, separados por dois pontos.

    8 01 textos por Alvaro Siza

  • -

    Com ou sem parades, portas, ou janelas, desdobra-se, sob mul-tiplas formas. Uma escrita-escrita, urn desenho-figurativo, urn desenho-esquisso, urn desenho-design, urn desenho-escultura, urn desenho-geometria, tecnico, projecto, urn desenho-volume, casa, monumento, circulayao, passeio, ponte, jazigo ... Uma escrita, urn de-senho, urn objecto, urn fluxo, urn continuum9

    Continuum em que se sucedem questoes centrais, sensibilidades, re-miniscemcias, que habitam Alvaro Siza: angustia da imaginayao, rituais de invocayao10 , soluyoes que descem subitamente sobre o arquitecto - confundido nos seus labirintos - fruto da atenyao dispersa, circun-vagante, em dialogo com a ponta da bic, que desenha, o papel, nao substituivel, da observayao, alimento da intuiyao11 , a pobreza dos .. olhos que nao veem12 , 0 (permanente) respeito pelo sitio13 , desde que -e imaginado (no que foi, no que sera) ate que (enquanto) e trans-formado, a prevalencia da Arte em todo o processo criativo e assim na Arquitectura, a apologia (consequente) da unica especialidade14

    Pontuam o silencio. 9 0 corpo-mao e mente e tudo- niio cabe no corpo de cada urn. E nenhuma parte e aut6noma. Texto N 006, ponto 6. Como refere Jorge Figueira (op.cit., p. 35}: o corpo e niio a maquina o instrumento fundador do Acto Moderno na Escola do Porto. 10 Os antigos invocavam as Musas, o arquitecto (Pessoa), invoca-se a si mesmo. 11 0 exercicio da observar;ao e prioritario para urn arquitecto. Quanta mais observamos, tanto mais clara (:- . surgira a essencia do objecto. E esta consolidar-se-a como conhecimento vago, instintivo. Texto N 086. 12 Frase deLe Corbusier, de eleir;ao para Alvaro Siza. 13 0 mundo inteiro e a memoria inteira do mundo continuamente desenham a cidade. Texto N 038. A 4. prop6sito da cidade (Evora), do sitio, Iugar (Bairro da Malagueira). 14 0 Texto N" 063 fala da ideia primaria de especializar;ao, na Arquitectura. 0 N 059, ponto 1, de que o arquitecto nao e urn especialista.

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  • virtuosa do arquitecto - a de nao ser especialista de coisa alguma, entre especialistas.

    Ou, tambem, referencias a familia como em Todos os Natais da casa da Av615 , com a recorda9ao forte da voz de baritono do Pai entoando o Pr61ogo dos Palha9os. Depois, o silencio das mortes de entes queridos que o rodeavam: parece que de repente desaparece muita gente. Anos depois, a sua mulher16: ao fim de algumas horas a. mesa de vinhatico es-tava cheia das nossas vidas.

    Em Viver uma Casa17 o desabafo ir6nico: nunca fui capaz de construir uma casa, uma autentica casa (. . .) a ideia que tenho de uma casa e a de uma maquina complicada1 ~. Ou a denuncia da originalidade como a priori, cuja obsessao representa, para Alvaro Siza, um processo in-culto e primario19 Ou a men9ao as viagens, aos amigos: ( ... ) a experiencia da Amizade, a aproximar;ao a essa ideia latente e mftica da Felicidade (. . .) Recorda

    15 Texto N 017. 16 Texto N 030. 17 Texto N 045. 18 A machine a habiter de Le Corbusier? Mas, sempre presente em toda a obra de Alvaro Siza, a complementaridade, o cruzamento, entre o trabalho da maquina eo trabalho do artesao. (Texto N 033, em que rende homenagem a James Sterling). 19 A necessidade de originalidade e diferenr;a conduz quase sempre a abandoner a ess{mcia de urn determinado objecto. Texto N 086. Na esteira de Adolf Loos, urn pre-moderno, defendendo a modestia e a discrir;ao contra o culto da originalidade. (Jorge Figueira, op.cit., p. 34, 35).

    10 01 textos por Alvaro Siza

  • a ausencia de ansiedade. Presem;a dos ausentes20 Os amigos, num plano cimeiro.

    Tambem se refere, em varies textos, a ~ermanente tensao entre natu-reza e construido, que se nao podem (nao devem) dissociar: desenvolver Ujj17Jrojecto consiste em ultrapassar a perene oposir;ao entre natureza e criar;ao humana. Tudo devera surgir inevitavelmente evidente. 0 ines-perado e surpreendente depressa se transforma em banJf21 Natureza e _construido: como metafora, uma s6 superficie22 desenvolvendo-se em dais teri"it6rios, que sao urn s6, infindavelmente percorrido, percorrivel. Por palavras do autor, homenageando 6scar Niemeyer, numa Exposivao em Milao, em 2005, ou os seus cern anos, em 15 de Dezembro de 2007: 6scar Niemeyer faz da Natureza material da Arquitectura ( ... ) [a pro-p6sito da Casa em Canoas] a construr;ao faz Natureza23 . Eo Homem, c_onstrutor do construido, incluido na simbiose: a Natureza- criadora do Homem- e o Homem- inventor da Natureza- absorvem tudo, incorpo-fando ou rejeitando o que os afecta.

    Em varies textos, em todos os textos, o autor-criador Alvaro Siza se define e se divisa, nas suas proliferas-raras obras, nos seus colegas, amigos, adversaries, cidades, viagens, ... Mas e recorrendo a ironia 20 Texto N 134. 21 Texto N 121. 22 A de Moebius, certamente. Cujos avisados habitantes tem sempre em mente o conhecido aforismo,' geralmente expresso em frances, embora em outras circunstancias: chassez le nature/, il revient au galop.

    23 Texto N 147. A citac;:ao que se segue e do Texto N 108.

    11

  • ou a subversao de modos de ver (ou de falar, comunicar) comuns que ele se apresenta, impressivo, Iucido: no Curriculum em que diz que tem um pouco secreto desejo de a abandonar [a Arquitectura], para fazer ainda nao sabe o que24 , na confissao (nao crivel) eu, pessimista-nato25, ou na desmistifica980, que reporta a anos de chumbo do sEkulo vinte, do vulgar estere6tipo patrioteiro do nacionalismo26 : a Tradi9ao e

    24 Texto N 067. Como se nao tivesse passado a vida, anterior, futura, a esquivar-se, na Arquitectura, cingindo-a sempre e mais, pela cintura. 25 Texto N 039. Ou tentando iludir-nos (Texto N 070: como sou um pessimista absoluto .. . ). 26 Denunciando, a prop6sito, o conceito reaccionario de Arquitectura Nacional (Texto N 077) e mostrando a situac;:ao-limite em que se pode ver como conservador e tradicionalista (Texto N 006, ponto 4). Tema candente de um dos varios desdobramentos do Modernismo, no fabuloso cadinho criativo (Ciencia, Arte) que se desprendeu dos anos vinte e trinta, entre o horror de duas guerras mundiais, o cruzamento entre tecnica-tecnologia e arte-artifice-cultura vernacular, e, na arquitectura, congenito, ontol6gico, filogenetico. Com natura is deturpac;:oes nacionalistas, paroquiais: e conhecida a deriva portugues suave, no p6s-guerra portugues.

    Contudo: passado mais de meio seculo, Dom Duarte Pio, Duque de Braganc;:a, herdeiro e sucessor da Casa Real Portuguesa, discorre ainda, sobre a materia, escrevendo com patri6tico fervor: Durante mi/{mios a arquitectura foi fruto da cultura dos povos. ( ... )Como em outros aspectos da vida, a industrializac;:ao pas em causa muitos dos valores das sociedades tradicionais e no seculo XX vimos desaparecer muitas culturas esmagadas pel a globalizac;:ao. Alguns intelectuais em Portugal ainda concordam com a globalizar,;ao em materia de arquitectura. Os arquitectos "modernistas" insistem em seguir a moda (como os costureiros) construindo mais do mesmo par todo o /ado. Sisa criou um molde, inspirado no estilo "Bauhaus" dos anos 30 e par todo o pais aparecem clones dele. ( ... ). Se parte do dinheiro gasto na EXPO ou no CCB tivesse sido investido na recuperac;:ao de Alfama e outros bairros hist6ricos, o impacto econ6mico seria hoje bem diferente. ( .. .) Encostada a Se do Porto os "responsaveis" pelo nosso patrim6nio cultural construiram uma torre moderna totalmente desenquadrada, sendo o pretexto uma suposta "Casa dos 24" que feria ai existido na /dade Media!! Tambem a "fortaleza marroquina" vulgo CCB ao /ado dos Jer6nimos sao emblematicos desta mentalidade, que considera que a nossa gerar,;ao tem o dire ito de destruir a harmonia e as perspectivas dos monumentos e paisagens que fazem parte do nosso imaginario colectivo. No proprio Santuario de Fatima, "Altar do Mundo", desfiguraram a bela esp/anada onde se podiam

    12 01 textos por Alvaro Siza

  • um desafio a inovac;ao. E feita de enxertos sucessivos. Sou conserva-dor e tradicionalista, ~sto e: movo-me entre conflitos, compromissos, mestic;agem, transformac;ao. Quem? Este emigrante intermitente, este n6mada b8rbaro27, apontado por vezes por nao ter teoria28 . Nao escapa, igualmente, ao ataque ecolo e populista que, de quando em quando, I he e movido de ... se comprazer em deitar arvores a baixo. Ao preservar urn simpatico rododendro na constrw;:ao do Pavilhao Carlos Ramos29 escreveu, com delicia: E facto extraordinario que este

    juntar quase um mi/Mio de pessoas, construindo um edificio monstruoso que impede os ajuntamentos de mais de quinhentas mil pessoas. (Pedras que choram, Revista Magazine, Julho/Agosto de 2007, pp. 86 a 91. Respeitou-se a redacgao e ortografia na transcrigao feita).

    Este texto de Dom Duarte nem e polemico. Antes enviesado e desfocado. Tern, reconhegamos, pelo menos uma virtude utilitaria: muitos dos Textos de Alvaro Siza com ele se aparentam. A contrario sensu. Sugere-se a leitura, a prop6sito, des que tern os seguintes numeros: 008, 011,015, 018, 020, 024, 033, 035,037, 040, 048, 054, 074, 077, 087, 089, 093, 102, 108, 114, 118, 127, 133, 139, 144. Sabre o CCB, especialmente o 032. Sabre Fatima e a obra de Alexandros Tombazis, oW 151 ou o numero especial da revista Arquitectura Iberica a elas dedicado. Eo 106, sabre a Casa des 24. De Tavera, Fernando Luis Cardoso Meneses de Tavares e Tavera, cuja merle em 3 de Dezembro de 2005 nos roubou um des mais prestigiados, influentes e respeitados mestres da Arquitectura Portuguesa do seculo vinte, com urn contribute impar em varies dominies da arquitectura, designadamente na defesa e recuperagao do nosso patrim6nio arquitect6nico. Cordialidade ininterrupta com a Hist6ria traduzida atraves de urn conservadonsmo progressista (Jorge Figueira, op.cit.p. 79). 27 Texto N 103 e Texto N 045, respectivamente. 28 Dizem-me (alguns amigos) que nao tenho teoria de suporte nem metoda. Que nada do que fat;o aponta caminhos (. .. ) Nao me atrevo a por a mao no feme, olhando a pen as a estrela polar. E nao aponto um caminho clara. Os caminhos nao sao claros. Texto N 006, ponte 5.Se teoria, falando de arquitectura, significa um conjunto de regras registtweis e reutilizaveis, entao sinto-me bem ao nao ter teoria (como par vezes e dito). Texto N" 145. 29 Da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

    13

  • conhecido arboricida tenha resistido ao seu instinto fatal, cedendo aos pedidos e instrur;oes dos colegas. Mas assim aconteceu30

    Centena e meia de textos: arquitectura, arquitectos, cidades, arte - fo-tografia, pintura, escultura, design; desenho, casas, museus; familia, amigos, viagens; ensino, pedagogia, apresentav5es, exposiv5es, refle-xoes. Muitos ineditos. Alguns revistos. Nao o sumario31 de uma especie de catalogue raisonne dos escritos32 De Alvaro Siza: Arquitecto escrito, descrito33, tambem descritor, escritor. Que ere que nao existe uma grande diferenr;a entre o processo de escrita e o do desenho de tal modo que em definitivo nao sou capaz de dizer como desenho urn objecto ou a propria arquitectura34 Sublinhando ainda: Sempre para mim o exemplo, ao pensar Arquitectura, veio dos escri-tores, e deles os poetas, artifices competentfssimos do registo e do sonho, habitantes da solidao35

    0 livro Textos 01, sem paredes, nem portas, nem janelas.

    Lisboa, Julho de 2008.

    30 Texto N 133. 31 Buraco da fechadura? Abre-te Sesame? La creme de Ia creme? Antes apenas um intentado vislumbre. 32 Capitulo indispensavel de um Catalogue Raisonne da (ongoing) obra de Alvaro Siza 33 Ate proscrito, nao poucas vezes, na sombra e no silencio ... 34 Texto N 086. 35 Texto N" 051.

    14 01 textos por Alvaro Siza

  • 001.1963 1 0 00 Arquitectura: Cooperativa de Lordelo do Ouro

    0 arquitecto e o observador atento dos problemas a resolver e das discussoes que a volta desses problemas se levantam. Em vez de ser func;ao duma soma de opinioes, o resultado do seu trabalho sera uma sintese de todos os contributos, depois de escrupulosamente discutida e verificada a justeza de cada urn.

    Publicavao da Unicoope sobre o 66 Aniversario da Cooperativa de Lordelo do Ouro, na Pasteleira. Porto, Dezembro de 1963.

    A prop6sito do Edificio ...

    Numa das minhas muitas visitas de inspec

  • l

    func;oes. As janelas e as portas nao tern formas assim ou assado - de-pendem do que e da maneira como se quer iluminar o interior e da mais apropriada relac;ao com o exterior. Nem as ligac;oes entre es-pac;os sao tao simples que se possam resumir a portas para a gente passar duns para os outros.

    Sendo assim, e necessaria inverter o metodo de trabalho: conhecer o que se vai passar dentro dum edificio e o que se passa fora dele.

    Assim surge como que o molde que o enformara.

    Esse molde nao depende, como e evidente, do cerebro duma s6 pes-soa. 0 arquitecto e o observador atento dos problemas a resolver e das discussoes que a volta desses problemas se levantam.

    Em vez de ser func;ao duma soma de opinioes, o resultado do seu trabalho sera uma sintese de todos os contributes, depois de escrupu-losamente discutida e verificada a justeza de cada urn.

    Dai a desilusao de alguns, quando nao veem totalmente materializada a sua particular visao dos problemas. Desilusao que pode levar ao ma-logro a mais bern intencionada iniciativa.

    Nao sucedeu isto em Lordelo do Ouro. As sessoes de trabalho, re-alizadas ao nivel de comissoes designadas pelos s6cios, ou de Assembleias Gerais, deram Iugar a urn enriquecimento gradual da pri-meira reacc;ao do arquitecto ao programa (apresentado pela Comissao de Obras, justamente com urn met6dico estudo de funcionamento, da autoria do arq.0 Jacobety).

    Contribuiram, ainda, para evitar soluc;oes pouco realistas.

    0 resultado pode parecer estranho para quem passa na rua, apressa-damente, por vezes de autom6vel (somos sempre apressados!).

    Mas suponho que nao sera estranho para quem o use, quotidiana-mente, com ou sem pressas.

    Ou seja, para aqueles por quem e para quem foi construido.

    16 01 textos por Alvaro Siza

  • 002.1964 00 00 Arquitectura: Casa de Cha I Restaurante da Boa Nova (1)

    A partir da entrada o tecto de madeira separa e fragmenta a vista: o encontro ceu-mar e ceu-terra e vista separadamente.

    [traduzido do Ingles] Pub. in World Architecture, editor John Donat, Studio Books, London, 1964.

    Restaurante junto ao mar, Boa Nova

    0 concurso promovido pela Camara Municipal de Matosinhos para o novo restaurante da Boa Nova permitia que o edificio se situasse no local que os concorrentes escolhessem. Conhecia bem esta parte muito rochosa da costa: a suave inclina-c;:ao, um solo despido, com grandes penedos junto ao mar. Fernando Tavora tinha ja uma ideia de implantac;:ao e de percurso de acesso. Considerava que a transic;:ao repentina entre terra e mar, acentuada por uma pequena plataforma, seria o local ideal para construir.

    Entendi, desde o inicio, que era necessaria evitar a imposic;:ao cons-tante da paisagem - um restaurante nao e um belvedere. A partir da entrada o tecto de madeira separa e fragmenta a vista: o encontro ceu-mar e ceu-terra e visto separadamente. 0 espac;:o interior nao e o negativo do exterior. 0 tecto de madeira li-berta-se, modelando o volume interior, sem contudo romper o exterior. Ha uma tensao visivel no encontro do interior com o exterior.

    Nao consegui controlar por inteiro o espac;:o da sala principal. 0 mobili-ario que neste momento estudo tenta eliminar ou, pelo menos, suavizar este e outros defeitos.

    Durante este trabalho entrei em considerac;:ao, como nao podia deixar (Je ser, com a existencia proxima de uma capela antiga, estudando o modo livre e natural como se torna parte determinante da paisagem. Tomei consciencia de como essa simplicidade e hoje rara e de como e dificil e necessaria reencontra-la.

    17

  • 18 01 textos por Alvaro Siza

  • Nao basta nao demolir a Torre dos Clerigos, nao basta nao demolir o Barreda. Nao e necessaria destruir para transformar. P_ara a transformar, e necessaria e indispensavel nao destruir a cidade.

    Pub. in Jornal de Noticias do Porto, anode 1980 e tb in [Figueirinhas].

    A cidade que temos

    Nao sei como e que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a prop6sito. A transpar{mcia e aqui nostalgia: ate a Juz tera a cor do gra-nito. Mas o granito e, as vezes, de oiro velho, e outras, azulado, com o Juar escasso que nesta noite de Outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma c/arab6ias e tra-peiras e mirantes da cidade enchem o crepusculo de brilhos - o Porto parece entao pintado por Vieira da Silva: e mais imaginario que real. Para as bandas de S. Lazaro, as ruas estao coalhadas de silfmcio-(1l

    Muita coisa torna urgente quebrar o silencio, para as bandas de S. Lazaro. Hitler escreveu que para destruir urn povo, para nele apagar a cons-ciencia de si proprio, basta destruir os seus monumentos, o meio fisico a partir do qual ele se identifica. A cidade de Vars6via, vitima da aplicac;ao deste pensamento, sentiu a necessidade imperiosa de re-construir o seu centro hist6rico, e nem as dificuldades do pas-guerra limitaram esta vontade. Na cidade que temos, de forma insensivel, ou quase, para muitos, lentamente, mas continuamente e em processo de acelerac;ao, o am-biente como qual nos identificamos e destruido, como se fosse essa a condic;ao de o transformar. A transformac;ao da cidade e fen6meno natural e prova de vitalidade, se de acordo com as suas necessidades, ou seja, com as necessida-des colectivas do cidadao .

    .. E uma das necessidades colectivas consiste na vivencia quotidiana

    19

  • dos residues da hist6ria de que e feita a cidade, contribute fundamen-tal a consciemcia da hist6ria e do devir. Pouco adianta a conservac;:ao (a protecc;:ao como sintomaticamente se diz) de alguns monumentos abstractamente isolados do contexte que os justifica. lmaginemos a lgreja dos Clerigos despojada do abrac;:o do casario que a envolve, a curva de doirados reflexes que prepara, para-lelamente ao alc;:ado lateral, a elevac;:ao da famosa torre. Observemos a Avenida da Boavista, despida das arvores que prolon-gavam o jardim da Rotunda em direcc;:ao ao mar. Acompanhemos a evoluc;:ao da Prac;:a da Batalha, reduzida, a pouco e pouco, a conduta de veiculos motorizados, com um D. Pedro V impotente sequer para dirigir o trafego.

    Quem sofre uma dor pode simplesmente recorrer a um analgesico, mas pode tambem procurar as causas da dor, e trata-las entao con-venientemente. De qualquer modo, nada tem a ver com os objectives limitados e provis6rios de um analgesico a recente operac;:ao - Prac;:a da Republica. A demolic;:ao das construc;:oes do tempo dos Almadas, com a justificac;:ao de um novo alinhamento para a Rua de Gonc;:alo Crist6vao, e a autorizac;:ao de construir em altura, destroem escanda-losamente o espirito e a escala da prac;:a, degradam o perfil da cidade, dao origem a um acrescimo de afluemcia de veiculos que neutralizaria as vantagens do alargamento, seas houvesse. Para alem do patrim6nio cultural que se vai perdendo, que dizer do valor material nunca contabilizado, dos custos sociais implicitos nas operac;:oes de renovac;:ao, tal como sao em geral realizadas (des-locac;:ao das populac;:oes, agravamento de problema de transportes, empobrecimento da vida civica, etc.)? E que dizer da qualidade de vida nas novas zonas construidas? Tudo isto e muito mais se passa na cidade que temos, junto a nossa porta, na rua ou na prac;:a que percorremos todos os dias, nos dormi-tories da periferia. Muitos o sofrem directa e quotidianamente, alguns nao se apercebem do que acontece, o Iuera material de outros retira-lhes a capacidade de sofrer. 0 granite de

  • Ou ficara apenas um crepusculo sem olhos de poeta em cada um de n6s - os olhos que trazemos ao nascer.

    (1) Eugenio de Andrade. prefacio a Daqui houve nome Portugal. [Ha duas Ediy6es de Daqui houve nome Portugal, Antologia de verso e prosa sabre o Porto, organizada e prefaciada per Eugenio de Andrade, sendo a selecyao artistica e direcyao grafica de Armando Alves. A primeira editada pela Editorial lnova, Lda, no Porto, em Junho de 1968 (encontrando-se o excerto citado per Alvaro Siza na p. 16). A segunda, com diferente informayao grafica (fotografia e pintura reproduzida), editada per ASA Editores II, SA, Porto, ana 2000 (excerto nap. 17)].

    21

  • 22 01 textos par Alvaro Siza

    L

  • 004.1980 03 00 Arquitectura: Piscina de Leya da Palmeira (1)

    Durante sete anos ainda, como Jacob, o arquitecto estudou os remates, a norte e a sui, onde era dificil a entrega do que se fez ao que existia.

    Pub. in [Figueirinhas].

    Piscina de Le~a da Palmeira

    Todos os anos, nas mares vivas, o mar leva o que nao e essencial. Naquele sitio, urn macic;o rochoso interrompe as tres linhas paralelas: encontro do mar e do ceu, da praia e do mar, Iongo muro de suporte da via marginal. Alguem pensou em proteger uma depressao desse macic;o, utili-zando-a como piscina de mares. Maso Atlantica nao eo Mediterraneo, nem e simples construir uma piscina onde poucas se fazem: tratamento da agua, captac;ao dificil, regulamen-tos exigentes, aprovac;ao dependente de uma serie de organismos. "0 melhor e chamar urn arquitecto". Nada mudou profundamente. 0 edificio dos balnearios esta ancorado como urn barco no muro da ~arginal. Dali nao sai. Alguns muros em betao sustentam a cobertura em riga e cobre e apoiam os percursos de acesso a piscina. ~sses percursos existiam (em terreno dificil, a gente sabe escolher o sitio onde por os pes), a piscina existia, os muros sao paralelos ao -muro de granito da avenida, do qual apenas se destacam. Aqui e alem pequenas intervenc;oes consolidam as plataformas naturais. Pouca coisa mudou. Nas primeiras mares vivas o mar levou urn bocado de muro, corrigindo o que nao estava bern. Durante sete anos ainda, como Jacob, o arquitecto estudou os remates, a norte e a sui, onde era dificil a entrega do que se fez ao que existia.

    23

  • De tal sorte que dai resultou um plano da marginal, e o entregou e disso foi pago. Mas tudo foi considerado inutil: provavelmente se compreendera que o arquitecto apenas escolheu onde par os pes e aonde nao ir, temeroso dos perigos e das rochas e do mar. E alguem disse: "qualquer um sabe onde par os pes, e e suposto que um arquitecto ponha os pes em sitios diferentes dos de toda a gente". E logo o despediram.

    24 01 textos por Alvaro Siza

  • F

    005.1982 00 00 Reflexao

    0 projecto esta para o arquitecto como o personagem de urn romance esta para o autor: ultrapassa-o constantemente. E preciso nao 0 perder. 0 desenho persegue-o. (. . .) 0 desenho e 0 desejo de intelig{mcia.

    Revista Daidaluz n.0 5, Set. 1982, ed. Workmedia Comunica;ao. Pub. tb in (EJecta], p. 61, [Skira], p.51, [UPC], p. 23 e [Saint-Etienne], p. 42.

    Construir

    Construir uma casa tornou-se uma aventura. E preciso paciemcia, coragem e entusiasmo.

    0 projecto de uma casa surge de formas diferentes. Subitamente, por vezes, as vezes lenta e penosamente. Tudo depende da possibilidade e da capacidade de encontrar estimulos - bengala dificil e definitiva do arquitecto.

    0 projecto de uma casa e quase igual ao de qualquer outra: pare-des, janelas, portas, telhado. E contudo e (mico. Gada elemento se vai transformando, ao relacionar-se.

    Em certos mementos, o projecto ganha vida propria.

    Transforma-se entao num animal voluvel, de patas inquietas e de olhos inseguros.

    Se as suas transfigura

  • 0 desenho persegue-o.

    Mas o projecto e um personagem com muitos autores, e faz-se inteli-gente apenas quando assim e assumido, e obsessive e impertinente em case contrario.

    0 desenho e 0 desejo de inteligencia.

    26 01 textos por Alvaro Siza

  • 006.1983 09 00 Pedagogia

    A Tradir,;ao e urn desafio a inovar,;ao. E feita de enxertos sucessivos. Sou conservador e tradicionalista, isto e: movo-me entre confli-tos, compromissos, mestir,;agem, transformar,;ao.

    Pub. in Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme n. 0 159, Out.Nov.Dez 1983. E tb. in [EJecta], p.65, [Skira] p. 203 e [UPC], p.27.

    Oito Pontos

    Pedem-me urn depoimento sobre a minha actividade profissional. Escrevo algumas linhas, oito pontos ao acaso.

    1) Comec;:o urn projecto quando visito urn sitio (programa e condiciona-lismos vagos, como quase sempre acontece). Outras vezes comec;:o antes, a partir da ideia que tenho de urn sitio (descric;:ao, uma fotografia, alguma coisa que li, uma indiscric;:ao). Nao quer dizer que muito fique de urn primeiro esquisso. Mas tudo comec;:a. U_m sitio vale pelo que e, e pelo que pode ou deseja ser- coisas tal-vez opostas, mas nunca sem relac;:ao. Muito do que antes desenhei (muito do que outros desenharam) flu-tua no interior do primeiro esquisso. Sem ordem. Tanto que pouco aparece do sitio que tudo invoca. Nenhum sitio e deserto. Posso sempre ser urn dos habitantes. A ordem e a aproximac;:ao dos opostos.

    2) Ouc;:o dizer que desenho nos cafes, que sou urn arquitecto de pe-quenas obras (como experimentei as outras, penso: oxala que nao; sao as mais dificeis). E verdade que desenho nos cafes. Nao o fac;:o como Toulouse Lautrec nos cabares, ou algum Prix de Rome, entre as ruinas. 0 ambiente de urn cafe nao inspira nem transporta. E urn dos pou-cos - aqui no Porto - a permitir anonimato e concentrac;:ao.

    27

  • Nao se trata de fuga a mesa de reunioes, a interdisciplinaridade, ao telefone, aos impresses de Regulamentos, aos catalogos de pre-fabri-cados ou de ferramenta simplificadora, ao computador ou a Assembleia de Moradores. Trata-se de conquistar- e o termo - bases para traba-lhar com isso e para isso. (Quantos cafes frequentei; mudo quando note especial aten
  • " E nao aponto um caminho claro. Os caminhos nao sao claros.

    6) Nao gostaria de executar com as pr6prias maos o que desenho. Nem de desenhar sozinho. Seria: esterilizar. 0 corpo-mao e mente e tudo- nao cabe no corpo de cada um. E ne-nhuma parte e aut6noma.

    7) As minhas obras inacabadas, interrompidas, alteradas, nada tem a ver com a estetica do inacabado, ou com a crenr;a na obra aberta. Tem a ver com a enervante impossibilidade de acabar, com os im-pedimentos que nao consigo ultrapassar.

    8) Discuto com um operario como assentar mosaico de 30x30 num pavimento de geometria irregular: em diagonal (como proponho) au paralelamente a uma das paredes. Diz-me: n6s, em Berlim, nao fa-zemos como quer. No dia seguinte volta a obra. "Dou-lhe razao. E mais facil de execu-tar" (diz-me o operario). Encontramo-nos no mesmo interesse: construir da forma mais pra-tica e racional, como aconteceu - voando - no Partenon, ou em Chartres, ou na casa Mila. E hoje: redescobrir a magica estranheza, a singularidade das coi-sas evidentes.

    29

  • 30 01 textos par Alvaro Siza

  • 007.1986 09 00 Cidades (Barcelona), Familia

    Apercebi-me no dia seguinte, de que as estranhas esculturas eram feitas do que existe em toda a parte: jane/as, portas, ro-dapes, ferragens, lambrins em ceramica ou pedra, ca/eiras, goteiras; tudo bem funcional, adaptado as maos e aos pes e aos cinco sentidos. Dentro da casa Mila senti-me em casa: nada era especial, a nao ser na magica qualidade.

    Pub. In Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme, n. 0 175, Out.Nov.Dez. 1978. E tb na Exposir;ao Arquitectura e Renovar;ao Urbana em Portugal, 1984, Barcelona, Setembro 1986, in [Skira], p. 122 a 125, in Catalogo da Exposir;ao As Cidades de Alvaro Siza no Porto e em Lisboa e in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/ Birkhauser Verlag, 1994, p. 202 a 206.

    Barcelona

    A minha relac;ao com Barcelona e bern antiga; entre quarenta e cinco e cinquenta e poucos, em cada ano, o meu pai organizava urn mes de ferias em Espanha. Alugava urn carro, preparando cuidadosamente o itinerario, com o mesmo entusiasmo com que mais tarde o recordava. Pela minha parte, desde que me lembro encorajado a desenhar por urn tio, para alem disso, pouco dado as artes, interessava-me pelos museus e por aquelas perdidas sacristias onde de subito, entre o p6, explodia urn Greco (o meu tio oferecia-me coisas maravilhosas, lapis n.0 1, borrachas, caixas de aguarelas, cadernos de papel costaneira, depois Almac;o, depois Whatmam, ou lngres ou Conte; cada melhoria de qualidade correspondia a uma promoc;ao calculadamente decidida pelo meu tio que nao sabia desenhar). Nao havia Turistas nem auto-estradas; estavamos mais pr6ximos das casas e das pessoas. A Espanha era pobre; devastada; por toda a parte o p6 encobria a riqueza secular; p6 da cor de Toledo, do Alcazar ao Tejo. 0 autom6vel alugado pelo meu pai fazia grande sucesso; as pessoas juntavam-se para ver urn modele americana que nao conheciam. A partir de meados de cinquenta deixamos de fazer ferias em Espanha. Os prec;os haviam subido e o cambio ja nao era favoravel. 0 Hostal de

    31

  • Santiago, rodeado de autocarros franceses, assinalava os novos tempos. 0 autom6vel alugado ja nao causava espanto. No ano destinado a Catalunha, como sempre, o meu pai estudou o que havia para ver: reunia a familia a volta da grande mesa da sala de jan-tar e fazia pianos. 0 meu interesse dirigiu-se ao museu de Vich e a Gaudi. Pouco me interessava a arquitectura; mas aquela parecia escultura, ou pintura, ou assim era. Na primeira noite - chegamos tarde - fui com o meu irmao olhar a Sagrada Familia. Estava escuro e sentimos medo. Ninguem nas ruas. Mas nas Ramblas havia animavao e o habitual desfile de gente, como em todas as cidades e aldeias de Espanha. Apercebi-me no dia seguinte, de que as estranhas esculturas eram fei-tas do que existe em toda a parte: janelas, portas, rodapes, ferragens, lambrins em ceramica ou pedra, caleiras, goteiras; tudo bern funcional, adaptado as maos e aos pes e aos cinco sentidos. Dentro da casa Mila senti-me em casa: nada era especial, a nao ser na magica qualidade. Nao muito diferente das outras casas dos quarteiroes bern alinhados, nas ruas arejadas onde apetecia passear, cruzando o dia inteiro, urn ap6s outro, os cunhais cortados a quarenta e cinco graus, os cunhais de espa9os pro-fundos que o Federico Correa, mais tarde, me faria conhecer. Tive o primeiro pressentimento de que talvez a arquitectura me inte-ressasse mais do que qualquer outra coisa; de que estava ao meu alcance; bastava p6r a danvar janelas, portas, rodapes, ferragens, lambrins em ceramica ou pedra, caleiras, goteiras. Senti o pulsar dos tubos de secvao normal, dos fios de electricidade; e o movimento do ar atraves das paredes. No regresso paramos para almovar num restaurante dos arredores. Vi uma tabuleta que indicava: Colonia GOell. 0 meu pai estava cansado de arquitectura e de museus; mas acedeu a que eu fosse com o motorista "ali ao lado". Quando voltamos acabavam de almovar. 0 motorista estava com fome e zangado; o meu pai fingia que estava zangado; os meus olhos de quinze anos brilhavam. Costa Brava acima, a benvao do Mediterrfmeo. (mais tarde passei por aqui a cern a hora, formosas auto-estradas, Coderch em dois segundos, uma cidade do Far-West feita de fachadas em madeira, entusiasmo, entusiasmo, o entusiasmo de que precisava; maos, pes, cinco sentidos.)

    32 01 textos por Alvaro Siza

  • 008.1987 01 00 Outros Arquitectos: Fernando Tavora (1)

    Culturalmente, e no que a profissao respeita, Fernando Tavora e um homem da ultima gerac;ao ClAM, formado na admirac;ao de um Le Corbusier de certezas, imediatamente sensivel ao Le C de viragens desconcertantes, que reabilitam contradic;oes de formac;ao pre-escolar ou exterior a Escola.

    Pub. in Arquitectura, Pintura, Escultura, Desenho. Patrim6nio da Escola Superior de Belas Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, ed. Universidade do Porto, Janeiro de 1987. Exposic;:ao organizada pela FAUP com a colaborac;:ao da Associac;:ao Portuguesa de Arquitectos, integrada nas Comemorac;:oes do 75 Aniversario da Universidade do Porto; p. 184 a 187. E tb in Desenho de Arquitectura, mesmo evento, p. 104 a 107.

    Fernando Tavora

    Fernando Luis Cardoso Meneses de Tavares e Tavora, filho de Jose Ferrao de Tavares e Tavora e de Maria Jose de Lobo Sousa Machado Cardoso de Meneses, nasce no Porto a 25 de Agosto de 1923. Faz o seu Curso de Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto (1942-1947) e obtem o seu diploma em 1950.

    lngressa no corpo docente daquela Escola em 1951, como volunta-rio, sendo depois contratado como Segundo-Assistente em 1958. Em 1962 concorre ao Concurso para Professor do 1 grupo sendo classifi-cado em merito absolute e em segundo Iugar em merito relative.

    Professor Agregado e, em 1974, convidado para Professor, passando a efectividade em 1976. Exerce cargos nos diferentes 6rgaos de ges-tao da primeira Sec

  • Colaborou no lnquerito a Arquitectura Regional Portuguesa, promo-vida pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos.

    Participou em Congressos lnternacionais de Arquitectura e Urbanismo e foi membra do ClAM (Porto).

    Foi 1 premia de Arquitectura da fundac;ao Calouste Gulbenkian e Bolseiro da mesma Fundac;ao nos Estados Unidos e no Japao. E Academico Correspondente da Academia Nacional de Belas Artes.

    Numa primeira observac;ao, a obra de Fernando Tavora respira tran-quilidade. Nenhum drama afl~-~~-:- Resuftaestranflo"o seufascinio, ou o da personalidade do Autor.

    Culturalmente, e no que a profissao respeita, Fernando Tavora e um homem da ultima gerac;ao ClAM, formado na admirac;ao de um Le Corbusier de certezas, imediatamente sensivel ao L C de viragens desconcertantes, que reabilitam contradic;oes de formac;ao pre-esco-lar ou exterior a Escola.

    Do ultimo ClAM acompanha o pensamento do Coderch das casas ca-talas, e nao do Candilis das novas cidades; do Van Eych rebelde e dos novos italianos, e nao Bakema da triunfante reconstruc;ao.

    Nao admira que a identificac;ao com o novo e eclectico ClAM dure menos do que este durou; que a ligac;ao a opostos campos de forma-c;ao pessoal atravesse o evoluir da obra e nela se resolva; nao admira que a influencia fulminante de Alvar Aalto em toda a Europa seja para Fernando Tavora marginal.

    A evidencia da importancia de Fernando Tavora como pedagogo e ca-talizador de tendencias renovadoras, no interior da Escola de Carlos Ramos e na sua consolidac;ao e evoluc;ao, tem de certo modo adiado a atenc;ao a obra do Arquitecto, colocada com respeito nas prateleiras das referencias indiscutiveis na descric;ao e compreensao dos cami-nhos da Arquitectura Contemporanea Portuguesa.

    A um olhar mais atento, a obra de Fernando Tavora aparece aberta e carregada de subversao, num pais de marasma ou de sufocada ansiedade. Subversao, reflexao, continuidade, num contraponto de

    34 01 textos por Alvaro Siza

  • projectos "em estado de felicidade" e de suspensas decomposic;:oes. E. nesta 6ptica que se pode entender a complexa coerencia da sucessao de projectos e construc;:oes e tambem das mais diversas actividades-do coleccionador ao pedagogo.

    A .Q_~sa Ofir "aparece" em 1956. Nao e mais do que outra chamine

    entre as luminosas, essenciais construc;:oes do litoral minhoto; pro-voca, nessa _11_9turalidade, um autentico sobressalto renovador; pouca gente e sensfvel, na epoca, ao facto de que utiliza uma estrutura espa-

    cial moderna e n6rdica.

    Sucede aos primeiros projectos "europeus" (Ramalde, Campo Alegre,

    Bloco de Habitac;:oes da Foz) e a participac;:ao no lnquerito a Arquitectura Regional Portuguesa, precedida pela publicac;:ao de "0 Problema da Casa Portuguesa", pequeno texto que anunciava muitos dos temas disciplina-

    res dos anos seguintes.

    Aquela aproximac;:ao do vernaculo litoral "em estado de grac;:a" segue-

    se o projecto do P!3vilhao de tenis da quinta da Conceic;:ao, destruic;:ao

    ~~composic;:ao de elementos e tipos de Arquitectura Tradicional, no in-

    terior de uma convergencia de distantes vocac;:oes de Forma.

    A coerente e acabada linguagem "portuense" da Escola do Cedro (1958)

    que parece institucionalizar os caminhos da Casa de Ofir, e acompa-

    nhada pela singular arquitectura do Mercado de Vila da Feira (1954)

    onde a analise e a intuic;:ao do uso do espac;:o se traduzem numa aguda

    sensibilidade ao que se transforma - ou se vai transformar - e a uma continuidade que escapa a descric;:ao; assim se construindo a Forma.

    0 Bloco de Pereira Reis (1958) devolve a arquitectura os limites de su-perflcie e definic;:ao de espac;:o e de parte constituinte de uma estrutura

    superior; enquanto o Ediffcio Municipal de Aveiro (1964) se desprende

    em objecto arquitect6nico.

    Mais recentemente, na renovac;:ao da sua casa de familia, em Guimaraes, a mao do autor quase se apaga na renovac;:ao exemplar; enquanto no Iongo processo da recuperac;:ao da Pousada de Santa Marinha um ri-

    gorosfssimo estudo arqueol6gico esta na origem da naturalidade e da

    heresia da "nova arquitectura", que ultrapassa a condic;:ao de acrescento,

    35

  • ascendendo a parte integrante da Hist6ria de uma poderosa estrutura

    em lenta e continua transformac;ao.

    Nao e possivel, em curta texto, considerar a riqueza e a complexidade da obra de Fernando Tavora; uma obra que invade - discretamente? -

    o quotidiano da cultura portuguesa.

    Nenhuma tranquilidade subsiste. Sob uma mascara de distancia, agitam--se - em primeira mao - os grandes temas da nossa transformayao.

    36 01 textos por Alvaro Siza

  • ......-~

    009.1987 06 00 Pedagogia, Desenho

    A obsessiva especializar,;ao atrofia capacidades universais; a alguns e permitido e impasto desenvolver umas tantas - e nao outras. E no entanto, no respeito ao desenho, qualquer crianr,;a se exprime com frescura e rigor; e os inadaptados e os consi-derados loucos.

    Pub. in catalogo da Exposi

  • \ E precise nao descurar o exercicio, para que os gestos nao se cris-l pem, e com eles o resto.

    38 01 textos por Alvaro Siza

  • r ' .J 010.1987 12 00 Outros Arquitectos: Le Corbusier

    Muito do encanto da Villa Savoie - da Arquitectura - tern ori-gem numa suspensa, precaria cumplicidade entre os que a rea/izam: promotores, construtores, desenho. (. .. ) Nao sa be-mas que Deuses a habitam. Como um temp/a japones, e refeita antes de apodrecer. Evoca saude, juventude, a/egria, higiene, box - a nobre arte - doirada sob o bra nco.

    Pub. in Sulle Tracce di Le Corbusier, a cura di G. Palazzolo i R. Vio, Arsenale, Venezia, 1989. E tb in [E/ecta], p.68, [Skira], p. 104 e [UPC], p, 21.

    A Villa Savoie revisitada

    Picasso dizia que necessitara de dez anos para aprender a desenhar como uma crianc;a. Estes ultimos dez anos parecem hoje ausentes da aprendizagem da Arq u itectu ra. 0 encantamento numa visita a Villa Savoie vem do encontro sempre presente, inverte a importancia dos elementos. Estes podem ser iso-ladamente banais; acompanharao um habitante de todos os dias sem sobressalto, apreendidos ou nao. Gada invenc;ao gera outra ainda. Nao acabam as possibilidades de descoberta, para a direita, para a esquerda, para o alto e para o baixo, obliquamente, ortogonalmente. A expressao directa e quase tosca do pormenor nao tem nada de pouco elaborado ou de prirT.1itivo; trata-se de uma segunda espontaneidade, laboriosamente conquistada e tambem de subito encontrada, do exer-cicio, acelerado quase ate ao sincretismo, da hip6tese e da critica, da aproximac;:ao da essencialidade.

    Ao contrario de Chareau, de quem continuamente, ao que parece, observa as engenhosas descobertas e o emprego de novos mate-riais, Le Corbusier nao tem uma clientela fixa, nem uma equipa de maravilhosos artesaos. Persegue uma ideia em profundidade e em extensao; desenhos rigorosos mas nao totalmente detalhados, aber-tos ao conformismo ou a aventura, atravessados de duvidas, intuic;oes

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  • ou influencias, no ocaso de um mundo em que projectista e artesao se entendem directamente, como Chareau, mas sem desanimo.

    Nas suas leituras teria sido influenciado pelas ideias de Alexandre Vaneyre1, num gesto largo como a viagem ao Oriente apontara a Sui

  • Mas, ao contrario, o reboco faz continuas as formas sincopadas, e as fissuras que nascem cada dia denunciam as indecisoes tecnol6gicas e as maos que materializam o desenho.

    Junto a rua, semi-encoberta por um muro, a portaria anuncia seca-mente a linguagem da casa que nao se ve. Um sabio percurso articula as duas constrU

  • o 2 piso desenvolve-se em torno de um patio que o ilumina em condi-96es ideais. A assimetria e controlada pela rampa axial, que se repete exteriormente ate ao terra9o; a violencia do percurso e ai contida pelas curvas sumptuosas dos muros, como num abra9o. Misteriosamente existe calma, feita de satura9ao de tens6es. 0 largo desenvolvimento da sala comum domina multiplicadas diagonais, reflec-tidas no pavimento de mosaico do atrio; o percurso atraves do quarto principal - outro U - proporciona uma sensa9ao de profundidade, como numa velha casa; e de novo liberta a visao do patio e da clareira. Gada elemento tem uma vida aut6noma, desfoca-se de subito, como acontece numa cidade que conhecemos de todos os dias. 0 encon-tro entre elementos nao e absolutamente perfeito. Os rodapes hesitam diante de obstaculos, ou os canos de agua; falta as molduras das portas ou as curvas da escada ou da parede do banho um controle in-discutivel. Nada e sistematico. Ha erros evidentes de desenho e das maos que o executam, cruzam-se as mutuas indecisoes e cada erro gera poesia, ao ensinar a transformar.

    0 que impressiona neste Le Corbusier, e percorre afinal toda a sua obra escrita ou desenhada, e a desconcertante recusa do ja afirmado, uma especie de candura uma inquieta9ao que a capacidade de analise e de sintese e as convic96es nao destroem, uma certa inseguran9a, o repudio da auto-suficiencia, sob uma aparente arrogancia. 0 abra9o a um operario ante a suposta imperfei9ao de uma parede. Muito do encanto daVilla Savoie- da Arquitectura- tem origem numa suspensa, precaria cumplicidade entre os que a realizam: promotores, construtores, desenho. A sua continua degrada9ao reflecte a impos-sibilidade de manter esse encantado equilibria, mas tambem de o nao procurar. Nao sabemos que Deuses a habitam. Como um tem-plo japones, e refeita antes de apodrecer. Evoca saude, juventude, alegria, higiene, box - a nobre arte - doirada sob o branco. Habita-a uma pesquisa infatigavel e infindavel, tapetes de Chandigarh desenha-dos num aviao, esculturas modeladas por correspondencia, retratos de Josephine - um sorriso de Eva no paraiso.

    42 01 textos por Alvaro Siza

  • r . ~~

    011.1988 01 00 Pedagogia, Familia

    Ninguem hoje pode ignorar o pluralismo do chamado Mo-vimento Moderno, a permanente crftica no interior da febril reconstrur;ao da cidade europeia, os gestos contradit6rios, as desconcertantes, seminais expressoes de uma continua e multifacetada pesquisa, para/eta aos conformismos e aos ma-nifestos. E assunto solidamente estudado.

    Pub. in Revista Critica das Ciencias Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, n.0 24, Margo 1988. Pub. tb in [EJecta], p. 68, [Skira], p. 34 e [UPC], p. 21.

    Farmacia Moderna

    Pergunta: Considera-se arquitecto post-modernista? Resposta: Nao importa que me chamem post-modernista, se isso con-correr para que se fale de Arquitectura (Aido Rossi, debate em Bogota, 1981).

    1.

    A casa da minha Av6 fica num sftio especial de Matosinhos. Af pelos anos 40 encontrava-se na fronteira entre as fabricas de conservas (hoje abandonadas) e as residencias de principia de sEkulo. Em frente havia a Farmacia Moderna, realmente moderna, no mesmo estilo dos "Mestres de Traineira" subitamente enriquecidos, que compravam carros de luxo e bides onde demolhavam o bacalhau; casas geometricas, depuradas, de reboco e madeira esmaltada e alguma pedra, quartos de banho em marmore e algum metal de gosto Deco.

    Na casa por cima da Farmacia respirava-se saude e bons princfpios; o proprietario era escuteiro e partia ao domingo, nao se sabe para onde, armado de cah;as curtas e de instrumentos fascinantes. Com o passar dos anos, o nome da Farmacia tornou-se estranho. Mudaram os proprietaries, a volta comer;aram a demolir predios e a

    43

    RicardoHighlight

  • construir 6 ou 7 pisos. A Farmacia continuava igual e obstinadamente Moderna; mas o reboco come
  • r ;.,

    3.

    A menc;ao do termo post-moderno surgiu nos her6icos anos 30, distante dos escandalos e dos triunfos contemporaneos da arquitec-tura modernista (a alguma se chamava futurista). A sua aplicac;ao a Arquitectura chegou tarde e mais "debil" do que o normal. Esse atraso e outras debilidades explicam talvez a subita ansiedade em nao ficar excluido da nova classificac;ao.

    Estaremos Ionge da primitiva inocencia que manteve o antagonismo entre Bernini e Borromini, apesar da comum condic;ao de barrocos, mais tarde e pelos vistas evidente. Podemos saber e ja, atraves dos criticos ou da propria lucidez, se somas post-modernistas ou ainda nao, tardo-modernistas ou crito-post-modernistas, ou regionalistas e outras coisas. Assim podemos encontrar cantos de tranquilidade para as incertezas, Ionge que estamos do optimismo e dos claros instrumentos de traba-lho dos anos 50.

    4.

    A claridade e a utilidade da Arquitectura dependem do comprometimento na complexidade das transformac;oes que cruzam o espac;o; compro-metimento que no entanto s6 transforma a Arquitectura quando, pelo desenho, atinge a estabilidade e uma especie de silencio, o territ6rio in-temporal e universal da ordem.

    Complexidade e ordem conferem aos materiais e aos volumes e aos espac;os luminosa vibrac;ao e permanente disponibilidade. Par isso a Arquitectura nao condiciona comportamentos de forma significativa; mas nao constitui um quadro neutro.

    Quanta mais se compromete com as circunstancias da sua produc;ao, mais dela se liberta; "voz" par ser impassive! condutor de vozes, me-dida e nao limite da procura de perfeic;ao.

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  • Quase sempre distante desse comprometimento e dessa autonomia, a produgao actual tende a oscilar entre hermetismo e populismo, entre kitch e elegancia; de uma forma ou de outra, sugere a substituigao do criticado continuo de "ismos" por um "ismo" unico, tao divertida-mente indiferente que pretende tudo conter, alcangando pluralismo e sobrevivencia atraves de mascaras e de cenarios, invocando simulta-neamente o gratuito e a hist6ria.

    Elementos e signos de crise, simplificados e poucos, reciclados em ondas de rapida e efemera propagagao, sao exibidos como expressao de criatividade individual; como imaginativa resposta a progressiva bu-rocratizagao e a morte das certezas.

    lsto e um toque de ironia denunciado ate ao aniquilamento legitimam, ou pretendem legitimar, a associagao de qualquer irresponsabilidade aos meditados percursos de Rossi ou de Stirling, ou de outros menos conhecidos.

    5.

    Estao ultrapassados os c6digos do Modernismo? Ou nunca se defini-ram radicalmente, a nao ser em sinteses epis6dicas, excluindo o que perturbava a suposta universalidade? Nao faz mal ao Mundo que, por razoes de metodo, se estabelegam imaginarias linhas de fronteira. Pode ser fecundo e assim se fez sem-pre, para logo serem ultrapassados os limites de cada pesquisa. Ninguem hoje pode ignorar o pluralismo do chamado Movimento Moderno, a permanente critica no interior da febril reconstrugao da ci-dade europeia, os gestos contradit6rios, as desconcertantes, seminais expressoes de uma continua e multifacetada pesquisa, paralela aos conformismos e aos manifestos. E assunto solidamente estudado. Por isso, como acontece em relagao ao modernismo, comega ja o recuo na Hist6ria, a procura dos Pais do post-modernismo.

    46 01 textos por Alvaro Siza

  • f . . 012.1988 02 00 Reflexao

    Assim fosse na Holanda, onde montanhas de livros e de ex-peri{mcia e de informar;ao computorizada me abrem mil vias proibidas. Para tudo tenho mil apoios, mil disciplinas me acom-panham fratemalmente, a nao ser na solidao multiplicada de ser eu a escolher o que nao posso escolher.

    Pub. in Alvaro Siza Figures and Configurations: Buildings and Projects 1986-1988, ed. W. Wang, Harvard University Graduate School of Design/ Rizzoli International, New York, 1988. E tb in [Eiecta] p. 71, [Skira], p. 200, [Figueirinhas], [UPC], p. 47 e [Saini-Etienne], p.72. Versao trilingue in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/ Birkhauser Verlag, 1994, p. 108.

    Materiais

    Mal sei que materiais escolher. As ideias vem-me imateriais, linhas sabre um papel branco; e quando quero fixa-las tenho duvidas, escapam, espe-ram distantes. Recorda as carpinteiros das primeiras obras, que me ensinaram que as dobradivas se aplicavam assim no norte e de outra maneira no sui.

    Agora que trabalho na Holanda de pouco me servem as duvidas: isto custa X e aquila Y; Z e o limite. Tudo o que seja diferente s6 na minha imaginavao e possivel; custe o que custar. Aprendi na Holanda, e na Alemanha, a apreciar as minhas duvidas por-tuguesas sabre as materiais; no pais onde a tradivao esta moribunda e a contemporaneidade e o futuro. A oscilante disponibilidade dos ma-teriais, e indecisa, fracciona o que idealize e abre diferentes caminhos; devo percorre-los, escolher pode ser descobrir.

    Assim fosse na Holanda, onde montanhas de livros e de experiencia e de informavao computorizada me abrem mil vias proibidas. Para tudo tenho mil apoios, mil disciplinas me acompanham fraternalmente, a nao ser na solidao multiplicada de ser eu a escolher o que nao posse escolher. Os mais capazes deixam colar as coisas que pensaram -como mate-ria - sabre a materia que nao pensaram.

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  • Af permanecem, ate que as primeiras tempestades poem a nu o que era de prever: nao existem.

    48 01 textos por Alvaro Siza

  • iir

    013.1988 04 00 Viagens, Desenho

    De subito o lapis ou a bic comer;am a fixar imagens, rostos em primeiro plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores, as maos que os desenham.

    Escrito em Boston. Pub. lntrod. Alvaro Siza. in Esquissos de viagem/ Travel Sketches. Documentos de Arquitectura, Porto, 1988. Pub. tb in [EJecta], p. 73, [Skira], p. 113, [UPC], p. 59, [Figueirinhas] e [Saint--Etienne], p. 50.

    Desenhos de Viagem

    Nenhum desenho me da tanto prazer como estes: desenhos de viagem.

    Viajar e prova de fogo, individual au colectivamente.

    Gada um de n6s esquece a partida um saco cheio de preocupag6es, aborrecirnentos, stress, tedio, preconceitos.

    Simultaneamente perdemos um mundo de pequenas comodidades e as encantos perversos da rotina.

    Viajantes intimas au desconhecidos dividem-se em dais tipos: admira-veis au insuportaveis.

    Um bam amigo sofre verdadeiramente porque o Mundo e grande. Jamais podera permitir-se - diz - repetir uma visita; abala nervoso, crispado, olhos a saltar das 6rbitas.

    Par mim gosto de sacrificar muita coisa, de ver apenas o que imedia-tamente me atrai, de passar ao acaso, sem mapa e com uma absurda sensagao de descobridor.

    Havera melhor do que sentar numa esplanada, em Roma, ao fim da tarde, experimentando o anonimato e uma bebida de cor esquisita - manu-mantas e monumentos par ver e a preguiga avangando docemente?

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  • l

    De subito o lapis au a bic come~am a fixar imagens, rostos em pri-meiro plano, perfis esbatidos au luminosos pormenores, as maos que as desenham.

    Riscos primeiro tfmidos, presos, pouco precisos, logo obstinadamente analiticos, par instantes vertiginosamente definitivos, libertos ate a em-briaguez; depois fatigados e gradualmente irrelevantes.

    Num intervale de verdadeira Viagem as olhos, e par eles a mente, ga-nham insuspeita capacidade.

    Apreendemos desmedidamente; o que aprendemos reaparece, dissol-vido nos riscos que depois tra~amos.

    50 01 textos por Alvaro Siza

  • 014.1988 1 0 00 Cidades, Viagens

    As cidades fundadas pelos Portugueses na America do Sui, ou na india, ou nao importa onde, engastam-se em sitios amaveis e inexpugnaveis. 0 que se vai construindo convive estreitamente com a Natureza. A sua geometria simples e um complemento rigoroso, dependente e transformador. Nao M grandes cais, nem ruas muito largas, nem prar;a dos Poderes, nem fronteiras construfdas.

    Pub. in [EJecta], p. 74, [Skira], p. 120 e [Figueirinhas].

    Brasil

    Viajo de Buenos Aires a Lisboa, sob a impressao do enorme e compacta tecido, malha de 144x144 metros poisada na planicie, entre o mar e o Rio da Prata.

    Nao consigo imaginar fim ou periferia; os limites serao os da necessi-dade de crescimento. Cada novo quarteirao, clandestino ou planeado, prolongara ruas igualmente animadas. 0 Rio da Prata e um espe-lho grande e preguic;oso, via para a Europa que os Portugueses do Uruguai nao desperdic;aram, num acerto feito de intuic;ao, experiemcia, pequeno calculo; clandestinamente, atribuladamente, de modo bri-lhante e tambem precario, arruinando Cartagena das indias - Veneza Tropical, poder perdido, beleza asfixiante.

    0 aviao faz escala no Rio de Janeiro. Sobrevoa a cidade o suficiente para que eu diga: ao diabo os compromissos, e melhor parar. Vi do ceu.

    Estas cidades sao como sao pelo primeiro gesto: lugares escolhidos com sabedoria antiga como a de um desenho espanhol (trac;ado de que as regras se perdem no tempo, egipcias, gregas, romanas e medievais, re-novadas pelo C6digo Filipino, arranha-ceus e fragmentac;ao incluidos sem sobressalto). 0 gesto Portuguese mais brando mas igualmente definitivo. Menos "construir tudo": o que a Natureza da nao precisa de ser feito.

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  • Calculo, preguic;a, comunhao.

    As cidades fundadas pelos Portugueses na America do Sui, ou na india, ou nao importa onde, engastam-se em sitios amaveis e inexpugnaveis. 0 que se vai construindo convive estreitamente com a Natureza. A sua geometria simples e urn complemento rigoroso, dependente e trans-formador. Nao ha grandes cais, nem ruas muito largas, nem prac;a dos Poderes, nem fronteiras construidas. Os muros de suporte fundem-se com rochas pontiagudas e enormes, montes sagrados, animais ou esfinges. As praias sao o corac;ao da cidade, nada e sobretudo conti-nuo, ou fechado, ou sistematico. A cidade e uma serpente em terrene dificil ou ondulado. Ha sempre uma encosta a amparar fragilidades e arrogancias da Arquitectura. Vale a pena reestudar esta forma de construir. E e urgente: a intuic;ao nao explica nem ensina.

    52 01 textos por Alvaro Siza

  • r ,.,;., l

    015.1988 10 Arquitectura: Chiado (1)

    Recuperac,:ao da Area Sinistrada do Chiado: dois meses ap6s o incemdio de 25 de Agosto de 1988. Aparentemente nao existe, para o Chiado, razao de profunda mudanga; isto e, tratar-se-a de uma recuperagao sujeita a cor-recQ{jes e a pormenores transformadores. A vontade de alguns projectistas nao tern possibilidades nem /egitimidade para u/tra-passar, significativamente, o ritmo de evo/ugao de uma cidade e dos seus agentes de transformagao, sob pena, bastantes vezes experimentada, de fracasso ou de sucesso efemero.

    Pub. in Revista Confidencial, Lisboa, e tb in [Skira], p. 183.

    Pedem-me para falar do Chiado

    Pedem-me para falar do Chiado; provavelmente de como devera ser - na minha opiniao - a reconstruc;ao dos dezoito edificios destrufdos pelo fogo. Acontece que quase nao tenho opiniao, como quase nao tenho opiniao sobre qualquer obra a realizar cujos problemas nao co-nhec;a com suficiente rigor.

    E certo que urn projecto parte sempre de uma ideia intufda, indepen-dentemente do conhecimento mais ou menos profunda de objectivos e de condicionantes. Mas dessa intuh;ao s6 pode nascer uma subjectiva (imperfeita, ou incompleta) partitura. No desenvolvimento dos temas se vai conformando urn apoio interior, subjacente, ao qual sempre se regressa, mesmo se por oposic;ao.

    Mas nao sendo urn projecto de Arquitectura o mesmo que urn concerto de jazz - os meus "momentos" nao sao objectivo, mas meio -, seria inutil e inconveniente falar de intuic;oes, para Ia do que ja foi referido num contexto de debate imediato e distants.

    Aparentemente nao existe, para o Chiado, razao de profunda mudanc;a; isto e, tratar-se-a de uma recuperac;ao sujeita a correcc;oes e a por-menores transformadores. A vontade de alguns projectistas nao tern

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  • possibilidades nem legitimidade para ultrapassar, significativamente, o ritmo de evoluc;ao de uma cidade e dos seus agentes de transfor-mac;ao, sob pena, bastantesvezes experlmente~pa; didre~ce~.s~gpu de sucesso efemero.

    lsto tem pouco a ver com formas, que sao coisa que se desprende sem dificuldade, ainda que com (demasiado) sobressalto; mas muito com a responsabilidade e a legitimidade das decisoes politicas, com a competencia alargada a todas as disciplinas.

    No que respeita ao desenho, e como quase sempre acontece em projectos de ambito limitado, o essencial da sua d.efini

  • r ' If

    016.19881116 Cidades: Santiago (1), Familia, Viagens

    Tudo parecia construido para glorificac;ao de dois ou tres vultos paralisados, peregrinos, satelites de movimento imperceptive/, mudos, os pes a dez centimetros do solo, sabre outra capa provavel.

    Pub, in [E/ectaL p, 75, [Skira], p, 127 e [Figueirinhas]

    Santiago

    A viagem de ferias da familia (em 1948?) incluiu Santiago.

    lrei a Santiago, disse o meu pai. Rodeavamos a Catedral, uma pra

  • 56 01 textos por Alvaro Siza

  • 017.19881119 Familia

    0 ponto alto do serao, ana ap6s ana, e a Ceia dos Cardeais. A familia aguarda ansiosamente as passagens arrebatadas que conhece de cor. Todos os anos o tio solteiro improvisa um tro-cadi/ho - igual e na mesma deixa - e a familia protesta. (. . .) Um dia um amigo da mesma idade segreda-me: nao existe Menino Jesus! Ganho um choque e o primeiro segredo, en volta numa especie de remorso.

    Pub. in [E/ecta], p. 76.

    Todos os Natais da casa da Av6

    Mesa grande, toalha de linho, canja, bacalhau "ingles" com azeite fervido, peru recheado, champanhe, fruta cristalizada, pinh6es, raba-nadas, formigos, arroz dace. E tamaras.

    Uma quantidade de tios e primos e irmaos, velas verdadeiras, vidros autenticos na arvore de Natal, ao pe do presepio todos os anos au-mentado. Sobressalto.

    Depois da ceia e de muita conversa cruzada, a familia distribui-se ge-ometricamente pelas cadeiras da sala de visitas, cortinas vermelho Ticiano, em frente a uma mesa de toalha especial. A tia professora de piano - solfejo permanente atravessando as paredes da casa - toea valsas e nocturnos de Chopin. Palmas. N6s na primeira fila. 0 Pai canta o Pr61ogo dos Palha9os, bela voz de baritono, anima o velho vio-lino, saido uma vez par ana da caixa cor de rata.

    0 ponto alto do serao, ana ap6s ana, e a Ceia dos Cardeais. A fami-lia aguarda ansiosamente as passagens arrebatadas que conhece de cor. Todos os anos o tio solteiro improvisa um trocadilho - igual e na mesma deixa - e a familia protesta. Nunca saberei se existe indigna-yao ou jogo de cora de teatro.

    Mas os meninos estao encantados com a diferen9a daquele dia, de

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  • vez em quando espreitam as excitantes actividades paralelas da sala de jantar: apanhar migalhas, levantar toalha, arrumar os restos no mosqueiro, em recipientes cobertos com panes de tecido branquis-simo, varrer, cantar.

    Na sala de visitas, o irmao mais novo, o menos inibido, declama o Passeio de Santo Antonio, poemas terriveis de Antonio Nobre e Eugenio de Castro, ou Almeida Garrett - As Asas Brancas, ainda nao perdidas.

    Depois, a Missa do Galo, muitos cumprimentos, todos os habitantes de Matosinhos sao vizinhos ate metade dos anos quarenta.

    No dia seguinte desembrulham-se os presentes do Menino Jesus, mais almoyo, mais jantar, mais visitas.

    0 medico da familia, o senhor da Farmacia Moderna, parentes que vejo uma vez por ano, amigos dos meus pais muito bem educados (como estas crescido!).

    Um dia um amigo da mesma idade segreda-me: nao existe Menino Jesus! Ganho um cheque e o primeiro segredo, envolto numa espe-cie de remorse.

    Depois, parece que de repente, desaparece muita gente, e a mesa grande, e as empregadas a volta, o segredo, o encantamento, as ca-deiras alinhadas na sala de visitas e o livre de Julio Dantas.

    58 01 textos por Alvaro Siza

  • r G

    018.1989 04 00 Cidades

    Sobre o trabalho no estrangeiro na decada posterior ao 25 de Abril de 1974. E possivel que as cidades que convidam arquitectos estran-geiros deles esperem o oposto do que ai se faz, exorcizando o conflituoso e fecundo cruzamento de culturas que o mundo do trabalho protagoniza. (. . .). Mas tal nao concede o desenho, natura/mente, nao /he sendo possivel senao agir nas margens do que se move.

    Pub. in A+U, Architecture and Urbanisme (Alvaro Siza, 1954-1988, Junho 1989. Pub. tb in [Eiecta], p.78, [Skira], p. 201, [UPC], p. 65, [Figueirinhas] e [Saint-Etiemne], p. 32.

    Outras Cidades

    Os ultimos dez anos de actividade profissional foram dedicados, pre-dominantemente, a outras cidades que nao a minha.

    Cidades bem diferentes.

    Rigorosa e variada Berlim - ruas severas de Kreuzberg, pedac;os de nascimento do movimento moderno, algumas obras de sintese bri-lhante, fabricas monumentais, jardins, lagos, ruinas; Haia feita a n3gua e esquadro, onde submerses obstaculos obrigam a torcer a quadri-cula, logo atravessada por longas diagonais; Caserta e a cavalgada de Vanvitelli, estrutura horizontal sobreposta a montes e vales, rodeando por quil6metros os jardins do Palacio; indescritivel Napoles, beira-mar deserta nas manhas de domingo, quando chega a barco de Palermo; Salzburgo e as legioes de turistas idosos; Salemi, cidade para um filme de Pasolini; au Santiago humida e negra e doirada; longos poentes de Veneza, onde cada monumento e um detalhe; Macau de antiquissimos cruzamentos; Alcoy; Sevilha, eu sei Ia.

    Leio as criticas. Ouc;o da estranheza de nao se encontrar em Berlim um s6 dos delicados trabalhos de madeira de projectos anteriores; ou em

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  • Macau os fn3geis quarteiroes do Porto (sobre que gran ito?). Por vezes a culpa e atribuida aos arquitectos estrangeiros que comigo trabalharam, aos quais, ao contrario, devo muito do que aprendi, e ainda apoio ines-quecivel, paciencia no Iongo processo de urn projecto, traduc;ao do que nao se apreende imediatamente, como desejava e necessitava.

    Pela minha parte, estranho que a poucos interesse, vindo de maos de outras terras, o encantamento dos mil cinzentos de reboco, ou do tijolo enegrecido, dos grandes muros sem janelas, ou das esquadrias de ma-deira de pesada secc;ao; dos ritmos invariaveis de janelas, que s6 se rompem, explodindo, no dobrar das esquinas, ou onde algo exterior a Arquitectura acontece. Paciencia.

    E possivel que as cidades que convidam arquitectos estrangeiros deles esperem o oposto do que ai se faz, exorcizando o conflituoso e fecundo cruzamento de culturas que o mundo do trabalho protagoniza. Seria belo fixar as sinteses que se adivinham ou supoem, universalizar as surpresas de luz que o sol do Sui concede. Mas tal nao concede o desenho, naturalmente, nao lhe sendo possivel senao agir nas mar-gens do que se move.

    Mantem-se o precario prazer de trabalhar com os maravilhosos arte-saos do Norte - estucadores, carpinteiros, pedreiros, esses pedreiros que levantam padieiras de 5 m com tres paus, e as poisam sobre os vaos, cantando musica antiquissima, como no Egipto cantavam os construtores de piramides. lgualmente satisfaz o trabalho com os me-ticulosos operarios da Holanda, emigrantes ou nao, os que juntam o que de forma programada a industria produz. Ainda que afecte a Arquitectura - e os arquitectos - a perda gradual do modo como eles, com maos que foram as nossas, lentamente, pacientemente, para alem do desenho transformavam.

    A eles a minha homenagem.

    60 01 textos por Alvaro Siza

  • r f 019.1989 04 00 Outros Arquitectos: Gregotti (1)

    Retrato breve de Vittorio Gregotti. Vittorio apreende as coisas - e projecta - com a rapidez do relampago. Depois espera, o corpo inclinado, ligeiramente di-vertido, ligeiramente irritado com a demora. Cezanne.

    Pub. in Gregotti Associalti 1973-1988 a cura di P. Colao i G.Vragnaz, Electa, Milano, 1990, p. 339. Tb in [Skira). p. 87 e [UPC], p. 101.

    Gregotti

    Nao consigo desenhar um retrato preciso. S6 um momenta, e outro momenta, em tempo de trabalho de equipa. Vittorio apreende as coi-sas - e projecta - com a rapidez do relampago. Depois espera, o corpo inclinado, ligeiramente divertido, ligeiramente irritado com a de-mora. Cezanne.

    Levanta o calcanhar de um dos pes, enquanto o outro paisa como a sapata de um predio. A perna vibra em oscilav5es verticais muito ra-pidas, de ritmo constante, como a biela de uma locomotiva. 0 soalho geme, uma vez por outra ha um tinir de capos demasiado pr6ximos, esperamos tudo, um terramoto ou um bater de asas.

    Chegamos finalmente a uma conclusao. Levanta-se, dois dedos no ar, um sorriso de alfvio.

    61

  • 62 01 textos por Alvaro Siza

  • r I

    020.1989 05 25 Arquitectura: Chiado (2)

    E tudo igual? Ha gente desiludida, as mantras sao mon6tonas, diz-se, falta urn toque de modernismo. Os que melhor veem, notam os caixilhos dup/os e outras coisas, e mais ainda os que Ia vivem. Quem melhor vive nao nota nada. Nem e preciso.

    Pub. in Lotus lnternacional N.0 64, 1989. E tb in [E/ecta], p.81, in [Skira], p. 185, in [Saint-Etienne], p. 26, em Alvaro Siza 1986-1995, Editorial BLAU, Lisboa, 1995 (dist. Portugal e Brasil), Editorial Gustavo Gili (distribuir,:ao internacional) e em City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/Birkhauser Verlag, 1994, p. 158 e 164.

    Chiado: 0 que e, o que sera ...

    Oquee Ruinas. Fachadas descarnadas e buracos que libertam muros de suporte antiquissimos, bocas de misteriosas galerias. Um esqueleto be-lissimo e incomplete, um objecto frio e abstracto, a revelar Lisboa. Uma especie de espelho que nao reflecte. E gente apressada, ou gente a ver pedras, gruas, operarios.

    0 que pode ser Plataforma de distribui

  • 0 que sera lgual ao que era? Ha um toque de falsidade inevitavel. Um ar de ma-queta exposta ao Tempo, propositado, apto a diluir-se.

    Na Rua Garrett, a esquerda e ao chegar ao Hotel do Chiado, nota-se um portal magnifico em calcaria, metal, madeira, vidro e espelhos. Este portal abre sabre uma alta Galeria, e ha luz ao fundo. Apetece entrar, ainda que estejam ausentes neon, paineis publicitarios, altifa-lantes e marchas populares. Ha luz natural, interrompendo a fachada de sisudo desenho Pombalino, gente cruzando a Galeria, em contra-luz; penumbra e reflexos.

    Ao fundo reaparece a fachada do Hotel, hibrida e de novo alterada, sem grande convicc;ao, como anos atras. Abre as brac;os e ergue a cabec;a que foi lgreja. Adivinham-se as mornos ambientes par de-tras das cortinas. As janelas repetidas lutam de igual para igual com o muro revestido a calcaria, ha porteiros fardados, moradores, homens de neg6cio, casais, estrangeiros, vendedores de livros pornograticos, bares, restaurantes, tapec;arias e doirados, musica par detras do silen-cio. Nos andares superiores, as janelas nada revelam, a nao serum au outro h6spede que afasta a cortina e espreita, olhar inquieto. E esse olhar enche o espac;o. Na Rua Nova do Almada passam multidoes, uma torrente une a Escada de S. Francisco a Escada Novissima, desce a Rua do Crucifixo, subdi-vide-se junto ao portal do Metropolitano- marmore negro e rosa sabre as janelas libertadas, porta que nao parece nova, rapidamente bac;a e habitual.

    A Rua do Crucifixo e menos cinzenta, ha antiquarios, barbeiros, bares, floristas e papelarias. Bazares e, ao fundo, uma entrada do Hotel, auto-m6veis saindo de um parque de estacionamento, e o Grandella onde se passa tudo, de cima a baixo, de um lado ao outro, ate a fachada lumi-nosa da Rua do Carma - grandes vitrais entre esculturas refeitas pelos vizinhos das Belas Artes.

    E tudo igual? Ha gente desiludida, as mantras sao mon6tonas, diz-se, falta um toque de modernismo. Os que melhor veem, notam as cai-xilhos duplos e outras coisas, e mais ainda os que Ia vivem. Quem

    64 01 textos por Alvaro Siza

  • melhor vive nao nota nada. Nem e preciso. E este portal? Urn buraco violento sem frente nem moldura, urn buraco de repente, especie de funil incompleto envolvendo uma escada preciosa, antes do grande desgaste, construtor de boleados incomparaveis e das estranhas man-chas dos rebocos. No ar a ponte do ascensor, cidade alta adivinhada. E a luz no fim da Galeria, cheia de verde e lilaz, como num quadro de Malhoa; e vultos e cadeiras de bambu e bebidas de cor esquisita, o peso dos muros de suporte. Ao per-do-sol a gente que mora por cima abre as janelas, ou atravessa o patio do Carma, sobe as rampas, para nos patamares. A cidade vai subindo devagar, e agora espreita, e logo rasga as cortinas - Tejo, Payo, pobres quarteir6es rigorosos, Castelo, Rossio. Explodem as ogi-vas do Convento. Alguem recorda divertido, a outra previsao.

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  • 66 01 textos por Alvaro Siza

  • r (t

    021.1989 07 00 Outros Arquitectos: Eduardo Souto de Moura (1)

    Por esta e por outras obras, estara Souto de Moura maduro para integrar o arquivo dos "talentos incomunicantes". Alguma coisa, contudo, podera introduzir a duvida nos apo/o-gistas de uma pedagogia "mais transmissive/", na Escola que o formou: naque/e arquivo vai-se reunindo, com excluente aplauso, urn numero preocupante de obras de outros mais velhos, de ou-tros da mesma idade e ainda outros, discipu/os. Parece, afina/, que os incomunicantes comunicam.

    Souto de Moura

    1. Para a quase totalidade dos membros do juri, contou-me alguem, o projecto premiado constituia um misterio; poderia ser, dizia-se, de algum arquitecto portuense anterior ao "lnquerito"1

    Houve perplexidade e alguma inquietac;ao ao surgir, aberto o so-brescrito, o nome de um recem-diplomado quase desconhecido. No entanto, Souto de Moura havia ja construido uma pequena habitac;ao no Geres, obra logo consagrada pela critica atenta (publicac;ao em 9H e Obradoiro).

    Nao surpreende esta reacc;ao a um projecto "singular", atendendo a ideia, ja entao bastante generalizada, de uma Escola do Porto caracterizada pela correcc;ao e pela uniformidade, em doses variaveis e convenientes ao louvor, ou a condenac;ao. ldeia confortavelmente sumaria, que de-pais viria a incluir a proclamac;ao de algumas excepc;oes, prontamente arquivadas na gaveta "incomunicante excesso de talento".

    1 0 lnquerito a Arquitectura Regional Portuguesa foi publicado em 1961 pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, como titulo Arquitectura Popular em Portugal. A realiza

  • 2. Enquanto estudante da Escola do Porto, Souto de Moura foi urn dos insatisfeitos com a orientac;ao entao dominante, a qual prolongava inde-finidamente uma suposta ilegitimidade do "desenho", contraposto a uma pratica pedag6gica orientada ao impulse de mudanc;a social e polftica. Nao serei eu a repudiar esse memento da Escola, de que a coerencia escapa facilmente a uma apreciac;ao duplamente distante; nem outros que o viveram desconhecerao hoje a complementaridade de diferen-tes vivencias, de novo as confundindo com descomprometimento. A pratica dos anos posteriores a Revoluc;ao de 74, finalmente e por instantes, viria a projectar a Forma das Contradic;oes - luminosa, im-perfeita, fecunda.

    Foi entao que Souto de Moura passou no meu escrit6rio, colaborando no projecto SAAL2 de Sao Victor e outros. Depressa compreendi, com perfido desgosto e mSiior alegria, que nao tinha colaborador para muito tempo.

    3. Observem-se os esquissos feitos por Souto de Moura quando, a meu pedido, visitamos a obra. 0 desenho e firme, esquematico e denso. Traduz a clareza da ldeia orientadora do Projecto -tal como se apresenta, depois de concluido este. Ao desenhar, a sequencia de aparecimento dos riscos foi recons-tituindo, julgo que por ordem inversa, a construc;ao dessa ldeia; terminando onde havia comec;ado, ao expor dependencias e autono-mia - a ser justa a minha interpretac;ao.

    De dimensao aparentemente reduzida, o edificio articula os elementos contiguos - jardim, muros e casa oitocentista3 , torre de apartamentos

    2 0 Servic;:o Ambulat6rio de Apoio Local foi criado pela Secretaria de Estado da Habitac;:ao ap6s a Revoluc;:ao de Abril de 1974, sendo Secretario de Estado Nunc Portas, e dissolvido em 1976. Garantia o apoio tecnico e juridico as Associac;:oes de Moradores entao constituidas, para urgente melhoria das condic;:oes de habitac;:ao.

    3 A casa e o jardim adquiridos pela Secretaria de Estado da Cultura foram desenhados par Marques da Silva, o mais influente arquitecto portuense da viragem do seculo. Formado em Paris, Prix de Rome, Marques da Silva desenhou alguns dos mais importantes edificios publicos do Porto e foi Director da Escola de Belas-Artes. Quase todos as protagonistas do Modernismo Portuense foram seus discipulos e passaram pelo seu atelier.

    68 01 textos por Alvaro Siza

  • r ,- .. de recente constru~tao, muros e espa9os que a envolvem - tornando intencional o que antes nao o era. Comporta, quando se isola em corpo inteiro e composto -do geral ao particular - a escala apropriada ao desencadear de relac;oes. Exclui a condi9ao de anexo, sem afectar a presenc;a da casa-mae; deter-mina diferentes leituras de preponderancia, sucessivamente evidentes e precarias.

    0 sentimento que esta Arquitectura transmite e de serenidade. No en-tanto, e par instantes, revela-se quase ins61ita. Creio que esta segunda "natureza" da Arquitectura de Souto de Moura deve muito a comple-xidade e singularidade da sua materializa9ao: granito do Norte, tijolo de fabrico artesanal do Sui, perfis de a9o inoxidavel importados, betao descofrado de cores inesperadas, madeira africana intensamente vermelha, equipamentos de iluminac;ao e de condicionamento de ar distribuidos sem preconceito, estuques com a execu9ao primorosa dos homens do Alto Minho.

    Ninguem mais vejo querer e poder utilizar, em area tao limitada, uma tao vasta gama de materiais, cores, texturas; multiplicam-se as juntas - momentos de transformac;ao do desenho.

    4. 0 programa do Centro Cultural distribui-se par dais pisos de igual superficie e de planta sensivelmente rectangular. 0 unico acidente pla-nimetrico corresponde a descontinuidade imposta a urn dos pianos verticais, a qual determina o acesso ao edificio.

    0 piso terreo e ocupado pelos espa9os de distribui9ao e de exposi9ao, em cujos tapas se iniciam as rampas dos dais anfiteatros.

    0 piso inferior e longitudinalmente subdividido e engloba os anfiteatros de dupla altura e as areas de servic;os. Desta distribui9ao de programa resulta urn volume contido, que mal se desprende dos muros de ve-da~tao do jardim. Sabre este volume explodem os equipamentos. Os alicerces tomam a forma subterranea de uma ponte, sente-se, sob os pes, o percurso das raizes das arvores.

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  • Os pianos rectangulares verticais e horizontais que modelam volume e espac;os internos relacionam-se por gradual transic;ao, por juntas, por ruptura, mantendo uma constante capacidade de autonomizac;ao. As tensoes resultantes evocam a componente neoplastica de urn Mies; a critica a isso se tern referido, acerituando a novidade contempora-nea desta influencia. Mas evocam igualmente a materialidade eo peso que, voluntariamente e antes, acompanham o impulso centrifugador das casas usonianas de Wright.

    Contudo, a articulac;ao dos pianos geometricos nao tern aqui origem num nucleo interior, como em Wright, a partir do corac;ao - chamine -ou, de forma mais fluida, em Mies. Antes reage a epis6dios exteriores, remetendo a urn Mies contextual, que tambem existiu, envolvendo as relac;oes entre este e o Wright de Chicago.

    E inevitavel reconhecer a singularidade do percurso de Souto de Moura, e tambem o que nele se explica pela formac;ao academica, num con-texte momentaneo de Escola entregue as grandes tarefas da Cidade do Porto, entre fases intensas de extroversao e de introversao4

    5. A revisita a Mies nao constitui, para Souto de Moura, o simples alargamento de referencias exigido por uma gerac;ao mais inquieta e menos preconceituosa, ou menos "espontaneamente her6ica". Nesse reencontro perpassa urn Iucido e apesar de tudo apoiado percurso de formac;ao, que inclui o assumir de uma sequencia de pesquisas indi-viduais e colectivas, remetendo pelo menos, ou sobretudo, a algumas obras portuenses do final dos anos 50- particularmente a obra-chave daquele periodo: o Pavilhao de Tenis da Quinta da Conceic;ao de Fernando Tavora.

    Por ordem inversa, como nos esquissos que antes referi, reconhecemos - desmontada - a complexa construc;ao das raizes da contempora-neidade: internacionalismo proscrito, entusiasticamente apreendido

    4 As equipes de arquitectura do SAAL integravam professores e estudantes das Escolas de Arquitectura de Lisboa e do Porto. Essas equipes iniciaram projectos que, na Cidade do Porto, envolviam vastas areas do Centro Hist6rico e da Periferia.

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  • dentro e fora da Escola e das fronteiras, ecos e participac;ao no debate do post-guerra, neorealismo, dissoluc;ao do ClAM, redescoberta mara-vilhada da arquitectura vernacular, de Wright, de Aalto. Fundamentos de uma arquitectura de ecleticismo comprometido, muito para alem do debate disciplinar, de que um crescente magnetismo potencializa os fragmentos.

    6. Par esta e par outras obras, estara Souto de Moura maduro para in-tegrar o arquivo dos "talentos incomunicantes". Alguma coisa, contudo, podera introduzir a duvida nos apologistas de uma pedagogia "mais transmissive!", na Escola que o formou: naquele arquivo vai-se reunindo, com excluente aplauso, um numero preocu-pante de obras de outros mais velhos, de outros da mesma idade e ainda outros, discfpulos. Parece, afinal, que os incomunicantes comunicam.

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  • ' 72 01 textos por Alvaro Slza L_~-- ~~-- --~-~--

  • 022.1990 08 09 Ensino, Desenho

    As duas primeiras semanas foram dificeis: o carvao afiadis-simo parlia, a meia tinta manchava, a bola de miolo de pao agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses tro

  • branco cristalino, como semi-cerrar os olhos ou apreender, brayo es-tendido, as propory6es exactas. Tinha uma tecnica de precisao impressionante: figuras nitidamente re-cortadas sabre o papel, em linhas rectas, zonas de sombra delimitadas por dais trayOS finissimos, logo preenchidos pelo carvao deitado; ra-pido afago, por vezes com o flanco da mao, produzindo uma meia tinta de transparemcia absoluta sabre a textura inalterada do papel lngres. As duas primeiras semanas foram diflceis: o carvao afiadlssimo par-tia, a meia tinta manchava, a bola de miolo de pao agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses troyavam de n6s, distorcendo cons-tantemente o sorriso serenlssimo, aumentando a altura da testa ou revolvendo tumultuosamente os cabelos encaracolados No fim da segunda semana o lsolino Vaz levou-nos a praia de Leya. Nao se falou em desenho. Jogamos a bola e corremos contra o vento, ate ao limite do folego. Deitados na areia, seguimos com olhos es-pantados as passagens constantes e cadenciadas de um Mestre sem fadiga, ate que o ceu e o mar se fizeram lilazes. Provavelmente este exerclcio preparava uma nova aprendizagem: como fixar o carvao, que sempre ameayava seguir a brisa da janela sabre o Rio Douro. Compramos um objecto incrivelmente engenhoso: dais tubas de metal de 3 millmetros de diametro e 100 millmetros de comprimento, articulados, para mais facil transporte em caixa de car-tao branco. lntroduzia-se uma ponta no frasco de fixativo Legrand, comprado na papelaria Azevedo; na outra soprava-se com brandura. 0 sopro devia ser continuo e de igual intensidade. Nas primeiras ex-periencias as superficies sombreadas do carvao tornavam-se bayas, po~tilhadas por estranhas manchas organicas, ou empastadas, ou brilhantes aqui e ali, ou amareladas, como verniz barato sabre as ma-deiras da Rua da Picaria, ou como o papel de um cigarro sem filtro e mal fumado. 0 lsolino exemplificava. No contra luz da janela uma fina poeira doirada poisava, mansamente, sabre Atletas, lmperadores, Deuses e Cortesas. Pouco a pouco, quase sem dar por isso, o carvao comeyou a nao par-tir, o papel a nao manchar, o miolo de pao a manter a plasticidade, o folego a aumentar. E a confianya. 0 Rio Douro tornara-se tranquiHs-simo, e assim a amizade entre n6s. Todas as manhas segulamos os altos muros de Nova Sintra, passavamos o posto de transformayao

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  • modernista, as janelas ritmadas da Escola do Barao, entre tilias, japo-ne