29-04 marcio goldman

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    RAZO E DIFERENAAFETIVIDADE, RACIONALIDADE E RELATIVISMO

    NO PENSAMENTO DE LVY-BRUHL

    Rio de Janeiro1994

    MARCIO GOLDMAN

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    Copyright 1994 by Marcio Goldman

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Diviso deProcessamento Tcnico SIBI/UFRJ

    Goldman, MarcioRazo e diferena: afetividade, racionalidade e

    relativismo no pensamento de Lvy-Bruhl / MarcioGoldman. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/EditoraGRYPHO, 1994

    Bibliografia: p 383-394ISBN 85-7108-106-9

    1. Antropologia Social. Teoria I. Lvy-Bruhl,Lucien. II. Ttulo

    CDD 306.01

    G 618r

    Editora Grypho

    Rua Maria I. Braune Portugal 376 parte CEP 26650-000Eng. Paulo de Frontin RJ

    Universidade Federal do Rio de JaneiroForum de Cincia e CulturaEditora UFRJ

    Conselho EditorialDarcy Fontoura de Almeida, Gerd Bornheim, Gilberto Velho,Giulio Massarani, Jos Murilo de Carvalho, Margarida Souza

    Neves, Silviano Santiago, Wanderley Guilherme dos Santos.Editora UFRJForum de Cincia e Cultura

    Av. Pasteur 250 1 andar Urca CEP 22306-240 Rio de JaneiroTel: (021) 295 1595 r. 18/19 FAX: (021) 295 2346

    Apoio

    Fundao Universitria Jos Bonifcio

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    Para Tnia

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    NDICE

    Notas Preliminares

    1 O Caso Lvy-Bruhl.......................................................12 Clssico e Romntico

    Histria da Filosofia................................................45

    3 O Sbio como Astrnomo Cincia e Moral......................................................111

    4 Malentendido sobre a Vida Filosfica Psicologia e Sociologia..........................................159

    5 Perigo da Linguagem para a Liberdade de Expresso Etnologia e Antropologia......................................247

    6 As Duas Direes........................................................323

    7 O Final e a Finalidade.................................................371

    Bibliografia...........................................................................383

    ndice Remissivo..................................................................395

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    Notas Preliminares

    Este trabalho consiste em um remanejamento de minha tesede doutorado em antropologia social, escrita entre 1990 e 1991 edefendida no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Socialdo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro emdezembro de 1991. Elaborada sob a orientao do Dr. EduardoBatalha Viveiros de Castro, sua defesa contou, na banca examina-dora, com a presena dos Drs. Otvio Velho, Rubem CsarFernandes, Roberto Cardoso de Oliveira e Jos Carlos Rodrigues alm do Dr. Afrnio Raul Garcia Jr. como suplente.

    No incio de 1992, procurei redimensionar e reescrever emparte a tese visando sua publicao. Dificuldades editoriais adiaram,contudo, esta publicao at que o interesse da Editora da UFRJ eda Editora Grypho a tornassem possvel. Voltado h mais de um anopara outro objeto de pesquisa, no me pareceu aconselhvelempreender uma nova reviso. Gostaria, portanto, de contar com aboa vontade do leitor para com um trabalho cujas referncias

    explcitas cessam h cerca de dois anos, mas cujo interesse, espero,continua absolutamente atual.

    O CNPq, a CAPES e o PPGAS forneceram, em diferentes pero-dos, as bolsas de estudo que tornaram materialmente possvel a efe-tivao do trabalho. O Departamento de Antropologia da Universida-de Federal Fluminense, onde trabalhava na ocasio da elaboraoda tese, concedeu minha liberao das atividades docentes e de pes-quisa a fim de que eu pudesse me dedicar integralmente a esta atividade.

    Ana Beatriz Freire, David Hess, Dbora Danowski, Eduardo

    Correia do Prado, Francisco Teixeira Portugal, Gilberto Velho,Guilherme Teixeira Portugal, Janice Caiafa, Jlio Silveira, KtiaMaria Pereira de Almeida, Neila Soares, Otvio Velho, Ronaldo dosSantos SantAnna, Srgio Augusto Ligiero, Sulamita Danowski e Wanderley Guilherme dos Santos me auxiliaram de diferentesmaneiras na redao do trabalho e na publicao do livro.

    Roberto DaMatta, Luiz Fernando Dias Duarte, Wagner NevesRocha, Ovdio Abreu Filho, Otvio Velho, Jos Carlos Rodrigues,Eduardo Viveiros de Castro e Tnia Stolze Lima foram, ao longo de

    muito tempo, os principais interlocutores que tornaram possvel, svezes involuntariamente, a elaborao das idias aqui desenvolvidas.

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    A todas as instituies e pessoas citadas sou profundamentegrato. E embora isso seja suprfluo, gostaria de recordar que aresponsabilidade pelos erros inevitveis que este trabalho certa-

    mente contm exclusivamente minha.

    A

    Todas as citaes em lngua estrangeira foram traduzidas pormim para evitar que a exposio se tornasse pesada demais. Asreferncias bibliogrficas foram efetuadas com a data original daobra, visando fornecer uma contextualizao histrica mais precisa

    do momento em que os trabalhos analisados e citados foramproduzidos. A edio efetivamente utilizada, quando no coincidecom a original, mencionada na bibliografia final. Os textos deLvy-Bruhl mais utilizados sero citados por meio das seguintesabreviaturas:

    LIde de Responsabilit (1884)LAllemagne Depuis Leibniz Essai sur le Dvelloppementde la Conscience Nationale en Allemagne (1890)La Philosophie de Jacobi (1894)History of Modern Philosophy in France (1899)La Philosophie dAuguste Comte (1900)La Morale et La Science des Murs (1903)LOrientation de la Pense Philosophique de David Hume(1909)Les Fonctions Mentales dans les Socits Infrieures (1910)La Mentalit Primitive (1922)Communication sur la Mentalit Primitive (Bulletin de laSocit Franaise de Philosophie 1923)

    Lme Primitive (1927)Communication sur lme Primitive (Bulletin de la SocitFranaise de Philosophie 1929)Le Surnaturel et la Nature dans la Mentalit Primitive (1931)Lettre au Professeur Evans-Pritchard (1934) (RevuePhilosophique de la France et de ltranger 1957)La Mythologie Primitive - Le Monde Mythique des Australienset des Papous (1935)LExprience Mystique et les Symboles chez les Primitifs

    (1938)Les Carnets de Lucien Lvy-Bruhl (1949)

    IR:AL:

    PJ:HF:PC:

    MM:OH:

    FM:MP:

    BP1:

    AP:BP2:

    SN:LE:

    MyP:

    EM:

    CL:

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    O Caso Lvy-Bruhl

    Todo pensador profundo teme mais ser bem do que mal

    compreendido. No segundo caso sua vaidade sofre

    talvez; mas no primeiro seu corao, sua simpatia

    que repetem sem cessar: Por que vocs querem viver

    to duramente quanto eu prprio vivi?Alm de Bem e Mal

    Durante uma aula de histria, Paulo Leminski intuiu asimplicaes de uma vinda de Ren Descartes ao Brasil. Tendopertencido guarda pessoal de Maurcio de Nassau, o filsofopoderia de fato ter sido trazido pelo prncipe, ansioso por povoara Nova Holanda de sbios. Essa intuio deveria se converter em umromance-idia fascinante, Catatau. Escrito em primeira pessoa,como uma meditao, descreve as peripcias do fundador de nossoracionalismo contemplando atnito a realidade dos trpicos. Con-templando-a? Evitando-a, antes. Sentado sob uma rvore, fumandouma erva misteriosa, observa a paisagem com uma luneta, esperan-do um amigo que, imagina, poder explicar o que acontece diantede seus olhos. As lentes da luneta so trocadas sem cessar, visandoora aproximar a realidade extica curiosidade ora, maisfreqentemente, afastar os seres estranhos e ameaadores que apovoam. Quantos vidros, lentes vai querer entre si e os seres?,

    indaga-se Descartes enquanto exorciza os ndios e os animais quepassam na frente de sua luneta. Duvido se existo, quem sou eu seesse tamandu existe?, proclama, refazendo seu cogito. Leminskisustenta que seu livro pretende mostrar o fracasso da lgicacartesiana branca no calor; denunciar o esforo a contido paraexorcizar a golpes de lgica, tecnologia, mitologia, represses oaparente absurdo que afrontava o europeu; revelar a inautenticida-de de uma lgica que se supe neutra, mas que no limpa, comopretende a Europa, desde Aristteles. A lgica deles, aqui, uma

    farsa, uma impostura. No nos apressemos contudo em considerarCatatau um manifesto irracionalista. Trata-se antes de apontar a

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    2 Razo e Diferena

    eterna inadequao dos instrumentais, face irrupo de realidadesinditas. No estamos s voltas tampouco com um libelo naciona-lista, invocando um Brasil transcendente e irredutvel a modelos

    supostamente importados. Afinal de contas, a entidade Brasil apenas semi-real, sua outra metade repousando em algumasfantasias historicamente muito variveis.

    A fbula de Descartes no Brasil tem outro sentido. Aquele aquem se atribui a inveno da lgica analtica, do racionalismotriunfante, da nossa modernidade mental e tecnolgica, se d contaa duras penas da violncia a ser necessariamente exercida para queuma realidade outra se acomode aos moldes pr-estabelecidos darazo ocidental. Fbula, ou histria, das excluses e golpes de fora

    no simplesmente lgicos sem os quais o mundo no se dobraria todocilmente a certas categorias do pensamento e a certas aes daprxis. De certo modo, Descartes continua no Brasil, e em todaparte, observando com suas lentes domesticadoras um real queteima em s se deixar subjugar pela fora. Ou, se quisermosabandonar o simbolismo do livro de Leminski, podemos dizer quea razo ocidental prossegue em seu trabalho secular de controle eexcluso da diferena. Movimento que no estranho muito pelocontrrio quele executado na mesma direo pelas foras

    econmicas e polticas at hoje triunfantes.Setenta anos antes de Catatau, Lucien Lvy-Bruhl publicouuma Histria da Filosofia Moderna na Frana, encomendada porum editor norte-americano interessado em apresentar nos EstadosUnidos os princpios da filosofia francesa. A exposio vai, grossomodo, de Descartes a Comte; nela o cartesianismo encarado tantocomo a origem cronolgica e terica desta filosofia quanto comouma espcie de esprito geral que impregnaria h muito tempo opensamento filosfico francs. Privilgio das matemticas, mtodo

    dedutivo, universalismo, ruptura com os preconceitos tradicionais,poder do homem sobre a natureza: estes seriam os princpiosfundamentais que Descartes teria legado a toda a filosofia, princ-pios aos quais o pensamento francs sobretudo teria permanecido,de um modo ou de outro, especialmente fiel.

    Nascido em Paris, em 1857, Lvy-Bruhl cursou a coleNormale Suprieure entre 1876 e 1879, tendo defendido sua tese deDoutorado de Estado em 1884. Conhece-se bem o ambienteintelectual francs deste perodo: uma coexistncia no muitopacfica entre neo-kantismo, criticismo, espiritualismo, positivismoe algumas tendncias epistemologizantes. Seria quase impossvelimaginar que um intelectualismo bem forte no tivesse marcado sua

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    formao intelectual. isso alis que vrios depoimentos detestemunhas diretas confirmam. Como disse Maurice Leenhardt(1949: VI), Lvy-Bruhl fazia parte do grupo de intelectuais que cr

    no homem moderno, formado por uma cultura secular, pleno derespeito por todos os valores que fazem sua dignidade. Cartesianis-mo, positivismo e uma certa forma de neo-kantismo, eis as trsgrandes tendncias que se renem em boa parte dos intelectuaisdesta poca. Pode-se avaliar o impacto sobre algum formado nessemeio de uma viagem Amrica. Qual poderia ter sido a reao desseintelectualista inveterado ao choque que as informaes relativas ssociedades ditas primitivas com certeza nele provocou? Choque de violncia singular, que fez com que um famoso historiador da

    filosofia, requintado filsofo de gabinete contando j com 46 anosde idade, decidisse passar os trinta e seis ltimos anos de sua vidaexaminando um estranho material que lhe chegava de todas aspartes do mundo. Choque que acabou produzindo seis volumes,totalizando nada menos que 2.500 pginas, inteiramente dedicadasa esses primitivos que ele jamais encontrou diretamente seexcetuarmos algumas poucas e curtas viagens de valor etnogrficonulo.

    Em ltima instncia, o objetivo deste trabalho tentar transpor

    para uma linguagem supostamente mais objetiva e certamentemais pobre a fbula narrada por Leminski. Fbula ou histria,uma vez que bvio que Descartes realmente veio ao Brasil; bvioque a razo ocidental se defrontou desde sua constituio histricaprimeira com o fantasma da alteridade e da diferena. Isso toverdadeiro que chega a ser intil recordar que o Ocidente acaboupor reservar, na segunda metade do sculo XIX e depois de longasperipcias, um compartimento no domnio que lhe mais precioso,o da cincia, onde a questo da diferena deveria ser inventariada,

    delimitada e explicada. A antropologia cientfica nascente prometiaainda mais. No se tratava apenas de submergir uma realidade outra(coisas, seres, modos de vida concretos) em um esquema lgicoexplicativo, mas de tentar justamente uma explicao racional darazo dos outros, ou de sua ausncia entre eles. No lugar de umconfronto entre realidade e razo, os antroplogos buscaramestabelecer as modalidades de relao entre duas formas de razona aparncia to diferentes, to irredutveis uma outra.

    A antropologia Pierre Clastres (1968: 36-38) tem razo est enraizada em um paradoxo: nascida da grande partilha,poderia consistir, contudo, na nica ponte entre a civilizaoocidental e as civilizaes primitivas. Cincia e diferena se

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    encontrariam estranhamente nesta disciplina. No difcil perceber,entretanto, que esse encontro pode produzir resultados variados.Que a razo ocidental, manipulada neste caso pelo antroplogo,

    simplesmente digira a razo do outro (o que pode ser feitoconsiderando-a uma forma apenas involuda da primeira ou proje-tando-a inteiramente para fora do campo do razovel), nada tersido de fato alterado. A diferena, reduzida a simples aparncia oua mero objeto, no ter servido para nada alm de nutrir o apetite,bastante considervel, da nossa prpria razo. Estaramos s voltascom o que Clastres denomina com toda propriedade um discursosobre as civilizaes primitivas.

    Existe contudo uma outra alternativa. Se esse discurso sobre

    se transformar em um dilogo com, uma nova perspectiva poderser alcanada. Clastres apenas no menciona, o que no significaque no tenha considerado a possibilidade, que esse dilogo pode,ele tambm, assumir duas formas bem distintas. De um lado, a razoocidental pode se transformar transformao que a condiobvia para que um dilogo que merea esse nome realmente seestabelea apenas para melhor saciar seu apetite canibal.Flexibilizemos nossos esquemas, sofistiquemos nossas categorias, eaquilo que parecia to difcil de ser incorporado poder ser

    tranqilamente assimilado por nosso pensamento sem que estecorra na realidade um risco muito grande. A outra possibilidade que esse dilogo realmente nos transforme. Aqui h um risco acorrer, o de uma incapacidade de atingir completamente o outro,renncia mesmo a absorv-lo em nossas categorias, ainda quetransformadas e alargadas. A recompensa, contudo, tambm pode valer a pena: romper os quadros de um racionalismo sempreestreito, subverter a razo no em nome de seu contrrio oirracional mas na esperana de que um pensamento outro

    possa ser lentamente construdo em um processo no qual par-ticipam tambm parceiros inesperados. Esta a aposta que faz comque o jogo da antropologia realmente valha a pena. Ainda que essaseja uma opinio muito pessoal, estou certo de que no solitria.Ao longo de toda sua histria, essa forma de conhecimento pareceter estado sempre dilacerada entre essas alternativas. No se trata deum progresso na direo de pontos de vista supostamente maisadequados e cientficos, nem mesmo de uma linha que dividiriaos bons e os maus autores. A dilacerao interna, intrnseca aquase todos os antroplogos e seus antepassados. Basta analisarcom cuidado a obra do mais racionalista dentre eles para queprincpios dialgicos bem subversivos sejam revelados.

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    Aqui no , contudo, o lugar para narrar essa longa histria.Contentar-me-ei com algumas breves evocaes e indicaes quetm alguma importncia para o trabalho que se segue. Hlne

    Clastres (s/d) observou com exatido a reviravolta completa quese produziu entre os sculos XVI e XVII, de um lado, e o XVIII, deoutro, no que diz respeito ao que fazer com os selvagens. Pagandoo preo de um certo esquematismo, pode-se resumir essa oposiodizendo-se que para os observadores e escritores desses doisprimeiros sculos de contato mais intenso com o outro, ofundamental o espanto: rios, jibias, abacaxis e tupinambs semisturam nas crnicas, aparecendo como faces de uma mesmarealidade estranha e, at certo ponto, inverossmil. Acima de tudo,

    os selvagens. Quando lemos os cronistas, a fbula de Descartes noBrasil parece cada vez mais histrica. No h dvida que uma reaotranqilizadora se esboa simultaneamente, na forma de neutraliza-es de ordem sobretudo teolgica: a questo da alma dos ndios,da tribo perdida de Israel, so discusses que visam encontrar umlugar nos esquemas da histria santa para esses selvagens toabsurdos. Nesse contexto, o sculo XVIII ir marcar um ponto deinflexo decisivo, abrindo um espao do qual duvidoso que nsprprios tenhamos sado completamente. O iluminismo racionalista

    no poderia ter permanecido estranho a essas realidades aindamuito recentemente reveladas, nem poderia ter se contentado comos esquemas puramente religiosos dos sculos passados. O antigoselvagem, doravante primitivo, pode ser no apenas descritocomo tambm julgado e, talvez, explicado; pode servir sobretudocomo instrumento de crtica da sociedade ocidental. justamenteaqui que tudo se complica: para exercer essa funo de meio decrtica, as sociedades primitivas devem ser despojadas de suaespecificidade para que se permanea apenas com o substrato

    especificamente humano, mais aparente nessas sociedades do quena nossa, ainda que igualmente presente em todas elas. Dessaforma, no mesmo golpe, a singularidade, a diferena, o espanto ea possibilidade de que o conhecimento desses primitivos pudesserealmente nos comprometer, tudo isso eliminado. Um dos preosa pagar pela doutrina da unidade do homem ter que considerareste homem, excludos alguns desvios e degeneraes, como a puraimagem de ns mesmos.

    O evolucionismo social da segunda metade do sculo XIX noparece, deste ponto de vista, ter trazido qualquer modificao maisprofunda. Como disse Lvi-Strauss (1973: 385), trata-se de umatentativa de suprimir a diversidade das culturas fingindo reconhec-

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    las plenamente, a converso de uma diferena real em umadesigualdade simplesmente temporal sendo, como se sabe, ooperador de tal supresso1. Na verdade, o princpio do relativismo

    cultural que surge como marca de uma virada, talvez profunda, nahistria da antropologia. Esse , sem dvida, um tema complicadoque ser objeto de discusso em diversas oportunidades ao longodeste trabalho. Por ora, gostaria simplesmente de evocar o depoi-mento de Clifford Geertz (1988: 6), para quem o relativismo significaa maior perturbao introduzida pela antropologia na paz intelec-tual geral. Geertz tem mesmo um modo muito prprio de compre-ender esse princpio, bem como o transtorno que teria provocado.Seriam sobretudo os dados etnolgicos costumes, crnios,

    escavaes e lxicos os responsveis por essa perturbao, noas teorias antropolgicas to divergentes e contraditrias. No setrata aqui de uma reedio antropolgica do princpio de JeanRostand (As teorias passam. A r permanece): o anti anti-relativismo de Geertz toca em um ponto mais fundamental. Talvezseja possvel lev-lo ainda mais longe, sustentando que em inmerasocasies as teorias antropolgicas e mesmo pr-antropolgicas tm a funo ao menos subsidiria de neutralizar a perturbaointroduzida pelos dados etnolgicos. Costumes, crnios, escava-

    es e lxicos so assim acomodados em quadros e esquemas quese encarregam logo de esvazi-los do potencial explosivo queinegavelmente possuem.

    Tranqilizar, diz Geertz, tem sido a tarefa dos outros; anossa tem sido a de inquietar. O prprio debate, ainda bem longede estar concludo, acerca do relativismo testemunha talvez a favordessa posio. Ele pode tambm indicar que a questo est umpouco deslocada, que insistindo numa discusso virtualmenteinfinita acerca dos benefcios e paradoxos do relativismo, estejamos

    nos condenando a caminhar em crculos e a no entrever novasdirees. O princpio do relativismo cultural , sem sombra dedvida, um instrumento metodolgico poderoso sem o qual aantropologia no poderia ter ido to longe quanto efetivamente foi.Ocorre que ele talvez seja tambm um limite que o pensamentoantropolgico ter, um dia, que enfrentar e ultrapassar. Voltarei aesse ponto, mas devo logo dizer que no se trata aqui absolutamentede uma possvel defesa do anti-relativismo que Geertz acertada-mente ataca. Trata-se, isso sim, de uma tentativa de superao doprprio debate, ao menos nos termos em que tem sido tradicional-mente colocado.

    A

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    Que a razo cartesiana tenha se defrontado com o NovoMundo, que tenha se surpreendido com este encontro, tentandoexorcizar a golpes de lgica, tecnologia, mitologia, represses o

    aparente absurdo com o qual se havia posto em relao, tudo issoparece, portanto, evidente e claro. Esta viagem, contudo, tambmse realizou de outra maneira, mais pessoal que o choque genricode um Ocidente sempre impreciso com um outro mundo sempremeio mtico. Muitos foram sem dvida esses encontros pessoais,mas, como j se sabe, de apenas um dentre eles que se tratar aqui.Escrevendo em 1939 o necrolgio de Lvy-Bruhl, Marcel Mauss(1939: 561) afirmava que sua vida mereceria uma verdadeirabiografia. Este no , contudo, o lugar para tal empreendimento.

    E isso por uma srie de razes, algumas de ordem pessoal, outrasde ordem terica, outras ainda de ordem emprica. O mais sbio, falar de si o mnimo possvel quando no se a isto obrigado (CL:164). No nada fcil fazer falar um autor que se exprime com tantaclareza sobre este ponto. De qualquer forma, sempre possvel,aproveitando tambm os depoimentos dos que o conhecerampessoalmente, tentar restituir um certo quadro da vida intelectual denosso autor. Tentemos inicialmente, pois, recuperar o que ele tem,apesar de tudo, a dizer sobre si mesmo: um pouco de Lucien Lvy-

    Bruhl par lui-mme.Em 15 de fevereiro de 1923, a Sociedade Francesa de Filosofiase reunia para debater os dois primeiros livros etnolgicos deLvy-Bruhl, os que tratam das funes mentais nas sociedadesinferiores e da mentalidade primitiva em geral. O autor, presenteao debate, aproveita a ocasio para tentar esclarecer como me viconduzido a mergulhar, por uns vinte anos, em estudos an-tropolgicos para os quais meus trabalhos anteriores no pareciamhaver me preparado (BP1: 20). Confessa inicialmente uma admira-

    o, passageira e j ultrapassada, pelos trabalhos de Spencer eFrazer, sustentando, contudo, que o impulso decisivo para sua novacarreira teria se dado mais devido ao acaso que a uma trajetriaintelectual contnua. Conta que em 1903 recebeu de um amigo quese encontrava em Pequim a traduo de trs livros de um historiadorchins. Ele os l por pura curiosidade, mas a surpresa grande:embora a traduo seja irrepreensvel, o encadeamento das idiasdo autor impossvel de ser acompanhado e compreendido. nessemomento que formula para si mesmo a questo que ser decisivapara todo o seu futuro intelectual: ser que a lgica dos chinesescoincidia com a nossa?. Aps uma rpida tentativa de explorar essaquesto a partir de materiais e informaes relativos sociedade

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    chinesa, ele se d conta de sua incapacidade para realizar tal tarefa,ao menos se conduzida desta forma. Seria preciso, admite, conhecera lngua, os textos, os sbios do pas. Essa mesma dificuldade se

    manifestaria no estudo de qualquer das grandes civilizaes aAssria, o Egito, a ndia (BP1: 21). A soluo? Debruar-se sobreos dados provenientes das sociedades ditas primitivas, documen-tos que seriam acessveis, j elaborados em lnguas ocidentais e nosquais a ausncia de questes histricas facilitaria a penetrao:evidentemente, se existe uma lgica diferente da nossa, a que eutinha mais oportunidade de descobri-la, e mais facilidade paraanalis-la (BP1: 21).

    A estria dos trs livros chineses uma das raras ocasies

    em que Lvy-Bruhl se permite falar de si mesmo e, ainda assim,ns o percebemos, o mnimo possvel. Que ela resuma a trajetriae o destino reais do autor coisa de que poderamos legitimamenteduvidar. Que um acadmico j consagrado modifique todo o seupercurso intelectual em funo de uma leitura que ele mesmoconsidera casual no parece coisa muito comum ou mesmoverossmil. Alm disso, todos conhecem o princpio segundo o qualum dado ou uma revelao s so realmente decisivos e inteligveispara aquele que est preparado para compreend-los; caso contr-

    rio, e no limite, ele poderia nem mesmo chegar a perceb-losenquanto tais. De fato, num certo sentido, toda a vida intelectualanterior de Lvy-Bruhl, no importa o que ele prprio diga, opreparava para esta revelao e para as pesquisas que a ela deviamse seguir. Seu doutorado de Estado foi obtido, j o dissemos, em1884: a grande tese tratava da Idia de Responsabilidade enquantoa pequena tese latina tinha como tema a Idia de Deus em Sneca.Professor de histria das idias polticas e do esprito pblico naAlemanha e na Inglaterra, na Escola Livre de Cincia Polticas a

    partir de 1886, seus cursos o levam a publicar, em 1890, um livrosobre o desenvolvimento do carter nacional na Alemanha (AAlemanha desde Leibniz). A partir de 1896, leciona histria dafilosofia na Escola Normal Superior e na Sorbonne: os cursos aministrados sobre Hume, Schopenhauer, Descartes, Jacobi, Comte,entre outros, logo se tornam bastante famosos em Paris. Trs livrosA Filosofia de Jacobi, de 1894, Histria da Filosofia Moderna naFrana, de 1899 eA Filosofia de Augusto Comte, de 1900 bemcomo um artigo sobre a orientao do pensamento filosfico daDavid Hume, de 1909, esto relacionados com este perodo deatividade intelectual e profissional. Em 1903, publicaA Moral e aCincia dos Costumes, marca de seu encontro com Durkheim e a

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    Escola Sociolgica Francesa. A partir de 1910, enfim, comeam a serpublicadas suas obras tradicionalmente consideradas como perten-cendo ao campo da etnologia at 1938, um ano antes de sua

    morte. Como podemos perceber como o prprio Lvy-Bruhlescreveu em 1934 numa carta endereada a Evans-Pritchard suaformao foi filosfica no antropolgica: provenho de Spinoza eHume mais que de Bastian e Tylor, se ouso evocar aqui to grandesnomes (LE: 413).

    Voltemos, contudo, a colocar a questo de partida: o que umhistoriador da filosofia preocupado com a linha intelectual que vaide Descartes a Comte, passando por Kant, pde enxergar de tointeressante e perturbador na estria dos trs livros chineses? Ora,

    se h alguma coisa de comum a todos os trabalhos filosficos deLvy-Bruhl que os autores e problemas analisados esto, de umaforma ou de outra, relacionados com a questo da racionalidade. Ouantes, todos parecem estar s voltas com a aparente impossibilidadede eliminar de forma absoluta o irracional. Isso verdadeiro tantoem intelectualistas, ainda que muito diferentes, como Kant (emquem a oposio entre o relativo racionalmente cognoscvel e oabsoluto inacessvel razo pura cumpre esse papel de tematizaruma certa fissura na racionalidade) ou Comte (para quem a

    necessidade de manter a religio enquanto fundamento da sociabi-lidade que desempenhar esta funo), quanto em filsofos, comoJacobi, que oporo as certezas do sentimento s eternas dvidas darazo. Questo delicada para um intelectualista convicto: por quetamanha dificuldade em ultrapassar o irracional? Por que esseaparente fracasso da linearidade do progresso racional? Basta, porora, evocar estas questes que sero detidamente analisadasadiante, sublinhando o fascnio que parecem sempre ter exercidosobre Lvy-Bruhl a sobrevivncia das filosofias do sentimento, o

    carter eminentemente anti-racionalista de movimentos como oRomantismo e, mesmo, os resduos aparentemente no-racionaisnos filsofos mais racionalistas.

    Podemos desconfiar portanto, com mais razo ainda, docarter fundamental que Lvy-Bruhl atribui leitura dos livroschineses. Se acrescentarmos sua preocupao com a crtica dasmorais tericas, com sua necessria substituio por uma cinciados costumes, que deveria abandonar o postulado ingenuamentedefendido pelas primeiras acerca da unidade da natureza humana,fica ainda mais difcil acreditar na suposta fora decisiva de umamotivao to fugidia e casual. No obstante, se encararmos aquesto de outro modo, a estria dos trs livros chineses pode

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    deixar de parecer to tola ou insignificante. No h dvida queinmeros contemporneos, filsofos ou no, tiveram uma formaointelectual muito semelhante de Lvy-Bruhl; muitos passaram por

    Descartes, Kant e Comte; muitos poderiam sustentar provirem deSpinoza e Hume; muitos tambm, certamente, entraram em contato,seno com livros chineses, ao menos com materiais que poderiamter o efeito de colocar em questo alguns postulados centrais dalgica ocidental. Poucos, contudo, poderiam afirmar: dou mostrasde uma obstinao, provavelmente condenvel, em escrever livrossobre a mentalidade primitiva (BP2: 108). E nenhum, de fato,parece ter experimentado essa espcie de obsesso pela possibili-dade da existncia de uma diversidade de lgicas.

    Solido de Lvy-Bruhl? Imagem paradoxal, j que durantetoda sua vida jamais deixou de participar das instituies acadmi-cas e da vida pblica em geral. Recebeu todos as honrarias e ttulosuniversitrios; participou de forma bastante ativa no caso Dreyfus;reuniu-se ao esforo de guerra, tanto como redator de panfletos eboletins quanto como adido de gabinete do Ministrio das Muni-es; viajou como membro da Aliana Francesa por todo o mundopara difundir a cultura francesa. No comovente relato que MaximeLeroy faz das ltimas horas de Lucien Lvy-Bruhl (1957: 430-1),

    impressionante a insistncia com que, apenas dois dias antes demorrer, Lvy-Bruhl enfatiza a importncia de ter se associado scoisas da Cidade. Aconselha Leroy a permanecer em comunhocom seus amigos que trabalham nos mesmos estudos que voc,acrescentando: essa minha ltima recomendao. Consciente daproximidade da morte, com o trabalho ser que trabalhei tantoquanto devia?, h tantas coisas que nessas ltimas horas eugostaria de retomar, de levar a fundo e com a vida pblica queLvy-Bruhl se preocupa. Apesar de tudo, trata-se mesmo, creio, de

    um solitrio. G. Monod (1957: 428), ex-aluno na Sorbonne, descreveo espanto dos estudantes com o esforo do mestre em dissociar emsi mesmo o professor e o pesquisador, a submisso aos textos e aliberdade de pensamento: ensinando Descartes e Comte em 1909,nenhuma palavra sobreAs Funes Mentais , livro que deveria serpublicado logo no ano seguinte. Monod acredita retrospectivamen-te ter pressentido algo do prelogismo e da lei de participao naexposio do sentido do estado teolgico para Comte, ressaltandoao mesmo tempo a reserva, a prudncia, com que a aproximaoteria sido feita.

    Dissociar em si mesmo o professor e o pesquisador. JeanCazeneuve (1963: 8-9) conta que em 1927, Lvy-Bruhl teria feito

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    absoluta questo de requerer sua aposentadoria Sorbonne quandoa tradio permitiria que permanecesse desempenhando suasfunes ainda por um bom perodo de tempo. Ele desejava contudo

    dedicar-se integralmente a suas pesquisas sobre a mentalidadeprimitiva, deciso marcada, entretanto, por algumas tenses. Emuma carta endereada a Lvy-Bruhl, Durkheim comenta a decisodeste em renunciar ao ensino superior e ao trabalho cientfico paradedicar-se ao ensino no liceu (in Davy 1973: 316). Embora a datadesta carta parea um pouco incerta Davy estabelece a de 27 deagosto de 1917, mas isso duvidoso ela revela de toda a formaa dificuldade experimentada para conciliar o ensino de teoriasestabelecidas com pesquisas que se encontravam em andamento e

    que o autor considerava de resultados ainda muito precrios. Osofrimento e a insnia a que Durkheim tambm faz aluso estocertamente relacionados a essa angstia. Tudo se passa como seLvy-Bruhl fizesse parte dessa categoria de pensadores que, comodiz Deleuze, buscam separar o professor pblico do pensadorprivado. Autores como Spinoza, Hume, Nietzsche, que preferemreservar o pensamento para o exame crtico dos postulados maisaceitos e isso at as ltimas conseqncias. No ser significativoque Lvy-Bruhl tenha escolhido justamente Spinoza e Hume para

    definir sua ascendncia intelectual? Um solitrio e um ctico,qualidades que Lvy-Bruhl jamais confessou compartilhar, mas queesto nele presentes, mais do que ele prprio sem dvida gostariade admitir.

    Existe de modo difuso uma verso meio trivial acerca dodesenvolvimento da carreira de Lvy-Bruhl. Um filsofo que jamaisconstruiu uma filosofia prpria, contentando-se em expor ossistemas de outros pensadores, se transforma em um etnlogo quejamais fez etnologia ou etnografia, contentando-se tambm em

    compilar meio anedoticamente as informaes que conseguia pilharaqui e ali das obras dos verdadeiros pesquisadores. Na verdade, nose trata disso: a leitura, a perplexidade e o impasse frente aos livroschineses constituram para ele uma verdadeira revelao, a desco-berta do lugar onde poderia, enfim, construir sua filosofia. No aomodo de Durkheim, que se limitou a substituir as categorias e asantinomias da filosofia tradicional por outras cuja diferena residiaunicamente no fato de terem uma origem pretensamente sociolgi-ca (cf. Brhier 1945: 1130). Trata-se, ao contrrio, de empregar osdados etnogrficos como instrumento crtico do pensamento filos-fico dominante, de apontar novos caminhos que o pensamentopoderia seguir. por isso que um filsofo como Emmanuel Lvinas

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    (1957: 556-9) pde sustentar que foram justamente os trabalhospropriamente etnolgicos de Lvy-Bruhl que acabaram por exerceruma influncia decisiva na filosofia contempornea. E que o prprio

    Husserl (1935: 67) pde acreditar, por outro lado, que estestrabalhos eram obras de base clssicas de uma etnologia cientficarigorosa. O prprio autor tem uma certa clareza sobre este ponto.Na carta a Evans-Pritchard, recusa-se a aceitar, como sugeriu osegundo, que seus mal-entendidos com os antroplogos britnicospudessem se dever exclusivamente a problemas de terminologia.Recorda sua formao filosfica, pedindo para ser lido com estepressuposto, o que no deve deixar margem para equvocos. Lvy-Bruhl no est simplesmente se afirmando filsofo em oposio

    aos antroplogos; lembra apenas sua formao filosfica, afir-mando, ao final da carta, que o que me fez compor minhas obras[foi] a ambio de acrescentar alguma coisa ao conhecimentocientfico da natureza humana utilizando os dados da etnologia.Filsofo, sem dvida, mas nesse sentido que pensador profundono o seria?

    A

    Lvy-Bruhl parece assim ter refeito por conta prpria todauma trajetria tpica do saber ocidental. Tudo indica que seuintelectualismo sofreu um considervel abalo ao confrontar-se como mundo primitivo, abalo do qual ele seguramente jamais serecuperou por inteiro. possvel, conseqentemente, indagar seessa histria aparentemente to pessoal no possui tambm umvalor de modelo, no duplo sentido da palavra. Pois o Ocidente comoum todo tambm foi abalado pelo encontro com os primitivos,reagindo, como diz Leminski, a golpes de lgica, tecnologia,

    mitologia, represses. Na realidade, como afirma desta vez HlneClastres (s/d: 194), ainda hoje, possvel o espanto () o debatesobre os ndios no foi concludo, ele apenas se transformou. Aquesto, portanto, saber se a experincia pessoal de Lvy-Bruhlpode nos ensinar alguma coisa, se possvel atravs dela resgatarparte de um saber um pouco esquecido que o conhecimento dassociedades primitivas nos legou ou poderia ter legado.

    Aqui se introduz, queiramos ou no, o sempre delicado temadas relaes entre a vida e a obra de um autor. Mencionei acima no

    ser este o lugar para uma verdadeira biografia de Lvy-Bruhl,biografia que, como diz Mauss, ele sem dvida merece. O problema

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    saber se uma compreenso justa da obra pode realmente dispensaro conhecimento detalhado da biografia, da vida. Devo confessarque esta relao me parece bem problemtica. Podemos ler num

    livro que se tornou modelar para a exposio da vida e obra doscientistas sociais (Lukes 1981: 44, nota 2), que Durkheim teriaexperimentado um grande remorso por ocasio da primeira vezem que provou carne de porco. A informao, fornecida porGeorges Davy que conheceu Durkheim pessoalmente, evidente-mente verdadeira, no havendo qualquer motivo para duvidar dela.O problema comea quando Lukes remete, logo aps narrar o fato,para o uso que o autor faz em sua obra das leis de restrioalimentar para ilustrar o carter moral, obrigatrio das regras

    religiosas, indicando os textos em que Durkheim faz esta aproxi-mao. Embora Lukes no afirme explicitamente uma influnciadecisiva da formao judaica de Durkheim em sua obra terica, estafica mais que sub-entendida. No se trata absolutamente de negarque esta influncia possa existir e ter um peso considervel nodesenvolvimento das idias do autor; a questo sua real relevnciapara a compreenso das teses durkheimianas, o que j me parecebastante duvidoso. Ou, como disse Georges Canguilhem (1975:107), no talvez um problema que carea de interesse, mas sim,

    de qualquer modo, de importncia.De minha parte, prefiro o belo texto de Merleau-Ponty (1965)sobre Czanne. A vida de um artista, de um autor, no mais queo texto que herda e deve decifrar. Fornece, talvez, o sentido literalda obra. Ainda assim, porque s atingimos a vida atravs dessa obra.Lvy-Bruhl, como Czanne, como todo mundo, s recebe aquiloque tem que viver, no o modo de viv-lo: certo que a vida noexplica a obra, porm certo que se comunicam. A verdade queesta obra a fazer exigia esta vida. certo pois que a educao

    judaica, a III Repblica, o caso Dreyfus, os estudos acadmicos etoda uma srie de episdios que dificilmente poderamos recuperar,influem na obra e no pensamento de Lvy-Bruhl. Tambm certoque, por mais interessante que tudo isso possa ser, o maisimportante tentar reconstituir a grade de deciframento que Lvy-Bruhl aplicou a todas essas circunstncias que de algum modo a elese impuseram. No se trata de negar a relao entre vida e obra, masde tentar buscar a maneira particular atravs da qual, neste caso, elasse comunicam.

    J vimos como difcil extrair do prprio autor informaesmais pessoais a seu respeito. Obediente a seu prprio preceito falar de si o mnimo possvel Lvy-Bruhl jamais se expe.

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    possvel, por outro lado, prestar ateno aos depoimentos de algunscontemporneos que o conheceram pessoalmente ou de formaindireta. Leenhardt, como j foi observado, traa seu perfil de adepto

    da modernidade e da racionalidade. Todas as informaes corrobo-ram esse retrato. Apesar de tudo, parece haver um outro lado nessaimagem. O mesmo Leenhardt (1949: VIII) alude nica insatisfaoque Lvy-Bruhl teria tido enquanto pensador, uma insatisfaoconsigo mesmo. Insatisfao muito profunda na verdade, se levar-mos em conta o que o mesmo comentador relata em outra ocasio(Leenhardt 1957: 415): preciso tomar partido, teria escrito Lvy-Bruhl s vsperas da morte tomar partido entre a razo e o afeto.Ele, contudo, conclui Leenhardt, no havia tomado partido.

    difcil no estar de acordo com essa observao. Em 1949, Leenhardtpublicou sob o ttulo de Les Carnets de Lucien Lvy-Bruhl, osapontamentos que o autor costumava fazer durante seus passeiosno Bois de Boulogne ou na costa norte da Frana. Na verdade, trata-se dos nicos que sobreviveram II Guerra Mundial, excepcionaisportanto apenas nesse sentido, j que este um hbito que Lvy-Bruhl parece ter adotado durante toda a vida. Os carnets recupe-rados so os ltimos que escreveu, as primeiras notas datando de20 de janeiro de 1938 e as derradeiras de 13 de fevereiro de 1939,

    exatamente um ms antes da morte do autor. Mais impressionanteainda o fato de as observaes finais do ltimo carnet estaremredigidas sob o ttulo dificuldades no resolvidas (CL: 251-2). No comum que um grande professor de 82 anos, formado noambiente reconhecidamente tradicional da academia francesa nofinal do sculo XIX demonstre tanta modstia. Ou talvez no se trateaqui simplesmente de modstia, rigor e objetividade, mas tambm,e principalmente, do efeito misto de entusiasmo e espanto quecertas idias podem provocar naqueles mesmos em quem elas se

    desenvolveram. Os depoimentos sobre Lvy-Bruhl, assim comosuas prprias e poucas confisses, podem no ser muito extensosou completos. Tocam contudo, parece-me, no essencial: o espanto,o entusiasmo, a obstinao, a insatisfao do autor.

    Georges Bataille (1967: 52) tem certamente razo ao conside-rar um jogo fcil opor a opinies novas objees irrefutveis.Apontar os erros de Lvy-Bruhl, inventariar seus preconceitos,criticar seu mtodo, demonstrar sua pertinncia a uma etapaultrapassada do desenvolvimento de uma disciplina hoje cientfi-ca: tornou-se tradio muito explorada em uma certa formasuperficial de acatar opinies estabelecidas atacarem-se impiedosa-mente as idias centrais das concepes etnolgicas de Lvy-Bruhl

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    (Fernandes 1954: 121). No que isso no seja legtimo. O problema indagar, como o faz tambm Florestan Fernandes, se no deescasso interesse insistir nos possveis equvocos de um autor,

    equvocos em geral passveis de serem localizados justamentenaquilo que no h de original em sua obra. Talvez valha mais apena investir justamente em sua originalidade, prontos a capt-la londe menos se espera. No caso especfico de Lvy-Bruhl, essaoriginalidade bem poderia ser buscada do lado daquilo queFlorestan Fernandes denominou correo intelectualista do inte-lectualismo (idem: 127). Ou talvez num plano mais profundo ondeo que esteja em jogo seja mais que um simples alargamento doracionalismo, como supe Pierre-Maxime Schul (1957: 400), ao

    tentar resumir a questo de Lvy-Bruhl como a de um intelectua-lista que teria descoberto a potncia da afetividade (idem: 398). bem verdade que ele prprio costumava, em tom de brincadeira,atribuir a Aristteles e suas categorias a culpa por termos levadotanto tempo para descobrir as emoes (idem: 399). O problema meparece, contudo, mais complicado e a soluo exigida, conseqen-temente, mais radical. Pois se por um lado, Lvy-Bruhl jamaisabandonou realmente sua posio intelectualista, preciso reco-nhecer por outro, com Emmanuel Lvinas, que ele acabou por

    efetuar, intencionalmente ou no, pouco importa, uma crtica doprprio intelectualismo. Ou, para voltar aos termos de Merleau-Ponty, a herana que Lvy-Bruhl recebeu dos sculos XVIII e XIXacabaram por ser no mais que o texto que ele soube decifrar a seumodo, usando-o mesmo de forma revolucionria ao atacar a prpriaossatura do naturalismo intelectualista (Lvinas 1957: 558). Queessa crtica do intelectualismo tenha sido efetuada em nome apenasda potncia da afetividade duvidoso; que seu resultado se limitea isso, desembocando numa espcie de glorificao das emoes,

    inteiramente falso.A

    Quais seriam, ento, as motivaes para este trabalho? Emprimeiro lugar, no h dvida que Lvy-Bruhl um autor esque-cido pela antropologia e seus historiadores. Dominique Merlli(1989a: 419-22) revelou com muita preciso este fato, cabendo aquiapenas acrescentar alguns detalhes importantes. Se excetuarmos os

    trabalhos j antigos de Evans-Pritchard, o nico estudo maissistemtico dedicado a ele mesmo assim apenas parcialmente

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    o que Rodney Needham publicou em 1972 acerca da crena, dalinguagem e da experincia2. Essa situao tem evidentementeseus motivos, que no podem, contudo, ser resumidos ao carter

    antiquado ou ultrapassado do autor. Afinal de contas, continu-amos a ler e a prestar ateno em textos to ou mais antigos que osde Lvy-Bruhl. Merlli tentou determinar algumas das razes parao que denomina desnaturao, esquecimento, recalque do pen-samento deste autor (idem: 420-31) voltarei a elas adiante. Porora, vale mais a pena insistir no valor e no sentido que um trabalhosobre Lvy-Bruhl pode ter no quadro atual de desenvolvimento daantropologia social e cultural.

    H um tema que parece percorrer toda a histria do pensa-

    mento antropolgico, que recentemente adquiriu novas dimenses:o de uma crise da antropologia. Conhece-se a advertncia deFrazer, ao pronunciar, ainda em 1908, a aula inaugural da primeiractedra que em todo o mundo recebeu o ttulo de AntropologiaSocial. Trata-se a de lembrar os riscos corridos por um saber queapenas constitudo j contemplava a desapario de seu objeto . Estetipo de observao bastante comum e podemos encontr-la deMorgan e Tylor a Lvi-Strauss e outros autores ainda mais recentes.O prprio Lvi-Strauss, escrevendo em 1961 (Lvi-Strauss 1962c: 19-

    22), tratou contudo de reduzir o alcance desse tipo de crise, quepoderamos denominar de objeto. De um lado, o material etnogr-fico j acumulado seria to extenso que poderia nutrir a reflexoterica por muito tempo ainda; por outro, novas populaescontinuariam a ser descobertas ou ao menos tornadas acessveis aospesquisadores; alm disso, a antropologia poderia voltar seu olharpara sociedades de volume bem superior ao daquelas que tradici-onalmente tm constitudo seu objeto de estudo, inclusive para aprpria sociedade do observador. Para Lvi-Strauss, o nico proble-

    ma realmente grave residiria na desconfiana que populaesrecentemente libertadas do domnio colonialista demonstrariam emrelao aos antroplogos. Tratar-se-ia neste caso, no de uma crisede objeto, mas de uma crise de relao entre o investigador e seuobjeto de estudo. Essa outra modalidade da crise da antropologiafoi explorada mais sistematicamente por uma srie de autorespreocupados em diagnosticar os efeitos da situao colonial sobrea prtica da antropologia. A partir desta perspectiva, essa cinciaestaria comprometida com o colonialismo e o imperialismo, com-promisso que impediria seu acesso objetividade. A salvao,acredita-se, estaria do lado de um realinhamento dos antroplogoscom os povos que estudam e da denncia incansvel da explorao

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    ocidental. Trata-se, pois, de uma verso um pouco transformada deuma certa interpretao do marxismo que insiste em que apenas oponto de vista do oprimido pode elevar-se ao nvel da objetividade

    cientfica. Conhece-se tambm as crticas a essa associao fcildemais entre a antropologia e o colonialismo e imperialismoocidentais.

    Para os objetivos aqui propostos, a um terceiro tipo decrise, ou de diagnstico, que devemos nos dirigir. Talvez fossepossvel denomin-la, depois de uma crise de objeto e de umacrise de relao, de uma crise de sujeito (do conhecimento). Jem 1959, Leach chamava a ateno para a necessidade de repensara antropologia, embora sua advertncia visasse sobretudo um

    debate metodolgico que se propunha fornecer instrumentais maisadequados para a explicao antropolgica. Este tipo de trabalhocrtico evidentemente comum a qualquer disciplina e a prpriahistria da antropologia contm vrios exemplos dessa posio. Ottulo, provocativo como sempre, da conferncia de Leach sugere,contudo, que mais alguma coisa poderia estar em jogo. Vejamosmuito rapidamente alguns sintomas deste terceiro tipo de crise. Em1972, Needham publica um livro que se encerra melancolicamenteconstatando que o nico fato compreensvel sobre a experincia

    humana que ela incompreensvel (1972: 246). Do outro lado doCanal, em 1986, a tradicional revista de antropologia LHommecomemora seu 25 aniversrio com um volume especial intituladoAnthropologie: tat des lieux, onde um tero dos artigos discutequestes relativas crise epistemolgica da antropologia. Enfim,muito recentemente, toda uma corrente terica da antropologianorte-americana parece ter se especializado na discusso dasdificuldades e impasses fundamentais que o trabalho do antroplo-go enfrentaria (cf., por exemplo, Clifford e Marcus 1986).

    Esse sentimento contemporneo de uma crise da antropolo-gia parece diferir dos diagnsticos mais tradicionais no sentido deque a prpria validade da pretenso em estabelecer um conheci-mento cientfico das outras sociedades que geralmente colocadaem questo. Podemos perceber de fato sem entrar ainda nodebate acerca da realidade ou no da crise alguns fenmenosrelacionados ao trabalho antropolgico que poderiam perfeitamen-te ser considerados sintomticos. Em primeiro lugar, tanto nointerior quanto no exterior da disciplina surgiram discusses acercados pressupostos histricos que determinariam a prpria existnciada antropologia social e cultural. Para alm dos trabalhos jmencionados a respeito do enraizamento deste saber no processo

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    de expanso ocidental, um outro tipo de perspectiva se desenvol-veu, tentando delimitar as condies histricas de possibilidadepara a constituio da antropologia no interior do campo ocupado

    pelos saberes ocidentais.As Palavras e as Coisas , de Michel Foucault(1966: 388-93, em especial), seria o exemplo clssico desse tipo deanlise, mas alguns textos de antroplogos profissionais caminhamna mesma direo, com a vantagem de em geral acrescentarem scondies de possibilidade puramente epistmicas de que falaFoucault uma srie de constrangimentos de ordem histrico-poltica(cf., por exemplo: Clastres 1968 e 1978; Asad 1983; Rabinow 1983;Scholte 1984 e 1986; Jorion 1986).

    Em segundo lugar, sintomas dessa possvel crise tambm

    podem ser discernidos no interior da prtica antropolgica propri-amente dita. A antropologia clssica, dos evolucionistas a FranzBoas, mal ou bem, sempre soube se colocar na rea de interesse dasprincipais correntes do pensamento ocidental e, mesmo, da culturageral dos segmentos mais sofisticados da populao. Temas comototens e tabus, fetichismo e religies, raas e racismo, tal qualrefletidos pelos antroplogos, sempre encontraram boa repercus-so. A antropologia contempornea, ao contrrio, vem se caracte-rizando por uma espcie de enclausuramento, de encerramento em

    si mesma. Os esforos visando participar nos debates contempor-neos no so capazes de esconder o fato de que uma hiper-especializao ao mesmo tempo temtica e geogrfica (conseqnciatalvez inevitvel do acmulo de materiais) parece recusar a ambiototalizadora da antropologia clssica. Alm disso, uma exacerbadadiscusso endogmica acerca de conceitos e postulados tidosoutrora como acima de dvida (racionalidade, relativismo, anti-etnocentrismo, etc) costuma afugentar o leitor no especializado e, devemos confessar, algumas vezes mesmo o especializado.

    No se trata, claro, de dizer que esses dois processos, hiper-especializao e endo-discusso, sejam absolutamente negativos;pelo contrrio, ambos possuem inmeros aspectos positivos funda-mentais. Tentei apenas delimit-los como caractersticos de umadisciplina um pouco insegura de si mesma e que esse o ponto parece sofrer de uma espcie de complexo de culpa por essainsegurana que contudo, e afinal de contas, no obrigatoriamentenegativa.

    H ainda, em relao a essa crise de sujeito da antropologia,uma terceira dimenso, um pouco mais delicada, a ser consideradacomo sintomtica de tal processo. Trata-se do desenvolvimento depesquisas antropolgicas sobre as chamadas sociedades comple-

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    xas, em especial a prpria sociedade ocidental. No que esteinteresse em si esteja necessariamente ligado a algum tipo de crise,como parece sugerir Lvi-Strauss. A virtual ausncia de modifica-

    es mais profundas na teoria antropolgica acarretadas por estetipo de pesquisas pode, contudo, fazer crer que se trate mais de umasoluo de compromisso do que de uma alternativa que pudesseefetivamente renovar a antropologia no apenas em termos de seusobjetos de estudo, mas tambm no plano dos princpios tericos eepistemolgicos mais gerais. Em outros termos, com as devidasressalvas e excees, nada at hoje parece indicar que a antropo-logia das sociedades complexas tenha acarretado uma modifica-o profunda na histria da disciplina. Ao menos at agora, ela tem

    consistido sobretudo, para usar uma expresso de Lvy-Bruhlcunhada para outro propsito, numa espcie de doutrina decompensao, destinada mais a contornar que a enfrentar e superarcertos impasses da antropologia em geral.

    Sintomas e diagnsticos de uma crise da antropologia noparecem pois faltar. A questo saber se eles efetivamente indicamum processo real e se este seria de fato, para permanecer nametfora mdica, patolgico. A primeira constatao que se criseexiste ela nem privilgio da antropologia nem, como vimos,

    fenmeno recente. Todas as chamadas cincias humanas oferecemo espetculo de um olhar continuamente voltado para o interior desi mesmas, de uma autocrtica ininterrupta que inclui quase sempreum sentimento de crise interna. Mais do que isso, essa situaoparece contempornea prpria constituio histrica dessessaberes: desde seu nascimento, a sociologia, a psicologia, tantoquanto a antropologia, tm insistido sobre seu prprio estatutoincerto e sobre as perturbaes internas que continuamente asameaariam. Talvez Michel Foucault (1966: 366) tenha razo em

    atribuir este carter das cincias humanas em geral a seu lugar noconjunto dos saberes ocidentais: sua posio hipo-epistemolgi-ca, sua dependncia face a outros saberes mais seguros de si e aincerteza acerca de seu prprio objeto seriam os responsveis poressa situao. A partir de uma perspectiva semelhante, Andr Akoun(1973: 99-105) coloca sociologia uma interrogao que alcanatodas as cincias humanas: teriam elas, de fato, rompido com suascondies histricas de emergncia? Nascidas simultaneamentecomo saberes destinados a compreender o surgimento de um novotipo de sociedade e como tcnicas voltadas para a administraodessa mesma sociedade, bem como para a adaptao de seusmembros a ela, at que ponto essas cincias ainda trariam consigo

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    as marcas dessa origem dupla? Sua aparente objetividade, seusmtodos e tcnicas de pesquisa cada vez mais sofisticados e mesmoa utilizao de aparatos lgicos e matemticos muito desenvolvidos,

    as teriam livrado definitivamente desse seu carter originrio?Esses questionamentos, o de Foucault tanto quanto o de

    Akoun, no deveriam ser mal entendidos e rejeitados em blocopelos cientistas humanos. So antes questes decisivas que nodevem ser colocadas para serem respondidas de uma vez, afirmativaou negativamente. Eu diria que estamos aqui s voltas com desafiose que se as cincias humanas, em especial a antropologia, desejamrealmente se renovar, deveriam tentar enfrent-los seriamente. Issosignifica, em primeiro lugar, que as respostas devem ser especficas

    para cada disciplina do campo, dependendo de uma avaliao daestrutura terica e da histria de cada uma delas. No caso especficoda antropologia, eu gostaria de avanar algumas sugestes quefuncionaro sobretudo como orientaes para o trabalho a serdesenvolvido e como forma de evitar todo maniquesmo prejudicial.Na complexa e variada trama que constitui uma disciplina como aantropologia, trata-se mais de explorar e desenvolver certas tendn-cias e pensamentos que de tentar julg-la em bloco, embora isso spossa ser feito em detrimento de outros tipos de desenvolvimento

    que poderiam nos conduzir em outras tantas direes. Eu norepetiria pois, com Paul Jorion (1986: 335), que preciso reprendrea zro o saber antropolgico; sequer aceitaria completamente suaopinio de que h muito tempo nada se passa em antropologia;no seria possvel tampouco compartilhar com ele a idia de que,excetuados o evolucionismo e o estruturalismo, o discurso antropo-lgico consistiria num terrvel vazio. No se trata de opor boas ems correntes de pensamento, bons e maus autores: trata-se dedeterminar, no campo antropolgico, linhas de fora que coexistem

    mais ou menos desapercebidamente em qualquer antropologia.Creio que a expresso de Leach, ainda que mais antiga e aparente-mente mais conservadora, marca melhor do que rupturas estrondo-sas o caminho que poderamos seguir. Trata-se, de fato, de tentarrepensar a antropologia.

    Assim, se realmente um pouco ingnuo considerar a criseapenas como manifestao de uma pretensa riqueza e efervescnciade uma disciplina afinal de contas bastante jovem, isso no significa,por outro lado, que tal situao seja intrinsecamente negativa e quecertas lies e orientaes no possam ser dela extradas. evidenteque o que denominei acima crise de objeto demarca um caminhomuito aprecivel para as pesquisas antropolgicas. Primeiro, por-

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    que esse tipo de crise mais aparente que real e uma cincia quevisse efetivamente seu objeto concreto desaparecer teria que sermuito ingnua para considerar este desaparecimento um obstculo

    insupervel, no um estmulo catalizador. Ao lado disso, comotambm j foi sugerido, a intruso do olhar etnolgico nassociedades civilizadas (Barthes 1961: 140) est muito longe de teresgotado suas possibilidades. Ao contrrio, uma radicalizao doprojeto de uma antropologia das sociedades complexas poderiasem dvida levar bem longe o desejo do prprio Jorion (1986: 340)de que essa disciplina efetuasse uma verdadeira crtica de nsmesmos, revelando-nos enfim no apenas como ns pensamos,mas tambm como agimos.

    Por outro lado, a crise de relao entre sujeito e objeto deconhecimento pode tambm ter um valor anlogo, talvez superior.Pois se de fato parece um pouco simplista e redutor tentar invalidara antropologia denunciando suas inegveis conexes com o proces-so de expanso ocidental, o mesmo no ocorreria se esta conexofosse convertida no objeto de pesquisas empricas. Empreenderdesta forma uma verdadeira genealogia da antropologia, nosentido que Foucault (1984: 17-8) empresta ao termo: anlise daformao de certas formas de problematizao a partir das

    prticas e de suas modificaes. Tentar mostrar no como ocolonialismo e o imperialismo, em todas as suas dimenses, agiramcomo impulso ou como libi de um saber que deveria, de direito,desenvolver-se sobre outro plano, mas como prticas muito concre-tas relacionadas com a descoberta, a conquista e a administrao denovos mundos e de outros homens puderam constituir e objetivara prpria matria-prima de um saber que depois de muito tempoofuscado pelo brilho desse objeto volta enfim seu olhar para oprocesso mais opaco que tornou possvel a existncia de ambos,

    objeto e saber. O belo livro de Todorov sobre a conquista da Amrica (1982) marca talvez um dos possveis incios de talempreendimento.

    Podemos agora definir o espao em que este trabalho buscaralojar-se. Isolei acima uma terceira dimenso da chamada crise daantropologia, dimenso mais contempornea e, do ponto de vistaaqui adotado, mais fundamental. Trata-se do questionamento doprprio sujeito do conhecimento antropolgico, ou seja, de umquestionamento, mais que das tcnicas e mtodos da disciplina, deseu prprio projeto bsico: o conhecimento do outro. Repensar osprprios pressupostos da antropologia o que est em questoneste caso, tarefa que pode, sem dvida, ser cumprida de diferentes

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    maneiras: atravs de uma reviso de certos conceitos fundamentaisda antropologia (cf. Needham 1972, por exemplo); da anliserenovada de objetos tradicionais (cf. Lvi-Strauss 1962a; Clastres

    1974 e 1980; entre outros); ou ainda de um mergulho crtico nahistria do prprio pensamento antropolgico. Esta ltima possibi-lidade a escolha que fiz, escolha que tem tambm, claro, seusproblemas. Esses problemas se devem em parte ao fato da produomais recente na rea da antropologia social e cultural ter se mostradobastante prdiga em termos de um interesse renovado pela histriada disciplina preocupao constante durante todo o desenvolvi-mento da antropologia, mas que recentemente parece ter conhecidouma considervel expanso. As dificuldades colocadas para este

    trabalho derivam do carter desses estudos, que bem poderiamoferecer um quarto exemplo dos sintomas da crise que a antropo-logia estaria atravessando. fato mais que sabido que todo sabermais ou menos inseguro costuma buscar se legitimar e regeneraratravs de um contnuo mergulho em suas fontes. Minha posiopode, neste contexto, tomar ares de paradoxo: tentar delimitar umcampo onde a renovao do pensamento antropolgico poderia seesboar atravs de um caminho que seria ele prprio sinal danecessidade de renovao. preciso analisar mais de perto essa

    questo. A resposta antecipada e algo bvia ao que um paradoxoapenas em aparncia, que tudo depende da forma de se concebero que escrever a histria da teoria antropolgica e, claro, domodo como esta efetivamente escrita.

    A

    quase intil lembrar que existem inmeros modos de serelatar a histria das idias em geral e a histria da antropologia emparticular. Grosso modo, todas essas formas parecem se debaterentre as alternativas de uma histria interna, na tradio dosprincipais trabalhos relativos s cincias exatas e naturais, e de umahistria exterior, que utilizaria mtodos e princpios desenvol- vidos pelas prprias cincias humanas. H, claro, todo umgradiente entre essas duas posies extremas e nenhum trabalhoconcreto neste domnio poderia ser integralmente enquadrado emuma ou outra dessas categorias. As anlises internas esbarramnuma grave dificuldade. Ainda que empreguem sofisticadas noesextradas da epistemologia, tais como corte epistemolgico ou

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    episteme, raramente conseguem escapar ilesas da ameaa de umacerta forma de evolucionismo imanente a vrias correntes da histriadas idias. Quando o conseguem, em geral para recair em certos

    modos bem limitadores de sociologismo e psicologismo. Apesar desuas inegveis vantagens intrnsecas, creio que vale a pena umesforo para tentar ultrapass-las com uma abordagem mais abran-gente, capaz de integrar o que pode haver a de positivo. As histriasditas exteriores enfrentam, por seu lado, outro tipo de obstculo.Alm de, ao aplicarem mtodos extrados muitas vezes da prpriaprtica antropolgica, emitirem implicitamente juzos de valoracerca do mrito diferencial das vrias correntes que pretendemanalisar, tais histrias correm o risco de deixar escapar o essencial,

    ou seja, o prprio contedo das teorias e idias historiadas.Independente de seu igualmente inegvel valor intrnseco, este tipode abordagem acaba sendo de limitado alcance para uma discussoque pretende justamente tentar recuperar teoricamente alguns dosimpasses e caminhos possveis da antropologia. Para escapar destasdificuldades superficialmente mapeadas, no me pareceu haveroutra alternativa seno tentar dirigir um olhar especificamenteetnolgico para este tipo de questo. No se trata propriamente,portanto, de aplicar, como se costuma fazer nas histrias externas

    da disciplina, mtodos ou mesmo teorias antropolgicas. Dirigir umolhar etnolgico significa basicamente encarar a histria daantropologia e a histria das idias em geral a partir de certospressupostos muito abrangentes, sobre os quais algumas tendnciasda antropologia se constituram e que outras continuam adotandoat hoje.

    Deste ponto de vista, a histria da histria da filosofia quemile Brhier (1945: 12-37; ver tambm Brhier 1950) esboa naIntroduo de sua monumental Histria da Filosofia tem um valor

    inestimvel. Demonstra-se a que essa histria tal como ainda, aomenos em parte, concebida, um tema prprio aos sculos XVIIIe XIX. Tema relacionado sobretudo com as doutrinas do progressodo esprito humano ou da evoluo das sociedades, tpicas dopensamento deste perodo intelectual. Tanto nos autores iluministasquanto em Hegel ou Comte, a sucesso dos sistemas filosficos spoderia significar um avano global na direo da verdade, verdadeque, claro, cada um desses pensadores imagina finalmenterevelada por seu prprio sistema. Isso significa dizer que a histriada filosofia congenitamente evolucionista, permitindo tambmadivinhar que as cincias humanas herdaram esse preconceito quecostumam demonstrar quando escrevem sua prpria histria justa-

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    mente desse seu antepassado ilustre. Brhier acaba, entretanto, pornos colocar frente a outro impasse: ou continuar relatando oaparente progresso das teorias ou permanecer restritos a um

    ecletismo que se contentaria em simplesmente justapor as doutri-nas, conduzindo construo de tipologias bem pouco teis.

    Quase trinta anos depois de Brhier, Franois Chteletorganizou outra Histria da Filosofia, cujas premissas, expressas naIntroduo Geral da obra, manifestam as transformaes ocorridasneste perodo. Trata-se explicitamente de escapar ao evolucionismoimanente a esse tipo de trabalho, construindo uma histria que nopretende ser nem progressista, nem neutra, mas crtica; que sejarealmente informativa, capaz portanto de registrar diferenas; que

    torne legveis, atravs de uma anlise estrita e argumentada, umcerto nmero de pensadores importantes para a nossa atualidade(Chtelet 1972/3: 10-11). justamente nesse sentido que o prprioChtelet se interrogou alguns anos mais tarde a respeito da questoda histria da filosofia hoje. Foi este pequeno ensaio ao lado,certamente, do Catatau de Leminski que forneceu as pistas docaminho a seguir neste trabalho. O problema decisivo a colocadocom toda a clareza possvel: por que e como, em nossa poca, sereferir aos autores do passado? (Chtelet 1976: 33). apenas

    respondendo preliminar e adequadamente a essa questo que setorna possvel enfrentar a posio um pouco preconceituosa, verdade, mas nem por isso menos relevante que insiste em queeste tipo de trabalho de investigao do passado acaba sempreresvalando para uma erudio algo estril ao nos desviar dasexigncias da pesquisa concreta. Ora, escapar da erudio vazia eda esterilidade significa encontrar sentido e valor para as investiga-es acerca da histria da antropologia, sentido e valor que se farosentir sempre na atualidade.

    A resposta de Chtelet consiste em transformar a tradicionalhistria das idias em uma geografia das idias. Isto significa, acimade tudo, abandonar a iluso cronolgica e sempre um poucoevolucionista de uma sucesso de doutrinas que se encaminhariampara algum destino. Significa tambm reconhecer a atualidadevirtual e potencial de qualquer pensador, ou ao menos admitir queseu estatuto de membro de um passado pretensamente morto umaquesto sempre em aberto. Significa, enfim, que as idias no socomo seres vivos que nasceriam e se desenvolveriam apenas paramorrer em seguida de velhice. Pelo menos boa parte delas est, dedireito, sempre viva, podendo ser reativada no e para o presente3.Com que intuito isso deveria ser feito? Chtelet fala de uma

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    dessacralizao, de uma desmitologizao dos discursos atuais dopoder (idem: 34); de uma histria poltica conseqentemente(idem: 49). Mas, alm desse valor crtico, acredito que essa histria

    geogrfica, quando aplicada ao caso particular da antropologia,pode permitir uma renovao das questes tradicionais e umaabertura em debates que correm o risco de permanecer fechadosdemais em sua constante auto-referncia. Em outros termos, pensoque esse tipo de trabalho comporta, para alm de seu valorintrnseco, a possibilidade de demarcar novas questes e encami-nhar novas pesquisas e isso em reas aparentemente muitoafastadas de toda preocupao histrica. Nada de erudio vazia eestril portanto.

    Nos termos do prprio Chtelet, a referncia ao passado nospermite pensar nossa atualidade (e quem sabe: imaginar nossofuturo) atravs do diferencial (idem: 40). E justamente naantropologia que acredita ter encontrado a inspirao fundamentalpara tal perspectiva:

    Os etnlogos, depois que se liberaram do positivismogrosseiro que falseava sua viso da alteridade, nos forne-cem elementos de mtodo. A apreenso da diferenainaugura, segundo penso, uma relao com o passado

    que preserva sua originalidade e lhe confere uma impor-tncia pelo menos igual quela que atribumos ao presen-te que exibe, sob nossos olhos, por exemplo, a existnciade sociedades ordenadas desprovidas de poder (Chtelet1976: 40).

    A referncia, explicitada em nota ao texto, evidentementea Pierre Clastres eA Sociedade Contra o Estado . Pode parecer, dessemodo, que caminhei em crculos ao pedir a um filsofo um quadrode referncias que ele mesmo confessa ter extrado de um antrop-

    logo. Mas justamente essa espcie de cegueira que a antropologiademonstra em relao a certos aspectos e a algumas conquistas dopensamento antropolgico que eu gostaria que esse trabalhoservisse tambm para tematizar. Aqui j seria possvel concordar emparte com Jorion (1986: 340): os antroplogos muitas vezes deixamde lado desenvolvimentos cruciais de sua disciplina, que permane-cem a em estado potencial ou como simples esboos at que soretomados, completados e empregados em outras reas do saber.De tal forma que, na maior parte dos casos, esquece-se completa-

    mente sua origem etnolgica.Chtelet vai um pouco mais longe, chegando a propor umesquema metodolgico para a prtica desta geografia das idias que

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    visa mais captar as transmutaes dos conceitos que suas supostasevolues ou involues (Chtelet 1976: 52). Para ele, este trabalho,quer diga respeito a um campo global do saber quer se refira obra

    de um determinado autor, deveria:1. Restaurar a coerncia interna de um sistema (idem: 47).

    Ou seja, examinar, antes de tudo, a ordem das razes que estesistema ou que uma obra comportam. Neste ponto, deveramos sercapazes de responder por que um texto afirma pertencer a umgnero determinado e reconhecido como pertencendo a ele.Trata-se da sempre difcil questo dos limites entre os gneros dodiscurso (idem: 44-6).

    2.Interrogar os problemas polticos que o texto, obra ousistema coloca (idem: 47). Em primeiro lugar, aqueles estritamenteimanentes ao objeto considerado. Poltico tem aqui, portanto, umsentido bem mais amplo do que aquele que se costuma atribuir aotermo. Assim como a Teoria das Idias de Plato, to aparente epuramente metafsica, articula-se direta ou indiretamente com aorganizao poltica da Cidade grega (idem: 48) e evidentementecom tudo o que h de platnico no pensamento e na prticacontemporneos tambm uma teoria to aparentemente abstrataquanto a da mentalidade primitiva de Lvy-Bruhl deve de alguma

    forma refletir, e refletir-se em, um real dito, apenas por economia,exterior.3.Integrar os contextos empricos precisos a que envia a

    obra em questo, as lutas polticas reais articuladas com opensamento e os textos (idem: 49).

    Estes pontos constituem etapas que preciso percorrerprogressivamente e eu diria que a inteno deste trabalho cobrirde maneira extensiva apenas o primeiro passo proposto porChtelet. O segundo e o terceiro sero objeto de incurses muito

    mais rpidas, aparecendo mais nas entrelinhas que de formaexplcita. De qualquer forma estaro delimitados para uma possvelinvestigao futura.

    A

    Evoquei acima a possibilidade de os estudos acerca dasrelaes entre a antropologia e suas condies histricas e polticasde constituio e existncia (em especial o colonialismo e o

    imperialismo) se transformarem em verdadeiras genealogias daantropologia. Nesse caso, teses excessivamente generalizantes e

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    princpios que se convertem rapidamente em puros sloganspoderiam ser substitudos por investigaes concretas de aconteci-mentos e documentos muitas vezes esquecidos. A partir da resposta

    dada por Chtelet questo da histria da filosofia hoje, abre-seum outro tipo de perspectiva, complementar abordagem genea-lgica. Esta, j o vimos, consistiria na anlise de formas deproblematizao a partir das prticas e suas modificaes. preciso, contudo, esclarecer o sentido preciso de tais termos.Formas de problematizao, ou seja, o modo atravs do qualdeterminado tema, determinado objeto, parecem se impor numcerto momento como aquilo que h para ser pensado, debatido edecidido (Foucault 1984: 16); prticas e suas modificaes, o que

    quer dizer, todos os jogos de poder que objetivam o fenmeno eo propem ou impem como alvo de reflexo e de ao aparente-mente obrigatrio e quase natural (idem: 16-7). Foucault sugere,entretanto, que ao lado da anlise genealgica, existe tambm umadimenso arqueolgica [que] permite analisar as prprias formas daproblematizao (idem: 17). Em outros termos, a arqueologia dosaber pretende investigar um determinado campo discursivotomado em sua imanncia; a genealogia, por sua vez, devecompletar essa investigao com uma anlise das relaes de poder

    que constituem esse campo e que, ao mesmo tempo, o impemcomo aquilo que deve ser pensado.Se fosse necessrio definir o espao ocupado por este

    trabalho, talvez fosse possvel dizer, por falta de termo melhor, queconsiste em uma incurso por uma arqueologia da antropologia.O que no significa em absoluto qualquer fidelidade maior aopensamento de Foucault. Basta folhearA Arqueologia do Saber parase dar conta de que ele jamais concordaria em denominar arqueo-lgica uma anlise que toma como unidade de trabalho a obra de

    um autor. Se eu quisesse permanecer fiel, talvez pudesse dizer quea obra e o autor aqui em questo no sero encarados comounidades fechadas e auto-suficientes; que, ao contrrio, tentareiisolar temas e problemas muito gerais, no apenas na antropologiasocial e cultural como em vrios pontos do pensamento ocidental temas e problemas que fazem na obra de Lvy-Bruhl umairrupo particularmente aguda e notvel. Mas, como j foi dito, no de fidelidade que se trata. O que pretendo , simultaneamente,mapear algumas armadilhas colocadas pelo e ao pensamentoantropolgico e apontar possveis sadas e alternativas.

    Divrcio excessivo face prtica antropolgica concreta? Demodo algum, eu diria. Pois o prprio Foucault (in Caruso 1967: 73)

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    no se encarregou de definir a arqueologia como uma anlise defatos culturais que caracterizam nossa cultura e que, neste sentido,tratar-se-ia de algo como uma etnologia da cultura a que pertence-

    mos ? E Michel Serres (1966: 204), justamente num comentrio aotrabalho de Foucault, no afirmava tambm que daqui para afrente, nada se opor a que a arqueologia se apresente como umaetnologia do saber europeu, e a histria das idias como umaepistemologia do espao e no do tempo, das fibras de um espaoinvisvel e no das gneses evolutivas? J mencionei tambmBarthes e a intruso do olhar etnolgico nas sociedades civiliza-das. Isso talvez fosse mais que suficiente para voltar a indagar se,como com Chtelet e Clastres, eu no estaria, aqui ainda, andando

    em crculos, ao pedir a um filsofo elementos j presentes empesquisas propriamente antropolgicas e que ele prprio confessater extrado delas. No fundo, isso no tem qualquer importncia e cada vez menor o nmero dos que confundem o desenvolvimentohistrico de um saber que casualmente (ou em funo dedeterminaes institucionais e polticas) se deu de formacompartimentalizada com o prprio exerccio deste saber nopresente, que pode e deve dispensar essa compartimentalizao,lanando mo de todos os recursos disponveis para a soluo dos

    problemas que se coloca. Ocorre apenas que em determinadasocasies os recursos a serem mobilizados podem provir de camposrotulados diferentemente, o que em nada modifica o cerne daquesto. De qualquer forma, inegvel que a antropologia realmen-te desenvolveu uma srie de elementos que permitem uma anlisearqueolgica no sentido em que estou propondo compreender estetermo. O fato que no campo das cincias humanas, os antrop-logos, em virtude dos pressupostos relativizadores necessariamenteimplicados em seu trabalho, sempre se mostraram mais dispostos do

    que a mdia a flexibilizar, por um lado, e a radicalizar, por outro,suas investigaes e seus prprios instrumentais.Dentro do prprio campo da antropologia, um dos instrumen-

    tos de trabalho mais interessantes que foram recentemente propos-tos para esse tipo de investigao o que Geertz (1983) batizou deetnografia do pensamento. Eu acrescentaria apenas que estanoo pode ser levada ainda mais longe, ultrapassando a simplestarefa de descrever o mundo no qual [o pensamento] faz qualquersentido que possa fazer (1983: 152). Isso porque, o prprio Geertzquem o diz, o pensamento de fato alguma coisa to materialquanto objetos como adorao, ou casamento, ou governo, outroca (idem); devemos desafiar o medo do relativismo (idem:

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    154), admitindo que pensar algo to socialmente produzidoquanto esses temas clssicos da reflexo antropolgica. O nicoperigo, comum alis etnografia de qualquer instituio, cair

    numa forma simplificadora de sociologismo que Geertz deseja comtoda justia evitar (idem: 152). paradoxal portanto, que ao proporuma metodologia para esta etnografia do pensamento, enfatizeexclusivamente o estudo exterior do fenmeno, deixando aparen-temente de lado sua rede de articulaes internas e imanentes(idem: 155-9). Ora, justamente neste ponto que a aproximaocom o projeto de Foucault pode ajudar, no deixando de sersignificativo que desde 1978 Geertz tenha demonstrado interessepor este autor. Foucault (1984: 16) define seu trabalho como uma

    histria do pensamento, em oposio histria dos comportamen-tos ou das representaes: definir as condies nas quais o serhumano problematiza o que ele , o que faz e o mundo no qualvive. J conhecemos tambm o duplo mtodo, ao mesmo tempoarqueolgico e genealgico, a ser seguido para cumprir esta tarefa.De um certo ponto de vista, a etnografia do pensamento de Geertzest muito prxima da anlise genealgica de Foucault: o estudo dasforas sociais que modelam o pensamento se assemelha anlisedas prticas que objetivam as formas de problematizao. Talvez

    falte a essa etnografia justamente a dimenso arqueolgica adefinio das formas de problematizao em si mesmas dimen-so na qual este trabalho pretende justamente se alojar, tomandocomo objeto um caso particular, a obra e o pensamento de Lvy-Bruhl.

    possvel articular Chtelet e Clastres com Foucault e Geertz. A histria da filosofia proposta pelo primeiro, a histria e aetnografia do pensamento apresentadas pelos dois ltimos com-partilham de algo que Chtelet, fazendo meno explcita aos

    trabalhos de Clastres, definiu com preciso. Trata-se, como vimos,de pensar nossa atualidade (e quem sabe: imaginar nosso futuro)atravs do diferencial. Ora, deste ponto de vista que o caso Lvy-Bruhl, como a ele se refere Merlli (1989a), me pareceu exemplar.Em primeiro lugar, em virtude de nosso aparente afastamento emrelao a seu pensamento; em seguida, porque a questo dodiferencial a levada talvez at suas ltimas conseqncias, pormais dramticas que possam ser. Eu quase me perguntaria se nossadificuldade em compreender realmente a obra de Lvy-Bruhl no seassemelha aos problemas que ele prprio enfrentava para compre-ender os seus primitivos. Exagero? O fato que se a questo dadiferena central para uma histria das idias que no pretenda ser

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    puramente descritiva nem triunfalista, a obra e o pensamento deLvy-Bruhl podem constituir um objeto mais que adequado.

    O mtodo a seguir? mais difcil de responder a essa questo.

    Os esquemas metodolgicos propostos tanto por Chtelet quantopor Geertz so na verdade apenas indicativos dos campos eproblemas que devem ser integrados na investigao. Foucault, porseu turno, sempre esteve muito longe de propor um verdadeiromtodo: cuidados, regras de prudncia, sem dvida, masmtodo. Ele chegou mesmo, em alguma parte, a definir omtodo da arqueologia como uma simples desenvoltura aplica-da e confesso que fiquei tentado a segui-lo. Na verdade, no preciso ir to longe. O prprio Lvy-Bruhl sempre sofreu nas mos

    dos crticos por esse mesmo motivo e as repetidas censuras utilizao de um mtodo comparativo j em desuso na poca emque escrevia encobrem na verdade uma dificuldade mais profunda,justamente a da ausncia de um mtodo propriamente dito. Apesarde tudo, Poirier (1957: 510) foi capaz de determinar com absolutapreciso seu verdadeiro esprito metodolgico. Ao denomin-losimplesmente relativismo sistemtico, demarcou o caminho queeu prprio gostaria de seguir aqui. O observador no deveconsiderar como absurdo um fato que o choca, deve buscar uma

    coerncia nos fatos superficialmente disparatados, explicar avariabilidade das escalas de valores, mostrar que o observadordeve despojar-se do velho homem que se pretende compreenderos comportamentos, fazer desaparecer os julgamentos de valorperemptrios. Trata-se em suma, seno de mtodo, ao menos doolhar da prpria antropologia. Seria possvel dirigi-lo para elamesma? E isso no apenas no sentido de aplicar mecanicamentecertos procedimentos que na verdade fazem parte mais das tcnicasde pesquisa que do mtodo propriamente dito, mas, de forma bem

    mais radical, explorando os princpios mais fundamentais dopensamento antropolgico despidos de qualquer preconceito?Tentar repetir o que Lvy-Bruhl buscou fazer durante toda a vida eque sem dvida conseguiu, j prximo da morte, ao faz-lo consigomesmo em seus Carnets 4.

    Este procedimento (j que admito que seja menos que ummtodo, embora pretenda que oriente a incurso por uma obra deforma no superficial) implica conseqentemente um certo nmerode escolhas. Em primeiro lugar, evitar julgar o pensamento emquesto e mesmo as crticas e defesas de que foi objeto. Quandomuito, trata-se de discutir certas interpretaes tidas s vezes comodefinitivas, avaliando se so inteiramente justas, ou seja, se podem

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    continuar sendo sustentadas se forem selecionados outras passa-gens e outros ngulos da obra. Algumas dessas interpretaesparecem perfeitas para determinados aspectos da obra, apenas com

    o incoveniente de se apresentarem como vises gerais e nicas. Isso vlido tanto no caso das que pretendem rechaar a obra quantono das que desejam sinceramente aceit-la. No pretendo portantodefender o autor que escolhi analisar das crticas que sempre lheforam dirigidas, mesmo quando estas so claramente limitadas oumesmo mal intencionadas. Merlli (1989a) j se encarregou de faz-lo e no desejo repetir seu enfoque, independente dos resultadosa que possa ou no ter chegado. No se trata, tampouco, de tentardefender o autor de si mesmo como ocorre freqentemente.

    Pretendo, no mximo, cotejar a obra em questo com as diferentesinterpretaes, tentando acima de tudo apreender os fluxos que aatravessam. Evitar conseqentemente todo maniquesmo que pro-cure distinguir as boas das ms interpretaes, ou ainda osbons dos maus aspectos e trechos da obra. Como diz Deleuze(1990: 118), preciso tomar a obra inteira, segui-la e no julg-la,apreender suas bifurcaes, seus titubeios, seus avanos, seusburacos, aceit-la, receb-la por inteiro. Caso contrrio, no secompreende nada5. por isso que no se tratar aqui deste ou

    daquele desenvolvimento particular de Lvy-Bruhl, mas de captaro esprito ou, em termos mais modernos, o conjunto das articula-es que presidem sua obra. por isso tambm que, com uma ououtra exceo, os exemplos concretos trabalhados diretamente peloautor no sero objeto de qualquer discusso maior. Preferi reservaro espao para as anlises propriamente tericas e a discusso dosgrandes temas que este pensador levanta.

    Eu no gostaria tampouco essa outra escolha depermanecer nas interminveis discusses a respeito do pretenso

    carter auto-suficiente de uma obra em oposio a suas determina-es exteriores, ou acerca de sua sistematicidade absoluta emoposio a suas possveis rupturas internas. Continuidade e descon-tinuidade so noes inteiramente relativas na medida em queaquele que continua, sob pena de no chegar realmente a elaboraruma obra que merea este nome, sempre inova em alguma coisa,tanto em relao a seu trabalho anterior quanto frente a outrospensamentos. Do mesmo modo, os cortes e rupturas sempre se doem relao a algo preexistente ou contemporneo, seja uma teoriaou um conjunto de prticas. Procurarei, assim, evitar termosproblemticos como influncia, de um lado, corte epistemolgi-co, de outro. Reinserir um pensamento em seu contexto intelectual

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    e histrico no simplesmente supor que seja determinado porcircunstncias externas. Trat-lo em bloco no presumir que sejaabsolutamente contnuo e sistemtico. O que cumpre tentar atingir,

    para voltar a Deleuze (1990: 118), o conjunto do pensamento,aquilo que o fora a passar de um nvel para outro.

    O prprio Deleuze insinua como isto pode ser feito. No setrata nem de reduzir um autor a mero reflexo ou sub-produto de suapoca, nem de elev-lo artificialmente acima de seu tempo: nemo histrico nem o eterno, mas o intempestivo (in Deleuze e Bene1979: 96). Isso significa buscar o que pode haver de mais interessan-te numa obra para uma determinada poca (a nossa); reativar parao presente algumas idias, algumas intuies s vezes, que podem

    funcionar como linhas de fuga e de fora para nossos impassescontemporneos. a isso que Deleuze d o nome de operao deminorar ou de tratamento menor ou de minorao (idem: 97). s assim, prossegue, que se torna possvel recuperar devires contraa Histria, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina,graas ou desgraas contra o dogma (idem). Esse o tema todeleuziano do autor menor, e Lvy-Bruhl parece se adequar comperfeio a esta figura, ao menos como usualmente concebida. Suaobra poderia ser dita menor em vrios sentidos: ausncia de teoria,

    na acepo mais forte do termo; carter algo hesitante, noconclusivo, com a aparncia de um inacabamento radical; espaosdeixados vazios onde possvel alojar-se das mais variadas manei-ras; possibilidade de mltiplas leituras; enfim o mais importantetalvez o fato de ter sido objeto de um certo esquecimento, ouantes, de uma certa represso exercida por obras e teorias tidascomo maiores6. O nico problema que esta leitura um poucosimplista do que Deleuze diz ameaa ressuscitar o maniquesmo menor = bom; maior = mau que eu gostaria, como disse, de

    afastar completamente. Se observarmos mais de perto esse mani-festo de menos de Deleuze, poderemos abandonar definitivamenteesses resduos maniquestas.

    Na verdade, o menor no um dado, mas o resultado deuma operao, de uma cirurgia (idem: 97). O que Deleuze dizda linguagem, sem dvida vlido tambm para os autores: noh lngua imperial que no seja escavada, arrastada () por seususos menores (), maior e menor qualificam menos lnguasdiferentes do que usos diferentes da mesma lngua (idem: 101).Qualquer autor, como qualquer lngua, simultaneamente maior emenor, ou antes, toda obra pode ser explorada no que tem de maior(histrico, doutrinrio, dogmtico) ou de menor (devir, pen-

  • 8/2/2019 29-04 Marcio Goldman

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    O Caso Lvy-Bruhl 33

    samento, graas ou desgraas). esta a minha pretenso aqui:apreender a obra de Lvy-Bruhl como obra menor, quer dizer, comodesafio e, conseqentemente, como estmulo. Nem tudo do que foi

    dito acerca de um pretenso carter intrinsecamente menor destaobra , contudo, inteiramente falso. De fato, muito difcil encontrarum pensamento mais cuidadoso, mais tateante. No por carncia oufraqueza, mas simplesmente em virtude do postulado que parecegui-la: todos os pressupostos de seu pensamento, acredita Lvy-Bruhl, devem ser contnua e minuciosamente escrutinados, relativi-zados e, sempre que for o caso, abandonados. No h nela nenhumacerteza pr-estabelecida, nenhum dogmatismo, tudo devendo pas-sar pelo crivo da anlise e dos fatos. Isso o que existe de mais

    profundamente admirvel nessa obra, para alm de qualqueradeso ou repdio a ela. Poder-se-ia di