a forma politica do mst - luciana aliaga
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7/24/2019 A Forma Politica Do MST - Luciana Aliaga
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA
LUCIANA APARECIDA ALIAGA ZARA DE OLIVEIRA
A FORMA POLTICA DO MST
CampinasMaro, 2008
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Ttulo em ingls: The political form of the MST
Palavras chaves em ingls (keywords) :
rea de Concentrao: Estado, processos polticos e organizao de interesses
Titulao: Mestre em Cincia Poltica
Banca examinadora:
Data da defesa: 26-03-2008
Programa de Ps-Graduao: Cincia Poltica
Social MovementsPolitical partiesSocial and political organization of the worldEducation
lvaro Gabriel Bianchi Mendez, Gonzalo Adrin Rojas,Paulo Ribeiro Rodrguez da Cunha
Oliveira, Luciana Aparecida Aliaga zara deOL4f A forma poltica do MST / Luciana Aparecida Aliaga zara
de Oliveira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2008.
Orientador: lvaro Gabriel Bianchi Mendez.Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Movimento dosTrabalhadores Rurais sem Terra. 3. Movimentos sociais.4. Partidos polticos. 5. Organizao social e poltica do Brasil.6. Educao. I. Mendez, lvaro Gabriel Bianchi. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia eCincias Humanas. III.Ttulo.
(cn/ifch)
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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Cincia Poltica
LUCIANA APARECIDA ALIAGA DE OLIVEIRA
A FORMA POLTICA DO MST
.
Dissertao de Mestrado em Cincia
Poltica apresentada ao Departamento
de Cincia Poltica do Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade Estadual de Campinas
sob orientao do Prof. Dr. lvaro
Gabriel Bianchi Mendez
Este exemplar corresponde verso final da
dissertao defendida e aprovada perante a
Comisso Julgadora em 26 de maro de 2008.
Prof. Df . lvaro Gabriel Bianchi Mendez
.r
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Alvaro Bianchi pela orientao da dissertao, pelo rigor analticosempre requerido e pela sua presena constante em todas as fases, imprescindveis para aconcretizao do trabalho.
s professoras Andria Galvo e Rachel Meneguello pelas importantes sugestesfeitas por ocasio do exame de qualificao. Aos professores Paulo Cunha e Gonzalo Rojaspela leitura atenta e pelas valiosas anlises sobre o trabalho.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo
apoio financeiro pesquisa.
Agradeo aos coordenadores da Escola Nacional Florestan Fernandes, em especialGeraldo Gasparin e Adelar Pizeta pela ateno a ns dedicada e pela forma generosa comque nos receberam. Da mesma forma aos dirigentes e militantes com quem tivemos aoportunidade de estabelecer um frutfero dilogo, em especial a Juvenal Strozake.
Agradeo ao colega de ps-graduao Plnio Feix que caminhou ao nosso lado partede nossa trajetria, revelando-se um interlocutor intelectualmente valioso e um
companheiro certo na caminhada por vezes rdua.
Agradeo aos amigos do grupo de pesquisa Marxismo e Teoria Poltica, vinculadoao CEMARX, com quem pude discutir o trabalho em suas diversas fases dedesenvolvimento e cujos questionamentos auxiliaram sensivelmente no refinamento dapesquisa.
Aos amigos queridos Bruno Rubiatti, Luciene Torino e Newton Peron que, com seuaguado senso de humor e inteligncia, transformaram os momentos mais difceis e
cansativos em preciosas oportunidades de demonstrar amizade e afeio.
Ao Hlio que acompanhou cada momento da pesquisa e que soube suportar todas asminhas angstias e comemorar todas as conquistas, apoiando e contribuindo com suassempre imprescindveis sugestes e principalmente porque tem me oferecido a suadeliciosa presena na academia e na vida, meu especial agradecimento.
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RESUMO
A anlise dos condicionantes histricos e polticos envolvidos no surgimento edesenvolvimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) at a construo de
sua organizao poltica constitui o ponto de partida de nossa investigao. A partir dela
procuramos entender em que medida o Movimento desvencilha-se do estgio econmico-
corporativo que caracteriza seus primeiros anos de existncia e elabora uma concepo de mundo
adequada s classes subalternas, alando assim um novo estgio em sua construo histrica o
momento essencialmente poltico. Neste sentido, pretende-se investigar se o MST assume funes
de partido poltico porquanto incorpora a viso de mundo e elabora a tica e a poltica adequadas s
classes subalternas do campo, assumindo para isto, uma forma partido. Nosso interesse se deve importncia do MST como experincia inovadora da organizao poltica do campo e que, por esta
razo, coloca novos desafios para a teoria social e poltica. Contudo, nossa inquietao se justifica
tambm pela evidente importncia da insero poltica na relao de foras sociais destas classes
historicamente mantidas sob passividade, fenmeno essencial para a efetividade de uma democracia
autntica no Brasil.
ABSTRACT
The analysis of the historical and political conditions implicated in the arising and
development of the landless Workers Movement (MST) until the construction of its political
organization constitutes the initial point of our inquiry. From this we look for to understand how the
Movement to get ride of the economic-corporative period of training that characterizes its first years
of existence and elaborates an adequate conception of world to the subordinate class, thus arriving
at a new period of training in its historical construction - the moment essentially politician. In this
direction, it is intended to investigate if the MST assumes political party functions inasmuch as it
incorporates the world vision and it elaborates the adequate ethics and the politics to the subordinateclass of the field, assuming for this, a party form. Our interest justify oneself for the importance
of the MST as innovative experience of the political organization of the field and that, for this
reason, it places new challenges for the social and political theory. However, our fidget also justify
oneself for the evident importance of the insertion politics in the relation of social forces of these
historically passive class, essential phenomenon for the effectiveness of an authentic democracy in
Brazil.
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SUMRIO
INTRODUO: A BUSCA DA FORMA........................................................................01
I. A ORGANIZAO POLTICA DOS TRABALHADORES RURAIS.................151.1. Antecedentes e condicionantes: a pr-histria do MST.....................................151.2. Da constituio do movimento de massas at a organizao de quadros...........291.3. O MST de hoje: caminhos e descaminhos.........................................................39
II. A BASE SOCIAL DO MST.........................................................................................55
III. A FORMA POLTICA ANATOMIA DA ORGANIZAO...............................853.1. A estrutura organizativa do MST.......................................................................90
3.1.1. A importncia dos ncleos de base......................................................993.1.2. A identidade do Movimento..............................................................1083.1.3. A composio da Organizao..........................................................1123.1.4. Sistema de filiao e mecanismo de cotizaes individuais..............114
3.2. O funcionamento das estruturas e sua funo poltica.....................................118
IV. ORIENTAO TERICA E POLTICA INTERNA DA ORGANIZAO4.1. Centralidade da doutrina.................................................................................133
4.1.1. Teologia da Libertao......................................................................1344.1.2. Pragmatismo......................................................................................143
4.2. Poltica Interna.................................................................................................153 4.2.1. linha poltica e centralizao.........................................................................153
4.2.2. mecanismos de participao..............................................................1604.2.3. disciplina............................................................................................162
4.3. Ao Educativa.................................................................................................1634.3.1. O setor de Educao..........................................................................166
4.3.2. O Setor de Formao.........................................................................1694.4. Agitao e Propaganda.....................................................................................173
CONCLUSO...................................................................................................................177
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................185
ANEXOS.............................................................................................................................197
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INTRODUO: A BUSCA DA FORMA
O ttulo deste trabalho A Forma Poltica do MST resume nossa inteno e nossa
necessidade de refletir com maior densidade sobre as novidades organizativas apresentadas
pelo MST como um movimento social. Alguns trabalhos j sugeriram tal novidade. Souza
(2002, p. 223) afirma: a organizao social em questo possui caractersticas ou princpios
poltico-ideolgicos que a singularizam diante de outros atores da sociedade civil. Ainda
em uma nota de rodap l-se: (...) h necessidade de atentar para as especificidades do
MST, o que ora o caracteriza como um movimento social, ora como uma organizao
formal de representao de interesses (2002, p.192, 12n). A autora faz referncia aojulgamento de Zander Navarro sobre o Movimento: [o MST ] mais uma organizao em
seu estrito sentido e, menos (muito menos, em vrios estados), um movimento social
(NAVARRO, apudidem). Jos de Souza Martins tem destacado esta novidade organizativa
em tom de denncia:
Essa luta, hoje amplamente mediada por vises de mundo estranhas aos protagonistas do dramaagrrio, no mais estrita e substancialmente a luta social dos trabalhadores privados da terra ou emvias de s-lo. Tornou-se substantivamente uma luta partidriados setores mdios da sociedade sindicalistas, religiosos, agentes de pastoral, intelectuais militantes, ativistas polticos. (MARTINS,2000, p.40, grifos do autor).
Contudo, a nosso ver, o tema ainda no recebeu a devida ateno1. As inovaes do
Movimento no que se refere a sua estrutura organizativa permanecem como ligeiras
observaes, s vezes em notas de rodap ou, conforme citamos acima, como avaliaes
que no consideram a importncia da organizao poltica das classes subalternas para o
alcance de suas demandas e que no apresentam um estudo sistemtico sobre o tema.
A atual estrutura organizativa do MST, que chama ateno pela sua extenso e
perenidade, no acidental. Ela antes o resultado de uma orientao racional da direodo MST, cujo objetivo consiste na estabilidade e continuidade da luta dos sem-terra.
Segundo Neuri Rosseto, membro da coordenao nacional do MST:
O maior desafio [das lideranas] manter o movimento dinmico. H uma tendncia bastante fortepara debater o que o movimento e o que a organizao. O movimento faz algo especfico e determinado. Como manter o movimento como movimento, fazendo com que seja perene?(ROSSETO, apudPESCHANSKI, 2007, p.113).
1PESCHANSKI (2007) elabora uma importante e bem fundamentada anlise sobre a evoluo organizacionaldo MST, contudo seu trabalho no tem o objetivo de enfocar as relaes entre o movimento social e suaorganizao poltica formal.
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Esta necessidade de estabilidade conduz a debates internos, principalmente a partir
da formao oficial do MST e sua autonomia institucional em relao aos mediadores. Ocontedo destas reflexes a busca da forma capaz de atender s funes que o
movimento ento se propunha e que foi encontrada na constituio de uma estrutura
organizativa formal, fundamentada nas experincias histricas das lutas populares e na
literatura marxista. Segundo Ademar Bogo, membro da coordenao nacional do MST e
uma das principais lideranas responsveis pela formao poltica do Movimento:
O MST o produto de uma demanda social. O movimento j no cabia mais dentro da CPT e dosindicalismo rural. (...) Sendo assim, apelou-se para a busca da forma. Tnhamos como refernciapositiva a teologia da libertao como teoria, as CEBs como organizao e os princpios da educao
popular como referncia. (...) Ento, Che Guevara transitava facilmente, assim como Marx, Lenin eMao Tse-tung pelo estudo que fizemos da histria das revolues. Estudamos Zapata e a revoluode 1910 no Mxico. A Revoluo Cubana e lemos livros como A ilha, de Fernando Morais, depoisFidel e a religiode Frei Betto. Estudamos a revoluo vietnamita etc. (...) Fizemos muitos cursosem escolas sindicais criadas conjuntamente com o movimento sindical. A partir da dcada de 1990,
j com algum acmulo terico, passamos a dar maior contedo aos conceitos, agora j pela tica domarxismo, tanto na leitura do Manifesto [do Partido Comunista Marx e Engels], Que Fazer?[deLnin]e cursos utilizando os clssicos (BOGO, apudPESCHANSKI, 2007, p. 152, grifos nossos).
A busca por uma forma organizativa que permitisse ao Movimento uma organizao
permanente est no cerne das inovaes apresentadas pelo MST. Para melhor esclarecer a
que novidades estamos nos referindo, devemos nos remeter ao conceito de movimentosocial, que tornar patente a peculiaridade da organizao sem-terra.
A delimitao do conceito de movimento social polmica e j alimentou extensos
debates (cf. RUSCHEINSKY, 1998; GOHN, 1997). Os estudos clssicos herdeiros da
Escola de Chicago e representados principalmente por Herbert Blumer. Eric Fromm, E.
Hoffer, K. Kornhauser, Seymour Lipset, Rudolf Heberle, alm dos estudos fundamentados
em Talcot Parsons se estendem at os anos 1960 (GOHN, 1997, p. 25). Esses estudos tm
como caractersticas comuns a teoria da ao social como ncleo articulador das anlises ea busca de compreenso dos comportamentos coletivos como meta principal (idem, p.23).
Os comportamentos coletivos so considerados pela abordagem tradicional norte-americana
como frutos de tenses sociais. Os movimentos consistiriam, portanto, em elementos
desruptivos ordem social vigente. Estas anlises se caracterizam pela influncia das idias
durkheimianas de anomia social (GOHN, 1997, p. 329).
J a perspectiva terica histrico-estrutural presente na orientao dos
movimentos sociais no Brasil da dcada de 1960 e 1970 apresenta estreita vinculao ao
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estruturalismo marxista e aproxima-se do leninismo na orientao poltica dos movimentos
sociais. Sob este prisma tanto os partidos como os movimentos so expresses dos conflitos
e dos interesses das classes sociais (RUSCHEINSKY, 1998, p. 77). Entende-se que a
direo poltica de que necessitam as classes sociais para sua efetiva representatividade
encontrada primordialmente nos partidos polticos. Os movimentos sociais, por sua vez,
inserem-se nas relaes de foras sociais em disputa pelas decises polticas a partir de
diferentes demandas, nveis de conscincia, graus de organizao e condies histricas,
podendo agir em conexo com os partidos polticos (idem).
Na Europa dos anos de 1960 emerge uma onda de estudos dos chamados novos
movimentos sociais, influenciadas por Michel Foucault, Felix Guattari, C. Castoriadis eAlberto Melucci (cf. GOHN, 1997, p. 284). Nestes, a perspectiva de reflexo sobre os
movimentos a partir do corte de classe preterida em funo de anlises fundamentadas em
dimenses subjetivas da ao social, relativas aos sistemas de valores dos grupos sociais,
que escapam das explicaes macroobjetivas das anlises de classes sociais. Trata-se de
carncias de outra ordem, morais ou radicais (idem, p. 249). A base social dos chamados
novos movimentos sociais compe-se de setores das classes mdias, o que os diferencia
dos movimentos sociais clssicos, de base popular:
O novo no movimento europeu advinha basicamente de camadas sociais que no se encontravamem condies de miserabilidade, se organizavam em torno das problemticas das mulheres, dosestudantes, pela paz, pela qualidade de vida, etc., e se contrapunham ao movimento social clssico,dos operrios. (...) O denominador comum nas anlises dos novos movimentos sociais no Brasil foi aabordagem culturalista, em contraposio marxista presente com mais fora na anlise dosmovimentos populares (GOHN, 1997, p. 284).
Conforme se percebe pela rpida exposio acima no possvel reduzir a
multiplicidade de vertentes tericas funcionalistas, marxistas e culturalistas que se
propem a conceituar os movimentos sociais, num modelo geral e universal, assim como
tambm no existe um s tipo de movimento social, conforme sublinha Gohn (1997, p.
327). Mas possvel diz esta autora estabelecer alguns parmetros mnimos para uma
conceituao terica, construda a partir da reflexo fundamentada em categorias que
emergem de manifestaes concretas dos prprios movimentos (idem, p. 245).
Gohn sugere a possibilidade de circunscrio terica dos movimentos sociais a
partir de sua diferenciao das aes coletivas de outro tipo. Os movimentos sociais
possuem interesses comuns que so componentes primordiais mas estes no so
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suficientes para conceitu-los na medida em que os lobbies tambm so aes coletivas
decorrentes de interesses comuns. Os lobbies, contudo, por sua efemeridade no necessitam
de identidade entre seus componentes, enquanto o movimento social deve ter uma
identidade comum que agregue seus elementos individuais emprestando coeso ao coletivo.
Diz a autora:
Ser negro, ser mulher, defender as baleias ou no ter teto para morar so atributos que qualificam oscomponentes de um grupo e do a eles objetivos comuns para a ao. H uma realidade em comum,anterior aglutinao de seus interesses. As inovaes culturais, econmicas ou outros tipos de aoque vierem a gerar partem do substrato comum que possuem (GOHN, 1997, p. 245).
Contudo, a diferenciao fundamental que deve ser feita refere-se esfera onde
ocorre a ao coletiva. Trata-se de um espao no-institucionalizado, nem na esferapblica nem na esfera privada, criando um campo poltico, como observou Offe ( idem, p.
247). Gohn ressalta o carter transitrio, no institucional dos movimentos. Diz a autora:
os movimentos sociais so fluidos, fragmentados, perpassados por outros processos
sociais. Como numa teia de aranha eles tecem redes que se quebram facilmente, dada sua
fragilidade (idem, p. 343). Isto significa que um movimento social deixa de s-lo quando
se institucionaliza, quando se torna uma organizao no governamental (ONG), por
exemplo. Nas palavras da autora:
Disto resulta que muitas vezes um movimento social strictu sensudeixa de ser movimento quandose institucionaliza, quando se torna uma ONG, por exemplo, embora possa continuar como parte deum movimento. Uma associao de moradores, se institucionalizada, uma organizao social. Masfaz parte de um movimento social mais amplo que o movimento comunitrio de bairros (GOHN,1997, p. 247).
Referimo-nos precisamente a este processo quando afirmamos que o MST apresenta
uma peculiaridade em relao aos movimentos sociais tradicionais porquanto supera a sua
fluidez por meio da criao de estruturas organizativas que lhe imprimem um carter
permanente. O Movimento Sem-Terra deixa de ser um movimento strictu sensoquando seinstitucionaliza, isto , quando constri uma organizao formal que articula as aes do
movimento em nvel nacional, contudo, esta organizao est inserida no interior do
movimento social mais amplo, ligado s bases, por uma demanda setorial a reforma
agrria. Devemos tratar das relaes entre a organizao poltica e o movimento de massas,
que juntos permitem ao MST a articulao dos interesses de sua base a um projeto poltico
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mais amplo, no terceiro captulo deste trabalho, quando pretendemos tornar mais clara esta
articulao.
Gohn destaca que os movimentos usualmente se articulam com outras foras
institucionalizadas e a fora social que podero ter est diretamente relacionada a estas
articulaes (idem). Esta articulao nos remete a uma ltima diferenciao que devemos
fazer: entre movimento social e partido poltico.
Ruscheinsky (1998, p.75) destaca a influncia dos movimentos sociais na
emergncia e dinamizao de partidos polticos no cenrio de mobilizaes do Brasil das
dcadas de 1970 e 1980, apontando para uma interseco entre a militncia dos
movimentos sociais e dos partidos de base popular. Nesta perspectiva estabelece-se umjogo de relaes complexas de colaborao entre os atores sociais. De forma que, por um
lado os movimentos dinamizam os partidos de base popular, por outro, os partidos servem
de mediao institucional entre os movimentos e a esfera estatal (idem, p.77).
Os atores, contudo, guardam diferenas importantes entre si: enquanto os partidos
colocam-se na disputa pelo poder poltico entre as classes que detm interesses
antagnicos, podendo opor-se ao Estado conforme sua orientao ideolgica, os
movimentos representam demandas especficas de setores da sociedade, sejam eles
trabalhadores urbanos ou rurais, mulheres, negros ou ndios.
Gohn (1997, p. 262) ressalta que no se deve considerar que os movimentos sociais
se oponham ao Estado como sistema poltico vigente ou s formas econmicas existentes.
Os opositores dos movimentos sociais so sempre os sujeitos que detm o poder sobre o
bem demandado. Neste sentido, no correto afirmar que determinado movimento
contra ou a favor da entidade que detm a posse, a propriedade ou o controle dos benefcios
reclamados. Depreende-se da que os movimentos sociais caracterizam-se pela luta poltica
em prol de bens determinados. A isto equivale dizer que sua luta no se coloca no campopela disputa pelo poder poltico e sim de bens polticos, sociais, culturais ou materiais. Sua
luta essencialmente setorial. Em outras palavras, os movimentos no tm como
caracterstica a oposio ao sistema poltico em si, bem como a luta pela direo poltica na
sociedade civil com vistas construo da hegemonia do grupo fundamental
caracterstica dos partidos polticos. Suas prticas visam derrubar obstculos que dificultam
o acesso aos bens requeridos.
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Embora o surgimento do MST se deva a uma demanda especfica de um setor da
sociedade a reforma agrria em sua trajetria o Movimento expande seus objetivos
iniciais, colocando-se num plano de ao mais amplo, propondo-se construo da
hegemonia de seu grupo fundamental os trabalhadores rurais na sociedade civil,
assumindo assim funes de partido. A forma poltica encontrada, adequada a estas funes
resultado das reflexes internas do Movimento, baseadas nas experincias histricas e no
referencial terico marxista foi a forma partido.
De acordo com o pensamento poltico de Antonio Gramsci, o partido a expresso
da passagem do momento meramente econmico elaborao tico-poltica, cuja funo
o equilbrio e arbitragem entre os interesses do grupo social fundamental e os outros gruposna medida em que busca o consentimento do grupo representado, a direo dos grupos
aliados e muitas vezes tambm dos grupos inimigos (GRAMSCI, 2001, v. 3, p. 87). Ao
partido cabe resguardar os interesses da classe que representa, porm, simultaneamente,
deve assimilar em certa medida os interesses das classes subordinadas. Difunde sua viso
de mundo de forma que os demais grupos sociais a tomam como sua prpria viso. A
difuso por toda rea social de sua viso de mundo e a aceitao desta pelos demais grupos
contribui para a construo da hegemonia do grupo social fundamental, assim:
determinando alm da unicidade intelectual dos fins econmicos e polticos, tambm a unidadeintelectual e moral, pondo todas as questes em torno das quais ferve a luta no no plano corporativo,mas num plano universal criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre umasrie de grupos subordinados (idem, p. 41).
A construo de uma organizao poltica no interior do movimento de massas torna
a luta poltica pela reforma agrria um aspecto importante mas no nico de um projeto
poltico mais abrangente, que se prope a pensar novas formas de organizao social
adequadas participao poltica das classes subalternas, capazes de prover melhores
condies materiais de vida para amplos setores populares. A crtica social do movimento
no se destina apenas aos sujeitos que detm o poder sobre o bem demandado
caracterstica geral dos movimentos sociais evidenciada por Gohn mas refere-se ao
prprio Estado, que passa a ser alvo das crticas do MST. Num dos documentos
preparatrios para o IX Encontro Nacional do Movimento, sob o ttulo: Diretrizes para o
projeto nacionall-se:
Os principais problemas do povo brasileiro so: a existncia de milhes de pessoas abaixo da linhade pobreza absoluta, de milhes de analfabetos, de trabalhadores sem carteira de trabalho, de
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crianas fora da escola, de pessoas morando em favelas e cortios, de jovens envolvidos com drogas,prostituio e crime, de desempregados e subempregados. A este elenco acrescenta-se a deterioraoacelerada do nosso meio ambiente provocada pela explorao predatria dos nossos recursos
naturais. Todos esses problemas so conseqncias de outros: concentrao da propriedade privada,desnacionalizao da economia, monoplio dos terrenos urbanos, concentrao do acesso terra,ineficincia do estado, subordinao das decises nacionais s exigncias de poderes externos,corrupo do governo e da empresa privada, mentalidade colonialista das classes dominantes eincapacidade do povo de articular seus prprios interesses (MST, 1997a, p. 1).
A este extrato segue-se uma anlise da condio atual de dependncia externa da
economia brasileira e da ausncia de um projeto nacional entre as elites. Ao final da anlise
o documento resume as tarefas polticas das lutas populares em temas que devero orientar
uma agenda nacional, isto , uma pauta de problemas a serem resolvidos
prioritariamente a fim de promover o desenvolvimento, formuladas a partir de trs grandes
questes: a questo democrtica, a questo nacional e a questo cultural ( idem, p. 4). Os
temas norteadores da agenda nacional segundo o documento do MST so:
(...) substituir o poder das classes dominantes pelo poder do povo na direo do processo deconstruo da nao; eliminar qualquer trao de subordinao nas relaes do Brasil com os pasesdesenvolvidos; ordenar as polticas econmicas aos objetivos da integrao social e da unidadenacional, a fim de eliminar as disparidades econmicas, sociais, culturais e polticas entre as classessociais e as regies do pas; defender intransigentemente a cultura brasileira (idem).
Para dar respostas a estas questes democrtica, nacional e cultural o movimento
formula trs frentes de lutas e quatro objetivos estratgicos a serem alcanados:
[frentes de luta] reforma do estado, com vistas ao reforo dos mecanismos de controle sobre asautoridades pblicas, a fim de que exeram o poder nos estritos limites da lei. Inclui-se nestareforma: instrumentos eficientes de controle dos mandatos eletivos; controles externos sobre o poder
judicirio, sobre o ministrio pblico, reforma do sistema de prestao jurisdicional, e re-estruturaocompleta dos aparelhos policiais.Reformas estruturaispara redistribuir a riqueza e a renda altamenteconcentradas em reduzidos segmentos das classes dominantes. Reformas destinadas a garantir oacesso de todos educao, cultura e aos meios de comunicao social . [Objetivos estratgicos]democratizar a terra, distribuindo-a de modo eqitativo e substituindo o modelo agrcola baseado nahegemonia da agro-indstria por um modelo que assegure a hegemonia da agricultura familiar.Assegurar emprego a todos, mediante uma poltica de reduo da jornada de trabalho e de gradual
incorporao de progresso tcnico, combinando tecnologias modernas com tecnologias j adquiridas.Garantir a todos os brasileiros moradia digna, provida de servios urbanos bsicos, mediante umareforma urbana que elimine a especulao imobiliria, reestruture a indstria da construo civil etribute equitativamente a apropriao do solo. Eliminar o analfabetismo, garantindo a cada jovem apossibilidade de freqentar pelo menos oito anos de escola da melhor qualidade, assegurando a todosa possibilidade de aprimorar continuamente sua educao (idem, p. 6-7, grifos nossos).
O MST, portanto, procura resguardar os interesses das classes subalternas do
campo, porm, simultaneamente, amplia seu projeto de forma a incorporar os interesses das
classes populares como um todo. Difunde sua viso de mundo procurando torn-la
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consensual entre os demais grupos sociais. A difuso por toda rea social de sua viso de
mundo e a busca de aceitao desta pelos demais grupos tem como objetivo a construo da
hegemonia do grupo social que representa. A organizao poltica sem-terra adquire a
forma partido porquanto busca equilbrio e arbitragem entre os interesses do grupo social
representado e os outros grupos, isto , na medida em que busca o consentimento do grupo
representado, a direo dos grupos aliados e muitas vezes tambm dos grupos inimigos.
Elementos presentes no projeto popular do MST:
O esforo para realizar essa construo poltica consiste basicamente em articular os atores,verdadeiramente interessados na concretizao dos objetivos estratgicos: terra, trabalho, moradiae educao. Esses atores so: o operariado industrial do setor formal e informal, o campesinato,entendendo-se pela expresso: os sem-terra, o produtor familiar e o assalariado rural; os empregados
de baixa renda do setor de servios (balconistas, artesos, pequenos funcionrios pblicos) e osexcludos das cidades e dos campos. preciso amalgamar esses imensos contingentes sociais em umbloco poltico capaz de travar em conjunto uma luta decisiva contra as classes dominantes. Esseconjunto de foras sociais e polticas poder chamar-se bloco popular. Conduzir esse blocoatravs de uma luta prolongada a um confronto com o bloco das classes dominantes constitui aconfigurao concreta da luta de classesna atual conjuntura da histria brasileira. Para atingir oestgio e poder dar um confronto decisivo com as classes dominantes, o bloco popular precisarestabelecer, nas diversas conjunturas e vicissitudes da luta, alianas com elementos situados dospatamares inferiores das prprias classes dominantes. (...) A aliana com esses grupos no constituiportanto um objetivo eleitoreiro, imediatista, mas a encampao de lutas legtimas, que professorestravam para melhores condies de ensino, que funcionrios pblicos realizam para defender adignidade de sua funo, que servidores das estatais levam a cabo para defender o patrimnio dopovo, que pequenos lojistas assumem para manter suas pequenas empresas (idem, p. 8, grifos
nossos).
A confrontao entre as caractersticas fundamentais dos movimentos sociais e a
configurao poltica do MST o que nos leva a sustentar a novidade e a importncia de
sua organizao poltica. Conforme procuraremos demonstrar neste trabalho, no se pode
dizer que o MST deixou de ser um movimento social, tambm no possvel afirmar que
seja um partido poltico strictu sensu. A peculiaridade do MST consiste em sua capacidade
de incorporar caractersticas de partido no movimento social, o que no faz dele um partido
poltico, mas que lhe imprime na estrutura organizativa uma forma partido2
.A construo de uma organizao poltica no interior do movimento de massas
capacita o MST a transpor a transitoriedade e a luta setorial que caracteriza os movimentos
2 A existncia de elementos organizativos prprios dos partidos polticos presentes no movimento reconhecida por Stedile: incorporamos no movimento a idia da autonomia do partido, mas incorporandono movimento social princpios organizativos que os partidos tinham preservado ao longo da luta de classes.Ento, a idia da formao de quadros, de ter os nossos jornais, de ter as nossas escolas, a idia de ncleode base, tudo isso aprendemos da luta de classes em geral, ou seja, que os partidos eram os condutores ens incorporamos no movimento(STDILE, 2006, p. 165).
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sociais de forma geral. Elemento central para que as classes subalternas encontrem veculo
capaz de implantar suas demandas fundamentais na agenda poltica nacional e possam
inserir-se na relao de foras sociais de forma organizada.
A anlise da estrutura organizativa, bem como os processos polticos engendrados
por ela, constituem o cerne de nosso interesse e sero tratados especificamente no terceiro e
quarto captulos. A despeito do ngulo privilegiado nesta pesquisa ser o funcionamento
interno do MST, no podemos nos esquivar de uma anlise das relaes externas do
movimento com seu entorno scio-poltico e econmico. Por esta razo no primeiro
captulo nos dedicaremos a apresentar os aspectos fundamentais envolvidos no surgimento
e difuso do MST por todo o Brasil. Nossa inteno consiste em analisar as relaescomplexas que o Movimento estabelece com seus interlocutores, os impactos das polticas
de Estado sobre a estrutura organizativa, as reaes do Movimento s investidas de seus
opositores polticos, bem como os contornos que a conjuntura poltica atual tem imprimido
na organizao e na poltica do MST. Devido aos limites deste trabalho no ser possvel o
desenvolvimento que a complexidade dos problemas envolvidos neste tema requer.
Contudo, procuraremos indicar os processos essenciais por sua relevncia e influncia
sobre as estruturas internas e sobre os rumos polticos do Movimento.
Uma importante questo de ordem terico-poltica o carter de classe da base do
MST e os limites historicamente observados da organizao poltica das classes subalternas
no campo impede que nosso trabalho se restrinja aos temas expostos acima. A teoria
marxista clssica est repleta de referncias e de fortes argumentos que sublinham as
dificuldades estruturais que se impem organizao poltica camponesa. A agricultura
familiar, constituindo unidades isoladas de produo, no permite a relao social
necessria para a constituio da conscincia de interesses de grupo econmico, isto , no
existe coeso social, o que representa um obstculo para a constituio da classe para si 3,devido estrutura produtiva demasiado dispersa. Por este motivo, na anlise marxista, s
classes subalternas do campo cabe o papel de subordinao direo do proletariado para a
3Classe para si usada aqui em contraposio a classe em si, isto , os camponeses constituem uma classe namedida em que apresentam uma similitude de condies materiais e culturais de vida (classe em si) , mas noelaboram uma conscincia de classe (classe para si) (Cf. MARX, 2003).
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efetividade do processo de transformao social 4. De fato, devido s condies a que o
campesinato est submetido, a constituio de organizao autnoma encontra significativa
dificuldade, dada a disperso e o isolamento da populao rural e a dificuldade de
concentr-la em slidas organizaes (...) pode-se dizer que quase impossvel criar
partidos camponeses (GRAMSCI, 2001, v. 5, p. 76).
Contudo, possvel afirmar que a base do MST seja camponesa? Ou pelo contrrio,
o aprofundamento do capitalismo no campo condicionou esses trabalhadores rurais ao
semi-assalariamento e ao assalariamento puro, fazendo destes no menos que proletrios
rurais? Estas questes de ordem terico-poltica e histrica centrais para a compreenso
do fenmeno organizativo sem-terra devem ser abordadas no segundo captulo de nossotrabalho.
Restam-nos ainda dois ltimos esclarecimentos a fazer: o primeiro refere-se ao
instrumental terico que baliza nossa pesquisa e o segundo concerne aos procedimentos
metodolgicos. Mesmo o observador mais desatento perceber que a matriz terica sobre a
qual se fundamenta nossa anlise o pensamento poltico de Antonio Gramsci.
Advertimos, contudo, que no est no escopo deste trabalho escavar fundamentos
gramscianos na organizao poltica do MST, ou seja, no afirmamos que o MST busque
no pensamento de Gramsci a teoria adequada para sua organizao poltica. Distante disto,
nosso real intento concentra-se em trabalhar com as categorias gramscianas para analisar a
organizao poltica sem-terra. A diferena pode parecer sutil primeira vista, mas de fato
no . A compreenso apropriada deste aspecto faz grande diferena para o entendimento
correto do enfoque desta pesquisa, que deve ser caracterizada como uma anlise
gramsciana da estrutura organizativa do MST.
4De todas as classes que hoje se opem burguesia, apenas o proletariado uma classe verdadeiramenterevolucionria. As demais classes vo-se arruinando (verkommen) e por fim desaparecem com a grandeindstria; o proletariado o seu produto mais autntico. As camadas mdias (Mittelstnde), o pequenoindustrial, o pequeno comerciante, o arteso, o campons, combatem a burguesia para salvar sua runa(Untergang) sua prpria existncia como camadas mdias. No so, portanto revolucionrias, masconservadoras. Mais ainda, so reacionrias, pois procuram fazer retroceder a roda da histria. Quando setornam revolucionrias, em conseqncia de sua iminente passagem para o proletariado; defendem entoseus interesses futuros, no seus interesses presentes, abandonando seu prprio ponto de vista pelo doproletariado (cf. MARX e ENGELS, 1989, p. 75-76) Ver ainda: os operrios devem romper com todos ospartidos tradicionais da burguesia para estabelecer, em comum com os camponeses, seu prprio poder (cf.TROTSKY, 1980, p. 46).
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Esta opo se justifica pelo complexo de conceitos tericos que se articulam
internamente no pensamento poltico de Gramsci, provendo s categorias ao mesmo tempo
dinmica e sistemtica, fundamentais para compreenso dos fenmenos sociais em seu
intrincamento na relao com a totalidade do sistema. Este autor trabalha no apenas com a
anlise macroobjetiva das relaes sociais identificando de forma dialtica o complexo
encadeamento entre histria, filosofia e poltica mas trabalha tambm com
microprocessos subjetivos referentes aos nveis de conscincia (do senso comum ao bom
senso) e relao entre ideologia, religio popular e os processos envolvidos na formao
de uma vontade coletiva, central para a organizao poltica das classes subalternas.
Fornece, portanto, rico instrumental de anlise, capaz de auxiliar a pesquisa que no seproponha a cortar a realidade de forma a obter um quadro esttico a ser dissecado. Ao
contrrio, o instrumental gramsciano possui ferramentas que possibilitam a apreenso dos
fenmenos sociais em seu movimento no interior da multifacetada rede de relacionamentos
que constitui o tecido social.
No que toca os procedimentos metodolgicos, a pesquisa realizada utilizou
primordialmente documentos internos do Movimento. Dentre a literatura produzida pelo
MST, pode-se definir aquela orientada para a organizao e formao interna (como os
cadernos de formao, os documentos produzidos pela direo e as cartilhas) e aquela
voltada para a propaganda externa ou agitao. Os documentos possuem um carter mais
reservado, pois somente a militncia deve ter acesso a eles. So orientaes especficas que
visam a formao e a ao conjunta de todos os militantes para implantao das diretrizes
polticas e das novas estruturas que so reformuladas continuamente. Isto inclui
orientaes acerca da disciplina, das tarefas individuais e coletivas, bem como dos desvios
e das formas de coibi-los. OJornal Sem Terratem a funo de informar sobre o andamento
das atividades em todas as regies e orientar a militncia acerca das pautas polticas. Adespeito de estar voltado para a militncia, tambm pblico, qualquer pessoa pode assin-
lo, portanto, funciona tambm como divulgao ampla das propostas do MST. Assim a
Revista Sem Terra, mas esta tem a propaganda externa como alvo central.
Para a consecuo da pesquisa, principalmente no que concerne atualizao das
informaes contidas nas cartilhas, realizamos visitas Escola Nacional Florestan
Fernandes, em Guararema (SP) e Secretaria Nacional do MST em So Paulo, onde
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conversamos com militantes e efetuamos entrevistas com lideranas das coordenaes
nacionais. Como material de apoio utilizamos pesquisas empricas e entrevistas j
realizadas por outros pesquisadores acerca do Movimento, bem como pesquisa
bibliogrfica.
O MST um movimento de extraordinria extenso territorial e numrica, por esta
razo qualquer pesquisa que se refira ao Movimento como um bloco unificado incorre em
arbitrariedade. Falar em objetivos do MST demanda esclarecer de quem se fala: da base,
da militncia ou da direo? Existem diferentes entendimentos por parte dos membros e
militantes do que seja o objetivo do Movimento. Trataremos aqui fundamentalmente da
viso da direo sobre o que o Movimento. Quando dissermos que so objetivos do MST,entenda-se, so objetivos do MST de acordo com sua direo poltica, que a rigor est
concentrada na coordenao e na direo nacional.
Nossa hiptese central a organizao poltica do MST assume uma forma
partido dever ser testada a partir das seguintes questes: 1.Tendo em vista que na obra
de Gramsci, os partidos polticos so expresso poltica das classes sociais, na medida em
que estes elaboram a viso de mundo que as compe e sustenta, podemos entender que o
MST assume funes de partido das classes subalternas do campo ao incorporar e elaborar
a viso de mundo dessas classes? 2. O Movimento cumpre o papel educativo/formativo de
elevao do senso comum ao bom senso? Quais so os limites e as possibilidades impostas
pela estrutura organizativa do Movimento para a formao de seus militantes? 3. Levando
em considerao que o processo democrtico importante para a presente discusso,
perguntamos: em que medida podemos afirmar que dentro da organizao existe de fato
uma centralizao democrtica? Ou pelo contrrio, apesar da estrutura descentralizada, ela
se burocratiza, produzindo militantes dos quais no se pode dizer mais do que disciplinados
e obedientes?Pretende-se neste trabalho dirigir um olhar para a realidade emprica orientado pela
teoria e ao mesmo tempo, um retorno desta realidade para os conceitos. Propomos desta
forma, um exerccio dialtico com o objetivo no apenas de compreenso da realidade que
nos cerca, mas de reflexo terica acerca da mesma e dos novos desafios que ela nos
apresenta. Os panoramas polticos de nosso tempo e nossa realidade latino-americana
possuem especificidades sobre as quais os clssicos no puderam se debruar, essa tarefa,
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portanto, cabe aos contemporneos, uma necessidade permanente de reflexo, atualizao
e prtica. Sem nos alongarmos mais, passemos a esta tarefa analtica.
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I. A ORGANIZAO POLTICA DOS TRABALHADORES RURAIS
O tratamento de nosso tema central a forma poltica do MST requer uma
digresso sobre os mais significativos eventos que marcaram a organizao poltica dos
trabalhadores rurais no Brasil. Isto se faz necessrio porque a presente estrutura
organizativa dos sem-terra pode ser considerada a forma atual mas no acabada de um
longo processo de construo e adaptao aos diferentes cenrios polticos e econmicos
em mais de duas dcadas de existncia do Movimento.
Analisar o desenvolvimento da organizao poltica dos trabalhadores sem terra
implica em refletir sobre as profundas transformaes no modo de vida destes trabalhadores aliadas aos fatores polticos especficos do Brasil das dcadas de 1970 e 1980 que
tornaram possvel a constituio deste movimento que hoje a mais expressiva organizao
de trabalhadores rurais no Brasil.
Para isto traaremos um panorama histrico da trajetria poltica do MST at
assumir a presente forma de organizao, o que implica tambm em esclarecer quais so
seus aliados e inimigos polticos, bem como qual sua relao com a histria do pas.
Utilizamos tal mtodo de exposio por entender que a anlise de uma organizao poltica,
tal qual de um partido, deve incluir a histria do grupo social ao qual representa. Deve ser
tambm um esforo para conhecer os outros grupos com os quais se relaciona no cenrio
nacional, isto , seus aliados, inimigos polticos e afins, o que implica tambm em escrever
a histria geral de um pas (Cf. GRAMSCI, 2001, v. 3, p. 87).
Nossa inteno, portanto, no constituir a mera narrao de vida interna da
organizao poltica do MST, mas demonstrar sua vinculao com a luta econmica e
poltica das classes subalternas, esclarecendo assim que esta estrutura organizativa no
esttica. Sua dinmica acompanha a necessidade de adequao s funes que se prope, eem maior ou menor medida, serve ao grupo social ao qual representa na construo de sua
hegemonia.
1.1. Antecedentes e condicionantes: a pr-histria do MST.
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O Brasil possui uma significativa histria de mobilizaes no campo, destacamos
Canudos e Contestado5 apenas para citar dois dos mais conhecidos conflitos de origem
camponesa. Os dois movimentos, embora tivessem contedos fortemente religiosos,
messinicos, foram combatidos intensamente pelo Exrcito, essencialmente porque foram
interpretados como tentativas de restaurao monrquica. No apenas isto, mas tambm
porque em alguma medida representavam contestao ao poder local, mais
especificamente, poltica dos coronis.
At 1940 o messianismo e o cangao foram as formas dominantes de organizao e
de manifestao da rebeldia camponesa (MARTINS,1995, p. 67). Contudo, a partir da
dcada de 1950 as mudanas na estrutura agrria brasileira se aceleraram, os conflitos seacirraram e surgiram novas foras de resistncia no campo. Entre as foras que concorriam
poca pela hegemonia na organizao dos trabalhadores rurais destacavam-se: as Ligas
Camponesas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Igreja Catlica. A disputa pela
direo sindical rural se dava principalmente entre o PCB, a Igreja e a Ao Popular (AP)6,
que empenhavam-se na fundao do maior nmero possvel de sindicatos e federaes
oficiais no campo (cf. COLETTI, 2005, p. 63).
O PCB configura-se como importante fora no campo na medida em que exercia
hegemonia sobre a direo da Unio dos Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Brasil
(ULTAB) fundada em 1954 (CUNHA, 2007, p. 81)7; possua ao lado da AP forte
influncia na Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
5A guerra de Canudos (1893 1897): ocorreu no serto baiano, margem do rio Vaza-Barris, onde AntonioConselheiro fundou uma grande povoao de peregrinos denominada Belo Monte. Sua nfase na busca por
justia diante da poltica dos coronis foi interpretada como monarquista pelas autoridades. Em decorrncia,os beatos e seu lder foram combatidos e praticamente exterminados pelo Exrcito no perodo de 1896 1897.A guerra do Contestado (1912-1916): a faixa de terra que ficou conhecida como Regio do Contestadoencontrava-se nos limites entre os estados de Santa Catarina e Paran e era disputa entre camponeses(agregados de fazendas, posseiros e fazendeiros) e o sindicato americano Farqher, a quem o governo haviaincumbido de construir a estrada de ferro So Paulo Rio Grande. O estopim do conflito se d quando omonge Jos Maria e seus seguidores advindos de Santa Catarina acampam no Paran, no limite dos doisestados, ato interpretado em Curitiba-PR como invaso e a partir do qual se desenrolam os conflitos,culminando com o massacre dos camponeses pelo Exrcito (MARTINS, 1995, p. 52-56).6A Ao Popular (AP) surgiu de setores leigos da igreja no campo e assumiu posies radicais de apoio lutados trabalhadores rurais. Sua atuao se dava principalmente por meio do Movimento Educao de Base epela criao de sindicatos de trabalhadores agrcolas (COLETTI, 2005, p. 63).7Segundo Cunha (2007, p. 81) a linha programtica da entidade propunha a reforma agrria como uma dasreivindicaes centrais e a proibio de todas as formas de explorao semifeudal, como a meia, a tera eoutras formas de parceria. Esta linha poltica harmoniza-se com o posicionamento pecebista no que se referea sua luta antifeudal (cf. SANTOS, 1996a, p. 13). Para tratamento mais detido do assunto consultar CUNHA(2004).
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(COLETTI, 2005, p. 66); alm de sua atuao na fundao das Ligas Camponesas em 1945
(FERNANDES, 2000, p. 33).
A CONTAG foi constituda em 1963 a partir das Federaes de Trabalhadores na
Agricultura (FETAGs). Participaram da sua fundao vinte e seis federaes com direito a
voto: dez seguiam a orientao do PCB; oito eram orientadas pela AP; seis eram vinculadas
aos grupos cristos do Nordeste e duas colocavam-se como independentes (COLETTI,
2005, p. 66)8. Segundo Coletti, atravs de um acordo entre PCB e AP, o primeiro ficou com
a presidncia e a tesouraria da entidade, enquanto segunda coube a secretaria (idem). O
autor sublinha que, no processo de constituio da CONTAG, houve uma composio de
foras que excluiu as Ligas camponesas, quela altura completamente isoladas no cenriopoltico das lutas no campo (idem). Devemos retroceder ao incio da organizao das
Ligas para melhor compreender o processo.
A formao das Ligas camponesas inicia-se em 1945 a partir da organizao poltica
de pequenos proprietrios, parceiros, posseiros e meeiros que resistiram expulso da terra
e ao assalariamento puro. Foram criadas em quase todos os Estados com o apoio do Partido
Comunista Brasileiro PCB. Em 1947, contudo, o PCB foi declarado ilegal pelo governo
Dutra e as ligas passaram a ser perseguidas. Seu ressurgimento se dar em 1954 no
municpio de vitria de Santo Anto em Pernambuco, no Engenho da Galilia, onde foi
criada a Sociedade Agrcola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco que ficou mais
conhecida como Liga Camponesa da Galilia. Sua formao foi engendrada pela reao dos
foreiros9 ao aumento da explorao e tentativa de expulso pelo dono do engenho,
buscando o apoio do advogado e deputado Francisco Julio do PCB (FERNANDES, 2000,
p. 33).
8Em suas memrias sobre as mobilizaes camponesas no Brasil, Lyndolfo Silva, membro ativo do PCB nafundao da CONTAG, apresenta uma variao no nmero de federaes que participaram do evento emrelao aos dados apresentados por Coletti. Contudo, mantivemos os nmeros de Coletti porquanto Silva noapresenta estes nmeros com absoluta segurana, uma vez que so relatados a partir de sua memria.Entendemos, entretanto, ser importante sublinhar aquilo que consideramos fundamental, isto , a relao deforas no interior da Contag: Parece que eram nove federaes da AP e uma a menos ou duas a menos dessaIgreja [catlica]. E ns tnhamos vinte e uma. Quer dizer, foi esse povo, esse povo ligado igreja que foi paral, foi falar conosco, com os comunistas; mas no dava, a soma deles no dava para nos vencer. Resultado, anossa posio no foi de exclu-los dali, mas eles no queriam de jeito nenhum uma composio com oscomunistas. Bom, levamos a noite inteira conversando e no ltimo encontro com a AP, que ns aceitvamosmais uma vez a participao deles na diretoria da Contag, e eles [a Igreja] no aceitaram (...). A AP topou(...) (SILVA, apudCUNHA, 2004, p. 102).9 Trabalhadores rurais que pagavam renda da terra em forma de aluguel anual (foro) ao proprietrio dafazenda (FERNANDES, 2000, p. 33).
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Francisco Julio, aps sua visita a Cuba em 1960, passou a conceber a revoluo no
Brasil como uma revoluo de carter socialista (RICCI, 1999, p. 68), demarcando a
contradio entre trabalho e capital como a principal questo a ser resolvida (DIAS, 1996,
p. 95), opondo-se desta maneira idia da necessidade de uma etapa democrtico-burguesa
para a consecuo da revoluo brasileira. Esta posio contrastava com a orientao
poltica do PCB e tornava-se elemento de conflito entre o partido e as Ligas10. No interior
do PCB, nesta poca, se processava um intenso debate acerca do carter da revoluo
brasileira (cf. SANTOS, 1996)11. A orientao efetiva do partido ainda que no
consensual definia-se pelo deslocamento da aliana privilegiada operrio-camponesa para
a construo da frente nica democrtica que inclua a burguesia nacional, o proletariado,os assalariados rurais, semi-assalariados e camponeses, alm das classes mdias urbanas,
agora valorizadas pelo PCB como aliado fundamental, em p de igualdade com os
camponeses (SANTOS, 1999, s/n). Esta opo se consolidou na medida em que o partido
considerou como fundamental a democratizao progressiva da sociedade, num processo
que consistiria em reforma da sociedade brasileira em substituio da mentalidade
revolucionarista (SANTOS, 1999a, s/n). Segundo Santos,
Em lugar da centralidade operrio-camponesa, esse marxismo brasileiro vai conceder toda a
importncia ao tema da relao convergente entre a democratizao social e a democracia poltica,no campo da poltica, importando esta alterao metodolgica num outro tipo de colocao doproblema campons, o qual j no seria mais considerado a questo central da revoluo (idem).
Para Julio, entretanto, a frente nica democrtica, antiimperialista e antifeudal no
seria o caminho mais acertado na medida em que a reforma agrria defendida pelos setores
10Fragmon Borges, um dos autores pecebistas inseridos nos debates acerca da questo agrria (cf. SANTOS,1996), apesar de reconhecer a importncia da liderana de Francisco Julio nos primeiros passos domovimento no Nordeste entre 1952 e 1959, considera que a partir de 1960, principalmente em conseqnciade uma avaliao falsa do nvel de conscincia das massas camponesas e de sua organizao, e de umaapreciao incorreta da experincia da Revoluo Cubana, o deputado Francisco Julio passou a adotarposies que o levariam, num processo, a se isolar do movimento campons e a perder a sua liderana efetiva.Essas posies tinham e tm um contedo profundamente sectrio, esquerdista (BORGES, 1996, p. 113).11Uma mostra da controvrsia interna do PCB pode ser vislumbrada pelas posies divergentes acerca doprograma expressas nos textos apresentados para o IV e o V Congressos do PCB em 1954 e 1960respectivamente (cf. SANTOS, 1996). Enquanto Oto Santos insistia na aliana operrio-camponesa comobase da frente democrtica de libertao nacional (SANTOS, 1996, p. 46) e Nestor Vera criticava a revoluodemocrtico-burguesa uma vez que em sua avaliao a influncia da burguesia sobre o partido seriaprejudicial (VERA, 1996, p. 57), Alberto Passos Guimares defendia transformaes progressistas de carterburgus, defendendo inclusive a possibilidade de transformaes sociais por via pacfica (GUIMARES,1996, p. 83). Diz este ltimo: Indubitavelmente, as transformaes burguesas de contedo revolucionrioobtidas por meios no violentos, constituem uma, entre outras, das comprovaes prticas da tese dapossibilidade real de um caminho pacfico para a revoluo brasileira (idem).
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da burguesia coincidia com aquela recomendada pelo imperialismo porquanto previa a
desapropriao somente mediante a prvia e justa indenizao em dinheiro (JULIO,
1962, p. 66). Em termos polticos diz o dirigente das Ligas este tipo de reforma agrria
significaria a ausncia de contradies, essencial entre essa alta burguesia e o latifndio.
Por este motivo Julio entendia ser muito difcil incluir a reforma agrria na poltica de
frente nica democrtica. Conclui o deputado: descartando-nos desses elementos, nosso
programa passa a ser mais radical, no interesse das classes trabalhadoras (idem).
Neste contexto, as profundas divergncias em torno da revoluo socialista
almejada pelas Ligas Camponesas consideradas sectrias e ultra-esquerdistas pelo PCB12
e diametralmente opostas orientao da Igreja Catlica, que nos anos de 1950 e incio dosanos 1960 era fortemente marcada por posies conservadoras (conforme veremos adiante)
nos fornecem importantes indicaes dos motivos pelos quais o movimento liderado por
Francisco Julio caiu no isolamento poltico em relao aos demais movimentos no campo.
A perda da centralidade operrio-camponesa na poltica do PCB (e a conseqente
diminuio da presena do partido no campo)13somada ao isolamento e enfraquecimento
das Ligas tornou possvel Igreja e aos sindicatos consolidarem sua presena na
organizao dos trabalhadores rurais. Nota-se, entretanto, que a Igreja Catlica se insere na
questo agrria de forma extremamente reacionria. A primeira pastoral sobre a situao no
campo, criada em 1950 em Campanha (MG), nasceu numa reunio de fazendeiros, padres e
professores rurais. Sua principal motivao era a possibilidade da igreja perder os
trabalhadores rurais como tinha perdido os operrios para os demais movimentos sociais e
partidos polticos. A questo era desproletarizar os operrios do campo, evitar o xodo que
levava os trabalhadores para a cidade e os tornava vulnerveis agitao e ao aliciamento
dos comunistas (MARTINS, 1995, p. 88).
Contudo, a instalao da Ditadura Militar e o acirramento da violncia no campoforaram um posicionamento mais contestatrio da Igreja. Paralelamente, nas dcadas de
1960 e 1970, a Igreja Catlica promove importantes discusses acerca de seu papel social.
12Esta avaliao sustentada por DIAS (1996, p. 98) e BORGES (1996, p. 113). Segundo SANTOS (1996, p.17, 1n) a posio deste ltimo reflete a tica pecebista.13Cunha (2007, p. 38) sublinha que o equvoco maior na teoria revolucionria do PCB foi a generalizao docontexto revolucionrio russo do comeo do sculo XX e da III Internacional Comunista para a realidadebrasileira, redundando na poltica orientada pela revoluo democrtico-burguesa e antifeudal. Para DelRoio (apud CUNHA, 2007) esta poltica se refletiu decisivamente na inviabilizao de uma alternativanacional-popular.
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O Conclio Vaticano II (1961) e as Conferncias Episcopais de Medelln, Colmbia (1968)
e Puebla, Mxico (1979) lanaram as bases do que viria a constituir a Teologia da
Libertao (CATO, 1985, 37-56). Os adeptos desta corrente teolgica, a despeito de
constiturem uma minoria, assumiram publicamente a posio poltica de denncia e de
contestao social, dando um rumo diferente daquele que vinha sendo adotado at ento
para a atuao da Igreja entre a populao mais pobre na Amrica Latina.
Os governos militares que se instalaram a partir de 1964 contriburam para o
alargamento da desigualdade social e da violncia no campo na medida em que
favoreceram o aprofundamento da concentrao de terras no Brasil. Sua poltica agrria,
calcada na grande empresa capitalista, lanava mo de manobras legais
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em benefcio doagronegcio. Na medida em que o Estado incentiva a migrao de trabalhadores para a
Amaznia e, ao mesmo tempo, estimula por meios fiscais e creditcios da Superintendncia
de Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM) a implantao de grandes e mdios projetos
agropecurios, a sociedade camponesa preexistente na regio entra em crise. Vtima de todo
tipo de violncia por parte dos novos donos da terra, os produtores rurais que viviam ali h
anos como posseiros, passam a engrossar a massa dos sem-terra. O que est em curso,
nesses casos, a expanso, paulatina ou rpida, da empresa capitalista no campo, da qual o
grileiro a vanguarda e o posseiro a vtima (IANNI, 1979, p.146) 15.
A legislao no Brasil historicamente mostra-se como um dispositivo a servio dos
grupos dominantes em detrimento do conjunto da sociedade. A Lei de Terras (1850)16, a
rigor, regulamentava a propriedade privada da terra, opondo-se, portanto, forma legtima
14Um bom exemplo o projeto de colonizao da Amaznia. Os governos militares procuravam incentivar amigrao de trabalhadores sem-terra para aquela regio no intuito de diminuir as tenses no campo e proverfora de trabalho para a explorao de recursos naturais para grandes grupos nacionais e internacionais aliinstalados. Para isso, ofereciam isenes fiscais para agroindstrias que optassem por instalar-se na regio.Grandes empresas foram beneficiadas ao mesmo tempo em que se postergava a reforma agrria(FERNANDES, 1996, p.32-38).15 No caso da Amaznia, o Estado incentivava a colonizao nas dcadas de 1960 e 1970. Para aregularizao da posse das terras devolutas bastava que, aps a ocupao e constituio do stio, o colonofizesse uma solicitao de ttulo de posse, que mais tarde seria confirmada como ttulo de propriedade.Contudo, ainda que o mecanismo fosse simples, era inacessvel aos posseiros na medida em que a maioria eraanalfabeta e sem recursos. Estes se limitavam a fazer a terra produzir sem ttulo de propriedade. Com odesenvolvimento da Amaznia financiado pelo Estado, as grandes empresas que desejavam instalar-se naregio cumpriam o processo inverso, primeiro pediam o ttulo de propriedade e depois ocupavam a terra,geralmente j ocupada pelos camponeses sem ttulo, que ento perdiam sua posse (IANNI, 1979, p.114).16At 1850 o domnio da terra pertencia ao rei, que podia conceder sua posse transitria, por meio do regimede Sesmarias. A Lei de Terras impe a transformao da posse em propriedade. A posse era uma maneiraregular de ocupao da terra, contudo com a nova legislao deixa de s-lo, tornando-se uma forma provisria(cf. MOURA, 1988, p.15).
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de ocupao at ento que era a posse. Esta foi a norma a partir da qual os posseiros foram
expulsos de suas terras por supostos donos, que a adquiriam no apenas pela compra, mas
na maioria dos casos mediante fraude. Neste sentido, Margarida Moura afirma:Se verdade que a posse tende propriedade, o modo de efetiv-la inclui, em maior ou menor grau,a invaso do que ainda posse, no a sua compra. Desse modo, grandes proprietrios ousimplesmente indivduos poderosos que dispunham de cacife poltico para se tornarem tais,encampavam extensas terras livres, habitadas por indgenas e posseiros e at propriedades parcelares,habitadas por sitiantes desvalidos (MOURA, 1988, p. 15).
Com o fim da escravido e com a necessidade de mo-de-obra em larga escala,
agora assalariada, a principal questo era substituir o trabalho escravo sem prejudicar a
economia da grande fazenda. A soluo encontrada foi a imigrao de pases que tivessem
excesso de populao. Esses imigrantes, contudo, no poderiam encontrar terrasdisponveis para posse no Brasil, por esta razo a Lei de Terras transforma as terras
devolutas em monoplio do Estado: os camponeses no proprietrios, os que chegassem
depois da Lei de Terras ou aqueles que no tiveram suas posses legitimadas em 1850,
sujeitaram-se, pois, (...) a trabalhar para grande fazenda, acumulando peclio, com o qual
pudessem mais tarde comprar terras, at do prprio fazendeiro (MARTINS, 1995, p. 42).
Estas transformaes no regime fundirio resultam no surgimento de um novo contingente
de trabalhadores rurais, distinto dos posseiros e agregados. Trata-se de produtores ruraiscada vez mais dependentes do mercado, de homens livres compradores de terras, cuja
existncia mediatizada por uma terra j convertida em mercadoria (idem, p. 43). Esta a
classe que est fortemente presente nos estados do Sul do pas e que compe a base do
MST em seus primeiros anos de existncia.
Por meio da Constituio de 1891 as terras devolutas so transferidas para os
estados, ficando sob domnio das oligarquias regionais. Caberia ento a cada estado
estabelecer uma poltica de concesso de terras e assim, inicia-se o processo de
transferncia macia de propriedades fundirias para grandes fazendeiros e grandes
empresas de colonizao interessadas na especulao imobiliria processo que caracteriza
principalmente os estados do Sul e do Sudeste (idem).
Da mesma forma, o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) foi um instrumento para
manter a questo agrria sob o controle do poder estatal, de maneira que as tenses sociais
pudessem ser abrandadas. Ao prever prioritariamente a reforma Agrria nas regies de
conflitos, o Estatuto faz uma reforma tpica, de emergncia, destinada a desmobilizar o
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campesinato sempre e onde o problema de terra se tornar tenso, oferecendo riscos polticos
(idem, p. 96). Por um lado, o texto da lei representava um avano na questo fundiria
(mencionava um cadastro de todas as propriedades de terra no pas e a permisso da
desapropriao por interesse social sem indenizao em dinheiro, mas em troca de ttulos
da dvida pblica), incorporando reivindicaes importantes dos movimentos sociais e dos
grupos de esquerda do perodo anterior ao golpe. Por outro lado, a ditadura retirou a fora
poltica dos movimentos sociais para reivindicar o cumprimento da lei. Isto em parte pela
prpria represso a que estavam sujeitos, mas tambm porque as oligarquias rurais
possuam maior poder de presso para garantir que a reforma agrria no ocorresse. O
resultado dessa poltica foi a elevao da concentrao fundiria: num perodo de 15 anos(de 1970 a 1985) 48,4 milhes de hectares de terras pblicas foram transformados em
latifndios, esta cifra representa quase duas vezes a rea do Estado de So Paulo17.
O Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4.214/63) copiava o modelo do sindicalismo
oficial urbano que exigia carta de reconhecimento de novos sindicatos assinada pelo
ministro do trabalho e previdncia social, criava a contribuio sindical, estabelecia como
deveres do sindicato a colaborao com os poderes pblicos e a manuteno dos servios
assistenciais para seus associados. Havia ainda regras formuladas pelo Estado para a
administrao dos sindicatos. Este Sistema sindical que correspondia concepo de
sindicalismo de Estado era constitudo de sindicatos oficiais, federaes, confederaes,
justia do trabalho e ministrio do trabalho, cuja principal caracterstica a extrema
dependncia em relao ao Estado (COLETTI, 2005, p. 61). medida que o Estado
impunha regras para a constituio legal dos sindicatos tornava-os no instncias de
representao dos trabalhadores, mas, sobretudo, agncias burocrticas de fiscalizao do
cumprimento dos deveres trabalhistas. O poder central, desta forma, subtraa dos
trabalhadores a possibilidade de resistncia real s polticas estatais por meio da lutasindical. Segundo Coletti:
[...] os sindicatos de trabalhadores agrcolas se converteriam no s de combate expanso dasLigas Camponesas como tambm de controle das mobilizaes no campo, nas mos do governo. Nofoi por outra razo que os militares no hesitavam em preserv-los, no obstante a vontade dos
17Em 1991 temos 50.105 estabelecimentos com mais de 1000 hectares, que representam 1% do nmero total,abrangendo 43,9% da superfcie agrcola do pas, ou seja, 164.684.300 hectares. Os estabelecimentos de 100a menos de 1000 hectares representam 9% do nmero total (518.618) e controlam uma rea de 131.893.557hectares (35%). J os estabelecimentos com menos de 100 hectares, so 5.252.265 estabelecimentos,representam 90% do nmero total e ocupam 21,1% da superfcie agrcola (Cf. FERNANDES, 1996, p. 41).
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proprietrios rurais que, guiados por interesses mais imediatos queriam v-los destrudos. [...] Emsuma a primeira providnciado governo militar, relativamente ao sindicalismo rural, foi intervir nasdirees sindicais, alijando-se daquelas lideranas sindicais progressistas no-convenientes ao
regime (COLETTI, 2005, p. 63-64, grifos do autor).
Essa longa histria de reformas conservadoras capitaneadas pelo Estado que
sistematicamente excluiu os trabalhadores das decises polticas reflete a influncia das
classes dirigentes tradicionais sobre o aparelho poltico e repressivo estatal. Isto , a
burguesia chega ao poder no Brasil sem profundas rupturas sem o aparelho terrorista
francs (cf. GRAMSCI, 2001, v. 1, p. 426). Deste modo, as antigas classes dirigentes s
quais pertencem os grandes proprietrios de terras so rebaixadas de sua condio de
dominantes condio de governativas, mas no so eliminadas, nem se tenta liquid-
las como conjunto orgnico: as classes tornam-se castas, com determinadas caractersticas
culturais e psicolgicas, no mais com funes econmicas predominantes (idem).
A ausncia de uma revoluo burguesa capaz de suplantar as antigas classes no
poder e conformar uma hegemonia autntica possibilita a permanncia de mecanismos
tradicionais de poder. Estes se travestem de modernidade, conservando, contudo, o poder
patrimonialista sobre o Estado, o que implica em reformas suficientes para a modernizao
capitalista, contudo, sem tocar profundamente nos interesses das classes governativas.
Deste modo os grandes fazendeiros, ainda que no novo sistema deixassem de ser classes
fundamentais, mantiveram sua influncia sobre as polticas de Estado. Depreende-se disto
que a revoluo burguesa que coube ao Brasil foi uma revoluo encapuada
(FERNANDES, 1975, p. 32), ou seja, uma revoluo dentro da ordem.
Na medida em que a iniciativa das mudanas no se encontra nas mos da
populao, ao contrrio das revolues ativas, possvel interpretar a modernizao
conservadora tal qual acontece no Brasil como uma revoluo passiva, conceito
originalmente cunhado por Vicenzo Cuoco e que Gramsci reconstri. Conforme Bianchi(2006) o conceito de revoluo passiva ganha amplitude no pensamento de Gramsci e passa
a ser instrumento de interpretao de acontecimentos contemporneos, de forma que a
modernizao do Estado atravs de uma srie de reformas e guerras pode ser entendida
como uma forma de evitar uma ruptura revolucionria.
Diferentemente do modelo clssico francs que se deu por meio da sublevao
violenta das classes progressistas ao lado das foras populares, redundando na
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transformao radical da ordem social num perodo relativamente curto de tempo a
revoluo passiva ocorre de forma molecular e tutelada pelo Estado. Este o protagonista
do processo, ele dirige as classes que deveriam ser dirigentes as diferentes fraes da
burguesia transformando gradualmente a economia sem alterar de forma radical as
estruturas de poder poltico, excluindo, portanto, as massas populares do processo e
afastando qualquer possibilidade de rupturas violentas:
Este fato de mxima importncia para o conceito de revoluo passiva: isto , que no seja umgrupo social o dirigente de outros grupos, mas que um Estado, mesmo limitado como potncia, seja odirigente do grupo que deveria ser dirigente e possa pr disposio deste ltimo um Exrcito euma fora poltico-diplomtica (GRAMSCI, 2001, v. 5, p. 329).
Desta forma, o poder oligrquico no Brasil sustenta sua influncia sobre Estado ao
mesmo tempo em que as classes subalternas so excludas da participao democrtica, que
a rigor, se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem econmica,
social e politicamente para o exerccio da dominao burguesa (FERNANDES, 1975, p.
292). Dito de outra forma, a excluso dos movimentos sociais e organizaes populares da
participao democrtica equivale a uma forte associao racional entre o
desenvolvimento capitalista e a autocracia das elites (idem) de forma que no Brasil
quase impraticvel usar o espao poltico, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir
as contradies de classe (idem, p. 296). Sob este ponto de vista compreende-se porque as
ocupaes de terra foram a via de acesso mais adequada para que a voz das classes
subalternas pudesse se fazer ouvir.
As ocupaes de terra tornaram-se um mtodo extraparlamentar bastante eficaz
porquanto tornou visveis as demandas das classes excludas do debate pblico no Brasil.
Frente crise dos anos 1980, que j despontava no final da dcada de 1970, com inflao
galopante, estrangulamento do mercado interno e dvida externa em ascenso, o mercado de
trabalho na cidade e no campo no se mostrava promissor. Fechava-se, portanto, a
possibilidade de um contingente cada vez maior de trabalhadores ser absorvido pela via
empregatcia. Os trabalhadores sem-terra antigos posseiros, arrendatrios, meeiros,
parceiros e pequenos proprietrios rurais que perderam suas terras em funo da aplicao
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da Lei de Terras, da apropriao dos grileiros18 e da implantao da agricultura com
caractersticas capitalistas, principalmente em funo da mecanizao das lavouras
passaram a fazer parte de uma massa de trabalhadores pauperizados e com expectativas
restritas de subsistncia. A concentrao destes trabalhadores foi condio necessria, mas
no suficiente para que estes sujeitos integrassem uma organizao poltica capaz de dar
voz e visibilidade ao problema fundirio no Brasil.
A concentrao fundiria e a constituio da empresa agrcola, apoiadas pelo
aparato jurdico e militar do Estado, expulsaram os lavradores de suas unidades produtivas
isoladas, rompendo de forma violenta com sua auto-suficincia e submetendo-os a um
processo de proletarizao. Este processo alterou de forma significativa o universo scio-cultural campons. Contudo, a organizao poltica destes trabalhadores no foi
espontnea. Ela encontrou condio suficiente para concretizar-se por meio das pastorais e
dos sindicatos rurais, foras polticas capazes de direo necessria para dar coeso s
reivindicaes sem-terra19.
As alteraes estruturais no campo, que representam um profundo trauma nas
formas de vida e de socializao camponesa, metamorfoseiam a fazenda numa empresa
capitalista e o campons num assalariado ou semi-assalariado. O universo simblico e
material campons gradualmente desagrega-se. Esvai-se a auto-suficincia e o isolamento
da produo de subsistncia, fundamento da esterilidade poltica camponesa e elemento
essencial que torna cada grupo familiar campons uma unidade homloga sem ligao
orgnica com a classe (MARX, 2003, p. 38). A interao social necessria para permitir a
organizao poltica no campo decorre do prprio drama de uma classe em agonia, isto ,
da proletarizao do campons. Este processo foi elemento essencial para que grupos
18So diversas, intrincadas e, em geral, eficazes as tcnicas de grilagem. Os recursos so variados, desde asimples alterao de nmeros nos ttulos ou sua completa falsificao, at complicadas manobras articuladaspor advogados inescrupulosos. Um grileiro poderia mandar fabricar um ttulo e apresent-lo s autoridadespedindo a regularizao fundiria, alegando t-la adquirido de boa f (IANNI, 1979, p.169).19Peschanski (2007) chama a ateno de maneira apropriada para certo determinismo encontrado nas anlisesque tratam do surgimento do MST como resultado direto da modernizao conservadora e da expropriao. Oautor sublinha que estas transformaes estruturais foram importantes, mas no so suficientes comoexplicao para a organizao dos trabalhadores sem-terra. Segundo Peschanski o ambiente de incerteza emque viviam os colonos, aliado memria das mobilizaes anteriormente vividas no campo e a oportunidadeoferecida por uma rede de relaes e informaes favorecidas, sobretudo, pelo trabalho dos setoresprogressistas da Igreja criaram condies para o surgimento do MST (PESCHANSKI, 2007, p. 24-27). Oconceito de incerteza traduz a situao em que certas interpretaes da vida em sociedade e tradies queinibem protestos deixam de ser seguidas comeam haver questionamentos em relao s instituies e spessoas que as impem (PESCHANSKI, 2007, p. 24).
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dirigentes encontrassem aceitao e pudessem atuar ideologicamente na organizao destes
sujeitos em transio.
Em suma, a proletarizao dos camponeses e a conseqente desagregao das
formas de vida baseadas no isolamento da economia familiar de subsistncia engendradas
pelas transformaes estruturais no campo encontram na formao e direo poltica dos
mediadores religiosos as condies necessrias para organizao dos trabalhadores rurais,
tornando possvel a reao contra a expropriao e a reivindicao de transformaes
polticas e econmicas adequadas s classes subalternas. Contudo, conforme veremos, as
relaes de foras sociais desfavorveis a estas classes no permitiram at os dias atuais
nem mesmo reformas significativas.O trabalho organizativo, principalmente aquele desenvolvido pelas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs)20, fundamental para compreender como se d a formao da
conscincia dos interesses econmicos comuns ao grupo econmico, isto , para entender a
transio da mentalidade permeada pelo isolamento e autonomia camponesa para a
percepo do carter social da luta pela satisfao de necessidades coletivas dos
trabalhadores separados dos meios de produo.
As CEBs desempenharam um importante papel na organizao dos movimentos
populares no campo, por se tornarem espaos de reflexo e organizao das massas,
trabalhando ativamente nos anos finais da ditadura militar 21. No final da dcada de 1970 e
incio de 1980, intensificam-se as ocupaes de terra pelo pas, surgindo inmeros
20As CEBs so comunidades que se organizaram em torno das parquias (urbanas) ou das capelas (rurais),por iniciativa de leigos, padres ou bispos. Seu carter popular atribudo pela participao massiva de leigos,os quais fazem o trabalho com a comunidade atravs de visitas, organizao de reunies e participao nascelebraes. Segundo Frei Betto, as comunidades so chamadas de base justamente por estarem integradass classes populares, compreendendo donas-de-casa, operrios, subempregados, aposentados, jovens eempregados dos setores de servios, na periferia urbana; na zona rural, assalariados agrcolas, posseiros,pequenos proprietrios, arrendatrios, pees e seus familiares (Cf. BETTO, 1981, p.16).21A mudana social no foi explicitamente o primeiro objetivo dos clrigos que desenvolveram a idia dascomunidades de base. Antes de tudo, eram uma inovao pastoral, um meio de revitalizar a Igreja, apesar daescassez de padres, em face do proselitismo vigoroso dos protestantes pentecostais. Elas se tornaram veculosda mudana social por trs motivos: (1) desenvolveram-se num perodo em que a Igreja comeava a darouvidos a problemas sociais, em parte como conseqncia do movimento da Ao Catlica, que teveinfluncia no Brasil dos anos cinqenta e incio dos sessenta, e em parte como uma reao defensiva foracrescente de grupos socialistas; (2) deram nfase iniciativa laica, e como a maior parte dos leigos no Brasil gente pobre, isso abriria um espao para que os pobres desenvolvessem e expressassem seus pontos de vista;(3) o modelo de dinmica de grupo usado nas CEBs foi o mtodo de conscientizao desenvolvido noMovimento de Educao de Base, entidade ligada Igreja que dava destaque a uma anlise crtica darealidade social (ADRIANCE, 1996, p. 178).
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movimentos sociais no campo, com diferentes denominaes, cuja maioria contava com o
apoio da Igreja Catlica:
Nos dois primeiros anos da dcada de oitenta, a Associao Brasileira de Reforma Agrria (Abra)registra 1.363 conflitos de terra. A maior parte das lutas iniciadas pelos movimentos sociais contacom o apoio da Igreja Catlica e de alguns partidos de oposio que comeavam a ser legalizados,assim como do novo sindicalismo em ascenso (FERNANDES, 1996, p. 56).
Aps 1964, quando se inicia a Ditadura Militar e os movimentos sociais so
duramente reprimidos, as CEBs so preservadas, visto que para os generais estas pareciam
inofensivos grupos de estudo bblico. Tornam-se desta forma um dos poucos espaos de
discusso poltica existentes durante os anos mais fechados do regime militar. As
comunidades de base, portanto, cumprem o papel de fomentadoras do debate poltico
durante a ditadura. J nos anos 1980, na iminncia da abertura poltica e com a expectativa
de eleies, so iniciados os debates polticos partidrios. O IV Encontro Intereclesial das
CEBs, em abril de 1981 gerou uma grande expectativa por parte da mdia a respeito do
apoio das comunidades de base aos partidos, mostra de sua importncia poltica. Porm, o
debate poltico partidrio ainda era um ponto que deveria receber ateno especial, pois a
maioria dos membros das CEBs no se sentiam suficientemente esclarecidos sobre o
assunto (cf. SOUZA, 1981, p. 709). Em decorrncia disto, as plenrias do encontro foram
usadas para que os delegados das bases pudessem manifestar suas opinies e experincias.
O trabalho das comunidades, portanto, j antecipava a democratizao do debate poltico,
medida que dava voz aos grupos leigos, principalmente em reas rurais, e este o principal
elo histrico entre as CEBs e o MST.
Depreende-se disto que as CEBs foram um plo central de organizao poltica,
pois no perodo entre 1960 e 1980 gozou de relativa liberdade para organizao de
movimentos sociais e para educao poltica, desempenhando papel fundamental na
formao de quadros que posteriormente se integrariam aos partidos polticos, sindicatos edemais organizaes da sociedade civil no cenrio nacional. Seu papel foi fundamental na
organizao dos movimentos no campo, pois nas reas rurais havia dificuldades da visita
por parte dos padres em virtude das distncias, que eram maiores, por isso os leigos
desempenhavam um papel relevante, assumindo postos de liderana.
A maior influncia das CEBs no campo pode ser observada a partir da abertura
poltica, quando, nas reas urbanas prosperaram movimentos populares, diminuindo o
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tempo de dedicao dos militantes a servio nas Comunidades Eclesiais. No campo, os
movimentos sociais no-religiosos tiveram menor penetrao e em conseqncia, as CEBs
permaneceram como principal veculo da militncia.
A alterao da concepo religiosa conformista deste extrato progressista (e
minoritrio) da igreja elemento poltico importante para compreenso da sua tarefa
educativa entre os lavradores, que assumem uma atitude de rompimento com a passividade
e passam confrontao do sistema predominante de posse da terra. As atividades da CEBs
estavam claramente voltadas para a formao poltica dos seus membros. No IV Encontro
Intereclesial, um dos pontos debatidos importantes foi a participao poltica. Nas palavras
de um dos participantes do encontro:Um dos pontos que recebeu bastante ateno foi a nossa participao poltica, pois achamos que apoltica o que mais influi da gente. Tentamos clarear as nossas idias nesse ponto da poltica. Apoltica a grande arma que temos para construir uma sociedade justa do jeito que Deus quer(SOUZA, 1981, p. 709).
A Teologia da Libertao, operante nas CEBs contribuiu em grande medida para
apresentar a poltica enquanto espao de ao da f, ou dito de outra forma, as CEBs
pregam uma f que deve se materializar atravs da ao poltica.
A f no mais entendida apenas em sua dimenso transcendental, mas tambm em sua expresso
categorial, sendo uma orientada para a outra. Tal o modelo dialtico de compreenso da f crist.Por isso o modelo mecnico e dogmtico que entende a f como regra ou princpio e a poltica comosua aplicao ou o que pe a f como opo e a poltica como simples conseqncia, insuficientepara dar conta da experincia da f tal como a vivem as CEBs e segundo a qual a poltica parteintegrante da f (BOFF,1980, p. 598).
Assim, possvel identificar nas prticas, discursos e princpios das CEBs os
elementos poltico-religiosos que vo constituir os princpios diretivos do MST, quais so:
preocupao com a formao poltica (idem); a formao da conscincia de classe (idem, p.
596) e a utopia socialista como parte constitutiva da Teologia da Libertao e seu
referencial marxista (idem, p. 619). Em suma, as comunidades consistem em instituies
educativas da sociedade civil, e como tal desempenharam papel importante na educao
poltica no campo:
L onde essas organizaes (os sindicatos) no existem ainda, como no interior da floresta ou aolongo dos rios, as CEBs vm a funcionar como instrumentos de luta variada. Tm ento um carterplurifuncional: podem servir para educao, esporte, luta pela terra, educao partidria, etc. Ou seja,realizam aquelas funes que normalmente so preenchidas por instituies apropriadas numasociedade mais diversificada (idem, p. 604).
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A ao da Igreja, portanto, um fator que, somado s demais condies polticas,
scio-culturais e econmicas, favorece a organizao poltica dos trabalhadores rurais.
possvel sintetizar as condies peculiares da histria brasileira que concorreram para a
formao do MST em trs pontos principais: 1- as mudanas na estrutura agrria que
produzem um contingente expropriado de trabalhadores sem perspectiva de permanncia
na cidade pela falta de empregos; 2- a ao poltica de setores progressistas da Igreja 22,
inspirados inicialmente pela exacerbao dos conflitos no campo, posteriormente
amparados pela Teologia da Libe