1 curriculo e epistemologia
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Currículo e Epistemologia | 1
1. Currículo e Epistemologia
ÍNDICE
Ana Altina Cambui Pereira & Maria de Lourdes Oliveira Reis da Silva ...................................................................................................2 Ana Angelita Costa Neves da Rocha ....................................................................................................................................................13 Ana Paula Batalha Ramos & Marcela Moreas de Castro ......................................................................................................................22 André Marcio Picanço Favacho .............................................................................................................................................................33 Arlete Pereira Moura .............................................................................................................................................................................44 Antónia Camilo Cunha ...........................................................................................................................................................................54 Diana Patricia Ferreira de Santana .......................................................................................................................................................59 Eliane Gomes-da-Silva ..........................................................................................................................................................................65 Isac Pimentel Guimarães; Antonio Carlos Ribeiro da Silva & Vilma Geni Slomski ...............................................................................73 José Licínio Backes & Ruth Pavan ........................................................................................................................................................87 Leiva de Figueiredo Viana Leal .............................................................................................................................................................96 Marciana Roberta de Oliveira & Carmen Campoy Scriptori ................................................................................................................106 Marcus Túlio Pinheiro Burnham & Teresinha Fróes ............................................................................................................................115 Maria Auxiliadora de Resende Braga Marques ...................................................................................................................................128 Maria Roseli Gomes Brito de Sá & Maria Antonieta de Campos Tourinho .........................................................................................139 Marília Gabriela de Menezes Guedes; Maria Margarete Sampaio de Carvalho Braga & Maria Eliete Santiago ................................150 Rosana Silva de Moura .......................................................................................................................................................................164 Rosanne Evangelista Dias ..................................................................................................................................................................174 Rui Gomes de Mattos de Mesquita .....................................................................................................................................................183 Sérgio Rafael Barbosa da Silva ...........................................................................................................................................................194 Siomara Borba & Rosa Maria Correa das Neves ................................................................................................................................201 Valdo Barcelos ....................................................................................................................................................................................209
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Ana Altina Cambui Pereira & Maria de Lourdes Oliveira Reis da Silva
Centro Universitário da Bahia - ESTÁCIO FIB
O TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: CONSTRUCTO EPISTEMOLÓGICO NO
CURRÍCULO FORMAÇÃO, VALOR E IMPORTÂNCIA
Neste artigo são apresentados aspectos históricos do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), sua importância, seu valor e suas
possibilidades de construção de saberes como um componente curricular que ganhou importância a partir de 1980, na sociedade do
conhecimento, no contexto de um mundo globalizado. Assim, o processo de aprendizagem ganhou força com ações interativas e dinâmicas,
resultando em uma experiência repleta de incertezas, dúvidas, ambivalências e questionamentos que permeiam o universo acadêmico. As
reflexões partem da perspectiva do TCC como um constructo epistemológico constituído por um conjunto de experiências formativas, capaz
de enriquecer a vida intelectual do formando, na medida em que o conhecimento novo e novas soluções passam a fazer parte da sua vida
social e profissional. Estas reflexões são articuladas com idéias de autores que fortalecem a relação do TCC com o currículo como
narração, avaliado intercriticamente, sem fugir do rigor necessário a toda pesquisa científica. Este estudo possibilitou uma reflexão
aprofundada sobre concepções e conceitos construídos por alunos e professores na experiência do TCC, como um contexto de produção
de sentidos, na relação entre objetos de estudo e pesquisadores. Tomando o pesquisador como produtor de significados mediados por
objetivações e concepções a partir de uma linha teórica escolhida e o TCC como o resultado de construções teórico-epistemológicas em um
campo de coerência conceitual e procedimental. Para compreensão do objeto de estudo foram utilizados dispositivos da pesquisa
qualitativa, com uma abordagem descritiva, de caráter exploratório e de inspiração fenomenológica. Questões norteadoras: Qual a
importância do TCC para a formação pessoal do ser humano? Quais as suas contribuições para a formação do profissional pesquisador?
Quais os valores que o TCC desenvolve no aluno enquanto atividade formativa? Quais as possibilidades de construção de conhecimentos
na experiência do TCC, considerando os saberes teóricos e os da prática? Nas respostas dos entrevistados constatamos a consciência de
que o TCC representa um esforço epistemológico, orientado pela escolha de constructores que norteiam o pesquisador na observação de
fenômenos relacionados com o seu objeto de estudo. Os resultados da pesquisa enfatizam ainda a importância do TCC nas formações
como um componente curricular, em diferentes dimensões do conhecimento; bem como, a necessidade de orientar o aluno de modo seguro
e coerente durante o seu percurso, a fim de que a experiência se configure realmente como um processo de formação.
Palavras-chave: Trabalho de Conclusão de Curso. Currículo. Constructo. Epistemologia.
INTRODUÇÃO
Este artigo versa sobre o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que é um instrumento curricular obrigatório nos cursos
de Graduação e Pós-Graduação e a sua concretização reforça a necessidade de uma construção crítica e segura do tema
que será pesquisado pelo aluno. O processo de aprendizagem implica em avanços, questionamentos constantes, reflexão,
recuos, indagações e postura ética, que são elementos essenciais para a qualidade final que se espera em um TCC.
Trata-se de um trabalho que prepara o aluno para a pesquisa, desenvolve o seu senso crítico, direciona para a
interdisciplinaridade, aumenta a sua capacidade de análise e proporciona uma inserção mais confiante no mercado de
trabalho, quando estes elementos chaves são priorizados.
Trazemos a noção de TCC como um constructo epistemológico, consubstanciada na perspectiva de que, além de uma
experiência solitária, configurada como dispositivo de avaliação e de validação da formação no final do curso, o TCC é uma
produção de conhecimento e de experiências formativas em que o aluno se relaciona com diferentes pontos de vista e com
estudos realizados anteriormente sobre o seu tema de pesquisa.
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Para dar conta desta abordagem, foi feita uma pesquisa bibliográfica e de campo, de caráter exploratório e descritivo, do tipo
qualitativa e de inspiração fenomenológica, realizada nos anos de 2009 e 2010, com professores do Centro Universitário da
Bahia - Estácio FIB e alunos formandos e egressos de cursos de graduação e pós-graduação de instituições de ensino
superior. A abordagem qualitativa propicia a compreensão do problema em estudo e das perspectivas dos sujeitos envolvidos,
em toda a sua complexidade.
É necessário frisar que para realizar uma pesquisa dessa natureza, foi importante tomar como base a diversidade e a
heterogeneidade dos espaços de formação, para compreender o ser humano “em sua condição existencial individual, social e
ecológica simultaneamente”. (GALEFFI, 2009, p. 21). Fizeram parte desta reflexão, os professores e alunos que autorizaram
a divulgação de suas falas, orientadas com perguntas abertas, em entrevistas informais.
Apresentamos os resultados do nosso estudo enfatizando os significados e a importância do TCC para a formação acadêmica
e profissional; bem como no currículo formação; e alguns de seus aspectos no contexto da universidade, como fator de
produção científica. Nas discussões dos resultados das entrevistas trazemos situações que retratam o TCC como um
importante momento de construção epistemológica e de crescimento pessoal para uma ampla formação profissional.
1. SIGNIFICADOS E IMPORTÂNCIA DO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Para a grande maioria dos discentes, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) é a primeira e única produção científica
construída ao longo dos anos na experiência da Graduação. Trata-se de uma construção que segue um rigor epistemológico,
estrutural e metodológico, pautados por normas de trabalho acadêmico, adotadas pelas instituições de ensino superior.
Entretanto, é importante ressaltar que, tanto a instituição formadora quanto os alunos comunguem do mesmo espírito
científico, crítico e participativo, tão essenciais para a elaboração de um TCC, ou seja, que mecanismos de reflexão,
orientação, acompanhamento e de avaliação façam parte dessa rotina acadêmica. “São ensaios teóricos ou pesquisas,
geralmente discursivos e conclusivos, que organizam informações de acordo com uma temática definida” (SUAIA apud
OLIVEIRA, 2003, p. 58). Quanto à denominação do TCC em diferentes formações, Oliveira (2003, p. 58, grifo do autor) traz a
visão de Monteiro dizendo:
A denominação desse tipo de trabalho apresenta controvérsias, uma vez que o senso comum diz que os TCCs são
monografias, os trabalhos de mestrado são dissertações e os trabalhos de doutorados, bem como os de pós-doutorado são
teses. Na verdade, destaca o autor, de acordo com a ISO 690 (1987), „todo item bibliográfico não seriado é uma monografia‟.
Assim, livros, dissertações e teses são monografias.
Esse pensamento reflete a complexidade do TCC, que apresenta diferenciações entre a graduação e a pós-graduação,
pelo nível de extensão, profundidade e exigência, que é particular de cada título pretendido (bacharelado ou licenciatura,
especialização, mestrado e doutorado). Desse modo, o aprendizado que envolve a construção desse trabalho requer dos
formandos algumas características básicas e fundamentais para o sucesso esperado, que são: disciplina, saber conviver com
as incertezas e com os acontecimentos imprevistos, para recuar e avançar, quando for preciso.
Evidentemente o TCC exige que o aluno tenha adquirido durante o seu curso, saberes pedagógicos e epistemológicos
que são cruciais para a sua realização, que segue um rigor técnico-científico. Destarte, é imprescindível um amadurecimento
intelectual para a escolha do tema de pesquisa, que deve atender à área de formação do aluno e ter relevância acadêmica,
trazendo benefícios não só para ele, mas, sobretudo para a sociedade em geral. Além disso, o aluno precisa estar seduzido
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pelo tema e confiante de ter feito a melhor escolha, para que, no percurso de leituras e pesquisas, não sinta necessidade de
mudanças no foco da pesquisa; já que isso poderá acarretar prejuízos em nível de conhecimento e tempo, uma vez que estes
trabalhos são desenvolvidos, na maioria dos cursos, no final da graduação.
Redigir um TCC requer habilidades e competências do aluno, principalmente porque este proporciona, no momento final da
conquista do diploma de nível superior, uma perspectiva de escolha para novos estudos e inserção no mercado de trabalho. A
professora de Planejamento, Recrutamento e Seleção de Pessoal da Pós-Graduação em Administração de Recursos
Humanos da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Cláudia Serrano, salienta a necessidade do aluno “pensar na
graduação como um momento de construção da carreira profissional. Assim, o TCC deve ser pensado como algo que o
diferencie no mercado de trabalho naquele ano em que ele está se formando” (MAGALHÃES, 2010, p.1).
Historicamente, o termo monografia teve “origem no século passado [XIX], a partir de um método de ciências sociais, que
culminou com um trabalho „Monografia da família operária‟, publicado por Le Play em 1855”. (OLIVEIRA, 2003, p. 59). Diante
disso, entendemos que, mesmo sendo um termo que provoca interpretações distintas no meio acadêmico, vale salientar que
a sua característica principal não legitima tais inquietações, porque, fazer uma monografia ou TCC é construir um trabalho
baseado em um só assunto, um problema. Portanto, cabe dizer que o sentido etimológico do termo se mantém preservado:
monós (um só) e grafhein (escrever).
Foi no final de década de 1980 que o TCC se consolidou como prática acadêmica. Neste período, a exigência deste trabalho
se dava nos cursos de Direito, Serviço Social e Psicologia e hoje ele está inserido na grande maioria dos cursos, pois os
benefícios que a sua produção oferece ao educando são indispensáveis para o seu sucesso pessoal e profissional. Para
Anastasiou (2007, p. 56):
os Trabalhos de Conclusão de Curso são sínteses monográficas que constituem verdadeiros desafios aos alunos que, muitas
vezes, precisam demonstrar conhecimentos e habilidades não devidamente desenvolvidas nas aulas vividas durante a
graduação.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 14724 (2005, p. 3), traz definições a respeito dos trabalhos
acadêmicos e seus similares, a saber: (Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), Trabalho de Graduação Interdisciplinar (TGI),
Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização e/ou Aperfeiçoamento e outros). Estes trabalhos representam resultados
“de estudo, devendo expressar conhecimento do assunto escolhido, que deve ser obrigatoriamente emanado da disciplina,
[...]. Deve ser feito sob a coordenação de um orientador.”
2. O TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO NO CURRÍCULO FORMAÇÃO
O processo de ensino na universidade é concebido a partir de funções sociais, históricas, políticas, conjunturais,
epistemológicas e procedimentais. Assim, conceber um ensino articulado com a extensão e a pesquisa são requisitos
importantes para a constante busca do conhecimento, considerando a realidade dos sujeitos aprendentes.
Anastasiou (2007, p. 49) reflete sobre a visão de autores que defendem a necessidade de superação e ruptura da visão
moderna da ciência em direção à pós-moderna, para fugirmos de elementos que ainda hoje circulam no ambiente acadêmico,
que são:
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O reforço e a rigidez do método que se torna tão ou mais importante que o objeto de estudo; o desconhecimento do homem
como sujeito empírico e sua identificação como sujeito epistêmico; um conhecimento factual que não tolera interferência de
valores, dicotomizando sujeito e objeto; a especialização produzindo conhecimento aprofundado de aspectos, porém sem
obter processos integrativos; o senso comum tomado como superficial, ilusório e falso, buscando, em sua ruptura
epistemológica, o salto qualitativo para o conhecimento científico. (Id., 2007, p. 49)
A universidade brasileira sofreu influência da universidade napoleônica, que recebeu esta identificação após a “lei de maio
de 1806, complementada pelo decreto de março de 1808, de Napoleão I, imperador desde 1804”. (CASTANHO, 2000, p. 25).
Nessa universidade, “os cursos se organizam com um período básico e outro profissionalizante, separando a teoria – que
necessariamente vem antes – da prática”. (ANASTASIOU, 2007, p. 50). Esta visão fragmentada da construção do
conhecimento foi disseminada não somente pelas idéias napoleônicas, mas, sobretudo, pelo pensamento moderno, a partir
dos princípios de cientificidade adotados pelo positivismo, que descarta o conhecimento além dos sentidos e da objetividade,
como resíduos inúteis para a ciência. Considerando a revolução científica que o mundo vem assistindo nos últimos tempos,
não podemos deixar que a universidade se renda ao natural envelhecimento do saber, mas sim, contribuir para que esta se
mantenha sempre atualizada, incentivando os seus alunos na busca de novos saberes e de novas conquistas no campo da
construção científica. É necessário, portanto, superar
a dicotomia clássica entre sujeito e objeto, ciências da natureza e ciências do espírito, porque o que está em jogo são os
conhecimentos que se podem alcançar e construir para o benefício e realização dos indivíduos, das sociedades e da espécie
em sua unidade diversa. (GALEFFI, 2009, p. 27).
A “Declaração mundial sobre a educação superior no século XXI: visão e ação”, diz em seu preâmbulo que, na educação
superior, são esperados “todos os tipos de estudos, de formação ou de preparação para a pesquisa [...]” e complementa
dizendo: “de 1960 a 1995, as matrículas no ensino superior cresceram de 13 milhões para 82 milhões, acusando uma
expansão de seis vezes, mais de 500%.” (UNESCO, 1998a).
Anastasiou, inspirando-se em Boaventura de Souza Santos (2007, p. 40) tece considerações sobre a concepção de
conhecimento que permite a transgressão aos pressupostos metodológicos, no sentido de que a experiência associada ao
conhecimento “possibilita o autoconhecimento, sendo auto-biográfico [...] nenhuma forma de conhecimento, é, em si, racional,
portanto dialoga com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas”. Continuando seu diálogo com
diferentes autores, Anastasiou (2007, p. 54) diz:
Para Vieira Pinto (1972) o conhecimento consiste na capacidade de dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la às
necessidades humanas, e a totalidade do conhecimento presente em cada época se constitui pela acumulação de atos
singulares: as distintas pesquisas da realidade. Portanto, é uma síntese determinada pela totalidade existente até aquela
época, histórica e contextualizada, estando em constante alteração.
A partir desses conceitos, fica claro que a organização curricular deve ser bem articulada e dialogada, para que o aluno
possa, de fato, ser ator e não um mero coadjuvante do processo de aprendizagem. Goodson (2008, p. 156) faz um alerta
sobre a diferença entre o currículo como prescrição e o currículo como narração para a formação do indivíduo. Para este
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autor, o currículo como prescrição baseado no conteúdo é uma inércia contextual que “não irá durar em uma ordem mundial
global que muda rapidamente”. O autor ainda acrescenta que este modelo de currículo e
[...] grupos de interesse poderosos estão assim aliados em uma parceria histórica e potente que estrutura o currículo de
maneira básica e efetivamente subverte quaisquer novidades ou reformas que surjam. As prescrições fornecem claras „regras
do jogo‟ para o ensino, e financiamento e recursos estão atados a essas regras. (2008, 150).
Já o currículo como narração ainda se encontra no seu estágio embrionário, porém, vem ganhando forças porque visa
preparar o aluno para a vida, que é o objetivo de todo o processo educacional. O autor defende o “aprendizado narrativo [...]
de vida ou identidade”, como algo “essencial no processo de aprendizado das pessoas durante o curso de uma vida”.
(GOODSON, 2008, p. 152).
As propostas curriculares ganham notoriedade quando são pensadas e articuladas levando em consideração o momento
histórico vigente. Segundo Moreira (2008) o currículo é um conjunto de experiências de aprendizagem que irá contribuir para
a formação da identidade do educando, de maneira contextualizada. E Macedo (2007, p. 24-25) traz a ideia do currículo como
uma construção social, histórico-vivencial, “o principal artefato de concepção e atualização das formações e seus interesses
socioeducacionais”.
Anastasiou (2007, p. 60) contribui para esta discussão, abordando conceitos, como o “Currículo por Grade” e “Currículo
Globalizante”. O primeiro diz respeito a um saber memorizado, fragmentado e o segundo apresenta o aluno no centro das
ações, de maneira processual e autônoma. Assim, o conhecimento deve ser visto como algo dinâmico, em movimento,
contribuindo para a superação de um formato de currículo como grade ou como seleção de conteúdos; facilitando a ação do
aluno na construção do conhecimento e na sua relação com o TCC, não como algo que precisa ser temido e apavorante, mas
como um momento em que ele vivenciará sua relação com outras aprendizagens cuja relevância está, justamente, na
efetivação do que foi experienciado no currículo formação.
Dessa forma, o TCC se configura como um constructo epistemológico de grande relevância no currículo formação e este
exerce incontornável influência sobre a elaboração e a vivência do aluno, em suas elaborações conceituais e metodológicas.
Para tanto, o formando precisa ter adquirido ao longo da sua itinerância acadêmica, saberes teóricos e da prática que possam
contribuir para um trabalho de qualidade, colaborando para a configuração de conhecimentos que o mercado de trabalho
tanto precisa.
Para que o aluno possa construir fundamentos metodológicos adequados a sua elaboração teórica e epistemológica e ao seu
caminho de pesquisa no TCC, foi introduzida nos currículos a disciplina Metodologia Científica, que se configura como um
dispositivo curricular de grande importância para o aluno, imprescindível para a elaboração de um trabalho acadêmico de
qualidade.
Contudo, é necessário que na experiência do TCC o aluno encontre respaldo em todos os componentes curriculares para a
sua fundamentação e que, concomitantemente, possam ser desenvolvidos critérios de cientificidade compatíveis com as
novas proposições do pensamento pós-moderno, que se respalda na concepção de sujeitos, ao mesmo tempo, singulares em
seu modo de ser e plurais na sua relação com a cultura. Sujeitos estes, que se movimentam em um ambiente
multirreferencial, complexo e dinâmico, em suas experiências (con)formadoras e dinamizadoras de práticas e de saberes.
Vale ressaltar que, ao contrário do que muitos alunos pensam quando estão escolhendo o seu tema de estudo, o trabalho de
TCC precisa pautar-se em um conhecimento com o qual o aluno já tenha se relacionado e que já tenha sido objeto de estudo
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durante o curso. Mesmo porque, em se tratando de pesquisa científica, ninguém consegue pesquisar sobre algo que não tem
um conhecimento anterior. Os alunos costumam confundir pesquisa científica com pesquisa bibliográfica, despertam sua
curiosidade sobre coisas as quais nunca estudou e que muitas vezes não estão relacionadas com o seu currículo formação.
É nesse momento que os professores precisam chegar perto do aluno para orientá-lo e ampará-lo, para ajudá-lo a enxergar o
real sentido do TCC, colocando-se como articuladores de saberes e orientadores perspicazes; como agentes de políticas de
relacionamento verdadeiro, no sentido de que o aluno compreenda esse momento como uma etapa construtiva, de
aprendizado, de idas e vindas, de buscas, de dores, angústias e coroamento de uma formação para a vida e para o mundo do
trabalho.
3. INCERTEZAS E CONTRADIÇÕES ATUAIS NA FORMAÇÃO ACADÊMICA
O intelectual canadense Marshall Mcluhan, da Universidade de Toronto criou o conceito de “aldeia global” para retratar, ainda
na década de 1960 os avanços que o mundo via surgir na área de comunicação e tecnologia. Com certeza ele não imaginava
os avanços e revoluções que ainda estariam por vir, principalmente na década de 1980, quando a Guerra Fria “polarizou a
divisão entre países ricos e países pobres [...]”. (CARMO, 2004, p. 52). Neste período, o cientista político Francis Fukuyama
afirmou que o mundo vivia “o fim da história”, por acreditar que a humanidade já tinha visto todos os avanços possíveis,
capazes de resolver os problemas sociais e econômicos que assolava o país. Entretanto, essa tese foi contrariada por
diversos críticos na época, alertando que o capitalismo não estava perdendo forças, mas sim, que estaria dando início as
desigualdades sociais, educacionais e culturais. (Id., passim).
No que diz respeito à educação, Barnett (2005, p. 26) diz:
na universidade medieval [...] estava claro onde se encontravam suas fronteiras. Os muros dos colégios ou outras
comunidades e seus pátios quadrangulares voltavam-se para dentro, afastando o mundo externo. Hoje, as fronteiras da
universidade com o mundo externo não são apenas porosas; desmoronaram completamente. A possível chegada da
universidade virtual apenas vivifica essa tendência; mas não a anuncia.
Considerando os avanços tecnológicos que surgem fortemente a cada dia, percebe-se que a universidade, ao “perder” o limite
de suas fronteiras, os desafios morais sofrem mudanças, já que a comunidade acadêmica vai aos poucos se transformando.
Desse modo e, por estarmos vivendo numa era de supercomplexidade, os desafios impostos pelo mundo globalizado
provocam rupturas, incertezas e, principalmente, despertam para a necessidade de nos mantermos sempre atualizados, de
valorizar a educação continuada, pois a “universidade coloca-se adequadamente sob a bandeira da sociedade do
conhecimento, da sociedade da informação e da sociedade do aprendizado” (BARNETT, 2005, p. 35).
Pela importância dada ao conhecimento atualmente, a universidade está no centro da sociedade. Contudo, é visível que há
uma crise de valores, uma crise de legitimidade, oriunda dos novos tempos e das incertezas que assolam os meios
acadêmicos, econômicos, políticos e sociais. Assim é que “a universidade produz conhecimento que a sociedade aplica ou
não, uma alternativa que, por mais relevante socialmente, é indiferente ou irrelevante para o conhecimento produzido”
(SANTOS, 2004, p. 29).
A capacidade de produzir conhecimento útil para a sociedade requer um compromisso ético e moral, capazes de atender as
demandas que a cada dia são impostas na sociedade do conhecimento, em um mundo globalizado, que, entretanto, produz
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uma gama assustadora de espaços de exclusão social, econômica e educacional, que o currículo como narrativa expõe como
atos de cumplicidade para com as prescrições dominantes.
4. POSICIONAMENTOS DE ALUNOS E PROFESSORES
O conhecimento é construído a partir das interações com o mundo dinâmico e essa interação se dá pelo constante
processo de adaptação, através das ações estabelecidas por cada ser humano, no processo de aprendizagem. As reflexões
que serão apresentadas aqui trazem sentimentos e convicções de professores e de alunos, em relação ao TCC.
Considerando a nossa vivência no processo de orientação do TCC e como professoras dessa disciplina em cursos como
Pedagogia, Ciências Contábeis e Enfermagem, percebemos que os entrevistados encaram o TCC como uma produção
intelectual de grande importância na vida do educando, um esforço epistemológico orientado por constructores que norteiam a
observação dos fenômenos estudados.
A seguir, apresentamos uma fala muito interessante da Prof. Carlene de Moura Brito, Nutricionista e Professora da
Estácio FIB:
o Trabalho de Conclusão de Curso permite sensibilizar os formandos de que a imagem do profissional é também formada
pelo comportamento, comunicação e respeito ao Ser Humano. É de extrema importância por ter a capacidade de levar a
uma auto-avaliação que melhora os aspectos não alcançados durante o período acadêmico.
Essas considerações nos fazem refletir sobre a importância do percurso acadêmico trilhado pelo aluno no decorrer da
graduação, desde as ações comportamentais e atitudinais, até as de caráter ético e conteudista. Reforçando esse
pensamento, a egressa do curso de Enfermagem da Estácio FIB, Solange Barreto Costa e Sá, diz que o TCC “é de grande
relevância para a vida acadêmica, porque proporciona a complementação da formação pessoal e profissional do aluno,
despertando o interesse pela pesquisa e a leitura”.
Outra fala de grande expressividade foi dita pelo Professor do curso de Farmácia da Estácio FIB, José Higídio Lima Neto,
que proporciona uma reflexão mais aprofundada sobre o TCC, desde a sua concepção: qual tema pesquisar? Que orientador
convidar? Como organizar um plano de ação? – Questões estas que permeiam o processo de elaboração desse tipo de
trabalho acadêmico. Assim, cabe refletir sobre a fala do professor:
o Trabalho de Conclusão de Curso é muito importante, pois consegue mexer ao mesmo tempo com os valores essenciais
para a formação do futuro profissional e para o indivíduo no seu dia a dia. O primeiro valor seria a tomada de decisão em
torno do tema que o aluno irá trabalhar; valor que envolve o conhecimento adquirido ao longo de sua caminhada acadêmica
e a definição de seu amor a uma área específica de sua profissão; a escolha do seu orientador onde se envolve confiança,
admiração e a esperança de alcançar o objetivo compartilhado; a organização de um plano de ação envolvendo as etapas a
serem cumpridas durante a realização do TCC; outros valores ainda são: a dedicação e o empenho para atingir o objetivo
final; a perseverança é outro valor a ser considerado, pois às vezes temos que fazer e refazer com objetivo de alcançar a
perfeição e, por fim, a realização, valor adquirido no final, quando o conjunto de todos os demais valores se somarão,
deixando a doce sensação de dever cumprido e a energia renovadora para começar a vida agora como profissional e como
um indivíduo que venceu mais uma etapa de sua existência.
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A abordagem do professor deixa entrever as sensações que os alunos passam para nós, quando, ao iniciar o TCC, o
encaram como uma etapa final de sua formação. E, nesse momento, se deparam com todas as dificuldades de uma
experiência que exige conhecimento prévio e muito estudo, muitas vezes negligenciados durante o curso.
Outro ponto importante desta análise diz respeito às contribuições do TCC para a formação e ao seu caráter avaliativo, que
gera certo nível de estresse nos alunos, por reunir em um só trabalho a necessidade de articulação e conexão das ideias,
conteúdos e aspectos metodológicos. José Renato de Oliveira, egresso de dois cursos de pós-graduação de duas instituições
de ensino superior em Salvador - Bahia (uma pública e outra privada) retrata a sua experiência de amor em relação ao TCC:
Tive a oportunidade de fazer dois TCCs [...]. A sensação ao final é que somos pessoas melhores, capazes, pessoas que
tiveram a capacidade de produzir algo que fica pra vida toda e, mais ainda, cada um desses trabalhos é a base para uma
pesquisa mais aprofundada que pode, inclusive, nortear toda a sua vida acadêmica futura.
[...]. Estudei a Cooperação e o Conflito nas Redes de entidades que se unem em torno de um objetivo comum [...] uma ONG e
o Banco do Brasil. [...] Estudei o Mercado Financeiro Nacional, entre o Lucro e a Responsabilidade Social, centralizando os
estudos no Banco do Brasil, Bradesco e Itaú. Foi um trabalho apaixonante e me orgulho de apresentá-lo sempre que
possível. Em resumo, eu diria que um TCC é a chave através da qual você abre a porta da produção científica, tornando-se
capaz de alçar vôos maiores.
Retratamos também a experiência vivida por Paula Frassinetti Fonseca Ramos, egressa do curso de Pedagogia da Estácio –
FIB, no ano de 2009:
É a minha primeira experiência acadêmica e, portanto, primeiro TCC. A elaboração do TCC para mim (em forma de
Memorial) será uma construção sofrida e ao mesmo tempo prazerosa, pois hoje vejo as minhas experiências com uma visão
mais ampliada pelo curso da "vida" e também pelo Curso de Pedagogia que ora concluo e é uma, entre as diversas marcas
positivas que eu conquistei ao longo da minha existência. Eu não compro bilhetes sorteáveis ou participo de jogos de azar;
penso que já tirei a sorte grande e tenho lotes de "bilhetes premiados", a oportunidade de construir um memorial como TCC é
um deles!"
Além da satisfação do aluno em provar de sua competência, demonstrada pela estudante, a oportunidade de inserção no
mercado de trabalho, é enfatizada por Magalhães (2010): “[...] o TCC também pode se tornar um passaporte para o sucesso
entre os profissionais que já se encontram empregados, facilitando uma efetivação, no caso de estagiários, ou uma
promoção”.
A Professora do curso de Ciências Contábeis da Estácio FIB, Sara Santana, contribui dizendo: “ao longo do desenvolvimento
do TCC, o aluno é orientado e estimulado a dar sua contribuição para o meio científico e empresarial, como fruto do
processo de elaboração e construção do conhecimento”.
Outro ponto que foi destacado nessa pesquisa diz respeito às tensões geradas pelo TCC, tanto para os alunos, quanto
para os professores orientadores, coordenação de curso e Diretoria acadêmica. Os problemas são dos mais variados, a
saber: alunos despreparados metodologicamente; falta de definição do objeto de estudo; ausência de leitura no cotidiano do
aluno, conteúdo superficial e problemas de ordem ortográfica e gramatical.
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Já em relação ao corpo docente, detectamos na nossa jornada acadêmica, problemas do tipo: orientadores despreparados
metodologicamente; falta de cumprimento dos horários durante o processo de orientação; postura rígida com o orientando;
atitudes de descaso e de indiferença quanto à qualidade da produção do aluno; alimentação de falsas crenças quanto à
qualidade do trabalho do aluno, gerando situações de desconforto no momento da apresentação final e julgamento da banca
avaliadora, dentre outros.
Ainda sobre a tensão que o TCC provoca a Prof. Nilma Karla da Silva, Enfermeira e Professora da disciplina de Saúde
Mental do curso de Enfermagem da Estácio – FIB, traz uma reflexão importante sobre um assunto que virou uma pandemia
nos meios acadêmicos, que é o plágio. Reafirmando isso, a professora diz:
observo que os alunos tem muita facilidade de passar de semestre a semestre, pois dispõe de trabalhos via internet / colas /
ctrl + c e ctrl + v. Entretanto, quando chega a vez do famoso TCC, o aluno se vê diante de um trabalho que requer
elementos importantes que, às vezes, não foram valorizados, a exemplo das normas metodológicas. O tumulto e o
nervosismo imperam. Mas, no final, sempre acredito no aluno que além de estudante é um profissional e, assim, a alegria é
imensurável quando tudo acaba. Isso já vimos muito e iremos ver ainda mais.
A compra de trabalhos prontos é uma prática definida por alguns docentes como a “indústria da monografia, que é conduzida
por „ghost-writers‟, pessoas que realizam trabalham acadêmicos como monografias, dissertações [...] mediante pagamentos”
(OLIVEIRA, 2003, p. 55). Vale pontuar a fala de Emerson Macedo - egresso do curso de Enfermagem da Estácio - FIB, que
diz: “aprendi que as coisas mais complicadas não são necessariamente as mais interessantes, mas que não devemos ter
medo de encarar a complexidade quando necessário”. E Emerson complementa dizendo: “aprendi o valor de um pensamento
e o valor de uma ideia”.
Freddo ( 1994, p.73) salienta sobre o TCC:
enquanto realizado ao final do curso de graduação, não é a realização de um sonho dourado de que um dia seremos um país
de cientistas e intelectuais. É, pelo menos, uma tentativa de se colocar no mercado de trabalho pessoas que têm consciência
de si próprias enquanto pessoas e profissionais e que sabem como proceder uma investigação com um mínimo de
embasamento teórico e científico acerca da realidade que os cerca e de sua efetiva posição nesta realidade.
É notório que a cada dia as demandas da sociedade aumentam mais, em todas as áreas: educação, saúde, social,
política, econômica, cultural. Entretanto, encontrar respostas para o “E daí”? É o grande convite ao pensar crítico e
necessário, tendo o TCC uma parcela importante para as respostas aos anseios da sociedade como um todo.
“Os meses de construção do TCC são árduos, exige uma dedicação exclusiva, mas quando se escolhe algo que realmente
tem afinidade, se torna um prazer enorme, fazendo com que o pós-TCC deixe uma saudade imensa”. Estas são palavras de
Jorgeane de Fátima Pereira Cambuí, egressa do curso de Enfermagem da Estácio – FIB.
As alunas do curso de Pedagogia Edilane Souza Brito e Marcele Ribeiro de Oliveira destacaram a importância do TCC como
uma busca de conhecimento, com aprofundamento da relação teoria prática, enfatizando que “é nesse momento que se
descobre a bagagem construída no curso, se desenvolve uma visão ampla da busca pela formação, se vivencia a quebra de
paradigmas”. Elas enfatizaram a escolha do tema como um momento de busca e de mergulho no conhecimento adquirido
durante o curso. Falaram também da interação vivenciada em campo e, no caso delas, o mergulho no ambiente escolar onde
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foi feita a pesquisa, propiciou um corre-corre prazeroso no sentido de verificar como as professoras faziam em sala de aula e
compreender a realidade das crianças e da família. Assim como nos outros cursos da FIB, o TCC é encarado no Curso de
Pedagogia como um momento de grande significado, que se constrói antropologicamente desde o primeiro período de
estudos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo de nossa prática e de nossas observações sobre o TCC nas formações, observamos que concepções e valores
desenvolvidos na sociedade e no contexto familiar interferem de modo crucial no desempenho de alunos em conclusão de
curso. Além do que, em nossa realidade brasileira, o abismo entre ricos e pobres só faz aumentar, gerando sérias distorções
nos processos de formação.
Enquanto recebemos alunos que sabem o que querem com a sua formação, que têm consciência de suas escolhas, dos seus
papéis sociais, muitos chegam à universidade, oriundos de uma educação básica deficitária, sem os conhecimentos
necessários à continuação dos estudos e sem uma real visão do valor da educação superior para a sua vida pessoal e
profissional. Alguns pensam na educação superior como uma forma de obter um título para fazer frente às exigências do
mercado de trabalho e não valorizam a produção do conhecimento.
Observamos que esta realidade não se apresenta apenas para os filhos dos pobres, oriundos de escolas públicas, mas
também, ainda que em menor proporção, entre os filhos dos ricos, que ingressam na universidade sem a devida
compreensão sobre o processo formativo e partem, no final do curso, para as estratégias enganadoras da compra do TCC,
candidatando-se seriamente para a reprovação na vida profissional.
Esses alunos passam pelos períodos de estudo nos cursos sem a devida preocupação com a formação e se deparam no final
com uma exigência para a qual não se prepararam; e não foram, também, instados a isto pelos seus professores, que, a título
de compreensão/benevolência com as suas dificuldades, os deixaram navegar em mares incertos, em busca de uma
aprovação inócua. Não conseguiram compreender o quanto a sua produção no TCC está relacionada com a sua itinerância
acadêmica desde o seu primeiro dia de aula. Esses alunos precisam encontrar em seus professores, parceiros efetivos na
consecução de seus objetivos, e não “amigos” infiéis que os façam acreditar em falsos conceitos de aprendizagem e
formação.
Assim é que, enquanto encontramos situações na experiência formativa do TCC que qualificam o estudante para a sua vida
profissional, outras se revelam muito distantes deste ideal. O mais importante no final deste estudo e das reflexões tecidas
nos contatos com os autores, com estudantes e professores, foi a constatação de que o TCC é uma experiência formadora,
construtiva, incentivadora da produção científica e da construção de novos valores educacionais.
Como educadoras, entendemos que um TCC precisa oferecer condições ao aluno de criar e de ter um novo olhar diante do
problema pesquisado, na busca de respostas que concretizem uma reflexão epistemológica e conceitual, a partir de ações e
atitudes metodológicas coerentes com o objeto de estudo. E que condições seriam essas? Instituições que se comprometam
com a formação a partir de um currículo que dê brechas para a criatividade e para a inovação, com cursos de qualidade e
professores qualificados em nível de conteúdo e de metodologia; desenvolvendo atos de currículo que promovam o aluno a
partir de saberes e competências necessárias ao seu desempenho na sociedade; como profissional consciente de suas
possibilidades e contribuições para a promoção de mudanças sociais qualitativas.
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REFERÊNCIAS
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Ana Angelita Costa Neves da Rocha
Universidade Federal do Rio de Janeiro
QUESTÕES PARA OS ESTUDOS CURRICULARES: POSSÍVEIS DISCUSSÕES
SOBRE A RELAÇÃO DO SUJEITO COM O SABER.
No presente artigo, trazemos algumas discussões de pesquisa de doutoramento (em andamento) cuja problemática é analisar os discursos
da autonomia do conhecimento escolar nos documentos curriculares brasileiros, elaborados por políticas educacionais desde a década de
1990 e direcionados para a Geografia no Ensino Médio. A partir da temática “conhecimento escolar”, buscamos neste texto desenvolver
uma reflexão teórica sobre a categoria “relação com o saber”, concebida por Bernard Charlot (2005, 1997). Tendo em vista os limites deste
texto e de acordo com o objetivo apresentado, o referencial teórico aqui adotado permite focarmos tal categoria analítica, segundo a
perspectiva do campo do currículo, particularmente, daqueles estudos ocupados com a dimensão cultural-simbólica para interpretar as
ações pedagógicas. Para isso, destacamos os recentes trabalhos de Macedo (2008, 2006), em especial, sua proposta de compreender o
currículo como espaço de enunciação. Concordando com esta discussão, estão também os trabalhos de Gabriel (2009, 2008) em que
defende a concepção do conhecimento escolar como enunciado e com isso, valoriza a teoria social do discurso (destaque para o trabalho
de Laclau e Mouffe, 2006) visando à reflexão do poder nos processos de produção, seleção e distribuição dos conteúdos escolares. Com
esta articulação teórica, pretendemos neste texto dialogar com a reflexão de Charlot, em particular, suas apreciações para afirmar a
"relação com o saber” como categoria de análise baseada na discussão sobre a condição do sujeito no projeto de aprender. Nosso intuito é
explorar criticamente a concepção de sujeito em Charlot, questionando os limites e os potenciais desta proposição, de acordo com os
estudos curriculares já mencionados. É necessário lembrar que o campo do currículo permanece avaliando esse debate. Este fato é
evidenciado pelos trabalhos de Moreira (1995), Silva (1997), Macedo (2006), por exemplo, que coincidem na análise sobre a intensidade
desta discussão, sua complexidade e a diversidade de concepções e tradições teóricas no campo. Ao reconhecer estas argumentações
para revisitar a categoria “relação com o saber”, este artigo considera a centralidade do debate das relações de poder na produção do
conhecimento escolar. Portanto, procuramos na perspectiva do currículo como espaço de enunciação e do conhecimento escolar como
enunciado, uma possibilidade para tratar do político na produção de sentidos na escola. Caracterizado como revisão teórica, este é mais um
texto que tenciona a discussão do sujeito, na condição de produtor de sentidos de mundo, isto é, na relação com o saber.
Analizar la relación com el saber es analizar uma relación com
el saber de um sujeto singular inscripto
em um espacio social. (CHARLOT,2006, p.128)
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Foto de Sebastião Salgado , 1996.1
INTRODUÇÃO
Iniciamos este ensaio teórico com duas afirmações bastante objetivas e provocativas. A de Charlot (1997), chamando atenção
para a complexidade e a potencialidade da relação com o saber (RCS) como categoria análise para interpretação dos efeitos
de aprendizagem. A RCS deve ser percebida como condição social para construção de identidade porque como condição
social é uma ação de compartilhar sentidos de mundo. O trecho destacado pode ser tomado pelo potencial do debate que
carrega: a tensão entre o singular (presente em “el saber de um sujeto singular”) e o universal, entre a individuação do sujeito
(a unidade sujeito) e a homogeneização2 do social (em “un espacio”).
A segunda afirmação é o registro de Sebastião Salgado. Uma escola, onde a experiência escolar é protagonizada por
mulheres. Uma escola num contexto de guerra, onde meninas e mulheres, singulares, se fazem com a relação com o saber. A
sensibilidade de Salgado fortalece o entendimento de que a relação com o saber produz singularidades e é – ao mesmo
tempo – uma condição coletiva para interpretar as coisas do mundo. As personagens na cena não são o mesmo, porque são
únicas, mas se reconhecem porque comungam formas de compreender as coisas do mundo.
Neste texto, apresentamos algumas impressões a partir da reflexão de Charlot sobre a “relação com o saber” como categor ia
de análise e propomos revê-la à luz das discussões do currículo que defendem a centralidade da dimensão do cultural para
discutir a experiência escolar3. Aqui nós estamos focando, particularmente, a produção de conhecimento como uma das
muitas experiências escolares e de escolares.
Para nos aproximarmos à proposta de Charlot, observamos dois aspectos da construção desta categoria: o contexto de sua
pesquisa sobre o fracasso escolar que permitiu tal construção e as possibilidades desta categoria de acordo com os
1School in refugee camp. Afghanistan, 1996 Girls study in a makeshift classroom in the Sakhi camp for refugees from neighbouring Tajikistan, in the Mazar-e-Sharif region of Afghanistan. In 1996, this region, also at war, was under the control of the Northern Alliance faction. (Acesso: http://www.unicef.org/salgado/) 2 No entender de Laclau e Mouffe, 2006, esta leitura do “social”, seria a “totalidade absoluta”, ou seja, Charlot força uma dicotomia para compreender a relação entre singular e o todo absolutizado, não o reconhecendo na complexidade. 3 Lembrando que a categoria relação com o saber não é a única que chama a atenção para o processo de escolarização como socialização de sentidos de mundo. No nosso entendimento, Popkewitz (2010), por exemplo, explora a condição relacional do aprender e do ensinar com a expressão “epistemologia social da escolarização”, como perspectiva para a análise da “forma como o conhecimento, no processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de responder ao mundo e as concepções de eu” (IDEM:174). Para o entendimento de epistemologia, o mesmo autor busca associá-lo como prática discursiva para dar conta da compreensão das mudanças de significados. Ao mesmo tempo, Popkewitz afirma que sua preocupação é historicizar a experiência escolar e, com esta proposta, assinala os limites e potencialidades trazidos pela compreensão da dimensão discursiva destes processos.
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argumentos do autor. Organizamos este artigo em duas seções. Na primeira, exploramos o texto de Charlot “La relación com
el saber – elementos para una teoría”, em especial, os momentos dedicados à definição da relação com o saber. Noutra
seção, articulamos nossa leitura de Charlot com algumas afirmativas e propostas de alguns autores do campo do currículo.
Para isto, selecionamos aquelas que teciam algumas tentativas de avaliar o lugar do sujeito com/na perspectiva da “virada
lingüística4” (POPKEWITZ, 2010, 180).
UMA LEITURA DA RELAÇÃO COM O SABER EM BERNARD CHARLOT.
Na introdução do livro, Charlot justifica a emergência da categoria da relação com o saber como alternativa para a
compreensão dos conjuntos de fenômenos chamados e qualificados como “fracasso escolar”. Com a sua equipe, ele defende
a tese de que o fracasso escolar não é individualizado e reconhece que o campo educacional (se referindo às pesquisas
francófilas) não se ocupou em desenvolver a sociologia das subjetividades. Charlot avalia que, os estudos que qualificam o
aluno que “fracassa” na escola, por exemplo, se fazem na dicotomia subjetivo e social e omitem a dimensão antropológica da
experiência escolar.
Para Charlot, a experiência escolar só pode ser compreendida pela relação com o saber (IDEM, 77). E é esta condição
relacional do saber, na sua opinião, que é omitida nos estudos que não consideram a dimensão subjetiva para interpretar os
efeitos do saber (aqui entendidos como aprendizagem). Esta é uma crítica que o autor estende aos teóricos como Piaget. Isto
porque Charlot observa que os marcos fundamentais da matriz teórica piagetiana, por exemplo, desconsideram a
subjetivação (isto é, a unidade sujeito, a singularidade) em favor da lógica evolucionista para compreender as etapas do
desenvolvimento cognitivo. Esta afirmativa pode ser ilustrada na seguinte passagem:
En efecto, se trata fundamentalmente de una psicologia del desarrollo que toma sus referencias de la biologia y la lógica, si
no ignora incluso por completo la dimensión social del desarrollo del niño. (IDEM: 75)
Outros teóricos revisitados por Charlot foram Bourdieu5, Durkheim e Dubet. Para o autor, a despeito das distintas
contribuições destes pensadores, não houve vistas à questão do singular, da individuação (IDEM, 63). E defende: “La
experiencia escolar es la de um sujeto y una sociologia de la experiencia escolar debe ser una sociologia del sujeto” (IDEM).
Sem esgotarmos esta proposição da “sociologia do sujeito” em Charlot, ele, ao rever estes autores, questiona os limites dos
estudos sobre o que se concebe como fracasso escolar, quando se desconsidera que toda relação com o saber é uma
relação simbólica, de construção do eu, dos outros e do mundo.
La relación con el saber es la relación de un sujeito con el mundo, consigo mesmo y con los otros. Es relación con el mundo
como conjunto de significantes pero también como espacio de actividades y se inscribe em el tiempo. (IDEM: 126)
Mais uma vez, no fragmento acima, podemos identificar a associação sujeito à unidade ou ao singular, isto é, uma concepção
do sujeito que radicaliza a dimensão da individualidade. Ainda assim, ao afirmar que toda relação com o saber “Es relación
4 Neste artigo, estamos de acordo com o que Popkewitz afirma como sendo a contribuição da “virada lingüística” nos estudos curriculares. Para
ele, a mudança dos padrões discursivos que constituem os processos escolares é uma perspectiva de investigação, permitida pelas tendências teóricas da virada lingüística. Desta maneira, o foco na mudança dos padrões discursivos é uma estratégia de interpretação dos sistemas culturais, que por sua vez, guardam uma outra abordagem da dimensão do sujeito, não mais sendo um elemento unidade e reificado, nas propostas destes estudos. Tal argumento do autor fica evidente na seguinte afirmativa: “A diferença entre virada lingüística e historicismo , como diz Canning (1994), é uma diferença entre estudar a negritude em vez do negro; a feminilidade em vez das mulheres e a homossexualidade em vez dos homossexuais.” (Popkewitz:2010, 180) 5 Charlot dá destaque à definição de habitus em Bourdieu. Ele chama atenção da categoria agente social e de habitus (como conjunto de
disposições psíquicas estruturadas socialmente). De acordo com a sua leitura de Bourdieu, seriam estas disposições que regeriam as ações do agente social (suas práticas e representações). As posições sociais criam o habitus. “De esta forma, para Bourdieu, lo que da cuenta de lo que ingenuamente se le atribuye a un sujeto es “El espacio de las posiciones sociais”. Bourdieu introduce em su teoria um lugar para lo psíquico, pero este lugar está ocupado por lo social.” (IDEM)
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con el mundo como conjunto de significantes”, o autor lança as bases para fortalecer outra proposição: a de que não existe o
fenômeno chamado de fracasso escolar.
Afirmar que este [fracasso escolar] nón existe, es rechazar este modo de pensar, bajo el cual se deslizan, subrepticiamente,
las ideas de enfermedad, tara congénita, contagio, suceso fatal. Al escuchar esos discursos, se tiene frecuentemente el
sentimiento de que hoy somo „víctimas‟ del fracaso escolar, como antes éramos azotados por la peste. El „fracaso escolar‟ no
es um monstruo agazapado en el fondo de las escuelas, que se abalanza sobre los niños más frágiles, um monstruo que la
investigación debeeria desalojar, domesticar, vencer.(IDEM: 28)
Contudo, como se nota neste fragmento, ele identifica que existe um conjunto de fenômenos associados à idéia de fracasso
escolar. E eles permanecem no argumento do autor justamente quando desenvolve a categoria relação com o saber como
alternativa de interpretação sobre os efeitos do aprender. Para Charlot, a categoria RCS é uma alternativa aos estudos
francófilos que reificam o fracasso escolar. A reificação do fracasso escolar obscurece o entendimento dos processos que
levam o aluno a não aprender e que, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma relação com o saber.
Para Charlot, o mundo é um conjunto de significações compartilhado com outros homens. A relação com o saber (RCS) é
a comunhão de significados, destes sistemas de significados. Uma afirmação que fortalece a perspectiva cultural na
compreensão da relação com o saber como categoria que problematiza a experiência do aprender.
El hombre non tiene un mundo más porque accede al universo de las significaciones, a “lo simbólico”, y es en esse universo
donde se anundan las relacciones entre el sujeto y el mismo. (IDEM:127)
Como nos lembra Gabriel (2008, 2008a), se a relação com o saber é uma relação com o sentido, portanto simbólica, vemos,
mais uma vez que a análise da relação com o saber é uma tarefa de interpretação do cultural. Seguindo esta ordem de idéias,
convém dialogar com a idéia de identidade tal qual trabalhado por Silva (2009) e López (2001).
Para Silva (id.), desde Foucault é possível pensar a relação poder e saber como um vetor interdependente onde não existiria
uma equação imediata saber é poder. Para ele, toda mobilização de saber envolve autorização, governabilidade dos sujeitos,
pois esta mobilização é regulada. Esta argumentação está presente, por exemplo, na seguinte afirmativa:
Ver o currículo como sendo necessariamente constituído por regulação e controle não significa aceitar os regimes de controle
e regulação existentes. Reconhecer a existência entre currículo e governo significa, antes, apresentar uma disposição a
examinar as formas pelas quais esse vínculo é realizado e efetivado. (IDEM: 202)
No fragmento acima, Silva destaca a idéia de regulação e governabilidade de Foucault para problematizar a dominância
simbólica, uma via para interpretar o currículo. Ele entende também que esta compreensão favorece a discussão sobre a
relação saber e poder, especialmente, na discussão sobre identidade.
López (id.), ao buscar também uma concepção mais complexa da relação saber e poder, nos mostra que no ato de qualquer
identificação existe o fracasso da significação plena. Vemos, pois, que esta percepção da identidade (ou melhor, da
identificação) ajuda a pensar que a relação com o saber é uma ação política que não se limita à unidade sujeito e à unidade
significado. Tanto a idéia da articulação currículo e poder em Silva, quanto à problemática da produção da identidade em
López, nos ajudam a rever a impossibilidade da configuração da unidade sujeito, tão cara em Charlot. Na seção seguinte,
iremos explorar esta questão, aos explorarmos os potenciais e limites da relação com o saber como categoria.
A PERSPECTIVA DO CURRÍCULO COM ENUNCIAÇÃO: QUESTÕES PARA PROBLEMATIZAR A RELAÇÃO COM O SABER.
No ensaio teórico “Currículo e identidade social: territórios contestados”, Tomaz Tadeu Silva (2009) defende a
centralidade do cultural para compreender a experiência escolar, a percebendo como experiência espaço-tempo que produz
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sentidos sobre o mundo. Ele, neste texto, reconhece os limites6 da teoria crítica para problematizar esta questão, em função
da solidez do sujeito que aprende e ensina. A dimensão da contingência e do fluxo de significados – experimentados na
escola, por exemplo - é um entendimento que depende de uma compreensão de sujeito - flexível – e do cultural – amorfo -
jamais concreto, jamais estável. No fragmento abaixo, Silva (IDEM) nos apresenta algumas questões emergentes na análise
do poder para discutir o conhecimento e currículo, tendo em vista aqui mais precisamente a RCS.
O currículo é também uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento envolvida no currículo se realiza
através de uma relação entre pessoas. Mas uma relação social também no sentido de que aquele conhecimento que é visto
como uma coisa foi produzida através de relações sociais – e de relações de poder. Esquecer esse processo de produção –
no qual estão envolvidas relações desiguais de poder entre grupos sociais – significa reificar o conhecimento e reificar o
currículo, significa destacar seus aspectos de consumo e não de produção. (IDEM , 194)
Considerando o aspecto produtivo do conhecimento, Silva com a sua leitura foucaultiana nos lembra da dimensão criativa do
conhecimento que exige uma condição relacional. Aliás, ele nos lembra ainda que a relação saber e poder é uma condição
necessária. Quando a análise do processo de produção do conhecimento é omitida, Silva afirma que há um ato negligente
que permite a reificação do conhecimento e do currículo o que não privilegia uma leitura política (isto é, leitura do poder) da
construção do conhecimento que, ao nosso ver, é RCS .
Estas são proposições que, na nossa compreensão, fortalecem o entendimento da relação com saber como categoria que
potencializa problemas sobre o que ensina, ou seja, sobre as relações entre enunciados para se afirmarem –
hegemonicamente- como objetos de ensino. Silva nos apresenta, então, afirmações, que complexificam a relação com saber,
como fica evidente nesta outra citação:
O discurso do currículo, pois, autoriza ou desautoriza, legitima ou deslegitima, inclui ou exclui. E nesse processo somos
produzidos como sujeitos muito particulares, como sujeitos posicionados ao longo desses múltiplos eixos de autoridade,
legitimidade, divisão e representação. É assim que o currículo nos interpela como sujeitos. (IDEM: 196)
Neste outro fragmento, o autor anuncia que os problemas do currículo são da ordem do empoderamento de sentido. Somados
às nossas interpretações do ensaio de Silva, estão os argumentos de Macedo (2006) e Gabriel (2008, 2008a). Destacamos o
recente trabalho de Macedo (2006), em especial, sua proposta de compreender o currículo como espaço de enunciação.
Concordando com esta discussão, estão também os trabalhos de Gabriel (idem) em que defende a concepção do
conhecimento escolar como enunciado e com isso, valoriza a teoria social do discurso (destaque para o trabalho de Laclau e
Mouffe, 2006) visando à reflexão do poder nos processos de produção, seleção e distribuição dos conteúdos escolares.
Tais explorações teóricas, a respeito da análise do poder para problematizar a produção de sentido (no nosso entender é
RCS), expõem uma fragilidade da proposição de Charlot: o autor defende a radicalização da individuação da relação com
saber. A racionalidade de uma suposta autonomia do vetor sujeito > saber impede o entendimento (contraditoriamente
exposto pelo autor) que esta seria uma relação social.
Reconhecendo as possibilidades teóricas para explorar o sujeito em Charlot, confiamos nas leituras de Laclau e Mouffe
(2006), tanto fundamentadas nos trabalhos de Gabriel quanto nos de Macedo, a respeito da necessidade de compreender
que a produção de significados é uma ação política. Este entendimento também está presente em outros ensaios
desenvolvidos por autores como Popkewitz (2010) e Silva (2009) e Larrosa (2002,2010). Em comum, apresentam o
argumento de que a compreensão da experiência escolar é uma interpretação da produção de significados, cuja agência é
6 Silva (IDEM) é categórico ao assinalar, por exemplo, os limites dos estudos neomarxistas para análise da questão do conhecimento. Para ele: “o nexo entre saber e poder é concebido como uma relação externa, com o poder, geralmente, distorcendo a distribuição de conhecimento, mas no qual suposições realistas sobre a natureza deste último aparecem inquestionadas.” (IDEM:190)
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regulada pelo poder. Portanto, o vetor sujeito>poder>saber nesses autores aqui mencionados complexifica (e pontencializa)
uma leitura da relação com o saber como categoria de análise dos efeitos da aprendizagem.
Então, nos limites deste trabalho podemos perceber que o vetor sujeito>poder>saber, quando não explorado por Charlot-
graças a sua escolha pela individuação do sujeito - fortalece uma compreensão de que o aprender conteúdos é uma ação de
produção de sentidos, única, particular e individualizada. Esta fragilidade nos apresenta uma questão interessante: a
individuação do ato de aprender prejudica a compreensão do poder presente no processo de legitimar a “verdade do
conhecimento”?
Ao assumirmos o nosso interesse pelo currículo como espaço de enunciação e pelo conhecimento escolar como enunciado
na condição de pressupostos para interrogar a categoria relação com o saber, temos o intuito de revisitá-la como categoria de
análise para interpretar a conflito político nos processos de validação do conhecimento escolar, presente nos diferentes
documentos de orientação curricular, por exemplo. A respeito deste argumento, nos apoiamos no entendimento de sujeito em
Laclau e Mouffe. Lembrando que a afirmação abaixo foi apresentada por eles após longa análise sobre distintas tradições
teóricas e ideológicas responsáveis pelas mais diversas tentativas de encerrar, ou melhor, suturar, a definição de sujeito.
Todo esto nos hace ver que La especificidad de La categoria de sujeto no puede estabelecerse ni a través de La
absolutización de uma dispersión de “posiciones de sujeto”, ni a través de La unificación igualmente absolutista em torno a um
“sujeto transcendental. (IDEM:154)
No fragmento acima, os autores expõem a impossibilidade da unidade – sujeito ou de uma categoria que pulveriza –
absolutamente- o sujeito. Pela avaliação de diversas matrizes teóricas que tencionaram a discussão do sujeito (modernas e
pós-modernas), eles afirmam que a unidade sujeito seja pela absolutização de classe e seja pela fragmentação radical, é
inviável para servir como modelo de interpretação da disputa política. A contribuição da teoria de Laclau e Mouffe para a
questão do sujeito está em entender a precariedade da prática discursiva, isto é, da fixação de demandas em torno de um
enunciado. Ainda sem explorarmos com profundidade esta concepção de sujeito proposta por Laclau e Mouffe, fica mais
evidente a intenção de autores do campo do currículo (Lopes, 2008; Macedo, 2006, Gabriel, 2008) em adotarem outros
modelos de entendimento da produção de significado em detrimento da discussão clássica do sujeito, por exemplo.
Na medida em que são múltiplos os produtores de textos e discursos – governos, meio acadêmico, práticas escolares,
mercado editorial, grupos sociais os mais diversos e suas interpenetrações –, com poderes assimétricos, são múltiplos os
sentidos e significados em disputa.(LOPES, 2008: 69-70)
O fragmento acima apresenta a centralidade da discussão do poder para complexificar a análise da relação do sujeito com
saber. Isto porque a autora entende que diferentes práticas disputam o poder de validar um significado. Na nossa leitura
essas práticas – encerradas no mercado editorial, nas experiências escolares – são ações construídas pelas demandas em
torno de um enunciado. Portanto, é um entendimento outro do vetor sujeito >poder>saber.
Até aqui assumimos a pertinência de concepções como as de currículo como espaço de enunciação e a de conhecimento
escolar como enunciado e de ambas na condição de pressupostos para revisitar a categoria relação com o saber, tal qual
desenvolvida por Charlot. Expomos a fragilidade desta proposição como categoria porque ela é garantida pelo entendimento
do sujeito como unidade o que prejudica a análise do político, já que esta compreensão fixa de sujeito desconsidera a
precariedade de toda relação de produção simbólica.
Por outro lado, a própria fragilidade da categoria de análise de Charlot, ao garantir a unidade sujeito, é operacional para o
nosso entendimento da relação aluno com os objetos de ensino. É aqui que reside o desafio (e o potencial) da categoria
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relação com o saber. Identificamos o nosso aluno por esta unidade sujeito. A fragilidade do vetor sujeito>saber é, todavia, um
dado operacional para a nossa compreensão das ações voltadas para ensinar e aprender.
Vale a pena reposicionar a categoria RCS nos estudos do campo do currículo, especialmente, diante daqueles interessados
na discussão da produção simbólica? A dupla legitimidade da categoria relação com o saber – a tensão entre a unidade e a
precariedade do sujeito – é garantida nesta interrogação e na nossa leitura de Charlot.
El fracaso escolar no existe, lo que existe son alumnos que han fracasados, situaciones de fracaso, historias escolares que
acaban mal. Son estos alumnos , estas situaciones, estas historias que se trata de analizar, y no um objeto misterioso, ni um
vírus resistente, que habria de llamarse “fracaso escolar”. (IDEM, 28)
Esta afirmativa anuncia uma – vigorosa - critica às teorias da reprodução que marcaram os estudos sobre os fenômenos
ligados ao fracasso escolar. A análise da relação com o saber é uma alternativa ao determinismo dos anos setenta que
deflagrava a associação imediata entre a posição social ao fracasso ou êxito. Como alternativa teórica e metodológica,
Charlot propõe a categoria da relação com o saber para valorizar a dimensão da autonomia do sujeito, em detrimento de
modelos de interpretação que homogenizam a experiência escolar. Tal avaliação do autor sobre as teorias da reprodução (e
também identificada pelo autor como teoria do handicap cultural) podem ser evidenciadas, por exemplo, no trecho abaixo:
La teoria Del handicap sociocultural practica uma lectura “em negativo” de La realidad social, que interpreta em términos de
carencias. El análisis de La relación com El saber implica por El contrario uma lectura “em positivo” de esta realidad: se fija
em la experiência de los alumnos, em su interpretación Del mundo, em su actividad. (IDEM:50).
O que os estudos do currículo nos levam a considerar é a questão do sujeito >poder>saber como vetor de uma equação
contingencial da produção simbólica. O que também nos ajuda a entender que toda relação com o saber é uma relação de
identificação de sentido. Tal proposição fica mais clara quando incorporamos a seguinte afirmativa de López:
O termo identidade deveria ser ressignificado para ser dotado de um maior dinamismo, com o objetivo de considerar as
complexas redes de atos de identificação, que implica o processo de estar sendo Triqui. (IDEM:192)
López credita a Laclau esta compreensão de identidade e reconhece que pertencer a uma comunidade é articular uma cadeia
de identificação para localizar, fixar o outro a partir de um sistema de diferenças. Vemos aqui uma preciosa contribuição para
rever a categoria RCS considerando o vetor saber-poder, sobretudo, como uma tentativa que reposiciona a relação sujeito e
identidade. Este argumento potencializa, no nosso entendimento, a RCS, uma vez que toda relação com o saber é uma
identificação. Nesta ordem de idéias, quando focamos a RCS para problematizarmos os processos de produção, seleção e
consumo de conhecimentos estamos a operar com o universo de identificação, sempre provisório.
Contudo, quando focamos a RCS como categoria para apreender situações de e sobre escolares, estamos também operando
com ambivalência de sentidos de sujeito: da unidade aluno (o particular) ao sujeito universal aluno. Com esta ambivalência,
somos docentes, atuamos com agendas políticas e validamos verdades quando selecionamos o que é legitimo ser objeto de
ensino. Isto significa também que contribuímos para classificar que relação com o saber é permitida na nossa sala de aula.
Com esta proposição, entendemos aqui que a categoria RCS está a serviço da compreensão do fenômeno da aprendizagem
e por isso que ela nos desafia. Afinal, devemos estar atentos à propriedade ambivalente do sujeito convocado para nomear
quem aprende e quem ensina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Neste artigo, tivemos a intenção de rever a categoria Relação com Saber, desenvolvida por Charlot para discutir politicamente
um conjunto de fenômenos classificado como fracasso escolar. Também trouxemos para estas análises algumas
Currículo e Epistemologia | 20
contribuições do campo do currículo para fortalecer esta categoria, como estratégia de reconhecer a importância da dimensão
criativa do saber escolar.
Nesta ordem de idéias, flagramos, ainda que timidamente, o potencial da teoria social do discurso para revisitar a categoria
relação com o saber, considerando sobretudo que ela é uma condição para a produção simbólica. Uma condição envolvida
pela tensão entre a unidade sujeito-saber e a não unidade sujeito-saber. Afinal, no espaço escolar lidamos com sujeitos com
nome, indivíduos.
No encaminhamento final desta escrita, gostaríamos de regatar a imagem de Salgado para quem a diferença não é o outro
homogêneo, opaco. As meninas e mulheres comungam da socialização com o saber compartilhando de uma cadeia de
identificação e ao mesmo tempo produzem esta relação na fronteira da diferença, porque são únicas, singulares. As meninas
e mulheres, em situação de guerra e no espaço-tempo da sala de aula, se entregam à atmosfera da liberdade preconizada
pelo ideal de Relação com Saber. Esta ordem de idéias, é claro, respondem à crença de que a relação com o saber é uma
ação política de emancipação. É com o potencial político que esta categoria encerra que este ensaio foi pensado,
preocupando-se especialmente com a contribuição do vetor sujeito>saber>poder, expressões fundamentais que vem
reposicionando o debate da epistemologia social escolar nos estudos curriculares.
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Currículo e Epistemologia | 22
Ana Paula Batalha Ramos & Marcela Moreas de Castro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected] & [email protected]
PRODUÇÃO DE SENTIDO DE “CONHECIMENTO” NAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS:
FLUXOS QUE LEGITIMAM
O presente texto se propõe a analisar a produção de sentidos de “conhecimento” que circulam no espaço acadêmico, mais especificamente
nas produções dos campos do Currículo e da Didática procurando se afastar de perspectivas teóricas essencialistas. Para tal, dialogamos
com as contribuições da teoria do Discurso (LACLAU & MOUFFE, 1985), as teorias curriculares críticas e pós-críticas cujo foco de análise
trata a questão do conhecimento (LOPES, 1999, 2005, 2007; GABRIEL, 2000, 2006, 2007; LEITE, 2004). Interessa-nos identificar os
diferentes fluxos de sentidos sobre conhecimento que circulam nesses espaços onde se travam as lutas hegemônicas em torno da fixação e
legitimação de sentidos presentes nas políticas de currículo produzidas em diferentes contextos que configuram o discurso acadêmico. Este
trabalho está organizado em três seções: a primeira dedica- se a apresentar o quadro teórico híbrido que substância as reflexões travadas,
destacando algumas ferramentas analíticas que permitem apreender a interface currículo-conhecimento-discurso que dão o tom a reflexão
aqui proposta. Na segunda apresentamos o mapeamento realizado das produções a respeito do tema nos fóruns específicos de discussões
acadêmicas do campo educacional brasileiro, a saber, no âmbito das Reuniões anuais da ANPEd (GTs Currículo e Didática) da última
década; dos artigos publicados em periódicos classificados como Qualis A e nas dissertações e teses produzidas nesse mesmo período
disponíveis no Portal da CAPES. Consideramos o conjunto dessa produção não apenas como o acervo empírico constituinte do campo da
discursividade, objeto de análise nesse estudo, como também um lócus específico de produção de políticas de currículo no qual luta pela
fixação de sentidos traz implicações epistemológicas e políticas que interfere diretamente na disputa pela definição do legítimo e do
hegemônico nas diferentes arenas de ação política em termos da demarcação de sentidos da interface currículo-conhecimento. Na terceira
seção exploramos os fluxos de sentidos sobre o termo conhecimento presentes nesse acervo destacando alguns os mecanismos
discursivos o legitimam. A análise sublinha, como esses mecanismos permitem simultaneamente a manutenção da heterogeneidade dos
sentidos – em particular entre “conhecimento científico”, “conhecimento escolar”, “conhecimento cotidiano” - e a fixação de práticas
articulatórias hegemônicas por meio das quais a hierarquização entre esses diferentes sentidos, nos limites do campo de discursividade em
foco, é reatualizada.
O CAMPO DA DISCURSIVIDADE ALINHANDO O DIÁLOGO
De tal modo nos encontramos na situação paradoxal de que aquilo que constitui a condição de possibilidade de um sistema
significativo - seus limites - é também aquilo que constitui sua condição de impossibilidade - um bloqueio na expansão
contínua do processo de significação. (LACLAU, 1996, p.71)
As discussões travadas no campo do currículo nas duas últimas décadas evidenciam um movimento de reconfiguração do
próprio campo, onde a interface currículo, conhecimento e cultura assumem a centralidade nos debates das teorizações
curriculares críticas e pós-críticas por caminho distintos e com ênfases variadas.
A construção do quadro teórico que alinhava as reflexões desse trabalho assume os riscos de transitar continuamente entre
as teorizações curriculares críticas e pós- críticas sem o congelamento de posições entre elas, nem mesmo para evidenciar a
contribuição de uma ou outra. As contribuições desses estudos aparecem aqui como pano de fundo para tecer nossas
considerações.
Inseridas nessa proposta de diálogo teórico, enveredamos pelo campo da discursividade apostando que a significação de
conhecimento se dá no jogo político que constitui a condição de possibilidade e impossibilidade de um sistema significativo -
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seus limites. Em outras palavras, os processos de significação estão entre fluxos e fixações que caracterizam a luta pela
hegemonia, ainda que provisória. E desse modo, nos afastamos de uma abordagem de “valores universais” por estarem
centrados na positividade dos mesmos sem abrir espaço para problematizações dos processos de negociação pelos quais
passaram. Por isso mesmo, a entrada no campo da discursividade via Laclau e Mouffe (2004) pareceu-nos instigante pela
não negação da tensão entre os extremos contraditórios, e ainda pela condição de questionar as análises que insistem no
congelamento das polaridades.
Nessa direção, nossa proposta é pensar: Em que medida os sentidos particulares de “conhecimento científico”,
“conhecimento escolar”, “conhecimento cotidiano” são fixados, como práticas articulatórias hegemônicas por meio das quais a
hierarquização entre esses diferentes sentidos são legitimadas?
Temos encontrado em nos estudos de Laclau e Mouffe (2004) continuidade de diálogo na dimensão da discursividade
entendendo que o discurso não se reduz a linguagem, ele inclui a materialidade das instituições, a vida humana social,
práticas, produções econômicas, políticas e lingüísticas. Portanto, pensar a produção de sentidos é pensar o conhecimento
numa arena política onde certos discursos fazem pensar e agir, limitando respostas.
Nessa perspectiva, a tentativa de fixar sentidos como universais, em nome de uma legitimidade do discurso, faz parte da luta
hegemônica na qual a categoria de análise pode passar a assumir a condição contingencial de universal. Contudo, entender
esse universal como transitório, inconstante, produto de negociações e disputas políticas se torna relevante por serem pontos
centrais a serem considerados para novas disputas hegemônicas.
Trabalhamos com a ideia de que o que está em jogo são as condições e contextos de produção do conhecimento, ou seja, o
que dá a ele status de “conhecimento científico”, “conhecimento escolar”, “conhecimento cotidiano”; cujo significado se fixa
nos limites dos regimes de verdade que regem o conhecimento científico. E, de certo modo, fixa o sentido de “saber legítimo”
em relação ao “saber não legítimo”.
Nossas escolhas teóricas abalizam nossos posicionamentos: a aposta na fertilidade do hibridismo teórico (LOPES &
MACEDO, 2002; GABRIEL, 2008, 2010) como possibilidade de manter a constante vigilância epistemológica para questionar
o congelamento nas polaridades; a problematização dos sentidos de conhecimento e sua validade incondicional e a entrada
no campo da discursividade como arcabouço teórico que nos ajuda a pensar nas negociações e lutas hegemônicas por
fixações de sentido nos espaços acadêmicos onde circulam diferentes saberes e onde estes são legitimados.
Dialogamos também no terreno da epistemologia social escolar, uma vez que não abrimos mão de pensar a questão da
verdade/validade do conhecimento. Apropriamo-nos dos estudos de GABRIEL(2008), para entendermos conhecimento como
enunciados que posicionam sujeitos em relações assimétricas de poder e, portanto, em conflito constante na disputa pela
hegemonia, ainda que provisória. Por isso tencionamos não perder de vista a dimensão política do saber, a autonomia
epistemológica que confere ao conhecimento legitimidade e, simultaneamente, a contingência dos processos de produção de
saberes. Em outras palavras, o plano epistemológico e político estão articulados no plano da discursividade, dos sentidos
negociados.
Como já dissemos, optamos por analisar os fluxos de sentidos de conhecimento a partir das teorizações do discurso
(LACLAU & MOUFFE, 2004). Isso significa entender que o discurso não tem o status de uma categoria essencializada e,
portanto os sentidos que nos escapam, trazem uma ambiguidade que permite a “guerra de interpretações” num conjunto de
forças divergentes que os constituem.
Nesse quadro de significações, partimos de uma concepção de discurso como totalidade estruturada resultante da prática
articulatória ( LACLAU& MOUFFE, 2004 p.143). Essa afirmação implica a compreensão de que o sistema discursivo é
simultaneamente constitutivo e se constitui pelos deslocamentos que apontam a limitação e a contingência do próprio
Currículo e Epistemologia | 24
processo de significação/identificação e que portanto os sentidos não podem ser pensados fora desse sistema. Ou seja,, o
discurso resultante da prática articulatória corresponde a um sistema de similaridades e diferenciações que provisoriamente
fixam significados e por seu caráter contingente podem ser considerados infinitos, mas ao mesmo tempo, assumindo,
necessariamente, a condição de totalidade estruturada nesse sistema.
O entendimento dessa dimensão do discurso permite reconhecer que a identidade das coisas e dos sujeitos do/no mundo
está para além de identidades plenamente constituídas. Contrariando essa positividade, a incompletude dessas identidades,
oferece-nos possibilidade de vislumbrar os deslocamentos que constituem um sistema de significação e fazem dele, condição
para o entendimento do próprio significado atribuído à identidade das coisas e dos sujeitos.
Nesse movimento os processos de significação ocorrem por meio de um sistema de diferenças linguísticas, onde as cadeias
de diferença e de equivalência nos permitem perceber as nuances da luta política que marca os processos de fixação de
sentido: “algo é o que é somente por meio de suas relações diferenciais com algo diferente” (LACLAU, 2005, p.92). Desse
modo, o que faz a sistematicidade do discurso é justamente seu limite: o momento em que tenho um significante que
simultaneamente articule as equivalências e do mesmo modo me permita pensar nas diferenças que ele contém. No
cruzamento dessas duas lógicas é que se dá o jogo político de significação e fixação de sentidos. Desse modo, aquilo que é
só é possível quando se limita o que não é.
MACEDO (2009) nos ajuda a entender esse processo:
A lógica da equivalência é criada pela presença de uma diferença radical, um exterior constitutivo que fecha
momentaneamente o sistema e cria uma cadeia de equivalência entre os seus elementos diferenciais, que passam a se
articular também de forma não-diferencial. ( p.90)
Para Laclau & Mouffe (2004), o sistema discursivo no campo é infinito e, portanto para pensar sobre sistema se faz
necessário pensar em limite. Nessa lógica, ao criarmos uma cadeia de equivalências – que abarca os processos de
identificação – o corte é dado pela diferença, sendo este uma espécie momentânea de fechamento do sistema (cadeia de
equivalência), ou seja, esse corte representa o limite estabelecido.
Nessa direção, concordamos com Burity (1997 p.12):
Se não há fixação absoluta do sentido, pois o campo da discursividade, no qual os discursos operam, é sempre marcado pelo
excedente de sentido, pelo transbordamento de toda tentativa de fechamento último, tampouco as diferenças são
absolutamente refratárias a qualquer fixação, pois o seu fluxo só é possível se houver algum sentido, alguma forma de
estabilização, em relação ao qual aquelas possam ser o que são. Se o social não se completa como sociedade, por outro
lado, ele só existe como esforço para construí-la. Todo discurso é uma tentativa de dominar o campo da discursividade, deter
o fluxo das diferenças, construir um centro, dizer a verdade do social.
A tentativa de dominar o campo da discursividade se torna impossível uma vez que não há mais estruturas fixas numa
perspectiva niilista de pensar projetos coletivos e deterministas, pois desse modo estaríamos negando a condição contingente
dos enunciados a amarrando as identidades, ou seja fixando também os sujeitos.
Essas reflexões travadas no campo da discursividade nos permitem compreender os diferentes significados que atravessam
as políticas e as práticas curriculares, sobretudo quando assumimos a condição de pensar que nas cadeias discursivas estão
presentes simultaneamente objetivos antagônicos, mas que, por meio de práticas articulatórias, são complementares e por
isso mesmo se legitimam na relação saber/poder.
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Ao considerarmos essas lógicas, para operar com nossa empiria, no campo acadêmico, procuramos também nós, estabelecer
um sistema próprio de equivalências e diferença a fim de responder à questão: o que seria considerado conhecimento
escolar? E do mesmo modo: que marcas discursivas ficariam de fora e representariam o limite, a diferença - o que não é -
considerado conhecimento escolar?
Diante desse desafio, e tendo como compromisso teórico a não essencialização das perspectivas, passamos a pensar na
metodologia que iríamos utilizar para construir nosso arquivo empírico.
A CONSTRUÇÃO DA EMPIRIA: IMPASSES E PISTAS
A construção deste trabalho exigiu de nós, como de costume, a habilidade de fazer recortes sem perder o rigor necessário à
produção acadêmica. Nesse sentido, julgamos importante tecer algumas considerações a respeito da difícil tarefa de fazer
escolhas e buscar interlocutores para a realização de um trabalho científico, tamanha a riqueza de ideias a ser explorada
quando nos deparamos com a empiria.
Entendemos que a comunidade acadêmica do campo educacional corresponde ao sistema discursivo que iremos mergulhar
na tentativa de identificar os fluxos de sentido de conhecimento que circulam nesse espaço. Os conceitos trabalhados por
Laclau e Mouffe (2004) evidenciam o caráter discursivo das práticas sociais o que significa que a produção de sentidos é
contingente e configurada por sua localização num sistema de relações, ou seja, “haverá sempre uma margem inapreensível
que limita e distorce o “objetivo” e que é precisamente o real” (LACLAU, 2000 p.195).
Tendo em vista esse universo de análise, estabelecemos como limite para a realização do mapeamento um critério que para
nós é precioso dada a intencionalidade desse trabalho e a articulação com o diálogo realizado em nossas pesquisas – as
discussões entre os campos do Currículo e da Didática. Desse modo, procuramos construir nosso campo empírico mapeando
os discursos sobre conhecimento nos limites dessa totalidade estruturada, não abrindo mão de pensá-los na contingência de
suas produções.
Assim sendo, exploramos as ferramentas disponíveis em meio eletrônico para realizar o mapeamento das produções a
respeito do tema nos fóruns específicos de discussão acadêmica no campo educacional brasileiro: as reuniões anuais da
ANPEd - GTs 4 e 12 -; os artigos encontrados na base de periódicos científicos Scielo7 (embora estes sejam menos
expressivos no aspecto quantitativo) e no portal de periódicos da Capes8. A escolha desses espaços de produção não é
aleatória, deve-se à aposta de que há neles produções comprometidas com o rigor característico da produção de
conhecimento científico.
Os dados que aqui se apresentam dizem respeito ao período de 2000 a 2009. Essa escolha vem substanciar o interesse em
identificar na última década os matizes dessa discussão não desconsiderando o aspecto longitudinal bem como o momento
de interlocução dos campos Currículo e Didática na interface das teorias críticas e pós-críticas, marcando um processo de
reconfiguração dos campos e, podemos dizer, de recontextualização de debates para pensar a categoria 'conhecimento'.
Assumimos a condição de pensar os fluxos de sentido de conhecimento a partir da categoria conhecimento escolar ou saber
escolar9, a fim de perceber, considerando a lógica de equivalência e da diferença, a luta pela fixação de práticas articulatórias
7 No site de periódicos “Scielo” http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_home&lng=pt&nrm=iso, foram consultados todos os trabalhos classificados como discussões no âmbito da Educação. 8 No banco de teses da Capes, foram incluídas as pesquisas de mestrado e doutorado. 9 Para fins desse texto, apoiadas nas proposições da GABRIEL (1999, 2003) entendemos saber escolar como categoria que permite pensar no fluxo de sentidos, produção, circulação e consumo de saberes com configurações própria do espaço escolar. Vale destacar ainda que não utilizamos esse termo num sentido diverso daquele atribuído a conhecimento.
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hegemônicas por meio das quais a hierarquização entre “conhecimento científico” e “conhecimento cotidiano” é
recontextualizada.
Para buscar inteligibilidade nas marcas discursivas que poderíamos encontrar pelo caminho, a construção de um campo
semântico foi uma estratégia metodológica por nós utilizada, na tentativa de manter o foco em nosso interesse. Portanto,
procuramos nos títulos e palavras chave10
a presença das expressões: “conhecimento escolar”, “saber escolar” e
simplesmente “conhecimento”, a fim de não negligenciar pesquisas que porventura empregassem uma ou outra
nomenclatura.
Em se tratando a categoria “conhecimento” nos deparamos com um universo de 12805 teses e 44442 dissertações.
Constatamos que houve um aumento progressivo das discussões a respeito de conhecimento nas mais variadas áreas. A
despeito da inviabilidade de operarmos com tal volume de trabalhos, uma vez que fugiria aos propósitos deste texto; julgamos
relevante trazê-los aqui por duas razões: para dar destaque a esse objeto tão explorado e porque não dizer cobiçado no
espaço acadêmico e também para ressaltar a importância de se problematizar os sentidos que são fixados nos sistemas
discursivos que o configuram. Desse modo, optamos por incluir em nossa análise os textos onde a categoria
conhecimento/saber escolar apareceu como eixo nos trabalhos apenas na área educacional.
Partimos então para a busca, tendo em vista as expressões “conhecimento escolar” e “saberes escolares”. Refinados os
dados e eliminadas as duplicidades, chegamos ao seguinte resultado: encontramos no GT de Didática, dentre os 179
trabalhos apresentados, 16 que indicavam a discussão conhecimento escolar como mote de investigação. Percebemos que
no GT de Currículo essa discussão esteve um pouco mais aquecida, pois de 186 trabalhos, 39 se dedicaram a trabalhar com
essa categoria. Embora esses trabalhos representem aproximadamente 21% das discussões, não se pode dizer que há
centralidade dessa discussão no GT 12.
A tabela 1 busca apresentar um panorama mais geral da produção selecionada, indicando o quantitativo de artigos que
discutem conhecimento escolar, por grupos de trabalho e reunião.
Tabela 1
Distribuição dos trabalhos sobre conhecimento escolar nas reuniões anuais da ANPEd (2000 – 2009)
Reuniões/ano
Grupos de Trabalho
GT Didática GT Currículo
total Conhecimento
escolar total
Conhecimento
escolar
23ª RA
2000
20 2 19 8
24ª RA
2001
19 1 26 13
25ª RA
2002
18 1 19 7
26ª RA
2003
15 1 16 3
10 Acreditamos que o título e as palavras chave de um trabalho acadêmico traduzem as intencionalidades do texto em forma de síntese e por esse motivo apostamos esse critério nos ajudaria a realizar o mapear.
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27ª RA
2004
16 3 15 2
28ª RA
2005
18 1 27 2
29ª RA
2006
15 2 17 1
30ª RA
2007
21 3 15 1
31ª RA
2008
24 1 17 -
32ª RA
2009
13 1 25 2
Total 179 16 186 39
No contexto das revistas e periódicos acadêmicos a expressividade quantitativa é menor: apenas 6 trabalhos atendem ao
critério estabelecido no levantamento, isto é, evidenciam seu investimento nessa discussão. Esse quantitativo chamou nossa
atenção uma vez que a priori pensávamos que a discussão de conhecimento escolar no âmbito educacional fosse central. De
modo geral os trabalhos referenciados em nossa busca tendem a tecer discussões do ponto de vista mais teórico, articulando
diálogos entre autores que se propõem a pensar o conhecimento como configurações próprias do espaço escolar, portanto
numa lógica de diferenciação do conhecimento científico.
Ainda em relação ao mapeamento, a tabela (2) a seguir explicita o quantitativo de teses e dissertações
dedicadas à temática “conhecimento/saber escolar” e, portanto com as quais iremos operar na análise.
Tabela 2
Distribuição de teses e dissertações sobre conhecimento escolar (2000 – 2009)
20
00
20
01
20
02
20
03
20
04
20
05
20
06
20
07
20
08
20
09
Teses 3 1 - 2 1 - 2 2 1 5
Disserta
ções
1 6 4 4 6 2 2 1 6 2
Destarte, trabalharemos com os resumos desses 51 trabalhos (sendo 17 teses e 34 dissertações). Embora
reconhecendo as limitações impostas pela análise de resumos, uma vez que estes nem sempre deixam transparecer a
amplitude e as nuances das discussões tecidas na totalidade da pesquisa realizada, espera-se que os resumos evidenciem
as intencionalidades, anunciem os sentidos que serão trabalhados no texto, tendo em vista objetos e vieses de investigação.
Por essa razão, passamos a considerar os resumos como campo empírico desse trabalho.
A partir do levantamento feito, ficou evidente que a discussão dos saberes escolares é pouco explorada, uma vez que
representa uma parcela ínfima diante da grandiosidade das produções acadêmicas de quase uma década.
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Na seção seguinte passaremos a explorar “nossos achados” procurando identificar as cadeias de equivalência e diferenciação
presentes nas práticas articulatórias que configuram o jogo político na luta hegemônica em torno da fixação do que
chamamos de conhecimento escolar.
PRÁTICAS ARTICULATÓRIAS E FIXAÇÕES CONTINGENTES: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DE “CONHECIMENTO”
Entendemos, pois, que os sentidos de conhecimento escolar que circulam no espaço acadêmico se configuram na
permanente tensão universal X particular, onde há lutas hegemônicas por significação e fixação de sentidos. Desse modo o
universal não é reconhecido como uma razão definidora e apriorística, mas um “espaço” ocupado pelo fechamento ainda que
contingente, isto é, como fixações provisórias, estabelecidas como espaços de hegemonia.
Nesse sentido, o fechamento - aqui entendido na perspectiva de Laclau (2000) - seria o resultado de um “consenso” que
sempre acarreta uma forma de exclusão. Portanto, para nós o instigante não está apenas em perceber o jogo: fixar ou não
fixar, mas antes, procurar perceber as estratégias de fixação de sentido que permitem dizer o que é e o que não é
conhecimento escolar.
Nossa ideia é trabalhar com os fragmentos discursivos, identificando as cadeias de equivalência e de diferença utilizadas
pelos autores dos textos, delas depreendendo pistas para pensar nas ampliações e subversões (o que não é).
Retomamos aqui alguns apontamentos para análise discursiva de nossa empiria: 1) Trabalhamos com conhecimento escolar
como uma categoria de análise com sentido flutuante; 2) A proposta analítica é perceber como e quais são as cadeias de
equivalência criadas pelos autores que nos permitem fixar o sentido de conhecimento escolar, constituindo assim uma
identidade discursiva. 3) Assumimos a condição que as práticas articulatórias estão recheadas de ambivalência e por isso
mesmo não existe "o" sentido do enunciado.
Sabemos que este é apenas um dos caminhos possíveis, mas é o que por hora nos pareceu mais rico do que assumir
radicalismos de quaisquer naturezas. Assim, o que trazemos a seguir são possibilidades de leitura, uma vez que não existe a
realidade mesma, unívoca. Afinal, estamos imersos no campo da discursividade e somos, nós mesmas - autoras deste texto -
constituídas discursivamente, entendimento cujas implicações vimos apresentando desde o início de nossas proposições.
Certas de que nossas ideias não são 'a' chave de soluções para se pensar sentidos de conhecimento escolar, apresentamos
as reflexões ora tecidas, que representam não uma 'estrutura fechada', mas um fechamento contingente, a fim de provocar
algumas problematizações.
Analisando os textos encontrados no do GT de Didática e de Currículo percebemos que o movimento de práticas articulatórias
com que operam, tendem a trabalhar a lógica de equivalência/diferença privilegiando a dimensão do conhecimento escolar no
contexto das práticas pedagógicas e da formação de professores, evidenciando lutas por fixações de sentido de
conhecimento escolar como objeto de ensino. Essa constatação nos remete a um questionamento apontado por Laclau
(1996): como pensar em sistemas e cadeias de significação sem pensar em limites?
Esta pesquisa de campo levanta pontos sobre o ensino, a forma como esse ensino se apresenta no universo explicativo dos
alunos de 1ª a 5ª série do ensino fundamental. Abre possibilidade para reflexão acerca das práticas educativas, reflexão essa
implícita nas análises dos dados da pesquisa. Ela contribui também para situar a importância da Didática na formação dos
professores como uma alternativa de mobilizar o aluno a construir novos paradigmas da relação com saber, com a vida e o
Currículo e Epistemologia | 29
retorno “às coisas mesmas”, como dizia o filósofo Husserl. [...] E por fim levantamos aqui indagações que tem como objetivo
aguçar a curiosidade científica no contexto da Didática. (SILVA, 2006. GT de Didática)11
O que pretendo sustentar nesse trabalho é que o exame etimológico de termos como conhecimento (literalmente: “de onde é
natural ou de origem”) e didática (literalmente: “fazer saber, criar saberes”), contribui para: a) dar fundamentação aos termos
presentes nos debates da didática; b) oferecer elementos para uma reflexão crítica sobre seus conteúdos; c) construir novos
nexos teóricos desses termos, visando à sua pertinência para a realidade atual da educação.
O que farei, portanto, é pôr em diálogo a filosofia e a didática, elegendo como interlocutores Heráclito, no âmbito da filosofia, e
Pimenta, no âmbito da didática, entendida aqui como o estudo do ensino em situação. (MONTEIRO, 2002)12
Chamamos atenção para a dificuldade verificada nos excertos trazidos de se perceber ,de forma articulada, as
implicações de ordem epistemológica e pedagógica e como, na tentativa de enfrentar, ou não, esse desafio, os limites entre
conhecimento e prática são estabelecidos.
Nos fragmentos discursivos destacados o conhecimento escolar é pensado por um lado no âmbito das práticas pedagógicas,
no contexto do cotidiano escolar e por outro como objeto de análise numa comunidade epistêmica e no campo da Didática
como teorização, na tentativa de significá-lo nesse contexto. Logo, o jogo político onde o antagonismo teoria/prática – olhar a
prática para pensar na teoria ou vice versa – deixa suas marcas de congelamento dessa polaridade.
Do mesmo modo, no GT de Currículo encontramos:
A preocupação com as formas de apropriação dos conhecimentos escolares realizadas pelos sujeitos, professores e alunos
no interior da escola e, mais especificamente, na sala de aula está enraizada nas origens da minha formação e trajetória
profissional, como professora da educação infantil e fundamental por quase vinte anos. Meu interesse direcionou-se para o
estudo das relações curriculares e pedagógicas, nas quais os professores constroem o cotidiano de suas práticas
educacionais vivenciando interações cognitivas, afetivas, sociais e culturais estabelecidas com os alunos e com os
conhecimentos, corporificados nos currículos escolares. (NOGUEIRA, 2004)13
Utiliza como instrumentos observações e participação do/no cotidiano escolar, entrevistas estruturadas e recorrentes, análise
documental, registros escritos e fotográficos. Aponta que os produtos culturais usados e consumidos por professores e alunos
são constantemente ressignificados, transformados e reinventados por meio de múltiplas redes de saberes, valores,
sentimentos, pensamentos, que são tecidas, individual e coletivamente, na produção do currículo praticado. (KRETLI, 2009)14
Embora exista nas amostras acima um alargamento da equivalência – conhecimento escolar/conhecimento cotidiano – há
também a dicotomia teoria/prática num movimento universalista, ao se pensar a dicotomia entre currículo prescrito/praticado.
11 SILVA, Veleida Anahí da. Relação com o saber na aprendizagem Matemática: Pesquisa de campo, uma contribuição para a reflexão didática sobre as práticas educativas. GT de Didática, Anped, 2006. Disponível em www.anped.org.br. Acesso em maio de 2010. 12 MONTEIRO, Silas Borges. Filosofia e Didática: implicações para o conhecimento. GT de Didática, Anped, 2006. Disponível em www.anped.org.br. Acesso em maio de 2010. 13 NOGUEIRA, Marlice de Oliveira e. A apropriação do conhecimento em sala de aula: relações com o currículo numa escola do Ensino Fundamental. GT de Currículo, Anped, 2004. Disponível em www.anped.org.br. Acesso em maio de 2010. 14 KRETLI, Sandra. Burlas e artimanhas de professores e alunos: tecendo redes de saberes, valores e pensamentos... o currículo praticado nas escolas. GT de Currículo, Anped, 2009. Disponível em www.anped.org.br. Acesso em maio de 2010.
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Esta amostra de textos foi escolhida, para exemplificar marcas que consideramos evidentes na exposição das questões que
vimos levantando a esse respeito e potencializar as discussões sobre os textos publicizados nesses espaços.
Desse modo, conhecimento escolar pode ser entendido como aquele que se constrói num movimento híbrido de teoria/prática
e portanto diferentemente do conhecimento científico, produzido no espaço acadêmico.
Nas amostras a seguir percebemos um movimento de ampliar a cadeia de equivalências na tentativa de conceituar
conhecimento escolar:
Minha pesquisa de doutorado, da qual este texto é um dos seus desdobramentos, insere-se nessas linhas de investigação
que dialogam com as questões suscitadas pela epistemologia escolar. Sua preocupação central consistiu justamente em
analisar a natureza, estrutura e função dos saberes que circulam em uma disciplina específica – a História – a partir da
assunção de um olhar que procurasse dar conta das diferentes dimensões e variantes em jogo quando se trata de repensar e
(re)elaborar objetos de pesquisa em objetos de ensino. (ANHORN, 2004)15
O limite aqui é estabelecido pelo contexto específico de uma área disciplinar. Porém, essa diferença não sugere um tom de
ameaça à cadeia de equivalência, mas a criação de um campo de universalidade que caracteriza esse contexto disciplinar
específico de produção e que procura se afastar da perspectiva que combate o essencialismo das diferenças puras que fixam
os discursos de uma determinada comunidade disciplinar em detrimento de outros.
Nas revistas, conforme já anunciado anteriormente, a tendência percebida foi a de se operar na lógica da diferença entre
conhecimento escolar e conhecimento científico, estabelecendo entre eles certa hierarquização.
O objetivo do texto é mostrar que os estudos de Donald Schön no campo da formação profissional em geral e da formação de
professores em particular pautam-se numa epistemologia que desvaloriza o conhecimento científico/teórico/acadêmico e
numa pedagogia que desvaloriza o saber escolar. Nesta direção é feita uma análise crítica das idéias de Schön acerca do
conhecimento tácito e do conhecimento escolar. Essa análise crítica das idéias de Schön é inserida no contexto de uma
crítica aos pressupostos epistemológicos hegemônicos atualmente no campo dos estudos sobre formação de professores. (
DUARTE, 2003)16
(...) a escola não pode mais ignorar os aspectos “contextuais” da cultura (o fato de que o ensino está destinado a um
determinado público, em um determinado país, em uma determinada época) mas deve sempre se esforçar por privilegiar o
que há de mais fundamental, de mais constante, de mais incontestável e por conseguinte de menos cultural, no sentido
sociológico do termo, nas manifestações da cultura humana ( FORQUIN, 2000)17
Percebe-se que os textos são marcados pela tensão que preconiza o universalismo da ciência naturalizando assim os limites
entre escolar e científico. Da mesma forma identificamos tal tendência tanto nas teses quanto nas dissertações.
15 ANHORN ,Carmen Teresa Gabriel. Nas tramas da didatização de uma disciplina escolar: entre histórias a ensinar e histórias ensinadas GT de Didática, Anped, 2004. Disponível em www.anped.org.br. Acesso em maio de 2010. 16 Duarte, Newton. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor (por que Donald Schön não entendeu Luria). Educ. Soc. vol.24 no.83 Campinas Aug. 2003. Acesso em maio de 2010. 17 Forquin, J. C. O currículo entre o relativismo e o universalismo. In Revista Educação e Sociedade, Ano XXI, dezembro ,2000.
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Observamos também algumas ampliações da cadeia de equivalência, buscando fixações de sentidos de conhecimento
escolar no bojo do conhecimento científico, cotidiano e popular; alargando esse conceito e, de certo modo, deixando quase
que imperceptível a diferença. Essa tendência cria uma espécie de subjetivismo em meio ao universo infinito do jogo de
linguagem que relativiza a categoria analisada.
O fragmento abaixo ilustra essa tendência:
A presente pesquisa versa sobre conhecimentos tradicionalmente constituídos pelas vivências de populações que não
possuem, necessariamente, a referência científica/escolar como principal eixo formador desses conhecimentos. Procura
estabelecer um diálogo, sem superioridade de quaisquer que sejam as partes, entre a ciência e os saberes da tradição,
usando como ferramenta de comunicação o conhecimento matemático empreendido para ambos os fins. [...] qual a natureza
dos conceitos e procedimentos matemáticos existentes na prática da construção de barcos e o ensino de matemática? O
trabalho desenvolvido pelos mestres-artesãos demonstra um estilo de pensar diferente da academia. ( LUCENA, 2005 grifos
nossos)18
A tendência a trazer as reflexões na perspectiva essencialista de produção de teoria para ser aplicada na prática também é
marcante nas pesquisas, possibilitando-nos inferir que se crê ser possível pensar a teoria para prescrever a prática.
Nesse sentido, a análise do referido Projeto, com base nos postulados blochianos, revelou que, ao não ficar marcadamente
evidenciada a noção sobre que ciência está sendo colocada em operação nos processos formativos do futuro pesquisador e
professor, por falta de um posicionamento teórico-metodológico explícito e/ou um hibridismo teórico, pode comprometer a
percepção de especificidades dessa ciência. ( BOUSFIELD, 2009)19
Esse tipo de abordagem acaba, pois, por favorecer a redução do entendimento das práticas articulatórias a relações de
causalidade e, desse modo, a riqueza dos processos de negociação que marcam a luta política fica por vezes apagada.
Fechamos esse texto contingencialmente, num fluxo contínuo que torna as fronteiras e os limites por nós estabelecidos
apenas provisórios em busca de outros diálogos que ampliem essas cadeias na/com a equivalência e diferença que costurou
nossas ideias na busca por problematizar o que se pode interpretar acerca do que a recente produção acadêmica vem
evocando como sentidos, ou não sentidos, de conhecimento escolar.
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1999 (Dissertação de Mestrado).
18 LUCENA, Isabel Cristina Rodrigues de. Educação matemática, ciência e tradição: tudo no mesmo. Tese 1v. 137p. Doutorado, 2005 19 BOUSFIELD, ANDRE AUGUSTO A História como ciência e suas decorrências pedagógicas; uma análise do projeto político-pedagógico do Curso de História da UNESC a partir de Marc Bloch. Dissertação - Mestrado. 2009
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André Marcio Picanço Favacho
Universidade do Estado de Minas Gerais
O RECOLHIMENTO JESUÍTICO COMO ARTEFATO CURRICULAR
O campo da História da Educação no Brasil estudou o recolhimento jesuítico do século XVI como uma instituição religiosa destinada a
ensinar o bê-á-bá aos filhos dos índios e colonos. Esses estudos mostram que ele ganhou, nos séculos XVII e XVIII, o status de seminário,
convento, internato ou colégio, e que dele já foram investigados todos os componentes curriculares, tais como conteúdo, justificativas
filosóficas, graus e organização de ensino, hierarquias, interesses e ideologias. Todavia, o recolhimento ainda não havia sido estudado
como um discurso educativo que, por ser intencional, seria o próprio currículo do século XVI. Pelo recolhimento, padres, professores leigos
e demais autoridades do estado colonial definiam a forma segundo a qual aquele mundo seria apropriado pelas crianças índias e colonas. É
provável que tenhamos retirado dessa experiência (talvez a primeira experiência curricular no Brasil) grande parte da nossa crença de que o
currículo é um agrupamento de sistemas de pensamento que dita normas e regras, mobilizando o outro - a partir de seu conhecimento
sobre mundo - a se constituir moral e eticamente. A partir das cartas de Nóbrega e Anchieta do período de 1549 a 1594, investiguei a noção
de recolhimento jesuítico como regularidade discursiva, tentando verificar, em tais cartas, como as práticas educativas do século XVI
impunham certo procedimento acerca do ato de ensinar. Disso resultou a descoberta de que o recolhimento não se reduzia ao ensino-
aprendizagem da doutrina cristã, mas se ampliava para a complexidade social. As práticas pedagógicas desse período atuavam em quatro
campos: na doutrina, moldando nos meninos um caráter moral-cristão; no ensino, nas formas específicas que os padres descobriam para
ensinar índios e colonos a ler e escrever; na autoridade temporal, alertando os meninos para a importância do Estado (na figura do rei, do
governador e mesmo na dos padres), a quem deveriam necessariamente obedecer; e, por fim, na produção de outra noção de família (pai,
mãe e filhos), guiada não mais por um homem guerreiro, mas por um pai. Assim, a experiência do recolhimento deve ser vista como parte
importante e constitutiva da forma brasileira de educar o outro. Talvez resida aí um relevante fragmento para uma genealogia do currículo
no Brasil, pois, se trabalhar com artefatos curriculares é, ao mesmo tempo, trabalhar com artefatos culturais, podemos, a partir de práticas
discursivas e não-discursivas, aproximar história e currículo, a ponto de problematizar as continuidades e descontinuidades históricas das
práticas educativas daquilo que somos, daquilo que ainda somos e daquilo que, por vezes, tentamos deixar de ser em termos escolares.
INTRODUÇÃO
Aprendemos com a História da Educação no Brasil que o recolhimento jesuítico do século XVI era uma instituição religiosa
destinada a ensinar o bê-á-bá aos filhos dos índios e colonos, e que, durante os séculos XVII e XVIII, ganhou o status de
seminário, convento, internato ou colégio. Em termos curriculares, dele já foram investigados quase todos seus componentes,
tais como conteúdo, justificativas filosóficas, graus e organização de ensino, hierarquias, interesses e ideologias. Todavia, o
recolhimento ainda não havia sido estudado como um discurso educativo amplo que, por ser intencional, seria o próprio
“currículo” do século XVI (talvez prolongado por todo o tempo da colônia brasileira). Pelo recolhimento, padres, professores
leigos e demais autoridades do estado colonial definiam a forma segundo a qual aquele mundo seria apropriado pelas
crianças índias e colonas. É provável que tenhamos retirado dessa experiência (considerada a primeira experiência curricular
no Brasil) grande parte da nossa conclusão atual de que o currículo é um agrupamento de sistemas de pensamento que dita
normas e regras, mobilizando o outro - a partir de seu conhecimento sobre mundo - a se constituir moral e eticamente.
A partir das cartas de Nóbrega e Anchieta do período de 1549 a 1594, investigamos a noção de recolhimento jesuítico como
regularidade discursiva, tentando verificar, em tais cartas, como as práticas educativas do século XVI impunham certo
procedimento acerca do ato de ensinar e de produzir o outro, o diferente.
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Disso resultou a descoberta de que o recolhimento não se reduzia ao ensino-aprendizagem da doutrina cristã, isto é, não se
reduzia ao mero ensino de palavras, frases e textos católicos, mas sim se ampliava para a inscrição do “índio” na
complexidade social e cultural daquele momento. Nesse sentido, as práticas pedagógicas desse período atuavam em quatro
campos possíveis: na doutrina, moldando nos meninos um caráter moral-cristão; no ensino, nas formas específicas que os
padres descobriam para ensinar índios e colonos a ler e escrever; na autoridade temporal, alertando os meninos para a
importância do Estado (na figura do rei, do governador e mesmo na dos padres), a quem deveriam necessariamente
obedecer; e, por fim, na produção de outra noção de família (pai, mãe e filhos), guiada não mais por um homem guerreiro,
mas por um pai. Assim, a experiência do recolhimento deve ser vista como parte importante e constitutiva da forma brasileira
de educar o outro. Talvez resida aí um relevante fragmento para uma genealogia do currículo no Brasil, pois, se trabalhar com
artefatos curriculares é, ao mesmo tempo, trabalhar com artefatos culturais, podemos, a partir de práticas discursivas e não-
discursivas, aproximar história e currículo, a ponto de problematizar as continuidades e descontinuidades históricas das
práticas educativas no Brasil daquilo que somos, daquilo que ainda somos e daquilo que, por vezes, tentamos deixar de ser
em termos escolares.
O RECOLHIMENTO DOS MENINOS COMO DISPOSITIVO PEDAGÓGICO
De imediato, pode-se entender o recolhimento praticado no século XVI como uma instituição, casa ou colégio, em que as
crianças e jovens eram educados para se tornarem religiosos ou cristãos leigos. Dentre os mais importantes, podemos citar o
Recolhimento de Meninos da Bahia e de São Vicente, que antecederam o aparecimento de outros, como o do Rio de janeiro e
Olinda. Na colônia, dependendo do acordo jurídico e financeiro entre os padres jesuítas e a Coroa portuguesa, os
recolhimentos transformavam-se em colégios ou reduziam-se a casas de ensinar o bê-á-bá.
Mas, para além disso, se nos detivermos nas diferentes formas de captura desenvolvidas e praticadas na colônia, podemos
afirmar que o recolhimento era também uma prática generalizada que impunha ao recolhido a modificação de seu modo de
ser, levando-o a adquirir novos costumes. Assim, recolhiam-se homens adultos para o trabalho escravo, mulheres para o
casamento, crianças para a doutrina, velhos e caciques para ajudarem a manter a ordem na colônia ou, ainda, recolhiam-se
banidos, ressentidos ou revoltados para informantes.
Se um dispositivo é, em primeiro lugar, um conjunto heterogêneo que engloba “discursos, justificativas, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas” (FOUCAULT, 2000, p. 244), o recolhimento dos meninos índios permitia a proliferação de justificativas morais,
filosóficas e filantrópicas dos portugueses para a criação das instituições escolares na colônia brasileira. Com ele, os colégios
e as casas de bê-á-bá passaram a gozar de leis e regulamentos, provocando a visibilidade necessária daquele que estava
recolhido. O recolhimento dispunha, então, de uma organização espacial concreta, dentro da qual todos os índios submetidos
- à força, por vontade ou por negociação - passavam a ser vistos distintamente por seus pares; produziam, assim, formas
sociais de os índios se verem e serem vistos.
Em consonância com Foucault, Deleuze (2005) afirma que um dispositivo exibe as formas de ver e de ser visto porque é um
regime de luz que impõe uma conduta e molda um corpo. “A prisão é um regime de luz, antes de ser uma figura de pedra”
(op.cit, p. 50) porque faz ver o prisioneiro em vez de escondê-lo. Ora, a arquitetura do recolhimento, antes de ser uma casa,
uma choupana, um colégio de madeira, de barro ou de palha, também era um regime de luz; por causa dele, aqueles que lá
estavam submetidos passaram a ser vistos e reconhecidos. Em termos curriculares, o recolhimento fazia o filho do outro ser
visto como ponto imaginário do discurso pedagógico, ou seja, era um lugar desejado e odiado, requisitado e negado, pois lá
estavam os “privilegiados” como, por exemplo, o filho do cacique, do guerreiro, do pajé, do colono; ali se encontravam os
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sobreviventes, os meninos salvos da morte, da guerra, do trabalho forçado e dos abusos dos colonos exploradores. O
dispositivo pedagógico cumpria a surpreendente função de proteger os filhos dos indígenas, de misturá-los com os filhos dos
colonos e com os órfãos vindos de Portugal, além, é claro, de poder causar inveja aos demais que lá não estavam. Mesmo
sendo um lugar questionável, passava a ser desejado.
Em segundo lugar, o dispositivo pode ser entendido como
Um programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática
que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática dando-lhe acesso a um novo
campo de racionalidade (FOUCAULT, 2000, p. 244).
Nesse caso, deve-se atentar para os diferentes jogos ou conflitos que concorriam para o aparecimento ou reaparecimento dos
recolhimentos: para os jesuítas, o que estava em jogo era a necessidade de reinterpretar na colônia a prática do recolhimento
já experimentada na Europa, enquanto que, para os índios, o jogo consistia em mapear e juntar o quebra-cabeça dessa
prática, até então sem precedente em sua cultura. De um lado, temos a repetição de um acaso – o recolhimento era um velho
conhecido dos portugueses -; do outro, para os índios, era a inauguração de um acontecimento que só ganhava sentido
diante dos acordos ali estabelecidos. Da parte dos índios, o recolhimento das crianças era uma boa saída em situações de
batalhas sangrentas; da parte dos jesuítas, era uma forma de transformar os meninos, apartando-os de sua parentela para
fins de catequização. A equação era clara (e os índios sabiam): na medida em que os recolhimentos eram construídos, os
meninos eram, cada vez mais, apartados das suas relações de parentesco. Portanto, no caso brasileiro, o recolhimento é uma
das formas discursivas do educar. Assim como a igreja, a vila, a cidade e, mais tarde, o Estado, separava o plano doméstico
do público, o recolhimento era uma fortificação que delimitava as divisas entre a esfera doméstica e a esfera pública.
Consideramos essa uma das funções fundamentais dessas casas de ensino ou, se quiserem, dessas escolas: apartar as
crianças de suas relações de parentesco e, talvez, providenciar a negação de sua origem.
Em terceiro lugar, o dispositivo pode ser, ainda, “um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como
função responder a uma urgência” (FOUCAULT, op.cit., p. 244). Obviamente, a urgência à qual o recolhimento respondia era
a própria colonização dos povos (a grande estratégia), na qual o seqüestro dos jovens era uma tática relevante; “o dispositivo
tem, portanto, uma função estratégica dominante” (ibidem). Como tática dessa urgência, o dispositivo do recolhimento
produzia um regime de enunciação, ou seja, fazia falar, produzia um saber a respeito daquele que estava sob seu efeito. No
interior do recolhimento, o filho do gentio passa a ser falado, avaliado e experimentado a partir de certos saberes. Uns seriam
conduzidos à doutrina e outros ao oficio; uns, indomesticáveis, preguiçosos, malignos, indispostos, traiçoeiros, mentirosos e
outros, amáveis e inocentes. Nesse regime de enunciação, o “índio” começa a ser definido; ganha corpo, alma, vontade,
desejos etc. Essas enunciações preconizavam, então, a moralização dos corpos dos recolhidos, considerada pelos
portugueses como a única coisa que os índios eram capazes de aprender.
Na tentativa de apagar o pecado visível nos corpos nus dos índios, os jesuítas davam-lhes vestimentas e roupas e
mostravam-lhes as leis de Deus e do Direito, ensinando-lhes o sentido do pecado e da falta jurídica. Na medida em que os
recolhidos não respeitavam esse regime enunciativo, o conjunto de normas e comportamentos se voltava contra eles; o índio
ia sendo, portanto, produzido, inventado, enfim, concebido.
Os recolhimentos instituíram a primeira herança para os futuros currículos, qual seja, separar os incivilizados dos civilizados.
Parece-nos que foi com essa mesma lógica que, mais tarde, passamos a separar os ignorantes dos letrados, os pobres dos
ricos e assim por diante.
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O RECOLHIMENTO NO OCIDENTE E SUA TRANSPOSIÇÃO PARA O BRASIL
É certo que o recolhimento dos meninos não nasceu na colônia brasileira, pois desde, digamos, o “nascimento” da paidéia
cristã ele já circulava, concretizando as intenções pedagógicas da Igreja. Tanto é verdade, que logo nos primeiros séculos do
cristianismo, os sacerdotes criaram as escolas cenobiais e episcopais, as quais não passavam de instituições de
recolhimento, com fins pedagógicos de modificar o modo de ser dos seus submetidos.
Mesmo sem estudar mais detidamente as práticas escolares anteriores ao cristianismo, desconfamos que, ao recolher os
jovens, elas objetivavam-se mais conservar ou fixar o aprendiz num oficio (do pai ou do rei), numa verdade oracular ou num
segredo de casta do que modificar o seu modo de ser, embora se saiba que os mestres não deixavam de se ocupar com a
formação moral e humana dos aprendizes, tentando afastá-los da inferioridade (escravidão) e da improdutividade (apatia
política); afinal, como sinalizou Platão, a família é incapaz de educar.
Encontramos na Antiguidade Ocidental um tipo de recolhimento que, na medida do possível, recrutava ou recolhia meninos,
colocando-os em abrigos para, pelo menos, impor-lhes a obediência às leis sociais ou divinas, livrá-los do sofrimento do
trabalho pesado, e, por fim, domar-lhes os instintos, tornando-os homens. Contudo, o que se desejava nessas sociedades era
mais preservar o passado e as tradições do que atuar sobre os recolhidos para mudar o seu modo de ser. Afinal, nelas não
havia índios e sim gentios que, apesar de bárbaros, possuíam seus ídolos e se submetiam a uma fé, um rei e uma lei, o que
pressupunha uma humanidade conhecida.
Contudo, as coisas mudaram radicalmente a partir dos primeiros anos da era cristã. Agora, recolher ou recrutar meninos não
visava garantir a continuidade de uma comunidade, mas modificá-los para, estrategicamente, aniquilar o passado dos povos
pagãos. Tudo que se fez nesse período foi substituir narrativas ou literaturas pagãs por narrativas bíblico-cristãs. O papel das
escolas cenobiais e episcopais era o de substituir gradualmente a escola clássica - na qual ainda eram ensinadas as
literaturas grega e latina.
Educar o outro, desde então, ganha um sentido radicalmente novo em relação ao sentido dado pela antiguidade. A partir de
uma verdade externa, levava-se o pagão à conversão, a adorar um deus estranho e a acreditar num outro mundo e num outro
tempo. O recolhimento, nesse caso, não se restringia a uma mera instituição de ensino, cujo objetivo era recrutar, recolher e
colocar os jovens em abrigos para educá-los nas letras, mas incluía, além disso, pedir o seu corpo em sacrifício. Afinal,
estudar nesses tempos cristãos era, antes de tudo, educar o corpo para acessar a verdade divina. O recolhimento era,
portanto, mais que uma instituição educativa; era uma prática de reclusão, de afastamento do mundo - fosse em mosteiros ou
colégios - para fins de divulgação da mensagem cristã.
A herança maior do recolhimento do tipo cristão foi, sem dúvida alguma, a idéia de que se educa melhor os meninos fora dos
limites familiares ou longe dos pais para que os mestres possam ministrar um outro saber. Nesse aspecto, recolher meninos
é, desde a Antiguidade Ocidental, a forma pela qual os mestres educavam os aprendizes em lugares coletivos, instruindo-os
sobre os preceitos morais e afastando-os de certos comportamentos familiares indesejáveis. Antes das escolas cristãs, os
meninos eram recolhidos para serem recrutados para ofícios diferentes do oficio do pai - em geral, os ofícios do palácio:
escriba, soldado, cavaleiro etc.
Se educar o aprendiz fora dos laços familiares era, para além de um imperativo cristão, a maneira pela qual os ocidentais
ensinavam aos meninos os preceitos morais, com o avanço do cristianismo o recolhimento passa a ser uma atividade que
atuará sobre o corpo do aprendiz em forma de proibição, visando o apagamento das manifestações pagãs, dos prazeres da
carne e dos efeitos negativos das literaturas (grega ou romana) indesejáveis.
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Foi esse o panorama histórico que nos levou a supor que, mesmo antes do advento do cristianismo, as sociedades ocidentais
utilizaram a prática de recolher os aprendizes a fim de instituir um lugar de instrução separado da influência dos pais ou até
mesmo contra eles. Parece-nos que tal prática ainda se efetiva na escola atual, principalmente naquelas destinadas às
populações mais pobres e/ou afastadas dos centros urbanos. Em outras palavras, herdamos do recolhimento (antigo ou
cristão) a vontade de atuar sobre o filho do outro (o estranho, o diferente), por desconfiarmos que ele padeça de uma
fragilidade moral que só será corrigida longe dos pais. Contudo, a lógica do discurso pedagógico que se consolida a partir do
cristianismo é mais profunda, isto é, além de recolher os meninos e afastá-los dos pais, também é necessário controlá-los,
selecioná-los, organizá-los e redistribuí-los em uma série de atividades que possam modificar-lhes o modo de ser e pensar,
apagando neles não apenas uma moralidade indesejável, mas também a sua história.
Mas se a história é feita de discursos, e se o discurso é mais do que frases e proposições - por serem “práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2000b, p. 56) -, então ousamos afirmar que o recolhimento, ao
autorizar ou não certos enunciados, pessoas ou circunstancias, é (ou foi) uma prática social que construiu a relação de
poder/saber sobre o aprendiz e sobre a “escola”. Foi essa vontade de recolher meninos, historicamente localizada, que nos
propiciou a invenção da escola, do professor e do aluno em cada tempo histórico especifico.
A TRANSPOSIÇÃO DO RECOLHIMENTO PARA O BRASIL
Foi, pois, em consonância com as antigas formas de recolher meninos que o velho recolhimento cristão entra em cena, desta
vez no Brasil. Assim como na Europa, o recolhimento dos meninos índios no Brasil iniciou-se nas casas junto às igrejas, com
os padres recolhendo crianças e pedindo a ajuda dos pais - primeiro para as tarefas internas das casas de ensino e mais
tarde para a construção dos colégios. Em ambos os continentes, por meio do recolhimento, ensinava-se o sentido do bem e
do mal, apartava-se os filhos dos pais e rejeitava-se a educação familiar. Enfim, em ambos os continentes faziam-se as coisas
escolares todas do mesmo jeito, mas também de um jeito bem diferente, sobretudo porque a “escola” não tinha, para os
novos recolhidos (os índios), o menor sentido e valor. Eles desistiam dela na hora que bem entendiam ou nela permaneciam
em razão de algum interesse. No Brasil, somente a guerra entre europeus e índios estabeleceu, de fato, uma lógica, um
sentido, um lugar, um tempo e um conteúdo para os recolhimentos do Brasil. É possível dizer que as guerras ocorridas na
Colônia foram fator decisivo para que os jesuítas pudessem trazer todo o peso de milhares de anos de recolhimento para
aquele pequeno instante de Colônia.
De todos os tipos de recolhimento praticados desde os primeiros anos da era cristã, o que prevaleceu no Brasil foi o ocorrido
na Europa do fim do século XV: aquele recomendado pelas autoridades eclesiásticas e monárquicas para retirar os jovens
europeus da perambulação e que convocava o aprendiz ao ascetismo como forma de se tornar cada vez mais puro para viver
entre os homens e ser merecedor da graça de Deus. Entretanto, o problema que se apresentou na colônia brasileira era a
dificuldade de alcançar com os “índios” os mesmos resultados obtidos na Europa. Tal dificuldade só foi resolvida com a
adoção de estratégias de governo especificas como, por exemplo, o aldeamento e as missões, as quais se tornaram, ao
mesmo tempo, estratégias de poder e de saber.
Mas como os índios permitiram o uso dessas estratégias? Eles não permitiram; elas foram impostas e, por isso mesmo,
contrapostas. Podemos dizer, com um pouco de ousadia, que as contestações ou as táticas indígenas contra as estratégias
do governo lusitano - verificadas nas cartas jesuíticas – foram, ao mesmo tempo, tentativas e desistências de negociação com
os europeus: perderam e ganharam batalhas; aliaram-se aos europeus e entre si; guerrearam a favor ou contra europeus e
outros índios; casaram-se com os europeus; os mataram; amaram as novidades e odiaram os infortúnios; modificaram seus
recursos lingüísticos para acessar a nova linguagem, bem como confundiram os recursos lingüísticos europeus com vistas a
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facilitar ou dificultar a comunicação, conforme a necessidade; enfim, misturaram-se, miscigenaram-se como ocorre em
qualquer outro tipo de encontro ou confronto. Aliás, o conjunto dessas táticas indígenas nos alerta para não tomarmos o índio
como uma figura inerte, romântica ou débil. Ele deve ser visto como homem na história, produtor de história, imerso nas lutas,
mas que, infelizmente, “perdeu” a grande batalha20
.
Todo esse contexto de alianças e guerras foi decisivo para a implantação das casas de ensino no Brasil - os ditos
recolhimentos - e, mais tarde, dos colégios. Foram essas alianças e guerras que tornaram o recolhimento um dispositivo
central que, dependendo da situação, atendia tanto aos interesses europeus como indígenas. Pelo estudo dessas alianças e
guerras efetuou-se a passagem do recolhimento ocorrido no Ocidente para o Brasil; aqui ele ganhou algumas especificidades;
foi mantido e alterado, preservado e transformado, conservado e aniquilado e, enfim, revigorado nas tramas lingüísticas do
tupi com o português. O fino acordo lingüístico entre gentios e portugueses costurou - não sem resistência - as desistências e
as forças dos elementos que constituíram os novos componentes da ordem pedagógica brasileira21
.
Dessa maneira, educar uma criança “índia” era vislumbrar o próprio índio adulto/endemoniado que precisava ser, primeiro,
criado e, depois, eliminado no corpo da criança, Percebemos que o recolhimento (ambiente educativo por excelência na
colônia) não se constituía apenas em uma construção física ou material, mas, principalmente, no recrutamento moral do filho
do outro, o que nos autoriza a dizer que os recolhimentos construídos pelos jesuítas não se reduziam nem a um prédio22
(cabana) e nem a uma ação individual, pejorativa ou negativa dos padres. Tratava-se da emergência de uma experiência ética
da forma pela qual passaríamos a educar as crianças no Brasil, pelo menos, creio eu, até o século XVIII. Porém, sendo uma
construção ética - e não apenas uma construção física -, o recolhimento não foi algo abstrato, mas uma ação concreta que se
erigia localmente, nas brechas da colonização, da evangelização, das lutas dos índios contra jesuítas e colonos, assim como
das conciliações mútuas. Era um dispositivo cuja experimentação desenhava, pontilhadamente, os limites do principal
discurso pedagógico quinhentista em ação na América Portuguesa, a saber: recolher o filho do outro para modificar seu modo
de ser. Esse discurso pedagógico visava, sobretudo, à constituição moral do padre-professor, assim como do aprendiz e de
suas relações de parentesco, contribuindo para ampliar o número dos súditos submetidos ao Império Lusitano.
Aliás, a introdução dos familiares dos meninos índios no interior dos recolhimentos foi essencial para a educação deles;
admitia-se adultos dentro dos recolhimentos, preferencialmente, se contraído matrimônio (pelas leis da Santa Madre Igreja) e
já ter filhos; isto para atuarem como referência familiar para as crianças. Com isso, a relação parental original dos meninos se
quebrava e, em seu lugar, introduzia-se um outro equivalente simbólico: a noção de família européia. Portanto, os índios-
casados serviam de exemplo para que os meninos obedecessem aos padres, sobretudo porque as guerras provocadas pelos
brancos poderiam lhes causar dano maior. Pode-se deduzir, então, que a pedagogia adotada pelos recolhimentos (ou pelos
jesuítas) não se restringia ao discurso ensino-aprendizagem da doutrina cristã, mas se ampliava para a complexidade social,
abrangendo o ensino das primeiras letras, o respeito ao Estado (português) e a aceitação do modelo familiar europeu. Dessa
maneira, as práticas pedagógicas ocorriam nesses quatro possíveis campos de ação. Primeiro na doutrina, com os padres
moldando nos meninos um caráter moral-cristão; depois no ensino, com a descoberta de formas específicas de ensinar o
índio a ler e escrever; em seguida na autoridade temporal, que os alertava para a importância do Estado (na figura do rei, do
governador e mesmo na dos padres), a quem deveriam necessariamente obedecer; e, por fim, na produção de outra noção
de família, com a substituição dos amplos laços parentais dos gentios pelo modelo europeu e cristão de família nuclear (pai,
mãe e filhos), guiada não mais por um homem guerreiro, mas por um pai.
20 MONTEIRO, J (1994); CUNHA, M. (1998); PRADO JUNIOR, C (1942) 21 VILLALTA, L (1997) 22 HILSDORF, M. (2006)
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Podemos dizer que esses quatro campos de ação das práticas de ensino formaram a estrutura da pedagogia nascente no
século XVI, a qual, como sabemos, vai requisitar, mais tarde, que a Igreja, a escola, o Estado e a família se imponham como
logos do discurso pedagógico, isto é, como razão inquestionável de como o educar se processa. A ordem pedagógica do
século XVI nada mais foi do que a sujeição do outro à Igreja, à justiça e ao pai, o que equivale dizer: Obediência a Deus, ao
Estado e à Família. Assim, a análise das cartas jesuíticas nos permitiu concluir que o recolhimento foi mais do que uma etapa
dos tempos coloniais, mais do que uma arquitetura escolar e mais do que uma simples imposição dos valores europeus sobre
os valores dos colonizados. Ademais, o recolhimento, nas suas diferentes estratégias de colonização, funcionou como um
instrumento que produziu, nos meninos e adultos recolhidos, a própria noção de pessoa que eles deveriam se tornar, isto é,
índios. Funcionando ao lado de outras formas de aprisionamento, esse dispositivo - o recolhimento - era a estrutura ideal que
o estado colonial carecia para estabelecer, primeiramente, uma forma especifica de capturar o outro (por meio do
recolhimento físico); depois, forjar uma personalidade (a indígena); e, por fim, criar uma instituição na qual pudesse ensinar a
ser um súdito cristão (a eschola). Esta última seria o lugar ideal para abrigar ou produzir, em especial, a moral dos “fracos”;
era nela que os “fortes” (futuros guerreiros) se transformariam em “fracos” (aprendizes).
OS EFEITOS DO RECOLHIMENTO
A história do recolhimento no Brasil - como prática de recolher meninos ou como uma instituição em si (colégio, casa ou
recolhimento) - mostrou-nos pelo menos quatro elementos que modificavam o modo de ser dos meninos índios. Tais
elementos podem ser assim sistematizados:
1. Recolher os meninos - O recolhimento no Brasil-Colônia se dava por meio de uma aproximação ao índio, cuidadosamente
engendrada pelos jesuítas, que buscavam, principalmente nos capturados de guerra, nos banidos, nas crianças, nas
mulheres, nos órfãos e nos forros, uma forma de adentrar o mundo indígena; buscavam nos indefesos e nos ressentidos as
informações necessárias para essa inserção. Em geral, a aproximação propriamente dita era amistosa e ocorria por meio de
visitas dos jesuítas às aldeias e malocas. Essa prática era mediada pelos intérpretes, função exercida por padres, meninos ou
outras pessoas que já sabiam se comunicar na língua indígena. Mas, às vezes, tal aproximação era intensa e dura, sobretudo
por ocasião de acontecimentos extremos, como no fim das guerras sangrentas (entre tribos ou entre gentios e colonos), no
estado in extremis (extrema-unção) ou após as prisões dos gentios.
O processo de recolher os meninos era oficialmente chamado na colônia de “conversão do gentio”. Tal prática demarcava de
tal maneira o campo de ação do recolhido, que chegava facilmente a se confundir com a própria atividade exploratória do
“Estado” colonial. Assim, jesuítas e “Estado” governavam ostensivamente os índios, a ponto de confiscar-lhes os saberes e
práticas para, enfim, forjar o privilégio de instaurar a lei na colônia.
De fato, nos tempos coloniais, o recolhimento dos meninos foi uma atividade tão intensa que pode ser considerada como a
responsável direta pela construção da idéia de Estado (colonial), pois não era uma tarefa exclusiva dos jesuítas, mas também
de outros colonos e do Governador Geral. Em razão disso, parece-me que o dispositivo do recolhimento serviu muito mais
para construir um tratado político e/ou pedagógico do que um tratado missionário. Ele foi fruto de acordos de guerra entre
índios e europeus, constituindo-se em uma espécie de interseção entre os interesses europeus, jesuítas e indígenas.
O recolhimento, nessa perspectiva, configurava nos índios outros modos de pensar, de sentir, de agir e de reagir; erigia,
portanto, outra consciência na colônia, a qual, de um lado - como prática religiosa -, levava o índio a aderir a uma outra crença
(ou verdade) e, de outro - como prática política -, costurava ou amenizava os conflitos reais na colônia causados pelo
confronto de diferentes visões de mundo. Criava, assim, uma tática local frente às estratégias políticas do Estado português e
evitava as resistências dos meninos, pois sugeria que os próprios padres eram vítimas daquela situação. Enfim, o
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recolhimento era o meio pelo qual os padres justificavam as suas próprias mazelas e aquelas vividas pelos índios. Portanto,
os recolhidos não podiam sequer evitar os padres, assim como estes deveriam viver em permanente relação com aqueles; é
“justamente essa relação que [permitia ao padre jesuíta] a vida que decidiu buscar na colônia; é essa relação que é frutífera,
que cria o privilégio [dos padres para com os índios em detrimento dos demais colonos]” (MEMMI, 2007, p. 41).
2. Introduzir o mal católico na mentalidade indígena - Tratava-se de combater a linguagem do recolhido, supostamente
marcada pelo erro, pela incompletude e pela imperfeição. Mas como dizer ao outro que a sua linguagem sofre de uma
incompletude? No caso do Brasil-Colônia, os jesuítas advertiam os índios sobre o mal, com o intuito de retirar deles uma
suposta essência maligna, o que criava o sentido e o uso que os padres faziam da linguagem e da gramática no ensino dos
meninos. Ao disciplinar os corpos dos índios, os padres os levavam a acreditar que algo da sua linguagem gerava as práticas
diabólicas (sobretudo o canibalismo e a poligamia), as quais lhes traziam o sofrimento e as guerras. De maneira geral, foi por
esse motivo que o aprendizado da escrita e da leitura ganhou espaço entre os índios, além da promessa do acesso a essa
tecnologia desconhecida, só comparável com a magia dos xamãs. Introduzir o mal era difundir por meio da fala (da pregação)
os principais discursos europeus; discursos que versavam sobre o corpo, sobre a sexualidade e sobre o modo civilizado de
ser, isto é, mais do que difundir a palavra sagrada, a leitura e a escrita difundiam uma outra moralidade, considerada correta,
oposta à dos índios. Assim, a ação educativa que ocorria na colônia tinha por finalidade alterar o discurso sobre as práticas
indígenas que, a partir de um determinado momento, passaram a ser discursivamente diabólicas.
3. Produzir ou inventar o sujeito que se quer dominar - Tudo que o dispositivo do recolhimento criou foi um sujeito que não
existia: o índio. Deu-lhe forma, conteúdo, personalidade e lhe ofertou um modelo de educação. Quanto mais o índio resistia
ao recolhimento, mais ele se inventava, se materializava e ganhava existência real. O recolhimento foi uma espécie de
pedagogia que, ao educar o índio, o consubstanciou como ser cultural. Será, então, que a ordem pedagógica do século XVI,
mais do que educar, fundou uma nova “espécie”? Se isso for verdade, a educação, de uma maneira geral, em vez de libertar
o sujeito, o fixaria numa segunda natureza, produzida discursivamente? É óbvio que para essas questões não possuímos
qualquer resposta, embora desconfiamos que a ordem pedagógica do século XX andou criando na escola outras figuras
maléficas como, por exemplo, o ignorante, o analfabeto, o malandro, o negro preguiçoso, entre outras. Então, perguntemo-
nos: em que medida a pedagogia escolar - essa que se utiliza de princípios, métodos e técnicas de aprendizagem - seria,
hoje, a grande guardiã de uma renovada indianização do filho do outro?
Seja como for, isso nos leva a apostar que a vontade de indianizar o gentio inaugurou uma ordem pedagógica, cujo
empreendimento (construído ao longo da história) foi tomar a criança-índia por maligna e propensa ao mal, para depois
educá-la - ou deseducá-la. Tratava-se, nesse sentido, de subtrair o outro de sua condição inicial - nesse caso, de participante
de uma cultura - para impor-lhe uma verdade estranha, mas sem prescindir do consentimento do recolhido, que, munido dos
discursos sobre si, participava da sua inclusão-exclusão. Nesse complexo jogo, a criança-índia ajustava os discursos de que
dispunha aos discursos externos ou estranhos, posicionando-se contra ou a favor das verdades que o quebra-cabeça colonial
lhe permitia montar.
4. Impedir a prática dos rituais indígenas - A ordem pedagógica da época atuava em duas frentes distintas: no nível elementar
da sociedade, sobretudo domando as crianças, as mulheres, os fracos e os banidos, e na organização do Estado nos âmbitos
econômico, administrativo e jurídico. Ou seja, havia uma dupla pedagogia, ora praticada pelos padres, ora pelo Governador
Geral: uma que, aplicada aos fortes e produtivos, instaurava os poderes do soberano, e outra que, aplicada aos fracos e
vulneráveis, organizava o estado mental da colônia. Tal estado mental auxiliava no confisco dos rituais indígenas para o
interior do Estado, que se dava não apenas pelas leis portuguesas, mas também pela construção dos recolhimentos para os
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meninos. Vê-se, então, que a ordem pedagógica atuava no nível elementar da sociedade e se preocupava, basicamente, em
estatizar os rituais indígenas para que eles não concorressem com a governabilidade do Estado.
Mas, então, a prática dos jesuítas era a própria prática estatal? Não, pois o que ocorria, na verdade, era que os jesuítas
reproduziam nas suas práticas educativas a política de colonização do império português. Porém, o objetivo maior da ordem
jesuítica era garantir o poder de Roma e não a expansão do império português; daí porque atuava como se fosse o Estado. A
ordem pedagógica brasileira nascia, portanto, da interseção entre política e religião, e só se consolidava porque tanto a Igreja
como o Estado tinham o objetivo de estatizar os rituais indígenas; ao favorecer os índios fracos e vulneráveis, compelia os
mais fortes e produtivos a se renderem às normas estatais. O Estado e a Pedagogia coloniais eram, por assim dizer, duas
faces de uma mesma moeda, cujo objetivo era tentar impedir, a qualquer custo, que a lei comunitária, característica dos
rituais indígenas, sobrepujasse a lei externa, proveniente do Estado português.
Florestan Fernandes (1963) nos lembra que os índios Tupinambás se organizavam por rituais de sacrifício e não por Estado,
e que esses rituais instituíam as leis comunitárias necessárias à sua organização política e social.
Aliás, vale ressaltar, a propósito dessa referência à lei comunitária, a oposição que Grüner (2004, p. 18) faz entre o ritual do
sacrifício e o Estado23
:
[...] uma coisa que se poderia depreender da análise de Geertz é a seguinte: o Estado balinês - e a constatação
se torna extensiva a muitas outras culturas informadas por etnólogos e historiadores - é, imediatamente, um
„espetáculo‟ ritual participativo. O nosso, ao contrário, chegou a parecer um „espetáculo‟ (e certamente muito
pouco participativo), em que mesmo os mais dramáticos momentos de renúncia ao Poder têm, inevitavelmente,
algo de show dos meios de comunicação. Sem dúvida, isso tem a ver com o desenvolvimento das modalidades
„burguesas‟ e capitalistas de separar o espaço da política do da sociedade. (grifo meu)
Trata-se, na verdade, de dois rituais: um que instaura o sacrifício (comunitário) e outro que instaura o Estado (espetaculoso).
A diferença radical entre eles é que o ritual do sacrifício é, por excelência, o ritual dos rituais, em que “a própria prática do
ritual é seu próprio „objeto‟. Ela instaura a regra, ou a série de regras que impedem a plena satisfação do desejo” (op.cit., p.
19). O ritual do sacrifício é, portanto, originário, comunitário e participativo, mas não oriundo de uma mácula divina, e sim da
própria organização social (religiosa) das sociedades ditas arcaicas.
Parece-nos que o ritual do sacrifício ou o ritual originário era, nos tempos coloniais, o fenômeno que mais perturbava a
pedagogia nascente. No caso dos nossos índios, tal ritual apresentava-se sob a forma da guerra e do canibalismo, práticas
que instauravam a lei e que, na visão européia, precisavam ser eliminadas, pois concorriam com as leis do império português.
Portanto, na colônia, a ordem pedagógica foi uma ação de governo (do outro) que atuava para eliminar o ritual originário dos
índios em favor da imputação de um ritual cínico e espetaculoso. Cínico, porque os estados nacionais, que se encontravam
em processo de fortalecimento, preocupavam-se menos com os problemas sociais do que com os instrumentos de controle
social. Espetaculoso, porque criavam os rituais públicos de punição e ordem, ao trazerem para a colônia a figura do ouvidor,
do juiz, do escrivão etc.
Assim, a ordem pedagógica dos padres - que resultou na própria indianização dos filhos dos gentios - atuava entre dois
Estados rituais: um legítimo e forjado (o indígena) e outro forjado e cínico (o moderno). Não devemos entender legítimo como
23 Grüner sustenta-se nas análises feitas por Geertz, na obra Negara,sobre o ritual do Estado balinês.
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natural, mas como a não separação entre comunidade e Estado. Ademais, não devemos entender por forjado uma coisa
tramada, falsificada, mas algo como o trabalho de um ferreiro que dá vida a uma forma. Enquanto o primeiro insistia em
instaurar a lei pela guerra e pelo canibalismo, o outro forjava a culpa e a vergonha que deveriam eclodir dessas práticas
quando do seu confronto com a moral cristã.
Enfim, o sentido do recolhimento do filho do outro no século XVI foi confiscar a guerra e o canibalismo para o interior do
Estado, tarefa que contou com a contribuição de certa ordem pedagógica, cuja função foi permitir a seleção de alguns (filhos
dos outros) como representantes do Estado contra o ritual originário, daí porque era difícil separar a prática educativa dos
jesuítas das práticas de governo do Governador Geral.
Assim funcionava a ordem ou o dispositivo pedagógico do século XVI, o que, em nosso ponto de vista, perdurou por todo o
tempo colonial.
Resta saber o quanto tudo isso se prolongou para além da Colônia e contribuiu para formarmos uma espécie de ética do
recolhimento. Afinal, é válido nos perguntamos: que força é essa que, no campo educacional ocidental, nos convida, a todo
instante, a recolher os meninos para algum tipo de instituição, sob o argumento infalível de protegê-los?
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Arlete Pereira Moura
Universidade Estadual da Paraíba
CURRÍCULO, CONTEXTOS EDUCACIONAIS E DISCURSOS SOBRE FORMAÇÃO
DOCENTE
A formação e a valorização de docentes da educação básica são temas recorrentes na educação brasileira, constituem metas das políticas
educacionais, quando, na realidade identificam-se flagrantes contradições. Enquanto o discurso oficial enfatiza o aprender-a-aprender e o
aprender-a-fazer, as práticas, dinamizadas através de fundamentos psicológicos, investem no controle da subjetividade e priorizam o
aprender-a-ser e o aprender-a-conviver. O currículo torna-se o eixo de articulação discursiva das políticas e das práticas educacionais. Com
esse trabalho, pretendo sistematizar estudos realizados sobre paradigmas curriculares, que orientam a formação de docentes para a
educação básica no Brasil. Tomo como referência as mudanças produzidas na gestão da produção material, na organização do trabalho e
na configuração do Estado e a incidência dessas mudanças nas formas de comunicação social e de significação cultural. Ao assumir a
centralidade da cultura, nesse contexto de mudanças, assumo, também, que sobre a cultura ocorrem formas de regulação oriundas do
mercado e do Estado e estas se revelam nos discursos de flexibilidade, autonomia e competência, que orientam a organização do currículo
escolar e a formação de docentes. De um lado, esses discursos podem significar mais espaço para a participação democrática; de outro
lado, podem significar mais controle sobre o trabalho docente e a organização escolar. Essa ambigüidade discursiva sugere, em termos de
hipótese, que, mesmo existindo um centro de organização burocrática da educação nacional, do qual emanam as políticas, no território das
práticas, formulam-se decisões em meio a disputas hegemônicas de significados. Embora as hegemonias se identifiquem com formas de
poder, são contingentes e correspondem a demandas específicas e a lutas para manter e romper alianças de subordinação e ou de
dominação. Como essas disputas ocorrem no terreno da significação, o trabalho fundamenta-se nos estudos culturais e na análise do
discurso. Os estudos culturais quebram as fronteiras tradicionais do conhecimento disciplinar, favorecem a interlocução de diversos campos
teóricos e convergem, de forma criativa, com a análise do discurso, para a produção de conhecimento útil à transformação da prática
discursiva e, conseqüentemente, da prática social. A socialização das abordagens teórica e metodológica, que orientam a sistematização
desse trabalho, é relevante para agentes que atuam em instituições educativas e investem em processos de formação de docentes para a
educação básica.
Os organismos oficiais do Brasil, ao longo da história nacional, associam o baixo desempenho da educação básica à falta
de docentes habilitados/as. A solução para o problema é buscada, através de processos de formação, orientados por
princípios exógenos e articulados pelos mecanismos que reformam a educação, em decorrência das mudanças conjunturais.
As mudanças econômicas desencadeiam mudanças políticas e reformas institucionais. O Estado, de um lado, regula a
legislação relacionada à valorização do magistério deste nível de educação, bem como os processos de formação
imprescindíveis à operacionalização das reformas realizadas, enquanto a realidade confirma “trabalho precarizado”, salários
aviltantes e desqualificação profissional. De outro lado, o discurso oficial enfatiza a racionalidade instrumental, “aprender-a-
aprender” e “aprender-a-fazer”, enquanto as práticas dinamizadas incidem sobre o controle da subjetividade, quando
priorizam o “aprender-a-ser” e o “aprender-a-conviver”.
Por sua vez, os/as docentes, enquanto agentes responsáveis pela operacionalização das políticas educacionais,
desconhecem os fundamentos dos seus processos de formação, bem como os acordos internacionais viabilizadores da
aculturação necessária à realização das reformas sociais.
Currículo e Epistemologia | 45
Neste trabalho, tomo como referência as atuais mudanças produzidas na gestão da produção material, na organização do
trabalho e na configuração do Estado e a incidência dessas mudanças nas formas de comunicação social e de significação
cultural. Recorro ao passado, na tentativa de explicitar melhor a ressignificação dos paradigmas que fundamentam o
discurso curricular.
Entendo, a partir de Hall (1997), que se vive numa época de „centralidade da cultura‟ e sobre a cultura incidem formas de
regulação oriundas do mercado e do Estado e estas se revelam nos discursos de “flexibilidade”, “autonomia” e “competência”.
Esses discursos, incorporados nos textos que orientam a organização do currículo e a formação de docentes da educação
básica, são significados de forma antagônica: como possibilidade de participação democrática e como controle do trabalho
docente e do conhecimento escolar. Essa ambigüidade discursiva sugere, em termos de hipótese, que, mesmo existindo um
centro de organização burocrática da educação nacional, do qual emanam os textos, no território das práticas, formulam-se
decisões em meio a disputas hegemônicas de significados (BALL, 2007).
As hegemonias se identificam com formas de poder, são contingentes e correspondem a demandas específicas e a lutas
para manter e romper alianças de subordinação e ou de dominação (LACLAU, 2009, p.4). Como essas disputas ocorrem no
terreno da significação, o trabalho fundamenta-se nos Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais quebram as fronteiras tradicionais do conhecimento disciplinar e, numa expressão de Johnson (apud
NELSON, TREICHLER & GROSSBERG, 1995, p. 9), tornam-se “uma espécie de processo, uma alquimia para produzir
conhecimento útil sobre o amplo domínio da cultura humana”. Essa alquimia aproveita-se dos muitos campos teóricos das
últimas décadas, “desde o marxismo e o feminismo até a psicanálise, o pós-estruturalismo e pós-modernismo”.
A investigação empírica fundamenta-se na análise do discurso, conforme abordagem desenvolvida por Fairclough (2001),
pelos motivos seguintes.
Primeiro, com a intenção de utilizar a pesquisa para subsidiar a minha prática de professora de currículo. Como interferir na
prática, se ignoro a ressignificação do discurso curricular, veiculado em textos publicitários da mídia, em textos publicados em
livros didáticos e congressos da área de currículo, assim como em textos encaminhados às escolas por organismos oficiais?
Depois, por verificar que, os textos curriculares portadores das mudanças discursivas originárias das reformas educacionais
têm implicações na prática docente, mas não são implantados conforme a respectiva forma de produção. Na escola, são
produzidos novos textos, em meio a disputas de significados.
Para a apreensão desses significados, recorro à teoria social do discurso formulada por Fairclough (2001, p. 89), que
compreende o texto, a partir de Halliday, numa acepção ampla, como linguagem falada e escrita e, ao mesmo tempo, como
componente básico para a análise das práticas discursiva e social. Ao considerar que o texto não tem existência própria,
independente da história, o concebe como um conjunto de fragmentos do passado que terá repercussão no futuro. Uma
mudança de palavra ou de significado num texto, não representa um ato, meramente, individual, é uma ação política
emaranhada numa rede de comunicação.
O autor fundamenta o termo discurso no “uso de linguagem como prática social e não como atividade individual ou reflexo de
variáveis situacionais” (FAIRCLOUGH, ide, p. 92). Em primeiro lugar, entende que o discurso implica uma “forma de ação”,
uma forma em que as pessoas agem sobre o mundo e sobre outras pessoas, e como um “modo de representação”. Em
segundo lugar, implica uma relação dialética entre discurso e prática social ou, mais precisamente, entre prática social e
estrutura social. “O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo,
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constituindo e construindo o mundo em significados” (idem, p. 93). Entende que a prática discursiva é constitutiva de maneira
convencional, quando contribuiu para a reprodução da sociedade, quanto criativa, quando contribuiu para transformá-la.
Fairclough (ide, p. 100) desenvolve uma abordagem tridimensional do discurso, que reúne três tradições analíticas: a análise
textual e lingüística da Lingüística, a análise macrossociológica da prática social em relação às estruturas sociais e a análise
interpretativa ou microssociológica, que compreende as ações nos espaços compartilhados onde as pessoas “produzem seus
mundos „ordenados‟ ou „explicáveis‟”
Essas tradições se revelam no discurso como texto, como prática discursiva e como prática social. Embora a análise do
discurso como texto seja mais identificada como procedimento da lingüística e a análise das práticas mais relacionadas com
o sentido, o autor entende que essa distinção é irrelevante; as questões de forma relacionam-se, diretamente, às questões de
significado e todas elas estão implicadas em questões ideológicas e em relações de poder (hegemonia).
A prática discursiva, por sua vez, faz a mediação entre o texto e a prática social e envolve “processos de produção,
distribuição e consumo” de textos, tem relação com esses processos e acontece em contextos sociais específicos. Esses
processos, ao mesmo tempo em que incidem sobre o texto, configuram a “intertextualidade” e têm relação com a prática
social em termos de estruturas e de lutas sociais.
A historicidade do texto é compreendida como „intertextualidade‟, ou seja, “a propriedade que têm os textos de ser cheios de
fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados, explicitados ou mesclados e o que o texto pode assimilar,
contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante” (KRISTEVA apud FAIRCLOUGH, p. 114). A intertextualidade “implica a
„inserção da história (sociedade) em um texto e deste texto na história‟”(p. 134).
Para a apreensão de significados de currículo oriundos de acordos de financiamento da educação, contextualizo a
investigação no período de internacionalização do mercado (a partir de 1964), nas seguintes fases de desenvolvimento da
sociedade: 1) do “pleno emprego”(1968-1973), quando se insere o discurso do currículo por objetivos (comportamentos
observáveis); 2) do “desemprego estrutural” (a partir de 1990), quando se insere o discurso do currículo por competências.
1 À SOCIEDADE DO PLENO EMPREGO: OS COMPORTAMENTOS OBSERVÁVEIS
As reformas educacionais produzidas no Brasil, depois da Segunda Guerra Mundial, atrelam-se ao projeto de realização
econômica e decorrem de acordos de “cooperação” assinados com os Estados Unidos.
O pós-guerra assinalava para os países centrais, um período de acelerado crescimento econômico, decorrente das
inovações tecnológicas produzidas pela indústria bélica e, de certo modo, sustentado pela nova forma de organização do
Estado. À medida que o crescimento era enfatizado, ao planejamento era atribuída uma função indispensável. Sob a
influência de Keynes (SAVIANI, 1992, p. 23-24), o Estado assumiu o papel prioritário de realizar o “planejamento racional das
atividades econômicas”, sobretudo, em decorrência da crise do capitalismo, que eclodira em 1929.
No entendimento de Keynes, a questão central era combinar a regulação da economia pelo Estado com o funcionamento da
economia de mercado baseada na propriedade privada. A coincidência das idéias keynesianas com os programas da social-
democracia contribuiu para promover políticas, que visavam à construção e à consolidação do Estado de bem-estar, nos
países europeus. Se nos Estados Unidos não existiu um Estado do bem-estar, o Estado de Guerra, suscitado pelo terror do
comunismo da União Soviética, conseguiu mobilizar o conjunto da sociedade e, de certa forma, repassar, para ela, os
encargos da política social.
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Para o Brasil, o pós-guerra assinalava prosperidade econômica, dinamizada pelo nacionalismo desenvolvimentista, e um
crescente processo de urbanização. Enquanto essa ideologia situava-se no nível político, os acordos de cooperação
assinados com os Estados Unidos financiavam a política de realização econômica e, inclusive, as reformas educacionais,
influenciadas pela racionalidade taylorista.
Na interpretação de Vargas (1985), não ocorreu um processo de transposição da ideologia taylorista para as “elites”
brasileiras, mas a formulação de um projeto explícito de realização do capitalismo nacional. Aquele projeto visava à criação de
condições realistas para que a acumulação do capital se realizasse de forma mais estável. Conforme Tavares (1980, p 16),
era imprescindível “difundir uma concepção de mundo orientada a partir das exigências da produção”, que se desenvolvia
sob a influência do taylorismo e destinava-se à transformação das massas em trabalhadores pela via do consenso e não da
coerção.
A industrialização que se desenvolveu àquela conjuntura, com a implantação da indústria pesada, teve a forte participação do
Estado, tanto como produtor quanto como árbitro dos conflitos existentes entre as classes sociais. E o taylorismo que se
iniciou pela via do privado foi sendo assimilado pelo Estado, inclusive pelas políticas educacionais, que passaram a ser
conduzidas como parte do projeto de dinamização da economia nacional.
À medida que eram assinados acordos na área da economia, que delineavam o perfil do capitalismo brasileiro, também,
eram assinados acordos de cooperação financeira e técnica para a educação, que por sua vez definiam o perfil dos
profissionais que deveriam ser habilitados (TAVARES, idem, p. 15).
O primeiro acordo firmado entre o Brasil e os Estados Unidos, em 1946, destinava-se a equipar 33 escolas técnicas
industriais, de vários Estados Brasileiros. Naquele período, foi planejado o Programa de Aperfeiçoamento do Ensino Primário,
a partir do Acordo Geral de Cooperação Técnica, assinado em 1953, e que se realizaria através do Programa Brasileiro
Americano de Assistência ao Ensino Elementar (PABAAEE).
Através do PABAAEE, foram realizados vários encontros sobre currículo e programas específicos do ensino primário, nos
Estados do Brasil, promovidos cursos destinados à formação de supervisores para aquele grau de ensino, produzidos vários
tipos de material didático, editados livros e, até, uma revista especializada. Foram mantidos, ainda, programas de rádio e, em
colaboração com a Divisão de Meios de Comunicação da USAID24, foram elaborados videoteipes, para a utilização de
recursos audiovisuais na escola primária (VARGAS, idem, p. 45).
O PABAAEE confirmou-se como um “programa ambicioso e uma experiência pioneira da infiltração” dos Estados Unidos
na educação da América Latina (idem, p. 47). No entanto, apesar dos acordos assinados com o Brasil, na década de
sessenta, o ensino elementar continuava com problemas, tanto em relação à formação inicial de professores/as e à questão
salarial, quanto em relação ao desempenho escolar.
À época, embora a indústria se confirmasse como modo de produção dominante, existia uma contradição entre a forma
de realização econômica (empréstimos) e a ideologia política (nacionalismo desenvolvimentista). Com a posse de João
Goulart (PTB), simpatizante das idéias nacionalistas, à Presidência da República, a crise social acirrou-se e a solução
engendrada confirmou uma ruptura de nível político (SAVIANI, 1976, p. 179) e a condução dos militares ao poder (1964).
O pacto de dominação foi sendo tecido numa sociedade que se modernizava do ponto de vista econômico e limitava os mais
diversos meios de participação, tanto da sociedade civil como do próprio Congresso Nacional. O poder de Estado ficou
centralizado nas mãos de um “Presidente-general”, que legislava, através de Decretos, em nome da “elite revolucionária”.
Nessa dinâmica, o Estado, com feições diferenciadas, assumia função primordial. Enquanto amplo, deveria ser produtor e
24 USAID – Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.
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investir em “capital humano” para garantir o retorno social esperado. Enquanto “ditador”, assinaria acordos de cooperação
internacional para implementar as reformas sociais.
Pari a passu à realização de acordos na área econômica, na educação, os acordos estabeleciam os currículos para o
ensino fundamental, através do I Plano Setorial de Educação e Cultura – I PSEC (1972-1974), articulado ao I Plano Nacional
de Desenvolvimento – I PND (1972-1974).
Dentre as dez grandes realizações previstas no I PND, destacavam-se: desenvolvimento harmônico entre governo e setor
privado; formação de recursos humanos, no sentido de promover o desenvolvimento com transformação social. Para a
educação, a previsão era implantar o ensino de 1º grau (8 anos), integrando o primário (4 anos) e o ginásio (4 anos), para a
universalização desses dois níveis de ensino (BRASIL. 1971a, p. 7).
O I PSEC incluía, entre outros, os seguintes projetos: aperfeiçoamento e treinamento de professores para o ensino
fundamental e normal; plano de carreira, melhoria de remuneração do magistério do ensino fundamental; reformulação de
currículos; erradicação do analfabetismo pela universalização do ensino fundamental obrigatório e gratuito, na faixa etária dos
7 aos 14 anos (BRASIL, 1971b, p. 25).
O projeto reformulação de currículos pretendia dotar os sistemas de ensino de currículos “realistas”, “flexíveis” e
“integrados”, através dos seguintes objetivos, fixados para o triênio: a) elaboração de currículos para o ensino fundamental,
pelos Estados e Distrito Federal; b) definição de mecanismo de implantação, controle e avaliação; c) treinamento de
professores para o conhecimento das bases dos novos currículos; c) preparação de material didático adequado à
implementação curricular (BRASIL, 1971b, p. 180).
O discurso oficial justificava, através da teoria do capital humano, a necessidade de investimentos na educação, para o
fortalecimento “da sociedade do pleno emprego”, e através da pedagogia dos objetivos, justificava a base teórica dos
“currículos realistas”, que seriam aferidos pela avaliação.
A abordagem sistêmica era o referencial utilizado para orientar a estruturação educacional em níveis hierárquicos e para
manter um sistema de comunicação entre as equipes técnicas de Currículo e Supervisão da Secretaria de Ensino
Fundamental do MEC, a Equipe Central de Supervisão da Secretaria Estadual de Educação, Equipes de Supervisão
Intermediárias (Regiões de Ensino) e Equipes de Supervisão das Escolas.
Na Paraíba, foram criadas equipes técnicas (Secretaria, Regiões e de Escolas), que realizavam o planejamento e orientavam
a operacionalização curricular. As equipes da Secretaria (Supervisão e Currículo) eram constituídas por pedagogas
habilitadas pela Universidade Federal; as equipes Regionais e de Escolas eram constituídas por Supervisores/as
qualificados/as, através de Cursos de Formação de Supervisores/as financiados pelos Acordos MEC25/USAID.
As Equipes técnicas da Secretaria de Educação, além da formação universitária, recebiam treinamentos da Secretaria de
Ensino Fundamental do Ministério da Educação, como meta do I Plano Estadual de Educação (1972-1975). A formação
universitária em Pedagogia (Habilitações: Supervisão, Orientação e Administração) fundamentava-se em teorias compatíveis
à conjuntura de repressão e de milagre econômico (1968/1973).
As pedagogas estudavam, sobretudo, Tyler (currículo por objetivos) e Bloom (taxionomia de objetivos educacionais - domínio
cognitivo), para procederem à elaboração dos currículos “realistas”, que seriam implementados nas escolas. Embora Tyler
indicasse fontes para a seleção de objetivos, as especialistas partilhavam um grande desafio: como formular objetivos, para
os domínios da aprendizagem, se recebiam, apenas, orientação técnica (como fazer), relativamente, ao domínio cognitivo?
25 MEC – Ministério da Educação
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Nesse entendimento, o currículo era instrumento de controle do ensino e a “ação pedagógica” recomendada era de ordem
metodológica.
As demais supervisoras e docentes do ensino de 1º grau (atual ensino fundamental), respectivamente, recebiam orientação
idêntica: selecionar objetivos, dentre aqueles formulados nas propostas curriculares, para a elaboração e implementação dos
“currículos plenos”, a serem implementados no âmbito escolar.
Àquela conjuntura, fábrica e escola aproximavam-se por princípios de racionalidade. Se a adequação de meios a fins
(lucros) era fundamental à racionalidade fabril, a mensuração de resultados era fundamental à educação. E os objetivos
comportamentais constituíam parâmetros para a avaliação.
A racionalidade, também, impunha a estratificação do trabalho educacional. A descentralização era enaltecida, mas o
controle educacional estava centralizado nas equipes de Currículo e de Supervisão, localizadas nos âmbitos de Ministério e
Secretarias de Educação, e estruturadas conforme referência anterior.
Como o planejamento era centralizado, o “feedback” das escolas às equipes da Secretaria e do Ministério da Educação não
revelava a “eficiência” esperada. A “distorção da ação pedagógica” foi identificada e denunciada por organismos oficiais:
“falta de formação adequada dos/das docentes” (COSTA, 1980).
A partir da década de noventa, as mudanças processadas no padrão de acumulação capitalista impuseram reformas
políticas e pedagógicas, na conjuntura de reformas sociais. As reformas pedagógicas, levadas a efeito a partir dos novos
acordos de cooperação econômica, visam à formação de novo consenso e à manutenção das relações de poder
A nova racionalidade do mundo empresarial, incorporada pelo Estado, passou a orientar o processo de (des)centralização)
educacional e a respectiva dinâmica operativa. As políticas curriculares, traduzidas em diretrizes, fundamentam-se em
competências, extensivas aos níveis de ensino e aos processos de formação de docentes. Nessa conjuntura de crises
generalizadas, decorrentes, sobretudo, do desemprego estrutural, o currículo por competências tornou-se a solução,
justificada pelo discurso dos neoliberais.
AO DESEMPREGO ESTRUTURAL: AS COMPETÊNCIAS INSTRUMENTAIS
O padrão de acumulação capitalista, que se torna dominante no ocidente, a partir da década de noventa, emerge como
paradigma da “produção flexível”. A nova produção em função da demanda, substitui a “burocracia” (cargos fixos) pela “ad
hocracia” (emprego temporário) e desestabiliza o quadro funcional de trabalhadores.
Para o aumento da concentração de capitais, concorrem a fusão de empresas e (des)centralização da produção, realizada
pela transferência de empresas para pólos dinâmicos, que dispõem de recursos adequados: tanto em termos de pessoal
passível de qualificação, quanto em termos de infra-estrutura, inclusive proporcionada pelos Estados nacionais. Esse
processo muda a configuração do mundo do trabalho e desencadeia uma crise social generalizada.
A competitividade produzida pela fusão de empresas e pelas globalizações econômica, financeira e cultural e facilitada
pela revolução informacional e pelos meios de comunicação exclui o Estado da produção e o responsabiliza pelo
agravamento da crise social. Segundo essa lógica, o Estado, ao permitir o fortalecimento dos sindicatos e ao conceder
aumentos salariais, contribuiu para o acirramento de tensões trabalhistas e, conseqüentemente, para a redução dos lucros
empresariais.
Nesse entendimento, tal entidade precisa ser forte, para frear a política sindical e “flexibilizar” a legislação trabalhista, e fraca,
para controlar a economia e reduzir os investimentos na política social, que deve ser regulada pela livre concorrência.
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Ressignifica-se, assim, o liberalismo clássico e o discurso neoliberal emergente fundamenta as reformas do Estado e a
realização de novos acordos de financiamento da educação.
Se o Brasil já vivia a crise da dívida, produzida pelos empréstimos viabilizadores da industrialização, a partir da década
de 90, a situação se agrava. A crise econômica concorre para o aumento dos juros, das taxas de inflação e,
conseqüentemente, para o aumento do desemprego estrutural e para a redução do emprego formal. A solução buscada,
através de Conferências (Consenso de Washington – 1989 e 1996), consiste na realização de acordos reguladores da política
neoliberal, formalizados com agências internacionais e multilaterais.
Com o ajuste da economia à dinâmica “flexível” do mercado global, o Estado brasileiro e o projeto de desenvolvimento
nacional, conforme Sampaio Júnior (1999, p. 57), ficam subjugados e limitados ao processo de liberalização econômica. O
Estado, de fomentador de uma política de industrialização, passa a definir o ritmo de ajustamento da economia ao mercado
internacional. A mudança do perfil do Estado reduz o seu poder de definir a política educacional em função dos interesses da
sociedade e mantém a nova política atrelada aos projetos financiados pelo Banco Mundial.
Até a década de 60, embora o Banco Mundial não privilegiasse a educação, os projetos que financiava para os países
periféricos, “pautavam-se pelas metas de crescimento econômico” (FONSECA, 1996, p. 23). Os empréstimos concedidos
destinavam-se, prioritariamente, à estrutura física (construções) e à educação de 2º grau (atual ensino médio), especialmente,
técnica e vocacional (idem, p 127-131).
O crescimento descontrolado da pobreza nos países periféricos e as reações sociais que eclodiram no Terceiro Mundo,
sobretudo, na América Latina, contribuíram para que o Banco alterasse as suas prioridades (TORRES, 1996, p.128). Os
novos financiamentos privilegiam a agricultura, o setor social e a escola de 1º grau (atual ensino fundamental), significada
como “alicerce para a estratégia de redução da pobreza”.
À medida que à educação é atribuída a meta de fomentar a aprendizagem de uma nova “ética”, capaz de minimizar as
tensões sociais, as atribuições dos/das docentes extrapolavam os limites do “trabalho pedagógico” e não incluem o direito
mais peculiar ao magistério da educação básica: o direito à profissionalização.
Nessa conjuntura de neoliberalismo, a teoria do capital humano é revitalizada e a pedagogia das competências, conforme
Pacheco (2005, p. 66), “enquadra-se numa ideologia não só individualista”, ou seja, de sujeitos empreendedores do próprio
“itinerário de formação”, como adaptada à “flexibilidade” do mundo do trabalho, que não garante empregos permanentes.
A política neoliberal coloca as escolas e os consumidores da educação na competitividade do mercado, justificada por
discursos contundentes. Para a escola, a competitividade representa possibilidade de melhoria do seu perfil e da sua
organização e, conseqüentemente, oferta de serviços de qualidade, balizados por um currículo nacional. Para os
consumidores, a competitividade facilita a escolha de melhores cursos e o desenvolvimento de competências mais adaptáveis
às demandas do mercado. Aliás, o “desenvolvimento” de competências instrumentais à inserção dos desempregados no
mercado informal tornou-se meta prioritária dos acordos de financiamento, induzidos por organismos multilaterais e
internacionais.
A Conferência de Jontiem (Tailândia, 1990) constituiu o marco para a redefinição dos investimentos do Banco Mundial, na
educação. Os signatários da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, inclusive o Brasil, assumiram, de “forma
consensual”, que o baixo desempenho da educação decorria “tanto do sistema de formação inicial e da escassez de formação
continuada dos/das professores/as quanto da precariedade das práticas de seleção, de admissão e de lotação e,
fundamentalmente, da política salarial e de carreira” (BRASIL, 1993, p. 42).
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O governo brasileiro, da época, comprometeu-se com a elaboração do Plano Decenal de Educação (1993-2003), como
condição para o acordo de financiamento da educação. Os Projetos Nordeste e Fundescola, aprovados para
operacionalização desse Plano, visavam à implantação de um currículo nacional e de um sistema avaliação (Projeto
Nordeste) e à implantação de uma “Rede Nacional de Formadores” (Projeto Fundescola), através dos Parâmetros
Curriculares em Ação e dos Referenciais Curriculares Nacionais. Os Parâmetros em Ação e os Referenciais Curriculares,
elaborados e divulgados pelo MEC, teriam como objetivo subsidiar as Secretarias de Educação na operacionalização do
currículo nacional.
Através de um modelo de gestão (des)centralizado em pólos, o MEC assumiu a responsabilidade pela Coordenação Nacional,
pela Coordenação Pedagógica do Projeto de Formadores da Rede e repassou aos Municípios a responsabilidade pelos
Coordenadores Gerais, Coordenadores de Grupo e Professores. O funcionamento da rede deveria manter-se, através de
encontros sistematizados entre as referidas equipes, visando à efetivação de uma dinâmica de controle permanente das
“ações pedagógicas”.
No Estado da Paraíba, foram instalados pólos para a implantação da rede, no entanto confirmaram-se “distorções” nas
ações pedagógicas. Sem dúvidas, inaugurava-se uma nova forma de (des)centralização, compatível à “flexibilidade” da
produção. As tradicionais equipes técnicas da Secretaria de Educação foram reduzidas e as mediações entre MEC e escolas
seriam estabelecidas através dos Formadores de Rede, contratados “ad hoc”.
Quanto aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), embora submetidos à discussão de docentes do ensino fundamental,
em seminários realizados nas Delegacias de Ensino (posteriormente extintas), formalizaram o trabalho de especialistas
contratados pelo Ministério da Educação. A teoria do conhecimento subjacente aos PCN, a psicologia genética (Piaget), por
sua vez, não é acessível aos/às docentes desse nível de ensino e não subsidia os Parâmetros em Ação, que têm como
objetivo (BRASIL. 2002, 17) “ensinar a fazer, para desenvolver competências profissionais básicas, sem as quais não se
pode falar de profissionalização [...] competência de utilizar a leitura e a escrita como instrumento para o desenvolvimento
profissional e a competência de trabalhar em equipe”.
Os Parâmetros em Ação instituem o Caderno de Registro, para “[...] ser utilizado nas atividades realizadas nos grupos de
estudo, servindo de apoio às reflexões e, assim, constituir um registro dos percursos de formação” (BRASIL, idem, p. 59).
E a relação entre formação e valorização do magistério? Em se tratando de uma formação reduzida ao “aprender-a-fazer”,
às “competências de utilizar a leitura e a escrita e de trabalhar em equipe”, qual a concepção de competência utilizada? Será
aquela desenvolvida por Perrenoud?
Conforme Kuenzer (2003, p. 53), Perrenoud, quando conceitua competência “como uma capacidade de agir eficazmente em
determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”, explicita, de forma precisa, a integração
entre conhecimento e competência. Para a autora, Perrenoud entende que, „as competências mobilizam conhecimentos,
põem os conhecimentos em relação, e em ação‟. No entanto, não diferencia “o conhecimento tácito, derivado da articulação
entre saberes diversos e experiência” ou conhecimento do senso comum, que “consiste em mobilizar conhecimentos para a
ação”, além de não estabelecer “relação entre trabalho e educação, atendo-se, apenas, ao mundo da escola”.
Essa noção de competência parece subsidiar a formação dos docentes do ensino fundamental no Brasil. Em 2003, último
ano de vigência do Plano Decenal de Educação, o salário desses docentes continuava sendo um problema (INEP, 2010),
tanto em relação a outras categorias profissionais como entre professores/as nas diversas regiões de ensino. “Entre o
menor salário, o de professor da educação infantil, e o de juiz, a diferença chega a ser de 20 vezes [...] O professor da
educação infantil do Sudeste ganha R$ 522 e o do Nordeste, R$ 232”.
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As sínteses produzidas levam a inferir que, os projetos financiados para a educação básica, não mudam o perfil do
magistério deste nível de educação, mas contribuem para aumentar a dívida externa e para redirecionar a política de
(des)centralização educacional do setor público para o âmbito do privado. De certa forma, pode-se até considerar que houve
evolução, em termos de titulação acadêmica dos/das docentes, mas a defasagem salarial se mantém e o controle da
subjetividade desses/dessas docentes, através da ressignificação do discurso da racionalidade, continua como meta
prioritária das reformas educacionais.
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Antónia Camilo Cunha
Universidade do Minho – Instituto de Educação
EDUCAÇÃO, CURRICULO E INVESTIGAÇÃO – CERTO E ERRADO!?
A reflexão surge na sequência da nossa constatação empírica, sobre a investigação em educação, nomeadamente, o “foco” que é dado
nos Mestrados e Doutoramentos e que parecem estar “ancorados” na ideia de que o conhecimento e o saber (a verdade) se estruturam
ainda numa certa (e confortável) intemporalidade…
Olhando um pouco para o pensamento de Popper nomeadamente, as obras: “Lógica da Pesquisa Científica”, – onde discute a problemática
do que é a indução e do que é a ciência; e “ Sociedade Aberta e seus Inimigos” – onde analisa o conceito de sociedade aberta e todas as
inter - relações (de poder); vai-nos permitir constatar, que a investigação pode (deve) ser entendida como um sentido ético sustentado pela
ideia de humildade e honestidade.
Ao defendermos o sentido ético (atitude), permite-se dizer com maior acerto que a ciência (em educação) á múltipla e hospitaleira. No
entanto, para que esse entendimento seja real, será necessário que haja humildade e honestidade, por parte dos investigadores ( da
ciência) fugindo assim à tradição clássica (dura) do positivismo lógico ou de um extremo demasiado flexível e radical da dimensão
hermenêutica. Assim, para sustentar, uma outra forma de fazer/dizer ciência, vai (Popper) a Sócrates e recupera a ideia “eu posso estar
errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço poderemos aproximar-mos da verdade”, vindo assim este facto consolidar a ideia de
humildade (em posso estar errado!) e de honestidade (por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade!). Neste contexto, parece
descortinar-se o sentido da temporalidade do conhecimento…
É neste envolvimento que a reflexão pretende carrilar...convocando uma “nova/velha” ideia de investigação educacional…
PONTO DE PARTIDA
A reflexão surge na sequência da nossa constatação empírica sobre a investigação em educação, e na ideia de que o
conhecimento e o saber se estruturam ainda numa certa ( e confortável) intemporalidade - “velhos tempos”.
Foi esta constatação que nos fez olhar um pouco para o pensamento de Karl Popper nomeadamente, as obras: “Lógica da
Pesquisa Científica” - onde discute a problemática do que é a indução e do que é a ciência; e “Sociedade Aberta e os seus
Inimigos” - onde analisa o conceito de sociedade aberta e todas as inter-relações (de poder). Este olhar, vai-nos permitir
constatar que a investigação pode (deve) ser entendida como um sentido ético sustentado pela ideia de humildade e
honestidade que, “rompem” com o conforto das verdades mistificadas. Verdades essas que em última análise apenas servem
algum tipo de medo, de sobranceria ou “tribo científico”.
Ao defendermos o sentido ético (atitude), permite-se dizer com maior acerto que a ciência (em educação) é multiplica e
hospitaleira. No entanto, para que esse entendimento seja real, será necessário que já haja humildade e honestidade, por
parte dos investigadores, havendo neste sentido a necessidade de integrar a tradição clássica do positivismo lógico com a
intemporal dimensão hermenêutica. Assim, para sustentar, uma outra forma de fazer/dizer ciência, Popper convoca Sócrates
e recupera a ideia “eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço poderemos aproximar-mos da
verdade”. Este facto vem consolidar a ideia de humildade (eu posso estar errado) e de honestidade (por um esforço,
poderemos aproximar-nos da verdade) – “novos tempos”.
Currículo e Epistemologia | 55
SOBRE CIÊNCIA, CONHECIMENTO E SABEDORIA
Olhar para a ideia de educação e investigação necessariamente, ter-se-á de olhar para o miolo desses missões.
Necessariamente, teremos de olhar também para a “mola de impulso” que é a ciência, o conhecimento e a sabedoria como
sustento para assegurar a Vida Boa.
2.1. Ciência
No tocante à ciência, apesar de existirem discursos/olhares diferenciados podemos dizer com acerto (olhar comum) que a
ciência chama a si a ideia de que qualquer conhecimento racional é elaborado a partir da observação, do raciocínio (razão
positiva mas também hermenêutica) e da experiência. Deste sentido emergem teorias, leis, que vão explicar e sintetizar (ideia
de síntese) os fenómenos que foram objecto desse olhar.
A ciência neste envolvimento, vai convocar conceitos como validade metodológica, horizontes epistemológicos, sem esquecer
as qualidades de base sustentadas pela ética.
Assim, a mola de impulso para que este sentido seja real tem como substância a curiosidade intelectual, o espírito crítico
(reflexão), o espírito de submissão aos factos (humildade), a consciência de que o conhecimento tem um tempo e um espaço
– intemporalidades do conhecimento, que encontramos por exemplo em Bachelar e Khun.
Este quadro pretensamente seguro levou a considerações extremadas ao considerar que a ciência poderia substituir a
religião, a filosofia, a poesia… Ora isso, não é bem assim!
A ciência tem as suas virtudes mas, também os seus limites.
2.2. CIÊNCIA E CONHECIMENTO
O conhecimento, é resultado da função empírica e teórica do “espírito”. Esta ideia de “espírito” carrega a ideia sensível, do
inteligível e do metafísico – ou seja, a ideia do “homem todo”. O conhecimento é assim dado pelo carácter “natural” (sentido
antropológico, ontológico… e de certa forma cultural); e pelo carácter “construído” (cuidadosamente e racionalmente
construído).É destas constatações que nasce a ideia de origem e o alcance da ciência e do conhecimento.
2.3. CIÊNCIA, CONHECIMENTO E SABEDORIA
A sabedoria (sua praxis) é uma preocupação que remonta à origem da cultura ocidental. É um estado, que todos devemos
alcançar. Um estado de saber, de conhecimento perfeito. Por exemplo, com Platão - a sabedoria como forma das ideias
puras; como os Epicuristas - a sabedoria como felicidade; com os estóico - a sabedoria como domínio de si próprio, através
do conhecimento… e mais próxima de nós Hegel - a sabedoria “coisa” que vai além do pensamento filosófico.
A sabedoria trás consigo conceitos e práticas intemporais, como: prudência, moderação, sobriedade…
AO ENCONTRO DE KARL POPPER
Recuperando a ideia apresentada no ponto um (ponto de partida), quando Popper faz o “elogio” a Sócrates e pega na ideia
“eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço poderemos aproximar-mos da verdade”
Estamos perante a ironia (eu posso estar errado - o sentido negativo/positivo) e a maiêutica (através de um esforço - o parto -
e a proximidade com a verdade).A humildade e a honestidade surgem assim como pilares básicos de toda a ética.
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3.1. A HUMILDADE
A humildade exprime a tomada de consciência dos limites do conhecimento humano é por isso que adianta (defendo) o
caminho da falsificabilidade uma vez, que todo o conhecimento humano não tem condições de saber, se chegou ou não à
verdade. A ciência é conjectural e não “coisa” dos finais”.
Neste sentido, a humildade é condição básica para uma boa ciência. Aqueles confirmam ou infirmam hipóteses e que têm
pretensão de generalizar “sua verdade” podem estar a contribuir para uma generalização precipitada e portanto
(eventualmente) arrogante. Neste envolvimento, defende-se uma atitude de não impor aos outros as pretensas verdades
construídas, verdades essas que vão acabar por fundar e fundamentar crenças, mistificações e certezas ideologicamente
construídas. Este sentido, este conhecimento é aquele que na sociedade (na ciência/educação) controla, oprime, violenta,
domina os outros em virtude dos seus pontos de vista - verdades irrefutáveis… intemporalidades do conhecimento…
Por essa razão, Popper vem directa e indirectamente - através do critério de falsificação, abrir portas para um conhecimento
outro - interpretativo, qualitativo… onde o esteio fundador e influenciador é, de que, o conhecimento nunca é o último -
temporalidades do conhecimento.
3.2. A HONESTIDADE
Da consciência da humildade nasce a consciência da honestidade . A honestidade vem dizer, que a investigação perante as
conclusões que não vão ao encontro dos instrumentos e das crenças do investigador (a ideia do erro) deverá ser considerada
nesse patamar - limite do conhecimento.
Os limites do conhecimento não devem ser motivo de abandono e da busca (sempre inacabada) da verdade. A busca da
verdade em Popper não dignifica o abandono do racionalismo científico (positivo/objectivo), mas significa também o outro lado
– um racionalismo de subjectividade hermenêutica26. Este seria o sentido ético fundamental.
O VALOR MORAL E ÉTICO DA CIÊNCIA
Pelo exposto, o valor moral e ético da ciência/investigação deixariam de estar ancoradas numa crença (positiva) que nos
favorecia/esclareceria a verdade, para aceitar e incorporar um campo em que os fenómenos não podem ser sempre
explicados por meio da lógica, pois muitos deles pertencem ao campo da pré-reflexão e da transcendência.
Neste sentido, o racionalismo (lógico e crítico) deixaria de ser uma teoria fechada, para ser uma atitude, isto é, uma
argumentação lógica/explicação, mas também a incorporação de possibilidades prováveis/possíveis, (fé e razão -
possibilidades de uma nova hermenêutica)27. É se quisermos, a construção de um sentido moral sem necessidade de
demonstração lógica. É algo, para ser assumido e não compreendido.
4.1. ENTRE A TEORIA E A CRENÇA – PARA UMA “NOVA HERMENÊUTICA”
Estamos pois, num quadro de análise teórica. As teorias são aceites por força da argumentação racional objectiva e
demonstrativa enquanto que, as atitudes são do campo da força da crença.
26 Só conseguimos explicar as coisas que não vêm da razão. 27 Um dia perguntaram ao Papa Bento XVI como explicava/demonstrava a existência de Deus, a que ele respondeu: “Eu não explico… por isso, acredito – tenho fé…”
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Assim, a ciência como teoria28 sustentada na razão crítica, mas também como atitude no campo da fé e da crença. A
dimensão ética expressa essas duas variáveis. Uma ciência como teoria seria redutor e eventualmente, (certamente) não
ético pois não contemplava as dimensões do ser - imanência e transcendência. É a ética, que permite o sentido da humildade
e da honestidade perante as nossas limitações.
Surge assim, uma ideia de transcendência na “coisa” Ciência (na filosofia da ciência, mas também na filosofia educacional
e política). A transcendência para Popper, significa superar a condição de simples teoria e adaptar a condição de atitude que
contem a crença e a fé.
Estaremos porventura, numa nova hermenêutica (da ciência) que se constitui como unidade fundamental, pela
congregação da razão e da fé. É desta unidade fundamental, que emerge o sentido da demarcação, (outro conceito
importante no pensamento de Popper) encarado como proposta, para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma
convenção não apenas no sentido indutivo29 (em que não é muito adepto), mas também, e sobretudo, dedutivo e
transcendente30. A ciência nasce assim, num primeiro momento de uma atitude que irá construir uma teoria sobre a ciência, a
política e a história.
4.2. UMA ÉTICA EPISTEMOLÓGICA
Assim, nasce a ideia de uma ética epistemológica (imanente/razão e transcendente/fé) que é o grande sólido para estimular e
proteger a liberdade de crítica e de pensamento… ou seja, a liberdade dos homens! Neste avatar, a epistemologia não pode
ficar refém de um racionalismo crítico como é o caso do Positivismo Lógico (do círculo de Viena) da Psicanálise (Freud) ou do
Marxismo. A epistemologia, como atitude contempla parâmetros da razão, mas também, os caminhos da cultura, do contexto,
dos valores (o axiológico).
“NOVO” PONTO DE PARTIDA…
A ciência não deve perder o carácter falível da sua condição, deve sim, promover o sentido da liberdade. O “verdadeiro e o
falso” convivem juntos. Perceber isto é condição de liberdade humana, mais que epistemológica, é ética. A educação e a
investigação também é, disto que se trata…
NOTAS
Só conseguimos explicar as coisas que não vêm da razão.
Um dia perguntaram ao Papa Bento XVI como explicava/demonstrava a existência de Deus, a que ele respondeu: “Eu não
explico… por isso, acredito – tenho fé…”
Uma teoria exige elementos racionais e estruturas logicamente construídas, aceites e compreendidas…
A indução pode ocultar a falsidade de uma proposição, ou mostrar-nos eventos repetidos aos quais atribuímos valor de
verdade (dogmas) comprometendo a racionalidade da ciência. Ao rejeitar todo o tipo de dogmatismo, a indução está perto
28 Uma teoria exige elementos racionais e estruturas logicamente construídas, aceites e compreendidas… 29 A indução pode ocultar a falsidade de uma proposição, ou mostrar-nos eventos repetidos aos quais atribuímos valor de verdade (dogmas) comprometendo a racionalidade da ciência. Ao rejeitar todo o tipo de dogmatismo, a indução está perto dele, isto é, a atitude de “certeza absoluta” em relação a determinada proposição ou teoria pode conduzir à dominação e ao autoritarismo (totalitarismo). 30 A dedução compromete menos a racionalidade da ciência uma que ao primeiro evento contrário a uma determinada tese devemos resignar e abandonar a mesma tese. Ela revela mais facilmente a falsidade numa proposição, e portanto, das nossas teorias. Para Popper a dedução aproxima-se mais da verdade.
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dele, isto é, a atitude de “certeza absoluta” em relação a determinada proposição ou teoria pode conduzir à dominação e ao
autoritarismo (totalitarismo).
A dedução compromete menos a racionalidade da ciência uma que ao primeiro evento contrário a uma determinada tese
devemos resignar e abandonar a mesma tese. Ela revela mais facilmente a falsidade numa proposição, e portanto, das
nossas teorias. Para Popper a dedução aproxima-se mais da verdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Durozoi.G, & Roussel, A.(2000).Dicionário de Filosofia - Dicionário Temático. Porto. Porto Editora.
Popper, Karl (1974). A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: S. P. Cultrix.
Popper, Karl (1974). A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. Belo Horizonte: Italaia.
Popper, Karl (2001). A Vida é Aprendizagem. Lisboa: Edições 70.
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Diana Patricia Ferreira de Santana
Faculdade de Educação da UNICAMP
AS ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS E AS CONCEPÇÕES DE
MATEMÁTICA
Nossa intenção nesse trabalho é problematizar algumas questões com relação às Orientações Curriculares Nacionais a partir da
constatação de Steiner que afirma que “os professores de matemática possuem, mesmo que de maneira tácita, concepções particulares a
respeito da matemática que interferem em sua prática pedagógica”. Nas OCN podemos constatar a proposição de algumas concepções de
ensino de matemática e não propriamente concepções de matemática. Assim, a concepção de matemática acaba sendo algo submetido à
escolha do professor. As implicações pedagógicas da assunção de certas concepções de matemática têm sido discutidas no âmbito da
educação matemática, por alguns autores. Entretanto, Garnica caracteriza esse tipo de preocupação como atinente ao campo das
discussões da filosofia da educação matemática e estabelece uma diferença de ordem didática entre as preocupações da matemática, da
educação matemática e da filosofia da educação matemática. Dessa forma, entendemos que para propor parâmetros ou orientações
curriculares é necessário submeter a cada uma dessas áreas indagações que são próprias de seu campo de investigação. O procedimento
metodológico do qual nos serviremos é a análise crítica do discurso que subjaz as propostas apresentadas. Adotaremos uma abordagem
pluralista tendo em vista que nossa discussão contempla pelo menos três áreas de conhecimento, a matemática, a educação e a filosofia,
com o foco na filosofia da educação matemática. Percebe-se que embora haja um posicionamento no que tange às concepções de ensino,
com relação às concepções próprias da matemática parece haver um enorme desacordo. Essa constatação pode ser observada pela
dificuldade de designar um campo para a matemática. No texto em que os parâmetros e as orientações são elaborados, a matemática
aparece ora vinculada ao campo das ciências da natureza (como a física e a química), ora ao campo das ciências da linguagem, ora como
uma ciência independente com características próprias. Pretende-se compreender os argumentos que justificam classificar a matemática
dentro desses campos para melhor identificar a concepção de matemática que orienta a proposta educativa. A dificuldade de buscar um
campo de conhecimento para inserirmos a matemática talvez indique mudanças favoráveis. Sempre entendida como uma disciplina da área
de exatas, imbuída de um caráter lógico, de certezas infalíveis e destinada a gênios; nas últimas décadas constatamos profissionais
atentando para outros aspectos da matemática. A matemática também tem história, erros e questões em aberto.
Nossa intenção nesse trabalho é problematizar algumas questões com relação às Orientações Curriculares Nacionais a partir
da seguinte constatação de Steiner:
Conceitos para o ensino e aprendizado da matemática, mais especificamente: objetivos, sumários, livros textos,
currículos, metodologias de ensino, princípios didáticos, teorias de aprendizagem, modelos e teorias em
Educação Matemática, mas também, igualmente, as concepções de matemática e ensino de matemática dos
professores, bem como a percepção de matemática dos alunos – carregam consigo ou ainda, apóiam-se (quase
sempre num caminho implícito) num ponto de vista filosófico e epistemológico particular da matemática.
(Steiner, 1987, p.8)
Nas OCN podemos constatar a proposição de algumas concepções de ensino de matemática e não propriamente
concepções de matemática. Assim, a concepção de matemática acaba submetida à escolha do professor, seja essa
consciente ou não. Atrelamos às concepções de ensino de matemática as indagações caracterísitcas da educação
matemática, ou seja, as concepções de aprendizagem, que surgem como resposta às preocupações levantadas pela
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disciplina. Às concepções de matemática atrelamos as indagações próprias da filosofia da matemática. Pretendemos
estabelecer entre elas uma distinção utilizando como recurso metodológico a análise do discurso de linha francesa tomando
como fio condutor de nossas considerações a noção de “formação discursiva”.
A Análise do Discurso de linha francesa tem como expoente Michel Pêcheux e seus estudos sobre a relação da linguagem
com o seu contexto. Segundo Orlandi (1994) a natureza e o estatuto dessa relação é o que confere à Análise do Discurso sua
singularidade. O seu objeto, o discurso, “se apresenta como o lugar específico em que podemos observar a relação entre
linguagem e ideologia” (Orlandi, 1994: p. 53). O discurso grosso modo é definido como “efeito de sentido entre locutores”
(Orlandi, 1994: p. 52), portanto o discurso pressupõe uma sistema significante, que, para nós, se encontra inscrito no interior
de uma “formação discursiva”. Segundo Pêcheux:
(...) Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada, numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposião, de um
programa, etc.) (apud. Joanilho, 2002: p. 48).
Tendo em vista que as OCNs (Orientações Curriculares Nacionais) se apresenta como um documento que possui um caráter
de legitimar certas práticas pedagógicas e motivar o corpo docente, iremos tomá-lo como um discurso ideológico segundo a
seguinte definição de Fourez:
Denominam-se discursos ideológicos os discursos que se dão a conhecer como uma representação adequada
do mundo, mas que possuem mais um caráter de legititmação do que um caráter unicamente descritivo. (...)
Considerar-se-á então que uma proposição é ideológica se ela veicula uma representação do mundo que tem
por resultado motivar as pessoas, legitimar certas práticas e mascarar uma parte dos pontos de vista e critérios
utilizados. Dito de outro modo, quando tiver como efeito mais o reforço da coesão de um grupo do que uma
descrição do mundo. (Fourez, 1995: p. 179).
É possível identificar essa intenção legitimadora e de coesão em certos trechos do item Carta ao Professor presente no
documento das OCNs. Por já estar direcionada ao professor, identificamos de imediato as peculiaridades do discurso
pedagógico e a que grupo se destina. Proposições como as apresentadas abaixo são carregadas de vaguidão e estão
geralmente associadas a conceitos globais e imprecisos que distam do sentido que adquirem na particularidade. Entre tantas,
destacamos as seguintes:
A qualidade da escola é condição essencial de inclusão e democratização das oportunidades no Brasil, e o
desafio de oferecer uma educação básica de qualidade para a inserção do aluno, o desenvolvimento do país e a
consolidação da cidadania é tarefa de todos. (OCN, 2006, v.2, p. 5, grifos nossos)
Preparar o jovem para participar de uma sociedade complexa como a atual, que requer aprendizagem autônoma
e contínua ao longo da vida, é o desafio que temos pela frente. (OCN, 2006, v.2, p. 6, grifos nossos)
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A Secretaria de Educação Básica, por meio do Departamento de Políticas de Ensino Médio busca incentivar,
com esta publicação, a comunidade escolar para que conceba a prática cotidiana como objeto de reflexão
permanente. (OCN, 2006, v.2, p. 9, grifos nossos)
O instrumento que desmarcara os pontos de vista ocultados e do qual nos serviremos nesse traballho é identificado por
Fourez como a crítica da ideologia. Assim, o procedimento metodológico do qual nos serviremos é a análise crítica do
discurso que subjaz as propostas apresentadas. Adotaremos uma abordagem pluralista tendo em vista que nossa discussão
contempla pelo menos três áreas de conhecimento: a matemática, a educação e a filosofia. Assumiremos que cada uma
dessas instâncias tem sua própria formação discursiva e a entendemos como um conjunto de termos, expressões, signos e
símbolos que se apresentam sob uma forma característica de exposição. Garnica caracteriza esse tipo de preocupação como
atinente ao campo das discussões da filosofia da educação matemática e estabelece uma diferença de ordem didática entre
as preocupações da matemática, da educação matemática e da filosofia da educação matemática. Basicamente, eclarece:
A filosofia da educação volta-se para questões que tratam do como fazer educação, de aspectos básicos da
ação educativa, como é ocaso do ensino, da aprendizagem, de propostas político-peagógicas, do local onde a
educação se dá e, de maneira sistemática e abrangente, analisa-as, buscando estender seu significado para o
mundo e para o homem. [...]
As questões que são cruciais para a filosofia, como: O que existe? Como se conhece isso que existe? O que é o
valor?, são enfocadas pela filosofia da educação, dela diferenciando-se por especificá-las sempre em termos da
educação. [...]
Já para a filosofia da matemática, as perguntas básicas da filosofia: O que existe? O que é conhecimento? O
que vale? – são trabalhadas focalizando especificamente os objetos matemáticos. Desdobram-se em termos de:
Qual a realidade dos objetos matemáticos? Como são conhecidos os objetos matemáticos? Como são
conhecidos os objetos matemáticos e quais os critérios que sustentam a veracidade das afirmações
matemáticas? Os objetos e as leis matemáticas são inventados, construídos ou descobertos? (Garnica &
Bicudo, 2003: p.18-20)
Entendemos com isso que para propor orientações curriculares é necessário submeter a cada uma dessas áreas
indagações que são próprias de seu campo de investigação; é preciso atrelar à cada área as particularidades de sua
formação discursiva. Percebe-se, entre os professores, que embora haja um posicionamento no que tange às concepções de
ensino, com relação às concepções próprias da matemática parece haver um enorme desacordo. Essa constatação pode ser
observada pela dificuldade de designar o que vem a ser a matemática. No texto em que as orientações são elaboradas, a
matemática aparece como uma ciência independente com características próprias. Entretanto se tomarmos a física e a
química como o lugar de outra espécie de formação discursiva, a matemática é interpretada ora como um instrumento, ora
como uma linguagem para essas ciências. Isto significa que para questionar sobre algo devemos antes estar inseridos num
sistema simbólico de significações que doam aos termos, enunciados e/ou proposições sentidos particulares.
As OCNs apresentam duas concepções de ensino e aprendizagem de matemática:
a) a primeira, de cunho transmissivista, em que o ensino é a prática da “verbalização” do conhecimento pelo professor
(responsável pela transmissão) e a aprendizagem é pautada pela recepção passiva dos conteúdos pelos alunos.
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b) a segunda é a de cunho sócio-construtivista, no qual o professor aparece apenas como facilitador da aprendizagem e o
conhecimento é construído pelo aluno ao confrontar suas concepções com os conceitos trabalhados pelo professor numa
“situação-problema”.
De acordo com o texto das OCNs essas concepções estão na base de diferentes metodologias, entre elas a idéia de contrato
didático, transposição didática, a idéia de contextualização, o uso de situações-problema, a idéia de modelagem matemática,
o trabalho através de projetos e o uso da história da matemática. Cada uma dessas metodologias parece engendrar uma
certa concepção da matemática, mas que não é explicitada pelo documento. Caberia então ao professor a escolha da
concepção de matemática que vai orientar a sua prática? No caso da idéia de transposição didática, por exemplo, o
documento afirma acontecer em dois grandes momentos: a transposição externa e a interna. Na transposição interna, ela:
É o momento em que cada professor vai transformar os conteúdos que lhe foram designados em conhecimentos
a serem efetivamente ensinados. Nesse momento, as escolhas feitas pelo professor é que vão determinar, de
certa maneira, a qualidade da aprendizagem dos alunos. (OCN, 2006, v.2, p. 83, grifos nossos)
Esse momento ao qual o documento se refere trata-se do momento em que aparece tacitamente na subjetividade do
professor a concepção de matemática por baixo da concepção de ensino que ele utilizará para orientar as sua prática. Como
o documento parece se inclinar muito mais para a concepção sócio-construtivista destacamos no parágrafo seguinte uma
dificuldade que foi já trabalhada por Gottschalk em sua tese de doutorado ao analisar o documento dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, vulgo PCNs.
Ao afirmar que o construtivismo de modo geral generalizou o uso de proposições, como se todas tivessem um uso descritivo,
inclusive as da matemática (que são normativas e não descritivas), trabalha-se à sombra de uma concepção de matemática
que Gottschalk identifica como sendo de corrente idealista. Por outro lado, o modo de implementar na prática essa proposta,
segundo a qual o aluno deve construir o próprio conhecimento a partir de confrontações de suas próprias concepções, a
metodologia responsável por esse desenvolvimento repousa sobre uma concepção divergente, de corrente realista-
empiricista que confunde as proposições da matemática com hipóteses a serem testadas ou descobertas através da
experiência - um procedimento típico das ciências naturais como a física e a química. De acordo com Gottschalk:
[...] a matemática é uma atividade que segue regras coletivamente estabelecidas, não regras privadas a serem
descobertas através de estratégias pessoais do aluno ou a partir de seus conhecimentos prévios em interação
com contextos empíricos. [...] O professor deve estar consciente de sua tarefa fundamental – apresentar ao
aluno outras formas do saber que diferem do senso comum, com regras específicas, que podem até lembrar
procedimentos ou usos do cotidiano, mas que têm uma sintaxe própria com significados distintos dessas outras
práticas. (Gottschalk, 2000: p.150).
De acordo com Gottschalk as implicações pedagógicas decorrentes da assunção desse equivoco são inúmeras, desde a
frustração do aluno que não consegue “construir” a partir de seu limitado repertório, à sensação de fracasso do professor que
não consegue implementar nenhuma estratégia capaz de conduzir o aluno à aprendizagem dos conteúdos selecionados.
Entretanto, o que chama a nossa atenção na crítica empreendida pela professora é a pertinente e perspicaz observação que
ela sublinha em todo o seu trabalho ao afirmar que o erro principal na elaboração do documento está em orientarem-se por
uma concepção referencial da linguagem que, basicamente, recorre a um repertório extralingüístico para dotar de significado
Currículo e Epistemologia | 63
os signos e proposições da matemática procurando atribuir realidade a termos abstratos e gerais. Em contrapartida, destaca
as vantagens e a coerência em se servir de uma concepção funcional da linguagem, segundo a qual se busca dar sentido aos
termos e proposições a partir de seu uso. Nesse sentido, a matemática possui uma gramática a qual o aluno deve ter acesso
antes de ser capaz de construir seu conhecimento.
Observa-se esse tipo de equívoco também no documento das OCNs, nos levando a crer que o discurso pedagógico que está
na base das propostas educacionais para a matemática é ideológico porque mascara, oculta as indagações próprias de uma
área de inquérito mais ampla que identificamos com a filosofia da educação matemática. Segundo Garnica:
O trabalho nuclear da filosofia da educação matemática é analisar criticamente os pressupostos ou as idéias
centrais que articulam a pesquisa e o currículo ou a proposta pedagógica, buscando esclarecer suas afirmações
e a consonância entre os procedimentos utilizados e as considerações éticas, epistemológicas e científicas
sobre possíveis desdobramentos em ações pedagógicas e entre as ações visualizadas. Por exemplo: Há
consistência entre a concepção de educação, de ensino, de aprendizagem, de conteúdo matemático veiculado e
concepções de matemática e conhecimento matemático, atividades propostas e desenvolvidas, avaliação
proposta e efetuada na realidade escolar ou educacional? (Garnica & Bicudo, 2003: p.21-22)
Pelo fato de vivermos em sociedade e compartilharmos certos valores e padrões de comportamento, não é possível, segundo
Fourez, não querer veicular ideologia alguma; fazemos isso inconscientemente independente de nossas intenções. Entretanto
Fourez identifica graus nos discursos ideológicos e, aqueles cujos traços históricos e os vestígios de sua construção foram
suprimidos são profundamente manipuladores ao apresentarem como naturais opções que são particulares. Por necessitar da
análise e reflexão presente nas concepções de matemática a filosofia da educação matemática se constitui num espaço de
formação discursiva no qual outras indagações, diferentes daquelas contida nas OCNs, devem ser consideradas. Encerro
esse trabalho parafraseando meu orientador, Antônio Miguel, acreditando como ele que
é possível “fazer filosofia da matemática sem qualquer preocupação de natureza pedagógica”, mas o inverso,
ou seja, “fazer educação matemática sem preocupações filosóficas”,
ainda que seja possível, é inconveniente. As orientações curriculares não são sugeridas para o pleno desenvolvimento das
capacidades do indivíduo como ser humano, mas para o seu desenvolvimento como um trabalhador competente, produtivo e
consumidor. É o projeto pedagógico do mercado neoliberal no qual a compreensão da matemática tem valor monetário.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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matemática, concepções & movimento. Brasília, 2003.
GOTTSCHALK, C.M.C. Uma Reflexão Filosófica sobre a Matemática nos PCN. São Paulo: 2000, mimeo. Originalmente
apresentada como tese de doutorado, Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo.
Currículo e Epistemologia | 64
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STEINER, H.G. Aspectos Filosóficos e Epistemológicos da Matemática e suas Interações com a Teoria e a Prática em
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(Fevereiro, 1987), pp.7-13.
Currículo e Epistemologia | 65
Eliane Gomes-da-Silva
Universidade de São Paulo
A LINGUAGEM DO CORPO-MOVIMENTO: APONTAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS
PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CURRÍCULO COMUNICATIVO
O tema da linguagem é apontado em muitos estudos sobre e com crianças na Educação Infantil como alternativa para ascender a uma
concepção de criança como sujeito capaz de produzir conhecimentos e que deve ser valorizado como partícipe nas relações sociais.
Portanto, também nas práticas educativas ela deve ser sujeito ativo, de sorte que, em uma concepção de currículo que se concretiza na e
pelas ações de todos os envolvidos, a criança deve ser assumida como co-construtora. Este entendimento exige esclarecimentos
epistemológicos acerca das linguagens infantis, já que incluir as crianças nas ações nos desafia a modificar nossa forma de ler e interpretar
suas linguagens, bem como seu modo próprio de produzi-las: sendo corpo-movimento. Contudo, este desafio, quando enfrentado nos
estudos, é, preferencialmente, referenciado à dinâmica estrutural da linguagem verbal para compreensão da temática. Assim, o objetivo
deste estudo, de cunho teórico, é compreender as linguagens infantis a partir de seu modo de ser - corpo-movimento - que, como ação, se
faz na co-existência de diferentes domínios semióticos, “verbais” e “não-verbais”. Para tal, nos valemos como procedimento metodológico,
de conceitos provenientes da Semiótica de Charles S. Peirce, a qual nos permite retornar às dimensões da estética e da ética, que
precedem a lógica e são elas próprias estofo das linguagens infantis. É nosso pressuposto, ancorado nestes fundamentos, que o corpo-
movimento é o substrato no e pelo qual as crianças articulas e produzem diversas linguagens. As crianças produzem sentidos
interpretativos a partir de seu próprio ponto de vista e que aos adultos podem às vezes parecer desconhecidos. A conclusão aponta para a
necessidade de superação do hábito de, ao ler e interpretar as significações que as crianças engendram nas várias situações que
experienciam, tentar excluir significações e sentidos provenientes de processos semióticos “não-verbais”, sob pena de encerrar o fluxo de
signos desencadeados pelas próprias crianças – as “semioses”, em termos peirceanos. O que perderemos, com isso, é a oportunidade de
compreender a criança no seu estar sendo, estar experienciando, estar produzindo expressividades comunicativas, logo, participando da
construção de um currículo comunicativo. Em outras palavras, perdemo-las na sua revelação como autoras de seus próprios sentidos e
significados nas relações pedagógicas. Dessa forma, devemos indagar a quem se dever interpretar (as crianças) e não o que (um suposto
conteúdo que por elas deve ser aprendido). Este entendimento define professores e crianças na Educação Infantil como leitores e
intérpretes que, imersos em relações comunicativas concretizam o currículo como vivo, dinâmico e que não se desvincula do contexto e de
seus autores.
Palavras-chave: educação infantil, currículo, linguagem.
INTRODUÇÃO
A discussão sobre currículo tem sido pauta central no meio acadêmico-universitário e nas esferas educativas escolares. Muito
se discute sobre o que e como fazer/ensinar, como relacionar práticas (modos de vida), conteúdos e significados típicos de
um mundo contemporâneo com os já consagradas tradicionalmente, e, sobretudo no âmbito acadêmico, discute-se como
permitir que os alunos participem no processo de construção curricular.
Conforme argumenta Arroyo (2007), os alunos nunca foram esquecidos nas propostas curriculares. O que se questiona hoje é
o olhar com que eles têm sido vistos na história da Educação , e como devem passar a ser vistos/concebidos para que
sejam, efetivamente, reconhecidos como co-construtores do processo educativo:
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Desse olhar dependerá a lógica estruturante do ordenamento curricular. Ainda que resistamos a aceitá-lo, o que
projetamos para os alunos no futuro e como os vemos no presente têm sido a motivação mais determinante na
organização dos saberes escolares. O currículo parte de protótipos de alunos, estrutura-se em função desses
protótipos e os reproduz e legitima.
O ordenamento curricular termina reproduzindo e legitimando a visão que, como docentes ou gestores, temos
dos educandos, das categorias e das hierarquias em que os classificamos (ARROYO 2007, p. 22).
Desse modo, a tarefa de deslocar o olhar de gestores e docentes que sabem e ensinam com base em suas próprias
concepções e representações – muitas vezes cristalizadas –, é o grande desafio a ser enfrentado na construção de um
curriculo que seja aberto a participação dos pontos de vista dos alunos, para o qual também é necessário adentrar à temática
da Linguagem a fim de esclarecer e compreender suas possibilidades.
Da mesma forma, no âmbito da Educação Infantil, essa discussão sobre curriculo é recorrente, e o tema da Linguagem
apontado como alternativa para ascender a uma concepção de criança como sujeito capaz de produzir conhecimentos e que
deve ser valorizado como partícipe nas relações sociais. Portanto, também nas práticas educativas ela deve ser sujeito ativo,
de sorte que, em uma concepção de currículo que se concretiza na e pelas ações de todos os envolvidos, a criança deve ser
assumida como co-construtora.
Este entendimento exige esclarecimentos epistemológicos acerca das linguagens infantis, já que incluir as crianças nas ações
nos desafia a modificar nossa forma de ler e interpretar suas linguagens, bem como seu modo próprio de produzi-las: sendo
corpo-movimento (GOMES-DA-SILVA; BAUMEL 2009).
Assim, a busca por uma prática educativa capaz de contemplar os pontos de vista das crianças, que respeite os seus modos
de ser, de produzir conhecimentos, logo, de produzir linguagens, é na atualidade o grande desafio de pesquisas na Educação
Infantil.
Em decorrência dessa busca, hoje já presenciamos movimentos investigativos que se deslocam das tradicionais formas de
fazer pesquisas sobre crianças rumo à concretização de pesquisas com crianças. Nesse sentido, o uso de fotografias, vídeos,
brincadeiras, jogos, histórias e passeios pela cidade já são usados como instrumentos metodológicos, o que demonstra o
esforço em incluir as crianças nas pesquisas a partir da consideração de seu “modo próprio de ser”.
Para Rocha31 (2005, p. 3), a problemática maior ao se fazer pesquisa com crianças está na necessidade de atentar às
diferentes linguagens e aos limites no grau de compreensão que se pode atingir:
[...] e lembremos que, quando o outro é uma criança, a linguagem oral não é central e nem única, ela é
fortemente acompanhada de outras expressões corporais, gestuais e faciais. Isso já nos indica alguns dos
problemas metodológicos envolvidos na pesquisa com crianças.
A esse respeito, o que temos percebido é que, embora o tema da linguagem seja apontado como alternativa para melhor
compreender e valorizar as crianças, grande parte das pesquisas se referenciam, prioritariamente, à dinâmica estrutural da
linguagem verbal. Sendo assim, o nosso objetivo é compreender as linguagens das crianças a partir do seu modo próprio de
ser: corpo-movimento, que, como ação, se faz na co-existência de diferentes domínios semióticos, “verbais” e “não-verbais”.
31 ROCHA, E. A. C. Por que ouvir as crianças? Algumas questões para um debate científico multudisciplinar, 2005. (mimeo)
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O nosso pressuposto é: se pretendemos, de fato, conceber e incluir as crianças como partícipes na prática educativa e, desse
modo, na construção curricular, precisamos, antes, descobrir novas formas de ler e interpretar as suas expressividades, ou
seja, precisamos, enxergá-las para além das lentes derivadas, apenas, da estrutura lingüística. Bem sabemos que não é,
unicamente, pela capacidade de articulação de argumento verbal que as crianças se expressam/produzem, mas, e sobretudo,
pela sua capacidade/condição de articular, simultânea e indissociavelmente as diversas linguagens, que por sua vez, se
corporificam no seu movimento expressivo.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Vale esclarecer que não estamos desmerecendo as contribuições provindas da Lingüística. Pelo contrário, é justamente com
autores desse campo, em especial da Análise do Discurso, que temos nos esforçado, metodologicamente, a estabelecer
diálogo, desde o interior da Educação, com a Fenomenologia e a Semiótica de Charles S. Peirce - a qual nos permite retornar
às dimensões da estética e da ética, que precedem a lógica e são elas próprias estofo das linguagens infantis -, a fim de
apresentar o nosso ponto de vista acerca da Educação Infantil. Nesse diálogo valemo-nos também da “Concepção Dialógica
do Movimento Humano” (KUNZ 2001; TREBELS, 2006).
REFLEXÕES PRELIMINARES
O que estamos dizendo é que interpretações de discursos expressivos feitas/lidas com base apenas na lógica da estrutura
lingüística podem findar ou coincidir com essa estrutura mesma, isto é, em outro discurso materializado linguisticamente, não
tomando em consideração, desse modo, sentidos e significados oriundos de linguagens expressivas diversas.
É evidente que, como argumenta Maingueneau (2005, p. 145), as diversas linguagens (suportes intersemióticos) “não são
independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas escanções históricas, às mesmas restrições temáticas etc”.
Isto quer dizer que a coexistência de diferentes domínios semióticos (“enunciados”, nas palavras de Maingueneau) não são
livres no interior de uma determinada formação discursiva, dependendo portanto de seu contexto histórico de e sua função
social.
Não negamos, assim, a necessidade de postular uma implicação (POSSENTI, apud ZAMBONI, 2001) das linguagens
semióticas ou coexistências semióticas (MAINGUENEAU, 2005) das diferentes linguagens. O que defendemos é a
insubordinações de uma especificidade de linguagem (gestual, sonora, visual, emocional...), a qualquer tipo de linguagem
eleita como “superior” ou mais significativa, como a linguagem verbal, por exemplo.
Noutras palavras, a nossa preocupação, ante a primazia do recurso lingüístico como processo interpretativo, é que as
outras linguagens expressivas das crianças não se encerrem em tentativas de traduções ou equivalência a estruturas verbais-
escritas. Se as crianças, ao produzir conhecimento, articulam as linguagens – táteis, verbais, visuais, sonoras, emocionais
etc., não consideramos como legitimo essa diversidade ser equacionada em organizações próprias da linguagem verbal,
como sintaxes e fonemas, por exemplo.
Não podemos assim, ao ler e interpretar as significações que as crianças engendram nas várias situações que experienciam,
tentar excluir significações e sentidos provenientes de processos semióticos “não-verbais”, sob pena de encerrar o fluxo de
produção desencadeado pelas próprias crianças. O que perderemos, com isso, é a oportunidade de compreender a criança
no seu estar sendo, estar experienciando, estar produzindo expressividades comunicativas, logo, participando da construção
de um currículo compreendido como comunicativo.
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Isto significa que perdemo-las na sua revelação como autoras de seus próprios sentidos e significados nas relações
pedagógicas, portanto, na construção curricular. Aqui reside, no nosso entendimento, o maior desafio interpretativo posto à
Educação como um todo, em especial, à Educação Infantil, na tarefa de construir um currículo que seja verdadeiramente
comunicativo.
Tratar de criança, de práticas educativas e de construção curricular, implica dizer que lidamos com um processo de
intersemiotização (multiplicidade e simultaneidade de linguagens), percebida e produzida na dimensão mesma da prática e
demonstrada pela condição/modo de ser criança e pelo confronto direto de alteridades32. Estes são fatores fundamentais que
precisamos enfrentar ante a tarefa de compreender melhor as linguagens infantis.
Uma de nossas hipóteses é que aí pode estar um dos motivos pelos quais os pesquisadores, gestores e professores, na
tentativa de construir um curriculo comunicativo, na maioria das vezes têm dificuldades para valorizar as
potencialidades/possibilidades expressivas das crianças e, assim, assumi-las como partícipes do processo. O que nos cabe,
então, é assumir que, para trabalhar/pesquisar/ensinar e aprender com crianças, é preciso conhecê-las, saber como elas são,
o seu modo de ser, isto é, como elas produzem conhecimentos/linguagens.
ACERCA DA EXPRESSIVIDADE INFANTIL
Não é alheio ao conhecimento dos professores, tendo em vista sua formação, que os sentidos das crianças estão na ação,
assim como não são indissociáveis de sua existência; que seus sentidos não se estabelecem da mesma forma que se
estabelecem para os adultos, e que a relação adulto-criança se dá de modo muito mais amplo e complexo do que numa
relação puramente logocêntrica, quer dizer, com base na razão.
Compartilhamos com Kunz33 (2004), estudioso do campo da Educação Física que trata do Movimento Humano numa
perspectiva fenomenológica, que o modo de Ser criança, a sua linguagem específica, é o movimento “livre” e autônomo - no
sentido de ser ela mesma a significar e atribuir sentido à sua ação. Em oposição à concepção que vê o movimento como
técnico, mecânico e funcional, como deslocamento no tempo e no espaço, o entendemos como a linguagem especifica das
crianças, como movimento expressivo/significativo, capaz de contar histórias singulares. No esclarecimento de Kunz (2004), o
movimento é o nosso primeiro e mais importante diálogo com o mundo, a única forma que nos faz sujeitos vivos e
perceptivos. Desse modo, o movimento é concebido como a operação expressiva da linguagem (ARAÚJO, 2005), ou seja,
como o substrato no qual a criança produz e articula linguagens.
O movimento expressivo marca a experiência vívida, em ação, e nos possibilita criar sentidos e significados. É este motivo,
pois, que inviabiliza, no nosso entendimento, uma possível tradução ou equivalência de diferentes linguagens a uma única
outra, em especial à linguagem verbal, como já nos referimos. As linguagens, que por sua vez, são produzidas ou viabilizadas
pela ação do movimento são, então, de caráter processual, operativo, de modo que podemos, então, designá-las como
expressividades ou movimento expressivo.
32 Por “alteridade” entendemos, como Peirce (1974, 1990), o Outro, as coisas e os seres com que nos defrontamos no Real (ou seja, o que é dado na existência) do mundo fenomênico (IBRI, 1992). 33 Kunz (1991, 2000, 2001) tem defendido o movimento humano a partir de sua inerente potencialidade dialógica, em cujo fundamento está a possibilidade da compreensão de temas como sensibilidade, percepção e intuição humana. Tal concepção prioriza a atenção no Ser humano que se movimenta (experiência primordial de ser e estar no mundo), e no caráter dialógico do movimento: diálogo entre o homem e o mundo, que possibilita uma “compreensão-de-mundo-pelo-agir”. Em tal concepção, que se opõe às abordagens que vêem o movimento humano de modo puramente biomecânico e técnico é levado em conta o ser humano que se movimenta, no nosso caso, a própria criança - e não o contrário, o movimento dela.
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Esta operação, contudo, não se dá a partir do nada, e nem é destituído de um passado, de um repertório ou formações
discursivas anteriores. Por ser operativo, o movimento expressivo carrega consigo significações passadas, as quais são
retomadas em novas significações no ato da experiência vívida.
Sendo assim, não é condição do movimento – por ser expressivo e não mecânico – transportar significações/linguagens
prontas e acabadas ou conteúdos (em termos escolares), como se eles estivessem a priori determinados/aprendidos. A sua
condição é, por conseguinte, de transformação e comunicação no momento mesmo da ação pedagógica. E é precisamente
no próprio desenrolar da ação pedagógica que nos cabe ler e interpretar as crianças no encontro pedagógico. Eis o nosso
grande desafio: saber interpretar as expressividades das crianças no instante em que elas se mostram.
Para Araújo (2005), é o movimento que abre, por intermédio da intersubjetividade, da relação com os outros, novas
possibilidades de sermos no mundo: “Através do movimento conhecemos o mundo. Do movimento primordial que inaugura
um sentido, que faz e refaz as significações, num movimento contínuo, de abertura para o mundo” (ARAÚJO, 2005, 68).
Desse modo, produzimos significações próprias e nos singularizamos na dinâmica das inter-relações.
A articulação e associação das diversas linguagens infantis - a intersemiotização - apresenta-se, então, neste processo, de tal
forma que só nos permitido ler no e como modo de ser criança: corpo-movimento e incondicionalmente entregue ao aqui-
agora.
“Aqui-agora” é este o sentido que importa às crianças. Elas se doam às possibilidades do presente e não se preocupam com
o passado (que as conduzem, mas não as determinam) e com o futuro, de tal sorte que não se ocupam em armazenar
saberes, conhecimentos, conteúdos, valores, enfim, representações. Uma criança simplesmente é, deixa-se ser (HELLER,
2003).
Estar entregue ao aqui-agora, significa que a criança não opera, necessariamente, com base em pressupostos ou linguagens
codificadas, cristalizadas ou fixadas culturalmente. A criança é aberta, portanto, a possibilidades de criação. Por isso elas
sempre nos surpreendem, como os artistas e os “loucos”. E reconhecemos, os professores que, por serem disponíveis e
atentos à prática educativa como acontecimento contingente, no qual há espaço para conflitos, confrontos, incertezas,
dúvidas, imprevisibilidades, são também mais criativos, e por isso, são também um pouco artistas e “loucos”...
Já podemos agora reafirmar que a intersemiotização que se mostra no espaço do aqui-agora, que se corporifica, que ganha
corpo, o ganha no movimento que o faz expressivo. Mas como fluxo, e não como articulação seriada, fragmentada ou como
aglomeração de linguagens. Tal fluxo se dá hibridamente, associando/encadeando linguagens verbais, gestuais, táteis,
musicais etc., constituindo, deste modo, como um processo criativo (GOMES-DA-SILVA; SANT´AGOSTINO; BETTI, 2005).
Eis aqui um entendimento de linguagens como fluxo produtivo/criativo, que ao se produzir no e como movimento, hibridizam-
se, enredam-se, mas não se subordinam e nem se equivalem uma a outra. Lembremos que a qualidade do movimento é a de
transformação expressiva sem, necessariamente, estar respondendo a alguma programação prévia.
São esses esclarecimentos que nos levam a pressupor que o tema do “movimento humano” ainda é incompreendido no
âmbito da Educação infantil. Muito embora seja constantemente apontado como fundamental na vida das crianças, o
movimento continua sendo concebido como um recurso para externalizar algo.
Por exemplo, no próprio “Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil”, o movimento é, em certa medida,
concebido como um meio para alcançar um objetivo, “para a externalização de sentimentos, emoções e estados íntimos [que]
poderão encontrar na expressividade do corpo um recurso privilegiado” (BRASIL, 1998, p. 19).
Já para nós, o movimento da criança é entendido como diálogo com o mundo (KUNZ, 1991), não é uma externalização de
sentimentos, emoções etc.; mas a própria expressividade, que não é um “lugar” pré- determinado no “corpo”. É por esta razão
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que afirmamos o fato de o movimento não é meio para transportar algo, ou seja, algo que estava no interior do Ser (no nosso
caso a criança), e que precisa ser exteriorizado. Ele não é um fazer para. O movimento é a própria expressividade do ser/da
criança. É a própria experiência de aqui-agora. É, em nossa conclusão, o modo próprio de ser criança. É este modo, pois, que
precisamos aprender a ler e interpretar no espaço/tempo pedagógico, sem o que não é possível pensar na construção de um
currículo para a educação infantil.
Talvez o comodismo de nossas percepções diante do congestionamento de códigos (linguagens fixadas culturalmente) e
conceitos, impeça-nos de enxergar e assumir esse modo tipicamente infantil. Ocupamo-nos, desse modo, muito mais com as
representações deste mundo do que precisamente com as expressividades concretas e singulares que se organizam e
manifestam no calor de nossos encontros.
Nós, adultos, ao interpretarmos o mundo e as coisas, normalmente, o fazemos buscando suas causas, seus efeitos, do que é
feito, para que serve etc, ao passo que a criança, quando olha/percebe o mundo, o faz de um lugar que ela não presume
totalmente qual é. Por isso ela é aberta a outras possibilidades perceptivas como já dito. É esta disponibilidade perceptiva que
nos permite falar de alteridades, de histórias singulares. As crianças não são, assim, repetidamente semelhantes no seu
modo de ver e significar o mundo. Aqui se evidencia a dificuldade que também temos em lê-las como expressão de uma
singularidade/alteridade. E o poder da singularização, está na capacidade expressiva do movimento.
SÍNTESE CONCLUSIVA
Rumo à conclusão, retomamos, em outros termos, a nossa questão inicial, qual seja, o fato de ser recorrente, nos discursos
acadêmicos, a denúncia de que é preciso dar às crianças vez e voz nas pesquisas e, mais ainda, nas práticas pedagógicas.
Ora, vez e voz as crianças já possuem. Muitas delas nos gritam na “voz” do silêncio, nos sinais de cansaço pelo trabalho
árduo, nos sinais de agressão, nos sinais de excesso, nos sinais de prazer... O que não sabemos é interpretá-las (lê-las), por
não estarmos dispostos a constantemente nos deslocar do “lugar” perceptivo e interpretativo em que nos encontramos, e
renunciar às nossas representações apriorísticas.
Para nós, apesar de as crianças ainda não dominarem a capacidade de argumento verbal, defendemos sua perfeita
capacidade de produzir linguagens. O fato é que, as crianças, ao produzirem sentidos interpretativos, o fazem a partir de seu
próprio ponto de vista, o qual às vezes é desconhecido aos adultos.
As crianças vivem em tempos e gerações diferentes dos nossos, possuem modos diferentes dos nossos de experienciar a
vida e, portanto, também representam de modos diferentes os sentidos e significados que elas atribuem ao seu “Ser-no-
mundo”. Por esta razão, devemos percebê-las na dimensão delas mesmas, e não a partir das representações que temos
sobre elas. Tal exige desconstruir as imagens/concepções que temos já cristalizadas acerca das crianças e também sobre a
prática educativa.
No argumento de Possenti (2002), a fim de que o campo da Educação repense as suas finalidades educativas, primeiro é
primeiro assumir a necessidade de se deslocar da tradicional forma de avaliar conteúdos para atentar ao modo, à forma como
a criança-aluno produz conhecimento. Nesta tarefa, devemos indagar a quem se deve interpretar (às crianças) e não o que
(um suposto conteúdo que por elas deve ser aprendido na prática educativa). Em outras palavras, o professor deve interpretar
(“avaliar”) as expressividades das crianças, isto é, seu dever é admirar os seus movimentos expressivos, e não os conteúdos
por elas supostamente manifestados.
Aprendemos com o pensamento peirciano que, para observar um fenômeno vívido – uma criança em ação –, é preciso que
estejamos dispostos a aprender a admirar e a ouvir uma revelação, a admirar o que nos é mostrado. Talvez, nós, professores,
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gestores e pesquisadores, insistimos em ignorar a sabedoria das crianças por não termos paciência para compreendê-las,
ansiosos que somos por apresentar nossas interpretações, muitas vezes rasteira.
O que precisamos, na prática educativa, é aprender a renunciar a suposição de que sabemos mais que as crianças e, desse
modo, conceder-lhes espaço para que elas sejam participes da prática, como autoras de seus próprios sentidos e
significados, ou melhor, de seus aprendizados.
Desse modo, permitir que as crianças sejam autoras de seus próprios sentidos e significados, exige-nos que a
interpretemos na experiência do discurso intersubjetivo que se constrói no confronto comunicativo de alteridades, permitido
pelo movimento expressivo. Precisamos, então, renunciar ao nosso velho hábito de interpretar as crianças unicamente, com
base em experiências propostas, esotéricas ao encontro, de onde se visa apenas a colheita de conteúdos propostos. Está no
exercício da renúncia a nossa capacidade de ler de atribuir direitos expressivos ao outro, de permitir que a criança seja esse
outro, a alteridade, e não o incapaz, isto é, está no exercício da renúncia a capacidade de enxergarmos e valorizarmos a
criança como expressão de uma singularidade (GOMES-DA SILVA, 2007).
O desafio é enxergá-las através de seu próprio estilo, de sua forma singular de produzir conhecimentos (POSSENTI, 2002).
Cremos, a exemplo desse autor, que reside na dimensão da forma o teor legível no ato das relações comunicativas. Legível,
apenas na forma, vale ressaltar, pois, é justamente ela que carrega, em seu fluxo, o substrato capaz de produzir
singularidades: o fluxo do movimento expressivo. O movimento que, antes de ser verbalizado, antes de qualquer significação
que a ele se possa atribuir, é experiência vívida; coletiva, mas singular. Este entendimento define professores e crianças na
Educação Infantil como leitores e intérpretes que, imersos em relações comunicativas concretizam o currículo como vivo,
dinâmico e que não se desvincula do contexto e de seus autores.
REFERÊNCIAS
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BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a
educação infantil. Brasília: MEC, SEF, 1998.
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Física) - Centro de Desportos, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
GOMES-DA-SILVA, E. BAUMEL, R. C. R. de. Corpo-movimento: desafios das linguagens infantis para a educação. In:
CONGRESSO DE LEITURA, 17., 2009. Campinas. Anais... Campinas: Associação de Leitura do Brasil, Unicamp, 2009.
Disponível em: <http://www.alb.com.br/anais17/>. Acesso em: 28 mar. 2010.
HELLER, A. A. Ritmo, motricidade, expressão: o tempo vivido na música. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de
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ZAMBONI, L. M. S.. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica. Subjetividade e heterogeneidade no discurso da
divulgação científica. São Paulo: Autores Associados/Fapesp, 2001.
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Isac Pimentel Guimarães; Antonio Carlos Ribeiro da Silva & Vilma Geni Slomski
Universidade Federal da Bahia & FECAP
[email protected]; [email protected] & [email protected]
SABERES E CRENÇAS DA DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR CONTÁBIL: A
GESTÃO DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E O CURRÍCULO COMO
INSTRUMENTO DE SUA CONCRETIZAÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar, discutir e analisar pesquisas e estudos sobre a formação de professores, cujo foco são
os saberes e crenças da docência capazes de orientar as ações do professor-coordenador de cursos em IES diante do Projeto Político-
Pedagógico (PPP) e do Currículo como instrumento de sua concretização. Os resultados deste trabalho servirão de base para o estudo do
ideário pedagógico do professor-coordenador de curso de bacharelado em Ciências Contábeis no Brasil. Para fins deste artigo
desenvolveu-se um ensaio teórico que consistiu na exposição lógico-reflexiva com ênfase na argumentação e interpretação pessoal. Foi
possível constatar que a formação didático-pedagógica do professor envolve saberes sobre o processo de ensino/aprendizagem que vão
desde o planejamento das atividades docentes, à gestão de sala de aula, incluindo aí a organização do espaço, o uso do material e de
outros recursos, a interação e o trabalho com as diferenças na sala de aula, a articulação do conteúdo com as experiências de vida dos
alunos e outras questões gerais da educação. Conclui-se, assim, que a IES é o ponto de encontro dos profissionais envolvidos na ação
educativa e o professor-coordenador do curso é um intelectual orgânico no grupo, sua “práxis” (ação-reflexão-ação) abarca as dimensões
reflexiva, organizativa, conectiva, interativa e avaliativa. Isto confirma o papel essencial da universidade que é o de gestão didático-
pedagógica do ensino, cabendo às coordenações de curso de graduação, gerenciar a aprendizagem dos alunos, a melhoria da qualidade
de ensino e, assim, a qualidade do profissional formado pela universidade.
Palavras chave: Saberes e Crenças. Docência no Ensino Superior. Professor-Coordenador de Curso. Gestão do Projeto Pedagógico.
Currículo
1 INTRODUÇÃO
As transformações da sociedade contemporânea consolidam o entendimento da educação como um fenômeno complexo e
multifacetado onde a aprendizagem da convivência social e a aquisição de conhecimentos básicos nos diversos campos do
saber se dão de forma sistemática e orientada. Neste sentido, nas várias esferas da sociedade surge a necessidade de
disseminação e internalização de saberes e modos de ação (conhecimentos, conceitos, habilidades, procedimentos, crenças,
atitudes), acentuando o poder pedagógico dos vários agentes educativos na sociedade e não apenas nas tradicionais formas
familiar e escolar. Isto significa dizer que em qualquer âmbito em que o pesquisador/profissional atue, exercerá uma ação
docente. A docência, entendida como o ensinar e o aprender, esta presente na prática social em geral. No âmbito da
universidade, se faz presente tanto nas ações de pesquisa, como de ensino, de administração ou de extensão (PIMENTA,
2002). Esta realidade aponta para a necessidade de formação do profissional de qualquer área, como educador e
comunicador.
O professor universitário, enquanto um profissional que realiza um serviço à sociedade através da universidade, deve ser um
profissional reflexivo, crítico, competente no âmbito de sua disciplina, capacitado a exercer a docência e realizar atividades de
investigação.
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De acordo com esta visão, Pimenta (2000, p. 3) diz que o desenvolvimento profissional do professor é influenciado por
diferentes questões dentre elas cita: “i) as transformações da sociedade, seus valores e suas formas de organização (por
exemplo, a transformação da sociedade contemporânea globalizada, virtual, das inteligências múltiplas (e, portanto, de
aprendizagens idem) e das formas de trabalho); ii) o progresso do conhecimento científico; iii) o desenvolvimento de sua
competência docente incorporando o domínio das teorias, técnicas e instrumentos de análise para melhorar a sua própria
prática profissional de ensinar”.
Já para Veiga (2004) os professores desempenham um conjunto de funções que ultrapassam as tarefas de ministrar aulas.
As funções formativas convencionais envolvem ter um bom conhecimento sobre a disciplina, sobre como explicá-la tornando-
se mais complexas com o tempo e com o surgimento de novas condições de trabalho.
Corroborando com esta visão, Zabalza (2004) atribui três funções aos professores universitários: i) o ensino (docência); ii) a
pesquisa e iii) a administração em diversos setores da instituição. Acrescentando ainda a função de orientação acadêmica:
monografias, dissertações e teses.
Novas funções agregam-se a estas, tornando mais complexo o exercício profissional, com a implementação da Lei 9394/96.
O art. 13 estabelece as seguintes incumbências para os professores: i) participar da elaboração do projeto pedagógico; ii)
elaborar e cumprir o plano de trabalho; iii) zelar pela aprendizagem dos alunos; iv) estabelecer estratégias de recuperação
para alunos de menor rendimento; v) ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos; vi) participar integralmente dos
períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional.
Estes dados indicam que se esta diante de um processo de ampliação do campo da docência universitária. Em vista de tais
incumbências e funções dos professores, este artigo procurará discutir atividades de gestão escolar, mais especificamente as
de coordenação de curso, uma vez que a expansão universitária e as reformas educacionais culminadas com a promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, nº 9.394/96), provocaram uma corrida alucinada de “empresários”
da educação, em busca de autorização para funcionamento de faculdades e cursos de graduação, muitas vezes de qualidade
duvidosa.
Assim, torna-se emergente a proposição de estudos e pesquisas que contribuam para uma discussão maior sobre a formação
de professores para o nível superior, especificamente, para o acompanhamento dos cursos quer seja em funções puramente
acadêmicas, na docência, quer seja em função de gestão escolar, nas coordenações de curso, sendo o coordenador uma
figura central neste processo. Nesta direção estrutura-se o plano deste artigo, e, assim, levanta-se o seguinte
questionamento: Que saberes e crenças da docência são capazes de orientar as ações do professor-coordenador de cursos
em IES diante do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e do Currículo como instrumento de sua concretização?
Em busca de respostas e este questionamento, o presente trabalho tem como objetivo apresentar, discutir e analisar
pesquisas e estudos sobre a formação de professores, cujo foco são os saberes e crenças da docência capazes de orientar
as ações do professor-coordenador de cursos em IES diante do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e do Currículo como
instrumento de sua concretização.
Entende-se que é emergente o desvelamento da forma de pensar do professor-coordenador, pois esta reflete suas atitudes e
decisões na prática educacional e gerencial. O comportamento do professor é substancialmente influenciado e até mesmo
determinado por seus processos de pensamento. As pesquisas sobre o "Pensamento do Professor", fruto da evolução das
teorias e pesquisas dos paradigmas de investigação didática, têm oferecido grandes contribuições para a melhoria do ensino,
por meio de estudos e projetos de intervenção. Essa perspectiva aponta caminhos e possibilita ultrapassar os dados objetivos
e os comportamentos explícitos dos professores na tentativa de se compreender o conjunto das estruturas internas as quais
estão envolvidos.
Currículo e Epistemologia | 75
Cabe ressaltar que, embora o presente trabalho se apresente por 3 vertentes, estas estão articuladas e uma não é mais
importante que a outra. A vertente 1 estabelece o problema de pesquisa na linha geral do projeto, ou seja, apresenta, analisa
e descreve os saberes e crenças da docência que orientam as ações docentes e que podem orientar o trabalho do professor-
coordenador de curso em IES. Na vertente 2, o artigo identifica, analisa e descreve o papel do professor-coordenador no
contexto do curso, procurando articulações que identificam e descrevem as funções da coordenação na gestão do PPP e do
currículo como instrumento de sua concretização, vertente 3.
A busca pelo entendimento e evidenciação das teorias e crenças constituintes do ideário pedagógico do professor-
coordenador poderá contribuir para a profissionalização docente e para uma aproximação maior entre a gestão do projeto
pedagógico dos cursos e do currículo como instrumento de sua concretização. Espera-se que este estudo contribua para uma
ampliação das discussões e estudos sobre o Ensino da Contabilidade no Brasil, e, faça assim, emergir caminhos que
conduzam à inovações metodológicas e à implementação de políticas que favoreçam a construção de propostas que atendam
às reais necessidades dos alunos e possibilitem aprendizagens significativas no contexto universitário.
2. PROFESSOR-COORDENADOR: COMPETÊNCIAS E HABILIDADES PARA GESTÃO DO PROJETO
PEDAGÓGICO E O CURRÍCULO COMO INSTRUMENTO DE SUA CONCRETIZAÇÃO
As Coordenações de Cursos surgiram como uma das inovações da Reforma Universitária (1968), em substituição aos
Conselhos Técnicos Administrativos e Congregações, consistindo em um colegiado com a responsabilidade referente aos
assuntos direta e especificamente ligados ao ensino, neste caso, o de graduação (CANTÍDIO, 1981).
Ao que parece às Coordenações de Curso de Graduação foi entregue o papel essencial da universidade que é a gestão
didático-pedagógica do ensino. Ou seja, a qualidade do profissional formado pela universidade é da competência direta das
Coordenações de Curso. Sendo assim, o novo ideário de coordenação direcionado aos aspectos de qualidade é coerente
com a afirmação de Gadotti (1992, p.32) que diz que “os conhecimentos devem ser próximos à realidade dos alunos e que a
educação deve ajudar a construir um cidadão pleno, consciente dos seus deveres e direitos”.
Na direção deste ideal de homem e de sociedade, torna-se fundamental que os profissionais responsáveis pelo ensino
tenham um projeto conjunto de educação que permita uma atuação coerente e articulada. A IES, mais especificamente o
curso de graduação é o ponto de encontro de vários profissionais envolvidos na ação educativa, cujo potencial de participação
é fortalecido quando o coordenador possibilita que a cooperação e o respeito mútuo ocorram de forma coerente e integrada.
O professor sente-se fortalecido quando pode contar com o apoio dos outros professores e assim, compartilhar e discutir
dificuldades, anseios e preocupações sobre a prática de ensino. Essa relação, quando mediada pelo coordenador, torna-se
fortalecida, favorecendo a predisposição para a mudança necessária no PPP em consequência no processo de ensino-
aprendizagem.
Cantídio (1981), discute sete atividades funcionais do coordenador de curso: i) Direção/supervisão do ensino; ii) Estudo e
formulação de currículos; iii) Aprovação dos programas; iv) Acompanhamento da execução dos planos de ensino; v)
Avaliação da produtividade do processo de ensino-aprendizagem; vi) Poder de atuar em áreas físicas utilizadas em atividades
didáticas; e, vii) Articulação com o CEPE (Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão) através de representação docente.”
Além destas funções, outras como a reforma de currículo, concurso de professores, oferta de disciplinas, aprovação de
projetos educacionais e supervisão das atividades docentes em sala de aula, são complexas e exigem formação pedagógica
do coordenador para que possa consubstanciar as propostas e aprofundar as discussões pretendidas (CANTÍDIO, 1981).
Currículo e Epistemologia | 76
Andrade e Tachizawa (1999, p. 10), também procuram definir as funções do coordenador de curso, salientando que as
atividades devem ocorrer de forma harmônica e fundamentada no modelo da análise sistêmica, onde se procura estabelecer
uma visão global das ações a serem realizadas, observando-se os diferentes níveis de tarefas: “i) Realização de Reuniões
com os docentes, discentes, funcionários, direção e parceiros; ii) Levantamento e controle de freqüência de docentes e
discentes; iii) Acompanhamento das práticas pedagógicas dos docentes; iv) Realização de avaliações sistemáticas de
desempenho de docentes, discentes e funcionários; v) Construção e revisão sistemática do Projeto Pedagógico do Curso; vi)
Revisão sistemática dos procedimentos acadêmicos e administrativos do curso; vii) Revisão dos meios de comunicação
utilizados para o público externo e interno; viii) Implementação de meios e comunicação eficientes; ix) Realização de cursos
extracurriculares e Realização de avaliações sistemáticas dos conteúdos ministrados nos períodos do curso.
Estas competências são essenciais à gestão didático-pedagógica de um curso de graduação que pressupõe tomada de
decisões e acompanhamento constantes. Etimologicamente, a palavra coordenação corresponde ao esforço de caminhar
junto, de superar as justaposições, os fragmentos ou a ação desprovida de intencionalidade (ANDRADE E TACHIZAWA,
1999). Entretanto, este trabalho interdisciplinar exige a criação de um projeto que permita o uso de um código comum e
integrativo, e a capacitação didática, que possibilitaria a condução holística e multidisciplinar do curso.
Nessa perspectiva, os saberes, crenças e atitudes do professor-coordenador terá impacto no modo em que gerencia o PPP,
considerando a visão de Libâneo (2001, p. 66) que percebe o professor como “um intelectual crítico, um profissional reflexivo
e pesquisador e construtor de conhecimentos, como participante qualificado para a elaboração e gestão da escola”.
Assim, vários autores têm identificado o domínio de conhecimento que um professor-coordenador deve possuir para exercer
sua profissão, como pode ser evidenciado na Figura 1. Esses conhecimentos e/ou saberes referem-se especificamente à
questão: o que um professor necessita saber para ser professor? Ou, mais especificamente: o que um professor de
matemática, de história, de química, da área de direito, psicologia, ou até mesmo Ciências Contábeis etc., deve saber de
forma a ingressar na profissão com um repertório mínimo que lhe possibilite, a partir dele, novas construções e novos
conhecimentos?
Figura 1 – Plataforma Teórica – Saberes da Docência
Cantídio
(1981)
Schön
(1987)
Chevallard
(1985)
Pimenta
(2005)
Cunha
(2002)
Pérez Gómez
(2001)
Tardif
(2001)
Tardif e
Raymond
(2000)
Perrenoud
(2000)
Pacheco
(1995)
Nóvoa
(1992)
Shulman
(1989)
SABERES
DA
DOCÊNCIA
Currículo e Epistemologia | 77
Em relação às crenças, primeiramente, é importante considerar a forma de pensar do professor-coordenador, pois esta irá
refletir as suas atitudes e decisões na prática de ensino e gestão (PAJARES, 1992; PALMER, 1998). Segundo Clark &
Peterson (1986), o comportamento do professor é substancialmente influenciado e até mesmo determinado pelos seus
processos de pensamento.
Desse modo, o que o professor pensa sobre educação, sucesso ou fracasso escolar, bem como as expectativas, as
representações e os saberes construídos na prática diária, influenciam e determinam a sua conduta docente e de gestão de
um curso. As opções que ele faz, suas decisões e ações serão de acordo com os movimentos, seus e de seu grupo e com o
que é válido para eles (CUNHA, 2001, 2002; PÉREZ GÓMEZ , 1999).
Outros estudos buscam dar voz aos pensamentos e às ações dos professores (Cochran-Smith & Lytle, 1990; Bailey & Nunan,
1996), procurando entender não somente que conhecimentos estes utilizam quando ensinam, mas como os processos de
aprendizagem desenvolvem-se e que crenças, vivências e experiências fundamentam a sua forma de ensinar. As pesquisas
nesta abordagem (PENIN, 1993; PACHECO, 1995; PÉREZ GÓMEZ, 1992; E GARCIA, 1997) mostram que a atividade
profissional do professor vem ocupando lugar de destaque, sendo possível investigar: 1º) as suas representações sobre o
ensino e aprendizagem; 2º) O valor da prática docente como elemento de análise e reflexão do professor e que esta seja um
instrumento de desenvolvimento do seu pensamento e da sua ação.
Tardif et. al (1991,1999, 2000) também se dedica ao estudo do conhecimento profissional do professor. Estes autores em
seus trabalhos discutem os fundamentos epistemológicos da prática profissional docente, centrando o eixo das discussões na
premissa de que a competência docente integra uma pluralidade de saberes. Eles consideram os diversos tipos de saberes
(das disciplinas, curriculares, profissionais e da experiência) como integrantes da prática docente, sendo que a diferença
estaria na relação do professor com cada um deles.
A fim de repensar a formação inicial e contínua a partir da análise das práticas pedagógicas, Pimenta (2000) desenvolveu
uma pesquisa a partir de sua prática com alunos de licenciatura e destaca a importância da mobilização dos saberes da
experiência para a construção da identidade profissional do professor. Neste sentido, são identificados três tipos de saberes
da docência: i) da experiência, que seria aquele aprendido pelo professor desde quando aluno, com os professores
significativos etc., assim como o que é produzido na prática num processo de reflexão e troca com os colegas; ii) do
conhecimento, que abrange a revisão da função da escola na transmissão dos conhecimentos e as suas especialidades num
contexto contemporâneo e iii) dos saberes pedagógicos, aquele que abrange a questão do conhecimento juntamente com o
saber da experiência e dos conteúdos específicos e que será construído a partir das necessidades pedagógicas reais. A
autora enfatiza ainda a importância de que a fragmentação entre os diferentes saberes seja superada, considerando a prática
social como objetivo central, possibilitando, assim, uma re-significação dos saberes na formação dos professores.
Para Cantídio (1981) o regime atual de coordenação didática dos cursos é sabido deficiente e precisaria sofrer ajustamentos,
com o objetivo de caracterizar a administração de um curso como sendo a gerência de um projeto de aprendizagem. O
projeto pedagógico é, cada vez mais, considerado o instrumento por excelência, através do qual se expressam a identidade e
a especificidade e, por conseguinte, a autonomia das instituições de ensino superior e dos seus cursos. Para que estes
objetivos sejam atingidos e para que o projeto pedagógico se constitua num referencial para o alcance da qualidade,
necessário é que ele seja, efetivamente, tratado como um instrumento de gestão e de mudança.
2.1 O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO (PPP) COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO
Currículo e Epistemologia | 78
O projeto político-pedagógico foi um dos principais resultados das modificações ocorridas, nas orientações das políticas
educacionais brasileiras, a partir de 1980. Estas mudanças encontram-se expressas na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) - Lei nº 9.394/96 - e em linhas gerais, convergem para a adoção de novos modelos de gestão e
planejamento da educação, calcados em formas mais flexíveis e descentralizadas de administração. A elaboração do projeto
político-pedagógico, por se configurar enquanto um processo de planejamento, exige um profundo conhecimento de
ferramentas teórico metodológicas por parte dos profissionais da instituição educativa.
As atribuições e as competências funcionais direcionadas ao desempenho atitudinal e profissional relacionam-se com a
renovação das práticas educativas e exigem do professor-coordenador a postura sempre atenta às informações sobre as
experiências que estão acontecendo, além da visão estratégica para identificar no grupo que etapa os professores querem
mudar, fortalecendo as ações e dando ânimo para avançar sempre, apesar da complexidade dos processos de
transformações.
Segundo Vasconcellos (2006, p.87): “o coordenador ajuda quando não impõe, mas propõe, provoca”. Nesse âmbito,
confiança é a condição prévia indispensável para a mudança; dessa forma, a convicção inicial sofre alterações e, se preciso
for, acontecem alguns questionamentos, mas a solução é encontrada. Sendo assim, o professor-coordenador deve estar
sintonizado com os gestores e com o grupo de professores com os quais atua, e essa sintonia pressupõe o exercício cada
vez mais acurado dos mesmos instrumentos metodológicos e o acompanhamento do movimento do grupo, impulsionando-o
para a busca da autonomia.
A busca desta autonomia dar-se-á na medida em que o professor-coordenador conseguir implementar um projeto Político
Pedagógico quer do curso por meio da participação coletiva dos professores durante sua elaboração com compreensão da
idéia de “projeto”, como sendo um instrumento educativo em construção que busque obter a melhoria da qualidade do
trabalho desenvolvido pra todos e, conseqüentemente , do ensino oferecido.
Nesse âmbito o professor-coordenador deverá desmascarar o mito implementado pela LDB anterior – Lei nº.5692/71,
solicitava apenas o cumprimento das orientações administrativas e didáticas provenientes do poder central. A partir de
meados da década de 1990, a idéia do Projeto Político-Pedagógico veio tomando corpo no discurso oficial e em quase todas
as instituições de ensino, espalhadas por todo o Brasil. A formulação e a construção do projeto Político-Pedagógico,
atualmente, seguem as orientações contidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº.9.394, de 20 de Dezembro de
1996, em seus artigos 12, 13 e 14, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional
Isso posto, ainda que o projeto político-pedagógico seja uma demanda decorrente de políticas públicas de cunho neoliberal e,
por isso, se constitua enquanto uma ferramenta para a efetivação do controle da instituição educativa, ele é “[...] o elemento
balizador da autonomia administrativa, pedagógica e jurídica; é o instrumento que orienta e possibilita operacionalizar a
autonomia [...]” (Cavagnari, 1998, p.99) e a qualidade pedagógica da instituição educativa na medida em que proporciona “[...]
a atuação conjunta e concertada, a [...] discussão, negociação [...] e o envolvimento dos vários intervenientes.” (Costa, J.,
2003, p.1331). O projeto político-pedagógico se configura, assim, enquanto o meio pelo qual a instituição educativa deve
lançar mão a fim de, efetivamente, exercer a autonomia e alcançar a qualidade do processo educativo.
Disso resulta que o projeto político-pedagógico não se resume a um documento de dimensão pedagógica, “[...] nem muito
menos ao conjunto de projetos e de planos isolados de cada professor em sua sala de aula [...]” (Veiga, 2005, p.11), mas sim,
um produto específico que reflete a realidade da instituição, “[...] situada em um contexto mais amplo que a influencia e que é
por ela influenciado. Em suma, é um instrumento clarificador da ação educativa da instituição em sua totalidade” (VEIGA,
2005, p.12).
Currículo e Epistemologia | 79
A fim de sintetizar e facilitar o entendimento sobre os significados da Gestão do Projeto Político-Pedagógico, como pode ser
evidenciado no Quadro 1.
ITENS Estratégico-Empresarial Educação Emancipatória
Gestão
do
Projeto
Político
Pedagógi
co
Processo autoritário de tomada
de decisões;
Construída numa obrigação
política vertical professores –
direção – coordenação - Estado;
Baseada na separação, no
tempo e na posição funcional
dos professores;
Processo democrático para melhoria da
qualidade do ensino;
Construída numa “colaboração voluntária
cidadão-cidadão fundadora de uma
verdadeira federação de esforços
participativos, gestado com a presença
efetiva de outros protagonistas:
coordenadores, alunos, professores,
funcionários e demais forças sociais”;
Fonte: Elaborado pelos Autores com base em VEIGA (2005).
Quadro 1 – Gestão do Projeto Político Pedagógico
Assim, como se pode verificar no Quadro 1, a configuração do PPP constitui-se um processo democrático de decisões que
preocupa instaurar uma forma de organização do trabalho pedagógico do professor de Ciências Contábeis que supere os
conflitos, buscando eliminar as relações competitivas, corporativas e autoritárias e, por sua vez, rompendo com a rotina do
mando impessoal e racionalizado da burocracia que permeia as relações no interior da IES e os efeitos fragmentários da
divisão do trabalho que reforça as diferenças e hierarquiza os poderes de decisão.
Assim, o PPP é uma ação intencional, com um sentido explícito, com um compromisso defendido coletivamente. Por isso,
todo PPP é também, um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso sóciopolítico com os interesses
reais e coletivos da população majoritária. É político no sentido de compromisso com a formação do cidadão para um tipo de
sociedade (VEIGA, 2004). Na dimensão pedagógica reside a possibilidade da efetivação da intencionalidade da universidade,
que é a formação do cidadão participativo, responsável, compromissado, crítico e criativo. Pedagógico, no sentido de definir
as ações educativas e as características necessárias às escolas de cumprirem seus propósito e sua intencionalidade.
A principal possibilidade de construção do PPP passa pela relativa autonomia das IES e de sua capacidade de delinear sua
própria identidade. Isso significa resgatar a instituição como espaço democrático, lugar de diálogo, fundado na reflexão
coletiva. Assim sendo, para Vasconcelos (2006), o PPP deve ser entendido como a sistematização, nunca definitiva, de um
processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de
ação educativa que se quer realizar. É um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade.
Para Veiga (2004), o PPP, enquanto organização do trabalho, deverá está fundamentado nos princípios que deverão nortear
a instituição democrática, pública e gratuita, como evidenciado no Quadro 2:
Igualdade Condições para acesso e permanência na Universidade.
Qualidade Que não pode ser de privilégios de minorias econômicas e sociais
Currículo e Epistemologia | 80
Gestão
democrática
É um princípio consagrado pela constituição vigente e abrangem as dimensões
pedagógicas, administrativas e financeiras.
Liberdade Associado à idéia de autonomia.
Valorização
do magistério
Princípio central na discussão do PPP - a qualidade do ensino ministrado na escola.
Fonte: Elaborado pelos Autores com base em VEIGA (2004).
Quadro 2 – Princípios que norteiam a instituição democrática, pública e gratuita.
Um projeto de educação comum vai exigir que os educadores de cada instituição educacional elejam um conjunto de
intenções educativas e de diretrizes pedagógicas e que se articule para orientar a organização e o desenvolvimento da sua
prática educativa. Referenciais mais amplos - de natureza político-filosófica, epistemológica e didático-pedagógica definidos
conjuntamente, oferecerão as bases para a análise da realidade atual da universidade e o planejamento da intervenção sobre
ela.
Um projeto de educação deve responder a questões tais como: Que tipo de sociedade se quer ajudar a construir? Que
formação pretende-se/deseja-se para os alunos sob a responsabilidade da instituição de educação? Que educação acredita-
se ser capaz de contribuir para essa formação? A ausência de um projeto comum de educação nas IES tem-se evidenciado
na forma de uma permanente tensão interna entre visões que se defrontam, muitas vezes, em falsas dicotomias, dificultando
o diálogo entre os profissionais: i)formação humanista ou técnica? ii) formar para a inclusão social e profissional ou para o
mercado de trabalho? iii) ensinar conteúdos ou desenvolver habilidades e competências? iv) transmitir conteúdos ou
possibilitar aprendizagens significativas e formação profissional? v) acumular conhecimento ou aprender a pensar e a
questionar a realidade? vi) avaliar para classificar ou para identificar necessidades e dificuldades, a fim de adequar o
processo ensino-aprendizagem?
Assim é que, para dar conta da tarefa educativa de forma coerente e integrada, é preciso que os profissionais das instituições
de educação dialoguem entre si e busquem acordos fundamentais capazes de nortear suas ações educativas, quaisquer que
sejam suas especialidades. Sem esses referenciais amplos, que funcionam como um grande filtro comum, a universidade
fragmenta-se internamente, ficando sujeita a posicionamentos individuais desarticulados, a modismos e à pressão de
demandas externas pontuais que encontram espaço na ausência de um projeto institucional consistente.
Defende-se, portanto, que as ações para a elaboração, reflexão e desenvolvimento de um Projeto Político-Pedagógico de
qualidade e realmente eficaz, dependem, de acordo com esta pesquisa, de um gestor líder associado ao compromisso e
convencimento por parte do professor-coordenador para que todos os envolvidos no processo educativo façam parte dessa
construção deste projeto, bem como, da participação efetiva no seu desenvolvimento.
Não é possível assimilar todo o conjunto que engloba os projetos educacionais (gestão administrativa e de pessoas,
parcerias, incentivo à participação dos alunos e da comunidade nas decisões escolares, sucesso na aprendizagem) com o
perfil de um chefe ou de um gestor meramente administrativo, ou ainda de um coordenador que não se envolva
significativamente com a proposta educativa e com os possíveis encaminhamentos a serem adotados para que se alcance
sucesso no ensino oferecido. A administração faz parte da liderança, mas ela sozinha não abraça o coletivo e, sendo assim,
não conduz um Projeto Político-Pedagógico da maneira como o mesmo requer ser guiado.
Currículo e Epistemologia | 81
2.2 O CURRÍCULO COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA
O currículo é um constitutivo da organização escolar, implica, necessariamente, na interação entre sujeitos que têm um
mesmo objetivo e a opção por um referencial teórico que o sustente. É uma construção social do conhecimento, pressupondo
a sistematização dos meios para que esta construção se efetive; a transmissão dos conhecimentos historicamente produzidos
e a forma de assimilá-los.
Um currículo em atos encontra-se na mais diferenciadas atitudes de afirmação identificando os substratos da experiência
como alimento para o exercício do pensamento. O currículo não é um produto dos determinantes estruturais da sociedade
analisados como uma mecânica. Implicado ideologicamente com a estrutura social, o currículo é produzido por mediações
humanas que lhe configuram. Agentes e atores aí se dinamizam numa relação dialógica e dialética incessante (APPLE, 1989;
MACEDO, 2007).
Na organização curricular é preciso considerar que o currículo não é um instrumento neutro. O currículo passa ideologia, e a
instituição precisa identificar e desvelar os componentes ideológicos do conhecimento escolar que a classe dominante utiliza
para a manutenção de privilégios. A determinação desse conhecimento, portanto, implica uma análise interpretativa e crítica,
tanto da cultura dominante quanto da cultura popular.
Segundo Freire (2007), o currículo não deverá estar sintetizado no conceito de educação bancária, uma vez que expressa
uma visão epistemológica que concebe o conhecimento como sendo constituído de informações e de fatos a serem
simplesmente transferidos do professor para o aluno. Nesta concepção, o educador exerce sempre um papel ativo, enquanto
o educando está limitado a uma recepção passiva.
O currículo, como instrumento de concretização do projeto de educação das IES, torna-se um importante referencial de
educação e manifesta-se fundamentalmente pelo que fazem seus educadores ao desenvolver um determinado currículo,
independentemente de qualquer retórica e declaração de finalidades.
Diferentes modelos teóricos e práticas curriculares desenvolveram-se no campo educacional, orientando a organização do
trabalho escolar. Conhecê-los e refletir sobre eles pode ser útil para a compreensão dos fundamentos das práticas escolares
atuais, uma vez que nelas encontramos evidências da presença de elementos das diversas teorias curriculares, nem sempre
inseridos de uma forma coerente e articulada (SILVA, 1999).
Em relação ao currículo, diferentes modelos teóricos e práticas curriculares desenvolveram-se no campo educacional,
orientando a organização do trabalho escolar e universitário. As teorias curriculares que predominaram na sociedade moderna
- desde a escola burguesa do século XVIII até os anos 70 do século XX são conhecidas como tendência tradicional,
escolanovista e tecnicista, abordam as questões curriculares numa perspectiva marcadamente pedagógica, não se
preocupando em explicitar os aspectos políticos e epistemológicos subjacentes às diferentes propostas. A postura de
neutralidade assumida por essas teorias no campo educacional (desconhecimento dos condicionantes sociopolíticos) levou
alguns autores a classificá-las como teorias curriculares não-crítica (DOLL, 1997, SAVIANI, 2000, LUCKESI, 1999).
Diferentes autores defendem a mudança curricular. SACRISTÁN (1998), pesquisador espanhol da área do currículo,
considera quatro perspectivas de abordagem das teorias curriculares: academicista, psicológica, tecnicista e dialética ou
integrada. Cada uma dessas abordagens resulta em desenvolvimentos curriculares específicos. Já SILVA (1999),
pesquisador brasileiro contemporâneo refere-se às três primeiras perspectivas citadas por Sacristán (1998) como
perspectivas tradicionais de abordagem curricular. Considerando que os conceitos de uma teoria organizam nossa forma de
Currículo e Epistemologia | 82
ver a realidade, Sacristán (1998) chama à atenção para o deslocamento conceitual provocado pelas teorias críticas e pós-
críticas - que se desenvolveram nas últimas décadas do século XX - no discurso educacional.
Este autor desloca a ênfase dos conceitos pedagógicos de ensino e aprendizagem (avaliação, planejamento, métodos
didáticos, objetivos instrucionais, eficiência, organização) das teorias tradicionais, para a ênfase nos conceitos de ideologia e
poder (conscientização, libertação, prática social, hegemonia) para as teorias críticas. Daí para a ênfase nos conceitos
relacionados ao discurso (identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significado e discurso, saber-poder, representação,
cultura, gênero, etnia, multiculturalismo, sexualidade) das teorias pós-crítica.
Outros autores contemporâneos de grande influência no campo educacional, como o pensador francês Edgar Morin (2001,
2002) e os educadores espanhóis Fernando Hernández (1998) e Antoni Zabala (2002) também discutem o processo
educativo na perspectiva interativa e processual de abertura e complexidade características do pensamento pós-moderno.
Os currículos refletem os princípios da ciência moderna e, como parte do saber pedagógico, estruturam-se de forma
fragmentada, induzindo uma avaliação do mesmo modo: os alunos devem devolver o produto adquirido objetivamente,
preferencialmente em forma de testes de múltipla escolha. Estes não admitem a interferência do pensamento e da
experiência dos alunos e do professor. Não há meia resposta. Ou está certo ou está errado. Celebram a racionalidade,
separando o ato pedagógico de sua execução.
Historicamente, o contexto escolar focalizou sua atenção nos conhecimentos relativos aos fatos e conceitos das diferentes
áreas do saber (enfatizando ora as humanidades, ora as ciências naturais). Desse modo, não assumindo uma proposta
intencional de trabalhar com valores, atitudes e normas (que ficam esquecidos na sua declaração de finalidades ou embutidos
na organização das suas rotinas, constituindo um currículo oculto ou implícito).
Também não tem incluindo em seu planejamento o ensino de procedimentos e estratégias de conhecimento (formação
instrumental). A proposta de educação para a compreensão da realidade e para a formação do pensamento complexo capaz
de lidar com a diversidade do mundo exige a revisão dos currículos dos cursos de Ciências Contábeis numa perspectiva
efetivamente integrada dos conhecimentos, sejam os conhecimentos científicos das disciplinas, os de natureza atitudinal ou
procedimental. Se até agora se desenvolveram didáticas específicas para o ensino dos conceitos das disciplinas, na
atualidade, é preciso compreender como se dá a aprendizagem de valores e procedimentos (habilidades), para incluir seu
ensino intencional nos planejamentos e práticas educacionais.
O currículo é, definitivamente, um espaço de poder. O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis
das relações sociais do poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz - culturalmente - as estruturas sociais. O
currículo tem um papel decisivo na reprodução da estrutura de classe da sociedade capitalista. O currículo transmite a
ideologia dominante. O currículo é um território político. Em suma, o currículo atua ideologicamente para manter a crença de
que a forma capitalista de organização da sociedade é boa e desejável (PACHECO, 2005).
Iudícibus e Marion (1999) assentam que este cenário educacional é delicado e apontam como principais fatores deficientes no
ensino a falta de adequação do currículo, atrelada à falta de um programa bem definido para a prática contábil, falta de
preparo do corpo docente, deficiência na metodologia de ensino da contabilidade introdutório e proliferação das instituições de
ensino e órgão de classe.
Assim, o papel da Matriz Curricular para os cursos de Ciências Contábeis na formação dos contadores, também, tem sido
bastante discutido. Tais discussões envolvem características como sexo, raça e habilidades, bem como influências do meio
educacional, social e político. Além disso, uma outra discussão se torna importante nos dias de hoje: a internacionalização e a
globalização de programas acadêmicos que podem envolver conhecimento de línguas estrangeiras, cultura geral, entre outras
características (ADHIKARI et al,1999, apud RICCIO e SAKATA, 2004).
Currículo e Epistemologia | 83
Na concepção de Nossa (1999), a melhoria na qualidade de ensino não depende somente das mudanças curriculares e
estruturais das Instituições de Ensino Superior, mas, principalmente, a seriedade, dedicação e compromisso assumido pelos
profissionais na capacidade de formar bons profissionais e não apenas informá-los sobre alguns conteúdos. Para ele, torna-se
necessário a implementação do Currículo Contador Global, em que o conteúdo é voltado de forma interdisciplinar, para as
áreas de métodos quantitativos, teoria econômica aplicada, processo decisório, sistema de informação, finanças, tecnologia
da informação estratégica, além do conhecimento técnico em Contabilidade, isso tudo de forma que leve o aluno apreender a
aprender.
O currículo deverá ser entendido como um artefato que ao mesmo tempo traz, para instituição, elementos que existem no
mundo e cria, na própria instituição sentidos para o mundo – passa a ser visto como ocupando uma posição central nos
processos de identidade social, de representação, de regulação moral. O currículo é assim resultante de discursividades
diferentes, de intencionalidades diversas, de representações várias, nem sempre mostra, na superfície, tudo que pode
mostrar ou significar, em termos de conseqüências que pode produzir.
3. METODOLOGIA
O presente artigo caracteriza-se como um ensaio teórico, que segundo Severino (2000) consiste na exposição lógico-reflexiva
com ênfase na argumentação e interpretação pessoal. O material consultado foi submetido ao método de Leitura Científica
que segundo Cervo e Bervian (2002) obedece a passos sistematizados cronologicamente tais como: visão sincrética, visão
analítica, leitura crítico-reflexiva, visão sintética e leitura interpretativa.
Estes procedimentos foram necessários para a o alcance do objetivo do artigo que foi apresentar, analisar e discutir
contribuições teóricas sobre a formação de professores que possam orientar as ações do coordenador de curso em IES, no
que concerne à gestão do projeto político pedagógico e do currículo como instrumento de sua concretização.
Para tanto, tomou-se como ponto de partida estudos e pesquisas sobre a formação de professores que entendem a docência
como profissão e buscou-se identificar e explicitar os conhecimentos e saberes que esta profissão demanda, bem como a
gestão do PPP e do Currículo como instrumento de sua concretização, na educação de nível superior.
4. CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Em vista do objetivo deste artigo que foi apresentar, analisar e discutir contribuições teóricas sobre a formação de professores
que possam orientar as ações do professor-coordenador de curso em IES, no que concerne à gestão do projeto político
pedagógico, tendo o currículo como instrumento de sua concretização. Verificou-se que a formação didática e pedagógica do
professor constitui-se de um conjunto de conhecimentos, competências e habilidades que alicerçam a prática docente. Ao
considerá-la como uma atividade especializada, defendeu-se a formação profissional para seu exercício: conhecimentos
específicos para exercê-la, a aquisição dos conhecimentos e das habilidades vinculadas à atividade docente para melhorar
sua qualidade.
Assim como a instituição universitária, a coordenação de curso de graduação é essencialmente docente, e deste modo, os
professores necessitam de formação e capacitação pedagógica na área da gestão e administração de um curso como sendo
a gerência de um projeto de aprendizagem. Um projeto de educação alinhado às necessidades e aprendizagem dos alunos e
dos professores exige conhecimentos, habilidades, saberes, crenças e atitudes tais como:
Currículo e Epistemologia | 84
i) Coordenar e gerir estudos, discussões e ações para a partir do diagnóstico da realidade escolar construir o Projeto Político
e pedagógico do curso;
ii) Assegurar a unidade de ação pedagógica do curso por meio da gerência de atividades curriculares e de ensino, propondo
orientações e ações de desenvolvimento dos planos de ensino, tendo em vista a aprendizagem significativas dos alunos;
iii) Prestar assistência didático-pedagógica direta aos professores, por meio de reuniões de trabalho, especialmente em
relação a práticas de gestão e manejo de metodologias específicas e diferenciadas para a sala de aula; para apoiá-los nas
dificuldades de aprendizagem dos alunos e para desenvolver a competência crítico-reflexiva do docente;
iv) Cuidar dos aspectos organizacionais do ensino por meio da supervisão das atividades pedagógicas e curriculares,
organização, conservação e incentivo do uso novos recursos, equipamentos e materiais didáticos;
v) Assegurar, em conjunto com os professores, a criação e o desenvolvimento de um clima de trabalho cooperativo e solidário
entre os membros da equipe e a identificação de soluções técnicas e organizacionais para a gestão das relações
interpessoais, inclusive para a mediação de conflitos que envolvam professores, alunos e outros agentes acadêmicos;
vi) Propor e coordenar atividades de formação contínua e de desenvolvimento profissional dos professores, visando o
aprimoramento profissional em conteúdos e metodologias, proporcionada pela oportunidade de troca experiências e
cooperação entre os docentes;
vii) Acompanhar e avaliar, por meio de práticas colaborativas, o desenvolvimento do plano de curso e de ensino, a atuação do
corpo docente, os critérios e as formas de avaliação da aprendizagem dos alunos;
viii) Organizar dados, documentação e registro referentes aos aspectos quantitativos do curso, entre eles documentos de
estruturação e de desenvolvimento de ações pedagógicas;
ix) Planejar, coordenar, gerir, acompanhar e avaliar as atividades didático-pedagógicas, tendo como instrumentos registros
reflexivos desta atuação (ação-reflexão-ação);
Estas atribuições e competências decorrentes de uma prática de ensino colaborativa e interativa, tem o PPP como
instrumento de gestão do curso e o currículo como espaço para a sua concretização, inscrevem-se num movimento de
renovação e exigem do coordenador do curso uma postura sempre atenta ao que esta acontecendo além da visão
estratégica para identificar os avanços do grupo, fortalecer as ações e fomentar inovações.
Como último ponto destaca-se que sendo a IES o ponto de encontro dos profissionais envolvidos na ação educativa, o
coordenador de curso é indispensável para que o potencial de participação, cooperação e respeito mútuo se desenvolva,
infere-se então que o professor coordenador é um intelectual orgânico no grupo e sua “práxis” (ação-reflexão-ação) abarca as
dimensões reflexiva, organizativa, conectiva, interativa e avaliativa.
Esta inferência permite validar exercício de autonomia da universidade quando afirma que o papel essencial da universidade
que é a gestão didático-pedagógica do ensino, cabendo às Coordenações de Curso de Graduação, a melhoria da qualidade
de ensino a aprendizagem significativa dos alunos e a qualidade do profissional formado pela universidade. Entretanto, a
ausência de uma política de formação dos docentes pode desencadear uma série de ingerências no processo de gestão
didática dos ursos de graduação, potencializada pela fragilidade estrutural das Coordenações instituídas.
Uma política de formação docente fundamentada nas ciências da educação e no trabalho de sala de aula do professor
valoriza os saberes docentes. O professor passa a ser visto como um "profissional, como aquele que, munido de saberes e
confrontando a uma situação complexa resiste à simples aplicação dos saberes para resolver a situação. Ele deve deliberar,
julgar e decidir com relação à ação a ser adotada, ao gesto a ser feito ou à palavra a ser pronunciada antes, durante e após o
ato pedagógico.
Currículo e Epistemologia | 85
Neste sentido, a concepção de saber não impõe ao professor um modelo preconcebido de racionalidade. Identificar a
estratégia do gestor no projeto político-pedagógico é, antes de mais nada, localizar os elementos que propiciam a
investigação que exige novas formas de organização, a combinação e utilização de várias técnicas investigativas. É certo que
as inovações se desenvolvem na prática cotidiana, ou seja, realizam-se no processo de construção/implementação dos
projetos pedagógicos. Dessa forma, os resultados da inovação ultrapassam as questões técnicas sem delas prescindir.
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José Licínio Backes & Ruth Pavan
Universidade Católica Dom Bosco
[email protected] & [email protected]
O USO EPISTEMOLÓGICO DO CONCEITO DE DIFERENÇA EM PESQUISAS
CURRICULARES NO BRASIL
Os debates sobre as questões epistemológicas sempre estiveram presente nas pesquisas na educação, mas nos últimos anos em função
da crise epistemológica esses se tornaram mais intensos e acalorados. Nesse contexto, o campo teórico do currículo tem se destacado
como um território produtivo, principalmente pela percepção de que a epistemologia moderna/cartesiana/cientificista tem contribuído para
legitimar um currículo branco, masculino, ocidental, heterossexual, cristão, isto é, homogeneíza as identidades e discrimina/exclui os
sujeitos diferentes. Com o intuito de subverter essa epistemologia e criar uma capaz de compreender e legitimar a heterogeneidade, o uso
epistemológico do conceito de diferença tem sido acionado. Assim esse trabalho tem como objetivo analisar as pesquisas curriculares
produzidas no Brasil quanto ao uso epistemológico do conceito de diferença. Para tanto foram analisados todos os trabalhos completos
apresentados no Grupo de Trabalho “Currículo”, da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) no período
de 2005 a 2009, perfazendo um total de 64 trabalhos. A escolha dessas pesquisas justifica-se pelo fato de esse evento anual ser
reconhecido no Brasil como o mais significativo para a área de educação, selecionando no máximo, 15 trabalhos inscritos em cada Grupo
de Trabalho. A análise efetuada, além de mostrar que o uso epistemológico do conceito de diferença é recorrente, mostra que há duas
tendências: a) um conjunto de pesquisas apoiadas no conceito deleuziano de diferença pura: esse grupo argumenta em favor de um
pensamento que abale, transgrida, subverta, evite todo e qualquer processo de identificação, pois pensar na identidade sempre remete a
pensar o “comum” na diferença, que em última instância, significa a morte da diferença. b) um conjunto de pesquisas que postula que a
diferença só pode ser pensada se articulada com a identidade: esse grupo argumenta que a identidade e a diferença são relacionais,
interdependentes e impossíveis de serem pensadas separadamente. Postulam que pensar tanto nas identidades e diferenças como
construções históricas e culturais, questionando as relações de poder que classificam e hierarquizam as diferenças, possibilita a subversão
dos processos de homogeneização. Concluímos que as tendências observadas, ainda que diferentes, ao questionarem a epistemologia
moderna e se pautarem em outras epistemologias, contribuem para criarem currículos mais abertos, plurais, polissêmicos.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O trabalho, fruto da pesquisa, “Os conceitos de cultura, identidade e diferença em trabalhos apresentados na ANPED (2005-
2009) e suas implicações para o campo epistemológico da educação” financiada pelo CNPq (Edital Universal/2008) tem como
objetivo analisar as pesquisas curriculares produzidas no Brasil quanto ao uso epistemológico do conceito de diferença.
Os debates sobre as questões epistemológicas sempre estiveram presente nas pesquisas na educação, mas nos últimos
anos em função da crise epistemológica esses se tornaram mais intensos e acalorados.
Nesse contexto, o campo teórico do currículo tem se destacado como um território produtivo, principalmente pela percepção
de que a epistemologia moderna/cartesiana/cientificista tem contribuído para legitimar um currículo branco, masculino,
ocidental, heterossexual, cristão, isto é, homogeneíza as identidades e discrimina/exclui os sujeitos diferentes.
Com o intuito de subverter essa epistemologia e criar uma capaz de compreender e legitimar a heterogeneidade, o uso
epistemológico do conceito de diferença tem sido acionado. Para mostrar como o conceito de diferença tem sido usado nas
pesquisas curriculares no Brasil, foram analisados todos os trabalhos completos apresentados no Grupo de Trabalho
“Currículo”, da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) no período de 2005 a 2009,
perfazendo um total de 64 trabalhos. A escolha dessas pesquisas justifica-se pelo fato de esse evento anual ser reconhecido
Currículo e Epistemologia | 88
no Brasil como o mais significativo para a área de educação, selecionando no máximo, 15 trabalhos inscritos em cada Grupo
de Trabalho.
Porém, antes de apresentar essa análise, consideramos fundamental apresentar algumas reflexões sobre como a
epistemologia carrega as marcas históricas de posturas assentadas em concepções de verdades indubitáveis e como as
crises costumam ser vistas como momentos transitórios para a criação de novas verdades com o mesmo desejo infame de
que sejam indubitáveis.
Nossa aposta é que a crise epistemológica atual é um espaço/tempo privilegiado de pensar as diferenças, inclusive
epistemológicas, sem vistas a superação, muito menos uma transição para um paradigma que prometa novamente verdades
indubitáveis, idéias claras e distintas.
2. A CRISE EPISTEMOLÓGICA: UMA CRISE DA CIÊNCIA MODERNA/CARTESIANA/CIENTIFICISTA
De certa forma a história da epistemologia ocidental pode ser contada a partir da sua busca por verdades inquestionáveis,
absolutas, seguras. O próprio surgimento da filosofia está ligado a esse desejo infame. A filosofia surge dentro do contexto
grego (por volta do século VI a. C.) no qual as verdades oferecidas pelos mitos não mais davam conta de oferecer segurança.
Essa mesma filosofia logo entra crise com a crítica dos sofistas (séc. V a. C.) que insistiam que o conhecimento é relativo,
traduzida na famosa frase de Protágoras (487 – 420 a. C. ), “O homem é a medida de todas as coisas”. Porém esses logo são
acusados de apenas pretenderem ser sábios, de serem charlatões e entram na tradição filosófica como mercenários do
saber. Essa crise é abafada por Platão (428 – 348 a.C) e Aristóteles (384- 322 a. C). Ainda que por vias diferentes, o primeiro
pela recordação do mundo das idéias, o segundo pela via dos sentidos, argumentam em favor de um conhecimento
indubitável.
Com o surgimento e posterior hegemonia do cristianismo, há o descrédito da filosofia, justamente porque suas verdades são
vistas como inseguras. A filosofia fica subordinada à fé, supostamente capaz de alcançar verdades inquestionáveis e
absolutas. Apesar de manter a denominação de filosofia (cristã), tratou-se de um conhecimento teológico, com todas as
características dogmáticas inerentes a esse campo de saber.
Com a crise da filosofia cristã, fruto da crise da Igreja Católica, e o desenvolvimento de conhecimentos contrários aos
princípios eclesiásticos, surge Descartes (1596-1650) não para acabar com a crença nas verdades indubitáveis, mas para
criar outras. Com o seu método pautado no critério de clareza e distinção, mantém a preocupação com verdades seguras e
indubitáveis: “[...] não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito,
que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” (DESCARTES, 2009, p. 33).
Com o seu método fascina os filósofos e faz com que algum tempo depois, a ciência seja apontada como o caminho seguro
para esse tipo de verdade. Assim o ocidente viu-se em condições políticas e “científicas” de oferecer verdades “universais” e
“impessoais”. Um método notadamente marcado pelo ideal matemático, segundo o qual, conhecer significa quantificar,
mensurar, enumerar. Um método que extirpa toda e qualquer dúvida, e que, portanto, elimina as possibilidades do
pensamento divergente, do dissenso, da diferença. Um método, gestado dentro de um contexto de colonização e expansão
do capitalismo e que como tal, esteve a serviço do domínio europeu.
Nesse sentido, trazemos Bhabha (2007) que por meio de sua análise pós-colonial chama a atenção, entre outras coisas, de
como o discurso científico produzido no contexto da colonização produzia saberes que instituíam o colonizador e o colonizado
de modo que a dominação, o massacre, a violência, a subjugação fossem vistas como necessárias:
Currículo e Epistemologia | 89
Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de conhecimentos do colonizador e do colonizado que
são estereotipados e avaliados antiteticamente. O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de
administração e instrução (BHABHA, 2001, p. 111).
Embora Nietzsche (1989) já chamasse atenção no final do século XIX sobre os equívocos da ciência moderna, mostrando
que as verdades são apenas invenções humanas, foi apontado durante muito tempo como um louco, e, portanto, não
merecedor de crédito.
Assim foi somente na segunda metade do século XX que o modelo cartesiano/moderno/cientificista começou a dar sinais de
esgotamento, de crise. Uma crise segundo Bauman (1998) fortemente ligada ao Holocausto. Segundo o autor, os cientistas
que analisaram os protagonistas da Segunda Guerra Mundial, observaram que todos os nazistas que mataram milhões de
judeus, não eram doentes mentais, nem psicopatas. Para espanto quase geral, constataram que os cientistas nazistas eram
apenas racionais. Pessoas que no seu cotidiano eram afáveis com seus familiares e muitos deles com seus vizinhos
próximos, incluindo judeus, tornavam-se frias e sanguinárias, quando protegidas e anestesiadas pela impessoalidade e frieza
do método matemático/cartesiano. Ali não estavam sendo pessoas, eram técnicos/cientistas que cumpriam ordens. Tinham
sido treinados nas mais importantes universidades européias que o cientista não deve se preocupar com a ética, não deve
fazer juízos de valor. Haviam aprendido nas universidades que em nome do avanço da ciência deviam renunciar a princípios
éticos e sacrificar tudo.
Dentro desse contexto de crise da ciência, do questionamento dos efeitos que uma ciência etnocêntrica, que uma ciência
produto de uma cultura particular que ambiciona a universalidade gera para os demais grupos culturais, surgem diferentes
movimentos de crítica. Para Louro:
Na verdade, há uma história da ciência que ganhou legitimidade e universalidade. Esta Ciência, escrita com maiúsculas,
fala por todos e de todos, já que foi pensada, conduzida e instituída a partir dos interesses e das questões daqueles cujas
vozes pretenderam (e pretendem) representar toda a humanidade. Mas essa Ciência, também foi feita – é indispensável
reconhecer isso – por uma parte da humanidade. Ela foi feita pelos homens – os homens brancos ocidentais da classe
dominante – os quais, supostamente, fizeram as perguntas e deram as respostas que interessavam a todas as pessoas.
Possuidores de alguma capacidade “extraordinária”, eles sempre “souberam” o que era importante em geral. (2004, p.
143).
Uma dessas críticas, para nós de suma importância, não só porque representa o nosso campo teórico de análise, mas pela
contundência e rigor apresentados, vêm do campo teórico dos Estudos Culturais. Esse campo enfatiza a centralidade da
cultura, concebendo-a como uma categoria epistemológica sem a qual, é impossível compreender os mundos, os seres
humanos, as educações, as diferenças, as identidades, isto é, a cultura não é um epifenômeno, ela é constitutiva de tudo o
que existe, inclusive dos saberes científicos, portanto a cultura é uma categoria epistemológica central, porque presente em
tudo. A cultura, “[...] longe de se limitar a crenças religiosas, rituais comunais ou tradições compartilhadas, [...] está implicada
com a forma pela qual estes fenômenos manifestos são produzidos por intermédio de sistemas de significação, estruturas de
poder e instituições (MEYER, 1999, p. 76). Os significados, inclusive os científicos, não existem em si, mas são disputados,
são construídos pela linguagem. Portanto a cultura como uma categoria epistemológica refere-se “[...] à posição da cultura em
Currículo e Epistemologia | 90
relação às questões de conhecimento e conceitualização, em como a „cultura‟ é usada para transformar nossa compreensão,
explicação e modelos teóricos do mundo” (HALL, 1997, p. 16).
A ênfase na cultura, na linguagem, na disputa dos significados, na construção social representou uma virada radical, pois
desde “[...] o iluminismo, dize-se que o papel da „ciência‟ é o de apresentar uma descrição ou conhecimento „verdadeiro‟ do
mundo: objetivo, imparcial, e racional” (HALL, 1997, p. 29). Para Silva (2002), a idéia de “construção social” é um ponto que
une os Estudos Culturais. Assim, uma das tarefas importantes nesse campo de pesquisa é sempre mostrar que as realidades
são artefatos culturais, os resultados sempre inconclusos de disputas culturais articuladas com relações de poder, enfim, os
efeitos de processos de construções culturais.
De certa forma, os Estudos Culturais entendem que esse processo de construção foi esquecido, fazendo com que as coisas,
as identidades, as diferenças apareçam como naturalizadas. Cabe, pois, ao praticante dos Estudos Culturais contribuir para
desconstruir esse processo de naturalização, de essencialização, de biologização da realidade, do mundo, da identidade, da
diferença, da cultura, da educação: “A análise consiste, então, em mostrar as origens dessa invenção e os processos pelos
quais ela se tornou „naturalizada‟” (SILVA, 2002, p. 134).
Assim, longe de postular verdades absolutas, universais, impessoais, inquestionáveis, os estudos pautados nessa
epistemologia reconhecem o caráter plural, contingente, transitório, contextual das verdades, ou seja, as verdades são “[...]
„epocais‟ em seu alcance e referência” (HALL, 2003, p. 298).
Com veremos a seguir, os estudos curriculares no Brasil, principalmente a partir da década de 90 do século XX, têm
contribuído significativamente para o questionamento dos processos de naturalização das verdades, principalmente dos
processos de naturalização das verdades sobre as identidades e diferenças, subvertendo a epistemologia
moderna/cartesiana/fisicalista, habitando “[...] com a maior dignidade possível um mundo caracterizado pelo caráter plural da
verdade, pelo caráter construído da realidade e pelo caráter poético e político da linguagem” (LARROSA, 2003, p. 164).
3. EPISTEMOLOGIA E O CONCEITO DE DIFERENÇA NOS TRABALHOS APRESENTADOS NA ANPED: DIFERENTES USOS
Hall (1997) quando descreve a virada cultural articulando-a com o campo dos estudos culturais, observa que o conceito de
cultura pode ser usado em dois sentidos: sentido substantivo e sentido epistemológico, este último fruto da virada cultural,
ocorrida a partir da última metade do século XX. O uso substantivo da cultura também teve uma expansão desde as últimas
décadas do século XX, perceptível pela “[...] crescente centralidade nos processos globais de formação e mudança, sua
penetração na vida cotidiana e seu papel constitutivo e localizado na formação de identidades e subjetividades” (HALL, 1997,
p. 44).
Trata-se das mudanças ocorridas na cultura, nos modos de vida de todas as pessoas, no sentido da vida e das coisas em
função da articulação de inúmeras transformações (no trabalho, no tempo/espaço, no lazer, nas comunicações, nas
motivações, nas concepções de famílias, na autoridade, na relação público/privado, na expectativa de vida...), todas ao
mesmo tempo produtos e produtoras de culturas.
Já o sentido epistemológico de cultura, refere-se, como já enfatizado, na mudança paradigmática, provocada “[...] no interior
das disciplinas tradicionais, no peso explicativo que o conceito de cultura carrega, e no seu papel constitutivo ao invés de
dependente, na análise social” (HALL, 1997, p. 32).
A análise dos trabalhos apresentados no GT Currículo da ANPED mostrou que a observação de Hall (1997) em relação ao
conceito de cultura, é válida para o conceito de diferença (e identidade) no campo do currículo no Brasil, ou seja, estão sendo
usados tanto no sentido substantivo quanto epistemológico. O sentido substantivo permite descrever as inúmeras identidades
Currículo e Epistemologia | 91
e diferenças (sexuais, etárias, étnicas, crença...), sua proliferação e re-significação. Mas existe também o uso epistemológico,
que está ligado aos diferentes modos de como as identidades e diferenças podem ser compreendidas. De como pensar a
diferença (ao invés da identidade) pode transformar nosso conhecimento, nosso modelo teórico de percepção não só das
identidades e diferenças enquanto realidades substantivas, mas das demais realidades/verdades que inventamos.
Particularmente, as que nos interessam nesse texto, são as transformações das realidades/verdades provocadas pelo uso
epistemológico do conceito de diferença no campo do currículo, no período de 2005-2009, no contexto brasileiro.
Nesse sentido, após termos lido e analisado todos os trabalhos apresentados na ANPED, observamos a presença de duas
tendências epistemológicas quanto ao uso do conceito de diferença: a) um conjunto de pesquisas apoiadas no conceito
deleuziano de diferença pura: esse grupo argumenta em favor de um pensamento que abale, transgrida, subverta, evite todo
e qualquer processo de identificação, pois pensar na identidade sempre remete a pensar o “comum” na diferença, que em
última instância, significa a morte da diferença. b) um conjunto de pesquisas que postula que a diferença só pode ser pensada
se articulada com a identidade: esse grupo argumenta que a identidade e a diferença são relacionais, interdependentes e
impossíveis de serem pensadas separadamente. Postulam que pensar tanto nas identidades e diferenças como construções
históricas e culturais, questionando as relações de poder que classificam e hierarquizam as diferenças, possibilita a subversão
dos processos de homogeneização.
Em relação à primeira tendência, epistemologia da diferença pura, observamos a presença de 7 trabalhos no período
analisado. Esses trabalhos têm uma característica mais teórica, (talvez exceto um) desenvolvendo reflexões mais gerais
sobre o campo do currículo, mostrando com esse tem sido pensado/organizado/ordenado com base na
identidade/mesmidade minando as possibilidades da diferença, do devir, da multiplicidadade, da heterogeneidade. Segundo
nossa análise, os trabalhos que apresentam essas características são os trabalhos de Paraíso (2005), Lopes (2006), Andrade
(2006), Wunder (2008), Cunha (2008), Chiquito e Eyng (2008), Andrade e Dias (2009). Quando, escrevemos anteriormente
que talvez haja um trabalho, que não tenha como característica fundamental a presença de reflexões gerais, referíamo-nos ao
trabalho de Cunha (2008). A autora analisa uma proposta concreta de implementação de uma proposta curricular numa
Instituição Federal de Educação Superior. Entretanto, pareceu-nos que na sua análise, as observações feitas também se
situam no campo mais genérico do que das especificidades da proposta em questão.
Obviamente essa observação em relação a esse grupo deve-se ao campo teórico adotado em nossa análise que inclui o
entendimento de que diferença e identidade são relacionais, interdependentes. De certa forma, a leitura desses trabalhos,
vem ao encontro da crítica feita por vários autores que argumentam que as reflexões da diferença pura são um bom exercício
de pensamento, um “jogo de idéias”, são abstrações, são especulações que ainda que a intenção seja a contrária, carecem
de uma articulação maior com as experiências concretas.
Entretanto, reconhecemos sua contribuição quanto a uma espécie de vigilância epistemológica a ser exercida para não
reduzir a diferença à identidade, mas, nos trabalhos analisados não foi possível perceber como essa epistemologia poderia
ser praticada em sala de aula. Não nos parece possível pensar a sala de aula, espaço social, como um espaço da diferença
pura. Aliás, não nos parece possível uma vida em sociedade nos postulados na diferença pura. Como seres sociais, somos
afetados e afetamos os outros. A possibilidade da convivência requer um mínimo de identificação. Parafraseando Hume34,
sugerimos que quem for contra mostre-nos a convivência de pessoas sem o mínimo de identificação. Se já é difícil pensar na
convivência de duas pessoas sem o mínimo de identificação, quiçá uma sala de aula, uma sociedade, um mundo.
34 Hume (2004) no seu Ensaio sobre o entendimento humano no qual argumenta que não há idéias inatas, desafia seus opositores a mostrarem pelo menos uma idéia que não seja oriunda da experiência, ou seja, que seja inata.
Currículo e Epistemologia | 92
A outra tendência é formada por um conjunto de trabalhos que postulam que a diferença só pode ser pensada se articulada
com a identidade. Eles argumentam que a identidade e a diferença são relacionais, interdependentes e impossíveis de serem
pensadas separadamente. Postulam que pensar tanto nas identidades e diferenças como construções históricas e culturais,
questionando as relações de poder que classificam e hierarquizam as diferenças, possibilita a subversão dos processos de
homogeneização.
Para esses autores o problema da epistemologia moderna foi sua obsessão pelas verdades únicas, notadamente as verdades
dos grupos dominantes em termos de classe, raça, religião e gênero. Em nome das supostas verdades únicas e universais, a
epistemologia moderna não só desconsidera os diferentes modos de compreensão, mas por meio das relações de poder os
situa e institui como saberes ilegítimos, como não saberes, como insignificantes e irrelevantes: “O outro perde seu poder de
significar, de negar, de iniciar seu desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional” (BHABHA,
2007, p. 59).
Para minar e subverter essa epistemologia, é preciso pensar a diferença, a pluralidade como legítima. É preciso perceber e
mostrar que os saberes ocidentais/universais são também saberes particulares, eles representam os interesses de grupos
específicos (como citamos anteriormente, baseando-nos em Louro, são os saberes de homens, brancos, heterossexuais, da
classe alta, cristãos), são saberes inventados e como tais podem ser re-significados, reinventados e desconstruídos.
Para essa desconstrução é preciso fazer um exercício de vigilância epistemológica por meio do qual os saberes da
epistemologia moderna sejam questionados e construam-se espaços/tempos para que os “[...] saberes „negados‟ se infiltrem
no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento” (BHABHA, 2007, p.
165). Portanto, diferentemente da epistemologia moderna/cartesiana/fisicalista, os autores que se pautam na epistemologia
da diferença/identidade, entendem que a “[...] diferença de culturas já não pode ser identificada como objeto de contemplação
epistemológica ou moral: as diferenças culturais não estão simplesmente lá para serem vistas ou apropriadas” (BHABHA,
2007, p. 166).
Nos 64 trabalhos apresentados no período analisado, há uma visível predominância35 da epistemologia da
diferença/identidade. Dada a impossibilidade de fazermos referência a todos esses trabalhos, nesse texto, selecionamos 10
trabalhos, utilizando como critério os que mais explicitam o uso epistemológico do conceito de diferença/identidade,
salientando seus diferentes usos.
Lopes (2005) recorre ao conceito de diferença e identidade para analisar as políticas curriculares, sugerindo o
desenvolvimento de políticas culturais que favoreçam “[...] a heterogeneidade e variedade de mensagens que podem ser lidas
por diferentes sujeitos de diferentes formas, sem a pretensão de congelar identidades” (LOPES, 2005, p. 8). Maués (2006)
usa o conceito para discutir a produção de identidade/diferenças, lembrando que são produzidas pelas relações de poder,
porém não podem ser explicadas pela lógica colonial. A autora destaca ainda que o estranho e o absurdo são conceitos
culturais, portanto, podem variar de cultura para cultura e no interior das próprias culturas: “Isso pode ser evidenciado, como
exemplo, nas diferentes configurações que o que é ser mulher/homem; jovem/velho; capaz/incapaz, assume ao longo da
história” (MAUÉS, 2006, p. 12). Passos (2006) recorre ao conceito de diferença para salientar os interesses implicados na
35 Não foi nossa intenção precisar esse número, mas ele aproxima-se de 50 trabalhos. A imprecisão se deve em parte ao fato de alguns trabalhos não terem a preocupação de explicitarem o entendimento de diferença e identidade. Embora citem autores que postulem a indissociabilidade entre diferença e identidade, não necessariamente significa que sigam eles nessa compreensão, daí a nossa imprecisão em relação a esses trabalhos. Há ainda alguns trabalhos, que se colocam contra a discussão da diferença na educação, alegando que ela é uma forma de evitar a discussão do “verdadeiro” problema, que é a questão da desigualdade/classe. E outros trabalhos que usam um referencial que tem outras preocupações que não as da diferença/identidade e dessa forma não assumem uma posição em relação ao uso epistemológico do conceito de diferença. Cabe destacar também que, como anti-cartesianos não tivemos a preocupação em classificarmos clara e distintamente esses trabalhos de tal modo que a soma dos trabalhos tivesse que dar exatamente 64.
Currículo e Epistemologia | 93
construção das identidades/diferenças, especificamente de uma comunidade que precisava afirmar sua identidade/diferença
em função do reconhecimento de seu território (quilombola). A autora lembra que se trata de um processo de hibridização,
negociação de tal modo que práticas de ancestrais são atualizadas e re-inventadas de modo a construírem as identidades
étnicas. Já Frangela (2007) usa o conceito de identidade e diferença para analisar a implementação de um currrículo de
formação de professores numa Universidade Federal, lembrando que a diferença de posicionamento e as disputas
envolvidas, embora muitas vezes vistas pelos próprios envolvidos no processo como algo que atrapalhou a proposta, mostra
o caráter democrático da mesma, mostra que ela teve “[...] as marcas da presença de diferentes culturas em negociação”
(FRANGELLA, 2007, p. 2). A mesma autora, num outro trabalho (FRANGELLA, 2008), mostra que apesar da criação de
campos hegemônicos, não é possível a criação de uma hegemonia que exclua a diferença, portanto a diferença é uma
dimensão constitutiva da realidade. Em 2009, Frangella apresentou um trabalho no qual desenvolve argumentos em favor do
uso da diferença/identidade enquanto processos negociados, híbridos, vendo o “currículo como local da cultura”. Para a
autora: “Discutir a identidade se dá no diálogo com alteridades, na busca pelo reconhecimento de uma outridade que não
signifique a busca do mesmo, mas a possibilidade da formação de um sujeito sensível que possa se colocar no lugar do
outro” (FRANGELLA, 2009, p. 11). Gabriel e Monteiro (2007) analisam o currículo de História, opondo-se tanto aos estudos
que eles denominam de relativistas, nos quais segundo eles “tudo vale” e são ficcionais e aos estudos positivistas, que só
consideram o universal/nacional. Ao invés dessas posturas, os autores sugerem uma outra via, que não seja nem só
afirmação das diferenças, nem só a afirmação dos universais. Cinelli e Garcia (2008) recorrem ao conceito de diferença e
identidade para mostrarem que nos currículos praticados no cotidiano há práticas que não lembram simplesmente a
mesmidade/identidade, mas lembram práticas da diferença, práticas inovadoras. Pereira (2009) recorre ao conceito de
diferença/identidade para analisar uma proposta curricular municipal, destacando que não pretende “[...] absolutizar a
diferença que é incompatível com o caráter multicultural das sociedades contemporâneas” (PEREIRA, 2009, p. 11). Por fim,
citamos Costa (2009) que recorre ao conceito de diferença/identidade para analisar a produção de textos legais,
especificamente da política de Currículo do PROEJA – Programa Nacional de Integração da Educação com o Ensino Médio
na Modalidade de Jovens e Adultos. A autora argumenta em favor de um enfoque multifacetado que inclui a discussão das
identidades e diferenças, que são sempre resultado de disputas, possibilitando ver as forças sociais e culturais implicadas na
construção das políticas curriculares. Segundo a autora: “A lógica da equivalência tende a simplificar o espaço político em
dois campos antagônicos e inconciliáveis, a lógica da diferença expande e torna cada vez mais complexo aquele espaço”
(COSTA, 2009, p. 10).
Esses trabalhos citados (e outros apresentados que não mencionamos nesse texto) onde se observa diferentes usos do
conceito de diferença/identidade sinalizam que o seu uso é mais produtivo para pensar práticas específicas do que o uso da
diferença pura.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos que as tendências observadas nas pesquisas curriculares no Brasil, ainda que diferentes, ao questionarem a
epistemologia moderna e se pautarem em outras epistemologias, contribuem para criarem currículos mais abertos, plurais,
polissêmicos, porque pautados em epistemologias também vistas como abertas, plurais, polissêmicas.
Parece que eles estão a nos indicar que, após tantos horrores e dores provocadas pela obsessão por verdades únicas,
aprendemos que habitar um mundo com verdades plurais, provisórias e epocais (HALL, 2003) torna o ar mais respirável,
torna a atmosfera de pensamentos mais aprazível, torna a vida mais intensa.
Currículo e Epistemologia | 94
Mas, a batalha nunca está ganha definitivamente. A história nos ensina, como vimos, que sempre poderá surgir uma
epistemologia arrogante, um Leviatã Epistemológico que queira impor a mesmice, a universalidade, que queira impor sua
verdade particular como a verdade de todos, vendo as demais como charlatãs, desviantes, falsas.
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estruturalista/pós-críticas do currículo. 31ª Reunião Anual da ANPED. Caxambu, 2008. p.01-16.
CINELLI, Maria Luiza Sussekind Veríssimo; GARCIA, Alexandra. Olhar sem ver: escolas invisíveis e currículos praticados. 31ª
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COSTA, Rita de Cássia de Almeida. Trajetórias de políticas de currículos: discursos circulantes no programa de integração da
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FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres; BARREIROS, Débora Raquel Alves. Buscando o sentido de política nos estudos
curriculares: perspectivas de análise em questão. 31ª Reunião Anual da ANPED. Caxambu, 2008. p.01-15.
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p.01-22.
Currículo e Epistemologia | 96
Leiva de Figueiredo Viana Leal
UNINCOR – Universidade Vale do Rio Verde de Três Corações
CONCEPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE O OBJETO DE ENSINO E SEUS
IMPACTOS NA IMPLANTAÇÃO DE UMA PROPOSTA CURRICULAR
Esta pesquisa é fruto de uma experiência de elaboração e implantação de uma proposta curricular de Língua Portuguesa, em uma parceria
entre Secretaria de Estado e Universidade, no Brasil. O problema de nossa investigação foi identificar em que medida a concepção
epistemológica que o docente tem de seu objeto de ensino impacta o processo de elaboração e implantação de uma proposta curricular.
Procurou-se levar em conta não apenas os processos de produção de um currículo, mas seus processos de recepção. Pretendeu-se, por
meio de uma pesquisa-ação, identificar, do ponto de vista epistemológico, essas relações e, em seguida, analisá-las no processo mais geral
de elaboração e de implantação da proposta curricular, levando-se em conta que os docentes são sujeitos históricos e não seria possível
desconsiderar o saber desse grupo, o que garantiu uma experiência de se gerar uma proposta curricular na prática social. O quadro teórico
que orienta este projeto conjuga contribuições da área de Currículo, da Filosofia e das Teorias Discursivas, dado que o objeto de ensino em
análise é a língua em seu funcionamento. Do ponto de vista metodológico operamos com uma pesquisa qualitativa, que tem como base a
pesquisa-ação, uma vez que pesquisadores e pesquisados vivenciaram juntos o mesmo processo. Para o desenvolvimento da pesquisa
foram realizados procedimentos diferentes, com propósito diferentes, tais como: focus grupo, interação em situação de entrevista,
depoimentos, aplicação de questionários, situações discursivas em cursos ministrados. Do universo de sujeitos docentes de LP, optou-se
por trabalhar, mais sistematicamente com 50 professores e, para coleta de dados mais gerais, com 300 professores. Esse estudo pode
afirmar, em primeiro lugar, que o professor não está formado para construir currículo, face a uma cultura em que grassa a ausência de uma
visão crítica e o esfacelamento curricular de sua própria formação. Epistemologicamente o docente ainda não sabe responder pelo seu
objeto de ensino ,pois falta-lhes a totalidade desse conhecimento. As recentes discussões que vêm se desenvolvendo no campo da Teoria
do Currículo convergem num ponto que é fundamental apontar a essa altura da exposição: toda proposta curricular é alicerçada em uma
seleção cultural de conteúdos e isso não se concretiza sem que a perspectiva epistemológica esteja suficientemente clara, apontam nossos
resultados. É preciso ainda redimensionar os cursos de licenciatura que, em geral, apresentam-se como programas ainda marcados pela
fragmentação do conhecimento, pela falta de articulação dos saberes e das ciências e pela ausência da totalidade do objeto de ensino.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O presente artigo situa uma experiência de produção, sistematização, reelaboração e recepção de uma proposta
curricular, tendo como sujeitos ativos desse processo professores de Língua Portuguesa dos anos finais do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio, Na verdade sujeitos de elaboração e sujeitos da execução. Essa experiência foi
considerada, pelos professores, como inovadora, uma vez que, segundo depoimentos de alguns, ainda não tinham tido a
oportunidade nem de pensar sobre o que é, de fato, uma proposta, quanto mais produtores e não meros recebedores, como
historicamente acontecia no Brasil. Nem tudo foi harmônico (ainda bem) e, em muitos momentos a desestabilização foi
provocada, uma vez que nos interessava era captar as concepções dos professores e acompanhar, na prática, as
repercussões dessas concepções. Como tudo começou?
Há cerca de cinco anos fomos convidadas pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais para elaborar,
subsidiar e acompanhar a implantação de uma nova Proposta Curricular para o Estado, no nosso caso, sobre Língua
Portuguesa, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. Embora reconhecendo que Currículo pode ser
conceituado como.. tudo o que acontece na escola, assumimos que uma Proposta de Currículo ou uma Matriz é um
componente estruturador do Currículo como um todo. Esse desafio foi enorme, em especial, quando se constata que o
Currículo e Epistemologia | 97
Estado de Minas Gerais tem mais de 5.000 escolas , em regiões distantes, com um contingente de cerca de 30.000.00 (trinta
mil) professores de Língua Portuguesa. Somente um trabalho, com uma seleção bem planejada, daria conta de auxiliar no
desenvolvimento da proposta.
Como o Estado tinha como base de sua política fortes investimentos em recursos humanos, sustentado por uma
concepção de formação profissional que superasse as ide ias de capacitação, reciclagem e treinamento restritas a cursos, foi
ganhando espaço um novo conceito – o de desenvolvimento profissional – capaz de explicitar, com muito mais propriedade, a
natureza dinâmica desse processo considerado por nós como formativo. Desenvolver-se profissionalmente significa adquirir
novos conhecimentos e estar mais bem preparado científica e tecnicamente para decidir sobre a melhor maneira de conduzir
o seu trabalho.
O PDP(Projeto de Desenvolvimento Profissional) tem como premissa básica o trabalho por projetos e o trabalho em
equipe, o que tem-se tornado uma prática cada vez mais disseminada em todos os setores da vida social. As grandes
corporações, organismos internacionais, entidades governamentais, instituições de pesquisa, dentre outros. Estão de tal
maneira contaminados pela cultura de projetos que muitos deles já vêm adotando o que tem sido chamado de “estrutura
projetizada” de organização e gerenciamento por projetos. A elaboração, a sistematização, implantação e reelaboração da
proposta curricular foi realizada exatamente no âmbito desses grupos de trabalho, mas selecionando, para participação nessa
tarefa, apenas professores das chamadas Escola- Referência. São escolas que, de algum modo, possuíam experiências de
sucesso. A dinâmica consistia na formação de grupos de até 16 componentes, que, uma vez constituído, elabora um Projeto,
em que explicita seus objetivos, em que investirá seu tempo de estudo e, em especial deixa claro! Em que é que desejam ser
melhores”. Esse grupo, uma vez aprovado, passa a ter como interlocutor um Orientador (profissional com comprovada
experiência na área) em duas modalidades de diálogo: a primeira em encontros presenciais que foram quatro a cada ano e, a
segunda, por meio de um blog eletrônico, em que notícias eram enviadas, questões eram demandadas e os trabalhos eram
enviados pelos professores e respondidos pelos orientadores. Não foi uma tarefa fácil, dado que nem todas as escolas
possuíam computadores conectados à internet e, ao mesmo tempo, era algo muito exigente para o orientador, que deveria ler
e responder a demanda de 16 grupos. Formados os grupos, tratamos agora de situar as perguntas que nortearam o trabalho
como pesquisa: que concepções têm os professores sobre seu objeto de ensino? Essas concepções impactam a
compreensão, o desenvolvimento e a reelaboração de uma Proposta Curricular?
DELINEANDO UM POUCO MAIS NOSSOS OBJETIVOS
Por questões culturais somos levados a saber responder com maior objetividade sobre o que é que ensino (caímos no
conteúdo), bem como a saber responder para que ensino(que recai sobre nossos propósitos ). Essa tendência escolar tem
nos levado a compreender motivo pelo qual o professor se preocupa muito mais com o como ensinar, do que propriamente a
pensar no que é que ele ensina. Raramente nos perguntamos qual é o nosso objeto e o que é isso que faço quando digo que
ensino x?
Isso posto, toda epistemologia é histórica, porque ela se altera com as descobertas científicas e com as demais mudanças
que ocorrem no mundo
Na verdade a questão a ser respondida desde sempre é:
Como o sujeito acessa o objeto? Como conhece o objeto? Ou, melhor dizendo, o que é o conhecimento de?
Currículo e Epistemologia | 98
Assim, vale pensar na caminhada histórica dos componentes curriculares, de modo a poder afirmar, com base na análise
dos paradigmas que lhes dão forma, qual é, afinal, a concepção que melhor atende hoje aos objetivos gerais educacionais e à
especificidade das áreas de conhecimento.
Também compreendemos que o objeto da Educação é a realidade. Mas quando se trata de uma escola que fragmenta o
ensino em disciplinas, é preciso responder: qual é a parte desse objeto –a realidade- que cabe a essa parcela de saber? É
preciso exatamente oferecer um complemento epistemológico a essa realidade. De como esse objeto está relacionado a
interpretações, aos modelos e às teorias nas quais são veiculados, transmitidos e incorporados na cultura escolar.
.É, indiscutivelmente, a epistemologia que dá sustento à pedagogia, enfim, norteia a ação docente. Não há neutralidade
quando se ensina. Nossas opções, nossas seleções, nossas escolhas definem os destinos dos que cruzam nossa vida. Saber
explicitá-las ou buscar explicitá-las é nosso compromisso ético, nosso dever.
Do ponto de vista metodológico, um dos instrumentos utilizados foi a aplicação de questionários com perguntas abertas, todas
voltadas para o foco do trabalho. Tomemos duas perguntas como exemplo: perguntas essas que geraram maiores polêmicas
e maiores discussões:
-Quando você ensina Português o que é que ensina? Qual o seu objeto de ensino?
-Que teorias a respeito do seu objeto sustentam sua prática?
Resumidamente podemos afirmar que dos 300 respondentes, apenas 5% fez referência a expressões que se aproximam, do
ponto de vista das teorias atuais, do objeto; fizeram referências a textos, a gêneros, a práticas de leitura e de escrita, porém,
não com base epistemológica, mas, essencialmente com base metodológica. O objeto de ensino e o modo de ensiná-lo se
conflitavam. Muitos diziam que não sabiam o que era objeto, mas o que é a disciplina, outros perguntavam se era para
responder sobre como é que desenvolvem suas aulas. Estas são apenas algumas exemplificações, mas que demonstram a
fragilidade da formação e da compreensão do fazer docente. Com base nessas respostas foi possível entender motivo pelo
qual o professor, em muitas situações, resistia à discussão sobre o modo como fomos construindo, pouco a pouco, a
proposta. Procurando integrar a disciplina já tão desintegrada, a estrutura da proposta partia da identificação dos EIXOS
TEMÁTICOS- o que foi uma das atividades mais difíceis, segundo os professores. Dos eixos, que foram três, elegemos os
temas que, por sua vez, originaram os tópicos e esses, detalhados em habilidades. Por que foi tão complexo para o professor
esse entendimento? Uma das razões é que o professor é sempre questionado e instigado a sobre o que esta ensinando e não
sobre o que é que ensina. Faltava ao professor o direito de pensar epistemologicamente, se saber responder sobre seu
objeto, sua história, sua constitutividade. E, além disso, compreender de que modo uma concepção epistemológica influencia
as decisões pedagógicas. Isso foi novidade teórica, mudança não só de paradigma, mas nos modos de pensar o próprio
pensamento.
REFERENCIAIS TEÓRICOS
Para melhor compreensão da complexidade do conhecimento, escolhemos Morin, Hernández, Santomé e Zabala. Para a
construção de um referencial para análise das práticas educativas, consideramos de fundamental importância as
contribuições de Zabala. Para um diálogo com as teorias curriculares e suas perspectivas de análise foi importante considerar
as contribuições de Antônio Flávio Barbosa Moreira e Tomaz Tadeu da Silva. Destacamos, ainda, de relevância, as
contribuições de Piaget, Vygotsky e Wallon para a compreensão dos pressupostos psicológicos que subjazem as práticas
educativas nesta perspectiva de complexidade do conhecimento uma vez que apontam os processos de construção de
conhecimento, embora sem discussão do objeto-dado que esse não era o objetivo desses pesquisadores.
Currículo e Epistemologia | 99
Segundo Hernández (1998), a condição social pós-moderna é caracterizada por inúmeros fatores: desregulação da economia;
opções políticas e econômicas homogeneizadoras que atendem aos interesses do grupo dominante; a transnacionalização e
transculturização dos valores e dos símbolos culturais, através dos recursos midiáticos em escala mundial; as mudanças
ocorridas no emprego que exige habilidades e conhecimentos, que demandam a capacidade de ser flexível, de se adaptar e
de colaborar; o volume vertiginoso das informações, que indica a necessidade de aprender a se relacionar com elas, para que
não reforcem a fragmentação já existente; a tecnologia vista como imprescindível para a evolução da humanidade e a
necessidade de aprender a aprender de forma contínua, tendo em vista as transformações céleres e profundas da
contemporaneidade.
Esse quadro que se configura como um processo permanente de mudanças, cria uma expectativa muito grande no que se
refere ao papel da escola, vista durante muito tempo como mera transmissora de conhecimentos acumulados cultural e
historicamente. Pois diante do grande fluxo de informações e da volatilidade do conhecimento, fica a grande dúvida: o que
ensinar aos alunos?
Sobre a essa nova demanda que se institui para a escola, Santomé (1998) apresenta a globalização e a interdisciplinaridade
do currículo como uma proposta de organização mais eficaz tendo em vista a realidade complexa destes novos tempos, em
oposição ao currículo organizado em disciplinas, pois segundo ele, essa fragmentação de saberes escolares tem as suas
bases no pensamento científico, mas tem estreita relação com a política de fragmentação dos processos de produção,
ocorrida no início do século XX.
Considerando as contribuições de Morin, Hernández, Santomé e Zabala é possível perceber que é necessária uma
mudança urgente na organização curricular das instituições escolares, pois a fragmentação do conhecimento se revela
insuficiente para o enfrentamento dos desafios impostos pela contemporaneidade. Para esses teóricos, a organização
curricular, que pode manter o diálogo permanente com a realidade, está voltado para uma abordagem integradora, que parte
da complexidade do conhecimento, por isso não separa mas une, estabelecendo nexos entre os saberes, gerando
significados para as aprendizagens ,tendo em vista a realidade dos educandos,. Essa intervenção na realidade, de forma
consciente pautada numa consciência crítica se configura, hoje, na contemporaneidade uma grande competência a ser
desenvolvida, pois a sociedade em mutação com problemas planetários a serem resolvidos, demanda a formação de um novo
perfil de homem, mais consciente, mais crítico, que percebe e compreende as relações presentes no mundo que o cerca e
que busca intervir nele de forma ética e consciente.Com base nessas abordagens é que pudemos , a cada momento do
desenvolvimento da pesquisa, entender a distância entre a teoria e a prática, cuja dificuldade se origina na ausência da
compreensão do objeto de ensino.
TRAÇANDO CAMINHOS
Deixamos claro que o quadro teórico que orienta esta investigação conjuga contribuições da área de Currículo, da Filosofia e
das Teorias Discursivas, dado que o objeto de ensino em análise é a língua em seu funcionamento. Do ponto de vista
metodológico operamos com uma pesquisa qualitativa, que tem como base a pesquisa-ação, uma vez que pesquisadores e
pesquisados vivenciaram juntos o mesmo processo. Para o desenvolvimento da pesquisa foram realizados procedimentos
diferentes, com propósito diferentes, tais como: focus grupo, interação em situação de entrevista, depoimentos, aplicação de
questionários, situações discursivas em cursos ministrados. Do universo de sujeitos docentes de LP, optou-se por trabalhar,
mais sistematicamente com 50 professores e, para coleta de dados mais gerais, com 300 professores.
Currículo e Epistemologia | 100
CONFRONTANDO DIÁLOGOS
.Do ponto de vista histórico, a fase de concepção de língua como expressão do pensamento, era comum considerar que nós
nos expressamos por palavras e frases. Avanços nas teorias de texto nos levam a afirmar que nos comunicamos é por texto,
sendo considerado texto toda unidade significativa global. Mais recentemente, com os avanços das ciências do discurso e das
mudanças na cultura do mundo letrado, podemos entender que somos seres que desenvolvemos práticas sociais linguajeiras
e, nessas práticas, nossa comunicação se faz por gêneros, hoje entendido como os diferentes formatos que os textos
ganham nas práticas e nos processos de circulação social.Assim, o ser humano, no seu cotidiano, não se comunica por
palavras, nem por frases, nem por textos, mas por gêneros-elementos concretos que ganham multiplicidade e dinamicidade
nas práticas reais de interação humana. O que isso significa? Significa considerar que um gênero não é produzido num vazio:
parte de interlocutor para outro, possui uma intencionalidade e que, para tal, ganha formato específico, configuração
específica e que as palavras não são aleatórias: são parte da produção de sentido. Isso exige um novo modo de olhar para
os textos com os quais lidamos: necessitam ser contextualizados, entendidos no seu processo de produção (que, quem, para
quem, como ) e de recepção (para que? Como essa intenção se manifesta?).
Quando levamos o aluno a operar com essa noção (a de gênero) garantimos um modo de atuação sócio-discursiva em uma
dada cultura, uma vez que, na sociedade letrada, os sujeitos buscam interagir, nas mais diferentes formas e modalidades,
para produzir efeitos sobre o outro. Nada é vazio na linguagem. Nela, tudo tem sentido. As respostas dos professores,
infelizmente, nos apontava novas fragilidades: falta de conhecimento da concepção de gênero textual, misturando conceitos
de tipologia e domínio textual. Sobretudo a falta de entendimento de que as manifestações orais são gêneros textuais. Os
debates a esse respeito foram acirrados e muitos professores, embora dizendo compreender que o objeto de ensino são os
gêneros textuais, relutavam em abandonar uma perspectiva tradicional que parte do ensino(?) de uma gramática normativa.
Verificamos, então, o quanto era necessário incorporar tudo isso nas nossas discussões, para fazer valer a dinamicidade
dos gêneros e suas modalidades (oral e escrito). Gênero textual não se refere exclusivamente a texto escrito, mas a outras
possibilidades de interação, o que ampliam enormemente as possibilidades metodológicas: tomar os gêneros em suas
diferentes manifestações como discursos.
Do ponto de vista pedagógico vale ainda ressaltar que incorporar os gêneros textuais nas práticas de sala de aula requer um
planejamento sistematizado que, a depender dos alunos, precisa partir dos gêneros primários a caminho dos secundários,
para outros, o importante é mesclar e desenvolver atividades alternando esses gêneros e,para outros, pode significar uma
melhor sistematização dos gêneros secundários. O importante é que cada professor, em sua disciplina, consiga levantar o
grau de letramento de seus alunos em relação aos usos e conhecimento da cultura dos gêneros.Podemos, então, destacar
que , por parte dos professores, devem existir esforços para selecionar adequadamente o que privilegiar em determinado
momento. Feita a seleção, é preciso buscar estratégias de leitura e de produção de gêneros, com base nas habilidades que
deseja desenvolver. Dessa seleção e desse planejamento podem surgir projetos ou eventos pedagógicos interdisciplinares.
Na verdade, será sempre muito produtivo que os alunos mesmos consigam encontrar, em diferentes fontes, gêneros textuais
diferentes que abordem uma mesma temática, no esforço de entender por que certo gênero e não outro, por que certas
expressões e não outras..... Entender, assim, que o ser humano é igualmente múltiplo e dinâmico, com capacidade de
interações novas, em que ,abordando um mesmo tema, ora o faz com mesmas intenções, ora com intenções diferentes.
Chamamos a atenção, nesse caso, para uma expressão muito utilizada nas respostas: precisamos saber trabalhar os
gêneros. O que isso significa? Exatamente os esforços de seleção e de escolhas de estratégias diferenciadas no
desenvolvimento das habilidades leitoras e produtoras de gêneros textuais nas suas diversas manifestações.
Currículo e Epistemologia | 101
Sempre fazemos sucesso na formação de professores quando discutimos as características formais e de estilo de um
texto ou gênero, a partir de nossos instrumentos, é o que nos afirma ROJO. Por outro lado, segundo ela, nossos alunos não
precisam ser gramáticos de texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem sofisticada. Ao contrário, no Brasil, com seus
acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem acesso letrado a textos (de opinião, literários,
científicos, jornalísticos, informativos etc.) e de poderem fazer uma leitura crítica e cidadã desses textos.( Roxane Rojo-
Gêneros do discurso e gêneros textuais: Questões teóricas e aplicadas LAEL/PUC-SP)
PARTE III- OBJETIVO DE ENSINO
Isto posto, é possível delinear o OBJETIVO DE ENSINO-APRENDIZAGEM de determinado objeto .Para começar, é preciso
operar uma distinção entre OBJETO DE ENSINO E OBJETIVO. O objeto é a essência, é o que nos fundamenta; o objetivo é
o para que ensinamos o que ensinamos.
Responder a esse objetivo também precisa ser bem refletido, pois repetimos jargões que às vezes em nada nos diferencia,
em nada deixa a nossa marca. Temos observado, por exemplo, que, em algumas propostas, o que aparece como função da
escola é a formação de sujeitos para transformarem a realidade, serem felizes e fazerem os outros felizes, dentre tantos
outras....e, paralelamente, o que aparece como Objetivo Geral de um determinado componente curricular é, por exemplo,
“ Desenvolver conhecimentos e saberes a respeito de........de modo a saber utilizá-lo.....”... Assim nos perguntamos: Se a
função é a potencialização, a formação do sujeito, o que deve ser priorizado como objetivo geral em cada disciplina?
Se acreditamos que nosso componente curricular é peça importante para a formação dos sujeitos, isso precisa ser revelado
no objetivo geral. O modo como esse objetivo se concretiza é expresso nos Objetivos Específicos. Assim o objetivo geral deve
ser expresso em um tópico único, sem desdobramentos. Trata-se, novamente, de mais um esforço para se pensar a
totalidade de nosso fazer.
.
Para tal é necessária a permanência na reflexão, no estudo, no debate. Hoje podemos nos ancorar em muitos estudos,
pesquisas e investigações que nos dão suporte para uma visão humana e científica de nossa prática pedagógica. Isso não
é uma tarefa fácil: nossa rotina nos leva à repetição dos mesmos gestos pedagógicos, à repetição das mesmas crenças e das
mesmas atitudes (isso sem falar das mesmas atividades, das mesmas orientações, dos mesmos livros). E,
consequentemente, a fixar paradigmas. O mundo não vai parar para que possamos reaprender. Nossa condição é a de
eterno aprendiz
DAS RESPOSTAS DOS GRUPOS
Houve grupos que respondiam em pequenos trechos às questões apresentadas. , outros que produziram uma lauda para
cada questão e outros que produziram em uma lauda todas as questões. Essa variação é compreensível, quando as
respostas, mesmo curtas, apontam a compreensão do que está sendo discutido e, pouco aceitável, quando a resposta é
apenas a transcrição do texto original, sem esforço de interlocução e de reflexão. Tudo isso nos leva a refletir sobre os graus
de próprios letramentos dos professores, ou seja, que capacidades temos desenvolvidas em nós, em relação às práticas de
ler e de escrever? Essa é uma reflexão a que todos estamos convidados a fazer o tempo inteiro.
Queremos também chamar atenção para um equívoco perceptível em algumas respostas, quando consideram que
alfabetizar é decodificar e letramento é compreensão do que lê. Essa é uma visão muito reducionista desses dois conceitos,
pois, segundo o próprio texto, sujeito letrado é aquele que vive a condição de quem aprendeu a ler e a escrever, vivencia
Currículo e Epistemologia | 102
práticas , tem um comportamento de leitor e de produtor de texto. Se sei ler, compreendendo e não leio, não me esforço por
encontrar objetos e razões para ler e escrever, não sou letrado, pois , embora capaz, não estou inserido no mundo da cultura
escrita. Trata-se, enfim, de uma nova relação com a cultura e com os objetos dela decorrentes.
Embora correndo o risco de simplificações, vamos tecer aqui algumas conclusões possíveis , com base na leitura das
respostas enviadas:
a primeira delas é que somos seres historicamente determinados. Nada escapa ao momento social, político,cultural e
científico de cada tempo. Nesse sentido é quase impossível atribuir sentido ao presente, sem lançarmos um olhar para o
passado. Mas, não é só isso, é também pistas que nos são oferecidas para entendermos o que nos acontece hoje,
articulando os acontecimentos em sua totalidade histórica. Do ponto de vista político é importante lembrar que, quando os que
detêm o poder, querem culpar o próprio povo de sua ignorância, desloca o foco da ciência para o próprio indivíduo. Que
explicações são dadas ao fracasso em relação à leitura e à escrita, no Brasil, hoje? Pensemos nisto e vamos concluir o
quanto isso tudo está muito próximo de nós.Precisamos pensar com os dados de hoje o que a história dirá amanhã.: esse é
um caminho possível para superação das questões que historicamente ainda não têm respostas.Isto porque as
determinações podem ser alteradas, dependendo das ações e das relações dos seres humanos com sua realidade imediata.
um segundo aspecto a destacar advém da necessidade de se repensar o mundo do sujeito alfabetizado e letrado nesse
tempo de crescimento incontrolável das tecnologias, do aceleramento das informações e da certeza(talvez como nunca se viu
na história) de que o conhecimento é sempre provisório. Isso é que significa uma nova relacão com a Cultura letrada:
chances culturais em uma sociedade economicamente desigual. Frente às novas exigências de práticas documentárias
criadas pela sociedade.hoje, sabemos que nossos alunos precisam dominar conceitos e princípios relacionados à
apropriação dessa cultura .Gestos simples, porém fundamentais, tais como: -tomar notas,resumir, localizar idéias-
chave,referenciar obras,esquematizar textos orais e escritos,elaborar frase-núcleo,identificar temas e assuntos, dentre outros.
EM BUSCA DE UMA COMPREENSÃO
Considerando o contexto atual da Educação em Minas Gerais, é de fundamental importância discutir essas relações no
âmbito da (re) organização do currículo escola, isto é, na totalidade das condições de produção de conhecimento.
Quais cuidados tomar e quais reflexões estimular para que uma proposta não passe de um ensino disfarçado de discurso
social, legitimamente preocupado com a inclusão dos indivíduos na sociedade?Quem são as crianças que lêem mal? Seriam
apenas as que vivem em condição de defasagem em relação à cultura letrada?
Não há uma resposta pronta e nem uma solução universal para os problemas de aprendizagem. Tudo depende de nossa
opção ética e política, do que desejamos para aqueles que nos aguardam nas salas de aula . Mudar é urgente, por questões
de justiça e de luta, sob pena de estarmos fazendo da escola espaços de novos analfabetos: os que estando nela, dela saem
sem saber ler, sem saber escrever, sem saber usar a leitura e a escrita para ler e escrever histórias de vida em que a
dignidade seja a palavra de ordem.
SOBRE AS CONDIÇÕES DE ENSINO.
Incluímos em nossas perguntas o que os professores entendiam por condições de ensino.Antes de apresentarmos nossos
comentários é preciso estabelecer o que entendemos por essas. Podemos entender por condições de ensino todos os
meios de que o professor se utiliza para organizar a sua prática pedagógica. Essas condições englobam desde os
procedimentos didáticos e materiais diversos aos recursos curriculares como aulas expositivas, trabalhos em grupo, livros
Currículo e Epistemologia | 103
didáticos, equipamentos de laboratório, quadro negro, retroprojetor, vídeo e outras tecnologias, aqui entendidos como
procedimentos e recursos característicos da educação formal. Os recursos e materiais da educação não-formal apresentam
um grande potencial para dar suporte aos trabalhos que desenvolvemos junto aos nossos alunos. Esses recursos incluem
todos os meios de informação e de cultura (disponíveis na sociedade, tais como revistas, jornais, vídeos e filmes que
compreendem os equipamentos culturais: bibliotecas públicas ou privadas, museus, cinemas, teatros, demais espaços
culturais, parques ecológicos e temáticos, zoológicos e Internet. (1)
A utilização que fazemos desses recursos irá depender tanto do que entendemos por condições de ensino, quanto do nosso
esforço em potencializar os recursos que temos à nossa disposição e isso inclui, certamente, os equipamentos culturais.
Dependerá também da forma como nos relacionamos com a comunidade, ou ainda, da forma como criamos condições de a
comunidade participar da escola e vice-versa. Cabe perguntar: será que estamos aproveitando ao máximo todos os recursos
materiais que temos a nossa disposição, tanto na educação formal como na não-formal? Será que desenvolvemos em nossas
escolas projetos que visem a um bom aproveitamento do equipamento cultural existente na comunidade em que a escola se
insere ou em outros espaços sociais?
Nas respostas enviadas a esta tarefa muitos professores têm apontado a necessidade de que a escola se equipe,
principalmente, com as consideradas novas tecnologias (laboratórios de informática, equipamento multimídia, televisores,
DVD, estação de rádio etc). É inegável que essas tecnologias se apresentam atualmente como excelentes recursos materiais
para a organização da nossa prática pedagógica. Trata-se, pois, de uma necessidade. Contudo, é preciso indagar::será que
esses recursos tecnológicos por si só garantem a melhoria da qualidade das nossas aulas e da formação dos nossos alunos?
Sabemos que a resposta é não, pois esses recursos não têm força em si mesmos.
Acreditamos que a utilização desses recursos tecnológicos modernos exige um novo pensar pedagógico, uma vez que o seu
uso na educação tem relação direta com o entendimento que o professor tem sobre como ensinar e, em especial, sobre quais
estratégias utilizar, considerando o sujeito que pretende formar e os objetivos que pretende alcançar.
Muitos de nossos alunos, mesmo aqueles que têm pouco ou nenhum acesso às novas tecnologias, estão sempre abertos às
novidades, ávidos por conhecimentos, dispostos a enfrentar o novo, a buscar e processar informações. Será que esse
entusiasmo dos alunos se estende a todos os professores?
Inserir novas tecnologias nos processos educacionais requer um olhar crítico para essa evolução. O que entendemos por
“educar” quando incorporamos em nossas práticas o uso dessas tecnologias? Sabemos que elas podem auxiliar nas
condições de ensino e aprendizagem mais criativa, colaborativa, autônoma e interativa, além de facilitar os trabalhos
integrados. Por outro lado, implicam também que o professor tenha condições de promover e avaliar as formas de
aprendizagem decorrentes dos usos pedagógicos que fazem das novas tecnologias , sem perder de vista seu objeto de
ensino.. Eis um desafio para a formação continuada!
Estudiosos contemporâneos, afirmam, que as transformações pelas quais a sociedade está passando, estão criando uma
nova cultura e modificando as formas de produção e apropriação dos saberes. Por isto competências e habilidades ganharam
destaque nos debates atuais, pois fazem referências simultâneas ao cotidiano social e educacional.
Segundo o professor Vasco Moretto, um dos sentidos de competência aflora na utilização da palavra.Em lugar de continuar a
decorar conteúdos, o aluno passará a exercitar habilidades, e através delas, a aquisição de grandes competências ou seja
desenvolvendo habilidades por meio dos conteúdos. Caberia então aos professores mediar a construção do processo de
conceituação a ser apropriado pelos alunos, buscando a promoção da aprendizagem e desenvolvendo condições para que
eles participem da nova sociedade do conhecimento.
Currículo e Epistemologia | 104
4- A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO CONTINUADA
O “ser professor” precisa encontrar modos e condições de melhorar suas competências e domínios nos planos teórico e
prático. Para tal, é preciso que programas e projetos de formação continuada sejam planejados e executados, como garantia
do direito que o professor tem de continuar aprendendo e de refletir sobre sua prática enquanto ensina.Foi o que buscamos
fazer; os professores indicavam suas propostas, elas eram debatidas do ponto de vista de sua pertinência teórica e
relevância metodológica e, aos poucos, foi-se delineando uma primeira versão da proposta.Essa versão foi encaminhada a
todas as escolas-referência e devolvidas com várias sugestões. A partir daí é que a segunda versão ganhou fôlego, vindo a
ser publicada em 2007.
Nas discussões realizadas a respeito da proposta de LP, os próprios professores apontaram a necessidade de ser oferecida
uma formação complementar relativa aos princípios norteadores da disciplina, bem como a alguns conteúdos nela
contemplados. Esse fato também ocorreu em relação a outras disciplinas, conforme retorno dos orientadores. Dessa forma,
confirma-se a importância, seja qual for a profissão, de uma busca constante de atualização, para um melhor desempenho
profissional e crescimento pessoal. Ao se planejar o projeto do plano de ação para a implementação dos guias curriculares de
cada disciplina, torna-se imprescindível a inclusão de ações que definam tarefas relativas à formação continuada dos
professores.
Especificamente em relação à proposta de Língua Portuguesa, projetar e executar seminários, cursos, oficinas que prevêem
uma continuidade de discussão, tendo em vista os aspectos teóricos e práticos que envolvam o texto e suas relações com o
contexto ( gêneros textuais, leitura, escrita etc. apontados na proposta). Uma reflexão específica em torno do tema
letramento, a nosso ver, deve ser o pano de fundo de todas as frentes identificadas como necessárias à complementação da
formação dos professores de Língua Portuguesa.
CONCLUSÃO
Do ponto de vista conceitual, nossa opinião é a de que precisamos encontrar estratégias que favoreçam o avanço no
campo teórico a respeito de Currículo e, em especial, de Globalização. Disponibilizar textos, artigos e experiências voltadas
para o tema. Pensamos que uma orientação que aponte as várias possibilidades de organização curricular para a integração,
advindas de várias experiências, possa favorecer uma melhor clareza a respeito do assunto. Mesmo compreendendo a
fragilidade do conhecimento dos professores e, com isso, compreendendo também as dificuldades de implementação dessa
nova proposta, aprendemos muito, em especial que, se o professor não tem clareza de seu objeto, também não tem clareza
de seu fazer docente , o que pode, consequentemente, levar muitos professores a uma desolação sobre a sua existência e
seu sentido profissional.
Mesmo registrando o impasse com o entendimento em relação à proposta, o final foi muito proveitoso, no que diz respeito
ao entendimento do motivo que nos reunia, dos propósitos a serem alcançados e dos esforços a serem empreendimentos
para sair de um lugar já instalado, previsível, para um outro: questionador, aberto, sensível à provisoriedade e à complexidade
da pós-modernidade - articulado à razão que sustenta e justifica enfim, a existência de todos nós. Valeu a pena.
REFERÊNCIAS:
HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
Currículo e Epistemologia | 105
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
SACRISTÁN, J. Gimeno. O Currículo. Uma reflexão sobre a prática. Porto alegre, ArtMed, 1998.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade. O currículo integrado. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998.
ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma proposta para o currículo escolar. Porto alegre:
ARTMED, 2002.
Currículo e Epistemologia | 106
Marciana Roberta de Oliveira & Carmen Campoy Scriptori
Centro Universitário Moura Lacerda
CONHECIMENTO SOCIAL E CIDADANIA: AS FESTIVIDADES DO CURRÍCULO
ESCOLAR EM QUESTÃO
No sistema educacional, constam diversas datas destinadas às comemorações festivas e cívicas e que os educadores têm a
obrigatoriedade de organizar. Sendo assim, estas festividades deveriam colaborar para a formação do sujeito, no sentido de esclarecer
direito e deveres da pessoa humana, respeito à liberdade de expressão admitindo as diferenças sociais, culturais, étnicas e religiosas,
enfim, para a inclusão do individuo na com participação atuante nas relações sociais. Constatando o fato que as festividades se realizam
em escolas, surgiu nosso questionamento: As crianças sabem por que as festas são realizadas, elas têm o mesmo entendimento que o
professor ou este entendimento é diferenciado? Em nossa pesquisa procuramos investigar as concepções de docentes e discentes sobre
estas festividades, e como estas festividades poderiam influenciar no conhecimento social e formação da cidadania nos alunos. Utilizamos
como referencial teórico autores que discutem a questão da construção do sujeito e da função social da escola como Jean Piaget, em
diversas obras de sua teoria, Juan Delval, autor que discorre sobre educação, escola, conhecimento social. E também estudiosos que
escreveram sobre conceito de cidadania e conhecimento social, como Philippe Perrenoud (2005), Severino (1992), Minayo (1994), entre
outros.
A metodologia adotada é a da pesquisa qualitativa, a investigação esta sendo realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas, com 30
(trinta) alunos sendo 6 (seis) de cada ano escolar (1º, 2º, 3º, 4º, 5º anos) e 10 (dez) professores sendo 02 de cada respectivo ano escolar,
de uma escola do Ensino Fundamental de um município do interior estado de São Paulo. O procedimento metodológico para a entrevista se
dará com base nos princípios no Método Clínico-Crítico Piagetiano. A pesquisa bibliográfica se fará presente em todo o processo com o
levantamento dos subsídios teóricos necessários à compreensão das concepções infantis e dos adultos, na perspectiva adotada. A
relevância de nosso estudo está em fazer emergir as concepções dos alunos sobre tais festividades, a fim de realizá-las com a participação
deles, pois, partimos do pressuposto que qualquer atividade que se proponha em âmbito escolar, tem de estar contextualizada de acordo
com os interesses e necessidades das crianças. A pesquisa encontra-se em fase de coleta e análise de dados.
Palavras-chave: conhecimento social; cidadania: concepções infantis; comemorações escolares; ensino.
INTRODUÇÃO
Atualmente a educação escolar tem apresentado propostas de contextualizar toda atividade desenvolvida na escola, de
maneira que estas tenham o objetivo de contribuir para formação do aluno na sua constituição como pessoa e como cidadão.
Com isto surgiu o desejo de saber se realmente as crianças, a partir das atividades festivas, adquirem conhecimentos,
principalmente, os conhecimentos sociais.
Podemos constatar, em vários calendários escolares, a obrigatoriedade de comemorações festivas e cívicas. Sendo assim,
estas festividades deveriam colaborar para a formação do sujeito, no sentido de esclarecer os direito e deveres da pessoa
humana, o respeito à liberdade de expressão admitindo as diferenças sociais, culturais, étnicas e religiosas, enfim, para a
inclusão do indivíduo na sociedade, com participação atuante nas relações sociais.
Segundo Saltini (2008, p.36), que cita Piaget “O pensamento, sendo uma transformação de significações, a compreensão
nada mais é do que o processo de fabricar significações”. Assim, compreender nada mais é que dar sentido ao novo
conhecimento. Como as festividades rotineiras do currículo escolar constituem-se em conhecimentos a serem adquiridos
Currículo e Epistemologia | 107
pelos alunos, estes deverão dar-lhes um sentido e não apenas executá-las devido a uma obrigatoriedade, caricaturando ou
imitando o fato em questão.
Apoiados em Piaget (1993), sabemos que a imitação é um dos processos constituintes de construção das representações
mentais, reunindo significante e significado, contudo, por si só são insuficientes para a construção destas significações de
modo que façam um sentido, além do escolar. Para Delval (1998), pesquisador espanhol que estuda largamente e por longos
anos como se constroem os conhecimentos sobre a sociedade, à medida que se desenvolvem, as crianças vão se
questionando sobre vários aspectos de sua existência e de como vivem. Com isto vão construindo suas representações de
mundo. As questões feitas pelas crianças referem-se a vários aspectos do mundo natural, psicológico e social, contudo, nesta
nossa pesquisa colocamos o foco no mundo social ou, melhor dizendo, no conhecimento social.
Nesse sentido, desenvolvemos um estudo que nos permitisse obter dados sobre a contribuição das festividades e datas
comemorativas, parte integrante dos currículos escolares, para a formação desse tipo de conhecimento.
Acreditamos que o estudo, pesquisa, registro e comunicação de um trabalho como o nosso podem ampliar a troca de
opiniões e experiências, contribuindo com a qualidade do esforço empreendido, além de viabilizar aos envolvidos no processo
(educadores, educandos, familiares e comunidade) condições para apresentar o fruto de sua reflexão formativa e criativa.
COMO NOS TORNAMOS CIDADÃOS?
Quando nos propomos a pesquisar o conhecimento social, constatamos que este sempre vem relacionado à cidadania. A
cidadania é um termo muito discutido na sociedade e no ambiente escolar, inclusive a sociedade exige da escola a formação
de cidadãos, mas pouco se reflete sobre de quem é realmente esta obrigação.
Piaget (2007, p.57) questiona se “[...] é necessariamente função da educação o desenvolvimento da personalidade, ou,
(se) de preferência e mesmo essencialmente, cabe-lhe moldar os indivíduos de acordo com um modelo condizente com as
gerações anteriores? [...]”. Quando Piaget faz este questionamento deixa subentendido que por trás de costumes, rituais a
que são submetidos crianças e adolescentes de uma sociedade, a sociedade não está pleiteando o desenvolvimento pleno de
sua personalidade, mas sim uma egressão no mundo adulto, levando-o à submissão e ao conformismo.
Para entendermos este processo de formação cidadã, é necessário recorrer às concepções históricas. Segundo Silva (2006),
o cidadão era aquele que podia exercer seu direito em colaborar na administração da justiça, bem como exercer cargos
públicos, assim a cidadania era outorgada a quem realmente tinha esta participação, associando assim o termo cidadão a
quem tinha uma participação ativa na vida pública.
Para Dimenstein (1993), cidadania é o direito de ter uma idéia e poder expressá-la. É poder ter direitos civis sem
constrangimento, como reivindicar direitos médicos, processar um comerciante que fornece uma comida estragada, poder
usufruir de tudo que nos garante a constituição, ter atendimento de saúde, escola e o mínimo de saneamento básico para
uma vida digna.
A noção de cidadania foi evoluindo até os tempos atuais sempre com muitos direitos adquiridos nas Leis, mas na prática
ainda existem milhares de cidadãos que não exercem os seus direitos, muitas vezes por desconhecimento. Para o estado, às
vezes, o discurso de formar cidadãos parece uma falácia. Mas se existe uma necessidade de formar cidadãos de fato, a
escola pode colaborar com conceitos, atitudes e dar lições sobre o conhecimento social.
CIDADANIA E A ESCOLA
Currículo e Epistemologia | 108
A escola atual não tem aproveitado o enorme potencial que a criança tem para aprender, pois a escola desperdiça ou
direciona para um sentido pouco adequado. A criança é muito ativa e está sempre em busca de novas experiências; é como
uma poderosa máquina de aprender que é quase insaciável (DELVAL, 1994). Um aspecto muito importante do conhecimento
sobre cidadania a ser transmitido é sobre como é governada a sociedade, como se tomam as decisões sociais, quem é que
as toma, como funcionam as instituições e os serviços, por exemplo, como funciona a saúde, a escola, etc. Claro que esses
aspectos estão mais voltados para as instituições do que para a política, porém essa é uma forma de se chegar a conceitos
mais abstratos (DELVAL, 2007).
As atividades escolares podem propiciar toda essa descoberta e, o que é melhor, a criança pode fazer isso por meio de
suas próprias experiências. A escola é um local que serve de ponto de partida para a elaboração do aprendizado de como
funcionam e como se formam os partidos políticos, leis, divisões de poderes etc., (DELVAL, 2007).
Outro aspecto muito importante sobre os conhecimentos que a escola deve transmitir para seus alunos é o conhecimento
sobre a ordem econômica. Como são administrados e repartidos os recursos que sempre são poucos e escassos? No
entanto, a criança precisa saber o porquê da escassez, pois esta está ligada às atividades humanas. A criança tem a
necessidade de saber como funciona o processo de distribuição de mercadorias, que ocorrem nas lojas, como se dá o
processo de produção, como se determinam os preços, etc. (DELVAL, 2007).
A escola, como instituição social, deve ser a primeira a ser estudada e entendida pelas crianças, para terem uma idéia
clara de para que serve a escola. Deve conhecer e saber analisar o seu funcionamento e o seu papel (da criança) dentro dela.
Analisar outras tantas instituições diferentes, como a família, as associações de caráter político, os aspectos sobre normas
jurídicas, e as relações que essas têm com a moral (DELVAL, 2007) também é outro aspecto do conhecimento social que
favorece o exercício da cidadania.
A escola de hoje precisa inserir no seu contexto as relações do cotidiano social, político e cultural na educação da criança,
para formar um cidadão que tenha noção de que sua participação se faz necessária em todas as instâncias da vida. Mas, o
que vemos atualmente é que a escola não consegue passar para o aluno as questões relativas à cidadania.
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO SOCIAL NA CRIANÇA
Segundo Moscovici (1995, apud Guareschi e Jovchelovitch, 1995), o conceito sobre o que é a representação social é de
ordem histórica. O que se conceitua sobre representação social ou coletiva nasceu na sociologia e na antropologia. Pode-se
dizer que as representações sociais são as convenções elaboradas pelos saberes populares e o senso comum. O autor ainda
diz que as representações sociais são racionais, não porque elas são sociais, mas, porque são coletivas, e que somente
dessa maneira os homens se tornam racionais, pois um sujeito apenas, isto é, um indivíduo isolado não teria a possibilidade
de saber se está sendo racional.
Como as representações sociais dependem, de certa maneira, do conhecimento social, portanto, Delval (1997) considera
que o conhecimento sobre a sociedade seja tratado como um objeto do conhecimento humano, e que o pesquisador deve se
ocupar da gênese do conhecimento sobre aspectos sociais.
Enesco, Delval e Linaza (1989) dizem que um bebê desenvolve alguns conhecimentos sobre o meio físico e social no qual
se insere, o que lhe traz a possibilidade de interagir com as pessoas e objetos. Porém, segundo a teoria do desenvolvimento
de Piaget, os esquemas (motores ou mentais) referentes às pessoas e aos objetos não são construídos diferentes na forma
ou processo de aquisição.
Currículo e Epistemologia | 109
O que se pode perceber é que esses esquemas de conhecimentos têm conteúdos diferentes, nos quais se justificam
algumas das particularidades do conhecimento social perante o conhecimento não social (o físico ou o lógico-matemático),
sem precisar acessar diferentes formas de conhecimento. (ENESCO, DELVAL e LINAZA, 1989).
Piaget (1973) descreve três aspectos distintos dentro do aspecto cognitivo do desenvolvimento do ser humano: o
conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e conhecimento social, que Mantovani de Assis (1981) descreve
como apontamos a seguir.
O conhecimento físico corresponde às características próprias e retiradas dos objetos, como por exemplos; o tamanho, o
peso, cor, formato, temperatura, gosto, etc. Esse tipo de conhecimento é adquirido por abstração empírica, isto é através da
experiência, que permite a leitura das propriedades dos objetos.
[...] o conhecimento físico não é jamais uma “cópia” mas, necessariamente a assimilação a esquemas de ação de
complexidade crescente. Ora, esta assimilação é necessariamente também de natureza lógico-matemática,
primeiramente porque as ações necessárias à detecção das propriedades dos objetos e dos fenômenos não são ações
isoladas, por mais diferenciadas que sejam pela acomodação à diversidade e aos detalhes das situações. São ações
coordenadas entre si, e a coordenação geral das ações constitui precisamente a fonte das operações lógico-matemáticas
(PIAGET, 1973, p. 380).
Conhecimento lógico-matemático é o conhecimento que advém das relações que o sujeito estabelece entre as
propriedades dos objetos, como por exemplo, mais pesado que, tão quente quanto, quantidades, semelhanças, diferenças.
Essa é uma atividade que ocorre graças à abstração reflexiva, que se baseia na coordenação de suas ações sobre os
objetos.
Conhecimento Social é o conhecimento advindo da sociedade e da cultura. Origina-se e é herdado na sociedade em que
vivemos e necessita de interação com as pessoas e não apenas da ação do sujeito sobre o ambiente.
Às convenções estabelecidas socialmente damos o nome de conhecimento social. Kamii e Livingston (1995) usam, como
exemplo, o dia 25 de dezembro, e não outro dia qualquer, convencionou-se ser o dia do Natal; isto não é um fato, é uma
convenção. Regras sociais como “usar a xícara para se tomar café”, usar copo para se tomar água”, “xícaras são colocadas
sobre pires”, etc., são atribuições dadas aos objetos, segundo convenções de um determinado meio social.
Podemos dizer que as fontes dos conhecimentos físico, lógico-matemático e social são na mesma ordem, isto é, estão
nos sujeitos pois a mente dos indivíduos e as pessoas que compõem o meio social é que tratam de assim organizá-los (KAMII
e LIVINGSTON, 1995).
Contudo, esses conhecimentos são interdependentes e feitos apenas para se obter uma melhor compreensão de mundo.
Assim é que, por exemplo, para se abstrair a cor azul de uma bolsa (conhecimento físico) e para denominá-la com a palavra
AZUL em língua portuguesa (conhecimento social), é preciso que se insira essa informação dentro de um quadro lógico-
matemático, no qual estão presentes os conhecimentos de todas as outras cores que o indivíduo possa ter conhecimento.
Assim, também, para uma pessoa chegar à conclusão de que um objeto é mais pesado do que o outro, é preciso que ela
(individualmente) já tenha tido a experiência de tocar fisicamente e relacionar o peso de diferentes objetos. Da mesma
maneira, compreender que o dia primeiro de abril é o Dia da Mentira, só é possível a partir de um quadro lógico-matemático
que possa classificar esse dia em relação aos demais dias do ano, etc., (MANTOVANI DE ASSIS, 1981).
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Tal como Piaget, Delval (1988), em seus estudos, demonstra que as crianças não assimilam passivamente as
informações advindas do meio social e que somente por meio de uma gradual construção é que conseguem entender os
aspectos da realidade que já são assimilados pelos adultos.
Tendo, portanto, como ponto de partida o construtivismo piagetiano, se pode dizer que os progressos nas idéias que as
crianças possuem na compressão da vida social dependem da qualidade das experiências sociais (trocas com o meio que o
sujeito estabelece) como também das estruturas intelectuais que construíram (ENESCO, et. al., 1995).
O conhecimento social, assim concebido, tece toda a estrutura social, de todas as pessoas e indivíduos, e a vida em grupo.
No entanto, toda essa organização social só poderá ser efetivamente aplicada à vida das pessoas se o conhecimento social
estiver profundamente ligado às questões de cidadania. Ambos devem caminhar juntos e serem transmitidos pelos adultos,
na sociedade em geral e, na escola, principalmente, pelos professores e educadores.
NOSSA PESQUISA
Considerando o anteriormente apontado, nos motivamos a investigar os significados e sentidos que as comemorações
festivas do currículo escolar têm para as crianças e para os professores do Ensino Fundamental. Buscamos identificar as
diferentes categorias de concepções dos dois grupos de sujeitospesquisados; estabelecer relações dessas festividades com a
aquisição do conhecimento social e a cidadania; e, finalmente, buscar as implicações pedagógicas para constituição do
sujeito social.
Partimos de alguns questionamentos como: As crianças compreendem as razões das comemorações festivas na escola? Que
sentidos dão a estas festas? Em que medida estes sentidos se aproximam ou se distanciam das concepções dos
professores? Que repercussões isso tem para o exercício da cidadania? Que implicações trazem para o currículo escolar?
Nossa hipótese de partida foi a de que as crianças compreendem estas festividades diferentemente dos adultos e que as
concepções dos professores muito se distanciam das idéias das crianças e, assim, as atividades realizadas pelos professores
serviriam apenas para cumprir uma determinação curricular e pouco contribuiriam para o exercício da cidadania.
A relevância desse nosso estudo está em fazer emergir as concepções dos alunos sobre tais festividades, a fim de que sejam
realizadas a partir delas, já que acreditamos que qualquer atividade curricular proposta deverá estar contextualizada de
acordo com os interesses e necessidades das crianças.
Acreditamos que o estudo, pesquisa, registro e comunicação de um trabalho como o nosso podem ampliar a troca de opiniões
e experiências contribuindo para a qualidade do esforço empreendido, além de viabilizar aos envolvidos no processo
(educadores, educandos, familiares e comunidade) mais um meio de refletir sobre como tratar desse assunto. Justifica-se
também por constatarmos, entre inúmeros trabalhos de pesquisas em andamento, que há um número pequeno de pesquisa
sobre o conhecimento social ou sobre festividades escolares, no Brasil.
O procedimento metodológico adotado é a pesquisa qualitativa. A pesquisa bibliográfica sobre os fundamentos teóricos,
bem como o levantamento de dados sobre as concepções infantis e dos adultos, farão parte da metodologia. A coleta de
dados deu-se por entrevista semi-estruturada sobre as festividades comemoradas naquela instituição, com base nos
princípios do método clínico-crítico piagetiano e na análise do discurso proposta por Bardin (2006). As entrevistas foram
gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas para leitura e análise de dados.
O locus da pesquisa é uma unidade escolar do Ensino Fundamental do sistema público municipal do interior do estado de
São Paulo. Os sujeitos são 30 alunos, sendo cinco representantes de cada ano escolar entre o 1º ano e o 5º ano, escolhidos
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por sorteio entre os escolares matriculados, com idades entre 6 a 11 anos, e com 10 professores da mesma instituição de
ensino, sendo dois representantes de cada ano escolar, também escolhidos aleatoriamente.
Como a pesquisa se encontra em fase de análise de dados, apresentaremos apenas parte de nossos resultados.
De acordo com as respostas encontradas nos questionamentos foi possível inferir que os alunos encontram-se nos níveis pré-
operatório e operatório concreto, conforme a teoria de Piaget. Não foi aplicada nenhuma prova piagetiana para determinar o
nível cognitivo dos alunos porque não se tratava de relacionar as estruturas lógicas do pensamento operatório aos
conhecimentos escolares. Mas, houvemos por bem, situar os estádios de desenvolvimento desses sujeitos de acordo com
suas idades e as explicações dadas durante as entrevistas.
Em relação ao grupo de professoras que trabalham com Ensino Fundamental, algumas lecionam em dois períodos e ano
escolar diferentes, mas o que consideramos para questão da pesquisa foi o ano escolar relativo aos alunos pesquisados.
Conforme pudemos observar, a maior parte das crianças lembra-se das festividades que envolvem a família e a sociedade,
pois nas festas mais citadas como Dia Mães, Festa Junina e Dia das Crianças a escola convida os familiares a participarem
da comemoração. Quando, por ocasião da entrevista, solicitamos que a criança escolhesse uma festa, dentre as que a escola
realiza, as mais citadas são aquelas em que elas participam fora da sala de aula e envolvem suas atividades em âmbito
familiar, corroborando a contemporaneidade da idéia de Piaget, que compreende o homem como ser social e não pode ser
concebido fora do contexto da sociedade.
Verificamos também que comemorações lúdicas são mais lembradas pelos alunos e as comemorações cívicas e culturais são
pouco ou nada evocadas pelos alunos, como se pode inferir dos excertos de fala dos sujeitos, descritos abaixo:
Pesquisador: Fale-me sobre as comemorações que a sua escola faz... Que datas ela comemora?
A1.7.2: festa junina..., às vezes festa de carnaval e festa pra nois mesmo... mais eu não sei não. Ah!!! Tem dia dos
professor. O natal também tem, o menino Jesus nasceu tem que fazer festa.
A3.7.2: festa junina, dia das mães, formatura, páscoa, e natal...
A5.7.2: é... festa junina... festa normal, dia das crianças, dia das mães... e mais eu num sei não.
A8.8.2: a festa junina, formatura... (fica pensando algum tempo) quando chega o dia das crianças também tem festa,... dia
das mães, dos pais também...
Constatamos que a grande maioria os alunos não sabe o significado das festividades escolares. Muitos deles afirmaram
não saber por que estas acontecem. Supomos que os alunos não responderam por que não haviam atribuído significado às
festividades comemorativas. Apenas um aluno respondeu que a importância das festas está em aprender, porém sem saber
exatamente aprender o que, como mostra o trecho abaixo:
Pesquisador: Qual é a importância de comemorar estas festas?
A2.7.2: Pra aprender.
Pesquisador: O que você aprende?
A2.7.2: é... não sei
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Por esta fala, podemos perceber que os alunos repetem o que lhes é dito, mas, sem saber o motivo ao qual se refere, diz
que é importante aprender, demonstrando que ainda não foi compreendido o significado dessa importância.
Analisando os dados, podemos verificar que as crianças não sabem as razões pelas quais se comemoram as festividades
escolares. Para elas, estas comemorações são lúdicas e servem para quebrar a rotina escolar, como recompensa pelo
comportamento que a escola define como ideal. Contudo, exercer a cidadania, não é apenas adquirir os conhecimentos
teóricos que são ministrados nas escolas em forma de disciplinas. Não que esses conhecimentos não tenham importância; é
sim função da escola transmitir conhecimentos, como afirma Delval (2007, p. 17): “Creio que a escola é uma instituição que
vai continuar existindo durante longo tempo e que hoje em dia é necessária”, mas não pode acreditar que a escola, apenas
transmitindo estes conhecimentos, se torna capaz de efetivamente desenvolver o indivíduo para se tornar um cidadão.
Analisando as falas das crianças, constatamos que em todas as festas referidas, a quantidade de respostas “não sei”
aparecem em maior número em diversas datas, levando-nos a admitir a hipótese de que o significado atribuído às
comemorações, de acordo com as respostas, não ultrapassam o nível empírico, da experiência direta e concreta, sem
nenhuma alusão ao conteúdo cultural que estas festas poderiam proporcionar, com exceção à Festa do Folclore, em que
muitas crianças afirmam terem aprendido sobre lendas, histórias e personagens.
Em relação à cidadania, patriotismo, um único aluno diz ter aprendido o Hino Nacional com a comemoração do Dia da
Independência do Brasil:
Pesquisador: Porque você acha que comemoramos o dia da independência do Brasil na escola?
A10. 11.2: Botou a bandeira, levantou e cantou o Hino.
Pesquisador: Pensa o que você aprendeu na comemoração do dia independência do Brasil?
A10. 11.2: Aprendi cantar o hino, que eu não sabia...
Nas falas dos professores pudemos verificar que alguns não respondem objetivamente à questão, desviando o assunto para
concordar ou discordar com a comemoração, cada qual com seu motivo particular ou pedagógico, mas como a data está
inclusa no currículo escolar da cidade o fazem por obrigatoriedade do sistema. Por essa razão, a comemoração fica sem
parâmetros e os alunos aprendem somente que é Dia das Mães, por exemplo, e são induzidos pelas professoras a dizer que
aprenderam que têm que obedecer às mães, que bons alunos obedecem às suas mães, etc.
Por outro lado, analisando o discurso dos professores entendemos que eles realmente gostariam que as atividades
pedagógicas pudessem desenvolver os alunos em diversos aspectos: cognitivo, social e escolar, contudo, isso dificilmente
acontece. Entretanto, se as estruturas mentais dos alunos dependem de suas próprias ações para serem formadas e, como
afirma Piaget (1967), no início da socialização acontecem ações e junto com elas transformações que não apenas são
importantes para o raciocínio e para o pensamento, mas também para a vida afetiva, será preciso levá-las em consideração
ao ensinar.
CONCLUSÕES PARCIAIS
As datas propostas pelo currículo escolar, que têm a obrigatoriedade de serem comemoradas, deveriam ser conhecidas
pelo seu valor cultural e histórico, tanto pelos professores quanto pelos alunos, para que a comemoração tenha um sentido
que vá além do simplesmente escolar.
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Este trabalho de pesquisa nos tem permitido constatar que nossa hipótese de partida, que era de que as crianças
compreendem estas festividades diferentemente dos adultos está confirmada, pois as falas dos alunos em nada condizem
com as dos adultos nem em teoria nem em ação. Ainda, concluímos que os professores preocupam-se com o aprendizado
das crianças, mas, que efetivamente estas comemorações, na grande maioria, não contribuem para ampliar o conhecimento
social das crianças.
Essas festividades estão servindo apenas para cumprir uma determinação curricular e, em assim sendo, pouco contribuem
para o exercício da cidadania. Apesar de serem lúdicas e algumas delas agradarem as crianças, pelo fato de ter brinquedos,
brincadeiras, comidas, danças, músicas e, principalmente, pelo fato de naquela data a criança ficar dispensada de cumprir
regras impostas na escola, tais como andar em filas, ficar calados, não correr, ter horários pré-determinados para todas
atividades, inclusive em alguns casos até para suas necessidades fisiológicas, as festas escolares não cumprem seu devido
papel nem no desenvolvimento social do aluno como um todo, nem no conhecimento das noções sociais descritas e
colocadas pelo sistema educacional.
Acreditamos que o alcance desses objetivos educacionais, tanto em incluir o conhecimento social em âmbito escolar,
como educar para a cidadania, exige o conhecimento e o comprometimento dos docentes em relação às suas atividades de
ensino.
REFERÊNCIAS
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DELVAL, J. A escola Possível: democracia, participação e autonomia. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
DELVAL, J. Conhecimento Social e Desenvolvimento Moral. In ENGERS, M. A. (coord.) Paradigmas e metodologias de
pesquisa em educação: notas para reflexão. Porto Alegre: EDIPUCRS. 1994, pp. 121-132.
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en la mente infantil. Madrid: Alianza Editorial, 1989.
ENESCO, I; et. al. La compreensión de la organización social en niños y adolescentes. Madrid: CIDE, 1995
KAMII, Constance; LIVINGSTON, Sally Jones. Desvendando a aritmética: implicações da teoria de Piaget. Campinas:
Papirus, 1995.
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1981.
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PERRENOUD, P. Escola e Cidadania: o papel da escola na formação para democracia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
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PIAGET, J. Para onde vai a Educação? 18ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 2007.
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SALTINI, C. J. P. Afetividade e inteligência. 5ª ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2008.
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Dissertação de mestrado. Univerdidade Estadual de Campinas, SP: [s.n], 2006.
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Marcus Túlio Pinheiro Burnham36 & Teresinha Fróes
Universidade do Estado da Bahia
O CONHECIMENTO ENQUANTO CAMPO: O CURRÍCULO NESTE CONTEXTO
A noção hegemônica de uma perspectiva formadora remete a um constructo, a um arquétipo capaz de fazer emergir uma modelagem para
o conhecimento, fazendo dessa categoria algo que possibilita a troca, a conversão, a difusão, algo que converge para estruturantes da
ciência econômica e que tem um aporte teórico reforçado por uma compreensão de mercado. Esta concepção é hoje largamente util izada
em organizações capitalistas para a “produção do conhecimento” formalizando experiências de vida, transformando o que é denominado
conhecimento tácito em conhecimento explícito. Este incômodo lugar contemporâneo para o conhecimento fez emergir a percepção do
conhecimento do presente trabalho, que propõe um lugar anterior para esta categoria, afastando-a do contexto mercadológico, de uma
lógica de consumo, de apropriação, de distribuição para uma perspectiva de geração, de interferência, de potencialização, de algo que não
está posto e sempre se apresenta em um estado de vir a ser.
Nessa proposição o conhecimento se afasta de uma lógica preestabelecida por outras categorias e surge como fundante, como plasma,
amorfo, potencializador, capaz de modificar configurações, tirar do equilíbrio concepções enraizadas, capaz de aumentar e diminuir
dinâmicas sistêmicas, de fazer emergir tensões, lutas, divergências, convergências. A presente proposição de percepção do conhecimento
pode aportar nela sistemas dicotômicos, lineares, previsíveis como o da lógica econômica, mas dá conta de aportar teorias de
aprendizagem, teorias de currículo, teorias sobre o papel da educação e para além da educação formal, ou seja, o conhecimento é visto
como campo no sentido epistemológico da palavra. A perspectiva a priori nesse caso não é a da formação, e sim a do Ser cognitivo, afetivo,
estético. O Currículo se apresenta nesse contexto, como um estado, é algo que motiva e remete para outros estados.
A partir da proposta de perceber o conhecimento como campo, alguns desdobramentos serão abordados como referenciais para uma
configuração contemporânea da educação. A formalização dessa proposta trará a possibilidade de vivenciarmos processos que tendem a
uma estática e processos que tendem a uma dinâmica na educação e na concepção do conceito de currículo, trazendo uma visão
holográfica do campo conhecimento que dá conta de explicar constructos lineares de alta rigidez e constructos maleáveis, relacionais,
fluidos que possibilitam um olhar além da educação formal. O que será exposto é o sentido relativo da educação que coloca como fatores
relevantes a autonomia, a consistência e a formalização de conceitos locais e não locais para a emergência de currículos dinâmicos e
contextualizados.
Palavras Chave: conhecimento, campo, currículo
INTRODUÇÃO
A noção hegemônica de uma perspectiva formadora remete a um constructo, a um arquétipo capaz de fazer emergir uma
modelagem para o conhecimento, fazendo dessa categoria algo que possibilita troca, conversão, difusão, algo que converge
para estruturantes da ciência econômica e que tem um aporte teórico reforçado por uma compreensão de mercado. Esta
concepção é hoje largamente utilizada em organizações capitalistas para a “produção do conhecimento” formalizando
experiências de vida, transformando o que é denominado conhecimento tácito em conhecimento explícito. Este incômodo
lugar contemporâneo para o conhecimento fez emergir a percepção do conhecimento do presente trabalho, que propõe um
lugar anterior para esta categoria, afastando-a do contexto mercadológico, de uma lógica de consumo, de apropriação, de
36Especialista em Educação e Tecnologia pela UNEB, Mestre em Engenharia de Produção – Gestão do Conhecimento pela UFSC, Doutorando em Ciências da Educação pela UFBA. Professor do Centro Universitário da Bahia e Professor da Universidade do Estado da Bahia, Coordenador de Tecnologia do Grupo Gestor de EAD – UNEB.E-mail:[email protected], [email protected]
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distribuição para uma perspectiva de geração, de interferência, de potencialização, de algo que não está posto e sempre se
apresenta em um estado de vir a ser.
Nessa proposição o conhecimento se afasta de uma lógica preestabelecida por outras categorias e surge como fundante,
como plasma, amorfo, potencializador, capaz de modificar configurações, tirar do equilíbrio concepções enraizadas, capaz de
aumentar e diminuir dinâmicas sistêmicas, de fazer emergir tensões, lutas, divergências, convergências. A presente
proposição de percepção do conhecimento pode aportar nela sistemas dicotômicos, lineares, previsíveis como o da lógica
econômica, mas dá conta de aportar teorias de aprendizagem, teorias de currículo, teorias sobre o papel da educação e para
além da educação formal, ou seja, o conhecimento é visto como campo no sentido epistemológico da palavra. A perspectiva a
priori nesse caso não é a da formação, e sim a do Ser cognitivo, afetivo, estético. O Currículo se apresenta nesse contexto,
como um estado, é algo que motiva e remete para outros estados.
A partir da proposta de perceber o conhecimento como campo, alguns desdobramentos serão abordados como referenciais
para uma configuração contemporânea da educação. A formalização dessa proposta trará a possibilidade de vivenciarmos
processos que tendem a uma estática e processos que tendem a uma dinâmica na educação e na concepção do conceito de
currículo, trazendo uma visão holográfica do campo conhecimento que dá conta de explicar constructos lineares de alta
rigidez e constructos maleáveis, relacionais, fluidos que possibilitam um olhar além da educação formal. O que será exposto é
o sentido relativo da educação que coloca como fatores relevantes a autonomia, a consistência e a formalização de conceitos
locais e não locais para a emergência de currículos dinâmicos e contextualizados.
QUANTO À PERCEPÇÃO
Estamos construindo algo coletivo acima das premissas da subjetividade, da individualidade, algo que transcende as
expectativas do individualismo. Essa é uma afirmação recorrente nos discursos hegemônicos da academia. A coletividade
aparece como algo novo, onde o conhecimento coletivo é um conceito que permeia o estupor dos devaneios acadêmicos. A
percepção estereotipada baseada em arquétipos conceituais se revela como uma massificação das idéias, que repele o
indivíduo em detrimento de um pensamento genérico. Perceber algo coletivamente passa por uma estrutura de relação que
não se sustenta em variáveis lineares tão corriqueiras nas interpretações do conhecimento formal. O que se apresenta
coletivamente é percebido individualmente, esta impressão remete a uma sensação de que todos estão percebendo de forma
coletiva e que compomos uma rede semântica.
E se o que se apresenta nunca for de forma coletiva? Se fizermos um esforço para imaginar apresentações quantizadas da
“realidade”, em que cada indivíduo contempla uma estática infinitesimal desprovida do movimento, conseqüentemente
afastada totalmente do tempo mecânico, onde o Ser contempla a vastidão da existência e se conecta com o próximo estado
de percepção, veremos que somos Seres a quem do tempo mecânico. Segundo a mecânica do tempo tudo o que
percebemos é passado, não conseguimos presenciar, viver o presente. Quando olhamos, ouvimos, sentimos sempre
percebemos o que se passou, onde está o presente? Onde está a realidade? Onde está a coletividade?
O afastamento da realidade temporal nos remete a uma realidade essencial, única, breve e carregada de interpretações
atemporais associadas às nossas lembranças, que por sua vez não são temporais, são espaciais. O movimento aqui não é
visto como a variação do espaço em função do tempo. O movimento é visto como a modificação do espaço, não de forma
linear, mas de forma quantizada, aqui, ali, acolá. O afastamento do ontem, hoje, amanhã dá lugar a uma superposição de
frações de realidades em que o indivíduo assume uma delas e de forma intrínseca assume a sua linearidade provida de uma
unicidade perceptiva dentre tantas que foram capazes de emergir a partir de um leque de possibilidades.
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Para tornar compreensível esta proposta nos deparamos com ensaios duais, onde os fenômenos podem assumir dois
estados a partir de duas possibilidades no seu desenrolar, o denominamos de o princípio do terceiro excluído. Nestes
fenômenos podemos observar um resultado em função de duas possibilidades, porém as duas possibilidades são atendidas e
no estado de observação verificamos uma das duas, mas percebemos que a outra possibilidade é totalmente possível, dessa
forma neste mesmo estado de observação a realidade se desdobra para dar conta das duas possibilidades, então é possível
dizer que no ato da observação realizamos a sobreposição de duas realidades em função de um único resultado, Herbert
(1985), descreve o pensamento de Heisenberg que expõe a idéia de que o mundo é duplo, consistido de potencialidades e
realidades, na concepção da escola de Copenhague não existe qualquer realidade profunda (realidade quântica 1) e a
observação cria a realidade (realidade quântica 2) Essas duas realidades revelam que somente os fenômenos são reais, o
mundo sob os fenômeno não é real. O tratamento do mundo subfenomenal é um desafio. Para Heisenberg, uma das causas é
a própria descrição desse mundo:
“Aqui, os problemas de linguagem são extremamente difíceis. Queremos falar, de algum modo, sobre a estrutura dos
átomos e não apenas sobre „fatos‟ como, por exemplo, das gotículas de água numa câmara de neblina. Mas não
podemos falar sobre átomos em linguagem comum”
Mesmo sabendo da dificuldade com a linguagem, Heisenberg tenta externar o que vê quando olha para dentro da realidade
quântica. Para ele não há realidade profunda:
“...nada lá embaixo é real, no mesmo sentido em que os fatos fenomenais são reais. O mundo não medido é apenas
semireal, e atinge o pleno status de realidade durante o ato de observação: Nas experiências relativas aos eventos
atômicos devemos lidar com as coisas e fatos, com fenômeno que são tão reais quanto os fenômenos da vida diária.
Porém os átomos e as partículas elementares não são assim tão reais; eles formam um mundo de potencialidades ou
possibilidades, e não de coisas ou fatos... A onda probabilística... significa uma tendência para alguma coisa. Ela é a
versão quantitativa do velho conceito de potentia, da filosofia de Aristóteles. Ela introduz algo que está entre a idéia de um
evento e o evento propriamente dito, um estranho tipo de realidade física, entre possibilidade e realidade.” HEISENBERG
in Herbert(1985, p.43)
Este desdobramento de estados quânticos se dará quantos forem necessários para cobrir as possibilidades de resultados de
uma observação de um fenômeno físico e ou social, os desdobramentos do físico e social se dá de forma inerente a
existência humana e essa relação intrínseca deve ser considerada nos fenômenos. Para Lupasco(1986) existe uma
antagonia crucial para a interpretação do mundo que é o movimento dialético entres os sistemas aferentes e eferentes que
compõem o sistema de significação humana, o que ele chama de dialética das dialéticas contraditórias e antagônicas da
percepção e da ação. Os atos, dessa maneira, é um projeto motor expresso por uma potencialidade:
“..,. este projeto é uma potencialidade, enquanto projeto está evidentemente no estado potencial, em potência (se quisermos
utilizar uma terminologia aristotélica), um estado que contém como tal, o que vai atualizar. Por esse fato ele é consciente,
povoa a consciência nem que seja por um instante ou mesmo mais longamente... Para realizar a sua operação, o sujeito
atualizador deve relegar para o mundo dos objetos, o mundo objetivo, toda e heterogeneidade perturbadora.” (LUPASCO,
1986, p21).
A relação entre estruturas de percepção de mundo, estruturas de descrição e conseqüentemente estruturas de composição
de leis físicas e sociais através da manipulação de variáveis também físicas e sociais nos dá as bases estruturantes do
conhecimento formal. Dessa maneira toda composição científica está diretamente ligada à natureza da relação entre as
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estruturas citadas. A resignificação dessas estruturas implica na ressignificação dos conceitos científicos, emergindo
composições que são capazes de aglutinar as antigas no seio de suas interpretações. Isto é percebido facilmente quando se
debruça na evolução das teorias de um determinado campo do conhecimento formal.
Para uma melhor compreensão da construção dos conceitos formais, se faz necessário um deslocamento para as estruturas
de percepção do mundo, estruturas descritivas e estruturas de composição que serão assumidas na construção dos conceitos
científicos que darão conta de uma leitura do mundo contemporâneo. A percepção do mundo é vista por Heidegger (2008),
quando trata da presença, abertura e verdade como uma transcendência real, incômoda ao cientificismo lógico, privilegiando
o sujeito humano e a sua busca de compreensão das coisas que se apresentam. A ideografia dessa percepção não está mais
apoiada em uma expressão linear e dá lugar a uma ideografia dinâmica, que compõe sua expressão de forma plástica,
mutante e reutilizável. As variáveis quantitativas e qualitativas compõem agora estruturas dinâmicas variáveis que por sua vez
fazem aflorar as estruturas topológicas que carregam em si a forma e o âmago dos fenômenos observáveis.
Dessa maneira, o que se pretende nessa pesquisa não tem caráter finito e soluto. A construção aqui proposta é um recorte de
variáveis qualitativas e quantitativas que possibilitará o afloramento de arquétipos dinâmicos que possam ser entendidos de
maneira topológica e utilizados em outras composições científicas voltadas para a concepção do campo conhecimento e seus
desdobramentos como os currículos dinâmicos e contextualizados, além dos estudos de interferência, convergência,
divergência de saberes.
COMO É PERCEBIDO O CONHECIMENTO
Na discussão sobre conhecimento, algumas perspectivas são convergentes com uma percepção mais fecunda onde a
contextualização e a consideração de pontos que refletem uma relação, um comportamento em rede, um imbricamento entre
estruturas que emergem nos processos cognitivos são consideradas para a edificação e resignificação de conceitos já
estabelecidos. Um enfoque com estas características é dado por Edgar Morin(2008), que traz para a discussão
epistemológica do conhecimento um desafio que expressa a complexidade do estudo de uma categoria que estrutura e ao
mesmo tempo é estruturada. Essa dificuldade de interpretação é o cerne dessa discussão que levanta o questionamento de
como estudar, ou pensar algo que na sua essência reflete as suas próprias bases que fazem emergir o próprio objeto de
estudo. Algo como uma retroalimentação, algo recursivo, algo que revela um movimento para fora do conhecimento, mas que
ao mesmo tempo remete para o seu âmago.
Nesse contexto, Morin organiza o pensar conhecimento do conhecimento. A seguir, algumas características desse olhar
cuidadoso, rigoroso, mas nem por isso fechado e definitivo. O que é colocado provoca, instiga, relativiza a visão priorística
absoluta do conhecimento. A independência entre o ato de conhecer e a noção formada sobre esse ato é uma característica
marcante que nos leva a um percorrer de compreensão do mundo sem questionarmos a natureza dessa compreensão, ou
seja , não é necessário compreender as estruturas do conhecimento para conhecermos, instituirmos, conceituarmos ou
mudarmos de opinião. O que se apresenta a priori é a uma noção única do conhecimento. Como coloca Morin:
“...a noção de conhecimento parece-nos única e evidente, até o momento que a questionamos, quando a focamos a mesma
se apresenta fragmentada, diversificada, multiplicando-se em inúmeras noções onde cada uma gera novos questionamentos.”
(MORIN 2008,p.16)
Essa característica será um ponto importante para as discussões futuras nesse trabalho, pois ela é tratada no enfoque da
complexidade, porém é percebido que há uma convergência ainda maior no enfoque da teoria quântica no que se refere ao
princípio da incerteza e emaranhamento quântico. O sentimento de extrema incerteza relatado por Morin é expresso como
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algo que incomoda que tira da zona de conforto os que acham que o conhecimento está posto, elucidado e é inquestionável.
Nosso conhecimento, apesar de tão familiar e íntimo, torna-se estrangeiro e estranho quando desejamos conhecê-lo diz Morin
(2008). Essa colocação nos remete ao mundo das possibilidades, estranho, desconhecido, que se apresenta para
conhecermos, mas que se esmaece quando tentamos dar significado ao conhecer.
A concepção do conhecimento, no contexto da objetividade impossibilita a sua redução a categorias estruturantes, sendo ele
uma estrutura primária. Essa visão remete a um arquétipo que torna o conhecimento funcional, uma função que envolve
parâmetros como a competência, a cognição que se desdobra em uma função de segunda ordem, o saber. Essa
interpretação se revela como um reducionismo, uma linearidade para dar conta de uma definição concreta do conhecimento.
Morin (2008) reage a esse posicionamento quando enuncia que o conhecimento é um fenômeno multidimensional, de
maneira inseparável, simultaneamente físico, psicológico, cerebral, mental, cultural e social. O contexto sistêmico é invocado
por Morin para se opor ao estabelecido, onde cada parâmetro da função conhecimento emerge de relações sistêmicas
gerando a necessidade de um novo pensar que opere entre as ciências cognitivas.
As características da complexidade aproximam o olhar sobre o conhecimento de uma rede de relações capaz de perceber a
multirreferencialidade, o sentido holográfico do conhecer, as relações que legitimam a identidade e a vizinhança dos saberes.
É percebido um movimento que permite tanto o mergulho nas especificidades dos conceitos quanto um afastamento para o
entendimento das relações desses conceitos aproximando o que é conhecer do sensível, do observável. Esse exercício é
capaz de entender as linearidades, os conceitos objetivos e também a complexidade e a fragilidade dos conceitos
estabelecidos. Esse movimento possibilita a concretude e/ou o esmaecimento da realidade, colocando em discussão
estruturas basilares como o conceito do real e da lógica. Essa discussão é o enfoque da realidade quântica. Mas o que é
interessante é que tanto a realidade quanto a lógica são fundamentos do que chamamos conhecimento. Morin descreve essa
situação de forma clara, quando comenta sobre a crise do que é real provocado pela física quântica.
“...Brecha no real que abre uma ferida inacessível à inteligibilidade, brecha na lógica, inapta a fechar-se demonstrativamente
sobre si mesma, através dessa duas brecha, ocorre uma hemorragia do que se continua a chamar de real e a perda
irreparável dos fundamentos do que se deve continuar a chama conecimento” (MORIN,2008, p.22).
Dessa forma o próprio conceito sobre conhecimento está em jogo. É percebido o lugar tênue em que se encontra e que existe
algo que antecede o mesmo. A relação entre conhecimento e características da complexidade nos traz a esse patamar,
porém a relação entre conhecimento e a teoria quântica pode nos levar a uma abrangência ainda maior, já que nesse
contexto é natural a fragilidade da realidade e a proposição de outras lógicas. Como a complexidade emerge do mundo das
possibilidades e do mundo das relações, a interconexão entre complexidade e a quântica exprime o movimento do mergulho e
do afastamento, que pode nos revelar o conhecer. Tratar o conhecimento através dos conceitos dos sistemas complexos faz
surgir elementos como relativização, incertezas que se apresentam como catalisadores da sua própria construção. Essa
recursividade está presente no teorema de Gödel, onde um sistema complexo formalizado não pode encontrar em si mesmo a
prova de sua validade. Morin utiliza o teorema de Gödel para evidenciar o sistema cognitivo como complexo. Para Morin
(2008), nenhum sistema cognitivo estaria apto a conhecer-se exaustivamente nem a validar completamente a partir de seus
próprios instrumentos de conhecimento. Logo para conhecer o conhecimento se faz necessário a renúncia à completude. O
sentido holográfico dos sistemas complexos traz um alento para a discussão, pois possibilita o afastamento sem perder as
características do sistema em foco, pois o que se afasta é parte de que está sendo observado. Morin denomina esse lugar de
afastamento de meta-sistema capaz de envolver o sistema objeto. Esse posicionamento pode ser reforçado pelo sentido de
emaranhamento quântico que remete o entendimento desse afastamento como fenômeno da não localidade. A interpretação
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a seguir é uma tentativa de trafegar na itinerância do conceito conhecimento expressando a possibilidade de movimentos de
verticalização e espalhamento em torno do Ente cognitivo.
QUANTO AO CONHECIMENTO COMO CAMPO
A relação entre objetos foi tratada a partir da concepção de uma interação que se dava de forma direta e instantânea,
denominada ação à distância, que prevaleceu por muito tempo nas áreas da eletricidade, do magnetismo e da gravitação.
Rocha (2002) descreve como Michael Faraday, a partir de uma análise qualitativa através da observação direta do
comportamento da limalha de ferro na presença de uma barra magnetizada, de corpos eletrizados ou fios condutores
percebeu um padrão na configuração da limalha que descrevia linhas radiais em torno dos corpos, que convergiam na região
dos pólos. Essas linhas que parecem com linhas elásticas, foram denominadas linhas de força, que se estendem no espaço a
partir dos objetos em interação. O conceito de linhas de força remete a uma configuração interacionista diferente, onde a força
passa a ser vista como efeito e não como razão. Dessa forma Faraday introduz a idéia de que a relação entre os objetos não
se dá de forma direta, mas através de um meio capaz de possibilitar a geração de forças de coesão ou de repulsão entre
esses objetos. A natureza dessas forças é definida pela natureza dos objetos em interação que emerge num meio que
possibilita a criação e manutenção das mesmas. As linhas de força se estendem no espaço e o preenchem inteiramente, este
espaço configurado pela ação das linhas de força, para Faraday, constitui o campo de forças. O conceito de campo a partir
desse momento é introduzido em todos os fenômenos de interação com resultados surpreendentes na eletricidade,
gravitação, magnetismo. James Maxwell (1831 – 1879), como descreve Rocha (2002), mais tarde percebe a relação entre
campos e consegue de forma brilhante a unificação do campo elétrico e magnético, a inter-relação entre esses campos dá
origem ao eletromagnetismo, e a uma concepção de meio que vai além do meio mecânico e se revela a partir da relação
entre duas naturezas de campos distintos, mas complementares. A idéia do éter como meio para a propagação da luz no
espaço cai, e surge uma compreensão de interação além da mecânica newtoniana que permeia o mundo das relações de
forma sutil e nos coloca diante de uma compreensão do meio como algo inerente a própria relação, no caso do
eletromagnetismo o produto entre forças magnéticas e elétricas impulsiona a onda luminosa a rasgar o espaço na direção e
no sentido produzido pela relação.
Essa modesta introdução à idéia de campo foi utilizada para trazer à tona uma inquietação sobre conceitos largamente
utilizados nas discussões que envolvem os processos cognitivos. Piaget (1974) observa que aprendizagem sempre está
associada a uma relação, a uma interação entre atores capazes de gerar uma reestruturação semântica, uma visão de mundo
ressignificada, uma dialogização capaz de categorizar, inventar ou reinventar conceitos. Vygotsky traz o contexto social para a
discussão, a idéia de meio é colocada em um patamar das relações do sujeito, quando ele trata do significado das palavras:
“É no significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento
generalizante. São os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se
no „filtro‟ através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele... o significado de uma palavra
representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala
ou de um fenômeno do pensamento...” (VYGOTSKY, 1989 p.104)
Vygotsky (1989) traz a relação dos instrumentos simbólicos como estruturantes e discute a linguagem como motor de
mudança atitudinal que transforma o meio sociocultural enfocando o conceito de zona de desenvolvimento proximal que
possibilita um referencial entre a aprendizagem e a capacidade cognitiva de solução de problemas de forma individual ou
coletiva. Outra percepção de importante relevância vem de Wallon (1975), que chama a atenção para o caráter orgânico da
relação social do ser humano, trazendo o desenvolvimento cognitivo centrado na psicogênese da pessoa completa. As
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contribuições de Piaget, Vygotsky, Wallon são de grande importância para o entendimento do contexto de cognição e
aprendizagem.
O que se nota, ao fazer um paralelo entre essas visões é o tratamento do conhecimento como algo que se revela e é posto à
disposição, que remete a uma visão corpuscular, fragmentada em pacotes onde somos capazes de lidar com retóricas,
discussões e apropriações desses pacotes que são internalizados pelo sujeito provocando reestruturações de conceitos até
então cristalizados e nos colocando em um estado de vir a ser, de virtualização, como diz Levy (1996) quando trata, com
propriedade, da capacidade de relações semânticas do indivíduo em relação à leitura do mundo. O que emerge dessas
leituras dos processos de aprendizagem é um fator comum entre elas, o sócio-interacionismo, que é tratado até então como
algo que se coloca em uma zona de conforto capaz de compor os conceitos complexos dos processos cognitivos, mas que
ainda traz consigo uma concepção de interação pouco explorada. O que é proposto nesse momento é um enfoque dessa
interação através do conceito de campo, evidenciando uma ideação do campo conhecimento que será descrito a seguir.
Para prosseguir com o ensaio sobre o campo conhecimento, retorno brevemente ao conceito de campo e aos elementos
inerentes ao mesmo. Um campo é uma representação de uma perturbação, de uma anomalia em um meio. Dessa forma para
que exista o afloramento de um campo é necessária a presença de uma fonte geradora, perturbadora, de uma fonte que seja
capaz de modificar a configuração do meio. Esta fonte geradora provoca o surgimento de um relevo no meio que tenciona a
vizinhança da fonte através de potenciais capazes de gerar forças de aproximação ou de repulsão em relação à fonte
geradora.
Fonte
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O interessante é que independente da natureza dos campos, eles se apresentam com as mesmas características. Todo
campo é provocado por uma fonte geradora capaz de criar um potencial que causa o surgimento da força, que só é percebida
na presença da interação com outro objeto com a mesma natureza da fonte geradora. As características do campo não são
temporais, são topológicas. O que é mais relevante é a forma e não as quantidades. O sentido holográfico se revela
fortemente quando pensamos a partir da concepção de campo. Este sentido que impulsiona para uma ousadia conceitual, a
de tratar o conhecimento como campo. Para um primeiro entendimento será construído um paralelo entre as características
de campos conhecido e uma analogia com os elementos propostos para o campo conhecimento.
Os campos descritos na tabela são bem conhecidos. A fonte de cada campo é capaz de modificar a configuração do contexto,
fazendo surgir um relevo expresso através do potencial que na presença de outros objetos de mesma natureza fazem surgir
forças inerentes a essas interações.
Pensar o conhecimento como campo, remete a uma configuração topológica semelhante à apresentada pelos campos
conhecidos. Dessa forma é necessário identificar o contexto, a fonte geradora, o potencial e a força inerentes ao campo
conhecimento. Esta é a proposta dessa pesquisa, partindo do pressuposto a seguir, identificar processos capazes de ratificar
ou fazer emergir outras características configurativas do campo conhecimento. O ponto de partida é uma sugestão de
configuração desse campo. As teorias da aprendizagem contemporâneas remetem a uma percepção sócio-interacionista que
leva a uma possibilidade de concebermos o conhecimento como campo, onde a comunicação provida de um constructo de
linguagens que permeia esse contexto catalisa a convergência de zonas que irradiam da região geradora desse campo que
se apresentam como saberes. O trafegar nesses saberes é a própria aprendizagem.
O campo conhecimento surge no contexto comunicacional que é reconfigurado pelas fontes de cognição, Entes cognitivos,
que tensionam o contexto fazendo emergir potenciais de saberes que em contato com outros Entes cognitivos possibilitam o
surgimento de forças capazes de gerar um tráfego entre os potenciais de sabres revelando a aprendizagem.
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O surgimento da aprendizagem requer a presença de outras fontes geradoras, outras fontes de cognição que causam
interação, interferência e intencionalidade. Essa fonte geradora, o Ente cognitivo carrega em si características que vão além
da concepção determinista de cognição. É um ente que carrega o sentido físico, psicológico, cerebral, mental, cultural e social
evidenciados pro Morin, dentro da dialética das dialéticas de Lupasco e da concepção de multirreferencialidade de Burnham.
O trafegar nesses potenciais faz emergir possibilidades de caminhos e o ato de trafegar revela o desencadear de uma relação
entre os saberes, relação essa instantânea, dinâmica e mutável, algo que pode se perceber como um currículo pautado na
multireferencialidade que carrega em si as características da complexidade, do estado de vir a ser. Para Burnham (1993) a
compreensão do currículo passa pelo entendimento da relação entre complexidade, mutirreferencialidade e subjetividade
fazendo emergir o significado social do currículo:
“Todo esse questionamento nos remete ao currículo e ao seu significado na sociedade contemporânea. Remete-nos, mesmo,
a aprofundar, para melhor compreender, não só a polissemia do termo, mas o seu significado como processo social, que se
realiza no espaço concreto da escola, cujo papel principal é o de contribuir para o acesso daqueles sujeitos que aí interagem,
a diferentes referenciais de leitura de mundo e de relacionamento com este mesmo mundo, proporciando-lhes não apenas um
lastro de conhecimento e de outras vivências para a sua inserção no processo da história, como sujeito do fazer dessa
história, mas também para a sua construção como sujeito (quiçá autônomo) que participa ativamente do processo de
produção e de socialização do conhecimento e, assim, da instituição histórico-social de sua sociedade... Nesta interação,
mediada por uma pluralidade de linguagens e de referências de leitura de mundo os sujeitos, intersubjetivamente, constroem
e reconstroem a si mesmos, o conhecimento já produzido e que produzem, as relações entre si e com a sua realidade, assim
como pela ação transformam essa realidade num processo multiplamente cíclico que contém, em si próprio, tanto a face da
continuidade como a da construção do novo.” (BURNHAM, 1993 p.32).
Ente
Cognitivo
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O contexto curricular evidenciado por Burnham é basilar para o enfoque do sentido holográfico do campo conhecimento. Este
sentido faz com que percebamos o trafegar entre o campo gerado pela cognição individual, coletiva e social. Os espaços de
aprendizagem se revelam como gerações do campo conhecimento e a própria aprendizagem não está refém de espaços
institucionalizados.
A presença de múltiplos entes cognitivos tenciona o surgimento de interferências entre os saberes desses sujeitos remetendo
a experiências itinerantes de conhecer, partilhar, concordar, discordar com outros. Este percorrer no espaço de aprendizagem
está repleto de intencionalidades objetivas e subjetivas, fazendo emergir rotas de aprendizagens que são eleitas, aceitas
socialmente e que se tornam formais e/ou instituídas e conseqüentemente instituintes de um novo estado configurativo do
campo conhecimento. O trafegar pelas rotas instituídas é o próprio ato de currículo ou o currículo em ação.
O mergulho em rotas mais densas remete ao aumento da complexidade dos conceitos e a uma crescente incerteza sobre os
mesmos. O sujeito, nesses atos de currículo tende a buscar regiões de baixa dinâmica capazes de sustentar as rotas
estabelecidas, mas se o movimento for de profundidade extrema relativa ao sujeito, o mesmo vai se deparar com uma zona
de incerteza conceitual análoga ao mundo semireal de Heisenberg, onde as certezas conceituais de rotas bem estabelecidas
vão dar lugar a uma nuvem de probabilidades de itinerâncias, fazendo emergir o potencial da heterogeneidade perturbadora
do sujeito atualizador de Lupasco, esse lugar que compreendo como o limiar da geração de conhecimento.
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Podemos vislumbrar estes movimentos de baixa complexidade e alta complexidade através da interação de vários Entes
cognitivos, já que esse movimento não é partícula da singularidade do Ser mas dos espaços de aprendizagem. Logo os atos
de currículo ou currículo em ação é uma construção sócio-iteracionista de caráter colaborativo e de complexidade sistêmica
que permeia a visão de mundo do sujeito e da sociedade. Logo o sentido holográfico faz das características individuais do
sujeito as características do espaço de aprendizagem que o mesmo ajuda a compor.
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Dessa forma o limiar da geração do conhecimento é uma particularidade do Ser cognitivo e ao mesmo tempo uma do espaço
de aprendizagem. O espaço de aprendizagem faz emergir as rotas de itinerância que possibilitam os atos de currículo de
relação, disseminação, aprofundamento de conceitos estabelecidos e de incertezas e emergências de novos conceitos.
A concepção evidenciada neste trabalho encontra o olhar profundo de Paulo Freire que já contemplava esse universo e o
traduzia, através da sua linguagem humana e altamente coerente, a relação entre perceber o mundo e o olhar contemplativo,
amoroso, inquieto, perturbador, inconformado, inacabado do homem. Acredito nesse lugar, o lugar de onde Paulo Freire
mergulhava no seu limiar do conhecimento.
PRÁXIS PEDAGÓGICA, ITINERÂNCIA, CURRÍCULO
A práxis pedagógica não está mais restrita aos ambientes institucionalizados da educação formal. Na perspectiva dos
espaços sociais e da construção coletiva do conhecimento, pautada nas formas comunitárias de aprendizagem e nas
tecnologias intelectuais a práxis pedagógica passa a ser propriedade do coletivo, do social fazendo emergir uma nova
concepção de educação a muito vislumbrada por Freire (1979), onde o mesmo coloca o caráter permanente da educação
evidenciando que os atores sociais trafegam entre momentos de ignorância e saber, em uma nuvem de coexistência em um
mesmo ser de estados que se apresentam ao contexto da aprendizagem hora aprendendo, hora ensinando.
Essa perspectiva muito atual já era vislumbrada por Paulo Freire, o mesmo já percebia o mundo em transformação em uma
época tão linear, determinista e autoritária do nosso país. O sentido de amor e desamor referenciado na comunicação traz um
elo forte entre as suas idéias. Freire coloca que o amor é uma intercomunicação íntima entre duas consciências que se
respeitam, e completa dizendo que, ama-se na medida em que se busca comunicação com os demais. Este sentido de amor
é uma característica forte de unidade social baseada na comunicação como estruturante dos espaços sociais. Expressa o
conviver com as diferenças individuais e com a igualdade do todo, que preserva a identidade do grupo social.
O sentido do inacabado concebe a esperança, a busca por um estado de vir a ser, outra característica dos espaços sociais
complexos presente no pensamento freiriano, o contra ponto entre esperança e desesperança que coloca a educação como
instrumento de superação e posicionamento de luta, de busca por alternativas. Nesse contexto o homem aparece como um
ser de relações imerso na estrutura social e catalisador de seus processos sendo capaz de ações individuais e coletivas no
exercício da transcendência, capaz de atuar nas contingências mudando o espaço social e ao mesmo tempo mantendo a
identidade desse espaço.
A práxis pedagógica emerge nessa luta de contemplação de espaços sociais capazes de aprender e criar currículos
emergentes diretamente ligados às realidades locais abrigando conceitos formais generalizantes e específicos para resolver
problemas do seu contexto social, gerando a aprendizagem e a construção coletiva do conhecimento, fazendo com que a
educação esteja voltada para a formação de atores sociais munidos de criticidade, identidade e comprometimento com a
causa social, valorizando o ser em detrimento do ter, em um mundo complexo imerso em nuvens de probabilidades e infinitas
possibilidades.
REFERÊNCIAS
BURNHAM, Teresinha Fróes. Complexidade, multirreferencialidade e subjetividade: três referências para a compreensão do
currículo escolar. INEP/MEC Periódico: Em aberto, 1993.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Terra e Paz, 1979.
Currículo e Epistemologia | 127
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, Ed.3, 2008.
HERBERT, Nick. A realidade quântica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
LÉVY, Pierre. Que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
LUPASCO, Estéphane. O homem e as suas três éticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1986.
MORIN, Edgar. O método 3. Porto Alegre: Editora Sulina, Ed.4, 2008.
PIAGET, Jean. A Epistemologia Genética e a Pesquisa Psicológica. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974.
ROCHA, José Fernando. Origem e evolução do eletromagnetismo. In Origens e evolução das idéias da física. Salvador:
EDUFBA, 2002.
VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e linguagem. São Paulo: ícone/Edsup, Ed2, 1989.
WALLON, Henri Paul. Objetivos e métodos da psicologia., Lisboa: Estampa, 1975.
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Maria Auxiliadora de Resende Braga Marques
Centro Universitário Moura Lacerda
O CURRÍCULO E O PARADIGMA CIENTÍFICO: DISCUTINDO NOVAS CONCEPÇÕES
O contexto contemporâneo marca um conjunto de complexidades e incertezas, significantes no campo da educação superior, face as
constantes transformações na sociedade atual. Neste contexto, novas exigências são requeridas para a profissionalização de nível superior,
sustentadas pelas políticas neoliberais. A relevância de discutir o currículo e seus desdobramentos na atualidade tem como pressuposto a
crise do paradigma científico e a necessidade de buscar novos significados, novas relações entre os conteúdos técnico-científicos e os de
formação integral. É sabido que o predomínio do caráter cientificista e reducionista, norteado pelo paradigma da razão instrumental,
contribuiu para uma formação tecnicista, fundamentada pela lógica da aplicação prática. Entendendo o currículo, como processo social
contextualizado, espera-se que seus conteúdos, uma vez articulados entre si, possibilita concretamente, as fontes necessárias para a
relação ensino-aprendizagem, pela construção social do conhecimento e fundamentalmente pela sua contribuição na sociedade. Este texto
centra-se no ensino das ciências agrárias e nas contradições sociais, onde o currículo reflete o predomínio do paradigma da ciência
moderna, tendo como objetivo elucidar os impactos entre os conteúdos técnico-científicos e os conteúdos na área das ciências humanas.
Sendo assim, o universo das ciências agrárias apresenta historicamente, uma estrutura hierárquica e ideológica de um currículo organizado
de modo a responder aos avanços da ciência e da tecnologia. Como isso, facilitou uma visão técnica dos conteúdos, resultando na
fragmentação do conhecimento em partes, ou seja, na medida em que, prioriza disciplinas técnicas impossibilita o conhecimento integral.
Tal característica implica em novas abordagens epistemológicas, pois, tanto o conhecimento, como a formação devem ser norteados por
outros contornos, que devem responder pelas necessidades da sociedade e do planeta. Portanto, a busca de novos referenciais filosóficos
e epistemológicos para além do currículo técnico-científico, tendo em vista que ensino, e aprendizagem são desdobramentos do currículo,
este não deve excluir as concepções de mundo e de ciência. Ainda, articular as diferentes dimensões do ensino, pesquisa e extensão,
tornando o currículo indissociável nas suas partes. O grande desafio do século XXI é construir alternativas alicerçadas numa nova visão de
ciência, mundo e natureza, como base para avançar além do paradigma da ciência moderna.
Palavras-chave: Currículo, paradigma científico, epistemologia, educação superior
INTRODUÇÃO
O contexto contemporâneo marca um conjunto de complexidades e incertezas, significantes, face as constantes
transformações científicas e tecnológicas. Mudanças essas que afetam a sociedade e o planeta de modo geral, e
principalmente o campo da educação em geral, com destaque nessa comunicação para a educação superior. Neste contexto,
novas exigências são requeridas para a educação e seus desdobramentos, como a formação profissional, a construção da
ciência e principalmente a formação do indivíduo para o exercício da vida.
O século XX e o início do século XXI são marcados podem ser considerados como um período de muitas complexidades
devido a um ambiente de definições econômicas e políticas, fundamentalmente, no sentido de garantir o espaço hegemônico
da globalização e da legitimação da ideologia neoliberal. Com isso, a educação superior que até então já vinha atuando sob o
rigor da racionalidade instrumental instaurada no âmbito da modernidade, passa a adequar os sistema de ensino, segundo os
objetivos expostos pelas políticas neoliberais. Esses valores provocam grandes impactos entre os valores sociais, culturais,
filosóficos e epistemológicos do sistema educativo e os valores propostos pelo modelo dominante segundo concepções da
educação como processo de regulação, cujos dispositivos é alcançar resultados quantificáveis.
Currículo e Epistemologia | 129
A relevância de discutir o currículo e seus desdobramentos nesse contexto tem como pressuposto a crise do paradigma
científico e as conseqüências sociais expressas na sociedade contemporânea. Com essa preocupação, o objetivo dessa
comunicação é necessidade de buscar novos significados, novas relações entre os conteúdos técnico-científicos e os de
formação integral e crítica na perspectiva do indivíduo, sendo que esse último não faz parte da ênfase curricular. É sabido que
o predomínio do caráter cientificista e reducionista da ciência, norteado pelo paradigma da razão instrumental, contribuiu
fortemente para uma formação tecnicista, privilegiando os aspectos lógicos de um conhecimento de aplicação prática.
A partir das discussões contemporâneas sobre a crise da modernidade, a literatura especializada tem se dedicado, ao longo
do século XX desenvolver sob diferentes abordagens. Nesse contexto, a crítica sobre o paradigma da ciência moderna, abre
espaços fecundos para uma reflexão filosófica, epistemológica que orienta os olhares para outras dimensões mais amplas,
entendendo que a complexidade da sociedade e do planeta, exige também conhecimentos que considerem essa
complexidade, que se orientam pelas contradições e antagonismos. É esse o caminho que nos parece em foco, o estatuto
cartesiano da ciência, e a cientificidade do conhecimento, o reducionismo e o tecnicismo das disciplinas acadêmicas carecem
de novos olhares e o currículo aparece como objeto concreto desse desafio.
Considerar o currículo, como processo social contextualizado, espera-se que seus conteúdos, uma vez articulados entre si,
possibilitam concretamente, atender as fontes necessárias para a relação ensino-aprendizagem, a formação e a construção
social do conhecimento. Para tanto, implica pensar o currículo, sob condições que ultrapasse o caráter técnico do paradigma,
mas orientado sobre outras dimensões, seguidas da visão de mundo, de ciência e de homem, articulados.
Este texto centra-se no currículo das ciências agrárias, onde o predomínio do paradigma da ciência moderna e a ideologia
dominante nortearam a sua organização, com o objetivo de proporcionar uma formação técnica de aplicação prática. Sendo
assim, o universo das ciências agrárias que teve seu currículo organizado, inicialmente, segundo modelo norte-americano,
constituindo então um nexo entre um processo lógico e prático e ainda subsidiado pelos aparatos da ideologia dominante, de
acordo com determinados períodos históricos, quando ocorrem as reformas curriculares, dentro a estrutura de poder político,
econômico e social. Portanto, esse recorte não limita a nossa reflexão, pois a estrutura hierárquica e ideológica de um
currículo organizado de modo a responder aos avanços da ciência e da tecnologia no contexto da modernidade e pós-
modernidade, não limita apenas a esse campo da ciência, mas igualmente a todos os demais.
Considerar o campo do currículo em suas diferentes manifestações e conflitos, acadêmicos, sociais, culturais e
epistemológicos, é sempre desafiador, pela importância que ele assume no cerne da universidade e da escola de modo geral.
Essa temática tem despertado interesse de estudiosos e intelectuais que interessam pelo contexto da modernidade e seus
antagonismos e contradições sociais e ambientais, que desencadeia na relação da e universidade sociedade. Dentre a
diversidade temática extraída desse contexto, sob diferentes abordagens, a universidade se ocupa de espaço privilegiado no
debate intelectual, pela importância que a confere no contexto de um mundo de constantes mudanças e multicultural,
dominando por ideologias, políticas que interferem no campo epistemológico da universidade.
Portanto, o currículo situa-se nesse debate e abre discussão e reflexão para re-pensar sobre um novo paradigma
epistemológico que proporcione dimensões mais amplas à luz de conteúdos, experiências, contextos, enfim, os objetivos
educacionais para o desenvolvimento de uma sociedade complexa, e das inúmeras áreas das ciências, inscritas no
paradigma científico.
Como isso, facilitou uma visão técnica dos conteúdos, resultando na fragmentação do conhecimento em partes, ou seja, na
medida em que, prioriza disciplinas técnicas impossibilita o conhecimento integral. Tal característica implica em novas
abordagens epistemológicas, pois, tanto o conhecimento, como a formação devem ser norteados por outros contornos, que
devem responder pelas necessidades da sociedade e do planeta. Portanto, a busca de novos referenciais filosóficos e
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epistemológicos para além do currículo técnico-científico, tendo em vista que ensino, e aprendizagem são desdobramentos do
currículo, este não deve excluir as concepções de mundo e de ciência. Ainda, articular as diferentes dimensões do ensino,
pesquisa e extensão, tornando o currículo indissociável nas suas partes. O grande desafio do século XXI é construir
alternativas alicerçadas numa nova visão de ciência, mundo e natureza, como base para avançar além do paradigma da
ciência moderna.
É possível identificar na literatura especializada em torno do paradigma instrumental, características que apontam sobre a
impossibilidade de explicar as contradições sociais e principalmente, os impactos ambientais, os quais não podemos excluir
do debate, e chamar a atenção sempre que possível. Esse mecanicismo determinista aparece na contemporaneidade
fundado nos e limites teórico-metodológico, filosófico-epistemológico e ético e sensibiliza intelectuais e cientistas para a
construção de um novo paradigma. Nesse sentido, os estudos sobre currículo têm se aprofundado e dedicado sobre estudos
nessa direção.
Conforme anunciada, a temática faz parte da nossa trajetória, insere-se como desdobramento de estudos a universidade, a
formação profissional e a construção do conhecimento, em que os objetivos norteadores foram estudar e elucidar as
características do conhecimento produzido na universidade, e da formação profissional, no curso de ciências agrárias. A
metodologia qualitativa possibilitou a compreensão dos espaços complexos e antagônicos da universidade, cujas
representações se efetivam no ensino, pesquisa e extensão. Esse estudo privilegiou-se no primeiro momento a formação
profissional, buscando a elucidação do caráter tecnicista da formação e num segundo, caracterizou-se na compreensão do
paradigma instrumental que orienta a construção do conhecimento. Portanto, segue-se com a preocupação de elucidar a
natureza do currículo, a partir do paradigma científico, numa perspectiva de contribuir para a busca de novas concepções que
possam ultrapassar os limites do paradigma cientifico a concepções inovadoras e fundamentais para a humanidade e planeta.
EM BUSCA DE UMA CONCEPÇÃO DO CURRÍCULO
Iniciando pelo conceito clássico do paradigma, o termo vem do grego (parádeigma) significa modelo e padrão a ser seguido.
Também é pressuposto filosófico, uma matriz teórica, que origina de um conhecimento científico, incluindo leis, aplicações e
experimentais, baseadas em métodos e valores que vão servir de referencial para a investigação científica.
Não como falar de paradigma sem recorrer a teoria clássica de Khun (1970) que revela ser o paradigma uma constelação de
conceitos, valores, percepções técnicas que compartilhadas pela comunidade científica organizam o conhecimento e provoca
transformações.
Gamboa (1996) esclarece com propriedade no campo da filosofia, que:
O conceito de paradigma foi introduzido na linguagem epistemológica por Khun que o utilizou para explicar o processo
histórico e não acumulativo das ciências, que avançam através das “revoluções científicas” que acontecem quando a ciência
normal não dá conta de todos os fenômenos descobertos, surgindo então a crise a qual só é solucionada com a formação de
uma nova estrutura científica ou a criação de um novo paradigma cientifico que substitui o anterior. (p. 53).
Gamboa amplia o conceito entendendo como lógica reconstituída, ou como maneiras de ver, decifrar, analisar e articular os
elementos de uma determinada realidade. (1996, p.54).
Outra contribuição importante nesse campo paradigmático é de Boaventura Santos, a partir da teoria Khuniana é que:
O conhecimento científico não cresce de descontínuo e opera por saltos qualitativos, que, por sua vez, não se podem justificar
em função de critérios internos de validação do conhecimento científico [...] Os saltos qualitativos têm lugar nos períodos de
Currículo e Epistemologia | 131
desenvolvimento da ciência em que são postos em causa e substituídos os princípios, teorias e conceitos básicos em que se
funda a ciência até então produzida e que constituem o que Khun chama de “paradigma”. (1989, p.150-151).
Esses significados que se justificam pela função filosófica e epistemológica que são fundamentais para compreender os
desdobramentos da ciência moderna, onde o paradigma científico encontrou seu espaço de domínio e apropriação do mundo,
do homem e da ciência.
Vale ressaltar aqui a importância do conceito de totalidade, devido a sua importância epistemológica e metodológica, portanto,
não podem comprometer tais concepções, e submetê-las ao uso restrito e fragmentado no entendimento da realidade.
(GAMBOA (1996, p.27). que a tal agrupamento falta ainda o essencial: a totalidade e a concreticidade. p..35
Portanto, a busca de uma definição de Currículo, não será suficiente para encaminhar a discussão, ou melhor, reflexão, tendo
em vista que se trata de uma questão difícil de responder, mas que expressa muitas perspectivas e por isso nos impulsiona a
continuidade da procura pela sua compreensão.Conforme nos diz os dicionários, a palavra “currículo” vem do latim, com o
significado de um percurso a ser seguido por meio de estudos, numa instituição de ensino. Com efeito, qualquer que seja a
definição do termo, do ponto de vista do conceito, ela se encontra, em significados e objetivos, dentro da complexidade que
se apresenta, os estudos sobre currículo, apresenta muito mais perguntas que respostas, mas sim, com perguntas: o currículo
é o que se deve ensinar e aprender ou é também o que se ensina e aprende na prática? O currículo é o que se deve ensinar
e aprender ou inclui também a metodologia, métodos e processos de ensino? O currículo é um conjunto de conteúdos
determinados, delimitados e fechados que se aplica com objetivo próprio? São questões que podem ser respondidas se
entendidas no sentido de um currículo essencialmente técnico e delimitado para um objetivo único, ou seja, aquele de
formatar o aluno para resultados.
Prosseguindo Moreira (2001) fala sobre aqueles que entendem como conteúdos, outros como experiências de aprendizagem,
outros como plano, objetivos educacionais, e na atualidade como “sinônimo de avaliação”. (grifo meu). Considerando que
todas essas apresentações coincidem com o que deve ser o currículo, concordamos com Moreira no seu entendimento,
sendo a melhor ou ainda provisória a concepção de “admitir a importância e a necessária articulação dos diferentes
elementos enfatizados em cada uma das concepções apresentadas”. Do nosso ponto de vista, acrescentamos que seja qual
for a concepção utilizada, nenhuma delas terá sucesso se não entender qual o sentido do currículo, para que ele serve, a
quais os objetivos devem ser alcançados e para quem? E isso envolve outras relações, que vão além do currículo como
“instrumento” ou “ferramenta” que viabiliza os conteúdos, planos, experiências, etc.
Na atualidade depara-se com um interesse maior pelas questões do conhecimento, da formação de professores e das
questões curriculares sob diferentes dimensões e perspectiva de análise. Esse interesse é motivado principalmente no âmbito
das contradições que a ciência moderna teria provocado no desenvolvimento da sociedade.
A pergunta que se coloca para a educação é como ela estabelece a relação entre o saber científico e o poder popular, entre a
cultura dos especialistas e o mundo sem entregar-se aos encantos do domínio ou do romantismo. Como encaminhar a
exigência da democratização do ensino quando se sabe de antemão que poucos poderão efetivamente participar das
decisões. O sistema educativo se vê diante do dilema de orientar-se para um saber teórico de elite que não terá serventia
para a grande maioria que fatalmente está fora de qualquer processo decisório ou para um saber prático, de segunda ordem,
que a exclui de antemão desse processo. (GOERGEN, 1996, p.24).
Currículo e Epistemologia | 132
Nessa perspectiva é importante situar que a construção dos significados que vão formando o contexto da razão moderna,
permite compreender como os interesses do conhecimento, da ciência vão em direção aos interesses do mercado capitalista,
e os interesses emancipatórios, dos quais a sociedade em geral abriga, não ultrapassam da dominação pela razão técnica.
(...) durante boa parte do século XX, a área do currículo têm dedicado uma boa dose de sua energia à busca de uma coisa
específica: um conjunto geral de princípios que oriente o planejamento (...) para criar um método mais eficiente de elaboração
dos currículos. (APPLE 1989, p.28).
Nesse sentido Santos (1989) aponta sobre as diferenças possíveis entre as ciências naturais e as ciências humanas, cada
uma domina o seu espaço, o que constitui um obstáculo epistemológico para o avanço do conhecimento científico nas duas
áreas, nesse caso, as ciências humanas e as ciências naturais.
Nas últimas décadas cresceu o debate e o desenvolvimento de pesquisas sobre questões curriculares, o que muito tem
contribuído para compreender o caráter norteador do paradigma curricular. Segundo Mckernan (2009, p.26) o crescimento no
estudo do currículo foi uma recente retórica do desenvolvimento profissional do professor. Muitos dos tomadores de decisão
demandam o reconhecimento de que o currículo é desempenhado pelo professor na sua efetivação, em sala de aula e nas
atividades inerentes. “Currículo é Omo uma biblioteca à qual disciplinas são constantemente adicionadas, mas poucas são
realmente retiradas” (MCKERNAN, 2009, p.27).
A pergunta se os currículos do ensino superior preparam profissionais para lidar com as constantes mudanças no campo da
tecnologia e aptos a desempenhar os desafios do mercado? Concebe também a universidade como organização ou
prestadora de serviços. A formação dos indivíduos, a reflexão crítica sobre os problemas da sociedade e a democratização
dos saberes e do conhecimento aguardam por outro segmento.
A importância de estudar o currículo num sentido epistemológico para sua prática, mobiliza também a ação docente, ou seja,
a prática docente sobre os conteúdos curriculares é fundamental na construção de uma epistemologia do currículo, atribuir
relações entre conteúdos, sala de aula e prática docente, numa relação dinâmica.
Num tempo de revolução paradigmática, é preciso perceber como os ambientes educacionais são afetados, e é nesse
contexto que o debate precisa acontecer. Como decorrência confronta os valores instituídos historicamente, no âmbito da
modernidade, onde paradigma instrumental delineou os modos de aprender, ensinar e organizar os saberes na educação em
geral. Com isso, selecionamos para essa comunicação uma reflexão sobre o currículo, na tentativa de apontar algumas
conseqüências do paradigma reducionista que norteou a sua estrutura e constituiu uma ordem prática e disciplinar dos
conteúdos.
[...] o que se entende por currículo? É uma missão, por um lado, complexa porque existe uma grande diversidade no
pensamento curricular e, por outro, fácil, na medida em que o currículo é um projeto de formação (envolvendo conteúdos,
valores/atitudes e experiências), cuja construção se faz a partir de uma multiplicidade de práticas inter-relacionadas através
de deliberações tomadas nos contextos social, cultural (e também político e ideológico) e econômico. (PACHECO, 2005 p. 41-
42).
Assim, o currículo é um processo que representa o cerne da universidade, por isso, é complexo, que engloba diferentes
interesses de acordo com a realidade onde se insere, e para a sociedade que espera resultados.
Essas colocações abrem espaços para a construção de novos olhares e elucidam novas perspectivas de novos paradigmas
que sejam capazes de se superar as dicotomias e antagonismos que participaram da concepção instrumental da ciência e a
utilizou como base para fundamentar todas as possibilidades da educação em geral.
Currículo e Epistemologia | 133
Ao discutir as questões curriculares é preciso compreender sobre os valores que o sustentam no contexto da educação. Por
isso, buscamos dar realce ao conceito de paradigma e veicular as questões do currículo, seus predomínios e os pressupostos
que orientam a sua prática no ambiente da universidade.
É possível perceber como essas concepções são importantes e nos ajudam a compreender a universidade e seu papel na
educação, cujas contradições sociais são explicitadas nesse contexto de crise de paradigma. Essa característica faz parte de
um novo modo de civilização, modernidade, tecnologia e conhecimento científico que transformam e reorientam os modos de
domínio da natureza, do conhecimento científico e, sobretudo da formação dos indivíduos, sob controle de uma racionalidade
científica.
As conseqüências dessa orientação do paradigma da ciência moderna, tem sido tratada bastante discutida com ampla
produção acadêmica. Como podemos sintetizar, esse modelo contribuiu fortemente para converter todos os problemas para o
âmbito da técnica e do conhecimento cientifico, em detrimento das questões sociais, ambientais e da vida humana. Como diz
Santos o conhecimento é estruturado e organizado com caráter disciplinar “galerias por onde os conhecimentos progridem ao
encontro uns dos outros” (1987, p. 47), Esse é o fio condutor do debate sobre a crise do paradigma científico, podendo ser
melhor, esclarecido no campo das ciências naturais, as quais seguiram com rigor a receita desse paradigma, atingindo a
hegemonia nos resultados da pesquisa científica.
Portanto, trazendo para o campo do currículo, e o impacto na articulação entre disciplinas e conteúdos, encontramos uma
descrição técnica e dicotômica que estabelece cada uma pautada no seu valor de base econômica e técnica, infiltrando-se
valores que permitam uma formação para uma prática voltada para a competivididade, produtividade e capacidade técnica,
termos esses que norteiam o paradigma neoliberal. O cumprimento das disciplinas integrantes da grade curricular, que
estabelece conteúdo, carga horária e tempo de execução. Trata-se, em princípio, de formar o profissional e habilitá-lo a uma
profissão, nas condições de aceitabilidade expressas no contexto do mercado e de modo especial, para as carreiras da
ciência e da técnica, conferidas pelas especializações, mestrado e doutorado, que realizam suas atividades de ensino e
pesquisa sob a mesma concepção.
Seja qual for o significado, o resultado será o que convencionalmente designamos chamar é que o currículo é o principal
responsável pela formação profissional. Qual a formação? Para quem formar? A quem serve os conhecimentos adquiridos?
São questões que devem fazer presentes na orientação do currículo. Essa também, não esclarece uma concepção de
currículo, se não for submetida ao esforço de busca de significados, e para responder sobre a formação, depende da
totalidade da função epistemológica fundamental para entender as relações entre filosofia e a ciência. O significado para a
formação envolve compreender a concreticidade das relações entre conhecimento, indivíduo, mundo, sociedade, planeta, que
de imediato, seria suficiente para compreender o papel do currículo, para a formação.
No complexo de interesses dicotômicos entre a formação requerida pela sociedade capitalista e os interesses da
sociedade em geral, situa-se o currículo como “território de disputas culturais”.(Moreira, 2001, p.5). Nessa direção e de acordo
com mudanças estruturais na sociedade os estudos no campo do currículo ganham espaços e travam lutas sob as mais
diversas perspectivas que ampliam o campo temático adquirindo diferentes desdobramentos de abordagens e visões.
Para Goodson (2005, p.28), a luta para definir currículo envolve prioridades sócio-políticas e discurso de ordem
intelectual, e completa que os conflitos curriculares do passado precisam ser retomados.
Sem dúvida, muitos são os fatores que interferem de forma positiva e negativa nas propostas de mudanças e definições,
dependentes do contexto político-econômico, que interferem na estrutura interna de poder e também na direção ideológica
que legitima a organização dos conteúdos curriculares. Esse contexto é revelador, define e re-orienta os caminhos das
Currículo e Epistemologia | 134
atividades pedagógicas da universidade, e como vimos elucidando no decorrer dessa comunicação, é a força do paradigma
que norteiam tais decisões, de acordo com interesses de um momento histórico determinado.
As mudanças curriculares giram em torno de alteração da ordem ou inclusão de novas disciplinas que respondam ao aumento
de informações produzidas na sociedade. Hoje, por exemplo, não há curso de graduação, em qualquer área, que não
argumente a necessidade de incluir em seus currículos, disciplinas de informática. (CUNHA,1998, p.198).
Sabe-se que na medida em que novas demandas ocorrem na sociedade há conseqüências diretas no setor produtivo e a
universidade é convocada no sentido de adequar às novas exigências, e o faz concretamente, alterando seus currículos. Essa
prática tem ocorrido quase constantemente, tendo em vista que as transformações no campo da ciência e da tecnologia
ocorrem rapidamente. Para Cunha (1998) “há casos que, num mesmo período um curso conviva com três propostas
curriculares em andamento. Quase nunca se chega a uma situação satisfatória”(p.198).
Essa colocação expressa quantitativamente o número de disciplinas dentro de uma estrutura de poder que estabelece:
carga horária que confere ao currículo mínimo a formação superior necessária. Trata-se, de uma articulação entre grupos de
poder e interesses políticos que submetem o currículo a determinados objetivos.
A compreensão dessas concepções vão cimentando e ampliando os nossos olhares e percepções sobre a complexidade da
questão.e situá-las no campo das mudanças curriculares e como elas refletem a racionalidade da ciência moderna. A inclusão
de novas disciplinas e aumento ou diminuição de carga horária são alternativas concretas, porém não representam a
preocupação com a formação geral do estudante ou a formação para atender demandas sociais da sociedade, mas sim a
certeza de um profissional técnico-científico, em função do fracionamento do conhecimento e da supervalorização que o
mercado de domínio específico, porém aumenta o custo social e humano da formação.
Habermas ao tratar das questões situadas no âmbito da modernidade questiona sobre o tipo de razão que predominou,
dominou e controlou o mundo e tudo a sua volta, na perspectiva reducionista do paradigma moderno – denominado por ele
como razão instrumental. Portanto, sendo a educação também um desses espaços onde encontra presente esse modelo de
razão, Habermas propõe uma outra razão, denominada por razão comunicativa a qual vai privilegiar os aspectos humanos, a
práxis social, ou seja, os aspectos abandonados pela razão instrumental.
Dentre todas as acepções referentes ao currículo, pode-se dizer que trata de uma estrutura, que confere a escolaridade,
justificada pelos aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos, dependendo do sentido de paradigma que conduz a
diversidade da análise teórica. Como nos lembra Habermas sobre os interesses que constituem os saberes, o conhecimento,
a concepção de currículo transita entre dominantes e crítica, isso implica que a estrutura curricular é composta por
argumentos técnicos e teóricos, porém, dependentes do sentido epistemológico do próprio currículo, envolvendo também a
função da escola e dos professores.
As regras estabelecidas no jogo de interesses entre universidade e mercado é estratégico na organização e controle e nas
delimitações de conteúdos necessários para o currículo. Chauí, traduz essa relação:
Adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou seus currículos, programas e atividades para garantir a
inserção profissional dos estudantes no mercado de trabalho. Entre os vários caminhos trilhados, um deles foi decisivo: a
chamada parceria com as empresas, na medida em que estas não só asseguravam o emprego futuro aos profissionais
universitários e estágio remunerado aos estudantes, como ainda financiavam pesquisas, diretamente ligadas a seus
interesses. (1998, p.6).
Currículo e Epistemologia | 135
Se de um lado, acredita-se que o conhecimento científico, contribuiu fundamentalmente para os últimos eventos da ciência,
por outro lado, acirra-se o debate, tendo como ponto de partida a complexidade de um contexto de dicotomias, e paradoxos
onde se inserem o paradigma científico da modernidade e o paradigma da complexidade (Morin, 1996) e o paradigma
emergente (Santos, 1987) que sinalizam a superação dessas distinções dicotômicas.
Com isso, a universidade assume o compromisso com um processo educativo, delimitando o saber em perspectivas mais
adequadas para que o aluno obtenha o “treinamento” requerido pelos processos produtivos, e o faz operacionalizando o
currículo da melhor forma possível. Com isso grandes questões científicas e tecnológicas se ocuparam das áreas do
conhecimento, seja, no campo das ciências naturais como também, nas ciências humanas e sociais.
Habermas ( explicita no chamado Discurso filosófico da modernidade, apresenta uma investigação sobre a modernidade,
como projeto inacabado, o qual vai orientar o debate crítico da racionalidade moderna a propostas emancipadoras, tendo em
vista algumas possibilidades de desfazer os pressupostos de dominação da vida social pelas promessas iluministas de
liberdade.
É nesse contexto que o tema currículo vai adquirindo um campo fértil de discussões sob diferentes enfoques, abordagens e
contextos buscando compreender as relações teórica e prática, sua lógica e natureza técnica, Entretanto, vale ressaltar que
cada área do conhecimento identifica-se com o debate segundo a especificidade das disciplinas curriculares, voltadas para os
objetivos a que se propõem e ao interesse a que se destinam.
O referencial teórico sobre o currículo, demonstra que as tendências paradigmáticas se organizam e legitimam de acordo com
interesses políticos, econômicos e ideológicos que levam os conteúdos e disciplinas de um lado para outro, até que seus
interesses entram em acordo com a práxis, instituída no âmbito dos interesses da universidade, optando pelo modelo de
currículo técnico-linear. Esse modelo, tem sua ênfase centrada no controle de disciplinas, ou seja, prioriza aquelas de valores
básicos, eficiência, produtividade, resultados pré-determinados.
Os currículos escolares se configuram como mera justaposição de disciplinas autosuficientes, grades nas quais os
conhecimentos científicos reduzidos a fragmentos desarticulados se acham compartimentados, fechados em si mesmos e
incomunicáveis com as demais regiões do saber. A elaboração cognitiva se faz em negação das complexidades do mundo da
vida, do engajamento humano e da questão dos valores, questão política, em que implica. (MARQUES, 1993, p. 106).
Coerente a esses propósitos a universidade situa-se no contexto da modernidade, orientada pelo paradigma científico, no
papel de desenvolver e dar seqüência aos pressupostos estabelecidos para o mundo acadêmico. Desse modo, a
universidade deveria servir aos interesses técnicos coerentes a ascendência das mudanças científicas e técnicas. Entre
outras questões subjacentes no contexto da universidade, o currículo é conceituado como a mola propulsora de qualquer
instituição de ensino, não único do ensino superior. Por essa razão, muitas são as concepções de currículo que vão se
ocupando do espaço teórico e prático de forma a buscar melhor adequação aos propósitos que destinam no campo
educacional, como aquele que controla e constitui o elenco de disciplinas, em diferentes abordagens teórica e prática,
legitimam a formação do indivíduo, conferindo a este uma profissão.
Portanto, ao pensar formação e conhecimento, decorre a indagação sobre a relação teórica e prática que legitimam a
formação e o conhecimento, ou seja, a estrutura educacional responsável. Dentre outros aspectos balizadores e que também
contribuem para o processo do conhecimento e da formação, destacamos o currículo, como processo formativo, orientado por
objetivos precisos e sob uma organização de disciplinas programadas sistematicamente, que se concretiza no espaço da sala
de aula, conferindo ao ensino-aprendizagem o desempenho de resultados quantificáveis.
Currículo e Epistemologia | 136
Nesse contexto, entendemos que essa concepção de aprendizagem conseqüente de uma concepção de currículo
veiculada a essa dinâmica estrita a uma nova concepção que se coloque a aprendizagem do aluno a construções mais
relevantes para o mundo da vida e da cultura articulados nas relações teoria e práticas curriculares. Portanto, trata-se, de fato
de uma nova visão dos conteúdos curriculares, situados na complexidade do processo educativo, bem como das relações
sociais subjacentes entre a universidade e sociedade. Essa dimensão coloca a universidade na condição responsável na
medida que cabe a ela proporcionar essa mudança, instalando-se novas perspectivas no sentido de ir além desses
reducionismos, alicerçados no paradigma científico da modernidade.
As relações entre universidade, educação e formação têm movimentado o debate no âmbito das políticas neoliberais as
quais contemplam a lógica do mercado, convertendo valores culturais, sociais, ambientais, em aspectos econômicos. Trata-
se de estratégias que impõe às universidades um modelo padrão de formar profissionais aptos a atender as demandas do
mercado. Neste sentido, o ensino e a pesquisa – a ciência e a formação são colocadas na era da globalização, como
necessárias (Marques, 2009). Tendo em vista a necessidade de estabelecer a relação entre universidade e sociedade
globalizada o sistema educacional, se articula e subordina a produção acadêmica às necessidades estabelecidas pelo
mercado (Gentili, 1996:24).
Morin (1996) anuncia um projeto de reforma do pensamento para entender a complexidade dos fenômenos humanos de
modo geral, e sem dúvida, re-pensar o paradigma que orienta a universidade. O autor critica o pensamento
compartimentado, fragmentado, parcelar, monodisciplinar, a um pensamento contextualizado, globalizado, no sentido do
diálogo entre todo partes e parte todo, o entrelaçamento dos diversos fatores naturais, biológicos, culturais que se interligam
entre caos e ordem. Chama a atenção para a relevância do diálogo entre as ciências humanas e ciências exatas, enfim,
religar tudo o que separamos em toda a história da modernidade, na obediência aos modelos, leis, métodos e técnicas.
Embora os adeptos a concepção pós-moderna, na área do currículo, entendam que essa tendência do paradigma científico
esteja superada, as contribuições críticas advindas da reflexão crítica apontam como desafio o enfrentamento dos desafios
em relação a cada tendência que aponta possibilidades de reformas curriculares. A Teoria do Currículo demonstra que na
maioria das vezes as reformas servem para fortalecer o paradigma existente, distanciando das dimensões de caráter
humanístico no âmbito do indivíduo e do planeta.
A prática de alterar currículos tem sido constante no ensino superior, motivada, especialmente, pela expansão do
conhecimento. Quase nem bem se desenvolve uma proposta curricular reformada e já os agentes acadêmicos estão
sugerindo novas alterações. Há casos que, num mesmo período, um curso conviva com três propostas curriculares em
andamento. Quase nunca se chega a uma situação satisfatória. (CUNHA, 1998, p.198).
Entendemos que é na universidade que acontece o diálogo entre saberes, pensar e criar, agregar valores culturais, descobrir
o sentido das coisas e do próprio saber, aprender o sentido da pergunta, desenvolver o raciocínio crítico e o sentido de
cultivar o valor político do conhecimento e da formação da consciência e da reflexão crítica do aluno. Entendemos que a
universidade é esse espaço de transformação, em todos os campos do saber vinculados à formação do homem, e não
simplesmente, um espaço de reprodução dos conteúdos, estabelecidos pelo currículo, num sentido de valor utilitário e de
aplicação imediata.
CONCLUINDO SEM CONCLUIR
Currículo e Epistemologia | 137
Os currículos refletem os princípios da ciência moderna e, como parte do saber pedagógico, estruturam-se de forma
fragmentada, induzindo uma avaliação do mesmo modo: os alunos devem devolver o produto adquirido objetivamente,
preferencialmente em forma de testes de múltipla escolha. Estes não admitem a interferência do pensamento e da
experiência dos alunos e do professor. Não há meia resposta. Ou está certo ou está errado. Celebram a racionalidade,
separando o ato pedagógico de sua execução.
O currículo assume o caráter formativo do aluno, numa visão tecnicista.e pode ser entendido como um sistema fechado, com
critérios pré-estabelecidos, com objetivos que visem a produção, de modo controlador e com bases no rigor do modelo,
normas e regulamento.
As disciplinas de orientação social e humanista presentes no currículo em sua divisão “complementar” não influenciam de
nenhum modo a percepção do aluno, elas desaparecem na carga horária, nos enfoques diante dos interesses paradigmáticos
que sustentam as disciplinas de formação profissional.
Acredita-se que é no processo educativo, da escolarização que o homem adquire o conhecimento, amplia seus horizontes
culturais, sociais e humanos, promove uma vivência com base na ética, por meio de saberes organizados, articulados e
criticamente refletidos.
Portanto, a busca por novas concepções para a investigação do currículo como processo educativo, sob novos “sentidos”
seja, pelo caminho da complexidade, totalidade e concreticidade do conhecimento e da formação do indivíduo, novos campos
de estudos, novos olhares têm provocado uma contínua necessidade de novos paradigmas. Nesse sentido, parece-nos
convencido de que novas reflexões podem, quem sabe alcançar as concepções curriculares para além do paradigma
científico.
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Currículo e Epistemologia | 139
Maria Roseli Gomes Brito de Sá & Maria Antonieta de Campos Tourinho
Universidade Federal da Bahia
CURRÍCULO, EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR E COMPREENSÃO: POSSIBILIDADES
EM SALA DE AULA
Este estudo procura estabelecer conexões entre currículo e compreensão, tomando como referência a proposta de uma epistemologia do
educar, cujas bases se encontram na hermenêutica fenomenológica. Tal referencial traz a possibilidade de compreender, mais que
encontrar explicações definitivas para, a interioridade dos processos curriculares que se desenvolvem nos vários cenários visitados e
vividos no decorrer do trabalho das autoras como pesquisadoras e como professoras nos diversos níveis de ensino. Outra possibilidade é a
de discutir a quebra de hierarquia de saberes, na ambiência do campo existencial, bem como de evidenciar a complexidade, abrangência e
amplitude do currículo em seu acontecer. O currículo é considerado neste estudo como fenômeno/processo complexo, o que requer uma
interpretação/compreensão a partir de referências múltiplas, da idéia de que as coisas não estão claramente definidas, mas comportam uma
opacidade, aí incluídos os percursos curriculares dos sujeitos em formação. Nesse campo em que as relações acontecem não numa
unidade pensada previamente, mas num fluxo desierarquizado de construção de sentido no qual pensar e ser são o mesmo, torna-se
possível a compreensão, tema trabalhado neste texto por meio do relato do desenvolvimento de uma disciplina junto a alunas de mestrado
e doutorado em educação. A compreensão foi tematizada nesse curso a partir de uma dimensão ontológica do termo, com o aporte da
hermenêutica de Wilhelm Dilthey e de Martin Heidegger em contraponto com a dimensão cognitivista da taxionomia de Benjamim Bloom,
criando uma rede de conhecimentos sobre o tema por meio das ideias desses teóricos devidamente articuladas com as ideias das
participantes do curso, privilegiando seus temas de estudo e suas práticas pedagógicas. As experiências e atualizações possibilitadas
ficaram evidenciadas nos ensaios de alunas, todos com possibilidades de ter ressonâncias nas discussões e atuações no âmbito da
educação básica. A partir da adoção de uma epistemologia “não verdadeira” para o currículo, pautada em novos significados para os
conceitos de logos e episteme, como o é a Epistemologia do Educar neste estudo, pôde-se concluir que é possível ao currículo em seu
acontecer, promover atualizações que vão além do compreender adstrito ao entendimento de um assunto para uma compreensão de
mundo e da própria existência no mundo.
PALAVRAS-CHAVE: currículo - compreensão – epistemologia do educar
INTRODUÇÃO
Currículo é um movimento em que as possibilidades se atualizam e cada possibilidade realizada é um
acontecimento, cuja temporalidade é finita. As atualizações são singularidades de cada percurso formativo.
(Maria Roseli Gomes Brito de Sá)
Currículo, em uma das suas interfaces, é a possibilidade da pessoa compreender a dimensão individual e a dimensão coletiva
de sua existência, tendo como referência, entre outras, o conhecimento historicamente construído pela humanidade. (Maria
Antonieta de Campos Tourinho).
As frases tomadas como epígrafe para abrir este texto, formuladas pelas autoras em preleções anteriores, cada uma tendo
como referência mais próxima o seu campo de estudo, expressam a complexidade, abrangência e amplitude com que lidamos
Currículo e Epistemologia | 140
com o Currículo. O interesse pelas conexões entre currículo, epistemologia do educar e compreensão se vincula às pesquisas
desenvolvidas no âmbito da Linha de Pesquisa Currículo e (In)formação, que tiveram como inspiração primeira o nosso
trabalho como professoras da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, no qual lidamos basicamente com
salas de aula, seja na Educação Básica, seja no âmbito da Graduação e da Pós-Graduação.
Nesses diversos cenários, cada um em sua singularidade, pessoas pensam, aprendem, ensinam, vivem, existem,
compreendem... Como trabalhar com essa diversidade, com as (des) articulações, idiossincrasias, vícios e virtudes e também
com as possibilidades desses cenários? Esses questionamentos, desenvolvidos em nossas andanças como professoras, têm
nos levado à busca de referências que possibilitem compreender, mais que encontrar explicações definitivas, os processos
que aí se desenvolvem, considerando-os como “atos de currículo” e enfatizando a aula “como um cenário socialmente
importante para a formação”, como “um microcosmo complexo, onde acontece grande parte dos determinantes da qualidade
dos processos e produtos educacionais da sociedade contemporânea” (MACEDO, 2007, p. 119).
Em nossos estudos, consideramos a complexidade e a multirreferencialidade do currículo e dos percursos formativos que o
mesmo tem por função subsidiar e procuramos dar relevo aos processos “miúdos” (BERTICELLI, 2005) que o configuram em
seu cotidiano, notadamente na sala de aula, dimensão do currículo privilegiada neste texto, por ser aquela em que se
evidencia seu a-con-tecer (CARVALHO, 2008); em que se desenvolve (ou poderá se desenvolver) a compreensão, conceito
com o qual trabalhamos aqui, com o aporte da Epistemologia do Educar.
Para expressar a complexidade, abrangência e amplitude com que lidamos com o Currículo, conferimos ao mesmo um
tratamento hermenêutico fenomenológico. Por que essa escolha? Quais as possibilidades de uma hermenêutica do currículo?
Em primeiro lugar, estamos interpretando o currículo como fenômeno/processo complexo, o que significa olhar por diferentes
óticas; ler através de diferentes linguagens; compreender por diferentes sistemas de referências, “acompanhar o processo,
compreendê-lo, apreendê-lo mais globalmente através da familiarização reconhecendo a relativamente irremediável
opacidade que o caracteriza”. (FRÓES BURNHAM, 1993, p. 5).
Essa concepção põe em evidência uma vocação interpretativa, o encaminhamento para uma compreensão hermenêutica do
fenômeno/processo estudado, o que justifica o tratamento hermenêutico conferido ao texto no qual procuramos lidar mais com
a plasticidade da compreensão do/no currículo que analisar sua estrutura, visar não só o conteúdo como também a atitude,
considerando que nessa atitude descortinam-se os sentidos que vão conferir conteúdo ao estudo. A hermenêutica então
representa uma tentativa de buscar os sentidos da interioridade do movimento curricular, pretendendo ir além da cientificidade
do explicar para a construção de uma compreensão articuladora.
A hermenêutica vem percorrendo caminhos múltiplos, ao longo de sua história, habitando círculos teológicos, filológicos,
literários e cada vez mais, os antropológicos e filosóficos, chegando Heidegger a considerar, segundo Palmer (1997) que a
própria filosofia é (ou deveria ser) hermenêutica, face a vocação interpretativa inerente ao ser. Este estudo recorre à
hermenêutica para promover novas interpretações ao mundo do currículo, a partir de referências que possibilitem
compreender, mais que encontrar explicações definitivas para, os processos que aí se desenvolvem, na tentativa de aprender
com as pessoas a quem nos cabe “ensinar”.
Assim, a proposta deste estudo é relatar, a partir de um contexto interpretativo, acontecimentos (atos de currículo) relativos ao
desenvolvimento de um curso junto a alunas de mestrado e doutorado cujo tema foi a compreensão e a praxis pedagógica,
com o aporte da epistemologia do educar.
POR UMA ABORDAGEM DA ITINERÂNCIA DO/NO CURRÍCULO
Currículo e Epistemologia | 141
Nas nossas itinerâncias como professoras/pesquisadoras, temos procurado estar atentas a cada referência, seja em
disciplinas cursadas, nas leituras realizadas, nas conversas com colegas, em sessões de estudo individuais ou coletivas, em
reuniões dos grupos de pesquisa, na sala de aula com os alunos, como de resto em cada instante do cotidiano, a fim de ir
tecendo os fios da compreensão desta rede complexa que é o estudo do currículo. Nesse sentido, dialogamos com o texto de
Roberto Sidnei Macedo (2000, 2002) que aborda a itinerância/errância do currículo para nos aproximar da formulação de uma
concepção de currículo que contemple o movimento complexo de diferentes instâncias que o configuram, numa perspectiva
mais longitudinal (embora não diacronicamente previsível e fechada), tendo como cerne a errância histórica.
Em seus textos, Macedo (2000, 2002) critica a concepção de currículo que pretende “gerenciar mentes” e prescrever
itinerários a serem inscritos em trajetórias escolares cientificamente controláveis, a qual orientou o pensamento e as práticas
curriculares da escolarização ocidental, principalmente a americana e procura construir uma concepção de currículo que
busque coletivizar/cultivar a dialogicidade na incerteza, no conflito, na possibilidade. Utilizando-se da metáfora da crisálida,
evoca a condição de possibilidades da existência do ser, que em sua facticidade desenvolve a errância e não uma trajetória
linearmente traçada.
Essa visão sobre a errância do currículo, a partir do pressuposto da complexidade da própria realidade vem sendo trazida
para o campo pelos estudos sobre multirreferencialidade, iniciados, segundo Barbosa (1998a) por Ardoíno e Berger, em
pesquisas realizadas na Universidade de Paris 8 e já se constituindo, aqui no Brasil, em uma área de estudos em currículo
bastante significativa.
Os estudos sobre multirreferencialidade (ARDOINO, 1998; BARBOSA, 1998a, 1998b; BORBA, 1997, 1998; FRÓES
BURNHAM, 1993; 1998; FAGUNDES e FRÓES BURNHAM, 2002; LAPASSADE, 1998; MACEDO, 1998, 2000, 2002, 2007),
possibilitaram uma ampliação da compreensão de currículo. O conceito de multirreferencialidade está intimamente imbricado
no conceito de complexidade (MORIN, 1984; 1986; PETRAGLIA, 1995). Incorporar esses conceitos ou, mais que isso, esses
modos de compreender e tratar a realidade a uma pesquisa significa romper com a forma fragmentária de tratar o
conhecimento; aproximar-se do processo sem a interrupção do seu movimento, na penetração de sua intimidade, na imersão
dos múltiplos significados que vão sendo conferidos nas (inter)relações que configuram esse processo; analisá-lo sem a
interrupção de sua heterogeneidade, já que não se pode compreender o complexo apenas sob um único referencial ou
paradigma específico.
Estudos hermenêuticos que falam mais diretamente da educação encontram-se nas obras de autores como Calloni (2000),
Hermann (2002), mas é nos os escritos de Galeffi (2001a; 2001b; 2001c, 2001d, 2001e, 2003) sobre a epistemologia do
educar que focalizamos a nossa atenção neste estudo.
A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR E A SALA DE AULA
A busca por referenciais que abordam o microcosmo das salas de aula como uma dimensão privilegiada do acontecer do
currículo, tendo com preocupação primeira a compreensão desses processos e o estudo da compreensão como constituição
fundamental dos percursos formativos a quem nos cabe acompanhar levou-nos ao encontro dos estudos sobre epistemologia
do educar liderados em nosso programa pelo Professor Dante Galeffi. Foi como se uma referência tornasse mais viável, entre
outras possibilidades, estabelecer uma conexão entre os vários cenários, entre as várias salas de aula que temos visitado e
vivido no decorrer de nosso trabalho como pesquisadoras, estudantes e/ou professoras em qualquer nível de ensino.
Currículo e Epistemologia | 142
Seria possível levar como referência teórica o que foi discutido e construído em um curso de pós-graduação para nossas
salas de graduação e educação básica? Poderiam os trabalhos de Heidegger, Dilthey, Galeffi, Grondin, Soares, Palmer,
Bornheim ser introduzidos como conteúdo curricular na graduação e na educação básica?
A inclusão desses autores, em pé de igualdade entre si e também com outros autores mais “próprios” a esses níveis de
ensino, significaria uma quebra de hierarquia, passível de ser ampliada com a introdução, no mesmo pé de igualdade, da
produção dos alunos e isto implicaria também em acolher e trabalhar com o texto de um aluno, seja da graduação ou da
educação básica, com o mesmo respeito, atenção, consideração e cuidado com que se trabalharia, por exemplo, um texto de
Heidegger.
Seria uma fantasia ultrapassar, não apenas como proposta teórica, mas no dia-a-dia da sala de aula, uma hierarquia que
sempre tem se sobreposto às propostas mais criativas e inovadoras? Seria absurdo considerar as referências trazidas pelos
alunos tão relevantes como as referências das ciências traduzidas nos conteúdos curriculares?
Consideramos um dos aspectos mais atraentes da Epistemologia do Educar (e talvez possamos dizer que esta é sua principal
proposta), a possibilidade de se trabalhar com uma igualdade a partir de uma virada do próprio conceito de igualdade, ou
seja, indo além de seu significado metafísico para o de um acontecimento no campo existencial. É nesse campo em que as
relações acontecem não numa unidade pensada previamente, mas num fluxo desierarquizado de construção de sentido no
qual pensar e ser são o mesmo, que se torna possível a compreensão.
MAS O QUE É EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR?
Embora não estude especificamente o currículo, mas o educar, os processos de ensinar e aprender, Dante Galeffi (2001a;
20001b; 2001c; 2001d; 2001e, 2003) trabalha com um referencial urdido na hermenêutica fenomenológica do qual
procuramos nos apropriar para estudar o acontecer do currículo.
Tomamos contato, então, com um modo de fazer filosofia que facilita a aproximação com o universo filosófico, não
propriamente por torná-lo mais fácil, mas por torná-lo possível pela articulação com referências diversas, incluindo as
existências singulares de cada “pre-sença”37 em uma sala de aula, por exemplo, sem estabelecer hierarquias
Essa busca de uma epistemologia não verdadeira, que sobrepõe um caráter multirreferencial a uma pretensão de
universalidade, marca o processo de construção da Epistemologia do Educar. Para formular esses propósitos, Galeffi (2001d)
embrenha-se num verdadeiro trabalho arqueogenealógico, indo buscar a originariedade dos conceitos de logos e episteme,
para ressignificá-los em função da compreensão construída. Faz inicialmente uma aproximação do conceito de ciência no
ocidente, numa tentativa de descobrir/inventar novas perspectivas de compreensão e de auto justificação, com vistas a um
delineamento de uma epistemologia do educar “... radicalmente ressignificada e redescrita em suas possibilidades e
processualidades - uma epistemologia além da epistemologia”.(GALEFFI, 2001d, p. 5).
O termo “epistemologia” entrou em uso muito recentemente no rol dos conhecimentos acadêmicos. A despeito da grande
ambigüidade e polissemia do termo, ele é usado largamente em qualquer área do conhecimento. “Seria, então, impossível
reinventar novos sentidos para a palavra?”, pergunta-se Galeffi. E prossegue: “Onde caberia uma epistemologia do educar
que não se limitasse a acolher como paradigmas irrefutáveis as tradições continental e anglo-saxônica? Seria possível
formular uma epistemologia do educar que contemplasse uma compreensão polilógica do logos onde se descreveriam
37 “Presença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão „ser-aí‟, être-là, esser-ci, etc. Optamos pela tradução de pre-sença”. Essas são as formulações iniciais da 1ª nota explicativa da tradutora de “Ser e Tempo”: N1: PRE-SENÇA=DASEIN. Ser e Tempo, p. 309.
Currículo e Epistemologia | 143
apenas acontecimentos implicados com as nossas efetivas emergências existenciais (...) sempre engajado com o „cuidado‟ e
o „cuidar‟ da vida em comum?” (GALEFFI, 2001d).
O autor procura configurar um sentido próprio e apropriado ao termo epistemologia, deixando-o em suspensão para tentar
ressignificá-lo em sua valência ontológica. Retoma, para tanto, a etimologia da palavra, reportando-se à episteme no sentido
grego originário. Episteme vem do verbo epistemae – saber; ser capaz de; ser competente para fazer algo. Seria resultante da
empiria enquanto experiência unida a techné, ou seja, qualquer alteração própria do mundo da cultura. O termo está então,
carregado da idéia de competência; não é só theoré – que é mais uma dimensão da episteme e se relaciona à contemplação.
Qualquer nível de maestria, de techné, equivale a epistemae no sentido de ciência de; resultado da experiência, da técnica.
(GALEFFI, 2003).
Podemos perceber, nessas formulações, a plasticidade do termo episteme em sua nascente, quando era, mais
abrangentemente, Sofia e não um termo restrito ao vocabulário dos filósofos, a partir de Sócrates. O verbo epistemae adquire
então, conotação de teoricidade, uma competência de nível diferenciado, uma competência teorética, que envolve o
desenvolvimento intelectual, um saber abrangente que engloba todos os outros. Um saber diferente da poética, uma busca
por meio da noésis, da apreensão noética, que se articula em busca de princípios.
A palavra episteme adquire, principalmente após a sistematização do conhecimento “científico” feita por Aristóteles, a
pregnância de ciência da verdade, do que é verdadeiro em si, traço que perdura até hoje, adquirindo novas conotações, de
acordo com o desenvolvimento das ciências constituídas. Ao mostrar esses usos originários da palavra epistemologia e a
compreensão da ciência, Galeffi pretende desmistificar a idéia constituída e tornada hegemônica de que “... existe uma
humanidade muito mais elevada do que aquela experimentada pelos comuns mortais no dia-a-dia”. (GALEFFI, 2001d, p. 6).
Com o intuito de cunhar um outro sentido para a expressão epistemologia do educar, Galeffi retoma também uma descrição
de logos, identificando seu caráter polissêmico originário (engloba, dentre muitas outras, ações como pensar, escolher,
selecionar, narrar, anunciar, convencer, ordenar, refletir, pensar, teorizar, significar) e a conotação do eminentemente
“teorético” adquirida com o advento da filosofia e adotada modernamente. Defende Galeffi que a palavra logos, derivada do
verbo légo, parece ter nascido da boca do pensador Heráclito de Éfeso, uma vez que “...légo, algo assim como „ler-dizer‟,
„perceber-falar‟, „tornar algo legível por palavras‟, soa como des-velamento e presentificação de sentido. Soa como sentido”. E
apressa-se em explicitar que trata-se do “...sentido situado, descortinar-se de coisas, mundo, moradas, céu e terra, homens e
deuses. Sentido é predominantemente sentido”. E acrescenta que o verbo légo então se diz légein, isto é “dizer e falar”.
“Trata-se sempre de algo dito e falado com sentido, o que caracteriza o modo de ser próprio ao homem. De forma paralela,
logos é uma palavra que nomeia sentido”. (GALEFFI, 2001d, p. 20)
Com o propósito de (ou insistindo em) conferir mais plasticidade aos conceitos trabalhados para configurar a epistemologia do
educar, Galeffi (2001d) busca em Heidegger (1998) o conceito de ser enquanto pre-sença, tradução que damos em nossa
língua ao Dasein, para fundamentar a possibilidade de abertura que adota, poderíamos dizer, como um dos princípios da
epistemologia proposta. Nesse sentido, busca uma compreensão do Ser como algo que nunca é o simplesmente dado, a pura
“presença”. “Ser é aquilo que é na medida do seu sendo, da sua „ec-sistência‟. O que „ec-siste‟ encontra-se fora de si:
transcende a si mesmo como „estar-lançado‟. Ser, portanto, é indefinível porque nunca é apenas o que já era ou o que se
mostra presente. É abertura para o aberto: poder-ser-sendo”. (GALEFFI, 2001d, p. 23).
Ser-sendo. Poderíamos dizer que esta é a condição do Ser em suas realizações cotidianas? Ou, ainda mais, essa é a
condição do Ser da epistemologia do educar? Ou, trazendo para nossos estudos, a condição dos sujeitos do currículo em seu
acontecer?
Currículo e Epistemologia | 144
A dimensão ontológica que fundamenta a epistemologia do educar requer o exercício do pensar como condição do ser-no-
mundo. Não o pensar discursivo de uma razão autônoma, mas a atitude interrogante diante do acontecimento vida. A
epistemologia do educar requer uma atitude filosofante, uma disposição filosófica como abertura que exige um despertar
interno, um colocar em suspensão nossa própria visão. A pergunta é um modo de ser, como se fôssemos criança o tempo
todo. Educar seria então aprender a pensar, a sentir, a viver.
O aprendizado atitudinal é um eixo da epistemologia do educar, evidenciando a intenção de um deslocamento do instituído.
Nada nos impede de viver autenticamente, de aspirar um modo próprio de ser, de desenvolver uma disposição dialógica para
a mudança.
O campo existencial é, portanto, o campo onde se processa a epistemologia do educar, que se fundamenta numa relação
aprendente sem hierarquia, na qual o pensar e o ser não se distinguem, apesar das singularidades. A identidade está no
campo existencial e o ser e o pensar, são traços desse campo. Essa perspectiva ontológica extrapola o esquematismo,
procura contemplar a dinâmica da história e abre uma nova concepção para a relação entre professor e aluno, tornando-a
mais horizontal, pelo reconhecimento do ser-no-mundo-com, que não comporta a hierarquia de subjugação, aceitação de
limitações no sentido coletivo. Não comporta também a ingenuidade de ignorar as estruturas de sentido instituídas, mas uma
criticidade capaz de estabelecer nova criteriologia, criar outras possibilidades de construir algo.
A Epistemologia do Educar nos chama a repensar uma condição radical, que comporta a abertura, o risco. Nesse sentido,
constitui-se como uma “pedagogia-tentativa”, em pleno processo de construção...
COMPREENSÃO: ATUALIZAÇÕES EM SALA DE AULA
Mas o que é compreensão? Como se aproximar de sua conceituação? Como compreender a compreensão? Por que entre
tantos caminhos, escolhemos esse? Como se compreende aquilo que é veiculado nos processos de ensinar, aprender,
discutir, viver e existir com os quais lidamos? Como se compreendem esses próprios processos?
São muitas as formas de se compreender a compreensão. Nossos processos de formação puseram-nos em contato,
basicamente, com uma visão mais cognitivista que tem a compreensão como uma capacidade intelectiva, um patamar – dos
mais elementares – do processo de aprendizagem. (BLOOM et al, 1973). Nas nossas pesquisas buscamos referenciais que
ampliassem os horizontes da compreensão, indo além da visão puramente epistemológica que vem caracterizando a
produção do conhecimento nas mais diversas áreas e que sugere um sistema mais fechado, para uma visão da compreensão
como abertura de possibilidades. Buscamos referenciais teóricos além de Dilthey (1986) e Heidegger (1988, 1998, 1999), em
Gadamer (1999, 2007), Ricoeur (1990), Soares (1994), Palmer (1997), Grondin (1999),Veyne (1998) e Amaral (1999).
Nas nossas itinerâncias em busca de uma proximidade com a compreensão escrevemos artigos, participamos de eventos e
oferecemos uma disciplina sobre o tema relacionando-o com o currículo e a práxis pedagógica, retomando o propósito de
privilegiar o caráter formativo do currículo em sala de aula; nessa caso, de aulas de pós-graduação. O curso oferecido no
primeiro semestre de 2008 pretendeu ser um estudo da compreensão como categoria teórica nas visões de autores inscritos
em tendências teóricas diversas, buscando uma articulação entre essa categoria e a práxis pedagógica. Para a concretização
desse processo de trabalho foram tomadas como referências não apenas essas visões, mas também, na mesma igualdade,
as práticas pedagógicas conhecidas e vivenciadas pelos participantes. Buscamos estudar a compreensão em suas várias
significações, possibilitar que cada participante se identificasse e se apropriasse de uma ou mais tendências, criando uma
rede de conhecimentos sobre compreensão tecida por meio das idéias desses teóricos e dos participantes do curso, incluindo
seus temas de estudo na dinâmica das discussões sem perder a centralidade do tema compreensão.
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Este processo motivou atualizações que possivelmente se constituíram, para cada uma das participantes do curso, em novas
experiências, no sentido atribuído por Larrosa Bondia como “aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” e que
gera um saber “que tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber
finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular”. (LARROSA BONDIA, 2001, s/p).
Tentamos a possibilidade de se trabalhar com uma igualdade a partir de uma virada do próprio conceito de igualdade, ou seja,
indo além de seu significado metafísico para o de um acontecimento no campo existencial. É nesse campo em que as
relações acontecem, não numa unidade pensada previamente, mas num fluxo desierarquizado de construção de sentido no
qual pensar e ser são o mesmo, que se torna possível a compreensão e se tornou possível a atualização de nossas propostas
iniciais.
Partindo da possibilidade de trabalharmos com uma rede tecida por compreensões e atualizações, iniciamos nosso curso
buscando evidenciar esta possibilidade no decorrer das apresentações e discussões. Durante este período trocamos idéias
sobre as várias dimensões da compreensão, sua relação com a sala de aula, articulando esta relação com a pesquisa de
cada componente do grupo. Da infância ao ensino na Medicina, do cinema ao ensino do campo, da memória ao ensino no
Colégio Militar, da imanência da praxis ao ensino de Matemática, foi grande a diversidade de temas, cada um inscrito em um
campo do saber.
As respostas dadas às nossas provocações estão registradas nos trabalhos elaborados pelas alunas ao final do semestre,
dos quais alguns fragmentos são aqui apresentados, para evidenciar as atualizações possibilitadas pelo curso:
A mestranda Edmacy começa o ensaio A Compreensão da Infância e a Práxis Pedagógica questionando: qual a relação de
toda essa discussão sobre infância/criança e a práxis pedagógica? Com essa questão, feita após uma revisão de literatura
problematizadora acerca da inserção da categoria infância na literatura, na filosofia e na educação, adentra na relação entre
esse tema e a práxis pedagógica pautada na compreensão, como foi estudada durante o semestre.
No texto, a autora procura estabelecer diálogos entre personagens infantes de obras clássicas da literatura e da filosofia,
quais sejam o Pequeno Príncipe, de Saint Exupery, O Emílio, de Rousseau e a Emília de Monteiro Lobato para empreender
uma compreensão da infância tanto no sentido cognitivo, como no sentido ontológico do termo.
O ensaio intitulado Hermenêutica e ABP (Aprendizagem Baseada Em Problemas) em saúde foi desenvolvido por Esther
Prates em torno da discussão sobre as aberturas possíveis à práxis pedagógica em um curso de formação em medicina e
como a compreensão pode ser considerada nesse processo. Ressalta a importância do cuidado para a atividade médica, que
recai sobre o outro.
A proposta do estudo da mestranda Fabrízia intitulado Memória na Formação Docente: Compreensão e Interpretação
consistiu em abordar questões relativas à memória na formação docente e formas possíveis para sua análise e compreensão.
Para tanto, recorreu a idéias de Dilthey, Heidegger e Gadamer a respeito da compreensão/interpretação.
A participação no curso como aluna ouvinte não impediu que Luiza desse uma grande contribuição ao mesmo, com suas
formulações, assim como aproveitou muitas discussões do curso como referencial teórico para o projeto de pesquisa que
possibilitou sua entrada no doutorado.
Destaca o valioso aporte teórico-epistemológico encontrado na hermenêutica fenomenológica, como possibilidade de
estabelecer um diálogo entre Filosofia e Educação e de interpretar as “informações originadas /interceptadas / recolhidas no
processo de pesquisa”, com a preocupação primeira “na busca dos sentidos do ser em sua imanência”, razão pela qual se
sustenta nas teorizações dos autores supracitados.
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A mestranda Olenêva Sanches Sousa procurou fazer uma articulação entre as referências do curso e seu campo de estudos,
que é a educação matemática, abordando a aporia entre explicar e compreender evidenciada na teoria diltheyana. Seu ensaio
concentra-se no papel que as ações de compreender e explicar têm na aprendizagem da Matemática escolar, notadamente
“no problema central de dificuldade de aprendizagem da Matemática que se ensina na escola no que se refere
especificamente à sua compreensão e explicação”. (SOUSA, 2008, s/p).
A proposta do ensaio A experiência fílmica na praxis pedagógica: ressignificando referenciais numa abordagem hermenêutica
fenomenológica e hermenêutica universal da doutoranda Rosane Vieira foi de aproximar duas áreas de conhecimento nas
quais encontra-se implicada – cinema e educação e assim justifica: “Pensar o mundo numa variedade de planos,
enquadramentos e movimentos atualiza a inteligibilidade e sensibilidade do espectador-aluno, na dupla circunstância de
formado e formando; e emerge experiências na práxis pedagógica”. (VIEIRA, 2008, s/p).
Para desenvolver o estudo, a autora fundamenta-se em Heidegger e Gadamer e em intérpretes de suas obras como Grondin
e Palmer. Com esses referenciais, encoraja-se a afirmar que “Não há uma dicotomia entre estar-no-mundo e estar-no-filme,
pois este último põe entre parênteses o primeiro que atualiza o segundo. Desse espiral hermenêutico, emerge o modo como o
ser-aí trata das coisas em seu mundo – a pré-estrutura da compreensão”.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Estudar o currículo em seu acontecer em uma sala de aula, com o aporte da hermenêutica fenomenológica, nos possibilitou
compreender, mais que encontrar explicações definitivas para, a interioridade dos processos curriculares que se desenvolvem
nos vários cenários visitados e vividos no decorrer do nosso trabalho como pesquisadoras e como professoras nos diversos
níveis de ensino. As teorizações sobre a epistemologia do educar, pautadas nesse referencial, trouxeram um aporte de ideias
e também de possibilidades de tratar os conteúdos curriculares a partir de discussões sobre a quebra de hierarquia de
saberes, na ambiência do campo existencial, bem como de evidenciar a complexidade, abrangência e amplitude do currículo
em seu acontecer.
A concepção de currículo como fenômeno/processo complexo exigiu tal escolha teórico-metodológica, notadamente por
considerar a ideia de que as coisas não estão claramente definidas, mas comportam uma opacidade, aí incluídos os
percursos curriculares dos sujeitos em formação. Nesse campo em que as relações acontecem não numa unidade pensada
previamente, mas num fluxo desierarquizado de construção de sentido no qual pensar e ser são o mesmo, torna-se possível a
compreensão, tema trabalhado neste texto por meio do relato do desenvolvimento de uma disciplina junto a alunas de
mestrado e doutorado em educação.
Ao propor a discussão da compreensão a partir de uma dimensão ontológica do termo, com o aporte da hermenêutica em
contraponto com uma dimensão cognitivista, foi possível criar uma rede de conhecimentos sobre o tema por meio das ideias
dos teóricos estudados devidamente articuladas com as ideias das participantes do curso, privilegiando seus temas de estudo
e suas práticas pedagógicas. As experiências e atualizações possibilitadas ficaram evidenciadas nos ensaios de alunas, todos
com possibilidades de ter ressonâncias nas discussões e atuações no âmbito da educação básica.
Concluiu-se que a despeito da diversidade dos objetos de estudo das alunas e professoras foi possível a todas estabelecer
articulações com o tema proposto e possivelmente realizar experiências e compreensões articuladoras, em efetivos atos de
currículo. Com isso evidenciou-se o caráter formativo desse tema pelas possibilidades de propiciar articulações/experiências
circunscritas ao processo de compreensão e evidenciou-se o acontecer do currículo, momento em que as propostas
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curriculares se atualizam na sala de aula e desierarquiza o conhecimento, a medida em que aprendentes e ensinantes
compartilham ideias, conceitos e possivelmente ampliam sua compreensão de mundo.
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Currículo e Epistemologia | 150
Marília Gabriela de Menezes Guedes; Maria Margarete Sampaio de Carvalho Braga & Maria Eliete Santiago
Universidade Federal de Pernambuco
CONCEPÇÃO CURRICULAR FUNDAMENTADA NOS PRESSUPOSTOS
FREIREANOS, A PARTIR DAS PRODUÇÕES DA ANPED E DO EPENN, NO PERÍODO
DE 2000 A 2009
Nas últimas décadas, observa-se que no Brasil, os estudos acadêmicos argumentam em favor de uma escola pública de qualidade,
carreada por reformas educacionais com centralidade no currículo. Essa centralidade se explicita nas produções sobre o currículo em
diferentes perspectivas: política curricular, campo de investigação e prática pedagógica. Muitas dessas contribuições destacam e/ou
fundamentam-se nos referenciais e práticas de Paulo Freire. Apesar dos estudos freireanos não terem tido uma preocupação específica
com o currículo, o seu trabalho é uma das referências quando se trata da discussão em torno de uma visão ampla de currículo, percebendo-
o como um dos mecanismos de veiculação da ideologia de uma sociedade que se materializa nas ações dos envolvidos no processo
educativo (APPLE, 2006; GIROUX, 1997; MOREIRA E SILVA, 2008; SANTIAGO, 1998, 2006, 2007; SAUL, 2008; SILVA, 2007). A
pesquisa, vinculada ao Núcleo de Formação de Professores e Prática pedagógica do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
de Pernambuco, teve como objetivo realizar um levantamento dos estudos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e no Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste (EPENN), no período de
2000 a 2009, buscando compreender de que forma o pensamento pedagógico de Paulo Freire tem se constituído como aporte teórico dos
estudos que abordam questões do campo do currículo. Foram consideradas as pesquisas apresentadas nos grupos de trabalho de
currículo. De um total de 292 trabalhos apresentados no EPENN, foram encontrados 36 trabalhos que referenciam Paulo Freire de
diferentes formas e de um total de 201 trabalhos apresentados na ANPEd, foram encontrados 12 trabalhos. O critério inicial adotado para
selecionar os trabalhos foi a citação de alguma obra de Paulo Freire no item Referências Bibliográficas. Em seguida, realizou-se a leitura do
texto, localizando o(s) argumento(s) que vinculam os estudos em foco com os pressupostos freireanos. O estudo revelou que, na primeira
década de 2000, há uma ampliação dos estudos que articulam categorias freireanas com questões da área do currículo e/ou como
fundamento teórico para tratar de políticas e práticas curriculares ancoradas numa perspectiva emancipatória. Entretanto, ainda se constitui
como desafio dar visibilidade ao desenvolvimento de pesquisas que tomem os princípios norteadores da teoria freireana como contributo
para a formulação e a efetivação de políticas do conhecimento na escola e na sala de aula. Maurice Tardif - Reflexão, currículo e
epistemologia da prática profissional.
INTRODUÇÃO
No Brasil, desde a década de 1980, observam-se tentativas de efetivação de políticas públicas voltadas para a justiça social,
com destaque para as políticas educacionais. Nos anos 1990, para além de perspectivas político-ideológicas, argumentava-se
em favor de uma escola pública de qualidade, carreada por reformas educacionais com centralidade no currículo (OLIVEIRA,
2007). Essa centralidade se explicita, também, nos estudos que têm colocado o currículo em diferentes perspectivas: política
curricular, disciplina curricular, campo de investigação e prática pedagógica.
Muitas dessas contribuições teóricas destacam e ou fundamentam-se nas idéias e práticas pedagógicas de Paulo Freire,
confirmando a afirmativa de Santiago (2006, p.73), segundo a qual mesmo ele não tendo “[...] tratado sobre a teoria do
currículo, nem desenvolvido especificamente estudos curriculares, nem tampouco tenha sido considerado especialista no
campo do currículo, influenciou estudiosos desse campo”. Nessa direção, Apple (2006), Giroux (1997), Santiago (1998,
Currículo e Epistemologia | 151
2007), Saul (2008) e Silva (2007) consideram que o trabalho de Paulo Freire é referência quando se trata das teorias críticas
do currículo.
Moreira e Silva (2008) também ressaltam a importância dos trabalhos de Paulo Freire para a reflexão sobre as teorias críticas
do currículo, pois além da teoria pedagógica freireana destacar o seu caráter político, histórico e cultural, as suas idéias
mestras circulam pelos temas ideologia, cultura e poder, considerados pelos autores temas centrais na Teoria Crítica e na
Sociologia do Currículo.
Paulo Freire defende uma concepção de educação libertadora, fundamentada numa visão humanista crítica, que vê o ser que
aprende como um todo – sentimentos, pensamentos e ações –, não se restringindo à dimensão cognitiva. Nesse enfoque, a
aprendizagem não se limita a um aumento de conhecimentos, ela influi nas escolhas e atitudes do indivíduo. A prática
pedagógica rejeita a neutralidade do processo educativo, concebe a educação como dialógica e propicia ao educando
desenvolver um pensar crítico acerca da sua realidade.
Os referenciais freireanos contribuem para uma visão ampla de currículo, percebendo-o como um dos mecanismos de
veiculação da ideologia de uma sociedade que se materializa nas ações dos envolvidos no processo educativo. Dessa forma,
a prática curricular é compreendida como uma totalidade sociocultural complexa, que envolve todas as interações do espaço
escolar. Corroborando com esse pensamento, Santiago (1990, p. 25) aponta que o currículo é “a corporificação dos
interesses sociais e [como a] luta cultural que se processa na sociedade”. Em outras palavras, a autora considera que os
valores e interesses da sociedade se constituem na dinâmica do cotidiano escolar, afirmando que há “interesses e luta que
invadem e transitam na escola, concretizando-se nas práticas pedagógicas” (idem).
Saul (2008) partilha dessas idéias, ao afirmar que o “currículo é, na acepção freireana, a política, a teoria e a prática do que-
fazer na educação, no espaço escolar, e nas ações que acontecem fora desse espaço, numa perspectiva crítico-
transformadora” (p. 120). Com isto, a autora destaca que filósofos, educadores e curriculistas comprometidos com o
paradigma da educação emancipatória têm ressaltado a importância da pedagogia libertadora de Paulo Freire e suas
considerações em torno do currículo, entre os quais se destacam: Michael Apple, Henry Giroux e Peter MacLaren nos
Estados Unidos; Henrique Dussel no México; Antônio Nóvoa e Lícinio Lima em Portugal.
Essa constatação nos mobilizou a observar o lugar e o espaço ocupado pela pedagogia freireana nas pesquisas
apresentadas nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e no
Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste (EPENN), durante a primeira década deste milênio, por entendermos
que ela aponta para uma compreensão sobre o processo de seleção, organização e distribuição do conhecimento esteiradas
pelo compromisso com a humanização dos sujeitos.
Em Paulo Freire, o entendimento de que a práxis38 só se efetiva por meio de mediações pressupõe uma prática educativa que
contribua para o desenvolvimento da multidimensionalidade do ser humano, como sujeito cultural, apto a transformar a
realidade em que vive.
Em Paulo Freire, o compromisso social com a humanização dos sujeitos implica em uma pedagogia crítico-dialógica, que
supõe:
processos pedagógicos que viabilizem a humanização, gestada na própria história dos sujeitos (FREIRE, 1988, 1996).
o exercício da autonomia fundamentado na ética, com vistas a compreensão do papel desumanizador da licenciosidade
(FREIRE, 2000);
38 Práxis é, aqui, entendida na perspectiva apontada por Vásquez (2007), de que não há mudança de nenhum contexto sem uma intervenção,
entendida como ação com intencionalidade e por Freire, segundo o qual “... se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da reflexão critica”. (FREIRE, 1998, p.53)
Currículo e Epistemologia | 152
a superação da prática da transferência de quem sabe para quem não sabe (FREIRE, 1979, 1982, 1988, 1995, 1996,
2000);
uma prática educativa pautada na relação dialógica (FREIRE, 1979, 1982, 1988, 1995, 1996, 2000, 2001);
um processo de ensino e aprendizagem que contribua com o desenvolvimento integral do ser humano (FREIRE, 1996;
2000; 2001);
conteúdos de aprendizagem como instrumentos para conhecer e responder às questões postas pela realidade
experiencial dos educandos (FREIRE, 1986; 1996; 2001).
Nessa direção, este trabalho teve como objetivo realizar um levantamento dos estudos apresentados nas reuniões anuais da
ANPEd, no período de 2000 a 2009, e do EPENN, no período de 2001 a 2009, buscando compreender de que forma o
pensamento pedagógico de Paulo Freire tem se constituído como aporte teórico dos estudos que abordam questões do
campo do currículo.
Na investigação foram consideradas pesquisas apresentadas como comunicação oral e pôster no grupo de trabalho de
currículo (GT 12). O critério inicial adotado para selecionar os trabalhos que fazem referência a Paulo Freire foi a citação de
alguma obra do autor no item Referências Bibliográficas. Em seguida, partiu-se para a leitura do texto, localizando
o(s) argumento(s) que vinculam os estudos em foco com os pressupostos freireanos.
A partir dessa leitura, os trabalhos foram agrupados em quatro categorias analíticas, levando em
consideração a forma como os autores utilizam os pressupostos da pedagogia freireana: (1) citações; (2) suporte para a
escolha da opção metodológica; (3) referencial de algumas categorias que são articuladas com questões da área do currículo;
(4) fundamento teórico para tratar das políticas e práticas curriculares.
O que revelam os trabalhos do GT - Currículo da ANPEd?
De um total de 201 trabalhos apresentados na ANPEd, sendo 141 na forma de comunicação oral e 60 na forma de pôster,
foram encontrados 12 trabalhos que citam Paulo Freire: 8 comunicações orais e 4 pôsteres.
CATEGORIAS SUB-CATEGORIAS
Citações
Citações de frases: Souza e Freitas (2001); Castro (2007).
Citação da obra Pedagogia do oprimido como uma prática discursiva pedagógica:
Gvirtz, Larripa e Oría (2003).
Citação como referência para idéia do educador como um aprendiz: Macedo (2004).
Suporte para a escolha
da opção metodológica.
Santos e Pinho (2002); Hypólito e Leite (2006).
Referencial de
categorias articuladas
com questões da área
currículo.
Conhecimento: Ferraço (2000).
Escola cidadã: Hypólito e Leite (2006).
Emancipação e relações de poder: Rodrigues (2007).
Gestão democrático–participativa: Brito (2008).
Currículo e Epistemologia | 153
Emancipação: Pereira (2009).
Fundamento teórico
para tratar de políticas
e práticas curriculares.
Subjetividade e liberdade: Cardarello (2000).
Humanização do sujeito: Braga (2009).
Quadro 1 - Categorias e sub-categorias utilizadas para análise dos trabalho que fazem referência a Paulo Freire na ANPEd
(2000 – 2009).
Pela observação dos dados quantitativos presentes no Quadro 1, percebemos que o número de produções que referenciam
Freire se manteve estável, na proporção de um ou dois trabalhos apresentados em cada reunião anual, com exceção do ano
de 2005 em que não há estudos socializados no GT – Currículo.
No que se refere aos temas tratados nos textos, seis abordam sobre diferentes propostas de organização curricular; dois
focalizam discussões do currículo na perspectiva crítico-transformadora; dois trabalhos incluem os estudos sobre a
materialização do currículo no cotidiano escolar; um trata das práticas discursivas em educação e um outro trabalho discute
os aspectos teórico-metodológicos de uma pesquisa sobre políticas curriculares e gestão da escola pública.
Do exame feito dos doze trabalhos, podemos observar que quatro trabalhos não utilizam Paulo Freire como aporte teórico
para as suas discussões, apenas trazem citações o autor relacionadas com as temáticas trabalhadas.. Como exemplo, temos
o trabalho de Souza e Freitas (2001) que não fundamentam suas análises na pedagogia freireana para a construção do
currículo da Biologia que contemple conteúdos do cotidiano; Gvirtz, Larripa e Oría (2003) apenas mencionam a obra
Pedagogia do oprimido como uma prática discursiva pedagógica; Macedo (2004) faz referência a ideia de Paulo Freire quanto
ao educador como um sujeito inacabado; Castro (2007) utiliza uma citação de Freire e Faundez para explicar como se dá a
constituição das diferentes culturas.
Santos e Pinho (2002), apesar de tomarem Freire como referência, ao tratarem das concepções curriculares não se apóiam
nos seus pressupostos. Porém, fazem uso do pensamento do autor como referencial para a escolha da opção metodológica
da pesquisa-ação.
Cinco trabalhos articulam categorias freireanas com as questões curriculares: Ferraço (2000), ao discutir a complexidade na
dinâmica de produção de conhecimentos; Hypólito e Leite (2006), ao tratar da escola cidadã; Rodrigues (2007) ao tratar de
práticas emancipatórias e relações de poder na construção crítica do currículo; Brito (2008) quando versa sobre gestão
democrático–participativa e Pereira (2009), ao analisar o sentido de emancipação assumida na educação transformadora.
Em síntese, podemos perceber que apenas dois trabalhos, Cardarello (2000) e Braga (2009), utilizam o pensamento
pedagógico de Paulo Freire como construto teórico para tratar da formulação de políticas e práticas curriculares. Cardarello
ressalta a contribuição do pensamento freireano para as novas possibilidades de pensar a questão da subjetividade, do
currículo e da liberdade, enquanto Braga aponta que no pensamento de Paulo Freire encontram-se elementos de análise que
substanciam a proposição de um currículo comprometido com a humanização do sujeito.
O QUE REVELAM OS TRABALHOS DO GT CURRÍCULO DO EPENN?
Currículo e Epistemologia | 154
De um total de 292 trabalhos apresentados no EPENN, no período compreendido entre 2001 e 2009, sendo 209 na forma de
comunicação oral e 83 na forma de pôster foram encontrados 36 trabalhos que referenciam Paulo Freire de diferentes formas,
conforme quadro a seguir (Quadro 2).
EPENN Tipos de trabalhos
Total de trabalhos
apresentados no GT 12
por vento
Trabalhos que
fazem referência a
Paulo Freire
Comunicações 50 5
2001 Pôsteres 4 -
Total de trabalhos 54 5
Comunicações 28 2
2003 Pôsteres 8 1
Total de trabalhos 36 3
Comunicações 36 4
2005 Pôsteres 10 1
Total de trabalhos 46 5
Comunicações 44 10
2007 Pôsteres 59 5
Total de trabalhos 103 15
Comunicações 51 07
2009 Pôsteres 02 01
Total de trabalhos 53 08
TOTAL 292 36
Quadro 2 - Trabalhos que fazem referência a Paulo Freire no EPENN (2001, 2003, 2005, 2007 e 2009).
O quadro revela que nos EPENN‟s de 2001, 2003 e 2005, em média, 4 dos trabalhos aprovados referenciam Paulo Freire no
seu arcabouço teórico e que nos Encontros de 2007 e 2009, em média, aproximadamente 12 estudos o fazem. Esses dados
nos levam a considerar que houve uma ampliação quantitativa dos estudos vinculados ao campo do currículo que
reconhecem a pedagogia freireana.
REFERENCIAL DE CITAÇÕES
Dos trabalhos apresentados, podemos perceber que, de forma semelhante, as pesquisas de Alves e d‟ÉL Rey (2001); Muller
e Sales (2003); Ribeiro (2005); Fontineles (2005) e Franco (2007) não fundamentam suas discussões sobre o currículo nos
pressupostos freireanos, apenas transcrevem trechos da obra do autor que tratam sobre temas diversos, tais como:
concepção de homem como sujeito de sua própria educação; concepção de ensino como construção do conhecimento;
formação humana pautada no trabalho e na ação-reflexão.
Currículo e Epistemologia | 155
Outros trabalhos também trazem citações de Paulo Freire, mas vinculadas a temática do currículo. Três deles articulam as
referências freireanas, ao tratarem de temas geradores ou projetos de trabalho. Almeida (2001) considera inexistente a
dicotomia entre o político e o pedagógico; Coutinho (2001) critica o currículo como um instrumento de integração passiva a
ordem neoliberal e que alija de seus conteúdos a cultura popular e Cavalcante (2007) menciona Paulo Freire entre os autores
que analisam a problemática do contexto histórico-político em que se insere o trabalho com projetos.
Como contributo para a estruturação do pensamento curricular, Paulo Freire é citado em seis trabalhos. Cinco deles fazem
vinculação da produção freireana às teorias críticas (Paixão, 2005; Locatelli, 2007; Souza, 2007; Azevedo e Melo, 2007;
Pereira, 2007). Esses estudos reconhecem a obra do educador pernambucano na proposição de transformações radicais dos
arranjos socio-educacionais; na crítica à educação bancária, em defesa da educação dialógica; no aprofundamento do estudo
dos pressupostos culturalistas; na reflexão sobre os pressupostos epistemológicos do currículo, na perspectiva da teoria da
complexidade e da multireferencialidade
O estudo de Cardoso Freire (2009) situa a pedagogia freireana em duas perspectivas: criticas e pós-críticas. Segundo a
autora, ao defender a pedagogia libertadora, formulada na resistência às desigualdades sociais, Paulo Freire se posiciona
entre os teóricos críticos. Ao apontar outras formas de dominação e/ou subordinação, forjadas na e pela cultura, entre as
relações entre homens e mulheres, assume elementos presentes nas teorias pós-críticas.
REFERENCIAL PARA A OPÇÃO METODOLÓGICA
Os princípios freireanos são utilizados como suporte para a escolha da opção metodológica nos estudos de Melo Neto (2007),
por considerar que a atividade extensionista contribui para a superação da dimensão bancária da educação e de Teixeira
Neto (2009), que aborda as possibilidades de um etnocurrículo voltado para a transcendência, haja vista que as relações se
dão “no mundo e pelo mundo”.
REFERENCIAL DE CATEGORIAS ARTICULADAS COM QUESTÕES DA ÁREA DO CURRÍCULO
No período investigado, Paulo Freire se apresenta como referencial de algumas categorias articuladas com as discussões do
currículo em vinte trabalhos. São elas: diálogo, autonomia, conscientização, saberes experienciais, ensino-pesquisa e prática
educativa.
A categoria diálogo está presente em Aragão e Pernambuco (2003) e Lopes (2007), como suporte para compreender o
processo de construção de saberes na aula de educação física e na construção de uma pedagogia humanizadora para o
campo, respectivamente. Brennand e Coelho (2003) se utilizam dessa categoria para refletir sobre a questão curricular
referente à formação do educador na sociedade do conhecimento, no que diz respeito à dimensão coletiva do saber.
A categoria autonomia se explicita pela relação professor-aluno no estudo de Fontes (2007), ao considerar que o termo do-
discentes expressa a simultaneidade das atividades docentes e discentes, considerando-os seres capazes de teorizar o vivido
e de assumir-se como verdadeiros autores de suas ações. Autonomia também aparece nos estudos de Alves (2003); Teixeira
Neto (2007) e Castro (2009). O primeiro vincula a autonomia com a ideia de inacabamento do ser humano, ao demonstrar
como as questões da cultura podem atuar na autoria das ações pedagógicas; o segundo propõe o redimensionamento da
concepção e da prática educativa, ao considerar o educando como protagonista de sua aprendizagem e o terceiro discute a
construção da autonomia do/da professor/a na formação continuada.
A categoria conscientização é utilizada como aporte teórico nos estudos de Gomes (2001), Aragão (2003), Sousa (2007) e
Almeida (2007), que buscam em Paulo Freire a compreensão de que homens e mulheres precisam aprender a dizer a sua
Currículo e Epistemologia | 156
palavra, estabelecendo relações prático-teóricas em suas ações cotidianas, a partir da compreensão das estruturas sociais
que os oprimem. Ações que vão se somando ao coletivo e passam a compor o acervo do saber associado a uma visão de
mundo que almejam, com vistas a elaboração de estratégias de atuação.
A categoria saberes experienciais surge nas discussões apresentadas por Pinheiro (2009) e Lima e Oliveira (2009), ao
tratarem sobre o currículo integrado. Os pesquisadores consideram que a experiência deve ser situada em um processo de
aprendizagem e que o conteúdo programático da educação não é uma doação ou imposição, mas uma construção coletiva
sistematizada dos saberes experienciais dos educandos. Respeitar esses saberes é, também, um princípio considerado por
Gregório (2001) como indispensável para a vivência da cidadania na educação.
A categoria ensino-pesquisa se explicita nos estudos de Pereira e Silva (2009); Lima e Oliveira (2009); Freitas e Barbosa
(2009). Esses estudos reconhecem a pesquisa como uma forma de desenvolver a relação dos saberes culturais dos alunos
com os conteúdos disciplinares, colaborando, dessa forma, para edificar a autonomia dos indivíduos e desenvolver suas
capacidades, pois potencializa a investigação e a responsabilidade social do discente.
A categoria prática educativa se apresenta nos estudos de Freitas e Barbosa (2009) e Castro (2009), ao afirmarem, à luz dos
pressupostos freireanos, que a especificidade do ato educativo demanda sensibilidade, criatividade, bom senso, competência
profissional e afetividade.
Referencial teórico para tratar das políticas e práticas curriculares
Os pressupostos teóricos da pedagogia freireana dão sustentação teórica em seis trabalhos que tratam de políticas e práticas
curriculares. Quatro deles referem-se a escolarização regular e dois abordam a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Os estudos que se fundamentam em Paulo Freire para tratar da organização do currículo escolar convergem na busca de
superação de um currículo tradicional, estruturado em disciplinas. Nessa direção, Silva (2005), Resque (2005) e Silva (2009)
propõem uma organização curricular interdisciplinar, via tema gerador. Os argumentos utilizados por esses autores são,
respectivamente: a perspectiva de efetivação de uma educação libertadora; a possibilidade dos professores assumirem a
autoria de suas narrativas curriculares; a promoção de um diálogo entre o senso comum e os conhecimentos sistematizados,
com vistas à compreensão da realidade e a identificação de espaços de intervenção para possíveis mudanças. Nessa
compreensão, Chagas (2007), ao tratar da pedagogia do campo, considera a ação-reflexão-ação como um dos princípios
educativos, por considerar que a relação teoria-prática cumpre uma função objetiva de transformar a realidade concreta e as
pessoas.
Dois trabalhos recorrem a Paulo Freire para tratar das questões curriculares na EJA: Pinheiro (2007) e Meneses e Martins
(2007). O primeiro trata do diálogo entre saberes no currículo de formação em EJA, situando a experiência de vida como
possibilidade de realizar uma seleção de conhecimentos, por compreender que os saberes curriculares se manifestam no
imbricamento da ação e da reflexão. O segundo analisa o currículo de um curso técnico de nível médio integrado,
considerando que os processos sistematizados de uma educação devem estar focados nas necessidades sociais, culturais,
econômicas e políticas dos educandos.
A síntese da análise dos trabalhos descritos, anteriormente, está apresentada no quadro em anexo (Quadro 3).
A análise dos trabalhos revela que, com o passar do tempo, as pesquisas apresentadas no EPENN vão apontando maior
densidade, no que se refere à pedagogia freireana. Mais do que apenas citar trechos de obras, boa parte das produções se
inspiram em Paulo Freire para analisar políticas curriculares, produzir conhecimentos no campo do currículo, compreender
processos de escolarização, bem como para analisar e propor mudanças efetivas na prática pedagógica.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos trabalhos apresentados no GT de Currículo da ANPEd e do EPENN dá visibilidade ao argumento de Santiago
(2006), segundo a qual, apesar dos estudos freireanos não terem tido uma preocupação específica com o currículo, sua
contribuição vem sendo reconhecida, cada vez mais.
Alguns estudos transcrevem algum trecho da obra de Paulo Freire que trata da temática presente na discussão, outros
reconhecem e revelam a importância dos seus trabalhos. Destacam-se as reflexões que tomam o pensamento de Paulo
Freire como referencial teórico para as discussões da relação educação e sociedade, apontando que a escola é uma
instituição social e histórica, que pode trabalhar com os conhecimentos que estão imbricados na realidade vivida e percebida
dos e pelos educandos e educadores.
Ao longo da primeira década de 2000, há no EPENN uma ampliação dos estudos que articulam categorias freireanas com
questões da área do currículo e como fundamento teórico para tratar de políticas e práticas curriculares ancoradas numa
perspectiva emancipatória. De modo diferente, essa ampliação não se efetiva nas reuniões anuais da ANPEd no período
investigado.
Vale ressaltar a importância das pesquisas que se fundamentam nos pressupostos da educação como prática da liberdade
para a efetivação e reorientação curricular, via tema gerador, como um movimento de currículo que supera o modelo
tradicional, que toma as disciplinas como componentes curriculares e como tecnologia de organização do currículo.
A pesquisa nos leva a considerar que se o currículo é um recorte epistemológico do conhecimento construído historicamente
pela humanidade, esse recorte tem a possibilidade de emergir das necessidades dos sujeitos envolvidos em processos de
formação voltados para a humanização. Portanto, os princípios basilares do pensamento de Paulo Freire dão sustentação na
formulação de propostas curriculares.
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EDUCACIONAL DO NORTE E NORDESTE 19. 2009, João Pessoa, PB, AL. Anais eletrônicos. João Pessoa, PB: EPENN,
2009.
ANEXO
Quadro 3 – Categorias e sub-categorias utilizadas para análise dos trabalho que fazem referência a Paulo Freire no EPENN
(2001, 2003, 2005, 2007 e 2009).
CATEGORIAS
SUB-CATEGORIAS
Citações
Citações de frases: Alves e d‟ÉL Rey (2001); Muller e Sales (2003); Ribeiro (2005);
Fontineles (2005); Franco (2007).
Citações como referência para projetos/temas geradores: Almeida (2001); Coutinho
(2001); Cavalcante (2007).
Citações entre os teóricos críticos do currículo: Paixão (2005), Locatelli (2007),
Pereira (2007), Souza (2007), Azevedo e Melo (2007).
Citações entre os teóricos críticos e ao mesmo tempo pós-críticos do currículo:
Freire (2009).
Suporte para a
escolha da opção
metodológica.
Melo Neto (2007); Teixeira Neto (2009).
Currículo e Epistemologia | 163
Referencial de
categorias articuladas
com questões da
área currículo.
Diálogo: Aragão e Pernambuco (2003); Brennand e Coelho (2003); Lopes (2007).
Autonomia: Alves (2003); Fontes (2007) Teixeira Neto (2007); Freitas (2009).
Conscientização: Gomes (2001); Aragão e Pernambuco (2003); Almeida (2007);
Sousa (2007).
Saberes experienciais: Gregório (2001); Pinheiro (2009); Lima e Oliveira (2009);
Ensino-pesquisa: Pereira e Silva (2009); Lima e Oliveira (2009); Freitas e Barbosa
(2009).
Prática educativa: Freitas e Barbosa (2009); Castro (2009).
Fundamento teórico
para tratar de
políticas e práticas
curriculares.
Educação de Jovens e Adultos: Pinheiro (2007); Meneses e Martins (2007).
Escolarização regular: Silva (2005), Resque (2005) Chagas (2007); Silva (2009).
Currículo e Epistemologia | 164
Rosana Silva de Moura
Universidade Federal de Santa Catarina
CAMINHOS LÚDICOS NA ABORDAGEM DO ENSINO DE HISTÓRIA - RELATO DE
UMA EXPERIÊNCIA TRANSEPISTEMOLÓGICA
O trabalho que apresento reporta a um tempo de experiências pedagógicas, a partir das quais o conceito de epistemologia sofreu um
processo de dilatação e transformação. De lá, tenho memórias de experiências únicas, memórias estético-afetivas, produzidas desde as
relações com alunos em ensino de história, em educação básica. Provavelmente, o fator primordial que contribuiu sobremaneira para
aquelas experiências está relacionado à peculiaridade da subjetividade da criança que se encontra, ontologicamente, mais disposta a viajar
pela diferença temporal, espacial e cultural. Ela ainda não foi engessada, por assim dizer, pela faceta explicativa da razão e ainda se
permite às vivências fronteiriças com os elementos do cotidiano, da cultura, do mundo mesmo. O universo da infância é composto de
matizes estéticos, efetivamente atuantes na constituição de uma racionalidade estética, intervalar e descontínua, distinta da lógica que o
mundo adulto acabará por construir e que, no horizonte da ciência chamamos, epistemologia. Sua leitura de mundo é constituída de um
hibridismo que vai desde um universo próprio de linguagem, como um modo de ser permeado de uma dimensão estético-cognitiva, até uma
mera reprodutibilidade daquilo que alcança da cotidianidade. Esse diferencial de subjetividade pode conduzi-la por outros sentidos quando
olha o mundo, o que imprimi a diferença na interpretação que faz do passado, por exemplo, na aula de história. Assim, no compartilhamento
de racionalidades estéticas com crianças, a epistemologia que orienta o estudo e conhecimento da história desloca seu sentido continuum
para uma descontinuidade, nos possibilitando uma compreensão outra de ciência. Logo, nessa comunicação, se desenhará a problemática
que a experiência estética no ensino de história oferece como um outro: uma transepistemologia da história, conforme interpreto aqui. A
metodologia, desenvolvida a partir de relato, análise e interpretação de experiência pedagógica (constituída de exposição, observação,
intervenção/pergunta-resposta) está ancorada em literatura de viés estético, filosófico-hermenêutico, bem como do horizonte da teoria da
história. Penso que algumas contribuições deste trabalho se vinculam ao exercício permanente do campo da educação enquanto lugar de
pesquisa e debate e, especialmente, ao alargamento do horizonte conceitual da disciplina de história, no que se refere ao(s) paradigma(s)
epistemológico(s) que lhe orientam. Nesse sentido, o estudo que apresento – e que o debate poderá ampliar – se torna algo imediatamente
relacionado às questões curriculares.
(...) articular historicamente o passado não significa conhecê-lo „como ele de fato foi‟. Significa apropriar-se de
uma reminiscência, tal como ele relampeja no momento do perigo. (Walter Benjamin, 1994)
A questão que muitas vezes se coloca no ensino da história, especialmente no cenário contemporâneo da crise de formação
cultural e, por conseguinte, na educação, concerne às possibilidades e limites de formação da consciência histórica (MOURA,
2007). Ou seja, de sua efetividade enquanto “produtividade histórica”, conforme sinaliza Hans-Georg Gadamer desde uma
perspectiva hermenêutica filosófica (1998a). A produtividade histórica, segundo Gadamer (1998b), tem a ver com um caráter
factível e não mais idealista da consciência produzir história e, por isso, se articula no horizonte de uma racionalidade
expandida na interpretação do outro. Ao mesmo tempo, de uma consciência sabedora de seu próprio limite na fabricação de
história como também limitada na sua situação hermenêutica, não mais centralizada (e verticalizada) na nomeação das
coisas.
No que se refere ao campo dos conhecimentos, o caminho (ou, também podemos dizer o método) dessa interpretação
perspectivada demanda uma dissolução da ideia da fronteira como um lugar fixo entre disciplinas, bem como dos lugares do
Currículo e Epistemologia | 165
que seriam o sujeito e o objeto. Diz respeito ao modo como interpretamos o conceito de epistemologia como lugar de
fabricação do conceito de história operante no ensino da mesma. Estamos falando da repercussão de um conceito na
construção de nosso currículo, de uma determinada prática pedagógica e, como não poderia deixar de ser, de nossa própria
concepção de educação e da atualização do conceito de formação cultural. Além disso, põe em relevo a figura de um sujeito
negociador de sentidos, que se assume poroso ao outro e plasticamente constituído na impermanência das coisas do e no
mundo.
Logo, no desdobramento da questão, também podemos encontrar o problema da perspectiva epistemológica no campo da
história considerando seu viés filosófico e que, por sua vez, implica num problema filosófico mais abrangente que é aquele da
relação sujeito-objeto. A invenção de outro tratamento na interrogação das práticas sociais dos sujeitos de história, podem
abrir no ensino de história novos horizontes e perspectivas no que se refere à formação de consciência histórica.
Nesse sentido, minha proposta é a de analisar filosoficamente o problema da epistemologia no processo de interpretação do
passado. A questão posta filosoficamente está ancorada em minha experiência de ensino de história no ensino fundamental,
nas quais foram abertos caminhos lúdicos em direção ao passado pelos quais alunos e professora transitaram e que
alteraram a percepção do presente dada até então. Quando Walter Benjamin sugere que se tome a história pelo contrapelo,
está sugerindo que se abra um outro caminho na elaboração do conceito de história; sugere que nos deixemos levar por uma
reinvenção do conceito.
A partir dessa perspectiva inquietante e crítica é que se constitui a demanda por uma abertura no conceito de epistemologia
que sofre a ação do tempo, desloca seu sentido inicial de teoria de conhecimento para um sentido transepistemológico, ou de
um conhecimento tomado como efeito de uma experiência radicalizada temporalmente. O conceito ou noção que trago para
análise se refere a um deslocamento mesmo do território do currículo, tomado enquanto lugar de onde se fala
hermeneuticamente com o outro e não mais do ou para o outro. Sinaliza a ideia do currículo como um território comum aos
sujeitos do diálogo, mas, ao mesmo tempo, guarda o lugar das respectivas particularidades que compõem os sujeitos
dialógicos da relação passado-presente que a aula de história constitui.
Logo, o conceito de transepistemologia que proponho aqui se refere a um deslocamento do sentido tradicionalmente posto
pela epistemologia como sendo aquele lugar de onde a razão da ciência fala metódica e linearmente do outro e pelo outro,
como modo de formatar sua identidade e tomar sua existência como objeto de estudo. A transepistemologia se refere muito
mais a uma narrativa de experiências desde um horizonte estético-cognitivo e, por implicação, na experiência ontológica de
estar-com o outro. Uma experiência relacional de trânsito pelo outro. Nesse sentido, trata-se de um conceito aberto, de viés
hermenêutico e, por conseguinte, posto per se sob efeito temporal, porque demanda atualização, considerando que a cada
narrativa corresponde uma presença (no sentido heideggeriano da pré-sença como um tempo histórico).
No que se refere ao campo do qual eu estou falando, do lugar de onde falo, qual seja, de uma experiência no ensino de
história, gostaria de evidenciá-la a partir de uma interpretação da ideia de tempo e passado, considerando o mesmo enquanto
chão do ensino de história. Para isso, estabeleci uma ponte entre Walter Benjamin e a hermenêutica de Hans-Georg
Gadamer, sem deixar de conversar com outros autores que de um modo ou de outro me parecem abertos ao tema.
Reconhecer o passado enquanto tal e ao mesmo tempo enquanto pertencimento ao presente é uma tarefa especialmente
dada ao campo da educação e ao professor de história. Não apenas um trabalho que se ancora no horizonte da história, mas
como uma hibridização de saberes na qual a história defronta-se com a face da multiplicidade que constitui a realidade social
e sua produção de conhecimentos. Assim, também a filosofia está permanentemente apresentando perguntas que se tornam
chaves de abertura para compreender as ações humanas. A filosofia tem uma presença marcante porque elabora, destrói,
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desloca, recoloca, atualiza conceitos que possibilitam um acesso mais ou menos competente ao ser na sua forma de dar-se,
ou seja, enquanto linguagem. Um acesso dialético porque ambivalente: incompleto e possível.
Por certo, o horizonte de compreensão dessa complexidade se refere mais a uma constituição de pensamento híbrido,
interdisciplinar - a uma zona do pensar que favorece o olhar fronteiriço -, do que um território de teorias fixas.
E, é preciso dizer, o campo da educação é apenas mais um campo, um território no qual os saberes se encontram e se
reconhecem ou se estranham para pensar conceitos e ações que constroem os processos formativos com cargas de
historicidades que estão efetivamente afirmando temporalidades mesmo que, de modo imediato, não as reconheçamos.
Justamente por um déficit de cultura - de formação para a compreensão do mediado -, estamos aprisionados numa
concepção de tempo que isola a ideia de passado da ideia de presente, tornando a história um laboratório de análise do
primeiro em detrimento de um ou de outro e, logo, da vida que acontece agora.
A investigação acerca do modo como pensamos, como concebemos o tempo, implica na maneira como nos percebemos
historicamente, mais presentes ou ausentes no horizonte da história que, afinal, nos atinge. O tempo passado é um tempo
que tem identidade própria e também atua na constituição de consciências históricas que estão se fazendo agora em muitos
lugares (topós), inclusive numa aula de história e sobre isso deveríamos falar mais.
O passado é uma denominação conceitual, mas não necessita tornar-se categoria. O passado pode estar aberto à
interpretação, conforme a demanda interpretativa do presente. Se o presente está mais expandido de sentido, se tem mais
variações, mais combinações, mais plasticidade, ele necessariamente está acompanhando o fluxo de seu próprio movimento,
projetando condições de possibilidade à interpretação do passado, se, ao contrário, o campo de visão encontra-se interditado
por algum elemento restritivo de linguagem, o passado tem uma tendência de parecer algo distante, desconectado com o
presente e sem vinculações de ordens filosóficas mais atuantes. Olhar o passado como natureza morta pode significar um
limite do próprio presente. Mesmo assim, o mundo contemporâneo e as teorias atuais de interpretação dos contextos e dos
fenômenos sociais parecem mais dispostos a um alargamento na escuta do tempo, em função de seus próprios
deslocamentos e desterritorializações.
No tempo benjaminiano, a finalidade se desvanece, na medida em que aparece uma intensidade histórica, no sentido que
Dilthey nos abre como percepção cognitiva, volitiva, afetiva, que possibilitaria uma experiência intervalar própria de tempo
também como distinto, diferente e constituído de uma historicidade hermenêutica que pode compreender e se
autocompreender como passado-presente, de modo aberto. Justamente no momento em que compreendemos o tempo
enquanto história, remetemos nosso trabalho a perscrutar-lhe um conceito e sentido, pois como vimos analisando, o tempo
não existe fora de um aí.
Especificamente, pensemos na percepção de vida como vivências em conexões e talvez possamos compreender a valoração
do tempo benjaminiano como medium de reconhecimento de um passado-presente, que se corporifica na relação Erfahrung-
Erlebnis. Ou seja, uma vinculação vital se pretendemos ir mais além da história como um grande relato. A partir dessa
incursão, se pode, talvez, conceber um conceito de história no qual a vida se manifeste. Tudo isso parece ter a ver com a
formulação de um conceito de história que contemple um Jeitztzeit, enquanto uma função ética para o ensino de história como
medium, através do qual se possa falar no agir humano e suas faces diante do reconhecimento, ou não, do outro. Se falamos
somente numa elaboração formal de um conceito, seria adequatio e não especulação de uma filosofia da história investida do
propósito de algum câmbio social, tal como o próprio horizonte da teoria crítica ainda hoje persegue, e a hermenêutica
filosófica se mantém aberta.
O „tempo do agora‟ (Jetztzeit) é invenção do ser, a partir daquilo que se dispõe a experimentar em conexões de vida, onde
cada vivência “es un punto estructuralmente ontologicamente conectado con ese tecido” (DILTHEY, 2000, p. 127) que
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conhecemos como vida (e história). Com Dilthey, a história é um tecido de vivências que nos chega antes dos grandes relatos
(metanarrativas), conectando e estruturando o relacional, desde sempre, enquanto “conexión de la vida”, numa “relación del
todo y las partes” (id. p. 121). Há que se destacar que a idéia de totalidade nessa rede de conexões se mantém bem mais
presente na filosofia de Dilthey do que na filosofia de Benjamin, que privilegia a escapância do todo no elogio ao fragmento –
o que é compreensível para quem está imerso numa realidade fenomênica como aquela da modernidade.
Em Benjamin, o tempo só pode ser pensado e interpretado a partir do não desperdício desse outro agora: por sua
ressignificação se dá a possibilidade de a história ser vivida e narrada como um câmbio de uma suposta eternidade do
presente em outro que pensamos enquanto futuro. Então, sendo o tempo indissociável de história, e estando esta distanciada
de uma metanarrativa, como se aplica a ideia de tempo nos seus meandros? Como se atualiza a história depois da
metanarrativa do progresso que propôs a ela a atribuição de realizá-lo como totalidade e regra geral (8ª „tese‟), sobre a qual
recai a crítica benjaminiana? Assim, visualizamos uma possível correspondência entre a hermenêutica da Erlebnis, colhida
em Dilthey, enquanto conexões que estabelecem o tecido do que chamamos vida (Leben), e a disposição para compreender
a história como conexões dessas vivências não totalizantes que há em Benjamin. Dilthey, mesmo compreendendo a vida e a
história como um tecido de conexões particulares e cotidianas, que ele mesmo chama vivências e que constituem,
indefectivelmente, a história enquanto “histórias”, não se desfaz da perspectiva de um compreendê-la enquanto totalidade. Há
uma evidência de um contraponto aqui, quando Benjamin se refere ao reconhecimento do passado, não como totalidade, mas
como imagens dialéticas irrecuperavelmente inteiras – Benjamin é o filósofo do fragmento. Ele interpreta no fragmento os
vestígios do passado, por isso, a história também não poderia referir um tempo “homogêneo e vazio”, um tempo inteiro e
cheio, mas descontínuo, que se mantém apenas em “agoras” (14ª. „tese‟). Muito provavelmente, isso se deva à sua situação
hermenêutica, que, como sabemos, interage em todo autor. Mesmo com a crítica à razão histórica fundada em Hegel através
de um apelo à realização de um universal dado historicamente, “Dilthey va a inclinar la cuestión de la inteligibilidad de lo
histórico hacia el lado epistemológico” (MARDONES, 2001, p. 694) – ou seja, ele ainda pressupõe aquela continuidade
epistemológica que alicerçaria o conhecer histórico e evolucionaria o ser dentro de uma ideia de progresso.
Nesse sentido, Dilthey estaria ainda vinculado a uma adequatio entre sujeito e objeto, daí a necessidade de pensar a
continuidade numa interpretação “epistemológica” do passado – talvez já uma “epistemologia fraca”, como prenúncio do
descentramento crítico que viria mais tarde. Isso nos parece compreensível, se tomamos o pensador como homem de seu
tempo. O prenúncio da modernidade foi o tempo no qual Dilthey ainda não estaria imerso de todo, o que lhe permitiria
perceber as conexões do tecido da vida de um modo menos roto. Essa percepção do mundo esfacelando-se interferirá, de
modo decisivo, na interpretação da relação entre história e passado.
Reinhardt Koselleck (1997) apresenta algumas condições de possibilidade para uma distinção fundamental, quando se parte
para a investigação do que seja história:
La diferencia de la historia (Historie) empírica, la Histórica como ciencia teórica no se ocupa de las historias
(Geschichten) mismas, cuyas realidades pasadas, presentes y quizá futuras son tematizadas y estudiadas por
las ciencias históricas (Geschichtswissenschaften). La Histórica es más bien la doctrina de las condiciones de
posibilidad de historias (Geschichten). Inquieren aquellas pretensiones, fundadas teóricamente, que deben
hacer inteligible por qué acontecen historias, cómo pueden cumplimentarse y asimismo cómo y por qué se las
debe estudiar, representar o narrar. La Histórica apunta, por conseguiente, a la bilateralidad propia de toda
historia, entendiendo por tal los nexos entre acontecimientos (de ahí, su aspecto formal –
(Ereigniszusammenhänge) como su representación. (KOSELLECK, op.cit., 70).
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Para o autor, a “Histórica” é um campo abrangente, no qual as histórias têm visibilidade e finitude “del Dasein finito”(id.p. 71).
Entretanto, nos parece que a “Histórica” também se manteria nos limites do “cerco epistemológico” (GREISCH, 1998), tendo a
função de uma delimitação conceitual para história, conferindo-lhe estatuto de ciência, porque articula o acontecimento à
inteligibilidade. Em relação ao cercamento da epistemologia, a filosofia da consciência se manteve presente, através de uma
relação sujeito-objeto, pois as ciências históricas estiveram sob o jugo epistemológico da explicação racionalista da matéria
histórica em conformidade com o pressuposto de um método orientado no paradigma sujeito-objeto.
Porém, dadas às condições históricas na modernidade, a ideia do todo se torna muito débil para ser sustentada através do
pensamento filosófico. A filosofia contemporânea e a ontologia heideggeriana – aqui no seu aspecto de Destrukion
revitalizam a leitura de mundo dada no fragmento e finitude. Se assim consideramos o „fazer história‟, à luz da filosofia e como
um ato de interpretação, necessitamos proceder ao rompimento desse cerco epistemológico, como sugere Mardones (2001):
La interpenetración explicación/comprensión puede verse desde la explicación. Analizar una realidad
social, con su profundo simbolismo, requiere dar cuenta de su momento estructural. Exige un análisis
objetivo de lo que dice la cosa misma. Pero al mismo tiempo, el movimiento de cualquier análisis
socio-cultural empuja hacia una semántica más profunda: abre hacia un mundo posible a través de la
mediación misma de lo expuesto. La explicación se convierte así en la mediación hacia la comprensión
del sentido profundo del texto (hecho social). (op. cit., p. 697)
No âmbito da racionalidade, as características de distinção explicação/compreensão , dizem respeito a uma ideia de
superação nos moldes da dialética hegeliana, à qual estaria aprisionada a razão filosófica do sujeito na sua tradição de
nomear o objeto. Ao contrário do procedimento dialético tradicional, está a “abertura”, que a hermenêutica filosófica
contemporânea traz a partir da interpretação gadameriana de Heidegger, pela percepção do limite e da finitude do pensar. Ao
que parece, é, justamente, na compreensão dessa limitação de abarcar o todo que a abertura se produz. É também na
conversação que posso experimentar o outro, não apenas naquilo que ele me traz de modo imediato, mas, também, na
medida daquilo que ele me surpreende quando me interpela. Parece, então, que a “interpenetração” tem sentido quando
viabiliza a conversação, no seu aspecto de incontrolabilidade que nos vem da compreensão – de que o outro é uma
disposição que não controlamos 'a priori'. A partir dessa característica de incontrolabilidade na conversa que nos vêm na
experiência hermenêutica, podemos pensar numa universalidade para a linguagem. Porém, essa universalidade não seria um
dispositivo a priori de acesso à linguagem, senão algo que se constrói historicamente – se constrói no relacional da própria
conversa, validando tal experiência.
Podemos encetar, no problema da formulação de um conceito de história, a perspectiva de um Jetztzeit. Sabemos que se
torna indissociável, em Benjamin, uma interpretação do conceito de história alheio à temporalidade e aí está a aproximação
entre ele e Heidegger, como uma inflexão de ruptura na tradição metafísica: a incursão antropológica rende aos seus
horizontes a vitalização na interpretação de mundo, enquanto algo contingencial, cambiante, finito e que possui plasticidade.
Nessa relação se constitui toda experiência relacional, e dela, ou, melhor, através dela, o próprio „tempo do agora‟, o tempo
de reconhecimento. Pois bem, se pensamos essa concepção de tempo como um universo de uso relacional, temos que
aprofundar a própria noção de experiência das imagens dialéticas da modernidade, que servem de „experimento‟ à Benjamin
para desocultar aquilo que se esconde na Histórica como representação do acontecimento, compreendido desde sempre, no
seu aspecto social. Toda imagem, em Benjamin, produz uma incursão estética e antropológica, no sentido que é materialista:
nela fala um instantâneo de realidade. A história como histórias (Geschichten) se daria, então, como uso da vida a partir de
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vivências e experiências com essa realidade. Não só disponibilidade, propriedade e possibilidade para vivê-la, mas condições
efetivas de tomá-la como experimentação na forma de narração, dada no compreender da conexão entre Daseins.
As experiências de interpretação do outro, na forma do tempo „passado‟, oferecem ao interpretante possibilidades de acessar
formas de reconhecimento denegado, ou de desrespeito do direito de estar-com, que o círculo vitiosum perpetrou. Parece-nos
que um modo de essa interpretação acontecer se constitui através de uma conversação, na qual, de per si, o outro e sua
historicidade têm aparição. Porém, algo dessas experiências deveria nos levar ao futuro mais do que ao passado, que, por
fim, passou, é irrepetível como vivência, tem sua propriedade e singularidade que não se repetem. Com o passado, só nos
resta tentar aprender a romper o círculo vitiosum.
Essa experiência enquanto aprendizado do vivido em conexões relacionais tem a característica de oferecer condições de o
presente efetivar-se e deslocar-se, sendo compreendido, produzindo ressignificações na forma de um projetar (como futuro)
da diferença e da possibilidade de existência das pluralidades no relacional. Com isso, elaboramos um conceito que não se
fez ou se faz em si (de modo apriorístico), mas é, igualmente, constituído de outros elementos, que se conectam interagindo e
possibilitando o Jetztzeit.
A possibilidade de acontecimento do „tempo do agora‟ vem da disposição do compreender, e esse nada mais é que o abrir-se
ao outro, considerando que “En cada punto, la comprensión abre un mundo” (DILTHEY, 2000, p., 155) não apenas em
cognição, mas em volição e afeto no seu compreender. Interpretar história como uma tarefa filosófica e ética demanda, então,
uma racionalidade permeada do estético, só assim parece acessível algo do outro.
Lembremos que, Heidegger no § 31, de Ser e Tempo, apresenta o existencial como uma „disposição‟ referida ao „humor‟,
bem como à própria compreensão: dizemos “estamos dispostos a”, como quem diz: “temos bom humor para”. A expressão
poderia ser tomada como algo excessivamente simples, não fosse seu caráter constituinte da linguagem. Esse dizer possui
semelhança ao abrir-se para o compreender de algo. Aí reside, também, o aspecto volitivo da compreensão, na interpretação
do passado, do outro, que a educação também assume como coisa sua, não sendo necessário e suficiente o recurso da
razão epistemológica. Faz-se necessário a disposição imanente que abra, em nós, interpretantes, a presença na
interpretação. Daí se depreende, legitimamente, a questão da impossibilidade de não situar-se na conversação hermenêutica.
Uma ontologia da história não poderia deixar esse elemento volitivo, de subjetividade, alienado da interpretação, de uma
relação passado-presente que é a matéria-prima da história mesma. Aí, o elemento ontológico, indissociável do mundo,
rompe com a concepção idealista de sujeito, pois este passa a ser determinado no fluxo do acontecimento da interpretação.
Os indícios e vestígios da história e mundanidade são elementos de ligação dialético-hermenêutica entre a parte e o todo, no
sentido em que sinais de história vivida que sobrevêm ao intérprete historiador possam ser reconhecidos por ele. Esses sinais
encontrados nos vestígios de materialidade e imaterialidade são reconhecidos, porque se encontram imersos num movimento
inesgotável de participação de quem os vê, quer dizer, apenas se dá o reconhecimento de algum vestígio na abertura
hermenêutica que a participação propicia como estar-com. Quando participamos do outro, o fazemos a partir da perspectiva
do descentramento de identidade: o sentido comum reside na ideia de que coexistimos desde sempre.
Se associamos o passado a um texto ou qualquer outro vestígio de história (tensionados entre memória e esquecimento),
remetemos esse sentido para “aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão” (HEIDEGGER, op. cit., p. 208). Esse
articular-se parece corresponder ao mosaico delineado por Benjamin sobre a história, o tempo e a modernidade, enquanto
projetar de uma pergunta ao outro. Nesse ponto, a pergunta pelo passado se interpõe a partir daquilo que nos é dado como
forma de tempo do qual pertencemos através da universalidade da linguagem, pois sabemos do passado, porque há vestígios
dele na mundanidade presente. Assim, aspectos do passado e do presente são mediados na conversação hermenêutica,
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configurando uma experiência de deslocamentos temporais – intersubjetivos. A disposição é um existencial que contribui ao
acontecimento da conversação enquanto dispositivo de linguagem na abertura ao estar-com.
É em Gadamer que se explicita a função hermenêutica de uma conversa, enquanto “um acontecimento que tem lugar em nós
mesmos”. Com isso Gadamer está se referindo a um educar-se para o estar-com que ela propicia e não ao retorno de um
fundamento transcendental. O acontecimento da conversação, segundo Gadamer, se ampara numa estrutura que aparece na
forma da articulação entre pergunta e resposta, na qual a pergunta tem sua primazia hermenêutica, vindo daí a característica
maior da própria interpretação histórica, que não poderia se limitar à explicação, pois através de uma perspectiva
compreensiva, ele tem possibilidade de abrir-se à interpretação. De modo relativamente simples, porém não menos complexo,
podemos dizer que a pergunta o interpela e o provoca à manifestação de resposta. Esse jogo entre o perguntar e o responder
não determina o que seja o outro, mas possibilita sua aparição.
Uma conversação hermenêutica, então, é um acontecimento finito de linguagem, porque interage com o limite de se continuar
falando ad infinitum na tentativa de conhecimento total; é incontrolável, porque sua característica forte é a presença do outro,
que se expressa de modo particular, trazendo a surpresa e é aberta no seu sentido anticonclusivo, porque considera que
outros elementos poderão se agregar de modo efeitual, possibilitando as ressignificações dos conceitos que a constituem.
Toda experiência de conversação produz efeitos ulteriores. Ela nos faz pensar de modo mediado e efeitual permanecendo
como produtora de conexões e deslocamentos de sentidos. Nesse viés, ela é constituída de matéria histórica, não apenas
porque cada posição de fala ali é uma historicidade, mas porque sob seu efeito, ela repercute socialmente, o que equivale a
dizer que ela repercute historicamente. Sua atitude “pedagógica”, portanto, é unicamente de exercício hermenêutico, e, por
isso, não poderia reproduzir a intencionalidade “meio-fim” de uma filosofia da consciência, por exemplo.
É assim que a conversa parece mostrar seu potencial de ressignificação na relação eu-tu. A conversa não é apenas uma
tentativa de esgotamento de palavras e busca de sentidos. A conversa entre eu e tu é mais um desalojamento de territórios e
dos seus sinais, por meio de uma inversão metodológica no “cerco epistemológico” da relação sujeito-objeto, da qual já
fizemos referência anteriormente na introdução. A conversação não tem um roteiro pré-estabelecido, não se constitui de modo
apriorístico e, por isso, ela tem seu reconhecimento filosófico, justamente porque, lembrando Gadamer (1998a), “o que „sairá‟
de uma conversação ninguém pode saber por antecipação. O acordo ou o seu fracasso é como um acontecimento que tem
lugar em nós mesmos” (op. cit., p. 559). Esse não saber a destinação da coisa – a “incontrolabilidade” (FRANK, 1998)
ressignifica a própria relação entre os seus participantes e se torna fundante dela mesma. Ela se realiza, legitimamente, num
campo de forças de linguagens. São mundos que se expõem ao confronto e se retroalimentam na conversa estabelecida
entre eu-tu, não mais na subsunção de um sobre outro (GADAMER, 1998a).
Numa aula de história, uma conversação acerca do escravismo colonial, por exemplo, não poderia levar à realização de uma
intenção primeira por parte do professor que tivesse o objetivo de conduzir as consciências dos alunos ao conhecimento do
passado escravista in totum. Isso seria consagrar, da história universal, seu aspecto resolutivo que está no grande relato, no
qual somente há representação do ideário de progresso. O grande relato positivou a história e, demasiadamente, “aparou
suas arestas”. Numa experiência de educação hermenêutica, o máximo que se extrai desse propósito é trazer à cena o
potencial perspectivista de uma situação histórica e tecer considerações que nascem das vozes presentes em aula,
interagindo na interpretação a partir do jogo entre explicação – que concerne à própria formação do professor , e
compreensão. Essa e aquela também se valem das subjetividades vinculantes no spatium e das conexões de vida que têm
pertença e se expressam aí. Então, o processo de formação da consciência histórica para o reconhecimento se faz na
mediação entre as experiências temporais que se apresentam nesse encontro.
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Dizendo isso, inferimos que a função da aula se refere à problematização de conceitos e temáticas e não se restringiria a uma
preleção e/ou ideologia do conceito. Trata-se, portanto, de, a partir da problematização de elementos de informação histórica,
produzir-se a formação para o reconhecimento do perspectivismo histórico, como modo de reconhecer a existência do outro
que emerge no acontecimento de uma conversação. Passa a existir correspondências entre a formação para uma
participação em comunidade, que se ensaia na inserção da conversa, e a constituição da aula como coisa histórica,
ampliando a formação para o reconhecimento do outro.
A experiência de “abrir o debate” às considerações acerca da coisa histórica parece muito recente no Brasil. Assim, o uso da
filosofia hermenêutica como cruzamento no campo da história faculta a expansão do próprio uso do spatium social, que se
constitui de modo universal e particular. A potencialidade da conversa se refere, pois, à disposição não só para fala, mas
também para a escuta. O reconhecimento social parece se constituir justamente nesse exercício, residindo, aí, um elemento
de contribuição da atitude hermenêutico-filosófica ao horizonte do ensino de história.
Se retomamos a ideia de Gadamer acerca da potencialidade de uma conversação, podemos perceber sua intenção de defesa
à posição aberta da mesma, pois ali há não somente a impossibilidade da síntese, porque a função da pergunta é abrir
possibilidades, não se dirigindo ao reino dos fins, que seria “conclusivo”, como também uma compreensão de que a pergunta
hermenêutica se constitui a partir dos elementos que o outro indica, não podendo ser predeterminada, sendo pertencente a
um círculo hermenêutico. A validez da conversação concerne a dois pontos importantes que destacamos: primeiro, que ela
tem uma estrutura de horizontalidade e, segundo, que ela se mantém aberta enquanto círculo hermenêutico.
A conversação se mistura em intencionalidade com o sentido da interpretação, ou seja, com a hermenêutica, enquanto teoria
da interpretação e, mais especificamente, da interpretação histórica. E mais ainda: a hermenêutica filosófica aplicada à
história se torna um campo estendido e, a partir dessa fusão de horizontes, oportuniza múltiplas vozes na interpretação do
passado. Logo, uma conversação hermenêutica pode instaurar uma outra maneira de dar escuta e voz ao passado.
Diferentemente da forma epistemológico-explicativa se interpõe uma transepistemologia, uma abertura estético-cognitiva do
passado que redimensiona o sujeito presente temporalmente. Trata-se de uma viagem não linear ao outro, dada no círculo
aberto hermenêutico, objetivada na conversação em aula.
Dito em outras palavras, com o uso da pergunta, a interlocução existente entre presente e passado, que se dá na
conversação, possibilita a emergência daquilo que aparecia como silêncio, mas era também resistência. As vozes do passado
(BENJAMIN, 2a.„tese‟), que se mantêm no esquecimento, não desaparecem, elas apenas configuram outra linguagem, outro
modo de ser no tempo, que poderá deslocar-se e tomar corpo e visibilidade através da intervenção de outros modos de
linguagem – outro modo, como o da conversação. O silêncio como experiência constituinte do tempo pode ser tomado,
também, como um intervalo no qual habita o indizível da palavra falada ou escrita. Como analisa Frank, se trata, portanto, de
uma visibilidade e validez , da linguagem do silêncio, como já pensara Heidegger.
Além disso, a “incontrolabilidade” que existe numa conversação, ao contrário de inviabilizar a relação eu-tu, projeta a
existência dela, porque, aí, acontece a linguagem como algo histórico, especialmente dado como vida (Leben), na qual se
conectam o universal e o particular. Segundo Frank (1998),
La conversación es un universal individual; es universal, pues sin la fijación supra individual del sentido de las
expresiones, el entendimiento quedaría excluido por principio; pero es, a la vez, individual, porque la universalid
de la síntesis de signos disponibles y las reglas de combinación tiene que aprobar siempre el examen de la
construcción del mundo del hablante singular. (op., cit., 92)
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Através dessa perspectiva, um discurso, uma narrativa que emerge no campo de forças do contexto de sala de aula de
história e com intenções de abordar, compreender, interpretar o passado, não se constitui para além de historicidades, pois
esse discurso se inscreve a partir da situação hermenêutica de cada um daqueles que instituem a conversação no presente.
É nesse sentido, que se destacam marcas de historicidades dos falantes (professor e aluno) tensionados na constituição
histórica do universal individual - uma tensão dada como efeito do modo sutil que entrelaça o particular e o universal
presentes nas linguagens.
Essa abordagem nos auxilia na compreensão de uma função para a experiência da interpretação do passado. Essa
experiência diz respeito muito mais aos deslocamentos e às transformações das subjetividades no presente do que
propriamente às intervenções no passado - tarefa impensável no âmbito de uma consciência hermenêutica -. O „tempo do
agora‟ se assemelha, então, a um presente histórico corporificado, atualizado, sendo, por isso, carregado de significações e
de “deslimitación semántica” (FRANK, 1998), possibilitando os deslocamentos que são peculiares às interpretações que
surgem na conversação. O outro emerge nesse universo no qual ele não está pré-configurado por um sujeito epistêmico: o
outro tem sua historicidade, mas também não está sobredeterminado por ela; ele também se constitui na experiência da
universalidade e particularidade da linguagem no instante de seu acontecer, seja o outro falante (o eu ou o tu), seja o outro
que tem aparição na interpretação do passado. Ele nos instiga a interpretá-lo por compreensão, a partir daquilo que
reconhecemos em nós. Então, o passado é presente porque se estende efeitualmente na forma de nossa historicidade: ele
atua em nós pela possibilidade de abertura, contribuindo para a ressignificação da própria ideia de tempo e da ideia de nosso
pertencimento na mediação do tempo tomado, enquanto relacional. Quando interpelamos o passado nessa perspectiva
estamos abrindo o universo de possibilidades de constituição de subjetividades o que de resto amplia não apenas a
consciência histórica, mas especialmente a dimensão estética da relação passado-presente. Temos aí a disposição
ontológica dada na conversação para percebemos, através da mediação de tempos, da interação entre os mesmos, o que de
universal pode conter nosso individual, ou seja, percebermos a própria multiplicidade dos particulares, dos singulares. O que é
ontologicamente comum a todos e manifestado no estar-com através do reconhecimento da imbricação entre as dimensões
afetiva, cognitiva e social e acionado não apenas pela explicação oriunda do campo cognitivo – que produziria a episteme -,
mas pelo uso estético do conceito de história enquanto experiência de estar com o outro. Mas, está claro, isso não nos é dado
enquanto uma fórmula - o que seria a negação do próprio paradigma da linguagem -, por isso, trata-se de uma tarefa filosófica
sem télos, porque necessita experiência da própria conversação, no seu aspecto elementar de incontrolabilidade. Portanto,
trata-se de uma virada paradigmática importante no reconhecimento do outro que, não apenas participa da conversação,
exercendo seu direito de estar ali enquanto e-xistente, como também não poderia ser previamente mapeado na sua
manifestação que só é, justamente, no fáctico do e-xistente.
Por certo, o horizonte da hermenêutica filosófica não pretende tornar-se um amparo prescritivo ao campo da história e, menos
ainda, ao ensino dela - não estamos, aqui, falando de um sentido de preleção educativa para o ensino da história (um “como
fazer uma aula de história”). Todo o ganho viria apenas da importância da experiência da exposição que a filosofia nos
ensina, como maneira ontológica de estar aí, como presença, que de resto importa a toda a coisa que se quer histórica.
Através da atitude filosófica de exposição, o conhecimento e a compreensão das coisas necessitam da compreensibilidade
dos elementos de finitude e limite da própria consciência história, ampliada no próprio educar-se e relativizada na presença do
outro. Tal forma de consciência atua na interpretação e orienta-se pelo caráter não resolutivo da coisa, mas que tem escuta e
abertura na pergunta que move a interpretação.
Para uma interpretação do passado no „tempo do agora‟, esse ponto se torna relevante, pois a potencialidade da pergunta
seu caráter interminável e indeterminável , nos possibilita o acontecer do reconhecimento entre elementos presentes e
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passados, a partir de uma relação ontológica que se dá através da universalidade da abertura no ser humano – o poder-ser, o
passado se projeta no presente, porque a ele se mantém ligado através do fio condutor da linguagem (GADAMER, 1998),
transformando o conceito do conhecimento, até então, epistemologicamente dado. Aí,
O tempo já não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na
verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. A distância de tempo não
é, por conseguinte, algo que tenha que ser superado (...) Na verdade trata-se de reconhecer a distância de
tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. (op. cit., p. 445)
Com base nessa incursão, nesse trânsito entre teorias e conceitos que pensam a história, a educação, a formação cultural
enquanto um pensar a própria demanda pela ressignificação de sentidos na epistemologia é que alçou o voo para uma
experiência transepistemológica. Não se trata de abolir o pensamento crítico e a ciência, mas exercitar no livre pensar aquilo
do qual se espera do espírito livre – experimentar a vida que constitui história e tempo, traduzindo-os no formato de um outro
currículo. Mais plástico, mais lúdico, e mais aberto às experiências relacionais, parece se referir mais à demanda
contemporânea da educação na sua perspectiva política.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. 7a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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de la hermenéutica y los Esbozos para una crítica de la razón histórica. Madrid: Ediciones Istmo, 2000.
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Currículo e Epistemologia | 174
Rosanne Evangelista Dias
UFRJ
O CURRÍCULO COMO UMA POLÍTICA CULTURAL PÚBLICA
As políticas curriculares são resultado de um processo de negociação complexo que implica na atuação de sujeitos e grupos sociais em prol
de uma determinada proposta. No curso desse processo de negociação estão presentes conflitos e acordos tencionando um consenso
possível em torno de políticas. O consenso que resulta dessas políticas, muitas vezes, não é abordado em análises que têm como temática
as políticas curriculares. Em algumas delas, tal aspecto fica obscurecido por estar centralmente focalizada a atuação dos governos na
produção e definição das políticas curriculares. Outros trabalhos reconhecem a existência de processos de articulação por parte de
diferentes sujeitos e grupos com conhecimento autorizado na produção de políticas, relativizando a centralidade do Estado e dos governos
(Dias, 2009). Defendo o currículo como uma política cultural pública, na qual a produção de hegemonia (Laclau, 2005) depende de
articulações provisórias e precárias entre demandas educacionais. Entendo a produção de políticas curriculares como um processo cuja
dinâmica pode ser analisada como um ciclo, abordagem oriunda do campo das ciências sociais utilizada por Ball (1994, 1998)e Ball e Bowe
(1998) em suas pesquisas sobre política educacional. Considero a produção de hegemonia em torno das políticas curriculares como um
processo de luta por projetos que envolvem conhecimento e poder (Antoniades, 2003)em diferentes articulações políticas a partir das
demandas educacionais que são produzidas por diferentes sujeitos e grupos, em diferentes escalas(global e local). Destaco a importância
da análise dos discursos produzidos pelas comunidades epistêmicas nos processos de produção e disseminação de ideias sobre as
políticas curriculares. Tais comunidades caracterizam-se pela influência na definição das políticas curriculares, ao disputarem
discursivamente a hegemonia de seus projetos. Desse processo complexo de produção de políticas por parte de diferentes grupos em
busca da legitimidade de suas proposições, derivam documentos de definição curricular marcados pela ambivalência que acabam por
hegemonizar diferentes projetos em disputa em meio a um complexo processo de negociação de diferentes sentidos. Neste trabalho,
defendo o ciclo de políticas e a teoria do discurso (Laclau)como abordagens teórico-metodológicas que permitem uma análise relacional das
políticas curriculares, a produção de investigações que focalizem as diferentes disputas em torno das definições curriculares bem como a
multiplicidade de diferentes contextos de produção das políticas, permitindo a sua melhor compreensão.
O cenário que envolve a discussão do objeto deste trabalho é marcado pela intensidade de sua produção, em um momento
marcado por variadas reformas estruturais nos mais diferentes países e nos mais variados campos (educação, saúde,
previdência social, etc.). As políticas curriculares inserem-se também na área da política pública. No âmbito da política
pública, defendo o currículo no campo da cultura, envolvendo o debate sobre conhecimento, valores, hábitos, costumes,
crenças, entre outras questões. Desse modo, sua produção não está circunscrita exclusivamente ao Estado, mas envolve
todos os sujeitos que produzem o discurso curricular nos vários contextos em que ele circula, seja na escola ou para a escola,
como resultado das lutas de vários sujeitos e grupos sociais. O currículo não apenas é um produto da cultura, mas é um
produtor de cultura e entendido desse modo permite-nos compreender as diferentes disputas que são feitas em seu nome.
Defendo a ideia do currículo como uma política cultural pública que tomou o centro das reformas educacionais no Brasil e em
diversos países do mundo. Desde os anos de 1980 o movimento de reformas curriculares vem sendo retratado em estudos de
pesquisadores e difundido por uma série de recomendações internacionais formuladas, especialmente, por agências
multilaterais de diferentes naturezas. Nesse período, diferentes proposições curriculares para os diversos níveis e
modalidades de educação foram produzidas.
Pensar o currículo como uma política cultural pública remete a perspectivas que possibilitam análises relacionais com
aspectos das políticas sociais do país, aspecto muitas vezes negligenciado em pesquisas sobre a política educacional.
Currículo e Epistemologia | 175
Defendo essa perspectiva por entender que a produção de conhecimentos, e mais amplamente de cultura, e a sua
organização em propostas curriculares não podem ser aspectos secundários nas análises sobre as políticas públicas, ao
contrário, devem ser explorados de forma intensa nas investigações, se compreendemos a importância do currículo como
uma política cultural.
As políticas curriculares são resultado de um processo de negociação complexo que implica na atuação de diferentes sujeitos
e grupos sociais em prol de uma determinada proposta. Entendo ainda que pensar o currículo como uma política cultural
pública, implica buscar uma aproximação das análises do campo da educação com o das ciências sociais para entender o
currículo como uma arena de negociação de sentidos, marcado pela dinâmica de complexidade sempre contingente e
provisória (Laclau, 1996). No Brasil, a área da política pública é marcada por uma produção recente e muitos estudos têm
revelado a sua ainda pequena consolidação na pesquisa acadêmica. Para entender melhor a constituição da política
curricular como uma política cultural pública foi valiosa a leitura sobre “o estado da arte da pesquisa sobre as políticas
públicas”, nas ciências sociais. Verifico a convergência nessa produção entre os campos da educação e das ciências sociais
e identifico as principais tensões e complexidades que envolvem essa área de conhecimento. A literatura selecionada para
essa discussão tem por base a produção nacional e internacional sobre políticas públicas e currículo. Defendo o currículo
como uma política cultural pública, na qual a produção de hegemonia (Laclau, 2005) depende de articulações provisórias e
precárias entre demandas educacionais.
Neste trabalho, ao argumentar o currículo como política cultural pública, venho defender o ciclo de políticas e a teoria do
discurso como abordagens teórico-metodológicas que permitem uma análise relacional das políticas curriculares, a produção
de investigações que focalizem as diferentes disputas em torno das definições curriculares bem como a multiplicidade de
diferentes contextos de produção das políticas, permitindo a sua melhor compreensão.
PRODUÇÃO DE POLÍTICAS NAS ARENAS DE NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS
No curso dos processos de negociação de sentidos das políticas curriculares estão presentes conflitos e acordos tencionando
um consenso possível em torno delas. O consenso que resulta dessas políticas muitas vezes não é abordado em análises
que têm como temática as políticas curriculares ou, por vezes seu processo de produção não é explorado na análise da
política. O consenso então deve ser pensado como um dos resultados do processo de decisão política, mesmo que seja
provisório e contingente, pois as práticas articuladoras são subvertidas e transformadas constantemente (Mouffe, 1996).
Assim, na luta pela política não há posição que esteja assegurada ad infinitum nem a priori, elas são disputadas
continuamente e mesmo que, no caso do currículo constituam definições curriculares, podem ser substituídas por outros
textos políticos em novos processos de articulação e significação do currículo. São as posições dos sujeitos que influenciam
os processos de articulação (Mouffe, 1996; Laclau, 2005). Lembro que são distintas as posições assumidas pelo mesmo
sujeito, no mundo contemporâneo, e as ambivalências que podem surgir derivadas dessas diferentes posições do sujeito,
influenciadas também pelas inserções em grupos que defendem semelhantes posições e suas relações de poder. Essas
diferentes posições que um mesmo sujeito pode ocupar é analisada por Laclau (1996) como um processo de hibridização das
identidades políticas devido às diferentes partilhas que um único sujeito tem como diferentes grupos sociais. Penso que o
conceito de identidade na produção de políticas deve ser considerado a partir dessas múltiplas relações que implicam a
formação de identidades híbridas. Para Laclau (1996), essa condição não acarreta a perda de identidade, mas muitas das
vezes, em abertura de novas possibilidades, pois o particular só pode realizar-se plenamente se mantém constantemente
aberta, e redefine também constantemente, sua relação com o universal (p. 119). Contudo, analisar interações entre esses
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sujeitos políticos implica ter uma visão diferenciada daquela que atribui às forças externas a responsabilidade total e
inexorável pelo empreendimento da política contra a qual não há espaço para “negociação”.
A partir dessas considerações torna-se pouco produtivo pensar os processos de produção e definição de políticas
curriculares que focalizem centralmente a atuação dos governos nessas políticas. Outros trabalhos reconhecem a existência
de processos de articulação por parte de diferentes sujeitos e grupos com conhecimento autorizado na produção de políticas,
relativizando a centralidade do Estado e dos governos (Dias, 2009).
A produção de políticas curriculares cuja dinâmica do processo pode ser analisada como um ciclo está presente como
abordagem do campo das ciências sociais e, utilizada por Ball (1994, 1998) e Ball e Bowe (1998) em suas pesquisas sobre
política educacional. Essa abordagem é útil para compreendermos a política como um processo complexo que exige
negociação em diferentes contextos: de influência, de definição de textos políticos e da prática. Todos esses contextos com
um processo dinâmico que implica na produção dos sentidos do que é currículo e para qual finalidade ele se destina. A
produção de sentidos é resultado das ideias de sujeitos e grupos que atuam nos diferentes contextos, podendo em muitos
casos atuar em todos eles o tempo todo, em alguns momentos da luta política ou da sua própria atuação cotidiana, como já
vimos em relação às diferentes posições do sujeito (Laclau, 1996).
A luta por projetos em busca da hegemonia de uma determinada política curricular implica em uma luta que envolve
conhecimento e poder (Antoniades, 2003) em diferentes articulações políticas a partir das demandas educacionais que são
produzidas por diferentes sujeitos e grupos, em diversas escalas (global e local). As demandas encarnam as expectativas
pelas quais sujeitos e grupos sociais lutam no processo político e com que negociam tendo em vista um projeto que alcance a
legitimidade tornando-se hegemônico. A mobilização em torno de demandas se realiza tendo em vista a oposição a algo, no
caso do currículo, por exemplo, na luta por um currículo integrado da formação de professores da educação básica opondo-
se, no caso da reforma brasileira a uma formação menos acadêmica do professor (Dias, 2009). Nas investigações sobre
políticas curriculares, defendo a importância da análise dos discursos produzidos pelas comunidades epistêmicas nos
processos de produção e disseminação de ideias sobre as políticas curriculares. Os discursos produzidos e disseminados
sobre as políticas curriculares disputam diferentes sentidos nas diversas arenas nas quais estão postos e são assumidos por
lideranças que lutam pela legitimação de seu projeto. Tais comunidades influenciam e são influenciadas pela política ao
disputarem discursivamente a hegemonia de seus projetos. Resultam desse processo complexo de produção de políticas,
documentos de definição curricular marcados pela ambivalência ao incorporar diferentes projetos em disputa em meio a um
complexo processo de negociação de diferentes sentidos nos quais diferentes grupos e sujeitos lutam pela legitimidade de
suas proposições.
Ao analisar a reforma curricular é importante reconhecer, nos mais variados setores envolvidos na discussão da área de
políticas públicas, a centralidade na discussão sobre o contexto no qual ela se materializa, ou ao seu caráter contingente. No
contexto da globalização, reformas surgem de forma intensa e políticas curriculares são produzidas, voltadas especialmente
para a educação básica e a formação de professores. Os textos produzidos pela reforma difundem, de um modo geral, um
discurso na defesa de políticas que dêem conta das exigências apontadas pelo cenário de globalização e de um mundo em
permanente mutação (Lopes, 2004), atribuindo à educação o papel de responsável por assegurar as condições para que
crianças e jovens se adaptem às configurações contextuais que se apresentam. Esse discurso, por certo, como já avaliado
por Burbules e Torres (2004) acarreta consequências para o ensino e a aprendizagem que precisam ser compreendidas pelos
que se dedicam às análises das políticas públicas educacionais.
Ao focalizar a reforma educacional, não devemos perder de vista outras reformas (econômicas, políticas e culturais) que estão
em circulação influenciando o quadro de produção das políticas (Burbules & Torres, 2004) e ainda pensarmos que todas elas
Currículo e Epistemologia | 177
são produto de nossa cultura. Processos de globalização contribuem para a difusão das políticas favorecendo, de certo modo,
convergências em inovações políticas nos mais diversos países em todo o mundo e esse aspecto também é cultural. Esses
processos de convergência são muitas vezes favorecidos, via promoção de seminários como estratégia para a produção de
consensos. Esse movimento de reformas trouxe para o debate sobre as políticas uma série de experiências bastante distintas
por um lado, embora com marcas de singularidade entre processos tão diferentes, especialmente nos anos 1990, quando
esses processos se acentuaram em diversos países (Melo, 2004).
Penso que ignorar essas mediações pode nos levar a acreditar na existência de um processo de globalização homogêneo do
qual não é possível escapar, contrariando a realidade que aponta para diferentes dinâmicas da globalização como resultado
de seus variados efeitos e relações sobre diversos locais (Burbules & Torres, 2004). Esse cenário dinâmico e multifacetado
nos convida a pensar a pesquisa sobre políticas curriculares como uma política cultural pública, marcada por hibridismos
(Canclini, 1998; Hall, 1997; Lopes, 2006a e b; Lopes & Macedo, 2002; Macedo, 2006a e c) e por lutas sociais pela
significação do currículo.
Defendo o currículo como uma prática de significação no âmbito da política curricular pública, caracterizando a sua produção
como dinâmica e imprevisível, cujo processo de lutas de poder em torno dos processos de significação nas arenas de
produção cultural são sempre contingentes (Macedo, 2006a). Concordo com essa concepção da produção curricular expressa
por Macedo (2006a) de que precisamos pensar o currículo mais como algo que está sendo do que como algo que já foi (p.
104), como um texto mutável. Situo o discurso como importante prática social na significação do mundo com a qual as
análises de políticas curriculares muito se beneficiam, pois currículo implica a produção de conhecimento através da
linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e
pondo novas práticas em funcionamento (Hall, 1997, p. 29). Essas análises, a partir dos discursos articulam diversos
domínios do conhecimento humano, habilitando-nos a falar sobre um determinado assunto e a produzir conhecimento a partir
de uma linguagem (Hall, 1997). Essa luta pela significação do currículo entre diferentes grupos e sujeitos está envolta em
relações e tensões e tem por finalidade legitimar posições por eles defendidas em meio a diversos sentidos em disputa. Por
ser o currículo uma síntese de elementos culturais (Southwell, 2008, p.126) a produção de sua política envolve uma
pluralidade de setores sociais com diferentes interesses, muitas vezes em conflito (Southwell, 2008). Entendo que o resultado
desse processo complexo de produção de políticas é a hibridização dos textos curriculares com marcas da heterogeneidade,
resultado das diferentes influências que envolvem sua produção e disseminação em meio a processos de lutas. Lutas essas
que estão vinculadas a visões do mundo e modos de vida singulares e assimétricas que de modo algum favorece a produção
de propostas que visem à homogeneização, daí então o permanente campo de disputas na direção das opções sobre as
significações e de sua legitimação. Como um híbrido, o currículo permite a inclusão de relações oblíquas de poder que
propiciam o fortalecimento de grupos distintos como movimentos de resistências (Macedo, 2006c, p. 290). Tais relações de
poder são típicas de processos de transações de sentidos e significados nos quais diferentes forças atuam, como tem sido
caracterizado o complexo processo de produção de políticas curriculares. Para Canclini, reforçando a perspectiva defendida
por Ball, captamos muito pouco do poder se só registramos os confrontos e as ações verticais (p.346). Em conformidade com
o proposto na abordagem do ciclo de políticas, a partir da perspectiva de poderes oblíquos, podemos extrapolar das análises
bipolares para avançar nas ações de poder descentralizadas, permeadas por processos de mediação, multideterminada que
caracterizam as relações sócio-políticas em busca de soluções intermediárias (Canclini, 1998).
A ideia de um padrão único a ser incorporado (Lopes, 2006b) fica debilitada nos processos de recontextualização por
hibridismo, nas mediações de significações realizadas pela escola e para a escola. Essas significações constituem os
Currículo e Epistemologia | 178
discursos que circulam em torno da política curricular, como podemos ver em alguns discursos que destacam na produção
das políticas curriculares contemporâneas, o conhecimento e a cultura.
O discurso do conhecimento tem se destacado como um eixo de grande importância nos discursos produzidos e difundidos
por diversos sujeitos e grupos sociais. Tem sido muito associado em documentos das reformas curriculares ao mundo
globalizado e em permanente mutação o que constitui em um desafio para as condições de produção de conhecimento
historicamente conhecidas. Desse modo, os discursos produzidos apontam para a defesa de uma “nova” concepção de
conhecimento e de ensino para o que chamam de inexoráveis mudanças nos campos científico, social e econômico (Dias &
Abreu, 2006, p. 298). Em grande parte, essa motivação é oriunda das recentes crises do capital em busca de alternativas
para a formação e qualificação de trabalhadores ajustados aos modelos de inserção ao mundo do trabalho. Nessa
perspectiva o conhecimento vincula-se ao caráter instrumental que tenta responder à questão da utilidade de sua aplicação.
Apesar da ênfase no conhecimento, o valor da educação está vinculado menos ao conhecimento do que aquilo que,
potencialmente, ele pode conquistar na sociedade. Chamamos a isso de cultura da performatividade cujo modelo implica na
utilização de métodos de mensuração e controle e em discursos de responsabilidade que, a despeito de permitirem maior
controle social de uma determinada política, na verdade, colaboram para a instauração de métodos de vigilância e controle
sobre o conhecimento e seus usos na sociedade, especialmente nas instituições educacionais. Assim, importa menos (apesar
do discurso em contrário) o conteúdo ou a informação, em constante mudança no mundo, do que a aplicabilidade do
conhecimento (Dias, 2004).
O discurso sobre a cultura, ou da interculturalidade, tem estado presente como eixo das reformas curriculares. A emergência
da cultura como discussão nas políticas curriculares tem sido motivada por posicionamentos diversos. O Relatório Delors
(2001) pode ser citado como importante texto político que apresenta a cultura como uma discussão central para a educação
e, consequentemente para as discussões no âmbito das políticas curriculares. Reconheço o papel do Relatório Delors (2001)
como catalisador de políticas curriculares em seu amplo arco de alianças, resultado de uma construção global com a
participação de sujeitos e grupos sociais e políticos dos mais variados países e experiências culturais, políticas, sociais e
econômicas bastante distintas (Dias & López, 2006, p. 59). Aborda as tensões que atingem o mundo atual, destacando os
conflitos culturais presentes em diferentes culturas e promove o que denomina o pilar aprender a viver juntos como uma forma
de aplacar tensões que vêm gerando novas formas de desigualdade e exclusão. No âmbito da formação de agendas e de
negociação em torno das políticas curriculares tem estado presente a articulação entre globalização, integração regional e
culturas diversas (Canclini, 2003, p. 11). Educar para a convivência, estando aberto para os diferentes modos de vida, implica
a ampliação de nossa capacidade de entender e aceitar o diferente, como nos convida Canclini (2003, p. 100). Esse é um
modo de refletir a diferença, defendido por Hall ao analisar os méritos da hibridação (apud Canclini, 2003), que rompe com as
formas binárias de pensá-las, sem dissolvê-las.
Reconheço a cultura como um foco de fundamental importância nos discursos das políticas curriculares que circulam na
atualidade, entendendo a sua complexidade tão bem expressa por Canclini na afirmação de que
toda política cultural é uma política sobre os imaginários que nos fazem crer semelhantes. Ao mesmo tempo, é
uma política sobre o que não podemos imaginar dos outros, para ver se é possível compatibilizar as diferenças
(Canclini, 2003, p. 99).
Outro aspecto importante no debate sobre as relações entre currículo e cultura é trazido por Macedo (2006a e b). Ao situar o
currículo como uma prática cultural que envolve, ela mesma, a negociação de posições ambivalentes de controle e resistência
Currículo e Epistemologia | 179
(2006b, p. 105), a autora lembra-nos que o currículo deve ser pensado como prática política e espaço de lutas e tensões, ou
uma arena de produção cultural. Macedo ainda defende o currículo como um lugar híbrido do valor cultural (2006a, p.183),
espaço em que as culturas negociam com-a-diferença (2006b, p. 105), favorecendo a partir de suas práticas a interação entre
as variadas culturas, seja como objeto do ensino ou como produção da escola.
Compartilho da posição de Lopes (2004) de que devemos compreender a política curricular como produção da cultura ao
entender que ela envolve embate de sujeitos, concepções de conhecimento, formas de ver, entender e construir o mundo
(Lopes, 2004, p. 193), nos múltiplos espaços em que participam no contexto social. Desse modo, as políticas de currículo
devem ser analisadas para além das questões que envolvem os processos de produção, seleção, distribuição e reprodução
do conhecimento. Devem ser pensadas na perspectiva que favoreçam a heterogeneidade e variedade de mensagens, que
podem ser lidas por diferentes sujeitos de diferentes formas, sem a pretensão de congelar identidades (Lopes, 2005b, p. 56-
7), em outras palavras, na produção de variados discursos.
Entendo que defender o currículo, como uma política pública, implica aproximar a discussão dessa área, considerada a sua
especificidade, para o conhecimento dos modelos teórico-metodológicos que permitam analisá-lo como tal.
PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO CURRÍCULO COMO POLÍTICA CULTURAL PÚBLICA - CONCLUINDO
Defendo para as análises do currículo como uma política cultural pública o foco sobre os aspectos macro e micro de forma
relacional, ao contrário do que algumas investigações apontam ao reforçar a dicotomia e a unilateralidade entre as instâncias.
Concordo com Lopes (2005a) quando afirma que o problema não está na opção por investigações que priorizem
empiricamente instâncias macro ou micro em suas análises, mas sim quando é inexistente a busca de relações entre essas
instâncias, predominando, segundo a autora, um caráter determinista entre as mesmas. Assim, ambos os enfoques devem
ser considerados na contribuição que podem trazer às investigações. Ball incorpora em sua análise as relações entre os
contextos micro e macro e as complexas influências que marcam a produção das políticas educacionais, como um processo
dinâmico, introduzindo a questão da convergência de políticas que, para o autor, são influenciadas por processos que
transcendem os limites da territorialidade de um Estado-nação.
Também tem sido fértil para as análises em políticas curriculares o papel do conhecimento e poder na produção dessas
políticas. Ainda que seja escasso o seu uso no campo da educação as comunidades epistêmicas, vertente dos estudos nas
análises sobre padrões de cooperação e transformações nas políticas mundiais (Antoniades, 2003) tem contribuído para
pensar a disseminação de políticas. O poder da comunidade epistêmica está associado ao conhecimento ou a autoridade
cognitiva aplicado à implementação de políticas (Melo & Costa, 1995), mas não só a isso. Também nesses processos de
formação de agenda e difusão de conhecimento, em escala global e local, faz-se muito importante não apenas o
conhecimento técnico-científico, mas, sobretudo, nos aspectos relativos à produção de consenso como base para
coordenação de políticas.
Por organizar-se em redes, as comunidades epistêmicas fazem circular as ideias de determinadas comunidades,
disseminando-as para além das fronteiras nacionais, sendo fundamental seu papel na difusão de políticas. Antoniades (2003)
indica entre os modos de atuação dos membros de uma comunidade epistêmica: no primeiro modo na atuação no processo
de produção de política em cargos de representação governamentais ou de organizações internacionais e, no segundo modo,
como consultores, membros do mercado de ideias ou qualquer outra posição que permita a eles influenciarem o processo
político.
Currículo e Epistemologia | 180
Enfatizo também a importância do discurso na produção dos sentidos de políticas públicas e defendo a relevância da
incorporação dessa análise, voltada não apenas para os textos produzidos com o intuito de apresentar projetos e programas
como para as ideias que balizam orientações políticas setoriais junto aos diferentes grupos que se fazem presentes. O poder
de produzir discursos e visões de mundo particulares nas sociedades que caracteriza as ações da comunidade epistêmica
envolve não apenas a habilidade de estabelecer as regras do jogo e as agendas como também a de influenciar o
conhecimento e as ideias presentes nas estruturas sociais (Antoniades, 2003, p. 29). Concordo com Antoniades que o papel
do discurso deve ser sublinhado nas análises não só pelo seu papel na legitimação do conhecimento como para o
conhecimento das políticas, nas diferentes escalas em que é produzido. Ressalto a necessidade de analisar as formas de
representar, explicar e legitimar decisões políticas (p. 129), presentes nos discursos produzidos e em circulação sobre as
políticas por concordar com a afirmação de Ball (1998) de que as políticas são ao mesmo tempo sistemas de valores e
sistemas simbólicos. Analisar os discursos como conteúdo da política, sejam eles associados aos mais diversos textos ou às
ações e embates em curso nas arenas políticas voltadas para a produção de políticas nos variados setores, implica vê-los
como expressão da prática social, constituindo-se de fundamental importância para a compreensão das influências que
cercam a política.
A ideia de políticas como ciclo pressupõe vê-las como uma construção social que envolve diversos sujeitos e grupos sociais,
marcadas pela heterogeneidade, resultado das mesclas dos diferentes textos curriculares produzidos e identificados com
marcas e perspectivas das mais diversas, produzindo um híbrido (Ball, 1998). A característica multifacetada das políticas
curriculares implica um processo complexo de negociação. Nesse processo, os contextos de influência, definição e
disseminação de textos e prática buscam, na produção das políticas, negociações que garantam a sua legitimidade por meio
de acordos marcados, muitas vezes, por conflitos e tensões em torno dos diferentes interesses dos sujeitos e grupos sociais
envolvidos na produção da política curricular. São variados, portanto os tempos e espaços para a produção e circulação de
propostas curriculares. Nessa dinâmica, não há como ignorar a presença de processos de negociação, de conflito e de
polêmica na luta pela constituição de textos que definam curricularmente o que, em determinado tempo e espaço, seja
consagrado como a política curricular. Diferentes grupos, com diferentes relações de poder atuam na busca de significação
dos textos políticos, na produção de materiais para atribuir sentidos novos aos discursos produzidos e em circulação a partir
da luta por demandas que representam seus projetos. É nessa arena política, na qual atuam diversos grupos de influência,
que os embates pela significação dos textos definem também a finalidade social do currículo e a sua própria concepção,
produzindo muitas vezes, textos híbridos como resultado de processos de negociação de sentidos e de significados.
Análises relacionais que vêm as políticas curriculares como um produto de nexo de influências e de interdependências (Ball,
1998, p. 132), tendem a ser mais produtivas, avançando na produção do campo e na compreensão dos processos de
produção de políticas que a cada dia, se complexificam mais. No processo de recontextualização, textos, assinados pela
esfera oficial, ou não, produzidos e difundidos em diversos contextos, são fragmentados e recriados em processos contínuos.
Nesses processos contínuos são alterados os sentidos e significados atribuídos pelos diferentes sujeitos que atuam nos
contextos de sua produção e significação, em vários tempos e espaços. Como esses textos alteram suas marcas iniciais ao
incorporarem novos sentidos e significados, tornam-se híbridos. Importa-nos incluir nessas análises de fato as lutas pela
significação do currículo no âmbito da cultura entendendo-as como um processo de articulação de demandas que são
produzidas nos mais variados contextos por diferentes sujeitos e grupos sociais.
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Currículo e Epistemologia | 183
Rui Gomes de Mattos de Mesquita
Universidade Federal de Pernambuco
CURRÍCULO E AÇÃO EDUCATIVA EMANCIPATÓRIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E
EPISTEMOLÓGICAS
O presente estudo propõe-se a responder, numa perspectiva epistemológica, quais as condições de possibilidade para a emergência e
efetividade de ações educativas contra-hegemônicas no âmbito dos sistemas públicos de ensino nas democracias representativas
ocidentais. Que relação política e epistemológica guarda tal problemática com a estrutura e organização curricular no dia-a-dia das escolas?
Adota, nesses termos, uma metodologia que articula as várias dimensões do fazer educativo – quais sejam, cultural, econômica e política –
e leva em conta a interdependência dos elementos micro e macrossociais no processo de constituição do social. A escola é analisada como
espaço institucional inserido hegemonicamente na esfera política e que conforma, lato senso, uma ação de “representação política”, posto
que tem na construção de trajetórias individuais de vida a finalidade precípua da educação. A escola mantém, assim, efetivas relações de
funcionalidade com a economia capitalista e alicerça-se numa homogeneidade cultural que, referenciada nos valores da cultura nacional,
rechaça e/ou ressignifica as culturas locais. A pretensa autonomia da esfera política revela-se aqui, como nos ensina Boaventura de Sousa
Santos, um valor ideológico basilar do liberalismo. A forma escolar molda-se, nesse contexto, segundo uma estrutura curricular
verticalizante, bastante afim ao modelo liberal-representativo de democracia. Tal discussão desponta como particularmente relevante por
articular questões epistemológicas com o estabelecimento do lugar do fazer educativo no delineamento de estratégias políticas contra-
hegemônicas mais amplas. Estabelece nessa esteira um diálogo preferencial com a pedagogia crítica de Michael Apple acerca da questão
curricular para sugerir como o conceito pós-estruturalista de discurso em Ernesto Laclau – que engloba, de maneira inextricável, o
lingüístico e o extralingüístico – pode oferecer intuições poderosas para superar o pessimismo das teorias crítico-reprodutivistas. Tal
perspectiva ancora-se numa diferenciação entre as lógicas sociais, mais sedimentadas, e as lógicas políticas, que ganham clara
centralidade por serem potencialmente instituintes do social – conforme tem sido defendido por David Howarth e Jason Glynos.
Procuramos, como corolário dessas percepções político-filosóficas, que desafiam noções estáveis de totalidade social, definir um conceito
de hegemonia que aponta para a construção de poderes locais em radical antagonismo com o modelo liberal de democracia. Propõe, por
fim, em diálogo com a perspectiva metodológica de Rui Canário, um esboço de projeto pedagógico que, promovendo vínculos
horizontalizantes com o local, desafia os limites estruturais da instituição escola.
Palavras-chave: currículo, epistemologia, ambiente escolar, contra-hegemonia
No prefácio à segunda edição de Da Divisão do Trabalho Social, Durkheim (1999) mostra-se interessado na função
reguladora que as corporações profissionais poderiam desempenhar nas emergentes democracias européias. Ao analisar as
relações econômicas entre operários e capitalistas, detecta a falta de uma moral profissional que impusesse regras aos
impulsos anômicos do egoísmo, que reinam na esfera econômica capitalista – que já exercia centralidade nas ditas
democracias. Contrapõe-se, assim, à dicotomia entre regulação e liberdade individual, posto que, sem regulação, vingaria a
lei física do mais forte e a liberdade seria reduzida a mero elemento formal. Há, aqui, uma evidente politização (antiliberal) da
esfera econômica, uma vez que se entende que, sendo o interesse próprio a tônica generalizada das sociedades industriais,
isso se devia àquela falta de moral profissional, que acarretaria uma “diminuição da moralidade pública” (ibid, p. IX).
De onde poderia então vir o impulso ético para combater o individualismo, galopante das sociedades industriais modernas?
Durkheim, em tensão com a hipostasia do conceito de consciência coletiva presente na obra em tela, aposta – num cotejo
com a tradição pré-moderna – no potencial educativo dos grupos profissionais, pois vê neles uma força moral capaz de se
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contrapor ao egoísmo. Tais grupos, que remontam às sociedades gregas, cumpririam, a um só tempo, funções econômicas e
afetivo-culturais. Eles eram, assim, não apenas devotados à reunião de fundos para desenvolver uma indústria, como se
organizavam num ambiente moral que, à maneira de um colégio religioso – com cultos, banquetes e cemitérios comuns –,
destinavam-se a propiciar uma vida agradável e solidária. Os grupos profissionais seriam, modernamente, capazes de acolher
os indivíduos e dar-lhes o “prazer de comungar” (ibid: p. XVII-XXII).
Essa intuição durkheimiana, que nunca foi desenvolvida a contento, nos chamou a atenção por apontar para um estratégico
desinvestimento no Estado como lócus de realização de princípios ético-morais capazes de garantir uma vida harmônica.
Nesse sentido, consciente dos riscos do hiper-individualismo das sociedades estadocêntricas ocidentais modernas, Durkheim
debate-se para oferecer um “remédio”, como princípio organizativo capaz de se contrapor a tal situação. Sua “estratégia” ética
envolve as seguintes intuições:
Tensão com o indivíduo desterritorializado do liberalismo, uma vez que – tendo em vista a enorme distância
entre Estado e indivíduo, que acarretaria em sérios efeitos anti-socializantes – considera como “aberração
sociológica” uma “sociedade composta de uma poeira infinita de indivíduos desorganizados” (ibid: p. XXXVII);
Contraposição à dicotomia moderna Estado-mercado, pois aponta para a construção de ambientes econômico-
afetivos, desqualificando o potencial estratégico estruturante das esferas estatal e econômica;
Noção de público que é moralmente superior ao privado e não coincidente com a esfera estatal;
Perspectiva genealógica que desnaturaliza os arranjos político-institucionais existentes, apontando para a
possibilidade de se inventar outro princípio de representação a partir da tradição das corporações (espécie de
unidade de representação política básica em substituição à artificialidade dos distritos eleitorais);
Dimensão ontológica do fazer educativo nas “corporações do futuro”, posto que elas, ao enredar-se em
atividades de ajuda mútua, deveriam criar um ambiente de solidariedade responsável por uma “fonte de vida sui
generis”, que “emana um calor que aquece ou reanima os corações... Que faz ruir os egoísmos” (Ibid, p. XXXIV-
XXXV);
Dimensão positiva de política, que, à maneira das tradições localistas (democratas radicais, socialistas
utópicos), se propõe à construção de células da futura sociedade no presente: “nenhuma modificação um pouco
importante poderá ser introduzida na ordem jurídica, se não começarmos por criar o órgão necessário à
instituição do novo direito... Quão mais importante é pôr, desde já, mãos à obra, constituindo as forças morais
que serão as únicas a poder determiná-lo, realizando-o!” (ibid, p. XLI).
Não se trata, como se pode entrever, de seguir Durkheim na sua proposta de reinvenção da tradição corporativa, mas de
abstrair riquíssimas intuições epistemológicas e resignificá-las, numa perspectiva emancipatória, no contexto contemporâneo
da questão curricular. Teremos nas intuições acima uma referência para a discussão acerca das condições de possibilidade
para a emergência e efetividade de ações educativas contra-hegemônicas no âmbito dos sistemas públicos de ensino nas
democracias representativas ocidentais – objetivo deste estudo.
Saliente-se que a noção funcional de totalidade estável, valor central em Durkheim, aponta – posto que se tenha resolvido a
questão anômica do individualismo – para a integração sistêmica daquelas corporações, que deveriam estabelecer relações
funcionais com as esferas econômica e política. Mas o fato de ser exatamente dessas esferas que emanam os impulsos da
moral individualista requer, com vistas à estratégia de se estabelecer padrões funcionais qualitativamente superiores, um
estranhamento imediato de suas lógicas estruturais internas. Nosso argumento é que seria necessário que alterações
significativas ocorressem, simultaneamente, na economia e na política. Ou seja, a estratégia durkheimiana, ao propor a
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construção de espaços econômico-culturais alternativos (dimensão positiva de política) – borrando a dicotomia entre mercado
e Estado –, tensiona a lógica estrutural do social de forma tal que exige uma radical politização
(desestatização/desprivatização) das esferas implicadas.
Pensar numa ação educativa contra-hegemônica exigiria uma estratégia de desnaturalização das relações funcionais que os
sistemas públicos de ensino ensejam com aquelas esferas. Tal projeto só seria factível, numa superação do pessimismo das
teorias crítico-reprodutivistas (Althusser, 1974; Bourdieu e Passeron, 1982), caso incorporássemos à análise sociológica o
papel que o ambiente moral das escolas joga na construção da cidadania. Há aqui uma relação inextricável entre o ambiente
de socialização (moralidade) e o tipo de indivíduo que se forja na ação educativa. Dizer isso, no contexto da discussão
curricular, significa prestar atenção – para além das questões de eficácia do ensino –, como faz Michael Apple, não apenas ao
currículo oficial, mas também ao currículo oculto (que remete à idéia de funcionalidade entre educação e economia através da
padronização de valores morais e normativos nos ambientes escolares). O local de materialização da ação educativa
(ambiente escolar) e, mais especificamente, a sala de aula, precisariam ser radicalmente modificados em sua estrutura lógica
para credenciarem-se como uma “fonte de vida sui generis”.
Como vimos, essa modificação do ambiente escolar implicaria num re-ordenamento das relações que a escola estabelece
com as esferas política e econômica. Isto significa apostar numa dimensão positivo-construtiva de política, pois, só assim, no
bojo de uma estratégia mais ampla, se é capaz de oferecer, através da construção, no presente, de núcleos reais de poder,
lastros materiais que viabilizem elos relacionais alternativos. Não é à toa que muitos teóricos, comprometidos com a
construção de uma escola “popular”, têm insistido na construção de vínculos mais horizontais entre escola e comunidade local
(Michael Apple, 2008; Miguel Arroyo, 2008; Paulo Freire, 1987; Canário, 2005). Essa estratégia tem repercussões na questão
curricular, uma vez que o estabelecimento desses elos relacionais alternativos pode abrir os flancos do espaço escolar para a
presença de interesses populares coletivos (desinvestindo no indivíduo como unidade de representação). Não só a seleção
de conteúdos e saberes, mas também a forma escolar e o projeto político-pedagógico que a constitui estão radicalmente
imbricados na definição do sentido da educação realmente existente.
Neste artigo, nós estabelecemos um diálogo com a pedagogia crítica de Michael Apple acerca da questão curricular.
Entabulamos uma discussão sobre sua análise relacional. Pautamo-nos na problematização dos conceitos de hegemonia,
tradição seletiva e ideologia, que Apple bebe em Raymond Williams, para sugerir como o conceito laclauniano de discurso –
que engloba, de maneira inextricável, o lingüístico e o extralingüístico – pode contribuir para a superação do pessimismo
crítico-reprodutivista. Delinearemos, em diálogo com Rui Canário, os eixos norteadores para a construção de projetos
pedagógicos que, promovendo vínculos horizontalizantes com o local, desafia os limites estruturais da instituição escola. Ao
final teceremos alguns comentários, nem tão conclusivos.
ANÁLISE RELACIONAL EM APPLE: ESTRATÉGICA EDUCATIVA E CRÍTICA PÓS-ESTRUTURALISTA
Não é raro ouvirmos dos teóricos do campo da didática que se deve prestar mais atenção – para além das amarras
estruturalistas – à singularidade que caracteriza os diferentes ambientes escolares. Ao assim procederem, alguns desses
teóricos, informados por teorias interacionistas, chamam a atenção, não sem razão, para o risco de se incorrer num
abstracionismo que exclui do campo analítico processos educativos reais de interação. Ferraço (2008), que aposta na
formação de uma cidadania contra-hegemônica, investe numa perspectiva não prescritiva de currículo, que enfatiza a
possibilidade de um fazer educativo crítico e criativo. Tal postura filia-se à perspectiva construtivista, que, ao adotar uma
ontologia relativista, presume a existência de múltiplas realidades (Denzin e Lincoln, 1994) – o que confere importância à
agência na estruturação do social. Guarda, desde uma perspectiva microssociológica, afinidade com a já pontuada dimensão
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positiva de política. Nossa abordagem, entretanto, se situa em um nível meso-sociológico que, atenta aos condicionamentos
estruturais impostos aos processos de produção de sentido (ideologias) – particularmente no que tange à possibilidade de
emergência de subjetividades coletivas –, entrevê a importância da questão espacial para tal produção.
As reflexões de Apple (2006) sobre a questão curricular, ao apostar na superação do pessimismo crítico-reprodutivista,
parece retirar dividendos da percepção de que é num campo entrecruzado por dimensões micro e macrossociais que se pode
aventar uma fuga das ditas amarras estruturais. Essa “pista” se revela uma tentativa de superação da dicotomia sujeito-
objeto, entendida como um valor em crise da metanarrativa moderna (Laclau e Mouffe, 2001). Trata-se de uma tendência
epistemológica que ganha maior visibilidade no contexto americano e europeu nos anos 1980 (fenomenologia, hermenêutica,
teoria crítica, interacionismo simbólico, pós-estruturalismo) e que emerge, essencialmente, a partir da quebra de unicidade
metodológica das ciências sob a proeminência das ciências naturais (Giddens e Turner, 1999). As ciências têm então sua
objetividade seriamente questionada, o que remete à narratividade dos modelos analíticos (Somers e Gibson, 1995). Quando
a dimensão interpretativa (verstehen) é tida como constitutiva do saber científico, percebe-se a impossibilidade de fazer
coincidir estrutura narrativa e social (Brockmeier e Harré, 2003).
Quando as ciências humanas se mostram receptivas a diferentes abordagens, o caráter desinteressado do saber científico é
abalado – mesmo sendo patente o poder do racionalismo iluminista nos ambientes escolares – em seu tom matemático de
formalidade lógica (Pessanha, 1997). Os saberes, assim, ao se aproximarem da doxa (opinião), são permeados por
interesses conflitantes, o que invalida quaisquer pretensões de padrão universal na estruturação curricular. Há aqui uma
flagrante politização da dimensão cultural que coincide, no cenário político da década de 1980, com a emergência de “novos”
movimentos sociais (Eder Sader, 1988; Laclau e Mouffe, 2001), que, inaugurando espaços e formas alternativas de luta,
desafiaram radicalmente o modelo liberal-representativo de democracia assentado que está na unidade cultural do Estado-
nação, na economia capitalista e no indivíduo abstrato como unidade de representação política.
O espaço escolar, estando inserido na esfera política (poderes executivos), passa, diante do quadro exposto, por um
processo de desfuncionalidade. Ao tomar a formação de “cidadãos” como finalidade do fazer educativo, a escola, que se
dedica à construção de trajetórias individuais de vida, alimenta uma forma institucional-curricular enrijecida, incapaz de
responder aos movimentos ontológicos de estruturação do social. Tal fato não deixa de credenciá-la parcialmente à absorver
demandas por conteúdos e valores coletivos advindos da diversidade cultural nos cenários políticos nacionais. Há aqui,
entretanto, um flagrante descompasso no estabelecimento de vínculos mais efetivos entre a construção de sentidos do saber
veiculado na escola e os projetos que interessam aos diferentes atores coletivos. Isso porque a lógica curricular (por mais que
haja esforço sério e politicamente compromissado por parte de profissionais do campo da didática), entendida como elemento
estruturante do ambiente escolar, privilegia a dimensão universal e desinteressada do saber (logos/razão) em detrimento dos
interesses mais imediatos (ideologias, como veremos), que se forjam no âmbito da contingência.
Resulta daí que o saber mimético, apartado da vida, cultuado na escola não é um problema pontual, que se possa resolver
tecnicamente, com boa didática, mas uma peça central da lógica curricular que tem como efeito precípuo reter a emergência
de subjetividades e práticas coletivas. Essas últimas, com efeito, são uma plataforma para a materialização de uma
perspectiva positiva e contra-hegemônica de estruturação do social e que abala potencialmente os alicerces do Estado-nação.
O currículo, mesmo absorvendo oficialmente conteúdos e valores provenientes da diversidade (multi)cultural, referencia-se
numa sociedade estruturada, como diria Durkheim, por uma “poeira infinita de indivíduos desorganizados”. Aqui reside seu
principal ardil ideológico: ao reter a construção de espaços político-culturais alternativos, trabalha pela naturalização das
fronteiras do social. Maximiza, assim, seu papel de reprodução econômica, política e cultural, pondo em cheque, nos planos
epistemológico e prático, os projetos políticos alimentados por abordagens construtivistas.
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É dentro desse espectro de preocupações, numa articulação entre o que acontece no interior das escolas e seu
posicionamento em relações amplas de poder, que dialogamos Apple. Numa perspectiva gramsciana, que aponta para o valor
estratégico de se ocupar espaços em instituições da sociedade civil, o referido autor sugere que há algum espaço para a
resistência contra-hegemônica nas instituições oficiais de ensino (Apple, 2006). Trabalhando com a síntese do conceito
gramsciano de hegemonia feita por Williams, Apple (2006, p. 38-41) chama a atenção para o poder explicativo do caráter
totalizante da hegemonia que, “saturando” as consciências da maioria das pessoas (senso comum), constitui-se em elemento
unificador do mundo. É assim que, para Williams, o fato de as instituições de ensino funcionarem nesse ambiente saturado
torna mais difíceis os processos contra-hegemônicos, posto que não se trate de uma ideologia imposta.
A tradição seletiva – aquilo que é reconhecido hegemonicamente como passado significativo –, por sua vez, presente na
seleção curricular, operaria um recorte ideologicamente orientado, que elege como finalidade da ação educativa aquele
indivíduo abstrato do liberalismo e rechaça os vínculos entre escola e comunidade (ibid, p. 43-4). Essa “ênfase exagerada no
indivíduo” seria uma maneira sutil de despolitizar o papel do professor(a), que termina se voltando para o aperfeiçoamento
profissional (funcionalidade com o capital). Isso impossibilitar-nos-ia de adotar uma atitude crítica em relação a nossas
atividades diárias (dimensão microssocial), percebendo que o real sentido da escola é definido relacionalmente, em suas
complexas conexões (macrossociais) com outras esferas do social. Consideramos que tal percepção poderia conduzir Apple
a intuições estratégicas próximas daquela dimensão positiva de política. Isso porque o ambiente escolar, de acordo com a
análise relacional, não se credenciaria a promover associações entre saber e fazer que atendessem aos interesses de
subjetividades coletivas emergentes.
Ao contrário, Apple (ibid, p. 45) adere à estratégia gramsciana de “controle” das instituições culturais – o que teria maior
alcance político do que uma mera inclusão dos desfavorecidos. Atentarmos para o papel de representação política assumido
aqui pela intelectualidade “orgânica”, particularmente no que tange à possibilidade de promover uma crítica da ideologia
capaz de desnudar “os interesses e compromissos políticos, sociais, éticos e econômicos aceitos sem maior questionamento”
(ibid, p. 47). Através dessa crítica ideológica, os intelectuais (que ocupam um espaço diferenciado dos coletivos em
emergência) poderiam relacionar a natureza do ambiente escolar às filiações políticas dos saberes aí veiculados e, assim,
propiciar ao professor a possibilidade de não ser interpelado pela ideologia liberal.
O limite dessa crítica é o fato de que a estratégia de “controle” daquelas instituições culturais se subordina ao caráter saturado
da hegemonia que, percebendo o mundo como único (noção mais fechada de totalidade dialética), não aponta para um
investimento na construção de ambientes culturais alternativos. Como corolário, como acontece em Gramsci (1978), a
educação é função e prerrogativa do Estado (sistematizador do conhecimento “folclórico”, disperso, a ser superado). É do
Estado, portanto, ao contrário das intuições durkheimianas, que deveria emergir o impulso moral capaz de erigir uma nova
sociedade. O danado é que essa ação de representação política, trazendo como lógica implícita a encarnação, no
representante, dos interesses dos representados (identidades coletivas), transfere sentidos e valores coletivos para um
ambiente (escolar) que, ao investir em indivíduos, tem como ardil ideológico a retenção da emergência das subjetividades
coletivas.
Por mais que Gramsci tenha ampliado o escopo do Estado “burguês”, tornando cultural a luta hegemônica, sua estratégia
política esbarra no limite da prioridade explicativa que concede, em última instância, ao econômico (Laclau e Mouffe, 2001) –
tornando menos cultural a luta hegemônica. O conceito de totalidade dialética, valor ideológico que percebemos interpelar
Apple ao se referenciar no conceito de modo de produção (Apple, 2006), o faz enredar sua estratégia para a tomada do poder
estatal, ainda que este seja entendido de forma ampliada. Essa estratégia, por privilegiar a representação em espaços
institucionais, tem se revelado ineficaz como política adotada amplamente pela esquerda ao longo do século XX. Isso porque
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a “mera” ocupação de espaços não tem abalado substantivamente a eleição daquele indivíduo abstrato (unidade básica de
representação) como eixo estruturador dos ambientes escolares, retendo a emergência de subjetividades e práticas coletivas.
Note-se que a formação de uma cultura “humanista” em Gramsci, ao pretender alçar membros da classe trabalhadora à
condição de dirigentes, enseja uma ação educativa que se opera no plano ideacional, não questionando, no presente, a
naturalidade de certa topografia do social.
A possibilidade de construção imediata de espaços sociais mais autônomos em relação ao Estado, em sintonia com os
movimentos contemporâneos de economia popular (Singer, 2005; Tiriba, 2007) – mesmo considerando o aspecto relacional
dessa autonomia –, aponta para um caráter não tão saturado da hegemonia. As análises emancipatórias não se reduziriam,
nesse contexto, à ocupação de “posições” nas instituições civis. Deve, ao contrário, se expandir para a construção efetiva de
tradições que desafiem a lógica estrutural da instituição escolar, promovendo uma politização de seus ambientes. Isso
poderia, a médio prazo, desestabilizar os contornos da tradição seletiva, o que incidiria nos horizontes de possibilidade
discursiva. Tal estratégia, ao mesmo tempo em que demanda uma radicalização da democracia, requer, no plano
epistemológico, um rompimento com noções mais fechadas de totalidade social. Esse debate remete a uma tensão entre a
noção de ideologia que Apple toma de empréstimo de Williams e o conceito totalizante de saturação hegemônica.
Williams (1977, p. 55-71), tentando resgatar, em Marx, intuições referentes à inseparabilidade entre consciência e processos
sociais materiais, nos faz perceber o simplismo marxiano (e suas conseqüências políticas), quando entende “ideologia” como
um mero “reflexo” dos processos materiais. Chama a atenção para o fato de que a própria dimensão teleológica do trabalho
em Marx (pré-concepção da atividade laborativa) aponta para o caráter constitutivo das ideias na estruturação do social. Essa
intuição marxiana teria, entretanto, sido perdida, no bojo de disputas contingentes, e adentrado numa fantasia objetivista que
não percebe a impossibilidade de se acessar um mundo real que já não esteja habitado pela consciência humana. A
conseqüência política disso é a de que, ao separar especulação e ciência positiva, se aposta numa lógica de imanência do
social (materialismo mecanicista) que põe abaixo a importância dos efeitos estruturantes da dimensão cultural.
Alternativamente, Williams, afastando-se de uma diferenciação entre “ideologia” (falsa consciência) e ciência (conhecimento
positivo), nos propõe uma noção de ideologia que não cede à tentação objetivista de vincular ideologia às classes sociais (o
que pressupõe o econômico como base estruturante dos processos sociais reais). Sua perspectiva de ideologia, alerta o
autor, nos conduziria a promover uma inseparabilidade entre ideologia e teoria, independentemente das classes sociais.
Como corolário, Williams entende que a crítica ideológica (luta por hegemonia) não é travada no plano exclusivo das ideias.
Isso porque, aproximando narratividade e prática social, ele percebe sua inseparabilidade e, portanto, o caráter culturalmente
imerso de toda produção teórica. Ao que se segue que a eleição da classe operária como portadora de interesses históricos é
mais um investimento político (legítimo, diga-se) do que algo que corresponda a necessárias conclusões científicas.
Lembrando de nossa discussão acerca da “superação” do conhecimento folclórico em Gramsci (com quem Williams dialoga) –
e do limite estratégico a que essa ação de representação nos tem conduzido –, se faria necessária uma noção de ideologia
que apontasse para a dimensão constitutiva da cultura. Tal perspectiva não vincularia as condições de possibilidade de
produção discursiva a uma topografia contingente do social (hegemônica) objetivada num plano teórico. Ao contrário, em
tensão com o conceito totalizante de saturação da hegemonia, que termina por estabilizar as fronteiras do social – sugerindo
uma atuação estratégica dentro das lógicas estruturais aí sedimentadas –, essa noção de ideologia nos conduziria à
estratégia de construção de ambientes culturais capazes de ampliar nosso horizonte discursivo.
Tal perspectiva sugere um rompimento epistemológico com as tradições liberal e marxista. É naquele contexto de emergência
de conflitos étnicos, religiosos e nacionalistas, protagonizados na década de 1980, que os paradigmas pós-modernos e pós-
estruturalistas (Zizek, 1996; Laclau e Mouffe, 2001; Hall, 2003) promoveram uma ruptura com a epistemologia iluminista
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(Mouffe, 1996, p. 23). Contra tradições racionalistas, idealistas, materialistas mecanicistas, a ideologia, nesse paradigma, não
“subjaz” aos discursos, mas estão sempre em construção e são partes constitutivas dos processos sociais mais materiais.
Coloca-se então a questão da identidade como um novo eixo de reflexão teórica relacionado ao conceito de ideologia, que
não mais corresponderia a uma “falsa consciência” (Marx e Engels, 1987) ou a uma “visão de mundo” de uma posição de
classe (Löwy: 1994).
Lançaram-se as bases de uma ontologia do político, que insistem sobre o caráter contingente, instituído, dos arranjos
institucionais e procuram desnaturalizar as fronteiras entre público e privado. A sociedade, na medida em que se reconhece o
caráter contingente, e, portanto, não determinado do socialmente instituído, pode ser vista como um campo de relações em
que as decisões são tomadas a partir de situações indecidíveis. Ou seja, campo em que os termos da escolha não ditam o
caminho a ser tomado, como está implícito na noção marxista clássica de estratégia. O que caracteriza um campo indecidível
é que toda decisão corresponde a uma escolha, entendida como um ato de poder que institui o social através da exclusão de
outras possibilidades igualmente disponíveis. Tal escolha, por sua vez, não é ditada estritamente por vetores estruturais
presentes na situação, mas implica igualmente num ato de responsabilidade do sujeito – decidir em condições sobre as quais
não se tem absoluto controle, mas que tampouco simplesmente impõem o curso a seguir é o que vincula a indecidibilidade à
responsabilidade (Laclau, 1996: 47-67).
O que caracteriza o discurso ideológico, para Laclau, é seu caráter negativo, construído mediante as contingências do jogo
político, ou seja, não se concebe a existência de uma objetividade dada do social como uma realidade extra-ideológica a qual
lidaríamos a partir de “mecanismos que pertencem ao reino ideológico” (Laclau, 2002, p. 11). O que está em jogo não é a
“veracidade” ou “falsidade” do conteúdo que se afirma em determinada situação; a ideologia faz-se notar em situações de
crise (deslocamento), em que a estabilidade do social está sempre ameaçada. Procura, entretanto, naturalizar-se como um
discurso objetivo, justo e evidente para sanar os efeitos maléficos das situações indesejadas. Essas últimas implicam,
outrossim, em disputas políticas em torno dos rumos a serem tomados. As articulações narrativas contra-hegemônicas –
diferente do que ocorre em Gramsci – não encontram na esfera pública hegemônica um terreno fértil no qual possam ganhar
“coerência” ideológica.
Entendemos que o estabelecimento de fronteiras político-culturais relativamente autônomas é uma condição de possibilidade
das estratégias político-educativas contra-hegemônicas. O estabelecimento dessas fronteiras, entretanto, se dá de forma
negativa, a partir de situações sociais de crise – o que ressalta seu caráter performativo e contingente, mas também um
esforço positivo de reinvenção das tradições (politizando o processo de estabelecimento da tradição seletiva). Nesses termos,
politizamos o conceito de cultura, considerando que é através das articulações narrativas que os atores conformam suas
trajetórias identitárias. Potencializar o teor antagonístico da dimensão cultural depende, assim, da construção de espaços
político-culturais, com grau relativo de externalidade, que problematizem a harmonia sistêmica entre esferas ou subsistemas
do social.
Consideramos que, apesar do refino de sua análise relacional, Apple recai sub-repticiamente numa armadilha estruturalista,
aprisionando a particularidade do objeto na totalidade que constrói (contexto relacional). Mesmo considerando a
relacionalidade do contexto construído analiticamente a partir de uma perspectiva empírica, Apple termina não sendo capaz
de explicar o momento do sujeito. Momento de quebra da inteligibilidade, quando o social é visto como um terreno indecidível.
Fica, no nosso entendimento, a meio caminho no seu intento de politizar a cultura. Seu limite reside em tomar arranjos
institucionais contingentes (hegemônicos) como base da análise político-educacional. Isto porque os atores estariam
embebidos numa saturação hegemônica que se lhes impõe como condição de possibilidade para suas práticas de
significação. Termina, assim por estabelecer uma distinção entre um nível “discursivo” e um outro, mais “objetivo”, composto
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por “relações estruturais” materiais. Recai, dessa forma, no dualismo sujeito/objeto, uma vez que não capta o processo pelo
qual os sujeitos deslocam as fronteiras dos espaços sociais e, assim, seus horizontes discursivos.
A abordagem laclauniana, ao englobar, inextricavelmente, as dimensões lingüística e extralingüística do discurso, nos
possibilita uma análise e prática político-educativa que articula essas dimensões. Laclau aponta para a tomada de consciência
dos limites da razão como algo que domina o clima intelectual contemporâneo. Tal fato, para o autor, não deve implicar no
abandono de todo projeto emancipador, mas na compreensão de que o socialismo é menos um modelo do que um princípio
de radical democratização da sociedade que, como crítica radical de toda forma de dominação, é compatível com amplas
formas de organização social. Essas últimas, levadas a cabo por grupos “incompletos” (cuja identidade e razão não são
autocentradas), não permitiriam pensar uma forma de regulação social que fosse ditada seja pelo Estado ou pelo mercado.
Os processos sociais, assim, não poderiam ter determinado seu sentido objetivo último, como queria o projeto racionalista.
Para Laclau, toda contradição que fosse integrada, desde uma lógica imanente do desenvolvimento histórico das forças
produtivas, seria reduzida a um momento endógeno a tal processo, configurando uma contradição sem antagonismo. Este,
assim, deve ser entendido como uma categoria que, rompendo com a conexão interna do movimento dialético, depende
inteiramente de uma história contingente.
Consideramos, portanto, que a construção de projetos político-educativos contra-hegemônicos deve, levando em conta a
relatividade de sua autonomia, prezar pelo investimento ideológico na construção de espaços econômico-culturais. Podem,
assim, ao alterarem as fronteiras do social, inaugurar formas radicais de antagonismo, posto que buscam um horizonte
discursivo que vai além de uma saturação hegemônica. Levar isso a cabo depende de uma estratégia política ampla, capaz
de articular demandas que desafiam as fronteiras da instituição escola. Dito isto podemos passar a vislumbrar alguns
elementos norteadores de projetos político-pedagógicos com essa característica.
EIXOS PARA PRÁTICAS POLÍTICO-PEDAGÓGICAS CONTRA-HEGEMÔNICAS
Estamos interessados, nos limites deste ensaio, em pensar a articulação entre espaços político-educativos formais e não
formais. Aquelas ações educativas sem articulação direta com o espaço escolar, assim, estarão ausentes de nossa análise
tão somente por uma questão de foco analítico e não de julgamento de valor.
À luz de nossa discussão, consideramos bastante produtivas as reflexões acerca de uma fazer educativo inovador e
horizontalizado (que articula escola e comunidade local) levadas a cabo por Canário (2005, p. 114-181). Ele defende, para
valorizar a construção de elos entre escola e comunidade – e, assim, do saber escolar com o não escolar –, a construção de
redes horizontais entre escolas de uma mesma localidade e parceiros locais como empresas, órgãos de poder local, rádios
comunitárias etc.. Numa perspectiva não essencialista de sujeito, Canário defende uma abordagem desverticalizante de
política pública que mais do que incentivar “boas práticas” se preocupa em “criar dispositivos permanentes que permitam criar
práticas que depois se revelarão boas ou más” (Ibid, p. 119). Tal perspectiva de política pública nos soa interessante na
medida em que aproxima radicalmente escola e vida sem pré-determinar, a partir de uma lógica de Estado – e, portanto,
hegemônica –, o tipo de sujeito e conhecimento em que se deve investir. A sistematização do saber não é prerrogativa do
Estado.
Uma ação educativa, nesses termos, seria necessariamente criativa, posto que constantemente instada a recomeçar,
mediante as demandas coletivas dos ambientes locais. Ainda que não percamos de vista os condicionantes macro-estruturais
que conformam parcialmente tais demandas – consideração que remete à noção não essencialista de sujeito –, esse tipo de
arranjo político-institucional abriria frestas na institucionalidade democrática que a tornariam mais permeável à emergência de
subjetividades coletivas. Isso corresponde a um processo de radicalização da democracia, uma vez que deslegitima uma
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pretensa unidade da instituição escolar que como vimos mais se presta ao estabelecimento de vínculos funcionais entre
educação e capital. Abrir-se-ia a possibilidade de se acessar “a tradição” seletiva sob diferentes pontos de vista, de maneira a
potencializar a construção de parâmetros curriculares que estreitassem a relação entre saber e interesses, gerados a partir da
existência de múltiplos espaços econômico-culturais.
Projetos político-pedagógicos inspirados por tal abordagem são essencialmente investigativos, interdisciplinares e voltados
para a proposição de ações de intervenção na realidade. Dirigem-se, por entenderem a realidade como mais complexa do
que as dimensões e elementos selecionados pelas diversas disciplinas, à identificação de problemáticas a serem analisadas
por grupos interdisciplinares. Estes, com vistas a uma intervenção na realidade, devem estar atentos à necessidade de
identificar e avaliar as redes sociais e políticas públicas que lidam com determinada problemática. Abre-se um novo campo
para se pensar a articulação de aspectos do campo da didática com uma reflexividade crítica acerca do ambiente escolar. Tal
campo torna menos técnica a didática e força uma reflexão crítica acerca dos constrangimentos que a estrutura curricular
impõe a uma ação educativa emancipadora.
Projetos pedagógicos contra-hegemônicos devem ter como eixos articuladores:
Volta-se para o estreitamento dos laços entre escola e comunidade, entendendo que esse estreitamento,
fundamental para o estabelecimento de situações significativas de aprendizado, se dá através de ações
educativas que intervenham efetivamente na realidade (proposição de novas políticas públicas ou de
alterações/melhoramentos em políticas já existentes);
Estimula uma atitude crítica e criativa diante do conhecimento;
Reflete criticamente acerca dos entraves que a estrutura curricular das redes de ensino possa vir a lhes oferecer
– desafiando os limites dos ambientes escolares realmente existentes.
COMENTÁRIOS FINAIS
Estamos conscientes que esse ensaio não faz mais do que apontar para um campo de reflexão ainda em construção. Requer,
com efeito, esforços multidisciplinares que – característica da complexidade do campo educativo –, mais do que demandar
mediação entre disciplinas, excedem seus recortes simplificadores da realidade, desafiando a naturalidade das fronteiras do
social. Seu principal desafio é a articulação das dimensões política, econômica e cultural do fazer educativo, de maneira a
incorporá-las num campo ético que, não abrindo mão da possibilidade de se pensar estrategicamente, não se pauta numa
noção objetivista de estruturação do social. Exige, assim, políticas públicas que façam confluir os campos da didática e da
crítica ideológica, politizando a primeira, sob uma perspectiva radical da segunda, que aponta para o caráter constitutivo de
sujeitos da ação educativa. Sendo assim, a construção de indivíduos críticos e o alargamento de seus horizontes discursivos,
têm como condição de possibilidade o deslocamento dos sistemas de ensino da esfera estatal. Tal deslocamento só pode ser
efetivamente vislumbrado a partir de demandas da comunidade que se forjam com a construção de espaços econômico-
afetivos relativamente autônomos ao Estado.
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Sérgio Rafael Barbosa da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
OS LIMITES ESTABELECIDOS PELA TOTALIDADE CONHECIMENTO ESCOLAR
Este trabalho tem o objetivo de problematizar a questão do impacto de idéias pré-concebidas no campo de discussão da organização do
conhecimento escolar. Ao destacar a necessidade de realizarmos uma reflexão sobre o impacto das idéias pré-concebidas, voltamos a
nossa atenção, para a contribuição de Antônio Flávio Moreira e Elizabeth Macedo, na qual os autores afirmam que existe “a intenção [de]
que se reformule o conhecimento escolar de modo a favorecer afirmação das identidades e dos pontos de vista de grupos minoritários”
(apud Macedo; 2006, p. 286).
Ao estabelecer esta problemática estamos questionando a unidade do conhecimento escolar, uma unidade baseada no entendimento de
que existe um conhecimento homogêneo. Neste contexto, se faz necessário, conceituarmos o campo de organização do conhecimento
escolar, a partir dos autores César Coll (1996), Ivor Goodson (1995) e Elizabeth Macedo (2006). Encontramos nestes autores uma
preocupação em criticar o caráter prescritivo de organização do conhecimento escolar, a prescrição de conteúdos. Ela, via de regra,
desconsidera as condições materiais de organização do currículo. Isto porque a preocupação com o estabelecimento de metas, e em
seguida, o alcance das metas estabelecidas, se coloca “muito acima da discussão sobre currículo tal como existe e é correntemente
realizado”(Goodson, 1995, p.52).
A abordagem prescritiva ao considerar o conhecimento escolar como uma totalidade, permite que coisas diversas sejam tratadas da mesma
forma, e que o entendimento do que vem a ser o conhecimento escolar guarde aquilo que se repete, por meio de uma generalização.
Segundo Macedo (2006), o tratamento linear e universal de coisas diversas desfavorece a discussão sobre as formas de articulação de
diferentes culturas e o campo do currículo. Para a autora analisar a diferença cultural no processo de elaboração de propostas curriculares,
permite, pensarmos por exemplo, “nos currículos escolares como espaço-tempo de fronteira e, portanto, como híbridos culturais” (Macedo,
2006, p. 289).
Nesse sentido, a partir dos trabalhos de Goodson (1995) e Macedo (2006), em um primeiro momento, buscamos compreender o
estabelecimento da fronteira que delimita o confronto entre o conhecimento universal e os conhecimentos particulares na área do currículo,
em seguida, a partir da contribuição de Gaston Bachelard (2001 e 1971) criticamos a possibilidade do estabelecimento de fronteiras
epistemológicas na área do currículo. Segundo Bachelard (1971) “o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão”, neste
trabalho iremos relacionar elementos que se oponham ao entendimento de que a produção do conhecimento científico é determinada por
uma cultura científica geral.
INTRODUÇÃO
Este texto tem o objetivo de problematizar a questão do impacto de idéias pré-concebidas no campo de discussão da
organização do conhecimento escolar. Ao destacar a necessidade de realizarmos uma reflexão sobre o impacto das idéias
pré-concebidas, voltamos a nossa atenção, para a contribuição de Antônio Flávio Moreira e Elizabeth Macedo, na qual os
autores afirmam que existe “a intenção [de] que se reformule o conhecimento escolar de modo a favorecer afirmação das
identidades e dos pontos de vista de grupos minoritários” (apud Macedo; 2006, p. 286).
Ao estabelecer esta problemática estamos questionando a unidade do conhecimento escolar, uma unidade baseada no
entendimento de que existe um conhecimento homogêneo. Neste contexto, se faz necessário, conceituarmos o campo de
organização do conhecimento escolar, a partir dos autores Ivor Goodson (1995) e Elizabeth Macedo (2006). Encontramos
nestes autores uma preocupação em criticar o caráter prescritivo de organização do conhecimento escolar, a prescrição de
conteúdos, via de regra, desconsidera as condições materiais de organização do currículo. Isto porque a preocupação com o
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estabelecimento de metas, e em seguida, o alcance das metas estabelecidas, coloca-se “muito acima da discussão sobre
currículo tal como existe e é correntemente realizado” (Goodson, 1995, p.52).
A abordagem prescritiva ao considerar o conhecimento escolar como uma totalidade, permite que coisas diversas sejam
tratadas da mesma forma, e que o entendimento do que vem a ser o conhecimento escolar guarde aquilo que se repete, por
meio de uma generalização. O desdobramento desta postura no plano de análise curricular permite que o conhecimento
escolar se relacione, por exemplo, com teorias científicas ou correntes filosóficas da mesma forma. A generalização da
abordagem prescritiva possui a capacidade de desprezar a diversidade porque tende a guardar aquilo que é recorrente.
Neste contexto, o pressuposto de generalização do conhecimento escolar desdobra-se em dois aspectos, o primeiro aspecto
refere-se ao movimento de considerar universal e objetivo o conhecimento escolar porque este deriva do conhecimento
científico, no segundo aspecto este caráter universal se opõe a conhecimentos particulares com a intenção de instaurar uma
cultura escolar privilegiada.
Segundo Macedo (2006), o tratamento linear e universal de coisas diversas desfavorece a discussão sobre as formas de
articulação de diferentes culturas e o campo do currículo. Para a autora analisar a diferença cultural39 no processo de
elaboração de propostas curriculares, permite, pensarmos, por exemplo, “nos currículos escolares como espaço-tempo de
fronteira e, portanto, como híbridos culturais” (Macedo, 2006, p. 289). Ainda baseado na contribuição de Macedo (2006),
compreendemos que o movimento de confronto entre os conhecimentos particulares e o suposto conhecimento escolar
universal estabelece uma fronteira, ou seja, este confronto delimita certas ações que orientam uma determinada organização
curricular.
Nesse sentido, a partir dos trabalhos de Goodson (1995) e Macedo (2006), em um primeiro momento, buscamos
compreender o estabelecimento da fronteira que delimita o confronto entre o conhecimento universal e os conhecimentos
particulares na área do currículo, em seguida, a partir da contribuição de Gaston Bachelard (2001 e 1971) criticamos a
possibilidade do estabelecimento de fronteiras epistemológicas na área do currículo. Esta crítica dirige-se a idéia de que a
produção do conhecimento científico está em relação estreita com uma cultura científica geral, chega-se a esta cultura
científica geral a partir do exercício de hábitos intelectuais, com a suposição de que a escola é a instituição capaz de exercitar
e desenvolver estes hábitos, conclui-se que o conhecimento escolar possui um grau de abstração universal.
Contudo, segundo Bachelard (1971) “o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão”, neste trabalho iremos
relacionar elementos que se oponham ao entendimento de que a produção do conhecimento científico é determinada por uma
cultura científica geral.
TRILHANDO PELAS FRONTEIRAS NA ÁREA DO CURRÍCULO
Para aproximar as questões que a epistemologia nos coloca sobre a produção do conhecimento científico e a área do
currículo foi necessário compreender o conhecimento científico como um “corpo teórico já constituído” (Cardoso, 1976, p.70).
Este entendimento se baseia no fato de que a concepção moderna de ciência inaugura um processo de transição entre a
linguagem cotidiana e o padrão lógico de uma linguagem sistemática. Segundo Bachelard (2000), neste processo de
transição precisa-se voltar a atenção para compreender se existe uma continuidade ou uma ruptura.
Neste ponto queremos destacar a possibilidade de no processo de produção do conhecimento científico não partimos da
oposição acirrada entre o racionalismo e o empirismo, segundo Bachelard (2000) esta oposição restringe a nossa
39 “De forma diversa, defendo que a diferença cultural não representa apenas „a controvérsia entre conteúdos oposicionais ou tradições antagônicas de valor cultural‟ (Bhabha, 1998, p. 228), (apud Macedo, 2006, p. 287).”
Currículo e Epistemologia | 196
compreensão da relação entre a teoria e o real. E ao restringir o entendimento desta relação consideram-se alguns aspectos
da ciência em um grau de abstração elevado que permite uma formalização capaz de universalizar perguntas e respostas a
partir de categorias que possuem uma existência autônoma. Um outro problema derivado da restrição de entendimento entre
a relação teoria e o real consiste em fragmentar a coleta de dados empíricos, de tal maneira, que a discussão sobre os
pressupostos das teorias científicas se reduz a escolha do método a ser aplicado na pesquisa.
A discussão dos pressupostos das teorias científicas segundo Cardoso (1976) conduz o raciocínio até o plano epistemológico,
e neste trajeto, poderemos nos distanciar das suposições que nos levam a compreender a existência de um método infalível e
caminharmos na direção de compreendermos o processo de produção do conhecimento científico e o papel do método nesta
produção. “O processo de teorização não é um reflexo direto e mecânico da realidade no plano do pensamento, bem como as
teorias não são verdades reveladas” (Cardoso, 1976; p.66).
A questão do método infalível ganha uma enorme força na discussão sobre o processo de construção do conhecimento
científico porque uma característica fundamental deste processo é exacerbada em detrimento das demais, esta característica
reside no momento em que constata-se que o conhecimento científico é o resultado de uma relação entre um sujeito e um
objeto de conhecimento. A oposição acirrada entre o racionalismo e o empirismo permite apreendermos o resultado do
processo de produção do conhecimento científico como um produto homogêneo. A meu ver, segundo a leitura que faço de
Bachelard (1971), o acesso às justificativas apresentadas pelo racionalismo e empirismo para validarem os seus
pressupostos de uma forma passiva, segundo Bachelard (1996) leva a compreensão de que não existe no processo de
produção do conhecimento científico obstáculos epistemológicos, e, portanto, que o conhecimento científico atualiza-se por
meio de generalizações. Desta forma, é possível compreender que existe a ciência, uma generalização concreta da qual o
conhecimento escolar é derivado.
Para precisar o problema do estabelecimento de fronteiras epistemológicas, buscamos compreender quais são os limites
estabelecidos pelo conhecimento científico e a influência destes limites na fixação de uma homogeneidade discursiva sobre o
currículo. Quando nos referimos aos limites impostos pelo processo de produção e circulação do conhecimento científico,
temos o objetivo de ressaltar que estes limites se relacionam com aquilo que César Coll (1996) chama de “atividades
intencionais que respondem a alguns propósitos e perseguem a consecução de novas regras” (Coll, 1996, p. 66).
Segundo Coll (1996) os propósitos e as metas na discussão curricular aparecem no momento de definir a organização de um
currículo, neste momento, “uma das tarefas do projeto curricular é proceder à análise, classificação, identificação e
formulação das intenções que presidem o projeto educacional”. (Coll, 1996, p. 67). Contudo, é importante ressaltar, que para
o autor existe uma multiplicidade de intenções presentes no momento de elaboração de um projeto curricular, esta
multiplicidade não pode ser ignorada, porque ao ignora-la reduzimos os diferentes problemas, que de alguma forma se
relacionam entre si, a uma homogeneidade.
Esta redução, a meu ver, se confunde com duas ações que permeiam o processo de elaboração curricular, estas ações
segundo Coll (1996) são a organização e a seqüenciação temporal dos conteúdos curriculares, no entanto, Coll (1996) não
problematiza a questão da multiplicidade de intenções presentes no momento de elaboração de um projeto curricular com a
necessidade de organização e seqüenciação temporal deste projeto. Os indícios desta questão aparecem sem serem
problematizados no texto que utilizamos de base para o presente trabalho, Psicologia e currículo: uma aproximação
psicopedagógica à elaboração do currículo escolar, neste texto, César Coll, desdobra a multiplicidade de intenções de um
projeto curricular em dois aspectos: primeiro, “o grau de concretização das intenções educativas”; segundo, “as vias de
acesso na concretização das intenções educativas”.
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Ao aprofundar estes dois aspectos Coll (1996) delimita a articulação entre “os resultados de aprendizagem, os conteúdos
sobre os quais a aprendizagem versa, e às próprias atividades de aprendizagem”. Para Coll identificar esta articulação foi
possível porque alguns autores, De Corte et alli (1979), Romiszonwski (1981) e Hameline (1979), ao explicarem formas de
organização curricular fundamentam a explicação em pontos que se articulam, ou seja, Segundo De Corte et alli “Num
extremo, com as formulações muito abstratas sobre as mudanças que a educação formal tenta promover nos alunos, temos
os objetivos gerais”, os objetivos gerais mantém uma relação estreita com a formulação de objetivos concretos ou objetivos de
aprendizagem. (apud Coll, 1996, p.68).
Assim, por exemplo, Romiszowski (1981) denomina finalidade, meta ou propósito educativo um enunciado geral sobre as
intenções educativas; no outro extremo, o objetivo de instrução designa um enunciado preciso sobre as intenções
educativas; os objetivos de instrução derivam das finalidades educativas graças a uma série de esforços sucessivos de
concretização e especificação. (Coll, 1996, p.68)
Para Coll (1996) Hameline (1979) coloca em um extremo as finalidades que são “afirmações de princípio através das quais a
sociedade (ou grupo social) identifica e veicula seus valores, e que proporcionam linhas mestras a um sistema educacional”
(apud Coll, 1996, p. 69). Segundo Coll (1996) entre as finalidades e os objetivos específicos ou operacionais Hameline (1979)
acrescenta metas educacionais e objetivos gerais. Ao apresentar os conceitos destes autores Coll (1996) nos indica que o
esforço realizado por esta gama de terminologias consiste em conseguir identificar o grau de concretização das intenções
educativas. Como se fosse possível a partir do esforço de articular generalizações (objetivos gerais ou finalidades) e
especificidades (objetivos específicos) precisar o grau de concretização das intenções educativas. Este esforço de precisão
acaba por delimitar fronteiras no tratamento da multiplicidade de intenções, por hora, denominamos estas fronteiras como
fronteiras epistemológicas. Cabe ressaltar, que a questão de identificar precisamente o grau de concretização das intenções
educativas, a meu ver, ainda permanece como uma questão a ser resolvida.
Neste contexto, a urgência da organização e seqüenciação do projeto curricular esbarra na possibilidade de prescrever
conteúdos, estes conteúdos podem ser considerados universais porque contêm uma marca,
Trata-se de identificar os processos cognitivos mais importantes na aprendizagem, a fim de confeccionar um repertório de
habilidades independentes de conteúdos específicos e, portanto, suscetível de ser aplicado a uma variedade de
situações. (Coll, 1996, p. 72).
Segundo Coll (1996) esta marca vem da contribuição da psicologia, mesmo que a preocupação central seja com os processos
cognitivos, nos deparamos com a seguinte afirmação de Coll (1996), no que se refere aos processos cognitivos, afirmação do
autor a partir da contribuição de Bruner (1966),
Na opinião do autor (Bruner, 1966), os efeitos desejáveis da educação escolar não devem referir-se tanto à aquisição de
itens específicos de conhecimento, ou determinadas pautas de comportamento, quanto à aquisição de destrezas
cognitivas que possam generalizar-se e ser aplicadas a uma ampla gama de situações. (Coll, 1996, p. 73).
Currículo e Epistemologia | 198
Esta tendência de isolar características do processo cognitivo que permitam á aquisição de itens específicos de conhecimento
contribui para o entendimento de que existe um conhecimento escolar universal, ou seja, que determinados conteúdos são
mais eficazes na aquisição de destrezas cognitivas e podem generalizar-se nas diversas práticas pedagógicas escolares.
Neste sentido, Goodson (1995) apresenta considerações importantes, que nos indicam o problema de fixar uma prescrição de
hábitos intelectuais específicos como metas a serem trilhadas por um projeto curricular.
Os que acreditam em metas educacionais baseadas nas disciplinas são obrigados, em última análise, a se defrontar com
a triste verdade de que o mundo da escolarização como correntemente se apresenta desenvolve-se em tal ritmo que o
estabelecimento de metas é difícil e os quadros de metas nem sempre são relevantes. (Goodson, 1995, p. 53)
Segundo Goodson (1995), a proposta de organização de um currículo prescritivo baseada em uma idéia pré-concebida de
que existe um conhecimento escolar geral, em que diferentes habilidades cognitivas, que foram isoladas e identificadas no
plano teórico, conseguem sustentar e dar forma a um conhecimento escolar universal, pode ser superada pela articulação
entre teoria-prática. A atenção do pesquisador precisa se dirigir para o esforço de elaborar uma teoria curricular que não isole
em lados opostos, a elaboração teórica da prática pedagógica das escolas. “a nossa teoria precisa desenvolver-se a partir do
entendimento do currículo tal como é elaborado. Em síntese, não necessitamos de teorias sobre prescrições curriculares, mas
de estudos, [...] de teorias sobre elaboração e aplicação de currículo” (Goodson, 1995, p. 55).
Neste contexto, a proposta de Macedo (2006) no texto intitulado, Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural, a meu
ver, desloca a discussão sobre a necessidade de elaboração de um projeto curricular alicerçado na idéia de que existe um
conhecimento escolar homogêneo, para “ a compreensão da dinâmica do currículo como cultura” (Macedo, 2006,p. 287).
Compreender a dinâmica do currículo como cultura significa abolir as fronteiras que demarcam, e colocam de lado opostos as
diferenças existentes na escola. Segundo Macedo (2006) “não parece produtivo assumir que esse espaço-tempo – do
currículo – é um lugar de confronto entre culturas com lados definidos” (Macedo, 2006, p. 287). Para a autora romper com as
fronteiras estabelecidas é um esforço que abre a perspectiva da negociação, mesmo sendo esta uma perspectiva ainda
nebulosa, a negociação é um caminho possível para que diferentes tradições culturais possam viver de múltiplas formas.
A preocupação com a multiplicidade de intenções que César Coll (1996) nos indica, se relaciona com a proposta de um
“currículo como espaço-tempo de fronteira cultural” de Elizabeth Macedo (2006)? De acordo com a nossa leitura não,
enquanto que para Coll (1996), a multiplicidade de intenções é algo importante a ser levado em consideração, ao mesmo
tempo, também, esta multiplicidade se perde no momento em que existe no projeto de organização curricular uma estreita
ligação entre o conhecimento escolar e o conhecimento científico. Parece que, de alguma forma, os conteúdos escolares
podem ser a condição inicial para o pensamento científico. Neste caso o esforço realizado, mesmo que contemple de alguma
forma a diferença, precisa no momento final, enquadrar as culturas em uma cultura científica, que se pretende geral.
Nesse sentido, esta cultura científica geral está em estreita ligação com o conhecimento escolar, e chega a estabelecer uma
fronteira instransponível para os conhecimentos e/ou saberes que circulam na escola e que não derivam de uma prática
científica. Contudo, Bachelard (1971) nos demonstra que,
Toda a fronteira absoluta proposta à ciência é a marca de um problema mal posto. É impossível pensar fertilmente uma
impossibilidade. Quando uma fronteira epistemológica parece nítida, é porque se arroga o direito de, a propósito, ter como
necessárias intuições primeiras. Ora, as intuições primeiras são sempre intuições a rectificar. (Bachelard, 1971, p. 25).
Currículo e Epistemologia | 199
A cultura científica geral se torna legítima dentro de um projeto curricular no qual uma fronteira epistemológica precisa foi
erguida. Considero que esta fronteira possa ser nomeada como uma fronteira epistemológica porque ela foi erguida a partir da
contribuição da psicologia, e se refere ao fato de que a aquisição de destrezas cognitivas pode ser algo facilmente
generalizável.
Da mesma forma que para demarcar uma fronteira entre o conhecimento científico e o desconhecido, “seria necessário poder
circunscrever inteiramente o campo do conhecimento, desenhar um limite contínuo inultrapassável, marcar uma fronteira que
toque verdadeiramente o limitado” (Bachelard, 1971, p. 24). Para demarcar uma fronteira entre os processos cognitivos mais
importantes na aprendizagem, a fim de proporcionar um vasto repertório de habilidades, e processos cognitivos desprezíveis,
seria necessário compreender de maneira definitiva o movimento de produção do conhecimento escolar e estabelecer
precisamente quais são os limites deste conhecimento com outras formas de conhecimento e/ou saberes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao problematizar a questão do estabelecimento de fronteiras na organização de um projeto curricular, a orientação desta
questão se deu a partir da crítica ao entendimento de que existe um conhecimento escolar geral, que em alguns momentos do
texto chamamos de universal. Ao criticar a generalização do termo conhecimento escolar, nos deparamos com algo que não
cabe nesta generalização. Ou seja, outros conhecimentos e/ou saberes que são diferentes deste termo, e que, por vezes, se
universaliza o conhecimento escolar.
Ao entender que a diferença não cabe na forma como tem se generalizado a aquisição de hábitos cognitivos, hábitos que
sustentam os conteúdos e formam o chamado conhecimento escolar. Destacamos a crítica que Macedo (2006) realiza as
propostas curriculares que de alguma forma pretendem ser prescritivas,
A fantasia colonial do currículo alicerça-se, portanto, em objetos impossíveis, ou seja, numa pretensa diferenciação entre
os saberes do Iluminismo, da escola, e aqueles trazidos por professores e alunos de sua vida cotidiana. Ocorre que essa
distinção só é possível por meio de estratégias de fixação, cuja ambivalência nega a sua própria possibilidade de
existência. (Macedo, 2006, p. 293).
Ao estabelecer esta crítica a autora desloca a conhecimento do centro da discussão dos projetos curriculares e coloca a
cultura. Um deslocamento que “permite-nos perceber que as culturas presentes no espaço-tempo do currículo não podem ser
fixadas” (Macedo, 2006, p. 293). Segundo Macedo (2006) esta fixação não pode ocorrer mesmo que discursos do ilumunismo
digam o contrário, e a meu ver, mesmo que a pretensa idéia de uma cultura científica geral possa parecer muito coerente. “As
relações entre a teoria e a experiência são tão estreitas que nenhum método, seja experimental, seja racional, não esta
seguro de manter seu valor” (Bachelard, 2000, p. 17).
E as relações estreitas entre a teoria e a experiência – experiência científica – nos remetem as palavras de Goodson (1995)
Resta-nos insistir em teorias que mantenham uma investigação sistemática sobre como se origina o currículo existente,
como é reproduzido, como se transforma e responde a novas prescrições. Em síntese, uma teoria sobre como atuam,
reagem e interagem as pessoas envolvidas na contínua produção e reprodução do currículo. (Goodson, p. 64)
Currículo e Epistemologia | 200
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1971.
_________. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996.
_________. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2000.
CARDOSO, Miriam L. O mito do método. Rio de Janeiro: Boletim Carioca de Geografia, 1976.
COLL, César. Psicologia e Currículo: uma aproximação psicopedagógica à elaboração do currículo escolar. São Paulo:
Editora Ática, 1996.
GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. Rio de janeiro: Vozes, 1995.
MACEDO, Elizabeth. Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 11, n.
32, p. 285-296, maio/ago. 2006.
Currículo e Epistemologia | 201
Siomara Borba & Rosa Maria Correa das Neves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
FORMAÇÃO PARA A PESQUISA NO CAMPO DA EDUCAÇÃO: QUESTÕES SÓCIO-
HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS.
Temos identificado no campo da educação, particularmente nas discussões sobre a pesquisa em educação, debates e publicações que,
embora marcadas por distinções teóricas, tangenciam uma problemática comum apresentada sob denominações diferenciadas – “formação
para pesquisa em educação”, “formação do pesquisador educacional”, “formação em pesquisador educacional”, entre outras. No âmbito da
pós-graduação stricto sensu, publicações discutindo o modelo de pós-graduação brasileiro e debates sobre princípios e critérios de
avaliação da pós-graduação e seus efeitos no campo têm tratado diferentes aspectos implicados na formação de pesquisadores do campo.
Neste trabalho, tratamos da formação de pesquisadores no campo da educação a partir de uma pesquisa bibliográfica, com base em uma
literatura de corte marxista, destacando, especificamente, dois desses aspectos que estão presentes na produção da área sobre a pós-
graduação. Assim, o tema que estamos examinando, a formação de pesquisadores em educação, é investigado considerando duas
perspectivas distintas, as políticas econômica e científica implementadas no Brasil, na época da criação do sistema nacional de pós-
graduação e a epistemologia das ciências sociais. O referencial marxista de análise da sociedade permite aproximação das questões que
dizem respeito à prática da pesquisa em educação, pois apresenta argumentos para análise do processo investigativo em educação, nas
suas condições concretas e nas suas condições epistemológicas. Deste modo, em uma dimensão, demonstramos que a institucionalização
da pesquisa educacional brasileira em suas origens é parte de uma política científica nacional que incluiu a regulação e expansão da pós-
graduação no Brasil, estratégica para uma específica fase de acumulação do capital. Por outra mirada, consideramos os argumentos que
sustentam a impossibilidade de conhecer o real como se apresenta à observação, afirmando que o conhecimento se dá sobre o real feito
objeto teórico e não sobre o real empírico feito objeto imediato de conhecimento. Por estas observações, temos a intenção de continuar a
discussão já iniciada, não só trazendo outros elementos para o debate sobre formação de pesquisadores, no campo da educação, bem
como identificando orientações que pensamos necessárias estarem presentes nesta formação, neste campo, a saber: a compreensão de
que a formação regulada de mestres e doutores, para além de circunscreverem-se a iniciativas individuais ou de coletivos, estão envolvidas
em relações sociais complexas e dinamizadas segundo uma determinada lógica econômica e a discussão sobre o processo de pesquisa na
prática de formação dos pesquisadores em educação.
Temos identificado no campo da educação, particularmente nas discussões sobre a pesquisa em educação, debates e
publicações que, embora marcadas por distinções teóricas, tangenciam uma problemática comum apresentada sob
denominações diferenciadas – “formação para pesquisa em educação”, “formação do pesquisador educacional”, “formação
em pesquisador educacional”, entre outras. No âmbito da pós-graduação stricto sensu, publicações discutindo o modelo de
pós-graduação brasileiro e debates sobre princípios e critérios de avaliação da pós-graduação e seus efeitos têm tratado de
diferentes aspectos implicados na formação de pesquisadores desse campo. Neste trabalho, partimos de referências do
campo do marxismo para tratar de dois aspectos da formação de pesquisadores no campo da educação: suas condições
concretas e suas condições epistemológicas. Na primeira direção – sobre condições concretas dessa formação –
apresentamos, de modo abreviado, o encaminhamento teórico-metodológico e algumas formulações que elaboramos sobre
condições institucionais relativas à formação de mestres e doutores em geral, e no campo da educação, em particular. Na
segunda direção – sobre condições epistemológicas dessa mesma formação – apresentamos argumentos de uma
epistemologia marxiana que sustenta a impossibilidade de conhecer o real como se apresenta à observação, afirmando que o
conhecimento se dá sobre o real feito objeto teórico e não sobre o real empírico feito objeto imediato de conhecimento.
Currículo e Epistemologia | 202
Um dos aspectos que, julgamos, pode enriquecer o debate sobre formação de pesquisadores no campo da educação é a
compreensão de que a formação regulada de mestres e doutores, para além de circunscreverem-se a iniciativas individuais
ou de coletivos, está envolvida em relações sociais complexas e dinamizada segundo uma determinada lógica econômica;
lógica que, por sua vez, limita a própria formação em moldes muito precisos e concretos. Nesta direção, realizamos uma
investigação sobre a institucionalização da pesquisa educacional brasileira em suas origens, compreendendo suas relações
com a política científica que incluiu a regulação e a expansão da pós-graduação, estratégica para uma específica fase de
acumulação do capital. Importante salientar que nossa opção pelas origens da pós-graduação se voltou à necessidade de
uma elaboração histórica sobre a „fragilidade epistêmica‟40 recorrente no campo da educação. Entendemos esta „fragilidade‟
como reconhecimento, como descrição de um problema e não sua explicação, seu conhecimento, o que se formula através
da construção teórica de determinantes para além do próprio problema, em seu campo41. Tais determinantes, em nosso
entender, não se esgotam no próprio campo, mas transcendem-no e configuram-no de certa forma. Assim, nos dedicamos a
um movimento de estudos sobre a institucionalização das ciências no Brasil, o que nos permitiu construir nosso objeto teórico
– determinações relativas à institucionalização da pós-graduação brasileira no campo da educação. Esta opção significou um
encaminhamento na pesquisa em que buscamos conhecer questões que historicamente se interpuseram à medida que se
buscou legitimar socialmente o conhecimento científico (Löwy, 1994). De modo mais abrangente, assumimos conhecimento
científico como forma epistêmica relativa ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e, mais especificamente,
empreendemos estudos sobre particularidades do capitalismo brasileiro e do desenvolvimento das ciências no Brasil no
século XX.
FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO: CIÊNCIA PARA UM NOVO PADRÃO DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL E
PÓS-GRADUAÇÃO COMO SOLUÇÃO PARA DEFASAGEM TECNOLÓGICA.
Para nossa compreensão geral do capitalismo brasileiro, nos parece vigorosa a formulação da „integração dialética‟ de pólos
opostos da sociedade que se analisavam de modo separado. (Oliveira, [1972] 2003) A compreensão do capitalismo brasileiro
segundo o modelo do subdesenvolvimento representou, no âmbito de ação do estado, a partir dos anos 50, a proposição de
planos para o alcance do „desenvolvimento‟. A crítica a esse modelo, que supunha uma dualidade formal e resultava na
compreensão de que formas sociais arcaicas seriam anomalias da totalidade e não, como defende Oliveira, sistêmicas, foi o
ponto de partida para nossa apropriação crítica do ideário econômico reformador que sustentou debates pedagógicos e
reformas educacionais. Se propostas educativas correm o risco de ter por exclusiva referência o pensamento educacional e
desafios pedagógicos, entendemos que o reformismo tanto pedagógico quanto do sistema educativo não pode ser pensado
de modo distante de dinâmicas do campo econômico, das relações sociais de produção. Este suposto nos encaminhou a
considerar a pós-graduação, nível educativo que, em tese, volta-se à formação do cientista no âmbito desse quadro mais
geral da economia política e a identificar sua institucionalização como associada à dinâmica econômica.
40 Reunimos sob esta denominação um conjunto de considerações que identificamos sobre o saber produzido no campo da educação, considerações que têm em comum um acento negativo no estatuto epistêmico do que se produz como pesquisa educacional – “levantamento de dados”, “pobreza teórica e inconseqüência metodológica”, “noção evasiva de pesquisa”, “estreitamento de temas”, “lassidão do método”, “produto sincrético”, “formalismo teórico”, “pouco contribuem para a constituição de um corpo teórico sólido e abrangente que promova o desenvolvimento da ciência na área da educação”, “pesquisas não acadêmicas propriamente ditas”. A literatura a partir da qual reunimos tais denominações está discriminada na tese de doutoramento de Rosa Neves “A presença da pesquisa no processo de implantação da pós-graduação em educação no Brasil (1960-1980)”, orientada por Siomara Borba. 41 Conforme uma interpretação de estudos do EPISTEME, com base em Miriam Limoeiro Cardoso (1978), a “descrição” não se reporta ao problema propriamente do conhecimento, mas a um movimento de que parte a atividade científica, no sentido de ser um obstáculo epistemológico. Segundo esta orientação, nos colocamos na investigação contra o objeto dado (descrição), o que entendemos como fundamental na produção científica que busca construir explicações para determinadas descrições.
Currículo e Epistemologia | 203
A partir das características específicas do capitalismo brasileiro, de que nos apropriamos, em nosso ver, um aspecto em
particular foi fundamental na análise da pós-graduação, de modo mais geral – o grau de nacionalidade na nova estrutura de
produção. (Oliveira, 2003, p. 77) O autor nos diz que
não se encontra nos atos de política econômica de todo o período pós-anos 1930 nenhuma disposição tendente a
propiciar a transferência de tecnologia para empresas nacionais que tivessem a intermediação do Estado. Inclusive as
políticas científica e tecnológica de instituições como as universidades eram completamente desligadas da problemática
mais imediata da acumulação de capital. (idem) 42
Temos aí elementos para identificar a insuficiência tecnológica nacional e a direção que se dá à superação dessa insuficiência
como gênese da política científica brasileira, aí incluindo a política de pós-graduação. A inexistência de criação de estruturas
para um desenvolvimento tecnológico nacional por parte do estado nos anos 50 tem orientado nossos estudos pela
associação havida entre o desenvolvimento de uma “ciência nacional” e esta lacuna, o que, no limite, explicaria os obstáculos
à consolidação de uma burguesia brasileira, o que se buscou alcançar em associação com uma burguesia estadunidense,
através do golpe militar de 1964.
A associação política tecnológica – política científica é um dos eixos centrais de REGINA MOREL (1979), para quem, a partir
de meados dos anos 60, consolida-se a percepção de que ciência e recursos humanos são encarados como pontos de
estrangulamento43 da expansão econômica no Brasil (idem, p.53), passando a merecer um enfretamento direto e planificado e
fundamentar uma política científica a partir do regime militar. A formação de mestres e doutores foi elaborada como uma das
estratégias para criar tecnologia em universidades e era expressa em metas quantitativas específicas e ambiciosas – de 1974
a 1979, aumentar em cinco vezes a quantidade de mestres e, em praticamente, três vezes o de doutores formados até 1973.
A direção pretendida em tais metas supunha ciência como propulsora de tecnologia em grandes unidades empresariais
voltadas à acumulação de capital (p.71)
Consoante à nossa orientação teórico-metodológica, dedicamo-nos ao exame da institucionalização da formação do
pesquisador no campo da educação em suas relações com a institucionalização da pós-graduação brasileira, a política
científico-tecnológica e sua direção. Do mesmo modo que MOREL (idem, p. 12) que examinou a política científica de acordo
como se caracteriza e se transforma o trabalho intelectual no conjunto da divisão social do trabalho, identificamos na política
curricular dos anos 70 , que se estende aos anos 80, além de uma evidente distinção de grau (mestrado e doutorado),
distinções quanto à finalidade de cursos em ambos os graus – qualificar profissionais ou formar professores para o ensino
superior ou produzir ciência – e quanto ao conteúdo da formação – profissional ou científico. Tendo em vista essa
diferenciação, nos pareceu necessário um exame atento de documentação exclusiva do campo da educação, articulando o
Parecer 77 de 1969 do Conselho Federal de Educação (CFE), documento em que se explicitaram pela primeira vez
exigências para credenciamento de cursos de mestrado, e Pareceres desse mesmo Conselho em que figuraram o
reconhecimento de cursos de mestrado em educação credenciados até 198044
.
42 Esta característica vinculou-se a efeitos da política econômica empreendida de meados dos anos 50 que resultou na aceleração do processo de industrialização e se realizou segundo uma repartição: capital estrangeiro dominando o eixo dinâmico da economia – bens de consumo duráveis e bens de produção – e capital nacional dominando o eixo industrial que originalmente o formou – bens de consumo imediato. Para OLIVEIRA (2003), essa divisão visava fortalecer o capital nacional e resultou de uma política de estado, visível no planejamento elaborado e executado. 43 A expressão é própria da terminologia da planificação estatal desenvolvimentista. 44 Em nossa pesquisa documental, identificamos que até este ano, o CFE era formalmente agência exclusiva para reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de mestrado e doutorado no país, havendo uma inflexão posterior através do agenciamento da CAPES, à época em transformação e hoje agência de regulação da pós-graduação. No período investigamos, entre outros, 13 cursos de mestrado em educação
Currículo e Epistemologia | 204
Nossa análise se debruçou de modo articulado sobre conteúdo e condições para pesquisa nos cursos de mestrado desse
período. No que tange a conteúdo, tivemos por referência a discriminação das áreas de concentração, referidas em sua maior
parte a práticas pedagógicas, sejam escolares (Aconselhamento Pedagógico e Orientação educacional - PUC –RJ, UFRJ,
PUC- RS, UFF; Didática ou Ensino ou Currículo - PUC-RJ, UFRS, PUC-RS, USP, UFPR e UFF, UFMG e UFBA, PUC-SP e
Supervisão e Administração Escolar – UFRJ), sejam sistêmicas (Planejamento Educacional - PUC-RJ, da UFRS, da PUC-RS,
da FGV/ IESAE e da UFF e Educação Brasileira - UNB).45
No exame de condições para a pesquisa, extraímos de cada Parecer descrições relativas a espaço físico de cada curso46 e a
tradição de pesquisa. Com relação a espaço físico, constituíram-se exceções os cursos que destinavam espaço além de
salas de aula e salas de reunião: sala individual para professor (PUC-RS e UNB), laboratório de ensino (PUC-RS) e gabinete
de professores (USP), salas para reunião e seminários (PUC-RJ, PUC-SP – Psicologia da Educação e UFRS) e sala para
supervisão de estudos de docentes e discentes (PUC-RJ) 47
. A quantidade de pesquisas era reduzida e relativa a teses de
doutoramento de professores dos cursos e a pesquisas cujos títulos evidenciavam sistematização de dados. Importante
destacar que em mais de um parecer, relatores apontam que o campo da educação não tinha tradição de pesquisa,
justificando inclusive a ausência de atendimento ao critério, caso do curso de mestrado da UFRJ e de outros como os da
UNB, UFBA e UFMG48, cursos que pela área de concentração poderiam apresentar características próximas a uma formação
científica.
Pelo conjunto de aspectos que estabelecemos – conteúdo e suas condições de cursos de mestrado em educação –
concluímos que a formação propriamente de pesquisas, pelo desenvolvimento de pesquisa científica e produção de
conhecimento, ressentiu-se de condições institucionais, na dinâmica própria do campo. Se um dos princípios para
estruturação de atividade científica é um modelo teórico, o conteúdo das pesquisas educacionais desenvolvidas no âmbito
dos cursos ou na experiência formativa dos docentes revela o entendimento da pesquisa como de sistematização de dados e
não exatamente teorias científicas, de ciências que poderiam elucidar fenômenos educativos. Ainda com respeito ao
conteúdo dos cursos analisados, sugerimos que a ênfase profissional de áreas de concentração no preparo de mestres e, de
modo relacionado, na ação de docentes voltou-se ao aprofundamento de saberes profissionais, tácitos, não necessariamente
teóricos. Nossa contribuição assim aponta que, a despeito do esforço comum entre professores e estudantes dos cursos de
mestrado examinados para criação e desenvolvimento de pesquisas, a finalidade no âmbito da política de pós-graduação de
que mais se aproximaram foi a qualificação profissional e não produção científica. Nos limites de nossa investigação, não
pudemos nos dedicar ao exame da produção resultante desses cursos, seja produzida através da formação (dissertações),
seja através dos próprios docentes (teses e artigos), o que não nos exime de lançar como hipótese geral que, diante do
conteúdo e das condições desses cursos de mestrado em educação, os estudos produzidos estejam longe de poderem ser
entendidos como científicos.
reconhecidos: PUC-RIO (Parecer 118/ 71), PUC-SP – Psicologia da Educação (Pareceres 211/ 72, 928/ 72 e 383/ 73), UFRS (Pareceres 264/ 73 e 657/ 74), UFRJ (Parecer 4417/ 75), UNB (Parecer 3724/ 74), FGV / IESAE (Pareceres 4178/ 74 e 1610/ 75), UFBA (Pareceres 1374/ 74, 579/ 79 e 1505/ 79), PUC-RS (Parecer 4417/ 75 e 60/ 76), USP (Parecer 500/ 76), UFPR (Parecer 3173/ 77 e 822/ 78), UFF (Parecer 98/ 78, 1332/ 78 e 1856/ 78), UFMG (Parecer 233/ 79 e 856/ 79) e PUC-SP – Currículo (Parecer 181/ 80 e 949/ 80). 45 Dos pareceres analisados, cinco cursos estruturam cursos de mestrado em torno a ciências: Psicologia da Educação (PUC-SP), Psicologia (UFRS e a FGV/ IESAE), Filosofia e História (USP) e Ciências Sociais Aplicadas à Educação (UFMG e UFBA). 46 Dos 13 cursos que examinamos, 4 contém pareceres em que o espaço físico não se encontrava descrito, havendo apenas comentários genéricos de relatores: instalações apropriadas para o trabalho teórico e prático (UFPR), satisfatórias (UFMG) e adequadas (UFMG e PUC-SP – Currículo). 47 A referência a laboratórios é encontrada em alguns pareceres, porém a descrição dos laboratórios indica que eram usados com fins didáticos e não de pesquisa e também que os de pesquisa estavam em vias de construção (UNB) ou seriam aproveitados de outros cursos (IESAE / FGV). 48 Nesses casos, tradição de pesquisa foi verificada pela quantidade de publicações.
Currículo e Epistemologia | 205
FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO: algumas considerações a partir do debate epistemológico
Outro aspecto, ainda que, aparentemente, distante das questões sobre a institucionalização da pós-graduação no Brasil, que
merece ser considerado na discussão sobre a formação do pesquisador em nível de pós-graduação, em especial, na
discussão sobre a formação do pesquisador no campo da educação, são os aspectos que dizem respeito às concepções
epistemológicas que sustentam os projetos de pesquisa. Entre muitas questões que estão envolvidas no trabalho
investigativo, tais como as questões sobre método, teoria, sujeito cognoscente, o segundo momento desse trabalho vai
centrar suas análises sobre o objeto a ser conhecido Embora reconheçamos que possam existir diferentes perspectivas
epistemológicas e, no seio delas, características específicas, destacaremos uma forma de pensar a atividade investigativa
que parte do argumento de que o real a ser conhecido, a rigor, é um objeto teórico49
. Essa discussão compreende duas
dimensões: a crítica à concepção empírica de conhecimento e a apresentação de aspectos que vão afirmar o real científico
como objeto teórico.
A atividade cognitiva envolve dois aspectos que só são constituídos elementos do processo de conhecimento, quando estão
em relação. São esses elementos, de um lado, o sujeito cognoscente, que busca conhecer o real e, de outro lado, o objeto
cognoscível, isto é, o real, entendido, então como todo objeto de preocupação: O conhecimento é o resultado da relação entre
um sujeito que se empenha em conhecer e o objeto de sua preocupação (Cardoso, 1976, p. 63). Para a concepção empírica
de conhecimento, a relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecimento é uma relação que é construída a
partir da realidade, mais especificamente, de um pedaço de realidade, que se dá a conhecer, pois, de acordo com essa
epistemologia, esse real se mostra de forma pura, inteira, tal como é. Nesse sentido, pode-se perceber que o início do
processo de conhecimento do real está no movimento do sujeito empírico. Esse se aproxima do real pelos sentidos –
observação e experimentação – e parte do pressuposto que a realidade se apresenta de forma imediata, completa, plena,
impondo-se ao sujeito, pois fala de si, dizendo o que é.
Por sua vez, a concepção epistemológica que entende o real a ser conhecido como um objeto teórico, partindo da crítica à
epistemologia empírica, nega, definitivamente, todos os pressupostos que afirmam a independência do real no processo de
conhecimento. MIRIAM LIMOEIRO CARDOSO50
, em diferentes trabalhos, (1976, 1977, 1978, e 1990) argumenta que
entender o objeto de conhecimento como sendo a realidade dada pelos sentidos não permite identificar aquilo que está fora
do alcance dos sentidos. Portanto, esse não é o ponto de partida do conhecimento. CARDOSO (1979) afirma,
categoricamente, que [...] as evidências são sistematicamente enganadoras. [...] (p. 25). O real, o objeto real, a realidade que
se torna objeto de conhecimento não é o real em si mesmo, não é o real na sua em condição de coisa aparente, reconhecida
pelos sentidos.. É o real já pensado, já conhecido que é feito objeto de conhecimento. Há uma diferença profunda entre o
objeto real e o objeto de conhecimento. Não é o objeto real que se torna objeto de conhecimento. Para que o real se torne
objeto de conhecimento é preciso que esse real seja um objeto teórico. Nessa epistemologia, então, o processo de
conhecimento, ao seu final, chega a um objeto construído teoricamente.
A idéia de objeto teoricamente construído já anuncia uma distância significativa da epistemologia empirista. No entanto, outro
aspecto marca, ainda mais profundamente, a diferença com a epistemologia tradicional. Esse aspecto é o ponto de partida do
conhecimento. Para a concepção epistemológica apresentada por CARDOSO, o conhecimento começa por um sujeito teórico
49 A discussão sobre o objeto do conhecimento como sendo um objeto teórico tem sido desenvolvida e apresentada em seminários e textos, elaborados em co-autoria com Vera Teresa Valdemarin, da UNESP/Araraquara e aceitos para publicação em periódicos da área. 50 Entre os autores que sistematizam a ideia de construção teórica do objeto, destacamos MIRIAM LIMOEIRO CARDOSO (1976, 1977, 1978, 1990), socióloga brasileira, que ao longo do desenvolvimento de suas pesquisas centradas nas questões da ideologia desenvolvimentista da sociedade brasileira, discute a produção do conhecimento sobre a sociedade, fundamentada na teoria marxista de sociedade. Com base nas obras de Karl Marx, e, portanto, afirmando, categoricamente a existência da realidade concreta, CARDOSO trabalha, de forma detalhada e cuidadosa, a ideia do real como objeto teórico construído.
Currículo e Epistemologia | 206
em direção a um objeto já teoricamente construído, o que significa afirmar categoricamente: só se pode chegar à construção
teórica do objeto se se parte do real como objeto construído teoricamente. Essa ideia de objeto construído teoricamente faz
com o que o conhecimento seja caracterizado, também, como um processo de construção. E sendo um processo de
construção, o conhecimento sempre terá como resultado, uma verdade provisória, pois [...] o conhecimento não é absoluto e
[...] a verdade que ele nos dá é sempre uma verdade aproximada. (1978, p. 25).
Além disso, nas análises de CARDOSO, o conhecimento comanda o processo de entendimento do mundo - É o
conhecimento que coloca o mundo real como seu objeto (Cardoso, 1978, p. 25) - e ao fazer do mundo o objeto de
conhecimento, ele formula e constrói o objeto do conhecimento, distinto do objeto real. [...] (p. 25), ajudando, portanto, a
estabelecer a diferença entre o objeto real e o objeto do conhecimento. Assim, essa lógica epistemológica, fundada no
argumento de que o conhecimento é um ato do sujeito que, ao pensar o mundo, constrói significados e teorias sobre o
mundo, não aceita a ideia de auto-oferecimento do real, ou seja, de que a realidade, ela se faz objeto de conhecimento. Em
uma perspectiva oposta, tal epistemologia entende que a realidade só se torna objeto de conhecimento na relação que o
sujeito estabelece com o mundo. Sem essa relação, embora exista a realidade, não é possível existir o objeto a ser
conhecido: [...] A realidade ela mesma só se torna objeto como termo da relação, como coisa pensada [...] (Cardoso, 1976, p.
65. Grifos da autora).
Essas duas considerações: o mundo é feito objeto de conhecimento pelo conhecimento e a existência de diferenças
epistemológicas profundas entre o real e o objeto de conhecimento, por um lado traz indicações das características de uma
epistemologia baseada no conhecimento, no pensamento e, de outro lado, consiste em uma crítica aos pressupostos da
perspectiva epistemológica centrada na observação e na experiência.
Apesar de centrar o processo de conhecimento na relação sujeito-realidade, o projeto epistemológico de construção teórica
do objeto a ser conhecido desconhece a possibilidade de o real trazer em si, sua inteligibilidade. Apesar de reconhecer e
entender que a realidade existe, nos afeta, e nos [...] fornece elementos que os sentidos podem captar. Eles são percebidos,
apreendidos, interpretados, colocados como evidência a confirmar ou infirmar formulações anteriores. [...] (Cardoso, 1976, p.
65), ela não é simples, mas complexa, dinâmica, não cabendo, de forma definitiva, nos limites da formulação teórica, que será
sempre incompleta: [...] a realidade que a pesquisa pretende conhecer permanece sempre mais rica do que a teoria que a ele
se refere. [...] (Cardoso, 1976, p. 66). O projeto epistemológico de construção teórica do objeto a ser conhecido, contudo,
afirma que toda essa complexidade e riqueza de possibilidades não significam que a realidade tenha autonomia
epistemológica. A realidade não tem condições de comandar o seu próprio processo de entendimento. Apesar de toda
atividade cognitiva voltar-se para a explicação do real, o que faz da realidade, um elemento constituinte, central no processo
de conhecimento, [...] não é ela que comanda o processo de sua própria inteligibilidade. [...] (Cardoso, 1976, pp. 64-65).
Somente o real, tratado como objeto teórico, pode falar sobre si. E ele pode falar sobre si não a partir de si mesmo, mas a
partir da construção teórica sobre ele, que o faz objeto de conhecimento, fato científico, fato construído: [...] o real que deverá
fornecer a última palavra não é externo e concreto, mas o real que a própria teoria formulou. [...] (Cardoso, 1976, p. 68).
Assim, nessa lógica epistemológica, o real, aquilo que é dado pelos sentidos, não pode ser entendido como objeto do
conhecimento científico. O que constitui o objeto de conhecimento é aquilo que já foi construído, teoricamente, sobre o real, é
o produto de todo um processo de construção do conhecimento objetivo sobre a realidade [...] o produto de uma construção
progressivamente objetivante, [...] (Cardoso, 1978, p. 34).
Toda essa discussão trazida por MIRIAN LIMOEIRO CARDOSO, negando um pressuposto fundamental da epistemologia
empírica, o pressuposto de que o conhecimento é o esforço de desvendamento dos mecanismos do real tal como aparece
Currículo e Epistemologia | 207
aos nossos sentidos e a nossa experiência, nos possibilita pensar o processo de construção do conhecimento em novas
bases.
Segundo Cardoso (1976), uma epistemologia que parte da afirmação que o real a ser conhecido é um pedaço de realidade,
[...] concreto [...] (p. 63), independente do sujeito e como tal não teria como enganá-lo, tenderá entender o sujeito como um
indivíduo neutro, concreto, que, ao mesmo tempo em que é capaz de chegar ao objeto puro, começa o processo de
investigação pelos sentidos e pela experiência, ou seja, um sujeito empírico:
[...] Pode-se supor, seguindo uma epistemologia espontânea, que esta relação se dê entre o investigador considerado
empiricamente, como indivíduo concreto, personalizado e o pedaço de realidade, também concreto, que ele tenha decidido
pesquisar. Cada pessoa seria inteiramente responsável pelas formulações que fizesse, pelas explicações que desse, porque
seu pensamento teria sido elaborado a partir do contato com o objeto, que, sendo concreto e independente dele, não teria
como enganá-lo. Para sair-se bem bastaria que ele não se deixasse enganar por si mesmo, isto é, se neutralizasse para
impedir interferências deformadoras do objeto, que deveria ser colhido em toda sua pureza. (Cardoso, 1976, p. 63).
Assim, o entendimento do real como pedaço da realidade, como real concreto, como real empírico não acontece sem que o
sujeito cognoscente seja entendido da mesma forma. Dessa forma, não é só o real que é empírico. O sujeito que se aproxima
desse real, também, é um sujeito empírico.
Essa concepção epistemológica, que compreende um sujeito que busca conhecer e uma realidade que se dá conhecer, [...]
um pedaço de realidade [...] (Cardoso, 1976, p. 63), é criticada por CARDOSO e pelos argumentos que afirmam ser o real um
objeto construído teoricamente não só porque tal epistemologia nega o projeto sócio-histórico no qual sujeito e realidade
estão inseridos, mas, também, porque a epistemologia empirista parte do princípio que o conhecimento é o resultado do
investimento racional do pesquisador sobre a realidade que está a sua frente, realidade que aparece como fenômeno, real
fenomênico.
Essa forma de entendimento do objeto de conhecimento indica, concretamente, uma nova forma de conceber a relação
sujeito – objeto que marca o processo de conhecimento. Essa nova forma de pensar a relação de conhecimento vai colocar
nas duas pontas do processo cognitivo, um sujeito teórico, e uma realidade que é um objeto teórico. O processo de
conhecimento começa e termina no campo do teórico. O teórico não é o final do processo de conhecimento; é, ao mesmo
tempo, seu começo e seu fim. O processo de conhecimento parte do objeto teórico, não parte das aparências do fenômeno,
não parte do real como tal e termina em outro objeto teórico, substancialmente diferente do objeto teórico do ponto de partida.
CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS PARA O EXAME DA FORMAÇÃO DA DIMENSÃO INVESTIGATIVA NO
CAMPO DA EDUCAÇÃO.
As discussões apresentadas nesse trabalho, ou seja, a análise do processo de institucionalização da pós-graduação em
Educação bem como a consideração de uma discussão epistemológica que entende o real a ser conhecido como objeto
teórico construído, buscaram trazer uma nova relação entre condições que estão presentes e, nos parecem, determinantes na
prática da pesquisa em Educação e, portanto, na formação do pesquisador em Educação.
Entendemos que a análise fundada no campo da teoria marxiana traz alguns elementos que ajudam a pensar de forma crítica
o que recebemos como “verdadeiro”. Considerar a institucionalização da pós-graduação em Educação como um processo
definido a partir de determinadas exigências da lógica econômica capitalista é, mais uma vez, afirmar o caráter histórico das
ações e criações humanas, além de ajudar a identificar o significado dessas ações e criações. Por sua vez, discutir
princípios que orientam práticas e processos epistemológicos empiricistas ou científicas, considerando a perspectiva de
Currículo e Epistemologia | 208
construção teórica do objeto a ser conhecido, traz outra possibilidade para a realização da pesquisa sobre o educacional,
sobre o educativo, sobre o pedagógico. Nessa possibilidade, educação é entendida não em sua vivência e e observação, mas
pelo que pode ser pensada.
Certamente, a discussão sobre a pesquisa em educação apresenta diferentes questões, pois se trata de uma ação humana e,
como tal, marcada pela complexidade. Não entendemos assim que os argumentos aqui apresentados tenham sido
exaustivamente explorados, mas pretendemos que nossas considerações relativas a determinantes históricos da pós-
graduação brasileira em educação em suas origens e a distinções epistemológicas podem trazer contribuições para a
produção epistemológica o campo da educação de forma mais geral e do campo do currículo, de forma específica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Miriam Limoeiro. O mito do método. Boletim Carioca de Geografia. Rio de Janeiro, 1976, Ano XXV, pp. 61-100.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. La construcción de conocimientos: cuestiones de teoria y método. México: Ediciones Era, 1977.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento: Brasil: JK – JQ. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. Para uma leitura do método em Karl Marx: anotações sobre a "Introdução" de 1857. Cadernos
do ICHF, UFF, ICHF, Rio de Janeiro, 1990.
LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchaussen. São Paulo: Cortez, 1994.
MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, 228-237.
MOREL, Regina Lúcia de Moraes. Ciência e estado; a política científica no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
OLIVEIRA, Francisco. Crítica a razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003.
Currículo e Epistemologia | 209
Valdo Barcelos
Universidade Federal de Santa Maria
CURRÍCULO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) - CONTRIBUIÇÕES DA
BIOLOGIA DO AMOR E DA BIOLOGIA DO CONHECIMENTO DE HUMBERTO
MATURANA
Ao nos debruçarmos sobre os estudos e pesquisas que buscam construir e ampliar a produção de conhecimento sobre as diretrizes
curriculares percebemos que já se percorreu um extenso caminho. No entanto, inúmeros desafios permanecem e continuam a exigir que
aprofundemos esses estudos. Uma das maneiras de viabilizarmos essa vontade é buscando interlocuções com autores e áreas de
conhecimento que nos possibilitem diálogos e interfaces com a educação. O presente texto se refere aos resultados de pesquisas
desenvolvidas nos últimos anos junto a obra do pensador chileno Humberto Maturana. Entre os meus objetivos está o de promover uma
reflexão sobre as possibilidades de construção de conhecimento curricular tendo como ponto de partida as proposições deste autor. É dada
ênfase, neste trabalho, às contribuições de dois conceitos fundantes de sua obra: a Biologia do Amor (BA) e a Biologia do Conhecimento
(BC). Esta proposição está ancorada na idéia de que a construção do conhecimento, bem como o processo de aprendizagem humana pode
se dar via diferentes metodologias e/ou práticas didáticas e pedagógicas. Estou propondo nos basearmos na BA e na BC como princípios
epistemológicos orientadores do processo da aprendizagem humana em busca de uma ruptura com a cultura da dominação, do controle e
da competição. Um dos pontos de partida desta proposição é de que nos construímos humanos não pela competição, mas, sim, pela
cooperação. Sintetizando: em contrapartida a uma organização curricular pautada, hegemonicamente, na razão proponho a BA a BC como
pressupostos epistemológicos para pensar uma organização curricular pautada no amor como a emoção que nos institui como seres sociais
capazes de edificar um mundo social e ecologicamente mais justo. Esta pesquisa tem demonstrado que a BA e a BC nos possibilitam
pensar, organizar e executar uma proposta curricular onde a emoção e a afetividade sejam o principal aspecto a ser levado em
consideração quando nos propomos um trabalho pedagógico que tenha como objetivo incentivar a criação de espaços de convivência
escolar. Espaços, esses, onde sejam privilegiadas algumas relações em detrimento de outras. Alguns exemplos de relações a serem
privilegiadas seriam aquelas que incentivam a cooperação, a solidariedade, a empatia, a tolerância, o reconhecimento do outro, o cuidado
ecológico. Já, as relações a serem evitadas seriam as que incentivam a competição, a discriminação, a intolerância, a coerção, a exclusão e
a objetivação do outro. Esta pesquisa conta com o financiamento de agências como o CNPq, CAPES e governos Estaduais e Municipais.
Palavras-chave: Biologia do Amor – Biologia do Conhecimento – Humberto Maturana
PRIMEIRAS PALAVRAS
Podemos dizer que os estudos e pesquisas acadêmicas no campo da construção de conhecimento sobre as diretrizes
curriculares educacionais, já percorreram um extenso caminho desde seu início até os dias atuais. Contudo, os desafios que
ainda se apresentam continuam a exigir que aprofundemos estes processos de investigação e de busca de interlocuções com
diferentes áreas, bem como com diferentes pensadores.
Uma das formas de fazermos isto é buscando interlocuções com autores e áreas de conhecimento que nos possibilitem
diálogos e conversações nos espaços de interfaces com a educação. Quero adiantar, que a expressão conversações,
quando utilizadas, neste texto, têm que ver com o que elas significam para Humberto Maturana - autor cujas idéias orientaram
a pesquisa que deu origem a este texto - para quem a existência humana acontece no processo relacional do conversar.
Estou me referindo à proposição de que nosso ser biológico, como humanos, se constrói na imersão do ato de conversar.
Currículo e Epistemologia | 210
Conversar é, neste sentido, o entrelaçamento entre o racional e o emocional num processo de linguagem comum num
determinado espaço de convivência e num tempo presente: o aqui e o agora.
Uma das condições necessárias para que esta conversa se estabeleça é, para Maturana, a necessidade da escuta51 do
outro. Esta escuta precisa dar-se levando em consideração o entrelaçamento das emoções e das atitudes deste outro no fluir
do seu viver cotidiano.
Este texto se refere aos resultados de uma pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos anos. São pesquisas que têm
financiamento do CNPq e da CAPES, bem como o apoio institucional da Universidade Federal de Santa Maria-UFSM e o
Centro e Educação. Muitas das reflexões que apresentarei no decorrer deste texto tiveram sua origem, também, em
conversas e diálogos ocorridos durante palestras, conferências e vivências com professores e professoras em atividades de
estudos e de formação continuada de professores(as) das redes de ensino básico no Brasil.
Entre os principais objetivos desta pesquisa e das atividades de formação continuada de professores(as) está o de promover,
e em alguns casos aprofundar, a reflexão sobre as possibilidades de construção de conhecimento curricular, tendo, como
ponto de partida, as idéias do biólogo e pensador chileno Humberto Maturana.
Para este trabalho serão apresentadas, em particular, as contribuições a partir de dois pressupostos epistemológicos e
científicos fundantes na obra de Humberto Maturana, quais sejam: a Biologia do Amor (BA) e a Biologia do Conhecimento
(BC)52. Estas duas proposições estão ancoradas na idéia de que a construção do conhecimento, bem como o processo de
aprendizagem humana pode se dar via diferentes metodologias e/ou práticas didáticas, metodológicas, organizativas e
pedagógicas. Outro ponto importante e que deve ser levado em consideração é que não existe uma separação entre aquilo
que as epistemologias tradicionais chamam de dimensão biológica e dimensão cultural da pessoa e, conseqüentemente, nos
seus processos de viver. E dentre estes processos está à produção de conhecimento. Apresentarei, a seguir, uma pequena
história que espero nos ajude a refletir sobre esta proposição epistemológica e, com isto tento deixá-la mais familiar ao nosso
entendimento. É um pequeno conto intitulado Quem matou Godofredo?
Parecia coisa de outro mundo, coisa de doido. Mas não era. Aquele cidadão tinha treinado um rato como tocador de flauta.
Tudo começou como uma brincadeira com os amigos mais próximos e acabou se transformando no seu ganha-pão. E não
era um ganha-pão qualquer. Era sua forma de sustento e ao mesmo tempo sua maior alegria. Aos poucos foi ficando
conhecido e sua proeza famosa. Uma prova disto é que quando estava para chegar a um novo lugarejo já era esperado com
ansiedade pelos desconfiados e incrédulos espectadores. Naquele dia, e naquele pequeno vilarejo pobre do interior, não foi
diferente: duas horas antes do horário previsto para a apresentação as pessoas já começavam a chegar. Afinal, todos
queriam ficar o mais perto possível para assistir o insólito espetáculo. Chegado o tão esperado momento e apresenta-se o
empresário com sua famosa caixa marrom e senta-se na cabeceira da grande mesa. Como todos os presentes sabiam por
que estavam ali não foram necessárias às apresentações. Tudo a postos ele abre sua caixa. Tão logo o ratinho flautista,
Godofredo, saltou do interior da mesma um senhor de semblante apreensivo dá um salto e num gesto instintivo aplica um
51 A palavra escuta aqui utilizada é intencional. Com ela quero ressaltar a importância de, mais que ouvirmos o que o outro tem a dizer (seja criança, adolescente ou adulto), há que parar para lhe dar atenção. Ou seja: dar à palavra escuta seu sentido de origem: auscultare, que está relacionada a dar atenção ao que vem de dentro. Dar espaço para a voz do interior. Ouvir o e com o coração, com a emoção e não apenas com a razão. 52Biologia do amor e Biologia do conhecimento: Humberto Maturana apresenta estas denominações para especificar um espaço de reflexão. O espaço de reflexão entendido como um domínio do nosso viver que se estabelece nas relações que participamos no conversar. No conversar como o entrelaçamento do emocionar e do linguajear. Esse espaço aparece conforme se definem na linguagem explicações e distinções sobre a experiência de definir o próprio espaço que se quer definir. Mais recentemente Maturana; Dávila, (2005) estabelecem esses domínios como uma dinâmica relacional para a qual propõe a denominação de Matriz biológica e cultural da existência humana.
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certeiro e violento murro sobre o frágil corpo do Godofredo que vira uma pequena e inerte massa de carne. Assim termina
uma promissora carreira artística e outra de empresário (BARCELOS, 2008).
Para contribuir com a reflexão deixo algumas perguntas; (1) Quem matou Godofredo, o ratinho flautista, foi à cultura, (2) foi à
biologia (3) foram ambas ou (4) nenhuma delas?
Para Humberto Maturana (1995; 2001; 2004) o que existe é um entrelaçamento permanente e recorrente entre essas duas
dimensões (cultura e biologia) que são unas. Penso que a partir desta afirmação a resposta fica evidente...ou não...
Retomando a reflexão inicial, sobre as diferentes possibilidades metodológicas, didáticas, pedagógicas e de organização
curricular, a grande diferença reside na opção de emoção que fizermos. No caso estou propondo nos basearmos na BA e na
BC como princípios epistemológicos orientadores do processo da aprendizagem humana em busca de uma ruptura com a
cultura da dominação. Um dos pontos de partida desta proposição é de que nos construímos humanos não pela competição,
mas, sim, pela cooperação. Sintetizando: em contrapartida a uma organização curricular pautada, hegemonicamente, na
razão, proponho a BA a BC como pressuposto epistemológico para pensar uma organização curricular que tenha o amor
como a emoção que nos institui como seres sociais capazes de edificar um mundo social e ecologicamente mais justo.
Esta pesquisa tem demonstrado, até o momento, que a BA e a BC nos possibilitam pensar, organizar e executar uma
proposta educacional em geral, e uma proposição curricular em particular, onde a emoção e a afetividade sejam o principal
aspecto a ser levado em consideração quando nos propomos desenvolver um trabalho pedagógico que tenha como desejo e
objetivo incentivar a criação de espaços de convivência escolar que não seja um espaço qualquer. Mas, sim, um espaço de
convivência onde a emoção que predomine seja a emoção do amor. Com isto estaremos criando espaços de privilegiamento
de algumas relações em detrimento de outras.
Alguns exemplos de relações a serem privilegiadas seriam aquelas que incentivam a cooperação, a solidariedade, a empatia,
a tolerância, o reconhecimento do outro, o cuidado ecológico. Já, as relações a serem evitadas seriam as que incentivam, por
exemplo, a competição, a discriminação, a intolerância, a coerção, a exclusão e a objetivação do outro.
CONTANDO HISTÓRIAS E (RE) PENSANDO CURRÍCULOS.
A expressão “currículos” utilizada no plural é intencional neste texto. A utilizo levando em conta o que sugere uma das
pesquisadoras de currículo no Brasil, em particular sobre as alternativas curriculares para a educação de jovens e de adultos,
Jane Paiva. Para esta autora é importante não perder de vista que não existe uma concepção e/ou execução curricular em
andamento nas escolas, mas, sim, várias. Na suas próprias palavras “O que se observa é que não há somente um currículo
nas escolas, mas muitos em ação, embora se tenda a pensar que ele é único, e que se pode homogeneizá-lo” (PAIVA,
2004:40).
Vejo, na reflexão feita pela autora, uma possibilidade muito grande de aproximação entre sua idéia de currículo, organizado
como se fosse uma rede de entrelaçamento de conhecimentos, saberes e experiências, com a proposição epistemológica
apresentada por Humberto Maturana no seu livro intitulado A Árvore do conhecimento. Nesta proposição, o autor alerta para
a necessidade de estarmos sempre atentos para algo que, mesmo parecendo uma obviedade, não raro é esquecido. O autor
adverte que “tudo o que é dito é dito por alguém” e que “todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer” (MATURANA,
1995:69).
Esta forma de pensar a ação educativa humana nos desafia, por exemplo, a nunca esquecer que não há um lá fora onde se
buscarão os ingredientes necessários para construção do conhecimento. Seja ele de que tipo e em que área for. Por exemplo:
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nas questões relacionadas à construção de alternativas curriculares. A justificativa, para esta afirmação, busco, também, em
Maturana, quando este diz que “A experiência de qualquer coisa “lá fora” é validada de modo especial pela estrutura humana,
que torna possível “a coisa” que surge na descrição” (1995:68). É justamente esta circularidade, este encadeamento entre as
atitudes e as experiências das pessoas como seres no mundo (FREIRE, 1997) e que agem de forma inseparável daquilo que
são particularmente, e aquilo que o mundo parece ser, que indicam algo fundamental e que não pode ser tergiversado pois,
“Todo ato de conhecer produz um mundo” (MATURANA, 1995:68).
Ao pensarmos alternativas de diretrizes curriculares, há que levar em consideração esta proposição, pois, ela nos possibilitará
abrir espaços para que as experiências trazidas pelos educandos se manifestem e, mais que isso: sejam levadas em
consideração no momento de refletirmos sobre o que realmente faz sentido e tem relevância que justifique sua inclusão numa
determinada configuração curricular. E quando me refiro a experiências estou considerando, como tal, todo um conjunto de
acontecimentos que envolvem as mais complexas dimensões do humano, ou seja, suas emoções precisam estar no centro de
nossas preocupações quando refletimos e, conseqüentemente, formulamos proposições curriculares. Acredito que esta forma
de pensar as alternativas curriculares vai ao encontro do que sugere a pesquisadora de currículo Inês Barbosa de Oliveira
quando ela propõe que é preciso compreender o currículo para além de uma visão de mera lista de conteúdos e temas a
serem contemplados mas, sim, “como criação cotidiana daqueles que fazem as escolas e como prática que envolve todos os
saberes e processos interativos do trabalho pedagógico realizado por alunos e professores” (BARBOSA, 2004: 09).
Após esta breve, mas, a meu ver, necessária introdução, quero começar esta reflexão relatando um fato que me ocorreu por
ocasião de uma atividade de formação continuada com professores e pesquisadores da região amazônica brasileira. Vamos a
narrativa do ocorrido:
Corria o mês de fevereiro de 2008. Imediatamente após encerrar uma conferência sobre o tema Aquecimento Global e
Refugiados Ambientais, ao serem abertos os debates para a assistência, uma jovem mulher índia levanta da platéia, se dirige
ao microfone e se apresenta: era uma professora pertencente à Nação Waimiri Atroari, recém-formada em pedagogia pela
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Após se apresentar ela se dirige até a mesa e, parando à minha frente, retira do
pescoço um cordão finíssimo feito de sementes muito pequenas oriundas de plantas nativas da Amazônia. A professora vai
até o computador e retira dele o Pen Drive que tinha sido por mim utilizado na conferência. Com muita habilidade, apesar de
um certo nervosismo, coloca o meu pequeno equipamento de informática no colar de sementes e volta até a mesa. Não
preciso dizer que estávamos todos querendo entender e prever cada um dos próximos passos da “atrevida” mulher índia. Ela,
então, pede para colocar o cordão no meu pescoço e diz que o está oferecendo a mim para que ele proteja meu Pen Drive
dos “maus espíritos virtuais que circulam pelas redes de computador”. Imediatamente após, se afasta da mesa e se dirige
novamente ao microfone e explica as razões de seu gesto. Segundo ela, aquela tinha sido a primeira vez que alguém, não
índio, colocava o conhecimento dos povos nativos no mesmo patamar de importância do conhecimento científico dos brancos.
Contou ela que durante todos os anos em que cursou o ensino médio na educação de jovens e adultos e depois nos cinco
anos na faculdade de pedagogia nunca tinha visto alguém valorizar os conhecimentos tradicionais e os saberes, as lendas, os
rituais e os mitos de seus irmãos índios.
(1) que tinha sido necessário eu viver mais de meio século para merecer a honraria daquele momento. Um momento que
sem nenhuma sombra de dúvida resultou para mim numa experiência extremamente marcante do ponto de vista pessoal e
significativa do ponto de vista profissional;
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(2) refletir sobre de que maneira reagiriam os burocratas e planejadores educacionais frente uma “situação curricular” tão
inusitada, mas que, sem dúvida, surge prenhe de simbolismos e de características emocionais muito significativas para a
pessoa que a proporcionou;
(3) como se comportariam alguns dirigentes/coordenadores de cursos de pedagogia/licenciatura/formação de professores(as)
e burocratas da Academia, frente a tal tipo de “quebra de protocolo”, em particular num momento e num ambiente onde os
respectivos papéis (conferencista/assistentes) já estão previamente estabelecidos e os limites de intervenção muito bem
demarcados;
Vou continuar minha reflexão, sobre a narrativa da professora Maria das Dores Waimiri Atroari, com uma citação de Marcos
Reigota. Para este educador ambiental existe um espaço imenso a ser ocupado na educação quando se quer pensar a sala
de aula e nossas práticas educativas. São os espaços ocupados pelas narrativas daquelas pessoas ditas, e tidas como
“anônimas”. Para Reigota (2004:207) a escolha por abrir oportunidades para que as vozes destes “anônimos” sejam
escutadas na educação, na escola, se constitui numa opção possível e que está em acordo com a “idéia pós-moderna das
micronarrativas, que cada um constrói no espaço social e pessoal cotidiano”.
Quando nos dispomos a estabelecer espaços educativos que possibilitem o estabelecimento de conversações (MATURANA,
1998) estamos valorizando uma relação de acolhimento, de cuidado, de reconhecimento do outro, de tolerância, enfim, de
amorosidade que facilita, em muito, o rompimento com os silêncios impostos, historicamente, pelos processos de colonialismo
autoritário e excludente.
Ao nos determos nas narrativas, em especial, naquelas vindas de pessoas historicamente colocadas à margem dos
processos de decisão, criamos a oportunidade para que aflorem reivindicações que andam ocultas nos meandros das práticas
educativas burocratizadas e autoritárias. São práticas que encontram, nos modelos de currículos tradicionais, um lugar muito
propício para se manterem e, o que é ainda pior, até prosperarem mesmo nos tempos atuais.
Em tais modelos curriculares encontram-se conteúdos os mais diversos e, o que é fundamental entendermos: sempre muito
bem organizados. No entanto, se olharmos, atentamente, perceberemos que é uma organização decorrente de uma
determinada lógica política e de certa concepção epistemológica.
Trata-se de uma lógica política que privilegia um certo tipo de conhecimento em detrimento de outro ou outros e uma
concepção epistemologica alicerçada em pressupostos que absolutizam a razão em detrimento da emoção. Os
conhecimentos privilegiados são àqueles considerados importantes pelos setores elitizados e detentores das decisões de
poder. Ao refletir sobre esta lógica política de organização da sociedade moderna, no que diz respeito às diferentes formas de
conhecimento, é importante ressaltar o que nos alerta o pensador português Boaventura Santos (2000), para quem, frente
aos dois tipos de conhecimento presentes na modernidade (1) o conhecimento-regulação e (2) o conhecimento-emancipação,
a opção moderna foi pelo primeiro em detrimento do segundo.
O caso da narrativa da professora Maria das Dores Waimiri Atroari, me parece um exemplo típico de até aonde chegou o
processo de aniquilamento cultural promovido pelo colonialismo europeu. Uma demonstração desta desconsideração e,
poderia até dizer, desprezo pelo conhecimento dos povos nativos ou mesmo de outras culturas e formas de viver em
sociedade, é a freqüência com que ouvimos na imprensa, e até mesmo em textos acadêmicos e científicos, a afirmação de
que vivemos, hoje, a era do conhecimento. Ora como se fosse possível existir alguma sociedade humana que não tivesse,
que não carregasse, de forma intrínseca no “fluir de seu viver” (MATURANA, 1998) suas dimensões inseparáveis, a saber: a
dimensão da cultura e a dimensão da biologia. Vale ressaltar que só nomeio aqui como “dimensões” para enfatizar que são,
ambas, parte de um mesmo devir: o devir animal que nos fez sermos o que hoje somos: homens e mulheres com os quais
nada pode acontecer se não acontecer no entrelaçamento de nossa biologia e de nossa cultura (MATURANA, 1997). Homens
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e mulheres que se instituíram, como tal, através de opções. Opções que foram, cristalizadas, no mundo moderno. Um dos
exemplos mais visíveis e, portanto, fácil de percebermos é a opção por uma cultura da dominação em detrimento a uma
cultura cooperação (MATURANA,2004).
Passando da lógica política hegemônica e olhando para a questão epistemológica, perceberemos que esta opção, pela razão,
como a determinante de nossas práticas organizativas sociais, constataremos que fomos “treinados” desde a mais tenra
infância a acreditar que somos o que somos por sermos seres racionais. E sobre este aspecto são fundamentais as
contribuições dos estudos e das pesquisas sobre a Biologia do Amor e da Biologia do conhecimento de Humberto Maturana,
sobre a edificação do que somos hoje. Para este autor, ao nos denominarmos seres racionais estamos denunciando o fato de
que “vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que
constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional”
(MATURANA, 1998:15).
Passarei, a seguir, para a segunda narrativa como forma de dar continuidade para a reflexão que estou desenvolvendo.
Trata-se, neste caso, da fala de uma alfabetizanda da educação de jovens e de adultos. Uma senhora de cerca 60 anos de
idade assim se manifestou, ao narrar sua experiência de retorno à escola
“Tentei voltar a estudar por três vez... na primeira fiz a minha matrícula e nem fui até a escola...na segunda fui até o portão do
colégio e voltei pra minha casa...na terceira entrei até dentro do colégio...até andei pelos corredor...quando tocou uma sineta
saí correndo porta a fora e ganhei a rua...na quarta tentativa em que me matriculei repeti tudo o que tinha feito nas outras vez
e fui mais longe...achei a sala de aula onde eu deveria estudar e entrei...levei um baita susto...a professora tinha chegado
mais cedo...a danada...e já estava lá dentro...e eu como sou muito envergonhada não tive coragem de voltar pra trás e fiquei
sentada lá no fundo daquela sala...as minhas pernas tremiam...não via a hora da infame da sineta tocar de novo e eu me
mandar dali...a professora conversou com todos nós...era uma mulher normal...assim até que nem eu...tinha filhos...era
casada...fui ficando...voltei no outro dia...no outro.. no outro...e estou aqui até hoje...ninguém mais me tira da escola...ainda
mais que já sei até ler...
Deixo alguns comentários a partir da fala apresentada, como, por exemplo,
(1) de onde provém tanto medo, tanta desconfiança em relação à escola manifestadas no depoimento da senhora
alfabetizanda;
(2) de quem esta alfabetizanda tem tanto medo, quem são as pessoas que na escola lhe impuseram tanta intimidação nas
suas experiências escolares anteriores;
(3) que reflexões nos convida a fazer o fato da alfabetizanda sentir na professora que encontrou na quarta vez que se
matriculou a presença de uma mulher “normal” e, por último;
(4) o que pensar sobre o fato de o medo da escola começou a desaparecer a partir desta relação que se estabeleceu com a
professora “normal”.
Este depoimento não é um depoimento qualquer. Não é uma manifestação anônima. Não. Trata-se de uma fala que tem
rosto, que tem idade, que tem nome, enfim, é um pedaço de vida. É um fragmento carregado de emoção e que denota um
determinado tipo de experiência que alguém viveu a partir de seus contatos com o espaço educativo escolar.
Currículo e Epistemologia | 215
Entre os sustos que uma narrativa deste tipo provoca está o de “cobrar” a nossa parcela de responsabilidade por
causarmos a um educando tanto medo, na escola. O relato mostra um verdadeiro pavor. Justo a escola uma instituição que
como finalidade ser mais um local de acolhimento, de socialização, de edificação de relações de cooperação, de fraternidade,
de tolerância, enfim, a escola como um espaço de vivência e convivência em atitudes que nos instituam como seres no e com
o mundo numa perspectiva de cooperação social e ecológica. Não esqueçamos que a escola ainda é um dos espaços
primeiros e importantes da construção da vida pública das pessoas.
Ao refletirmos sobre este processo de intimidação exercido pela escola, não podemos deixar de suspeitar que uma das
possíveis origens da mesma, sem dúvida, são as diretrizes e orientações curriculares vigentes. Grande parte dos estudos e
pesquisas sobre currículo, têm demonstrado a força e a importância que determinadas diretrizes acabam imprimindo as
relações didáticas, pedagógicas, metodológicas e organizativas dos espaços educativos escolares. Não seria nada estranho
associar tais procedimentos intimidatórios e repressivos aos altos índices de abandono da escola que ainda ocorrem em
diversos níveis e nas diferentes regiões do Brasil.
Ao pesquisar as redes de relações que se estabelecem nos diferentes espaços tempos da escola, Ferraço (2002) aposta
no diálogo com as manifestações cotidianas de solidariedade e de companheirismo, estabelecidas entre os educandos, como
caminho para a criação de alternativas de organização escolar e curricular, onde sejam privilegiadas atitudes que ajudem a
romper com as práticas “individualistas e egoístas” que emergem das intrincadas e complexas redes de poder que circulam
pelos currículos escolares tradicionais. Ao contrário destas redes de poder, que visam reafirmar uma cultura da dominação
(MATURANA; XIMENA, 2005), Ferraço (2002) propõe que olhemos com muita atenção para as relações cotidianas que os
educandos estabelecem entre si nos mais diferentes momentos. Se assim agirmos, veremos que essas redes de ações
cotidianas estão encharcadas de solidariedade, ajudas e pactos.
Maturana é enfático ao defender que não nascemos nem amando nem odiando ninguém em particular. Ao contrário nossa
arquitetura de animal biológico é organizada para a cooperação, para a solidariedade e não para a competição, para a
dominação, enfim, para o aniquilamento do outro. Para o autor, ao contrário, foi através da convivência prazerosa, do partilhar
consensual e afetivo de alimentos e carícias entre machos e fêmeas, entre pais e filhos que se edificou um dado modo de
vida. Modo de vida, esse, que assegurou a continuidade desta ou daquela espécie ou população. Foi este modo de vida em
coordenações pactuadas e consensuais de ações, num linguajar específico, que constituiu a linguagem. Linguagem, esta,
particular, nossa instituidora como humanos.
Particular, aqui, significa dizer: um processo caracterizado pela partilha, pela cooperação, pelo acolhimento, pelo carinho e
amorosidade. Ou seja: algo que acontece no emocionar-se pelo amor. E que pode ser aprendido desde que se abram
espaços que incentivem tais possibilidades de aprendizagem e não outras. Que outras?
Por exemplo, à competição.
A educação escolar, como não poderia deixar de ser, não escapou deste processo de construção de uma cultura de
dominação. Grande parte dos estudos e das pesquisas, sobre currículo, já demonstraram que as diretrizes e as práticas
curriculares escolares acabam, ao fim e ao cabo, reproduzindo, sendo como que um espelho da sociedade e de seus
modelos organizativos políticos e econômicos, enfim, culturais. Apresentarei a seguir uma terceira narrativa, esta, de uma
professora diretora de uma escola de ensino fundamental e que envolveu, mais uma vez, a educação de jovens e de adultos.
Contudo, penso que a reflexão feita sobre este depoimento, pode, muito bem, ser tomada como ponto de partida para
refletirmos sobre a organização da escola em outras modalidades de ensino.
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“Quando uma colega diretora de outra escola me telefonou, dizendo que eu me preparasse para receber em minha escola, no
dia seguinte à noite, um “presidiário bandido” que estava em regime aberto, entrei em pânico...fiquei imaginando como eu
faria...como deveria me comportar na conversa que ia ter com ele na noite seguinte quando o referido aluno que cursava
Educação de Jovens e Adultos (EJA) – alfabetização - me procurasse na escola com a sua transferência em mãos...era a
primeira vez que eu ia ter na minha escola um bandido estudando...minha escola era uma escola muito tranqüila...tinha cerca
de quatrocentos estudantes e uns trinta e cinco professores...todo mundo se entendendo bem...sem grande s conflitos...os
alunos mesmo sendo gente pobre eram pacíficos, ordeiros, enfim, tudo gente de bem...a maioria trabalhador, gente honesta...
Fui pra casa e não tive sossego todo o final de semana...nem dormia direito e quando dormia tinha pesadelos...sonhava que o
presidiário bandido era um negro enorme, musculoso, usando uma camisa de física sem manga, tinha o corpo cheio de
tatuagens...era careca e tinha várias cicatrizes...umas horríveis no rosto..na boca quase não tinha dentes...eu via, ele, em pé
aos pés da cama me olhando com um jeito de dar medo...”.
Algumas questões clamam por reflexão:
(1) quem disse para a colega diretora que o aluno transferido era de cor negra;
(2) quem deu a descrição física do mesmo;
(3) como ela chegou a uma tal riqueza de detalhes sobre o aluno sem nem mesmo ter falado com ele por telefone;
(4) de onde vem tanta certeza de que o presidiário era um homem negro e que era realmente um “bandido”;
(5) o que significa para a colega uma escola de alunos ordeiros, pacíficos;
(6) e “gente de bem” o que ela queria exatamente dizer com esta expressão?
Ao darmos atenção às narrativas, estamos, de certa forma, abrindo espaços para que aflorem significados, por vezes,
historicamente silenciados. Ao estabelecermos com os educandos conversações afetivas (MATURANA, 2004), a partir de
suas narrativas, estamos dialogando com identidades hegemônicas, através de longos períodos fixadas, cristalizadas. Porém
estamos criando possibilidades para, segundo Silva (1995), questionar, contestar e recriar espaços para o questionamento
das práticas curriculares hegemônicas nas escolas.
Um exemplo disto é o fragmento narrativo acima. Ele faz parte de mais um sincero e emocionado depoimento feito por uma
colega professora num dos cursos de formação continuada sobre EJA que tenho ministrado para professores(as) das redes
municipais e estaduais de educação. Podemos ver com muita força tanto o preconceito vigente, e nem sempre explícito, como
podemos, através da conversação sobre os significados presentes no depoimento fazer uma reflexão radical sobre os valores
que orientam nossas ações e atitudes educativas em geral, e curriculares em particular.
Acredito que foi muito em função da especificidade do trabalho com educação de jovens e adultos que acabei aceitando o
desafiado a aprofundar algumas reflexões sobre as práticas curriculares. Penso que o envolvimento com a educação de
jovens e de adultos acaba, de uma forma ou de outra, nos mostrando, talvez, com maior evidência alguns dos processos de
exclusão que são típicos de nosso sistema educacional em geral e das orientações curriculares em particular. Processos que,
não raro, passam mais facilmente despercebidos nas modalidades clássicas de ensino. Isto não quer dizer que estas práticas
inadequadas não aconteçam nas demais modalidades e níveis de ensino ou que não produzam também enormes prejuízos.
Não. O que ocorre é que na educação de jovens e de adultos, em função das características dos educandos, certas questões
são exacerbadas, se tornando, assim, mais evidentes (BARCELOS, 2004; 2006; 2007).
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Este trabalho na EJA, que comecei através de projetos de educação ambiental no processo de alfabetização de adultos em
escolas noturnas, tem me levado a viver experiências pessoais e profissionais ímpares. Nestes trabalhos a ênfase era sempre
a busca de estabelecimento de conversações com as histórias e trajetórias de vida dos educandos envolvidos no processo
educativo. A aposta era de que ao nos aproximarmos de suas trajetórias de vida estaríamos criando espaços para romper
com os silenciamentos impostos e ao mesmo tempo, trazendo para dentro das orientações curriculares pré-estabelecidas as
experiências decorrentes do fluir do viver de cada pessoa presente.
Com esta prática foram exercitadas um pouco daquilo que Jane Paiva propõe como pontos importantes de partida para uma
(re) invenção das alternativas curriculares. A autora sugere que (1) parta-se de uma conversa com os professores e
professoras (2) esta simples atitude abre caminhos para a emergência de saberes, de conhecimentos, de práticas e de
experiências cotidianas (3) imediatamente, ao adotarmos, esta atitude damos os primeiros passos para o rompimento com a
idéia de currículo planejado e organizado a priori e (4) os professores e professoras passam a perceber que são, efetiva e
afetivamente, parte integrante do processo (PAIVA, 2004).
CURRÍCULO, TEMPO, ESPAÇO E EXPERIÊNCIA: COMEÇANDO A NAVEGAR
Quero finalizar este texto sobre currículo com algumas reflexões sobre o tempo e o espaço da escola. Para tanto, julgo
importante explicitar a que me refiro quando falo em experiência. Isto em função de que as idéias que orientaram este texto
atribuem uma importância fundamental para aquilo que nos acontece cotidianamente. Para Maturana (2004) o fluir de nosso
viver é resultante do entrelaçamento de nossa cultura com nossa biologia e, assim sendo, “nada pode acontecer comigo sem
acontecer com minha biologia” (MATURANA, 2001:56). Uma biologia intrinsecamente acoplada com os processos de
experienciação culturais vividos pois, “todos os domínios explicativos são domínios experienciais nos quais o observador vive
novas experiências, faz novas perguntas, e, inevitavelmente, gera explicações de maneira incessante e recursiva, se ele ou
ela tem a paixão do explicar” (MATURANA, 2001:134).
Experiência aqui tomada, portanto, no sentido daquilo que amplia meu repertório de possibilidades de trabalho como
educador e como pessoa. Quando falo de experiência significativa para a formação refiro-me, também, a algo semelhante ao
que propõe Larrosa (2002) ao se referir à experiência e sentido. Para este autor experiência não é a mesma coisa que
informação. Podemos ser portadores de muitas informações e de pouca ou nenhuma experiência sobre elas. Minha
orientação quanto à experiência está ligada a uma representação, a um imaginário no qual experiência não é apenas
informação ou simplesmente aquilo que nos acontece mas, sim, aquilo que fazemos com aquilo que nos acontece. A
experiência vista como “aquilo que nos toca”. Sim porque muitas coisas nos acontecem nos tempos de pós-modernidade em
que vivemos. Cada vez mais somos bombardeados por uma gama maior de informações e eventos. Contudo, nem todas
estas informações e/ou estes eventos tocam nossos sentidos. O poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz (1994) ao falar da
maneira como experienciamos o tempo, hoje, argumenta que não é que o mesmo passe mais rápido ou mais lentamente. O
que ocorre é que cada vez mais somos compelidos a realizar um número maior de tarefas num mesmo espaço de tempo.
O trabalho educativo não escapa, nem poderia, deste “abraço do tempo”. A centralidade da reflexão neste texto se refere há
um tempo e um espaço muito particular: o tempo e o espaço da escola e das suas relações. A escola como um dos territórios
da experiência humana sensível. Um lugar de palavras, gestos, silêncios, atitudes. Um lugar de experiências vivas e vividas.
Lugar onde conhecimentos e saberes se encontram, se confrontam, se antropofagiam ou se anulam.
Tudo isto para lembrar que nada acontece fora do tempo. O tempo essa dimensão instituinte e instituidora de representações
e imaginários sociais. O tempo numa perspectiva tomada de empréstimo de poetas como Jorge Luis Borges, que diz que dele
somos feitos. Dele somos mais prisioneiros que senhores.
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Em tal representação, o tempo deixa de ser uma abstração, uma marcação cronológica ou biológica e se transforma na
substância mesma da qual somos feitos. Um tempo com o qual até podemos “negociar”, tentar resistir a sua implacabilidade.
Podemos até mesmo negá-lo, porém, jamais fugir de sua capacidade de nos “abraçar”. De nos envolver em sua espiral
interminável.
É tomando a experiência como um processo que acontece num espaço-tempo vivido, como uma forma de dizer de si e do
mundo, que acredito na sua grande potência criativa para a construção de conhecimentos e saberes em relação à atuação
docente. Mais ainda, refletindo sobre quais conhecimentos e/ou saberes deveriam compor o repertório de educadores e
educadoras para dar conta, minimamente, das questões de nossa época. Afinal, que exigências estão colocadas para a ação
docente que leve ao desenvolvimento daquilo que Lüdke (2001:07) denomina de uma “prática docente efetiva” no cotidiano
escolar? Que saberes e fazeres serão necessários para proceder à exigência, há tempos requerida aos profissionais da
educação no sentido de “reinventar a escola para que ela cumpra sua fatia de responsabilidade na organização da sociedade
e da natureza para aumentar o prazer no mundo” (GROSSI, 1992:117).
Refiro-me a uma escola, a um espaço educativo para as pessoas que nela chegam que, como já defendia Freire nos idos da
década de 70 do século passado, em seu clássico Pedagogia do Oprimido (1970), pense os seres humanos como seres
inconclusos. Tal escola estará contribuindo, assim, para que seus educados(as) se façam cientes desta inconclusão,
incentivando-os(as) para a busca de um devir ser mais. Não mais, no sentido de melhor que o outro, mas, sim, melhores
amanhã que aquilo que somos hoje.
Com esta idéia freireana faço uma aproximação final com as ideais de Humberto Maturana quando este propõe a radicalidade
da cooperação em substituição à competição. Foi a cooperação que nos proporcionou existir como espécie e não a
competição.
Por que, então, não pensar uma alternativa curricular que tenha como ponto de partida o amor como o princípio
epistemológico e pedagógico? Tentei mostrar no decorrer deste texto, através do diálogo com algumas idéias de Maturana,
que isto não só é possível como se torna cada vez mais urgente. Afinal, vivemos tempos difíceis. E difíceis, justamente, em
decorrência das opções que até agora foram feitas por nós homens e mulheres em geral e educadores(as) em particular.
A competição está presente em todos os atos de violência que acontecem. Na escola não é diferente – nem poderia ser. Já a
cooperação aparece sempre que quero dialogar, conversar, acolher, enfim, sempre que quero buscar aliados para a
edificação de um mundo social e ecologicamente mais justo.
Penso que uma excelente metáfora para nos ajudar a pensar um currículo para os tempos atuais seria a que foi apresentada
na epígrafe do último item deste texto. Há que se pensar alternativas curriculares sem a pretensão de representarem
fielmente a realidade mas que possam dialogar com ela, que possam realmente nos orientar no mar revolto em que tentamos
todos navegar.
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