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d o s s i ê ano 10 vol. 10 n. 28 p. 87-113 MAI. /ago . 2013 d o s s i ê Hibridações estéticas midiatizadas: diálogos entre música e quadrinhos Hibridaciones estéticas mediatizadas: diálogos entre la música y el cómic Midiatics aesthetics hibridations: dialogs between music and comics Laan Mendes de Barros 1 Resumo Reflexões sobre experiência estética na cultura midiatizada contem- porânea, ilustradas pela identificação e análise de produções que apresentam hibridizações entre música e história em quadrinhos. O objeto estético e a per- cepção estética em um contexto de hibridações culturais e interculturalidades. Interações entre criação e fruição, entre poética e estética de produtos midiáticos. Breve estudo de bandas brasileiras contemporâneas de música popular que com- binam sons, palavras e imagens visuais. Recuperação da obra Tubarões voado- res, de Arrigo Barnabé e Luiz Gê, de 1984, que pode ser vista como experiência paradigmática de hibridização entre visão e escuta no contexto da mídia. Palavras-chave: Experiência estética; Cultura midiatizada; Hibridação entre vi- são e escuta; Música e história em quadrinhos Resumen Reflexiones sobre la experiencia estética en la cultura mediatiza- da contemporánea, ilustradas por la identificación y el análisis de producciones que cuentan con hibridaciones entre la música y el cómic. El objeto estético y la percepción estética en un contexto de hibridación cultural y interculturalidades. Interacciones entre la creación y la recepción, entre la poética y la estética de los productos de los medios de comunicación. Breve estudio de grupos musicales brasileños contemporáneos que combinan música jovem, palabras y imágenes vi- suales. Recuperación de la obra Tubarões voadores de Arrigo Barnabé y Luiz Gê, 1 Doutor em Ciência Sociais da Comunicação pela ECA-USP, com pós-doutorado na Université Stendhal – Grenoble 3, na França. Professor titular e docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Uni- versidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP, Brasil; [email protected]

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    Hibridaes estticas midiatizadas: dilogos entre msica e quadrinhos

    Hibridaciones estticas mediatizadas: dilogos entre la msica y el cmic

    Midiatics aesthetics hibridations: dialogs between music and comics

    Laan Mendes de Barros1

    Resumo Reflexes sobre experincia esttica na cultura midiatizada contem-pornea, ilustradas pela identificao e anlise de produes que apresentam hibridizaes entre msica e histria em quadrinhos. O objeto esttico e a per-cepo esttica em um contexto de hibridaes culturais e interculturalidades. Interaes entre criao e fruio, entre potica e esttica de produtos miditicos. Breve estudo de bandas brasileiras contemporneas de msica popular que com-binam sons, palavras e imagens visuais. Recuperao da obra Tubares voado-res, de Arrigo Barnab e Luiz G, de 1984, que pode ser vista como experincia paradigmtica de hibridizao entre viso e escuta no contexto da mdia.

    Palavras-chave: Experincia esttica; Cultura midiatizada; Hibridao entre vi-so e escuta; Msica e histria em quadrinhos

    Resumen Reflexiones sobre la experiencia esttica en la cultura mediatiza-da contempornea, ilustradas por la identificacin y el anlisis de producciones que cuentan con hibridaciones entre la msica y el cmic. El objeto esttico y la percepcin esttica en un contexto de hibridacin cultural y interculturalidades. Interacciones entre la creacin y la recepcin, entre la potica y la esttica de los productos de los medios de comunicacin. Breve estudio de grupos musicales brasileos contemporneos que combinan msica jovem, palabras y imgenes vi-suales. Recuperacin de la obra Tubares voadores de Arrigo Barnab y Luiz G,

    1 Doutor em Cincia Sociais da Comunicao pela ECA-USP, com ps-doutorado na Universit Stendhal Grenoble 3, na Frana. Professor titular e docente do Programa de Ps-graduao em Comunicao Social da Uni-versidade de So Paulo USP, So Paulo, SP, Brasil; [email protected]

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    de 1984, que puede ser tomada como una experiencia paradigmtica de la hibri-dacin entre la visin y la escucha en el contexto de los medios de comunicacin.

    Palabras-clave: Experiencia esttica; Cultura mediatizada; Hibridacin entre visin y escucha; Msica popular y el comic

    Abstract Toughts about the aesthetic experience in the contemporany midi-atized culture, ilustrated by the identification and the analysis of productions that presents an hidridization between music and comics. The aesthetic object and the aesthetic perception in a context of cultural hibridations and intercultur-alities. Interactions between criation and fruition, between poetic and aesthetic of midia products. A brief study of brazilian comtemporany bands of popular music that mash up sounds, words and visual images. Bringing back the album Tubares voadores, from Arrigo Barnab and Luiz G, from 1984, that can be viewed as a paradigmatic experience of hibridization between vision and hearing in the midia context.

    Keywords: Aesthetic experience; Midiatized culture; Hibridation between vision and hearing; Music and comics

    Data de submisso: 15/04/2013Data de aceite: 17/05/2013

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    Introduo

    Neste artigo retomamos reflexes trabalhadas em outras ocasies (BAR-ROS, 2011, 2012a e 2012b) sobre as relaes entre potica e esttica dos produtos miditicos e a produo de sentidos experienciada no contexto da recepo, a partir dos ensinamentos de Mikel Dufrenne (1992). Nesta ocasio, aprofundamos a discusso a respeito da midiatizao da cultura e da natureza hbrida que ela assume na contemporaneidade fatores que nos ajudam a compreender os processos de criao e recriao de produes artsticas presentes na mdia. Em especial, focamos a questo da hibridizao entre viso e escuta na cultura midiatizada, uma das perspectivas previstas para o dossi desta edio de Comunicao, Mdia e Consumo.

    Para tanto, transitamos entre conceitos que apontam para a natureza plural e difusa da cultura nestes tempos de convergncia miditica e in-terconexo em escala global, de hibridaes tecnolgicas e intercultura-lidades. Tambm retomamos os conceitos de mediaes e midiatizao, bem presentes nas formulaes de Jess Martn-Barbero e Jos Luiz Bra-ga, que podem nos ajudar a estabelecer nexos entre experincia esttica e o que temos chamado de experincia potica nos estudos dos processos e produtos miditicos. Por outro lado, incorporamos novas leituras do filsofo alemo Hans-Georg Gadamer, do filsofo francs Jacques Ran-cire e do comuniclogo catalo Josep Mara Catal Domnech.

    A ttulo de ilustrao, ensaiamos neste texto alguns exerccios de apli-cao das formulaes sobre experincia esttica com as quais lidamos, realizados na forma de breves anlises de produes artstico-miditicas recentes que mesclam msica popular e histria em quadrinhos. Como contraponto a essas novas experincias potico-estticas, trazemos, de maneira mais detalhada, uma criao de Arrigo Barnab e Luiz G, de 1984, intitulada Tubares voadores.

    Nos estudos contemporneos dos fenmenos miditicos tem sido fre-quente a articulao entre comunicao e cultura visual. A proliferao de meios e aparatos audiovisuais caracterstica da sociedade interconec-tada em rede tem criado novos ambientes para a produo e o consumo

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    de bens culturais, com especial presena de linguagens visuais. Mas vale observar como essas visualidades se articulam com sonoridades tambm presentes na cultura midiatizada contempornea.

    So muitas as manifestaes de hibridao cultural e tecnolgica na mdia contempornea. Alguns meios so essencialmente hbridos, seja no aspecto tecnolgico, ou na combinao de linguagens. Vivemos tem-pos de multimdia, de experincias poticas e estticas que no mais se enquadram em categorias e gneros fechados. Se tal complexidade j estava presente no cinema e em outros meios audiovisuais, no mundo da Web ela se aprofunda e se dinamiza, articula informao e entreteni-mento, intensifica dimenses ldicas e onricas. Nesse amplo universo tm nos chamado a ateno experincias estticas hbridas que articu-lam msica e histria em quadrinhos. verdade que a combinao en-tre msica e imagem j estava presente nos videoclipes, to difundidos no universo televisivo. No entanto, o jogo entre canes e histria em quadrinhos ilustra bem as reflexes que aqui trazemos sobre objetos e percepes hbridas da cultura presente na atual sociedade em midia-tizao.

    Objeto esttico, percepo esttica: criao e recriao

    Para subsidiar a discusso sobre a natureza hbrida da cultura contem-pornea presente na mdia e as dinmicas de produo e consumo mar-cadas por processos de constante recriao, recuperamos aqui elementos da fenomenologia da experincia esttica proposta pelo filsofo francs Mikel Dufrenne. Daquela obra paradigmtica, publicada em 1953, re-lembramos os ttulos dos dois volumes: I) Lobjet esthtique (1992a) e II) La perception esthtique (1992b), que identificam bem as duas dimen-ses s quais o pensamento esttico se dedica: a obra produzida pelo artista e sua fruio por parte do receptor. A relao dialtica entre ob-jeto esttico e percepo esttica elemento essencial do pensamento de Dufrenne, que valoriza os processos de interpretao vivenciados no campo da fruio. Para ele, artista e espectador se associam e comparti-lham a obra de arte.

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    O espectador , portanto, um sujeito ativo que vivencia nova poiesis no contexto da aisthesis. Ele dialoga com o autor, a partir da interpreta-o da obra, produzindo novos sentidos, sempre que busca o entendi-mento na perspectiva da compreenso, para alm da mera recuperao dos sentidos propostos pelo autor, como ocorre na chave da explicao. O receptor pode ser visto como um espectador emancipado, conforme nos prope Jacques Rancire, uma vez que agente dos processos de ob-servao, seleo, comparao e interpretao do objeto esttico, a partir de seu campo semntico e seu universo de representaes:

    O espectador tambm age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele obser-va, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que v com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compe seu prprio poema com elementos do poema que tem diante de si. Partici-pa da performance refazendo-a sua maneira, furtando-se, por exemplo, energia vital que esta supostamente deve transmitir para transform-la em pura imagem e associar essa pura imagem a uma histria que leu e sonhou, viveu ou inventou. Assim, so ao mesmo tempo espectadores distantes e intrpretes ativos do espetculo que lhes proposto. (RAN-CIRE, 2012, p. 17).

    A questo da interpretao, que coloca o espectador-receptor em uma relao dialtica e dialgica com o artista-emissor, remete-nos ao campo de hermenutica. Se o artista interpreta a vida, a natureza, em sua obra, a partir de seu campo de representaes, o espectador interpreta a obra luz de suas perspectivas de vida e insero social. Com isso, a produo de sentidos se d na esfera da fruio, que no se limita, por certo, a um estado contemplativo na perspectiva do pensamento idealista do espectador frente obra. Como afirmamos anteriormente (BARROS, 2012a, p. 5), a fruio implica o exerccio de apropriao e de socializao da produo de sentidos, que ganha, ento uma dimenso coletiva e cultural. O uso da hermenutica nos estudos dos fenmenos artsticos e comunicacionais tem crescido e permitido adensar nossa compreenso sobre a produo de sentidos em relao aos produtos artsticos presentes na cultura midiatizada. Os ensinamentos de Hans-Georg Gadamer em Hermenutica da obra de

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    arte (2010) nos ajudam a compreender a relao dialtica e dialgica que se d na interao artista-obra-espectador:

    Ns somos como que inseridos pela obra em um dilogo. Com isso, se devemos descrever corretamente a oposio aparente entre uma obra de arte ou uma obra literria e seu intrprete, a estrutura do dilogo no de maneira alguma ampliada a tal ponto que acaba por se tornar va-zia. Esta oposio em verdade uma relao recproca de participao. Como acontece em todo dilogo, o outro sempre um ouvinte que vem ao encontro, de modo que o seu horizonte de expectativa, horizonte por qual me escuta, por assim dizer acolhe e modifica concomitantemente a minha prpria inteno de sentido. [...]Isto tambm me parece vlido no caso da nossa lida com as obras. O ter-mo tcnico que costumamos utilizar para tanto comunicao. Comuni-cao no significa: aprender, conceber, apoderar-se e colocar disposi-o, mas sim participar do mundo comum em que nos compreendemos. (GADAMER, 2010, p. 141).

    A obra se apresenta, ento, mais do que como um meio de transmis-so para o referido dilogo entre os dois sujeitos as duas pontas da produo de sentidos. Ela pode ser pensada na perspectiva das media-es, tal qual nos prope Jess Martn-Barbero (1997), em seu clssico deslocamento, dos meios s mediaes. O dilogo, como nos ensina Gadamer, pressupe uma relao de alteridade. Os interlocutores vo ao encontro um do outro, colocam-se no lugar do outro. O receptor compa-rece com o seu horizonte de expectativas, que incorpora um complexo conjunto de mediaes socioculturais. As expectativas com as quais se confronta com a obra, em dilogo com o artista, so balizadas por essas mediaes. E, assim, na percepo esttica, o espectador acolhe e reela-bora os sentidos do objeto esttico, que pode ser pensado na perspecti-va da comunicao, entendida como dilogo, no qual os interlocutores compartilham os sentidos, que se tornam comuns a eles. Sentidos que so compartilhados, tambm, pelos sujeitos com suas comunidades de apropriao, em seus contextos sociais. Dessa forma, o processo de cria-o se desdobra em constante recriao, como uma obra aberta (ECO, 1968), na qual a autoria original da obra se dilui, ao mesmo tempo em que se enriquece pelas interpretaes que a obra recebe.

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    Essas dinmicas de recriao potico-esttica trazem tona a ideia de inteligncia coletiva formulada por Pierre Lvy (1998). O autor francs ficou bem conhecido por conta de suas reflexes sobre a cibercultura, em que os saberes circulam em sistema de rede. Se o conhecimento na sociedade interconectada resultante de uma inteligncia coletiva ao mesmo tempo em que a alimenta , poderamos falar de sensibilida-des coletivas, quando nos referimos ao universo das artes, disponveis no universo miditico, dinamizado pelas navegaes em escala global.

    no contexto social, em que esto inseridos os sujeitos dos processos sgnicos, que a experincia esttica se concretiza. Como sustenta Jos Luiz Braga (2006), vivemos em uma sociedade em constante midiatiza-o, na qual os sentidos circulam em um processo constante de ressig-nificao, balizado por um sistema de interao social sobre a mdia. Para ele:

    A sociedade dispe (pelo menos potencialmente) de processos de enfren-tamento que, por sua pluralidade mesmo, por pouco que haja (ou hou-vesse) acesso a essa diversidade, seriam estimuladores de reflexo, cotejo e aprendizagem. Os dispositivos sociais elaboram mltiplas perspectivas e as fazem circular. (BRAGA, 2006, p. 307-308).

    Nesse confronto entre sociedade e mdia os processos de recriao e produo de sentidos ainda so marcados por relaes de domina-o e subordinao. Por vezes, como comentamos a partir das ideias de Rancire, o espectador no se encontra emancipado, permanece embrutecido. Vivemos em uma sociedade de culturas hbridas, como descreve Nestor Garca Canclini (2008), em que o atraso e a moderni-dade ocupam o mesmo espao, em relaes de conquistas e resistncias. J Octvio Ianni prefere pensar que vivemos processos constantes de transculturao, ao pensar as ideias de contato, intercmbio, permuta, aculturao, assimilao, hibridao e mestiagem. Tal denominao aponta a natureza transversal dessas relaes interculturais, que nem sempre se do de forma pacfica, mas resultam de negociaes, con-vencimentos, concesses e conquistas. Para Ianni, a histria dos povos e coletividades, das naes e nacionalidades, ou das culturas e civiliza-

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    es pode ser lida como uma histria de um amplo processo de trans-culturao. (IANNI, 2000, p. 99).

    HQ Arte sequencial Comics Graphic novel

    Adotamos neste texto o termo histria em quadrinhos, de maneira ge-nrica, sem maiores discusses conceituais ou histricas. No entanto, embora no pretendamos aprofundar o estudo nesse campo da indstria editorial, convm identificar, ainda que brevemente, algumas termino-logias presentes no universo desse gnero de arte-literatura, que mistura narrativas textuais e linguagem iconogrfica.2

    O termo Histria em Quadrinhos ou simplesmente HQ utiliza-do por vrios autores do mundo acadmico. Dentre eles, pesquisadores vinculados a Programas de Ps-Graduao da rea da Comunicao no Brasil. o caso, por exemplo, de Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, de Roberto Elisio dos Santos, de Marcos Antonio Nicolau e de Henrique Paiva de Magalhes. A denominao acaba sendo utilizada de maneira ampla, para identificar desde as breves narrativas em formato de tiras cmicas, presentes nos jornais impressos, at densas obras de literatura, estruturadas em captulos, que usam a linguagem dos quadrinhos e so editadas em livros volumosos, com encadernao de luxo. Nesse amplo leque de formas e dimenses, o formato revista o mais comum, ocu-pa lugar de destaque. No Brasil, tais publicaes vendidas em bancas, a preos acessveis, receberam o nome de gibi. Elas tm natureza seria-da, com narrativas estruturadas em torno de personagens em grande parte, personagens heroicos que se tornam emblemticos.

    O fundamental na identificao desse meio de comunicao, a his-tria em quadrinhos, a presena da narrativa como ocorre com toda histria estruturada em quadros sequencializados, compostos por ima-gens visuais e, quase sempre, elementos verbais. Na linguagem iconogr-fica das HQs, observa-se a predominncia de desenhos figurativos, que

    2 Na discusso dos conceitos arte sequencial, comics e graphic novel, contamos com a colaborao de Iber Moreno Rosrio e Barros, mestrando do PsCom da Metodista e pesquisador do Ncleo de Estudos de Poltica, Histria e Cultura POLITHICULT, da PUC-SP.

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    compem com outros elementos visuais mais abstratos, como o prprio formato dos quadros e dos bales que abrigam expresses verbais fa-ladas ou pensadas pelos personagens. Em alguns, a linguagem grfica mescla desenho e fotografia na composio de imagens visuais. Os ele-mentos grficos tambm exploram cores e texturas visuais. As prprias letras ganham formato visual, que atribuem outros sentidos ao texto.

    O menino quadradinho, de Ziraldo (1989), um excelente exemplo desse jogo entre elementos verbais e no verbais nas histrias em qua-drinhos. Nesse livro, o autor vai migrando das imagens para o texto ao longo da narrativa, na medida em que o personagem passa da infncia idade adulta. Ziraldo recorre metalinguagem, ao utilizar traos mais infantis no incio da histria que comea com a expresso clssica era uma vez... que se sofisticam no momento em que o personagem passa pela juventude. Depois, gradativamente, as imagens vo dando lugar s palavras escritas, com as letras diminuindo de tamanho pouco a pouco. Nas pginas iniciais temos uma histria em quadrinhos; j nas pginas finais, temos um bloco de texto, delimitado por margens, no formato convencional da ampla maioria dos livros.

    A histria em quadrinhos tem seus primrdios nas caricaturas e char-ges publicadas nos jornais, ainda no sculo XIX. Como relata Henrique Magalhes (2009, p. 45), ela aparece no Brasil naquele mesmo perodo, com forte crtica poltica e social, aproximando-se da charge e do car-tum. O pesquisador registra que

    As primeiras dcadas do sculo XX viram surgir outros gneros de quadri-nhos, com o desenvolvimento da imprensa e a criao de distribuidoras, os chamados syndicates. [...] Se inicialmente os quadrinhos sugeriam uma leitura crtica e em seguida infantil, logo conquistaram o pblico juvenil, veiculando histrias heroicas e fantsticas. (MAGALHES, 2009, p. 45).

    Em meados do sculo XX, as histrias em quadrinhos se populari-zaram, em diferentes partes do mundo, como produto de destaque da indstria cultural. As narrativas com super-heris deram grande impulso ao gnero, criando cones da cultura pop, presentes no cenrio cultural at os nossos dias. Nos EUA duas editoras se tornaram hegemnicas no

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    campo das HQs, a DC Comics e a Marvel Comics, e difundiram seus produtos mundo afora; e com eles, a ideologia estadunidense, no contex-to da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, que contrapunha dois modelos poltico-econmicos: capitalismo e comunismo.

    nesse segmento que a denominao comics se aplica e se expande no universo das HQs. Ele adotado para designar os quadrinhos mains-tream (populares, prprios da indstria do entretenimento). Original-mente, essa modalidade de histria em quadrinhos era caracterizada por abordagens de cunho mais cmico, humorstico. Porm, com o tempo, houve uma desvinculao e o termo passou a ser usado de maneira mais ampla. Os comics so conhecidos por trabalharem em arcos de hist-ria; ou seja, a jornada do heri contada e recontada diversas vezes por diferentes roteiristas e desenhistas, perdendo assim a natureza autoral presente na exclusividade do criador do personagem. Assim, novos pro-dutos com contedo j conhecido so disponibilizados no mercado.

    J o quadrinhista e estudioso Will Eisner referncia no mundo dos quadrinhos traz a expresso arte sequencial. Em seu livro Quadri-nhos e arte sequencial (EISNER, 2010, p. 122), ele sustenta que as duas dimenses, escrita e imagem, esto irrevogavelmente entrelaadas na arte sequencial, vista por ele como o ato de urdir um tecido. A ideia de arte sequencial sugere uma sintaxe prpria das HQs, que demanda uma semntica plena de imaginao, pois na passagem de um quadro a outro, no intervalo ali existente, muitos sentidos podem ser elaborados. como se fossem as entrelinhas dos textos verbais. No objeto esttico, a fragmentao da ao em quadros estanques, em imagens estticas, faz com que partes da ao fiquem escondidas, reelaboradas apenas no exer-ccio de interpretao do leitor.

    Graphic novel outro termo que merece a nossa ateno. Trata-se de produes de maior complexidade, publicadas em livros, com persona-gens mais densos e histrias mais elaboradas. A estrutura dessas verda-deiras obras de literatura se aproxima bastante dos livros, com captulos, prefcios etc. Alm da narrativa principal, tais publicaes trazem infor-maes complementares como hipertextos sobre o contexto em que o texto se insere. Por vezes, a narrativa principal entrecortada por

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    outras narrativas transversais. Diferentemente dos Comics, publicados em revistas, as Graphics novel mantm um carter autoral por parte do criador da histria e dos personagens que dela fazem parte. Dois grandes expoentes desse segmento so Alan Moore e Frank Miller.

    O gnero vem crescendo, com o surgimento de novos autores e esti-los, ganhando reconhecimento da crtica e novos adeptos. Dentre lana-mentos recentes, destacamos duas obras de Craig Thompson, Retalhos e Habibi, e uma obra de Chris Ware, Jimmy Corrigam: o menino mais esperto do mundo.

    Msica e quadrinhos: experincias hbridas

    Trazemos aqui quatro bandas musicais contemporneas brasileiras que realizam experincias potico-estticas que mesclam msica e histria em quadrinhos, som e artes visuais. So elas: Maraska, Loungetude 46, X-Sampa e Pedra. Tais grupos se inserem em um espao alternativo do cenrio cultural, ocupando territrios sonoros e artsticos bem carac-tersticos, meio undergrounds, que se situam margem das dinmicas comerciais da indstria cultural e atraem um pblico especfico, predo-minantemente jovem, articulado por meio de redes de relacionamento. Essas bandas tm o seu nicho, ocupam espaos de criao artstica e de escuta segmentados, independem dos meios de comunicao de massa.

    Essas experincias estticas como outras que escapam das frmu-las descartveis da indstria cultural so concretizadas em objetos e percepes estticas que mesclam linguagens e sensaes, que se abrem para dimenses ldicas e onricas presentes na produo de sentidos, nos planos da poiesis e da aisthesis, da criao e da recepo.

    As referidas bandas chamaram a nossa ateno a partir de um co-mentrio do jornalista Gilberto Dimenstein na rdio CBN, que foi ao ar em 12 de novembro de 2012, no qual ele divulgava uma srie de shows que aconteceriam no Sesc Consolao, na cidade de So Paulo, e fazia a chamada para o site Catraca Livre, que disponibilizava a programa-o completa do evento. No site, uma matria trazia o ttulo Esttica dos quadrinhos na msica inspira a srie HQ Show e o lead meio

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    subttulo Evento traz bandas que dialogam com as duas linguagens. Como estvamos s voltas com a temtica da hibridao miditica e cul-tural e havamos, naquela poca, reencontrado um velho disco de vinil de Arrigo Barnab, com seu belo encarte, o assunto nos atraiu.

    Do grupo Maraska, selecionamos o vdeo Contos e cantos do Maraska: Pscircodelia, que traz uma sntese de seu CD-livro: Pscircodelia, publi-cado pela editora Devir, disponvel em: . A pea audio- visual tem incio com uma sonora que reproduz o toque de um desperta-dor, redundada por inscries textuais bip...bip...bip. No desenho, com imagens estticas em sequncia, o personagem que nunca aparece de corpo inteiro se levanta da cama, bravo com a situao, e passa a rea-lizar as rotinas do incio do dia. Ele dialoga com o espectador e com a prpria narrativa em movimentos de metalinguagem. Em determinado momento do clipe, vem uma breve nota que apresenta o CD-livro HQ e a proposta da prpria banda como uma narrativa VISUAL e MUSICAL. A banda multimdia Maraska mostra seus contos por meio da arte repre-sentada pelos quadrinhos, msica, vdeos e performances.... Seguem-se rpidas aparies dos componentes da banda e uma sinopse da obra. O livro HQ, que reproduz elementos de Graphics novel, traz a histria de um quadrinhista que coloca a sua sanidade em xeque quando suas histrias so invadidas por um enigmtico palhao. As histrias-canes do Maraska so povoadas por fadas, seres fantsticos e personagens cir-censes. Os quadrinhos compem no s o cenrio visual das msicas, mas esto refletidos na dimenso ldica que elas trazem.

    A banda Loungetude 46 que traz no nome uma referncia loca-lizao da cidade de So Paulo tambm incorpora a mdia impressa em seus lanamentos musicais. O disco Ao e reao acompanhado de um livreto, com as letras das msicas, ilustradas com imagens que seguem o estilo das histrias em quadrinhos. verdade que a ideia da arte sequencial fica menos evidente, uma vez que cada pgina traz uma composio grfica. No entanto, os personagens integrantes da prpria banda , em representaes caricatas, do ao caderno um carter de HQ. A msica requintada em termos meldicos e harmnicos, mescla ele-

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    mentos de jazz e ritmos brasileiros. As letras so elaboradas e guardam uma dinmica prpria dos jogos e brincadeiras. Os arranjos so limpos, sem complicaes. O clima descontrado e reflete a informalidade do universo dos quadrinhos.

    J a banda X-Sampa tem a articulao msica-quadrinhos em seu prprio processo produtivo e nas dinmicas de shows. Em seu site, a ex-posio de msicas se mescla com imagens de HQ, presentes tambm em camisetas e peas de decorao, e mapas que sugerem passeios pela cidade, algo prximo do universo videogame. Os msicos so tambm desenhistas. Suas produes de HQ foram transformadas em painis, levados a exposies pblicas, onde a banda toca composies pre-dominantemente instrumentais feitas a partir das imagens que esto expostas. Um vdeo da banda, disponvel no YouTube, documenta bem esse processo produtivo, que articula experincia potica e experincia esttica, em dinmicas de criao e recriao. A exposio, denominada Sopa graphics, ganha um carter performtico e reflete a dinmica de trabalho da banda. Os integrantes relatam como a msica realimenta as HQs e como as HQs impulsionam a msica do grupo. O vdeo es-t disponvel em: . Mais do que um produto acabado, editado em CD ou livro, a produo da X-Sampa aparece como um processo em constante construo, pleno de hibridaes semiticas e culturais.

    A banda Pedra assume mais explicitamente a linguagem do rock, em releituras de clssicos da MPB e composies prprias. Aqui seleciona-mos a interpretao da msica Cuide-se bem, de Guilherme Arantes, que tem um belo clipe disponvel no YouTube: . A pea feita em linguagem HQ tem um carter plstico, que casa msica e imagem de maneira harmnica e bem acabada, embora produzida de forma artesa-nal. A interpretao da banda montada na estrutura clssica das ban-das de rock tem intensidade e peso. Alm da interpretao competente do cantor, os solos de guitarra e viradas de bateria envolvem os amantes do gnero. A narrativa dos versos da cano ilustrada com imagens de arte sequencial, que ganham animao no vdeo produzido.

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    Tubares voadores

    bem provvel que muitos dos admiradores das bandas anteriormente descritas nem tenham ouvido falar do compositor Arrigo Barnab e do desenhista Luiz G; tampouco, do emblemtico disco Tubares voadores (um long-play, de vinil). Talvez a maioria dos seguidores das bandas Ma-raska, Loungetude 46, X-Sampa e Pedra nem tivesse nascido em 1984, quando o referido disco foi lanado. Mas vale a pena trazer para esta reflexo aquela produo, em especial, a msica-HQ Tubares voadores. Trata-se de uma obra paradigmtica quando se pensa em experincias estticas hbridas, com a combinao de msica e histria em quadri-nhos. Uma obra que ilustra bem a ideia inteligncia coletiva apresen-tada por Pierre Lvy (1998).

    A influncia do cinema e dos Comics j estava presente na atmosfera e linguagem da msica do compositor paranaense, que havia se mudado para So Paulo e se juntado a outros msicos experimentais indepen-dentes, que se reuniam no teatro e centro cultural Lira Paulistana, e criaram um movimento cultural que, nos anos 1980, ficou conhecido como Vanguarda Paulistana. O movimento que foi saudado como gran-de novidade no cenrio musical brasileiro, desde a Tropiclia, contava tambm com nomes como Itamar Assumpo, N Ozzetti, Tet Espn-dola e Eliete Negreiros, e com grupos musicais como Lngua de Trapo, Rumo, e Premeditando o Breque. Na mesma esteira surgiram as bandas de rock daquele perodo, tais como Ira!, Ultraje a Rigor e Tits.

    H trs quadras do Lira Paulistana, na mesma rua Teodoro Sampaio, mantnhamos com dois amigos um ateli de artes plsticas, aps forma-o na Faculdades de Belas Artes de So Paulo. Msica e pintura preen-chiam aquele espao, davam forma esttica ao nosso tempo. O advento da msica independente, com as primeiras produes fonogrficas re-alizadas margem das grandes gravadoras, chamava a nossa ateno. O pioneiro dessa iniciativa foi Antonio Adolfo, com o disco Feito em casa, que tenho at hoje. Dentre aqueles desbravadores, o grupo Boca Livre foi o que mais nos acompanhou, como trilha musical para a vida. Eram tempos de rupturas, de conquistas da liberdade e de mobilizao polti-

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    ca. Tempos de experimentao e de dilogos entre linguagens artsticas, nos quais o espao cultural do Lira Paulistana era ponto de referncia.

    O primeiro disco de Arrigo Barnab, intitulado Clara Crocodilo, ain-da frequentava nossa vitrola e seguia nos surpreendendo quando o segundo, Tubares voadores, chegou s nossas mos, pouco tempo aps ter sido lanado, em 1984. O encarte do disco, em formato revista, tinha a maioria de suas pginas dedicadas msica tema do lbum, Tubares voadores. Elas so reproduzidas a seguir (Figuras 1 a 6).

    A cada nova audio-leitura daquela produo artstica, feita a partir do tempo-espao em que se encontra o leitor, novos sentidos so produ-zidos. Cada leitor, em interao com seus grupos de relacionamento, suas comunidades de apropriao, efetiva uma nova percepo esttica a cada nova experincia de escuta-leitura. Justifica-se, portanto, a incluso da histria em quadrinhos de Luiz G, sem maiores direcionamentos de nossa parte, nas pginas que se seguem. Assim o leitor de nosso artigo poder, tambm, fazer suas interpretaes. Para completar tal experi-ncia esttica, indicamos o vdeo preparado pelo msico e videomaker fluminense Jeffin Rodegheri (Jefferson Marques Rodegheri), com uma montagem daquela criao de Arrigo Barnab e Luiz G, disponvel em: .

    Conforme documenta o pesquisador Iber Moreno Rosrio e Barros, no artigo Dodecafonia e Quadrinhos, publicado no blog Quadrinheiros, que ele assina como Sidekick,

    Arrigo j havia acertado que a capa de seu segundo lbum seria feita por Luiz G. Ao visit-lo um dia para definir como seriam as ilustraes, o compositor v um quadrinho que G havia feito baseado em um comen-trio de um amigo. O comentrio era de um pster que G tinha, no qual figuravam alguns avies dos Flying Tigers (esquadrilha americana de voluntrios que foram destacados para defender a China durante a Se-gunda Guerra Mundial). Inspirado pelo comentrio de que deveria haver uma HQ sobre eles, Luiz G tem a ideia de colocar Tubares voadores em meio a uma cidade.Arrigo ento resolve musicar os quadrinhos, e coloca o nome do seu se-gundo lbum de Tubares voadores. Junto ao LP vinha um encarte com os quadrinhos completos. (ROSRIO E BARROS, 2012).

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    Figuras 1 a 6. Histria em quadrinhos Tubares voadores, de Luiz G no encarte do disco de Arrigo Barnab, que leva o mesmo nome.

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    O autor considera Tubares voadores uma experincia que mistura o visual com o auditivo e com o surrealismo caracterstico da msica dodecafnica de Arrigo Barnab. Ele tambm apresenta no blog uma imagem ilustrativa dos Flying Tigers, reproduzida abaixo (Figura 7).

    De fato, aquela produo compartilhada de Arrigo Barnab e Luiz G tinha mesmo um carter inovador; seja pela linguagem musical do compositor, que mesclava referncias meldico-harmnicas da msica clssica contempornea (que ele trazia de sua formao em composio e regncia, na ECA-USP) com elementos de rock e msica eletrnica, se-ja pela ideia surrealista do desenhista em propor tubares voadores flutu-ando entre os prdios, em uma linguagem ao mesmo tempo dramtica e cmica, como em uma tragicomdia. A fruio dessa obra hbrida, com-posta de msica e histria em quadrinhos, constitui-se em experincia esttica mpar, pois o objeto esttico permite diferentes leituras, dada a sua complexidade. Algo raro na poca em que o disco foi lanado. Nota--se que a composio de Arrigo Barnab no funciona apenas como um fundo musical da narrativa composta em quadrinhos de Luiz G. Msica e HQ funcionam em simbiose, formam uma pea nica. Uma carrega de dramaticidade a outra. Uma ironiza a outra, como em um movimento

    Figura 7. Avies da esquadrilha americana que ficou conhecida como Flying Tigers (Foto de R. T. Smith).

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    antropofgico. O objeto esttico, assim complexo e pleno de hibridaes, cria um ambiente envolvente para a percepo esttica; em uma potica que convida a uma esttica de natureza at mesmo catrtica.

    A criao iniciada com a arte sequencial de Luiz G, que fora mu-sicada por Arrigo Barnab, ganha na interpretao da banda Sabor de Veneno novos sentidos, trazidos pela execuo do arranjo do composi-tor, em que cada msico acaba inserindo suas intenes e expresses. A voz principal de Vnia Bastos que, ento, integrava a banda e as locues e contracantos do prprio compositor. At Luiz G comparece na gravao, so dele os gritos de dor que surgem a cada ataque dos tu-bares, a cada mordida ou dilacerao. Gritos de medo, de pavor. Tudo ocorre em um cenrio surrealista, meio circense, que mesclam sons da cidade, de crianas brincando no parque e citaes de cantigas de roda.

    J na narrativa visual dos quadrinhos de Luiz G, o realismo do ce-nrio, composto por edifcios bem representados, em perspectiva, quase fotogrfica, contrasta com o trao caricato e cmico dos personagens, que nos remetem linguagem dos cartuns. Os tubares que voam entre os prdios e dilaceram os corpos tambm seguem um trao figurativo realista, com competente uso dos contrastes, dos jogos de luz e sombra, que lhes confere maior dramaticidade. Fica evidente a aproximao do desenho s formas presentes na linguagem cinematogrfica dos filmes de terror. As imagens extrapolam os quadros, como invadindo o espao do leitor, colocando-o tambm em risco. como se ele tambm fizesse parte da cena e da histria como um todo. Os elementos textuais da nar-rativa ganham formas grficas, prprias da linguagem HQ, so mais que letras silenciosas. So gritos e gemidos, rudos e sonoridades ali represen-tados de forma que j produziriam uma dimenso acstica no processo de leitura da pea grfica, mas que ganham novas dimenses quando a leitura acompanhada pela escuta da msica, em uma nova experincia esttica de natureza hbrida.

    Aquela obra visual-musical, que experimentara diferentes reelabora-es no processo de sua produo e gravao e que, por certo, era rein-ventada a cada execuo ao vivo da banda , permitia nova produo de sentidos quando a cada experincia de escuta-leitura, quando o receptor

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    tinha sua disposio o disco e o encarte, em forma de revista HQ. Isso acontecia naquele contexto cultural e pode acontecer ainda hoje, em outro contexto histrico e social.

    Aquele processo iniciado h cerca de 30 anos, marcado por constante recriao, por articulaes hbridas e interaes multimdia, continua se metamorfoseando. Os Tubares voadores chegam aos nossos dias em um novo suporte, a Web. A j citada montagem em vdeo de Jeffin Rodeghe-ri permite novas experincias estticas da criao de Arrigo Barnab e Luiz G.

    Formas hbridas, tecnologias hbridas, poticas e estticas hbridas. Assim se configura a cultura midiatizada contempornea, dinamizada por apropriaes, recriaes e novas representaes, cruzadas por media-es socioculturais. Como argumentamos em recente artigo publicado na revista Contempornea, da UFBA, na sociedade interconectada, fa-lar de consumo musical implica a adoo de outra perspectiva de an-lise, na qual produo, circulao e consumo se articulam, de forma multidirecional. (BARROS, 2012b).

    As bandas citadas neste artigo e, em especial, o caso da pea Tubares voadores que mereceu nosso destaque so exemplos da experincia esttica hbrida e multidimensional que marca nossos dias. Certamen-te, outras produes contemporneas tambm trazem essa mescla de linguagens do mundo da msica e das histrias em quadrinhos.3 Os des-taques aqui trazidos refletem as limitaes de nossas referncias e espe-cificidades de nossa percepo esttica. Interessa-nos pensar como essas manifestaes da cultura midiatizada exploram o ambiente multimidi-tico em que estamos mergulhados.

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    A conhecida ideia de obra aberta, proposta por Umberto Eco (1968), se aplica bem a essas produes artstico-miditicas da cultura contempo-

    3 Os CDs de Ed Motta trazem, com frequncia, encartes cuja linguagem HQ est presente, elaborados por sua mulher, Edna Lopes, que artista grfica.

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    rnea. Nelas a experincia esttica no fica limitada ao objeto esttico, mas se completa na percepo esttica, na interao do artista compo-sitor, msico, quadrinhista, desenhista com o receptor, vivenciada nos processos de interpretao. Ao nos propor uma hermenutica da obra de arte, Hans-Georg Gadamer (2010) fala desse carter transitrio e em constante transformao da obra de arte, que ele sugere ser pensada co-mo construto. Para ele (GADAMER, 2010, p. 52), o construto que a obra de arte precisa ser sempre novamente erigido nas artes reprodu-toras. Trata-se, pois, de um jogo entre obra e fruidor, de um confronto entre objeto esttico e percepo esttica, experienciado em uma relao especular. Segundo o filsofo alemo,

    O jogo da arte muito mais um espelho que sempre emerge novamente atravs dos milnios diante de ns, um espelho no qual olhamos para ns mesmos com frequncia de maneira por demais inesperada, com fre-quncia de maneira por demais estranha no qual olhamos como somos, como poderamos ser, o que acontece conosco. (GADAMER, 2010, p. 56).

    Nesse jogo, o espectador se apropria da obra, transformando-a em ob-jeto esttico. No mbito da percepo esttica, ele vivencia uma relao de troca, de natureza especular. Neste sentido poderamos tom-lo como um expectador, que projeta suas expectativas ao confrontar o objeto esttico, a parir de seu campo semntico e de seu universo simblico. A produo de sentidos se d, ento, em uma dinmica dialtica, plena de polissemias.

    As produes aqui trazidas a ttulo de ilustrao, que se apresentam como experincias hbridas entre msica e histria em quadrinhos, ilus-tram nosso entendimento de que a produo de sentidos algo dinmi-co, que envolve obra e intrprete em um jogo especular. Na sociedade midiatizada em que vivemos preciso pensar a cultura e as produes miditicas em uma perspectiva hbrida, em constante transformao, em um contexto de interculturalidades e mediaes intermiditicas, em que o receptor vivencia na experincia esttica uma experincia potica. Mais que um receptculo das mensagens a ele transmitidas, o recep-tor se torna, ento, um fruidor. Neste sentido, o confronto de Rancire

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    (2011) entre embrutecimento e emancipao do espectador nos de-safia a entender a dimenso pedaggica da comunicao, na formao de leitores-ouvintes ativos, de interlocutores.

    Quando isso acontece nas interseces entre arte e mdia, entre est-tica e comunicao, a liberdade de participao dos interlocutores, ento emancipados, se amplia e o fenmeno comunicacional alcana a sua essncia prevista na ideia de compartilhamento, de tornar comum a muitos, conforme origem etimolgica do verbo comunicar, do latim communicare. A experincia esttica na cultura midiatizada contempo-rnea pode ser dinamizada como tal, como um jogo de inter-relaes criativas, marcadas pela interatividade e possibilidades de constante re-criao. O contexto de convergncia tecnolgica, hibridaes miditicas e interculturalidades propcio a essa redescoberta da relao interacio-nal da comunicao. Em especial, quando visualidades e sonoridades so trazidas para a mesma experincia potico-esttica.

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