417 - história de portugal contemporâneo (político - institucional)

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  • JOO MEDINA

    HISTRIA DE PORTUGAL CONTEMPORNEO (Poltico e Institucional)

    'I II

    Universidade Aberta

    1994

  • Capa: Vista do esturio do Tejo com a Torre de Belm esq. leo de Thomas Buttersworth (sc. XIX); colec. R. Bachmann.

    Palcio Ceia Rua da Escola Politcnica, 147 1200 Lisboa

    Copyright UNIVERSIDADE ABERTA

    D.L.: 71.231193 ISBN: 972-674-129-2

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  • Histria de Portugal Contemporneo Poltico e Institucional

    I - O NASCIMENTO DO PORTUGAL LIBERAL A derrocada do Antigo Regime: das Invases Francesas estabilizao do regime liberal em Portugal (1807-1851)

    1. A Tempestade Napolenica

    17

    19 20 22 23 27 32

    Objectivos gerais da unidade A Tempestade Napolenica O Brasil, de colnia a metrpole Do bloqueio continental (1806) primeira ocupao francesa (1807-1808) Panfletos antinapolenicos A segunda e terceira invases francasas (1809-1811) Bibliografia sugerida

    2. A Revoluo Vintista (1817-1828)

    35 Objectivos gerais da unidade 37 Paralelismo histrico entre Portugal 39 Antecedentes da revoluo de 1820 41 A revoluo Vintista 44 A Constituio de 1822 e os limites 47 Da Contra-Revoluo Usurpao 56 Bibiografia sugerida

    e a Espanha

    do Vintismo

    3. Os Liberais, do Exlio ao Poder. O Triunfo dos Liberais pelas Armas (1828-1834)

    59 Objectivos gerais da unidade 61 Os princpios da Carta Constitucional 65 A fase final das guerras Civis (1832-1834) 70 D. Pedro IV, figura romntica e heri dos dois mundos 74 As reformas de Mouzinho da Silveira 77 A extino dos conventos e a venda dos bens nacionais. A desamortizao 82 Bibliografia sugerida

    4. A difcil implementao do Regime Liberal em Portugal (1834-1851)

    85 Objectivos gerais da unidade 87 As primeiras vicissitudes do novo regime constitucional (1834-1851) 89 Partidos polticos e sociedades secretas durante o Liberalismo. A Maonaria

    portuguesa (1804-1869)

    5

  • .u 93 As vicissitudes da imprensa no periodo de 1834 a 1851 94 A vida poltica desde 1834 a 1836 95 O Setembrismo (1834-1842). A constituio de 1838 98 O Cabralismo (1842). O novo ciclo das guerras civis: a Maria da Fonte (1846) e a

    Patuleia (1847). A queda definitiva do cabralismo (1851) 102 Bibliografia sugerida

    5. A Regenerao (1851-1891)

    105 Objectivos gerais da unidade 107 A Regenerao ou o terceiro liberalismo. O apaziguamento poltico-social e a

    poltica de melhoramentos materiais: o Fontismo 112 O Acto Adicional de 1852 e outras reformas da carta (1885 e 1895/6) 114 Os partidos polticos, o rotativismo e a progressiva desagregao do sistema

    partidrio constitucional 122 Do terramoto ao Dies Irae: a revoluo inevitvel 123 Bibliografia sugerida

    II - O TERCEIRO IMPRIO PORTUGUS Portugal em frica

    6. Scs. XIX e XX; da Monarquia constitucional Ditadura

    129 Objectivos gerais da unidade 131 A Me negra, terra de escravos 134 O degredo como mtodo colonizador 138 O novo Brasil em frica 141 A partilha de frica: a guerra civil europeia travada no continente negro 143 Prefcio do Scramble: viagens e exploraes africanas 147 A Conferncia de Berlim 153 Portugal bate-se pelas suas colnias - na Flandres e em frica I55 Do Regime Republicano Ditadura Salazarista 161 A derrocada colonial 162 Bibliografia sugerida

    III - A REPBLICA PARLAMENTAR (1910-1926)

    7. A I Repblica

    167 Objectivos gerais da unidade 169 A revoluo Lisboeta

    I I,~

    6

  • ii: II ia UJ2i i &Ugtaz

    170 Recomear o Liberalismo. A questo da nova bandeira nacional 181 A vergonha da Adesivagem 183 A balbrdia sanguinolenta 185 A Repblica prope-se acabar com o Catolicismo 186 A interveno portuguesa na Grande Guerra 193 A Repblica fracturada: o Sidonismo ou Repblica Nova 199 A queda da Repblica 200 A I Repblica - o que foi? 206 Bibliografia sugerida

    IV - O PORTUGAL DITATORIAL (1826-1974)

    8. A Ditadura do Estado Novo

    211 Objectivos gerais da unidade 214 Fim do demoliberalismo 216 Deus, Ptria, Famlia: o lema do salazarismo 223 Mecanismos repressivos 223 A lenta edificao do Estado Novo 224 A propaganda da imagem do Chefe 225 Fascizao pontual 226 O regime da Ditadura, de 1940 a 1974 228 Bibliografia sugerida

    V - O PORTUGAL COEVO

    9. De 1974 aos nossos dias

    233 Objectivos gerais da unidade 235 A revoluo de Abril 236 A caminho da normalizao democrtica 238 Funcionamento do Estado de direito democrtico 239 Tendncias reveladas pelas consultas eleitorais 241 Bibliografia sugerida

    BIBLIOGRAFIA GERA.L

    245 I - Obras de carcter geral e Estudos de referncia:

    7

  • 245

    245 245 246 247

    248

    248 248

    249

    251

    251 251 252 252 253 253 254

    255

    255 255 256 256 257 257

    257

    257 258 258

    III I I

    II - O Nascimento do Portugal Liberal

    O Brasil, de Colnia a Metrpole Bloqueio continental, Invases Francesas e Panfletos Anti-Napoleo A Revoluo Vintista. Os Liberais, do Exlio ao Poder A dificil implementao do Regime Liberal

    III - A Regenerao

    O Sistema da Regenerao Fontes e o Fontismo

    IV - O Terceiro Imprio Portugus: Portugal em frica

    V - A Repblica Parlamentar (1910-1926)

    Obras gerais e estudos aprofundados A revoluo Republicana Poltica A interveno portuguesa na guerra O Sidonismo Sociedade, Economia e Finanas Pblicas Poltica externa

    VI - O Portugal Ditatorial: A Ditadura do Estado Novo (1926-1974)

    Vises globais e estudos aprofundados Depoimentos, memrias, relatrios, discursos Ideologia poltica Sociedade e economia Finanas pblicas Poltica externa

    VII - O Portugal Coevo (de 1974 aos nossos dias)

    Dos antecedentes ao 25 de Abril Revoluo - Textos e documentos MFA

    'I', II'

    8

  • 258 Poltica e sociedade 259 Imagem e revoluo

    261 NOTAS BIOGRFICAS

    TEXTOS COMPLEMENTARES

    UNIDADE 1

    287 A Proteco Francesa e a Proteco Portuguesa 293 Monsieur Junot (... ) Futuro Rei de Comdia no Futuro Pas da Nova Carta

    Geogrfica 299 Chalaa de Napoleo ou Proteco Universal Oferecida aos Apaixonados dos

    Franceses

    UNIDADE 2

    309 As Tropas Portuguesas no Brasil Aderem Revoluo de 1820 311 A Revoluo de 1820 em Goa 317 Projecto de Decreto das Cortes Gerais e Extraordinrias da Nao Portuguesa

    Pondo Fim Expulso dos Judeus Ordenada em 1496 e Posta em Prtica em 1497 319 Projecto de Extino da Inquisio e seu Debate nas Cortes na Sesso do

    Dia 24-I1I-1821 328 Decreto de Extino da Inquisio

    UNIDADE 3

    331 Relatrio Militar Sobre o Perodo 1832-34 343 A Extino das Ordens Religiosas

    UNIDADE 4

    351 Carta Rainha Sobre a Maria da Fonte 355 Hinos do Liberalismo Portugus 355 Hino Constitucional Portugus 356 Hino Patritico de 1820 358 Hino Patritico de 1821 360 Hino Imperial Constitucional de 1822 ou Hino da Carta 361 Hino Constitucional de 1826

    9

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    362 365 369 371 376

    381 385 387 388 390 391 392 394

    399

    405 408 408 409 412 414 416 418 420 421 423

    435

    1'1 I I

    Saudao Hino aos Valentes Libertadores de Portugal Hino do Minho ou da Maria da Fonte Hino da Maria da Fonte e Trovas das Patuleias (1846-47) A Portuguesa

    UNIDADE 5

    Alexandre Herculano O Constitucionalismo Monrquico Conjunto de Sofismas e de Fices A Carta Fontes Pereira de Melo D. Antnio Alves Martins - Bispo de Viseu Burnay, O Omnipotente A Parbola dos Almocreves As Eleies para Deputados

    UNIDADE 6

    frica: Terra de Degredo ou do Velo de Ouro?

    UNIDADE 7

    O Relatrio da Comisso Oficial da Nova Bandeira A Adesivagem-

    O Adesivo Cantado em Verso Os Adesivos na Imprensa (1910-1913)

    Verborreia Nacional A Inglaterra e Alemanha Projectavam a Partilha das Colnias Portuguesas Vamos Para a Guerra Porque a Inglaterra o Deseja e Porque disso Carece A Alemanha Declara Guerra a Portugal Aleluia! : Portugal entra na Guerra Contra a Guerra e Contra os Guerristas-Da Vida e da Morte da Malta das Trincheiras

    UNIDADE 8

    Relatrio da Constituio (1932)

    'I,I II

    10

  • UNIDADE 9

    455 O Novo Espirito Constitucional 459 Salazar 465 O Portugal de 1940, Um Paraso Triste 467 Exit Rex: Salazar em Estado de Coma 468 Morreu Salazar

    11

  • 1..1

  • PARTE I - O NASCIMENTO DO PORTUGAL LIBERAL

    A derrocada do Antigo Regime: das invases francesas estabilizao do regime liberal em Portugal (1807-1851)

  • III I I II

  • 1. A TEMPESTADE NAPOLENICA

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    Objectivos Gerais da Unidade

    Esta unidade pretende levar o aluno a:

    Compreender que o triunfo do liberalismo em Portugal se inscreve, grossomodo,do primeiro quartel de oitocentos at ao final do primeiro quartel do nosso sculo.

    Relacionar a abertura dos portos brasileiros assim como de outras medidas de carcter econmico, com a emancipao e fortalecimento do Brasil-colnia.

    Identificar as trs etapas da ocupao francesa, resultantes das invases, e como a guerra contra os exrcitos de Napoleo assumiu um carcter eminentemente popular e de verdadeira libertao nacional.

    Reconhecer que sem a ajuda do exrcito britnico no era possvel aos Portugueses fazer frente s tropas francesas.

    Compreender que, no obstante os franceses serem invasores, houve grupos de intelectuais, artistas, polticos e eclesisticos que eram afectos s ideias liberalizantes dos exrcitos napolenicos.

    17

  • 1.1 A tempestade napolenica

    Dentro do pao ', habitado pela sombra de um rei, vagueavam nas salas nuas as sombras de uma corte. Era um d, uma tristeza mole sem nobreza. [...] O reino era de frades, mas metade deles no estavam em seu juzo. Tudo enlouquecera, tudo emparvecera. E de longe ouvia-se o trovo medonho da Frana. [...] Uma vaga nuvem de tristeza cada envolvia o pao, envolvia a nao, moribunda e silenciosa. [...]

    De joelhos, o prncipe' chorava implorando sossego me delirante.'; fora, nos jardins, ouvia-se o estalar das castanholas e o grito selvagem da malaguea"; e de longe, pelas quebradas das serras, vinha reboando o trovo ameaador da tempestade francesa a aproximar-se,"

    - venturosa Lisboa que tiveste No teu seio a peste do Universo, Em Galos transformada, Com as unhas rapaces devorando As magras carnes, a msera Lusitnia.

    Armipotentes Lusos valorosos Por sacurdir o jugo denodados, Do castelo tentaram Desalojar os prfidos Gauleses, Novos monstros que o inferno vomitou."

    O triunfo do sistema liberal ou representativo portugus, que o sistema poltico, social e econmico do capitalismo e da burguesia, o liberalocapitalismo, no contexto de uma nova ordem europeia (e mundial) nascida dos dois lados do Atlntico (por isso lhe chama Jacques Godechot revoluo atlntica) no ltimo quartel do sculo XVIII, e traduzida de modo claro com as revolues norte-americana (1776) e francesa (1789), inscreve-se num lapso histrico que vai, grosso modo, do primeiro quartel de oitocentos at ao final do primeiro quartel do nosso sculo. Por outras palavras, a sua vigncia de um sculo, nela cabendo o perodo de tentames revolucionrios iniciais:

    revoluo de 1820, guerra civil, posterior procura de uma frmula de viabilizao do novo sistema representativo triunfante em 1834;

    equilbrio das faces liberais obtido com a frmula da chamada Regenerao, vigncia desta, sua crise e agonia;

    restaurao radicalizada dos valores liberais e burgueses com o advento da I Repblica, implantada em 1910;

    seguindo-se-lhe, durante quase meio sculo, um sistema oposto, de ditadura e antiliberalismo, com o concomitante repdio do sistema representativo e do apoio social na burguesia que se associara ao sculo de governao anterior.

    I Oliveira Martins refere-se ao Palcio de Queluz.

    2 O Principe D. Joo, regente por via da loucura da me, D. Maria I.

    3 D. Maria I (Lisboa, 1734; Rio de Janeiro, 1816), filha de D. Jos, enlouqueceu em 1792, assumindo ento o reino o seu filho D. Joo VI (1767-1826),quesem 1816, refugiada a corte portuguesa no Rio, seria aclamado rei de Portugal como D. Joo VI.

    4 Oliveira Martins refere-se espanhola Carlota Joaquina. (1775-1880), esposa do principe regente e futura rainha de Portugal, que viveu no Brasil de 1808 a 1820. Era filha do rei Carlos IV de Espanha e irm do futuro rei Fernando VII.

    , Oliveira Martins, Histria de Portugal (1879).

    6 Annimo, Proteco francesa e a Proteco portuguesa (s.l.n.d.).

    19

  • __.11I11 .

    A derrocada do Antigo Regime foi precedida, entre ns, por um trauma considervel, directamente ligado s ambies imperialistas de Napoleo na pennsula ibrica: a ocupao de Portugal pelas tropas invasoras francesas, durante cerca de cinco anos (1807 a 1811), com especial dureza durante a primeira invaso, altura em que, de finais de 1807 ao fim do vero de 1808, fomos um pas virtualmente decapitado na sua soberania nacional, ainda que a sua realeza se tivesse refugiado no Brasil, onde alis se manteria at ao fim da tempestade e mesmo para alm dela, para s aqui voltar o prfugo prncipe regente, agora D. Joo VI, quando entre ns triunfou a revoluo vintista (Agosto de 1820), dirigida tanto contra as exaces do ocupante ingls como destinada a fazer vigorar entre ns os princpios liberais.

    Assim, no primeiro quartel do sculo XIX, Portugal viveu como que em crise permanente, sob o efeito de traumas que desabam sobre o tal reino que Oliveira Martins descrevia como enlouquecido e triste:

    a ocupao francesa e as guerras entre invasores franceses e aliados ingleses;

    a abertura dos portos brasileiros ao comrcio mundial, com o inevitvel prejuzo dessa medida em relao ao comrcio e indstria da metrpole lusa, assim reduzida a colnia da sua prpria colnia;

    uma agricultura arruinada e um pas transformado em palco de guerras entre dois imperialismos europeus rivais;

    as alteraes da ordem pblica a partir das insurreies nortenhas contra os Franceses.

    Eis em resumo o quadro calamitoso desse perodo que se prolonga com a abusiva estadia das tropas inglesas entre ns, enquanto a famlia real permanecia no Brasil, desinteressada do reino de que fugira para se furtar captura que as tropas de Junot faziam tombar sobre aquela combalida nau do Estado ameaando soobrar, ao peso de todas as suas defeituosas e carcomidas estruturas de Antigo Regime decrpito e timorato, incapaz de prolongar o esforo renovador empreendido por um estadista de gnio como Pombal, agora confiada ao seu hesitante timoneiro, assistido por uma rainha louca ...

    1.2 O Brasil, de colnia a metrpole

    Fugindo a famlia real portuguesa para o Brasil, por sugesto da Inglaterra, entre Portugal e o Brasil colnia iria estabelecer-se desde ento uma curiosa inverso de estatutos: a nossa colnia tornar-se-ia uma verdadeira metrpole e a metrpole lusa, ocupada ora por Franceses, ora por Ingleses, retrogradava a

    20

    III I I

  • ( I!

    condies de mero palco de batalhas contra Napoleo, em que os nossos exrcitos, apesar de tambm nelas participarem, no garantiam por isso uma soberania nacional, afinal verdadeiramente amesquinhada, anulada. Basta recordar que, sob o pretexto da proteco da nossa Fiel Aliada britnica, a ilha da Madeira foi ocupada por Beresford - o futuro pr-cnsul ingls que governaria o nosso pas com a sobranceria que Junot revelara antes -, desde Dezembro de 1807, s voltando ali a flutuar a nossa bandeira em 1814 ...

    As trs invases francesas suscitaram, alm do terramoto poltico referido, a primeira medida tendente a autonomizar o Brasil: ao abrir os portos brasileiros navegao e ao declar-los livres de comerciarem com o mundo, nomeadamente com a Inglaterra - objecto do bloqueio continental (decretado pelo Imperador francs em Berlim, em 21-XI-1806) que Napoleo impusera a Portugal, acabando alis por nos invadir e anexar, de acordo com o tratado de Fontainebleau (29-X-1807, feito de gorra com o rei Carlos IV de Espanha) para garantir o respeito por esta medida do seu ambicioso imperialismo europeu -, o prncipe regente refugiado no Brasil garantia a este reino uma primeira forma de independncia econmica em relao sua nao colonizadora.

    A medida fora decretada em Janeiro de 1808, por sugesto do Visconde de Cairu, e era um primeiro passo decisivo de uma trajectria que culminaria no grito do Ipiranga em 1822: at ali, a metrpole portuguesa tinha a exclusividade do comrcio brasileiro e todos os produtos exportados do Brasil seguiam apenas em navios portugueses..

    Com a abertura dos portos, o Brasil podia assim comerciar directamente com os outros pases, principalmente com a Inglaterra. Outras medidas econmicas que favoreceram o desenvolvimento brasileiro, e ajudaram o fortalecimento do sentimento de emancipao nacional, foram ainda tomadas por D. Joo, como a criao de manufacturas e a liberdade industrial (alvar de l-IV-1808), a fundao do Banco do Brasil e a atraco de emigrantes estrangeiros com destino s terras descobertas por Cabral.

    A capital deciso da carta rgia de 1808 logo suscitou o aparecimento de um emissrio diplomtico ingls, Stangford, o antigo embaixador em Lisboa, para ali negociar em nome de Canning os primeiros tratados de aliana e comrcio entre a Gr-Bretanha e o apetecido mercado da potncia sul-americana, ao mesmo tempo que surgia na Inglaterra o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense (Londres, 1808). Em princpios de 1808estava preparado esse tratado anglo-brasileiro, embora s em 1810 viesse a ganhar corpo, devido aos protestos que suscitou em Portugal, receoso de ver a sua colnia beneficiar de modo to evidente da situao imposta pelas invases napolenicas.

    21

  • I Veja-se Laure Permon, Duquesa de Abrantes (1784-1838), Mmoires de Mme. Ia Duchesse d'Abrantes - Souvenirs historiques SUl' Napolon, la Rvolution, I'Empire et la Restauration (Paris, 10 vols., s.d.; os volumes que tratam de Portugal so os 5 e 7; a invaso de Junot vem referida no vol. 7). Note-se que Laure Junot no acompanhou o marido durante esta sua ocupao militar de Portugal. No temos conhecimento de qualquer traduo portuguesa destas memrias. H, em espanhol, um volume antolgico dessas memrias, intitulado Portugal a principios deI siglo XIX, da Duquesa de Abrantes (a que os seus compatriotas chamavam burlescamente Duchesse d' Abracadabrantes), 2.' ed., Madrid, 1968, onde ela evoca Lisboa, os costumes da capital, Coimbra, Colares, Queluz, o Pao Real, etc. Almeida Garret, nas suas Viagens na minha Terra, assegura t-la visitado em Paris. Para mais dados ver notas biogrficas.

    1.3 Do bloqueio continental (1806) primeira ocupao francesa (1807-1808)

    A nossa velha aliana com a Inglaterra colocara Portugal em posio difcil quando Napoleo decretou, em 1806, o referido bloqueio continental, medida imperialista destinada a arredar a Inglaterra do comrcio europeu, proibindo-lhe os mercados do continente e fechando-lhe todos os seus portos, ao mesmo tempo que se sancionava com a apreenso todo o navio que tivesse tocado em porto britnico.

    Dotada de uma poderosa esquadra naval, que alis lhe garantiria grandes vitrias no mar como Trafalgar, logo em 1805, a Gr-Bretanha estava apta a contornar o arbtrio napolenico assim ordenado desde Berlim, mas no podia consentir nessa quarentena mercantil que a ameaava sufocar economicamente. Note-se, de passagem, que foi precisamente essa indiscutvel superioridade naval que permitiria afinal Gr-Bretanha vencer o Imprio francs, sobretudo desde que este, antecipando-se em 130 anos ao erro funesto de Hitler, procuraria ocupar a vastido russa: mas antes mesmo de se afundar nas infinitas estepes es1avas,j Napoleo ia ferido de morte com o imenso desastre das suas aventuras ibricas. Foi a "lcera espanhola que de facto fez gangrenar o colosso do I Imprio ...

    Intimado a partilhar das disposies do decreto antibritnico de Napoleo, Portugal optou por uma neutralidade que lhe permitia salvaguardar o essencial da sua velha Aliana luso-inglesa. Mas em Julho de 1807, Talleyrand, Ministro dos Negcios Estrangeiros do imperador, intimava-nos a fechar por completo todo o comrcio com "'S Ingleses a partir de Setembro desse ano. Outras medidas cominatrias c .rnpeliam-nos a romper claramente com a Inglaterra.

    At ento, fora Lisboa um dos portos mais activos do comrcio martimo europeu, o que teria doravante de cessar no tocante aos Ingleses. Por outro lado, ocupvamos o quarto lugar entre os fornecedores da Inglaterra, sobretudo em produtos oriundos da colnia brasileira. Lisboa era tambm base de contrabando britnico e apoio da sua poderosa horne fleet.

    No se submetendo de imediato ao ultimato de Talleyrand, o nosso governo procurou ganhar tempo. Mas Napoleo, tendo decidido de vez dividir Portugal em 27 de Novembro de 1807, decretava pelo tratado de Fontainebleau o esquartejamento do nosso pas entre ele, a rainha da Etrria e Godoy, ficando os Braganas sob tutela de Carlos IV de Espanha, tornado protector do reino da Lusitnia, ao mesmo tempo que em Bayonne se concentrava um impressionante exrcito francs confiado a Angoche J unot (1771-1813), antigo embaixador no nosso pas, casado com uma dama literata que alis escreveria interessantes memrias recordando os seus anos lusitanos 1.

    22

  • !lU r r III I I I r. I IIIIE1

    1.4 Panfletos antinapolenicos

    A ocupao francesa em Portugal conheceu trs fases distintas: a de Junot, iniciada em Novembro de 1807e concluda com a Conveno anglofrancesa de Sintra (assinada em Seteais em 31 de Agosto de 1808), que ps fim primeira ocupao; a interveno inglesa, iniciada nesse mesmo ms, forara os Franceses a capitularem, ainda que em condies vergonhosas para o brio e os interesses dos Portugueses, pois at na Inglaterra a famosa Conveno suscitou justssimos clamores de indignao, a que nem faltou o de Byron, que se associou, no seu Chi/de Harold (1817, um poema alis bastante antilusita no ... ), ao repdio pelos termos indecorosamente clementes do convnio preparado por Da1rymple, que permitiam ao ex-ocupante francs sair do Tejo com o produto do seu saque e com a ajuda diligente da prpria Gr-Bretanha. o arteso militar desta primeira derrota das guias napolenicas em Portugal foi um militar irlands a quem estava prometido no s um brilhante futuro militar, cabendo-lhe, por exemplo, ser o triunfador de Waterloo (18-VI-1815), mas ainda vir a ocupar lugares ministeriais no seu pas, sendo ele quem governava a Gr-Bretanha quando se iniciou a usurpao de D. Miguel, pelo qual esse tory- intransigente sentia grandes simpatias, tendo-se negado a ajudar os liberais portugueses emigrados na ilha inglesa, e forando-os at a abandonarem P1ymouth, onde estavam homiziados: trata-se do duque de ferro, Arthur Wellesley (1769-1852), o futuro primeiro Duque de Wellington, ttulo ganho depois de vencer os Franceses em Talavera (Julho de 1809),j na Espanha, durante essa guerra peninsular a que os Espanhis preferem designar por guerra da independncia.

    Note-se, a propsito, que em Espanha, desde o levantamento de Maio de 1808, o sentimento antifrancs deu a esse movimento, mais tarde acompanhado de guerrilhas e de patritico furor todo hispnico, uma marcada aura nacional e popular, que um Goya imortalizaria no seu Dois de Maio (fuzilamentos de patriotas em Madrid, em 1808) e nas suas pungentes gravuras dos Desastres da guerra (1810-13), e que uma infindvel srie de panfletos antinapolenicos prolongaria com desusada veemncia.

    A guerra contra os exrcitos de Napoleo teve em Espanha verdadeira dimenso de guerra nacional, de libertao nacional, precedendo assim as que mais tarde se registariam contra o mesmo inimigo na Alemanha e na Rssia. Atravs dos seus guerrilheiros ferozes ou dos seus exrcitos regulares, era, de facto, uma nao em armas (como a tinha sido a Frana desde 1792) que se levantava ali contra esses invasores que a Igreja apontava alm disso como hereges e revolucionrios, inimigos implacveis do trono e do altar.

    Essa luta teve assim um carcter eminentemente popular, sendo feita no s de batalhas e cercos, mas tambm de emboscadas e surpresas, o que tornava inteis as batalhas que Napoleo ganhasse, uma vez que no cessava com esses triunfos das armas a resistncia popular nem lhe serviam de muito a posse das

    23

  • UL LLII I E I ~.""I"_"""_-"-""-"""---""--"""--"".

    I Memorial de Santa Helena, publicado por Las Cases, 1823.

    cidades ou mesmo de Madrid: o irmo de imperador, Jos, no passava deste modo de um rei cercado em Madrid, defendido apenas pelas baionetas francesas ...

    Napoleo (que chegou a deslocar-se pessoalmente capital espanhola, onde se deteve a observar no palcio real o retrato de Filipe II pintado por Pantoja) diria mais tarde, no exlio de Santa Helena: Essa desgraada guerra perdeu-me; ela dividiu as minhas foras, multiplicou os meus trabalhos e minou o meu mora!l.

    Assim, pois, uns quantos afrancesados espanhis no chegavam para dar ao ocupante napolenico estatuto amistoso. Mas, por outro lado, no deixou esta ocupao francesa em Espanha de suscitar na pennsula o primeiro tentame de um diploma legal feito segundo os novos princpios da liberdade e da igualdade, a Constituio de Cadiz (1812), que alis serviria de modelo nossa constituio de 1822.

    Voltando a Portugal, lembremos que os panfletos anti-Napoleo tambm inundaram o nosso pas desde 1808, na sequncia de outros que antes tinham visado a Revoluo francesa, os Jacobinos, Robespierre, etc., sendo alguns deles traduzidos do espanhol.

    o surto panfletrio da lenda negra antinapolenica inicia-se entre ns em Maio de 1808, logo reforado pelo caudal espanhol no mesmo sentido; por exemplo, a Exposio dos Factos e Maquinaes com que se preparou a Usurpao da Coroa de Espanha, de Pedro de Caballos, foi logo vertida para a nossa lngua em cinco edies sucessivas, tendo a 4." uma tiragem de 4 000 exemplares, o que d bem a medida do sucesso destes panfletos contra o bandoleiro Corso" ou o monstro dos monstros", alma perversa/Infame produo da Natureza/ /compndio Universal das atrocidades!", como lhe chamava Felisberto Janurio Cordeiro (1774-1855?), um dos mais prolficos vates anti-Napoleo no seu panfleto em verso Bonaparte arguido pela Fortuna (Lisboa, 1808). Essa fogueira de libelos continuar a arder alto at 1811, altura em que, expulsos definitivamente do nosso territrio os Franceses, abranda o ardor editorial com o progressivo afastamento do perigo.

    Entre 1808 e 1811 ter-se-iam editado entre ns, nessa veia anti-Bonaparte, cerca de 700 espcimes, de que damos alguns exemplos nos documentos que acompanham este nosso texto. Entre aqueles panfletos, 117 saiem dos prelos da Imprensa Rgia, o que representa um sexto do total da folhetaria antinapolenica.

    So em geral annimos os seus autores. Convm exceptuar deste anonimato o nome cimeiro do economista Jos Acrsio das Neves (1766-1834), autor de uma vasta obra, a Histria Geral da Invaso dos Franceses em Portugal e da Restaurao deste Reino (1811), que no pertence, evidentemente, a este acervo de folhas volantes e pequenas brochuras geralmente versejadas e satricas. Outros nomes que escapam ao geral anonimato dessa literatura volante so os de Antnio Maria de Couto, Frei Jos Maria de Jesus (representado nos nossos

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    documentos), Jos Daniel Rodrigues da Costa, Antnio Pinto Rodrigues, Joo da Mata, Jos Anastcio Falco, Jorge Frana Galvo, Francisco Margiochi, Felisberto Janurio Corddeiro, etc. Este ltimo, autor de Bonaparte arguido pela Fortuna (Lisboa, 1808), fugiu apressadamente para o Brasil qundo se iniciou a derradeira invaso francesa.

    A primeira ocupao francesa, sob a responsabilidade de el-rei Junot assim lhe chamou o seu bigrafo portugus no vivido retrato desse perodo sombrio da nossa existncia nacional (Raul Brando, El Rei Junot, 1912), fazendo-se alis eco de uma alegada tentativa do general francs de se fazer aclamar rei de Portugal, uma vez destituda a dinastia de Bragana e dissolvida a junta da regncia -, viera mostrar que Napoleo considerava realmente Portugal como um pas destitudo de soberania nacional pelos termos do tratado de Fontainebleau - no qual, alis, burlara a Espanha, interessando-a na partilha de Portugal, quando afinal o Imperador pretendia de facto ocupar ambas as naes ibricas de molde a garantir a exacta aplicao do bloqueio continental -, submetido frrea tutela das tropas gaulesas, assistidas por uma administrao sem escrpulos e capaz dos maiores excessos e latrocnios, a mando de homens como o intendente Lagarde ou o general Loison (alcunhado de Maneta), entregando-se a prepotncias, rapinas e vexames sobre os habitantes.

    Tendo as tropas ocupantes atacado uma procisso religiosa, o crio de Nossa Senhora, perto de Leiria, logo a chacota popular celebrava em quadras que circulavam manuscritas a intrepidez deste feito:

    Quem oprime os Portugueses, Quem rouba sem ter d? esta tropa Francesa De quem chefe o Junot.

    Pois ento em Portugal Consentem tanto ladro? Que h-de ser se nele entraram Prometendo proteco?

    A entrada desta gente Foi com grande intrepidez. Descalos de p e perna Dois aqui, acol trs.

    t. Forte aco, forte batalha, Em Portugal a primeira! Bater-se a Tropa Francesa Com o Crio da Ameixoeira.

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    E o referido poetastro Janurio Cordeiro, com Junotj expulso de Portugal e o seu saque transportado para fora do nosso pas com a ajuda dos barcos ingleses, lembrava assim, em 1808, os desmandos da primeira ocupao francesa:

    Mandas que roubem, feras na rapina, E cafres no rigor, a prata e o ouro, Alfaias, quadras, jias, tudo quanto Os fiis Lusitanos possussem, Sem respeitar emprego ou qualidade, Casa, Palcio, Igreja e Santo Culto: Mandas que os povos todos se desarmem, Para no repelir tais atentados; Que as tropas se desmembrem; que se ultraje A Nao pela parte mais sensvel Qual a Religio que firme segue.

    (Bonaparte arguido pela Fortuna)

    A par destes panfletos antifranceses, deixou a ocupao gaulesa entre ns algumas expresses coloquiais que evocavam o comportamento de letrocnio das tropas dos Junot, Soult e Massena: ir para o maneta (i.e., morrer), por aluso aos interrogatrios do intendente da polcia Loison, despedir-se francesa (i.e., sem avisar), etc. Um geral sentimento antifrancs perduraria ainda vrios anos entre ns, a avaliar por um poemeto annimo, intitulado Frana e dado estampa em 1838 na gazeta Miscelnea ptica (Lisboa, n.? 9, Il-VIII-1838), no qual se dizia:

    O teu nome de Frana ominoso Ao pobre Portugal! - Sempre mofinos Tm sido os Fados teus, povo bondoso, Quando Frana se envolve em teus destinos! ... Estava a Lusa gente bem ditosa Quando Frana embirrou em protege-Ia: Custou-lhe proteco to valiosa Bons quarenta milhes ... Que bagatela! Por Massena-Junot foi sucedido: Inglaterra acudiu-nos com mo forte: Mas de Frana o Pendo aborrecido Nos trouxe assolao, incndio e morte.

    (...]. Falta ainda, infelizmente, na nossa historiografia, uma obra que fizesse o balano deste perdurvel sentimento antifrancs, talvez mais coriceo que as desolaes e catstrofes trazidas pelas batalhas em que nos vimos envolvidos, mesmo quando se travavam entre dois imperialismos europeus rivais, o ingls e o francs, ambos to incmodos protectores nossos.

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    1.5 A segunda e terceira invases francesas (1809-1811)

    o levantamento do Porto, em Junho de 1808, alastrara a Braga, Bragana, Viana e Guimares, levando criao de uma junta provisria sob a direco do bispo. Em Junho o centro do pas estava j revoltado e livre da ocupao francesa, bem como o Algarve, ficando as tropas de Junot reduzidas a Lisboa, Peniche e Setbal, alm de guarnies no vale do Tejo (Elvas, Estremoz, Abrantes, Almeida).

    A junta do Porto organizava entretanto milcias, juntava tropas e pedia Inglaterra - tal como sucedia com a junta espanhola insurrecta de Aranjuez - ajuda no combate ao ocupante francs. Foi nessa altura que Wellesley desembarcou em Lavos, perto da foz do Mondego, e iniciou os seus combates vitoriosos contra os exrcitos napolenicos na Pennsula: vitrias em Rolia (17 de Agosto) e Vimeiro (20 de Agosto).

    A 31 desse mesmo ms capitulavam os Franceses, assinando a referida conveno de Sintra. E em Setembro de 1808 voltava a flutuar em Lisboa a bandeira portuguesa.

    Napoleo decidira retomar em mos a difcil situao ibrica, que ele mesmo designara como a sua lcera ou o affaire espagnole, ordenando nova invaso de Portugal e dirigindo-se pessoalmente, frente das suas tropas, para a insurrecta Madrid, instalando no trono de Espanha o seu prprio irmo Jos (Dezembro de 1808).

    Do Brasil, o nosso prncipe-regente D. Joo dava ordens para se continuar a combater o Francs e designava como reorganizador do nosso exrcito um homem da confiana de Wellington, que havia alis de desempenhar papel relevante na histria ulterior de Portugal, e que, como se disse, j estivera ligado usurpao temporria da Madeira: William Carr Beresford (1768-1854), futuro primeiro Visconde de Beresford de Albuera e Cappoquin (a que se somaria o ttulo portugus de Marqus de Campo Maior, tudo nomes de vitrias suas na guerra peninsular, em territrio espanhol. Beresford viveria no nosso pas desde 1808 a 1820, e,j reformado, manteria viva polmica com um dos historiadores da guerra peninsular, William Napier (no confundir com Charles Napier, o marinheiro que participou nas nossas lutas domsticas entre miguelistas e liberais).

    Nomeado generalssimo do exrcito portugus pelo decreto de 7 de Maro de 1809 e assistido por uma nova regncia que lhe era dcil, Beresford procedeu a uma profunda reorganizao castrense de Portugal, constituindo-se deste modo como um novo Conde de Lippe na reforma das nossas tropas. Homem severo, rspido, gozou sempre entre .ns de uma historiografia negativa, reforada alis por obras literrias que, como a pea Felizmente h Luar (1961) de Sttau Monteiro (obra alis destinada a evocar o drama e a dissidncia do general ex-salazarista Humberto Delgado, ento exilado de Portugal aps o fracasso da sua tentativa de concorrer s eleies presidenciais de 1958, cujas aventu

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    ras deixavam de recordar as do infeliz Gomes Freire, e que, tal como o seu homlogo do sculo anterior, acabaria de modo trgico), o tornariam o vilo absoluto diante do patriotismo de um Gomes Freire de Andrade (1757-1817).

    Este ltimo, general da Legio Portuguesa ao servio de Napoleo, seria futuramente sentenciado morte aps a conjura em 1817, tendo sido mandado enforcar, degolar e queimar em S. Julio da Barra, como inspirador de uma sedio patritica que almejava tanto o fim da ocupao inglesa entre ns como o advento dos princpios do sistema representativo de 1789.

    Convm no esquecer que o general Gomes Freire, alm de maon, pertencera Legio Portuguesa criada pelo ocupante francs, tendo chegado a desempenhar nesse mbito importantes funes de administrao poltico-militar, na Frana, na Alemanha e na Polnia, alm de ter sido um dos que combateu nas campanhas napolenicas na Rssia.

    Sondado por alguns conspiradores liberais e anti-ingleses, o antigo militar da Legio Portuguesa aceitaria, durante a governao vexatria e abusiva de Beresford, autntico procnsul britnico, administrando sem contemplaes esta verdadeira colnia do Brasil, chefiar uma conjura destinada a expulsar do nosso pas os Ingleses: foi preso, julgado e executado, sentena inquia que s seria revogada em 1822.

    No espanta que uma das funes iniciais de Beresford tenha sido a de criar entre ns uma rplica ao pequeno exrcito luso-napolenico, a referida Legio Portuguesa que se batera ao lado da Grande Arme em Espanha, na Alemanha, na ustria e na Rssia, acabando por ser desmobilizada em Novembro de 1813. Agora, sob a frula britnica, o novo corpo chamar-se-ia Leal Legio Lusitana, cabendo-lhe auxiliar os exrcitos ingleses no seu combate contra as tropas de Napoleo.

    A segunda invaso francesa iniciou-se em Maro de 1809, sendo chefiada por Jean de Dieu Soult (1769-1851), duque da Dalmcia e Marechal de Frana, heri da batalha de Austerlitz, encarregado por Napoleo de comandar o 2. exrcito que destroou os Espanhis em Burgos, dirigindo-se depois para a Galiza, perseguido por John Moore, general ingls que alis havia de falecer em combate na Corunha. Da Galiza passou Souit a Portugal, atravessando a fronteira e atacando Chaves, que tomou (13-111-1809),e donde se dirigiu para o Porto, onde entrou em 29-111-1809, suscitando o desastre da ponte das barcas, por onde fugiam em pnico os habitantes da capital nortenha, atemorizados com a aproximao do invasor napolenico.

    Wellesley desembarcou de novo em Portugal, agora em Lisboa, sendo as suas tropas compostas de 17000 Ingleses e 7 000 Portugueses, dirigiu-se ao Norte para impedir que Soult atravessasse o Douro, acabando o Marechal por ter de retirar para a Galiza donde viera.

    Assim cessava a segunda invaso. Mas outras tropas francesas desciam pelo vale do Tejo, ameaando Abrantes, donde Wellington partiria para deter o

    I I, I , II,

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  • avano inimigo em Talavera de la Reina (Julho de 1809). Regressando a Portugal, fez preparativos para deter uma terceira invaso projectada, agora a cargo de Andr Massna (1758-1817), prncipe de Rivoli, apodado de Filho querido da Vitria, heri de Essling e de Wagram. Com ele vinham outros destacados chefes militares do Grande Exrcito, Ney, Reynier, Kellerman e, de novo, Junot. Em Julho estava este exrcito invasor na nossa fronteira, vindo de Ciudad Rodrigo.

    Coube a Wellington, uma vez mais, destroar esta arremetida francesa, desbaratando o exrcito invasor na batalha do Buaco (27-IX-181O), Massna dirigiu-se ento s linhas de Torres Vedras, que os Ingleses cuidadosamente tinham preparado para resistir a qualquer desejo por parte dos invasores em tomarem Lisboa e impedirem assim uma eventual retirada naval do corpo expedicionrio britnico.

    Essas linhas eram constitudas por uma srie de fortificaes que comeavam nas margens do Tejo, nas alturas de Alhandra e iam terminar na costa, na embocadura do Lizandro; uma segunda linha de defesa comeava no Tejo, pouco acima da Pvoa, e expirava na costa da Ericeira; e a terceira, destinada a cobrir o ponto de embarque do exrcito ingls, defendia a zona de Oeiras desde S. Julio da Barra. E, em Outubro, quebravam-se aqui, nestas clebres linhas de Torres, os mpetos dos exrcitos de Massna, e em 14 de Novembro, desistindo de pass-las, o Marechal decidia retirar, indo primeiro para Santarm, donde acabaria por regressar a Coimbra, sendo atacado pelos Ingleses em Abril, altura em que optou pela retirada de Portugal, que era finalmente abandonado em Maio de 1811, momento em que a ocupao francesa terminou de vez entre ns.

    O restante da interminvel guerra peninsular seria combatido em terras de Espanha, para em 1813 transitar para alm dos Pirinus, portanto j em territrio francs. Mas as nossas tropas no deixariam de prosseguir na luta contra os Franceses, batendo-se, por exemplo, na batalha de Vitria (Julho de 1813). Entretanto, entre ns, a Regncia continuava a velar pelo reino arruinado, com um prncipe sempre ausente e sem vontade de aqui voltar, esse rei que um historiador ingls definiu como um monarca amistoso, hesitante e um tanto desconfiado (H. Livermore, A new History 01 Portugal, 1969). A presena entre ns dos aliados ingleses, nomeadamente do eterno Beresford, que promovera perseguies polticas queno deixavam de lembrar as do tempo de Junot - ainda que agora viradas para a busca dos pedreiros livres, vtimas de manipuladores e arruaceiros brandindo chuos, cata de rnaons pelas ruas de Lisboa, arrebanhados como pestiferados na Pscoa de 1809, deixados depois, durante meses, nas enxovias inquisitoriais, apesar dos protestos do prprio Canning, quando constou que Soult se aproximava do Porto -, vinha assim substituir a insolncia e os rigores da anterior ocupao francesa pela dos nossos velhos protectores britnicos, mas agora numa Europa onde,

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  • apesar do triunfo da Santa Aliana aps a queda de Napoleo (1815), os princpios de soberania popular, sistema representativo e liberdade tinham sobrevivido s prodigiosas aventuras guerreiras do esprio filho da Revoluo -, Napoleo Bonaparte (1769-1821), esse mesmo que, apesar de todas as suas rapinas e das atrocidades das suas guias, encarnara, por fs ou por nefas, certos princpios bsicos do romantismo nacional e do iderio bsico da prpria revoluo iniciada em 1789.

    o historiador ingls Paul Johnson, no seu recente estudo The Birth of the Modern/World society 1815-1830 (2." ed., Londres, 1992), tem razo em sublinhar que alguns intelectuais oitocentistas louvaram Napoleo do mesmo modo que muitos progressistas do nosso sculo defenderam durante muito tempo Estaline e os seus crimes, dando o exemplo de William Hazlitt (1778-1830), cuja Vida de Napoleo (Londres, 1828-30), escrita em resposta extensa biografia altamente crtica do Imperador por Walter Scott, defende, por exemplo, o assassinato do Duque de Enghien. Mas em 1815, prossegue Johnson, j poucos intelectuais europeus defendiam Napoleo - como o fizera, por exemplo, Hegel, que julgara mesmo ter visto, em 1806, o Weltgeist- passar, de botas e montado a cavalo, debaixo da janela do filsofo, em Jena -, deixando de ver nele uma fora do progresso e, ao invs, um autor de grandes iniquidades.

    Criticando as reformas que Napoleo teria imposto a ferro e fogo pela Europa, Johnson sublinha antes a brutalidade dos seus crimes guerreiros, a maneira cruel e desptica como governou o mundo ento conquistado, aduzindo o testemunho de Goya (1746-1828), o qual, nos seus Caprichos, gravou o clebre sono da Razo que engendrava monstros, no qual se sumarizaria, diz, o caso de Napoleo tentanto impor a Razo iluminista da Frana ao resto da Europa, atravs das baionetas e da violncia guerreira, o que tambm teria sido pintado pelo mesmo grande artista espanhol no seu Saturno devorando os filhos: um gigante doido que devora as suas criaturas, alegoria da tentativa napolenica de refazer o mundo comendo os seus filhos (P. Johnson, op. cit.). Sobre a gravura de Goya "EI suefo de la razn produce monstruos, veja-se a sua reproduo e estudo no livro Los Caprichos de Goya, com introduo e notas de E. Lafuente Ferrari, Barcelona, 1978 (pp. 120-121). Recorde-se que esta coleco de estampas de Goya foi editada em 1799, o que, de algum modo, desmente a interpretao livre que lhe d P. Johnson.

    Assim o viu, por exemplo, um dos nossos liberais posteriormente exilados na tormenta subsequente, ao descrever as suas simpatias de jovem radical pelo bandoleiro corso e jacobino Bonaparte, cuja gravura ousara comprar num mercado do Porto, - Garrett (1799-1854), que nascera alis no mesmo ano em que aquele ex-jacobino tomava as rdeas do poder com o golpe do 18 Brumrio ... O atrevimento do jovem Garrett valera-lhe na altura uns bons . puxes de orelhas dados pelo pai, lembraria o poeta nas suas Viagens na minha Terra (1846), mais de um quarto de sculo depois do monstro disforme e horroroso que fora Bonaparte ter morrido desterrrado no rochedo distante de Santa Helena.

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  • Ao contrrio do que sucedera na Espanha, entre ns no houve, porm, um grupo significativo de afrancesados ligados directamente ao ocupante napolenico, ou seja, de intelectuais e artistas que lhe fossem afectos, exceptuados, evidentemente, os polticos e sacerdotes que colaboraram com J unot (o caso do Conde da Ega (ver notas biogrficas) foi um dos mais satirizados na altura).

    Recorde-se que a junta governativa do reino criada por D. Joo antes de abandonar Portugal (decreto de 26-XI -1807) delegara dois oficiais superiores para irem ao encontro de Junot e saud-lo, quando este invadia o nosso pas. A prpria Igreja apressara-se a acolher o estrangeiro, considerando que Bonaparte era um segundo Cristo e recomendando que se recebessem os Franceses como irmos: recomendou-o o Inquisidor D. Jos Maria de Melo (22-XII-1807, recomendou-o o bispo do Porto (18-1-1808), o patriarca de Lisboa (10-XII-1807), recomendou-o o bispo de Lamego (22-XII-1807). Tambm a Maonaria lusa abrira os braos ao general de Napoleo. Mas no dissera o prprio bispo de Lisboa que o exrcito acabado de entrar em Portugal era o de Sua Magestade o imperador dos Franceses, e rei da Itlia, Napoleo o Grande, que Deus tem destinado para amparar a religio e fazer a felicidade dos povos? E no lhes pedira ainda, pela mesma ocasio: Confiai com segurana inaltervel neste homem prodigioso, desconhecido a todos os sculos; ele derramar sobre ns a felicidade da paz, se vs respeitardes as suas determinaes, se vos amardes todos mutuamente, nacionais e estrangeiros, com fraternal caridade ... 'l Todas estas posies eram tomadas com a seriedade responsvel das instituies a que pertenciam aqueles homens pblicos ou sacerdotes romanos.

    Assim, o nico caso de relevo de adeso intelectual ou artstica ao invasor ser o de Domingos Antnio de Sequeira (1768-1837), autor de um leo celebrando a malfadada proteco de Junot a Lisboa, alegoria que o no impediria de desenhar depois, j com os exrcitos ingleses entre ns, uma baixela oferecida a Wellington ...

    o leo de D. A. Sequeira intitulava-se Junot protegendo a cidade de Lisboa e nele se via o general napolenico pegando na mo de uma solcita mas assustada Ulisseia, enquanto, direita, Ceres (deusa da abundncia e das searas) e Minerva (deusa da sabedoria) avanavam sombra de uma guia de grandes asas abertas; ao fundo, passavam regimentos franceses: seria difcil fazer uma alegoria mais descaradamente colaboracionista. Todavia, Junot parece no ter apreciado o leo do amigo do conde de Forbin, oficial do Estado-Maior s ordens de Delaborde e pintor-amador distinto, mais tarde, depois da Restaurao dos Bourbons, Director-Geral dos Museus do Estado francs. Com Forbin fizera Sequeira uma excurso a Coimbra, Batalha e Alcobaa, trazendo dessa viagem um lbum de desenhos actualmente existente no Museu Nacional de Arte Antiga (Janelas Verdes). Com a partida dos Franceses, Sequeira pagou com a priso as suas simpatias pelos ocupantes, tendo estado encarcerado de 15-XlI-lSS at 16-IX-lS9. No ano seguinte ao da sua libertao, fazia uma Alegoria s virtudes do Prncipe Regente D. Joo e uma Apoteose de Wellington (l Sl l", Museu Nacional de Arte

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    Antiga), tendo ainda desenhado uma baixela de prata que seria oferecida quele comandante ingls. A vida de D. A. Sequeira foi pouco estudada (Cf. Lus Xavier da Costa, Domingos Antnio de Sequeira, Lisboa, 1939, ilustr.).

    Os oficiais da referida Legio Portuguesa criada em 1808 (D. Pedro de Almeida, Marqus de Alorna, tenente-coronel Gomes Freire de Andrade, os brigadeiros Incio Martins Pamplona e D. Jos Crcome Lobo, o Marqus de Loul, o coronel lvaro Pvoas, futuro general-chefe das tropas de D. Miguel, etc.) foram assim, os nicos que de algum modo se comprometeram activa-mente no apoio causa do Imperador francs, pagando alguns deles,' muito caros, como o citado Gomes Freire, os seus gales na Grande Arrne.

    Quanto ao pintor Sequeira, lembremos que os seus ideais liberais o levariam a ser uma espcie de artista oficioso do regime inaugurado em 1820,desenhando os retratos de quase todos os constituintes de 1821-22. Tal como Garrett jovem, os romnticos europeus, como Beethoven ou mesmo Goethe, sauda-ram inicialmente em Napoleo a espada parida pela Revoluo francesa, para depois verem que naquele prodgio havia mais despotismo e imperialismo do que os imortais princpios de 1789.

    E se Beethoven riscou a dedicatria da sua Sinfonia Herica, Sequeira aclamou em Wellington o verdadeiro protector da ptria lusitana, desenga-nado j das promessas que o tropa Junot encarnara aos olhos de muitos Portugueses que no Duque de Abrantes saudaram o despertar de uma nova era e de um novo Portugal ...

    Bibliografia sugerida

    MACEDO, Jorge Borges de, O Bloqueio Continental: Economia e Guerra Peninsular, 2 vol., Lisboa, Gradiva, 1990.

    MEDINA, Joo (dir. de), Histria Contempornea de Portugal, 7 vol., Lisboa, Multi-lar, (s.d.).

    MEDINA, Joo (di r. de), Histria de Portugal dos Tempos pr-histricos aos nossos Dias, Alfragide, Edic1ube, s.d. (1993), vol. VIII.

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  • -2. A REVOLUAO VINTISTA (1817-1828)

  • Objectivos Gerais da Unidade

    Consideramos como objectivos desta unidade, os seguintes: Reconhecer o paralelismo histrico entre Portugal e Espanha no que respeita implantao do liberalismo.

    Compreender que o liberalismo o resultado lgico e inevitvel, do abalo trazido a Portugal pelas invases francesas e pela subsequente ocupao inglesa.

    Avaliar as implicaes da revoluo vintista na sociedade portuguesa.

    Compreender que a Constituio de 1822 uma convergncia natural de interesses, grupos e ideologias no sentido de consagrar o princpio clssico e liberal da separao dos trs poderes.

    Caracterizar as vicissitudes da primeira experincia liberal portuguesa.

    Reconhecer que o retorno do absolutismo a Portugal deu incio a um perodo de terror que duraria seis anos, e s teria fim aps uma guerra civil.

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    Jamais deixa de ser livre um povo que o quer ser [... ]. O povo portugus ter uma justa liberdade, porque a quer ter." I Cada dia trazia a sua festa nova, era uma chuva cerrada de hinos, de sonetos, de canes, de dramas, de modas de vesturio, de sapatos de forma liberal [...]. O povo estava surpreendido por se achar to grande, to livre, to rico em direito terico, porque no que diz respeito realidade, isto , aos factos palpveis, rrvteriais da vida econmica, permaneciam sensivelmente os mesmos. Isto durou bem dois anos. Enquanto os liberais tagarelavam, o absolutismo, que se calara, pensava; e ainda que, como sabido, no seja um grande pensador, pensou com justeza porque disso tinha necessidade [...]. Logo que o absolutismo achou o fruto maduro, arrancou-o da rvore quase sem um abano. E exrcito, que fizera a revoluo, desf-la. Com um pontap, fez-se rolar a Constituio para o monturo onde jazia a Inquisio, Elas a ficaram pacificamente, lado a lado, dormindo o sono do justo." 2

    2.1 O paralelismo histrico entre Portugal e a Espanha

    Numa histria paralela de Portugal e de Espanha, o ingls William C. Atkinson teve razo em chamar ateno para o facto de, durante o sculo XIX, os dois pases terem seguido caminhos ou obedecido a impulsos e tropismos ideolgicos simultneos, chegando mesmo, como mo perodo da ocupao francesa, a agir como um s esprito: [... ] as causas de Espanha e de Portugal tinham-se tornado uma s e os dois pases estavam de novo juntos em esprito como nunca tinham estado desde a expulso do Muulmano. '

    Este paralelismo (ou convergncia) iria alis sobreviver s guerras peninsulares ou de independncia: a revoluo liberal estala nos dois pases em 1820, jugulada em ambos em 1823 e retoma o seu curso com a dcada de trinta, e de acordo com pulses da prpria histria europeia (a revoluo francesa de Julho de 1830 constituiu o tal Waterloo dos povos de que falava Garrett no seu livro Portugal na balana da Europa, de 1830, querendo com essa imagem mostrar como o despotismo da contra-revoluo foi derrotado por vrios pases a partir dessa data memorvel). A nossa liberdade, a vintista, seguiria os passos da constituio gaditana de 1812 e seria alentada pelo pronunciamento de Rafael del Riego (1785-1823) em 1820, repondo-a em aplicao - Fernando VII suspendera-a desde 1814-, assim como o nosso partido apostlico e absolutista tinha na sua corte a figura da irm do prprio Fernando VII, o monarca da contra-revoluo.

    Carlota Joaquina (1775-1830), uma intrigante feroz que, durante o seu exlio brasileiro, tentara tornar-se imperatriz da Amrica espanhola e, na impossibilidade de realizar tal projecto, ser regente de uma parte da Amrica espanhola, a do Rio da Prata, assim como j fantasiara, ao ver o seu pai Carlos IV deposto por Napoleo, tornar-se rainha de Espanha. Espcie de Lady Macbeth da

    I Frei Francisco de So Luis, beneditino, Manifesto de 15-XII-1820 dirigido s potncias da Santa Alana, justificando a Revoluo portuguesa de 1820.

    2 Alexandre Herculano, Mouzinho da Silveira ou la Rvolution portugaise .. (1856), Opsculos, tomo II.

    1 A History ofSpain and Portugal, Londres, 1970.

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    corte lusa, D. Carlota chefiaria o partido absolutista desde que recusara jurar a nossa constituio de 1822 e, depois em Queluz, animando o seu filho D. Miguel (1802-1866) a combater o vintismo e a empunhar o cetro rgio, em detrimento do irmo mais velho, D. Pedro, e da sua neta D. Maria II.

    o paralelismo luso-espanhol era tambm produto de uma natural convergncia de interesses, grupos e ideologias, no meio dos quais nem sempre o iberismo seria o mais decisivo.

    Nas vsperas da revoluo de 1820, foi sensvel entre ns a propaganda dos liberais, entretanto guindados ao poder em Espanha com o j referido pronunciamiento de Riego (1-1-1822), que levaria Fernando VII ajurar a constituio de Cdis em 9-111-1820. D. Jos Maria de Pando (1787-1840), encarregado de negcios em Lisboa, seria um dos agentes dessa coligao entre liberais lusos e espanhis - muitas vezes irmanados na confraria secreta das sociedades manicas no ano da instaurao da liberdade em toda a Ibria. A nossa constituio de 1822 haveria tambm de reflectir uma forte influncia do modelo gaditano, de inegvel sugesto manica tambm.

    Seja como for, o importante neste perodo que se inicia em 1807 e se adensa com a partida das tropas de Napoleo do territrio peninsular, que os destinos das duas naes se constroiem e pulsam de modo muitas vezes concordante, segundo as mesmas nsias de liberdade ou as mesmas sombrias maquinaes dos seus demnios liberticidas.

    o essencial para ambos os pases, desde o final das guerras de independncia, seria a diviso fulcral entre um partido liberal e um partido absolutista, um grupo defensor das reformas necessrias (desamortizao, laicizao, industrializao, etc.), da modernidade e do progresso, contra um partido apostlico, retrgrado, feudal, legitimista ou restaurador de tudo quanto a tempestade napolenica afinal deitara por terra, irremediavelmente. Por outras palavras, o resto do sculo seria ocupado sobretudo em Espanha, note-se com uma longa, interminvel guerra civil, que, em larga medida, se havia de prolongar para o nosso sculo - com Miguelistas e Carlistas ainda actuantes como foras polticas, ideolgicas e sociais durante a nossa I Repblica (e, para alm dela, sob a forma de Integralismo lusitano, durante a Ditadura do Estado Novo) e durante a Guerra Civil espanhola, a partir da II Repblica (1931 em diante).

    Esse acentuado paralelismo luso-espanhol prosseguiria assim com as guerras entre liberais e absolutistas (veremos mais adiante o papel decisivo que, por exemplo, um poltico liberal espanhol como Mendizbal teve no apoio s nossas armas libertadoras), prolongando-se na segunda metade da centria, at que, por fim, se operou uma capital bifurcao dos anos noventa, a partir do mesmo drama a perda das colnias para Espanha, os desafios ultramarinos para ns desde a Conferncia de Berlim que nos fez trilhar caminhos enfim distintos, de algum modo antagnicos at.

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    I I. " 1,11 i II"'., I I ~I UI I; ii " 1 ,I: iii I U,ltl I

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    Uma ltima observao quanto a este problema:

    as guerras peninsulares tinham tambm trazido consequncias semelhantes para as colnias americanas de Portugal e de Espanha, traduzindo-se na perda irremedivel das possesses dos dois pases, o que se consuma definitivamente em 1825 (para ns) e 1826 (para os nossos vizinhos, exceptuando as ilhas de Cuba e Puerto Rico), embora de modo distinto, uma vez que as independncias (norte, centro e sul-americanas) dos antigos territrios espanhis foram o resultado de movimentos independentistas conduzidos por burguesias crioulas locais (San Martin, Bolvar, etc.), enquanto que, no caso do Brasil, a sua independncia resultou de um gesto do prprio prncipe real luso, regente desde 1821.

    Por outro lado ainda, o destino dessas mesmas independncias foi diferentssimo. Enquanto que os imprios ex-espanhis se desintegravam de modo irremedivel, a ponto de Bolvar (1783-1830) confessar desalentado que lavrara o mar, uma vez que os seus planos de grandes pases liberais emancipados da tutela colonizadora dera lugar, aps lutas intestinas amargas e sanguinrias, a um enxame de repblicas desavindas que ficariam para o resto do sculo merc de governos brutais e tirnicos.

    o Brasil, cujo territrio nunca diminuiu - ao invs, aumentou -, conduzido primeiro ao estatuto de independncia prtica por uma medida econmica de D. Joo VI, e tendo o cordo umbilical ulteriormente seccionado pelo prprio filho deste monarca, o regente D. Pedro, manter-se-ia relativamente pacfico, assim como tambm seria incruenta a sua passagem para a posterior forma republicana, em Novembro de 1889. Aqui, sim, o paralelismo aparente dos destinos peninsulares mostra uma disparidade funda e decisiva de atitudes e estilos, com importantes consequncias polticas. Basta pensar que o Brasil se manteve na dependncia de um Bragana, preservando assim a forma monrquica, travestida de Imprio" enquanto que o resto das Amricas hispnicas optava pela forma republicana. Como o observa ainda o mesmo historiador ingls citado, o Brasil teve sorte em caber a Portugal I, no propriamente por ter preferido a monarquia repblica, mas ter guardado uma unidade e uma coeso que lhe seriam vantajosas no futuro.

    2.2 Antecedentes da Revoluo de 1820

    Durante os cinco anos que duraram as operaes militares contra os Franceses (perodo ligeiramente mais longo para os Espanhis), os dois territrios tinham sido tumultuosamente ocupados, convulsionadas as vidas dos seus habitantes, talados os seus campos, interrompidas as suas fainas industriais ou agrcolas, abalada a sua confiana nos poderes institudos, ao mesmo tempo que as traies ou a cobardia dos chefes polticos e das classes dirigentes mais responsveis tinham criado um vazio poltico e mental.

    Alguns, apostando numa regenerao do mundo social e da vida, concebiam agora de acordo com os princpios encarnados na constituio gaditana de

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    I W. Atkinson, A History of Spain and Portugal.

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    I O Rei Ren I de Anjou (1409-1480), chamado o bom Rei Rcn, Duque da Lorena e Conde da Provena, rei efectivo de Npoles, rei titular da Siclia e rei nominal de Jerusalm, renunciara, aps vrios esbulhos de que foi vtima por parte de parentes seus, conduta efectiva dos negcios, preferindo viver retirado na Provena, em Aix , rodeado de artistas e sbios.

    , Lus XI de Frana (1423-1483) reinou desde 1461, lutou contra os nobres, combateu Carlos o Temerrio, Duque da Borgonha. Poltico astucioso, soube esquivar-se a vrias conjuras urdidas contra o seu poder, sendo alis um grande obreiro da unidade francesa e do poder absoluto dos reis. A sua imagem mtica foi sempre bastante negativa, surgindo como um rei srdido e maquiavlico, sugesto que decerto Herculano quis dar neste texto redigido em francs e publicado numa revista de exilados franceses em Portugal.

    3 Alexandre Herculano, Mouzinho da Silveira ou a revoluo portuguesa, texto publicado originalmente em francs, em 1856, e includo no tomo I dos Opsculos, Lisboa, 1873.

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    Ui

    1822OU, entre ns, nos sonhos patriticos do Gro Mestre da Maonaria lusa, Gomes Freire, ou nas reunies conspirativas que, no Porto e nesse mesmo ano de 1817que vira o patbulo dos Mrtires da Ptria (assim ficou conhecido o campo onde os conjurados de Gomes Freire foram executados, tambm chamado de Campo de Santana), se comeavam a fazer em casa do desembargador da Relao, Manuel Fernandes Toms (1771-1822), onde se repartia a hstia liberal, anti-inglesa e j com fumos de republicanismo. Deste Sindrio manico tripeiro - a palavra Sindrio, de origem grega, significava assembleia e lembrava o nome do tribunal hebraico que condenara Jesus, facto que nada parece ter a ver com a natureza conspirativa regeneradora do dito conclave de comerciantes e magistrados, ao qual o desembargador juntou mais conjurados ao longo de 1818 e 1819, at que o pronunciamento de Riego lhes deu asas para se lanarem no aliciamento activo de guarnies interessadas numa revoluo liberal - sairia por fim a revoluo nortenha de 24 de Agosto de 1820.

    Resultado lgico, inevitvel, do abalo imenso trazido a Portugal pelas invases francesas e pela subsequente ocupao inglesa, abusiva e insolente para os brios de uma nao soberana como a nossa, ademais com uma situao econmica e financeira cada dia mais grave, beira da bancarrota, com os campos abandonados, a agricultura agonizante, as indstrias inermes e o pas amargurado pela ausncia do seu soberano.

    No ano de 1817, uma tentativa republicana de independncia brasileira eclodira na provncia de Pernambuco (6-111-17), o que provava que no prprio Brasil se ansiava por uma regenerao que s podia vir de uma ruptura com o velho passado colonial, ou seja, com o Antigo Regime. Resumindo a nossa situao em vsperas da revoluo de 1820, Herculano escrevia estas palavras duras e cruas, mas sem dvida adequadas a descrever a misria desse perodo que precede a revoluo:

    Economicamente falando, ramos colonos do Brasil, onde um governo corrupto, os ministros de D. Joo VI, espcie de rei Ren' mascarado com o chapu sujo de Lus XI 2 , despendiam estupidamente os impostos ou roubavam-nos para se enriquecerem ou para enriquecerem arrivistas sem mrito ou nobres abastardados. Politicamente falando, eramos colonos ingleses. O nosso exrcito era um exrcito ingls, cujos soldados, e quase unicamente os soldados, haviam nascidos neste pas. Governava-nos um general ingls [Beresford] por intermdio de uma Regncia servil que pretendia representar em Portugal o rei detido no Rio de Janeiro. [oo.] Era uma dominao insolente e brutal; eram a vergonha, a misria, o aviltamento, o embrutecimento do escravoo Era necessrio sair dessa situao ou morrer. Se as ideias liberais no tivessem engendrado a revoluo de 1820, uma outra mecha qualquer teria feito saltar a mina. Mesmo extenuados e moribundos, os povos, como os indivduos, estremecem sempre vista da morte.'

    Nas vsperas da revoluo portuense, os Governadores lembravam ao rei D. Joo VI que a situao do nosso tesouro era insustentvel, que o nosso

  • deficit era imenso, que se despendia excessivamente com um exrcito demasiado grande para as nossas necessidades e que Portugal assim se achava desde que deixara de ser o entreposto dos gneros coloniais do Brasil (ofcio de 2-VIl-1820). No ms seguinte, como que a responder a estes agravos expressos atravs do mar a um rei distrado e distante, eclodia no Porto, cidade burguesa por excelncia, e foco das principais rebelies ao longo do oitocentismo incluindo o primeiro tentame entre ns de republicanismo, em 1891 -, o pronunciamento militar que iniciava na nossa histria o rduo ciclo da implementao da ideia representativa no nosso pas.

    o drama de um povo que queria ser livre ia comear. E, como o explicava o beneditino Francisco de So Lus - o futuro Cardeal Saraiva (1766-1845) - num manifesto justificativo da revoluo vintista, dirigido s naes da Santa Aliana antiliberal, nunca deixava de o ser um povo que o queria mesmo ser livre.

    2.3 A revoluo vintista

    Aproveitando a ausncia de Beresford no Brasil, onde o marechal ingls fora pedir a D. Joo VI novo aval para as suas impopulares medidas governativas, as tropas portuenses aliciadas pelo Sindrio, formadas no Campo de Santo Ovdio, revoltam-se no Porto, na manh de 24 de Agosto de 1820. Foram ento ali lidas duas proclamaes nas quais se garantia fidelidade a D. Joo VI e se acautelavam desde logo algumas garantias dadas religio catlica do Pas, ao mesmo tempo que se pedia um regime de Liberdade regrada pela Lei, um Governo Provisrio em que se pudesse confiar e se pedia que se abafasse a Anarquia e coibissem os Tumultos. E depois de se dizer que era necessria uma reforma - mas esta reforma deve guiar-se pela razo, e pela justia -, davam-se vivas s Cortes e por elas Constituio vindoura. Esta declarao do Conselho militar, que o Dirio Nacional estamparia dois dias depois, com permisso da Junta do Supremo Governo Provisrio do Reino entretanto criada no prprio dia da revoluo tripeira, vinha assinada pelos comandantes militares do movimento: Sebastio Drago de Brito Cabreira, Bernardo Correia de Castro e Seplveda, Domingos Sarmento, Jos Leite de Berredo, Jos de Sousa Pimentel e Jos Pedro Cardoso e Silva.

    tarde reunia-se na Cmara Municipal um grupo de revolucionrios donde sairia um governo provisrio intitulado Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, com representantes da nobreza, da magistratura, do clero e da universidade, alm de representantes das provncias. O documento lavrado nessa reunio refere que as Cortes vinham de longe como representantes da Nao, sendo urgente ressuscit-las para rejuvenescimento nacional. Faziam-se tambm aluses s liberdades polticas do passado, prometia-se manter a religio e o trono, e salvar a ptria.

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    o movimento no tardou a alastrar ao Norte, no Minho, embora tambm encontrasse desde logo hostilidade dos Governadores do Reino, que na sedio do dia 24 de Agosto viam um horrendo crime de rebelio, assim como alguns governadores militares, como o Conde de Amarante, se mostrassem tambm adversos ao movimento sado das espadas insurrectas de Santo Ovdio. Desejosos de opor a sua legitimidade dos insurgentes nortenhos, os Governadores convocaram cortes para 9 de Setembro, ao mesmo tempo que oficiavam Junta sugerindo-lhe que esta se dissolvesse por desnecessria.

    Entretanto, em Lisboa, as manifestaes de simpatia para com o vintismo, realizadas a 15de Setembro, originavam a criao de um governo provisrio na capital, o qual acabaria por se fundir com o do Norte (27-IX-1824), num encontro realizado em Alcobaa pelos dois corpos, agora unidos num governo provisrio da nao portuguesa, a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, que comunicou a D. Joo VI essa deciso transcendente, ao mesmo tempo que entrava em contacto com o corpo diplomtico residente em Lisboa. O governo anunciava que cessaria funes logo que fossem abertas as Cortes, cuja eleio foi entretanto marcada. A chegada de Beresford ao Tejo, em Outubro, vindo do Brasil, seria o pretexto para uma clara demonstrao, por parte das novas autoridades, de que o domnio ingls cessara entre ns, uma vez que o marechal no foi autorizado a desembarcar, sendo assim escorraado do pas que afinal governara at ali (mas no seria a ltima vez que pisaria solo portugus ...). A 10de Novembro, o governo provisrio, arredando a sugesto da Academia das Cincias no sentido de convocar Cortes maneira ~o passado, ou seja, por ordens, optava por um sistema francamente liberal, democrtico at porque no censtro, um dos aspectos do radicalismo das instrues ento tomadas contra aquilo que essas disposies governativas definiam como antiquadas formas de feudalismo e vo simulacro de cortes.

    O voto foi tambm concedido aos analfabetos, o que era outro aspecto de certo radicalismo que presidia a alguns sectores vintistas, entretanto reforados pela abortada bernarda castrense conhecida por Martinhada (II-XI-1820) por ter eclodido no dia 11de Novembro, donde sairia inicialmente a demisso de alguns civis como Fernandes Toms, tentativa de entorse ao vintismo que o prprio povo lisboeta, constitudo por manifestantes armados e burgueses, logrou fazer abortar seis dias depois.

    Era, de qualquer modo, a primeira tentativa que o exrcito fazia de confiscar, ou pelo menos desviar do seu curso, uma revoluo que comeara pelas armas e que, depois de vrios sobressaltos, acabaria suspensa pelas armas (1823) e, cerca de uma dcada depois, final e definitivamente imposta pelas armas (1832-34). Da falhada intentona de ll-XI-20 resultou o regresso ao governo de Fernandes Toms, do beneditino Francisco de So Loureno - autor do manifesto dirigido Europa, justificando a revoluo portuense de 24-VIII -, de

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  • Braancamp Sobral e de Ferreira de Moura. Em Dezembro de 1820realizaram-se as eleies indirectas para as constituintes, ou seja, em dois graus, ou por sufrgio indirecto (em Lisboa, o que era excepcional, os eleitores de freguesia elegiam os eleitores de comarca, e estes escolhiam os deputados no resto do pas, elegiam-se os eleitores nas cmaras), donde sairia de um congresso de 74 deputados. E em 24 de Janeiro de 1821, aps missa na S, reuniam-se assim as nossas primeiras cortes democrticas, isto , eleitas.

    Como reagiram o rei e a corte no Rio? As primeiras notcias da revoluo portuense tinham deixado o nosso rei atemorizado, embora alguns dos seus validos - entre os quais os Condes de Palmela (D. Pedro de Sousa Holstein) e dos Arcos - lhe fizessem ver o carcter moderado do movimento iniciado entre ns, sobretudo porque a Europa era ento tutelada por uma coligao antiliberal de naes, sada do Congresso de Viena (1814-15), a Santa Aliana 1, que no via com bons olhos o liberalismo triunfar em Espanha e em Portugal, assim como em Npoles.

    A atitude da Inglaterra, sob a direco de George Canning (1770-1827) - antigo ministro britnico em Lisboa (1814-15), duas vezes ministro dos Negcios Estrangeiros, em 1807 e, sobretudo para o que dizia respeito aos nossos destinos, de 1822a 1827-, impediu, porm, que uma interveno fosse entretanto determinada pelas potncias para jugular a experincia representativa portuguesa, o que alis no deixaria de suceder quando, em 1823, Lus XVIII impelido pela coligao da Santa Aliana, invadisse a Espanha em Abril desse ano, com o corpo expedicionrio comandado pelo Duque de Angoulme, pondo fim segunda experincia liberal espanhola, e repondo o absolutismo de Fernando VII.

    A revoluo portuguesa do Porto tivera eco favorvel nas ilhas e nas colnias. A Madeira apoiou-a, aderindo nova situao desde Janeiro de 1821; os Aores mostraram-se em geral indiferentes mudana operada no Pas, contrastando com a futura atitude do arquiplago desde 1828em diante. na altura em que parte dele se transforma em verdadeiro baluarte solitrio do Liberalismo no exlio; quanto Terceira, a oposio ao vintismo foi ali tenaz; Angola e Moambique aderiram, com alguma turbulncia nesta ltima colnia do ndico, assim como na ndia; tanto em Moambique como em Goa as juntas provisrias locais no mostraram grande vontade cm aceitar os novos governadores mandados por Lisboa.

    Na longnqua Goa, os ecos vintistas chegaram com alguma demora, suscitando alvoroo. Se desde Maro de 1821 ali se soubera, atravs de peridicos ingleses e de cartas particulares, o que se passara na Metrpole desde o 24 de Agosto, o governador e vice-rei daquela parcela do nosso imprio asitico, o Conde de Rio Pardo, preferira nada mudar, aguardando instrues de Lisboa para proclamar a nova forma de governo, o que levou os liberais goeses a planearem a deposio do demasiado escrupuloso funcionrio luso.

    Reuniram-se as tropas afectas ao liberalismo na madrugada do dia 16-IX-1821, circundando o palcio do vice-rei e dando vivas constituio da nao

    I A Santa Aliana foi um pacto poltico assinado em Paris, em 1815, aps a derrota definitiva de Napoleo, entre os imperadores da Rssia e da ustria e do rei da Prssia, com o propsito de unir as naes no sentido do absolutismo e da sua defesa contra os pases onde fermentassem as ideias liberais.

    Um dos seus mais firmes estrategos foi o Prncipe de Metternich (1773-1859), chanceler austraco desde 1809, e que presidira ao congresso de Viena (1814-15), impondo uma reorganizao da Europa baseada nos principios do Antigo Regime, desempenhando um papel importante neste pacto, sobretudo desde que a Inglaterra o abandonou em 1823. Foi um resoluto auxiliador da causa miguelista em luta contra a de D. Pedro IV. A Inglaterra de Canning logrou impedir que a poltica antivintista da Santa Aliana desse azo a uma interveno antiliberal entre ns. J em Espanha, porm, para restabelecer o absolutismo de Fernando VII, a Santa Aliana no hesitou em patrocinar em 1823 uma interveno militar comandada por Lus de Bourbon, Duque de Angoulme (1778-1851), filho mais velho de Carlos X, intruso na vida ibrica que encorajou os nossos absolutistas a intentarem o golpe da Vilafrancada, com o qual se inicia a agonia da primeira experincia liberal lusa.

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  • 'Um manifesto militar de tropas do Rio de Janeiro, de [[-[[[-1821, includo entre os documentos deste volume.

    2 Mouzinho da Silveira ... , in op. cit.

    portuguesa, aps o que foraram a entrada no edifcio, onde encontraram o Conde e lhe significaram que o seu poder cessava, ficando doravante preso. Elegeu-se ento uma Junta provisional de governo, instalada desde a madrugada desse dia l6-IX-182l (a histria destes sucessos em Goa foi contada, em 1862, por Manuel Vicente de Abreu, em brochura que reproduzimos integralmente nos documentos deste volume). Quanto ao Brasil propriamente dito, a revoluo vintista encontrou eco favorvel, sendo aceite desde logo pelo Par, que proclamou o governo constitucional em Dezembro de 1820, a que se seguiu a Bahia, que tambm nomeou uma junta, embora ambas as provncias acatassem a autoridade soberana de D. Joo VI.

    Em Fevereiro de 1821 eclodia alis no Rio uma revoluo liberal, exigindo-se ali que o Brasil fosse dotado de uma constituio semelhante de Portugal'. O monarca cedeu, pedindo a D. Pedro para comunicar aos Brasileiros que a constituio lusa em elaborao seria extensiva ao reino do Brasil. D. Joo decide ento abandonar o Brasil, para onde partira cerca de 14 anos antes, deixando ali, como regente, o seu filho primognito, regendo o pas em nome de seu pai.

    Assim, a 26 de Abril, acompanhado de Carlota Joaquina, de D. Miguel e da sua numerosa corte, D. Joo atravessava o Atlntico, chamado pelo seu povo, agora em vias de se tornar - ou pelo menos proclamar-se - soberano. Chegou o monarca a Lisboa em Julho de 1821, no meio dos trabalhos da redaco da primeira constituio portuguesa. Mas s em Novembro de 1822 estaria a constituio terminada, numa altura em que j o Brasil se perdera, alis pela mo do regente ali deixado pelo vacilante D. Joo VI.

    2.4 A Constituio de 1822 e os limites do vintismo

    Nos constituintes tinha predomnio a classe burguesa, constituda por magistrados e juristas (39 membros), lentes e profisses liberais (21), clero (16), militares (lO), proprietrios (5), mdicos (6) e comerciantes (3). Este ltimo sector no estava portanto expressivamente representado no Palcio das Necessidades, transformado em assembleia, e futuro palcio real-, pelo que a burguesia comercial, afinal parteira do vintismo, no tinha representao social condigna na composio das nossas primeiras Cortes eleitas.

    No seu seio, desde logo se notaram dois partidos opostos, dos quais sairiam mais tarde as cls da vida partidria portuguesa, os futuros cartistas- (moderados) e os radicais (mais tarde setembristas. Herculano, futuro cartista, viu na Constituio de 22 um diploma impraticvel, quase republicano: Fez-se uma constituio quase republicana, mas perfeitamente inaplicvel ao pas 2 , o que , evidentemente, um exagero do nosso historiador, pelo menos no tocante ao seu alegado contedo republicanizante, mcula que os vintistas se precataram de banir dos seus propsitos, afinal sempre moderados. A ndole da maioria dos

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  • deputados seria alis conservadora, assegurou-o um estudioso deste perodo Joaquim de Carvalho 1.

    As suas bases, porm, largamente traduzidas da constituio gaditana de 1812, exprimindo poltica e tecnicamente os mesmos pressupostos. O nosso diploma consagrava:

    uma realeza tutelada, remetida para uma funo marginal, assistida por um conselho de estado que o monarca devia alis recrutar de uma lista proposta pelas Cortes;

    a soberania residia essencialmente na Nao (a frmula, que a constituio ditatorial de 1933 havia de retomar, quase ipissimis verbis, dizia que a soberania residia essencialmente na nao ...), o que retomava o princpio da constituio francesa de 1791;

    havia uma s cmara (o que fora proposto na constituio jacobina de 1793, a que nunca chegou a ser aplicada); esta tendncia unicamaral seria posteriormente eliminada dos nossos diplomas constitucionais at 1933, inclusive;

    cada legislatura duraria dois anos; adoptou-se o sistema gaditano da deputao permanente, encarregada de vigiar o comportamento do governo;

    o poder executivo era confiado ao rei e o judicial apenas aos juzes, e o poder legislativo s cortes;

    o rei tinha apenas um veto suspensivo na feitura das leis e o governo dependia das Cortes.

    Consagrava-se, deste modo, o princpio clssico liberal da separao dos trs poderes, com fundamento ltimo na soberania popular (ou nacional), donde todo o poder afinal derivava, em oposio ao velho princpio de que non est potestas nisi a Deo (todo o poder vem de Deus), legitimador do Antigo Regime e do princpio do direito divino dos reis.

    Em matria religiosa, declarava-se o Catolicismo religio do pas mas permitia-se a estrangeiros o culto privado de outras confisses.

    A constituio outorgada quatro anos depois, a Carta (1826), insistiria nestas ressalvas que, afinal, dificultavam o livre exerccio do culto aos Portugueses, tomado sempre qualquer culto no-catlico como confisso prpria apen?s de estrangeiros, como se no nosso pas houvesse que ser sempre, e s, catlico, apostlico e romano.

    No admira alis que a Constituio de 1822, apesar de todo o seu alegado maonismo - at a Constituio manica portuguesa, de 1821, foi apontada como uma das suas fontes -, se confessasse como tendo sido elaborada e publicada Em Nome da Santssima e Indivisvel Trindade (frmula usada, por exemplo, no pacto que em 1815, uniu os imperadores da Rssia e da

    I Histria de Portugal dirigida por Damio Peres. vol, VII, 1935.

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  • r li RIr

    I Documentos para a Histria das Cortes Portuguesas, tomo I. Lisboa, 1883. p. 481.

    ustria e o rei da Prssia na Santa Aliana, com o intuito de unir todas as naes interessadas em formarem um cordo sanitrio que evitasse novos surtos de liberalismo no velho continente ... : em nome da Santssima e Indivisvel Trindade), At que ponto podia ir o fito vintista de mudar sem destruir!

    Quanto ao Brasil, uma parte do texto constitucional dedicava-lhe especial ateno, o que se revelara rduo na altura em que foi discutida esta parte IV, em Junho de 1822. Os deputados brasileiros propunham que ao Brasil fosse reconhecido um congresso, de modo que haveria assim duas Cortes, uma de cada lado do Atlntico, cabendo ao regente do Brasil a sano das respectivas leis. Esta frmula consistia afinal numa espcie de federao, talvez inspirada no caso da Irlanda e da Inglaterra.

    Discutida desde Junho de 22, a proposta dos deputados brasileiros no teve acolhimento favorvel, pelo que a desunio luso-brasileira j se consagrava no prprio congresso constituinte, antes mesmo de se verificar na prtica:

    o comportamento de alguns deputados mais autonomistas chegaria a assumir a forma de rebelio, culminando numa fuga, pela calada da noite, de um grupo de deputados pelas provncias de S. Paulo, da Baa, Cear, Piaui, etc. (v.g., Antnio Carlos Ribeiro de Andrada, Jos Ricardo da Costa e Aguiar, F. Antnio Bueno, o P.e Feij, de So Paulo; Jos Coutinho, Cipriano Barata de Almeida e o P.e Francisco Gomes, da Baa, etc.), que se meteria a bordo do barco ingls Malboropugh, a caminho de Falmouth, onde publicariam dois manifestos contra a constituio portuguesa; de regresso ao Brasil, escalaram a Madeira, onde foram mal acolhidos pela populao local, lembra Jos de Arriaga numa passagem da sua facciosa e antibrasileira Histria da Revoluo Portuguesa de 1820 (Porto, 1889, vol. 4). Houve, porm, cerca de trinta deputados brasileiros que assinaram o texto constitucional luso. Recorde-se que nas Constituintes havia 65 deputados pelo Brasil e 16 pelas outras colnias portuguesas.

    Os trabalhos das constituintes estavam encerrados e a constituio j jurada pelo rei, quando se soube do gesto de D. Pedro junto do Ipiranga, o seu grito de independncia.

    A perda do Brasil consumara-se mesmo antes do diploma fundamental estar concludo, o que explica o tom catastrfico do presidente das Cortes, Francisco Trigoso de Arago Morato, ao encerr-las, dizendo que o gnio do mal, invejando a unio e a prosperidade da famlia portuguesa, ateou o horrvel facho da discrdia entre os nossos irmos do Brasil e pretendeu deste modo romper a unidade do imprio lusitano; quebra-se o corao com a dor, quando recordamos to fatais desastres, os quais agora a voz recusa repetir 1.

    A verdade que o desastre estava consumado. Ao proibir a D. Pedro que renunciasse regncia do reino do Brasil, as Cortes de Lisboa empurravam-no para o grito do Ipiranga (7-IX-1822).

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  • IllnUI I 11212.01 '.,:.>:.~-----------------------------Decidindo ficar e insurgindo-se contra a ordem dada por Lisboa no sentido de voltar a Portugal, o jovem infante D. Pedro, sentindo-se erguido nos escudos de uma opinio brasileira unnime, consumava assim a ruptura que seu pai involuntariamente iniciara ao abrir os portos braslicos ao comrcio mundial, treze anos antes. Para alm do texto propriamente dito da constituio, concluda em 9-VII-1822, aprovada em 23 de Setembro desse ano, jurada pelo congresso em 30-IX-22 e : do rei em 1 de Outubro, assim como, por D. Miguel - mas recusada por Carlota Joaquina, que assim se distanciava do liberalismo vintista e se assumia como a cabea visvel da contra-revoluo -, a Constituio de 22 fora complementada pelos trabalhos legislativos das constituintes.

    Em Abril de 1821 procurou-se dar uma machadada na base social do Antigo Regime com a primeira tentativa de supresso dos forais e outros privilgios feudais; e, no ms anterior, sem oposio, extinguira-se, sem polmica, a Inquisio, por proposta de Simes Margiochi, alis secundado pelo prprio Inquisidor, o tambm deputado Jos Maria Soares Castelo Branco, cnego da S de Lisboa (o texto desta medida votada a 24-111-1821 vem adiante nos nossos documentos). Neste sentido de eliminar o cruel tribunal confessional e aceitar um regime de tolerncia religiosa e tnica, houve ainda uma outra medida, proposta esta pelo deputado da Baa, Alexandre Gomes Ferro, no sentido de se pedir desculpa aos Judeus - e aos Mouros - pela expulso decretada por D. Manuel em 1496 e posta em prtica em 1497, a inqua expulso dos judeus, como dizia o texto, com os gravssimos danos e prejuzos que resultaram a este reino. A interessante proposta, no chegou porm a ser votada, ficando esquecida para sempre, pois nenhum historiador, mesma na linha liberal, a mencionou ainda (acrescente-se que, terminadas as Constituintes, Gomes Ferro regressou ao Brasil, onde o seu rasto alis se perde ...). (Essa proposta de 16-11-1821 vem nos documentos deste volume). Outras importantes medidas legais foram aprovadas pelas cortes extraordinrias e constituintes de 1821-22: a lei de liberdade de imprensa (14-VII-1821), a reforma dos forais (5-VI-21), a criao do Banco de Lisboa (31-XII-21), a lei eleitoral (11-VII-22), o primeiro esboo de extino dos conventos e das corporaes religiosas (24-X-1822), medidas tendentes a proteger a propriedade, a agricultura e a indstria; a inventariao dos bens nacionais, etc.

    2.5 Da Contra-Revoluo Usurpao

    Esta obra das Cortes extraordinrias, essencialmente legislativa, no tinha contudo capacidade de mudar a estrutura essencial do pas, de o reformar de alto a baixo, como em parte o fariam os legisladores de D. Pedro: o vintismo

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    foi, afinal, tmido nos seus propsitos de regenerao do corpo social, econmico e material do pas, ficando-se, como j o sublinhara Herculano, por declaraes jurdicas e por uma obra que era sobretudo negativa, na medida em que j no havia ingleses no exrcito, o rei j no estava no Brasil, etc. A abolio da Inquisio, aceita sem protesto - em Espanha foram bastante mais complexa as tentativas para a abolir, desde a ocupao napolenica at ao reinado de Maria Cristina, de modo que esta renitncia com que o Santo Ofcio espanhol se deixava liquidar comprova a sua coricea resistncia aos esconjuros legais dos reformadores ... -, era afinal uma medida relativamente fcil de levar a cabo, desacreditado como estava o velho e odioso tribunal religioso.

    O mais difcil estava em fazer perdurar as liberdades com que o vintismo engrinaldara a constituio e o prprio pas. A inocncia - ou a ingenuidade - dos vintistas foi sintetizada por Rebelo da Silva (1822-1870) em termos que vale a pena relembrar: Nunca houve revoluo to serena e repousada, to pacfica e unnime, como a de 24 de Agosto; e nenhuma caminhou tambm por meios mais suaves e regulares. Os deputados srios, convencidos e imperturbveis, no tiravam os olhos do Capitlio imaginrio, procedendo em suas deliberaes com tanta pausa e sossego como se contassem diante de si um sculo de existncia. O congresso, julgando-se santificado pelo dogma da soberania popular, e glorificado pelo prego popular de suas virtudes e sabedoria, juncava de espadanas e de palmas os trios do seu templo, acreditando que nenhum sacrlego se atreveria a alar o brao contra o altar, onde ardia perene e imaculado o fogo de Vesta dos novos ritos.

    O silncio ardiloso dos inimigos iludiu-o. Deixou fugir as ocasies, deixou evaporar em efervescncias efmeras o calor e a vida da revoluo, e, no se comovendo, como devia, com os perigos, deixou medrar os abusos e as conspiraes sem ferir uma s batalha contra eles. Em vez de aproveitar o tempo, as circunstncias e as boas disposies de D. Joo VI, contentou-se com a proclamao dos princpios, e embrenhou-se em questes de secundrio e remoto interesse.

    Deixou quase tudo como estava, e a liberdade descoberta e sem defesa defronte das cidadelas guarnecidas pelo partido apostlico. A sua mo, por desgraa, apenas se alou ousada para escrever nas pginas do cdigo fundamental as funestas prescries, cuja exagerao o fez abortar nascena. A organizao da guarda nacional em todo o Reino, a imediata reforma do sistema judicial, a dos impostos que oprimiam e devoravam a agricultura e as indstrias, e a extino dos erros e privilgios' consuetudinrios, cancros inveterados que roam a substncia pblica, deveriam ter sido os primeiros golpes aconselhados pela necessidade para justificao das esperanas concebidas com o movimento do Porto.

    Nada se demoliu, porm, e nada se fez! O congresso, audaz em declamaes, tmido e acanhado em actos, ficou no lao nacional, nos repiques de sinos e nos

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  • arcos de louro das iluminaes, abrindo alas aos agentes da santa aliana, para se introduzirem at em seu seio, explorando os defeitos do regulamento interno das sesses e agravando a confuso e a multiplicidade dos negcios. Pamplona, Seplveda e o baro de Molelos j representavam a esse tempo na Cmara e fora dela o pensamento da reaco.

    A Constituio, assim paralisada e reduzida a uma coleco de mximas tericas, no cumpriu nenhuma de suas promessas, nem produziu os bens que todos confiavam que seriam uma consequncia do seu estabelecimento 1.

    A Santa Aliana, aps o Congresso de Verona, decidira estrangular o liberalismo em Espanha. Nessa conformidade, como o dissemos j, Lus XVIII envia um exrcito comandado pelo seu sobrinho, o Duque de Angoulme, que penetra na pennsula em comeos de Abril (7-IV-1823) e avana para Madrid, onde chega a 23 desse ms. A 1 de Outubro a segunda experincia liberal espanhola findava, e Riego, o iniciador do pronunciamento de 1820, depois deputado s Cortes, de que chegara a ser presidente, foi entretanto aprisionado, julgado como ru de alta traio e condenado morte, sendo executado numa praa pblica em Madrid (7-XI-23), no meio dos insultos de uma multido que antes o aclamara.

    A interveno da Santa Aliana em Espanha soou tambm o dobre a finados do nosso liberalismo, ainda que este atravessasse um perodo bastante complexo desde essa data onminosa - 1823 - at usurpao levada a cabo por D. Miguel. No meio desse processo insere-se a outorga da Carta por D. Pedro (1826), aps a morte de seu pai D. Joo VI. esse perodo conturbadssimo, no qual se v at o regresso de uma expedio inglesa a Portugal, embora com o sentido oposto da invaso do Duque de Angoulme, uma vez que a presena do general William Clinton entre ns, desde Janeiro de 1827, se destinava a garantir a posio constitucional de D. Maria II ante os manejos de seu tio, o Infante D. Miguel - que passaremos agora a sumarizar, detendo-nos to s nos seus pontos cruciais, aps o que nos debruaremos sobre o contedo poltico da Carta outorgada pelo imperador do Brasil