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1 A interpretação alegórica de mitos: das origens a Platão La interpretación alegórica de los mitos: de los orígenes a Platón The allegorical interpretation of myths: from origins to Plato Loraine OLIVEIRA 1 Resumo: Este artigo objetiva apresentar alguns dos principais aspectos da alegoria, entendida como prática hermenêutica, dos seus primórdios, até Platão. A alegoria considera que o texto a ser comentado possui um conteúdo de verdade. Ao mesmo tempo em que surgem as primeiras alegorias de Homero e Hesíodo, também aparecem críticas acerbas aos poemas, que se articulam principalmente em dois polos: a desmitologização do cosmos e a imoralidade dos deuses. Platão recebe dois séculos de disputas em torno aos poemas, e se posiciona claramente contra a prática alegórica, sem, contudo, abandonar o mito. Ocorre que ele desloca o conteúdo de verdade do texto: não é mais na poesia que se deve buscar a verdade, mas sim no discurso filosófico. Palavras-chave: Mito – Alegoria – Interpretação – Verdade – Discurso filosófico. Abstract: The aim of this paper is to present some of the main aspects of allegory understood as hermeneutical practice. Allegory takes as certain that the text to be interpreted possesses some truth content. At the same time that the first allegorical interpretations of Homer and Hesiod appear, there also appear harsh criticisms of their poems. Such criticisms can be grouped under two main headings: the demythologization of the cosmos and the immorality of gods. Plato has behind him two centuries of disputes about the meaning of the poems, and clearly stands against allegorical practice, even though he does not abandon myths. What happens is that he displaces the truth content of the text: truth is not to be sought in poetry anymore, but in philosophical discourse. Keywords: Myths – Allegory – Interpretation – Truth – Philosophical discourse. 1 Professora Adjunta de Filosofia Antiga no Departamento de Filosofia da UFPE. E-mail: [email protected].

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A interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos das origens a Platatildeo

La interpretacioacuten alegoacuterica de los mitos de los oriacutegenes a Platoacuten The allegorical interpretation of myths from origins to Plato

Loraine OLIVEIRA1

Resumo Este artigo objetiva apresentar alguns dos principais aspectos da alegoria entendida como praacutetica hermenecircutica dos seus primoacuterdios ateacute Platatildeo A alegoria considera que o texto a ser comentado possui um conteuacutedo de verdade Ao mesmo tempo em que surgem as primeiras alegorias de Homero e Hesiacuteodo tambeacutem aparecem criacuteticas acerbas aos poemas que se articulam principalmente em dois polos a desmitologizaccedilatildeo do cosmos e a imoralidade dos deuses Platatildeo recebe dois seacuteculos de disputas em torno aos poemas e se posiciona claramente contra a praacutetica alegoacuterica sem contudo abandonar o mito Ocorre que ele desloca o conteuacutedo de verdade do texto natildeo eacute mais na poesia que se deve buscar a verdade mas sim no discurso filosoacutefico Palavras-chave Mito ndash Alegoria ndash Interpretaccedilatildeo ndash Verdade ndash Discurso filosoacutefico Abstract The aim of this paper is to present some of the main aspects of allegory understood as hermeneutical practice Allegory takes as certain that the text to be interpreted possesses some truth content At the same time that the first allegorical interpretations of Homer and Hesiod appear there also appear harsh criticisms of their poems Such criticisms can be grouped under two main headings the demythologization of the cosmos and the immorality of gods Plato has behind him two centuries of disputes about the meaning of the poems and clearly stands against allegorical practice even though he does not abandon myths What happens is that he displaces the truth content of the text truth is not to be sought in poetry anymore but in philosophical discourse Keywords Myths ndash Allegory ndash Interpretation ndash Truth ndash Philosophical discourse

1 Professora Adjunta de Filosofia Antiga no Departamento de Filosofia da UFPE E-mail loraineoliveira13gmailcom

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

Manifestations of the Ancient and Medieval World Manifestaciones de los mundos antiguo y medieval

Manifestaccedilotildees da Antiguidade e da Idade Meacutedia Jan-Jun 2017ISSN 1676-5818

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ENVIADO 10042017 ACEPTADO 03052017

Na Repuacuteblica apoacutes excluir a poesia imitativa da cidade Platatildeo diz que a querela entre a filosofia e a poesia eacute antiga (607 b 5-6) Com efeito desde o seacuteculo VI AEC tem-se registro de dois movimentos relativos aos poemas de Homero e Hesiacuteodo de um lado eles satildeo rejeitados de outro satildeo defendidos Com efeito observa-se que os filoacutesofos da natureza os preacute-socraacuteticos figuram entre os primeiros detratores dos mitos Aleacutem de apontar para a imoralidade dos deuses que cometiam adulteacuterios estupros e crimes entre consanguiacuteneos por exemplo a criacutetica tambeacutem recai sobre o seguinte homens racionais natildeo podiam acreditar em deuses que faziam coisas impossiacuteveis por natureza tais como transformar humanos em animais ou plantas Este tipo de accedilatildeo compromete a natureza dos seres Mais ainda compromete o conteuacutedo de verdade dos mitos Pois uma vez que eles narram acontecimentos impossiacuteveis natildeo podem ser fonte de conhecimento verdadeiro Esta eacute em siacutentese a querela contra a poesia Note-se que mito e poesia na antiguidade se confundem De tal modo que se o mito eacute uma narrativa falsa o poeta eacute um mentiroso Por outro lado surgem interpretaccedilotildees alegoacutericas dos mitos com o escopo de defender a verdade destes discursos Basicamente a exegese alegoacuterica de mitos descobre um sentido profundo sob a letra do texto A propoacutesito cabe notar que os gregos natildeo soacute produziram narrativas maravilhosas mas tambeacutem ferramentas para as interpretar Isso os diferencia de outros povos antigos que tambeacutem tinham uma riquiacutessima mitologia como os Hindus os Sumeacuterios os Egiacutepcios ou os Acaacutedios Ocorre que para os gregos interpretar eacute determinar o que em um texto eacute verdade Para estabelecer a verdade de um texto diferentes flancos de especulaccedilatildeo se abrem Pode-se buscar a verdade a respeito da origem do cosmo da alma dos proacuteprios deuses da origem da humanidade A tarefa consiste pois em descortinar a verdade subjacente agrave letra do texto Deste modo accedilotildees iacutempias atribuiacutedas aos deuses podem indicar que naquele ponto da narrativa se oculta uma verdade Cabe ao alegorista explicar esta verdade Observa-se pois que quando na Repuacuteblica II mas tambeacutem no Fedro Platatildeo recusa a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos havia jaacute uma longa histoacuteria de interpretaccedilotildees dos mitos de Homero e Hesiacuteodo

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Palmilhar esta histoacuteria em poucas paacuteginas eacute temeraacuterio porquanto se incorre no risco da superficialidade e das repeticcedilotildees inuacuteteis do que outros disseram e de modo mais fartamente documentado em livros hoje claacutessicos como o monumental Mythe et Alleacutegorie de Jean Peacutepin Isso sem contar que o tema eacute labiriacutentico pois por um lado o proacuteprio conceito de alegoria eacute ambivalente podendo designar tanto um modo de expressatildeo como uma variedade de interpretaccedilatildeo O conceito aqui eacute delimitado em seu segundo sentido o de um tipo de interpretaccedilatildeo neste caso a de mitos Isso todavia natildeo elimina as dificuldades porque por outro lado ao situar as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos na aurora e Platatildeo no horizonte histoacuterico-especulativo do estudo criam-se ainda um sem fim de corredores desviantes neste labirinto Com o fito de delimitar o tema este artigo se divide em trecircs partes Na primeira busca-se definir o que eacute alegoria entendida como praacutetica hermenecircutica Posto isso na segunda parte apresentam-se as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Na terceira seraacute vista a querela contra a poesia considerando as linhas gerais dos dois pontos principais da criacutetica que satildeo a imoralidade e a desmitologizaccedilatildeo do cosmos Finalmente a quarta parte trata da recusa de Platatildeo pela exegese alegoacuterica comentando sumariamente as duas passagens dos diaacutelogos em que ele menciona a questatildeo a saber Repuacuteblica 378 d3-e3 e Fedro 222b-230a I O que eacute alegoria O termo ldquoalegoriardquo foi transposto do grego para as liacutenguas hodiernas significando em geral tanto um modo de expressatildeo como de interpretaccedilatildeo que consiste em representar ideias ou pensamentos sob forma figurada e em que cada figura funciona como disfarce daquilo que eacute representado Etimologicamente a palavra allegoriacutea eacute formada por aacutellos ldquooutrordquo e agoreuacuteo ldquoeu falordquo Quer dizer ao se falar de uma coisa fala-se na verdade de outra coisa Assim no mundo Antigo alegoria pode ser definida como a figura de linguagem na qual haacute um sentido aparente e um outro oculto por traacutes do aparente Mas tambeacutem pode ser entendida como o procedimento hermenecircutico que visa descobrir o sentido oculto dos mitos que eacute o verdadeiro2

2 Leitores que se interessem pela histoacuteria da alegoria devem consultar os claacutessicos estudos de BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 e de PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue et augmenteacutee Paris Etudes augustiniennes 1976 BRISSON L Introduction agrave la philosophie du mythe 1 ndash

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O significado mais corrente do termo alegoria na Antiguidade eacute fazer compreender uma coisa dizendo outra Poreacutem Goulet3 adverte nem tudo o que foi historicamente chamado de alegoria eacute obrigatoriamente alegoacuterico Donde a difiacutecil compreensatildeo do que eacute essencial na alegoria Pode-se mesmo dizer que a alegoria possui uma relaccedilatildeo com a metoniacutemia4 o eufemismo5 a ironia6 a antiacutefrase7 a metaacutefora8 Todas estas figuras de linguagem tecircm em comum o fato de dizer uma coisa querendo significar uma outra A fim de compreender a especificidade sem negar a complexidade da alegoria eacute importante observar que para um comentador antigo interpretar alegoricamente um texto eacute reconhecer o sentido oculto sob a letra do texto Mesmo que os primeiros exegetas de Homero natildeo utilizassem a palavra grega alegoria para designar sua tarefa o sentido do termo alegoria designa a postura geral deles diante dos mitos e este sentido eacute subsumido a outros termos como hypoacutenoia de uso comum nos exegetas mais antigos Com efeito hypoacutenoia tem o sentido primeiro de ldquosuspeitardquo ldquoconjeturardquo Este substantivo corresponde ao verbo hyponoeacuteo que significa ldquosuspeitarrdquo9 mas tambeacutem ldquoverrdquo ldquopensar sobrdquo Em um sentido geral designa a operaccedilatildeo muitas vezes elementar que faz um dado percebido se tornar uma hipoacutetese10

Sauver les mythes Paris Vrin 1996 traduzido para o portuguecircs Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo Paulus 2014 A ediccedilatildeo de PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 Haacute ainda o artigo de TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly (2) 1934 105-114 que antecipa pontos dos estudos sobre a alegoria que se seguiram E o recentemente publicado HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers Oxford University Press 2017 3 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir) GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 4 Consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semacircntico normal por ter uma significaccedilatildeo que tenha relaccedilatildeo objetiva de contiguidade material ou conceitual com o conteuacutedo ou o referente ocasionalmente pensado Natildeo se trata de relaccedilatildeo comparativa como no caso da metaacutefora 5 Palavra locuccedilatildeo ou acepccedilatildeo mais agradaacutevel usada com o fito de suavizar ou minimizar o peso conotador de outra menos agradaacutevel ou mesmo tabuiacutestica 6 Figura por meio da qual se diz o contraacuterio do que se quer dar a entender 7 Uso de uma palavra ou frase com sentido oposto ao verdadeiro para efeito estiliacutestico por tabuiacutestica ou por ironia 8A metaacutefora exprime algo sem nomeaacute-lo diretamente mas nomeando algo aparentado ou semelhante (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1405 a 35) 9 Em Aristoacutefanes o termo aparece com o sentido de suspeita (A paz 993) Em Platatildeo haacute uma ocorrecircncia com este sentido nas Leis 679 c5 10 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85

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Em outros termos a passagem da sensaccedilatildeo agrave conjetura constitui a hypoacutenoia Outra acepccedilatildeo de hypoacutenoia estaacute ligada agrave interpretaccedilatildeo alegoacuterica de poemas mitos e representaccedilotildees visuais11 Trata-se de decifrar nessas narrativas ou descriccedilotildees o sentido oculto ou subentendido Esse sentido particular natildeo se afasta do sentido mais geral uma vez que concerne agrave relaccedilatildeo entre um dado sensiacutevel e uma representaccedilatildeo intelectual Quanto agrave traduccedilatildeo desse termo para o vernaacuteculo eacute liacutecito guardar a polissemia optando ora por ldquosentido profundordquo ora por ldquosubentendidordquo ou ainda por ldquoalegoriardquo quando se referindo especialmente agrave interpretaccedilatildeo de mitos O uso teacutecnico do termo hypoacutenoia parece remontar aproximadamente ao IV seacuteculo AEC12 Com efeito as atestaccedilotildees mais antigas do termo alegoria parecem remontar ao seacuteculo I AEC mas a palavra allegoriacutea pode ter sido difundida a partir da escola de Peacutergamo embora isso natildeo se possa afirmar com certeza Sabe-se poreacutem que na escola de Peacutergamo natildeo era praticada uma exegese literal dos textos mas sim inspirada nas teses estoicas o que pode ser considerado um dos fatores que abriu a via para os meacutetodos neoplatocircnico e cristatildeo de interpretaccedilatildeo de textos miacuteticos13 Jaacute Plutarco indica ter havido uma mudanccedila na terminologia de hyponoiacutea para allegoriacutea em uma passagem emblemaacutetica do seu Como os jovens devem ouvir os poetas14 Com efeito as duas palavras parecem indicar a mesma coisa Inicialmente alegoria era um termo retoacuterico que significava expressar um pensamento como uma metaacutefora Passou a designar uma narrativa inteira em termos metafoacutericos e simultaneamente compreender uma narrativa dessa maneira Ambos os termos incluem aspectos composicionais e interpretativos do ato de comunicaccedilatildeo15

11 E neste caso um bom exemplo se encontra em Euriacutepides ao descrever a imagem em relevo do escudo de Capaneu dizendo que eacute siacutembolo (hypoacutenoia) da sorte reservada agrave cidade (As Feniacutecias 1128 ndash 1133) 12 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 p 52 13 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon Porto Alegre nordm 49 julho-dezembro 2010 pp155-167 p 156 14 ldquoEstes mitos alguns comentadores com o que eles chamavam outrora subentendido (hyponoiacuteais) e que chamamos agora alegorias (allegoriacuteais) torturam e falseiam a interpretaccedilatildeordquo (Plutarco De aud poet 4 Moralia 19) O texto inteiro do De aud poet se encontra no primeiro volume das Moralia entre 14d - 37b 15 HERREN M The Anatomy of Myth p 73

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

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ENVIADO 10042017 ACEPTADO 03052017

Na Repuacuteblica apoacutes excluir a poesia imitativa da cidade Platatildeo diz que a querela entre a filosofia e a poesia eacute antiga (607 b 5-6) Com efeito desde o seacuteculo VI AEC tem-se registro de dois movimentos relativos aos poemas de Homero e Hesiacuteodo de um lado eles satildeo rejeitados de outro satildeo defendidos Com efeito observa-se que os filoacutesofos da natureza os preacute-socraacuteticos figuram entre os primeiros detratores dos mitos Aleacutem de apontar para a imoralidade dos deuses que cometiam adulteacuterios estupros e crimes entre consanguiacuteneos por exemplo a criacutetica tambeacutem recai sobre o seguinte homens racionais natildeo podiam acreditar em deuses que faziam coisas impossiacuteveis por natureza tais como transformar humanos em animais ou plantas Este tipo de accedilatildeo compromete a natureza dos seres Mais ainda compromete o conteuacutedo de verdade dos mitos Pois uma vez que eles narram acontecimentos impossiacuteveis natildeo podem ser fonte de conhecimento verdadeiro Esta eacute em siacutentese a querela contra a poesia Note-se que mito e poesia na antiguidade se confundem De tal modo que se o mito eacute uma narrativa falsa o poeta eacute um mentiroso Por outro lado surgem interpretaccedilotildees alegoacutericas dos mitos com o escopo de defender a verdade destes discursos Basicamente a exegese alegoacuterica de mitos descobre um sentido profundo sob a letra do texto A propoacutesito cabe notar que os gregos natildeo soacute produziram narrativas maravilhosas mas tambeacutem ferramentas para as interpretar Isso os diferencia de outros povos antigos que tambeacutem tinham uma riquiacutessima mitologia como os Hindus os Sumeacuterios os Egiacutepcios ou os Acaacutedios Ocorre que para os gregos interpretar eacute determinar o que em um texto eacute verdade Para estabelecer a verdade de um texto diferentes flancos de especulaccedilatildeo se abrem Pode-se buscar a verdade a respeito da origem do cosmo da alma dos proacuteprios deuses da origem da humanidade A tarefa consiste pois em descortinar a verdade subjacente agrave letra do texto Deste modo accedilotildees iacutempias atribuiacutedas aos deuses podem indicar que naquele ponto da narrativa se oculta uma verdade Cabe ao alegorista explicar esta verdade Observa-se pois que quando na Repuacuteblica II mas tambeacutem no Fedro Platatildeo recusa a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos havia jaacute uma longa histoacuteria de interpretaccedilotildees dos mitos de Homero e Hesiacuteodo

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Palmilhar esta histoacuteria em poucas paacuteginas eacute temeraacuterio porquanto se incorre no risco da superficialidade e das repeticcedilotildees inuacuteteis do que outros disseram e de modo mais fartamente documentado em livros hoje claacutessicos como o monumental Mythe et Alleacutegorie de Jean Peacutepin Isso sem contar que o tema eacute labiriacutentico pois por um lado o proacuteprio conceito de alegoria eacute ambivalente podendo designar tanto um modo de expressatildeo como uma variedade de interpretaccedilatildeo O conceito aqui eacute delimitado em seu segundo sentido o de um tipo de interpretaccedilatildeo neste caso a de mitos Isso todavia natildeo elimina as dificuldades porque por outro lado ao situar as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos na aurora e Platatildeo no horizonte histoacuterico-especulativo do estudo criam-se ainda um sem fim de corredores desviantes neste labirinto Com o fito de delimitar o tema este artigo se divide em trecircs partes Na primeira busca-se definir o que eacute alegoria entendida como praacutetica hermenecircutica Posto isso na segunda parte apresentam-se as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Na terceira seraacute vista a querela contra a poesia considerando as linhas gerais dos dois pontos principais da criacutetica que satildeo a imoralidade e a desmitologizaccedilatildeo do cosmos Finalmente a quarta parte trata da recusa de Platatildeo pela exegese alegoacuterica comentando sumariamente as duas passagens dos diaacutelogos em que ele menciona a questatildeo a saber Repuacuteblica 378 d3-e3 e Fedro 222b-230a I O que eacute alegoria O termo ldquoalegoriardquo foi transposto do grego para as liacutenguas hodiernas significando em geral tanto um modo de expressatildeo como de interpretaccedilatildeo que consiste em representar ideias ou pensamentos sob forma figurada e em que cada figura funciona como disfarce daquilo que eacute representado Etimologicamente a palavra allegoriacutea eacute formada por aacutellos ldquooutrordquo e agoreuacuteo ldquoeu falordquo Quer dizer ao se falar de uma coisa fala-se na verdade de outra coisa Assim no mundo Antigo alegoria pode ser definida como a figura de linguagem na qual haacute um sentido aparente e um outro oculto por traacutes do aparente Mas tambeacutem pode ser entendida como o procedimento hermenecircutico que visa descobrir o sentido oculto dos mitos que eacute o verdadeiro2

2 Leitores que se interessem pela histoacuteria da alegoria devem consultar os claacutessicos estudos de BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 e de PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue et augmenteacutee Paris Etudes augustiniennes 1976 BRISSON L Introduction agrave la philosophie du mythe 1 ndash

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O significado mais corrente do termo alegoria na Antiguidade eacute fazer compreender uma coisa dizendo outra Poreacutem Goulet3 adverte nem tudo o que foi historicamente chamado de alegoria eacute obrigatoriamente alegoacuterico Donde a difiacutecil compreensatildeo do que eacute essencial na alegoria Pode-se mesmo dizer que a alegoria possui uma relaccedilatildeo com a metoniacutemia4 o eufemismo5 a ironia6 a antiacutefrase7 a metaacutefora8 Todas estas figuras de linguagem tecircm em comum o fato de dizer uma coisa querendo significar uma outra A fim de compreender a especificidade sem negar a complexidade da alegoria eacute importante observar que para um comentador antigo interpretar alegoricamente um texto eacute reconhecer o sentido oculto sob a letra do texto Mesmo que os primeiros exegetas de Homero natildeo utilizassem a palavra grega alegoria para designar sua tarefa o sentido do termo alegoria designa a postura geral deles diante dos mitos e este sentido eacute subsumido a outros termos como hypoacutenoia de uso comum nos exegetas mais antigos Com efeito hypoacutenoia tem o sentido primeiro de ldquosuspeitardquo ldquoconjeturardquo Este substantivo corresponde ao verbo hyponoeacuteo que significa ldquosuspeitarrdquo9 mas tambeacutem ldquoverrdquo ldquopensar sobrdquo Em um sentido geral designa a operaccedilatildeo muitas vezes elementar que faz um dado percebido se tornar uma hipoacutetese10

Sauver les mythes Paris Vrin 1996 traduzido para o portuguecircs Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo Paulus 2014 A ediccedilatildeo de PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 Haacute ainda o artigo de TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly (2) 1934 105-114 que antecipa pontos dos estudos sobre a alegoria que se seguiram E o recentemente publicado HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers Oxford University Press 2017 3 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir) GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 4 Consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semacircntico normal por ter uma significaccedilatildeo que tenha relaccedilatildeo objetiva de contiguidade material ou conceitual com o conteuacutedo ou o referente ocasionalmente pensado Natildeo se trata de relaccedilatildeo comparativa como no caso da metaacutefora 5 Palavra locuccedilatildeo ou acepccedilatildeo mais agradaacutevel usada com o fito de suavizar ou minimizar o peso conotador de outra menos agradaacutevel ou mesmo tabuiacutestica 6 Figura por meio da qual se diz o contraacuterio do que se quer dar a entender 7 Uso de uma palavra ou frase com sentido oposto ao verdadeiro para efeito estiliacutestico por tabuiacutestica ou por ironia 8A metaacutefora exprime algo sem nomeaacute-lo diretamente mas nomeando algo aparentado ou semelhante (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1405 a 35) 9 Em Aristoacutefanes o termo aparece com o sentido de suspeita (A paz 993) Em Platatildeo haacute uma ocorrecircncia com este sentido nas Leis 679 c5 10 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85

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Em outros termos a passagem da sensaccedilatildeo agrave conjetura constitui a hypoacutenoia Outra acepccedilatildeo de hypoacutenoia estaacute ligada agrave interpretaccedilatildeo alegoacuterica de poemas mitos e representaccedilotildees visuais11 Trata-se de decifrar nessas narrativas ou descriccedilotildees o sentido oculto ou subentendido Esse sentido particular natildeo se afasta do sentido mais geral uma vez que concerne agrave relaccedilatildeo entre um dado sensiacutevel e uma representaccedilatildeo intelectual Quanto agrave traduccedilatildeo desse termo para o vernaacuteculo eacute liacutecito guardar a polissemia optando ora por ldquosentido profundordquo ora por ldquosubentendidordquo ou ainda por ldquoalegoriardquo quando se referindo especialmente agrave interpretaccedilatildeo de mitos O uso teacutecnico do termo hypoacutenoia parece remontar aproximadamente ao IV seacuteculo AEC12 Com efeito as atestaccedilotildees mais antigas do termo alegoria parecem remontar ao seacuteculo I AEC mas a palavra allegoriacutea pode ter sido difundida a partir da escola de Peacutergamo embora isso natildeo se possa afirmar com certeza Sabe-se poreacutem que na escola de Peacutergamo natildeo era praticada uma exegese literal dos textos mas sim inspirada nas teses estoicas o que pode ser considerado um dos fatores que abriu a via para os meacutetodos neoplatocircnico e cristatildeo de interpretaccedilatildeo de textos miacuteticos13 Jaacute Plutarco indica ter havido uma mudanccedila na terminologia de hyponoiacutea para allegoriacutea em uma passagem emblemaacutetica do seu Como os jovens devem ouvir os poetas14 Com efeito as duas palavras parecem indicar a mesma coisa Inicialmente alegoria era um termo retoacuterico que significava expressar um pensamento como uma metaacutefora Passou a designar uma narrativa inteira em termos metafoacutericos e simultaneamente compreender uma narrativa dessa maneira Ambos os termos incluem aspectos composicionais e interpretativos do ato de comunicaccedilatildeo15

11 E neste caso um bom exemplo se encontra em Euriacutepides ao descrever a imagem em relevo do escudo de Capaneu dizendo que eacute siacutembolo (hypoacutenoia) da sorte reservada agrave cidade (As Feniacutecias 1128 ndash 1133) 12 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 p 52 13 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon Porto Alegre nordm 49 julho-dezembro 2010 pp155-167 p 156 14 ldquoEstes mitos alguns comentadores com o que eles chamavam outrora subentendido (hyponoiacuteais) e que chamamos agora alegorias (allegoriacuteais) torturam e falseiam a interpretaccedilatildeordquo (Plutarco De aud poet 4 Moralia 19) O texto inteiro do De aud poet se encontra no primeiro volume das Moralia entre 14d - 37b 15 HERREN M The Anatomy of Myth p 73

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Palmilhar esta histoacuteria em poucas paacuteginas eacute temeraacuterio porquanto se incorre no risco da superficialidade e das repeticcedilotildees inuacuteteis do que outros disseram e de modo mais fartamente documentado em livros hoje claacutessicos como o monumental Mythe et Alleacutegorie de Jean Peacutepin Isso sem contar que o tema eacute labiriacutentico pois por um lado o proacuteprio conceito de alegoria eacute ambivalente podendo designar tanto um modo de expressatildeo como uma variedade de interpretaccedilatildeo O conceito aqui eacute delimitado em seu segundo sentido o de um tipo de interpretaccedilatildeo neste caso a de mitos Isso todavia natildeo elimina as dificuldades porque por outro lado ao situar as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos na aurora e Platatildeo no horizonte histoacuterico-especulativo do estudo criam-se ainda um sem fim de corredores desviantes neste labirinto Com o fito de delimitar o tema este artigo se divide em trecircs partes Na primeira busca-se definir o que eacute alegoria entendida como praacutetica hermenecircutica Posto isso na segunda parte apresentam-se as origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Na terceira seraacute vista a querela contra a poesia considerando as linhas gerais dos dois pontos principais da criacutetica que satildeo a imoralidade e a desmitologizaccedilatildeo do cosmos Finalmente a quarta parte trata da recusa de Platatildeo pela exegese alegoacuterica comentando sumariamente as duas passagens dos diaacutelogos em que ele menciona a questatildeo a saber Repuacuteblica 378 d3-e3 e Fedro 222b-230a I O que eacute alegoria O termo ldquoalegoriardquo foi transposto do grego para as liacutenguas hodiernas significando em geral tanto um modo de expressatildeo como de interpretaccedilatildeo que consiste em representar ideias ou pensamentos sob forma figurada e em que cada figura funciona como disfarce daquilo que eacute representado Etimologicamente a palavra allegoriacutea eacute formada por aacutellos ldquooutrordquo e agoreuacuteo ldquoeu falordquo Quer dizer ao se falar de uma coisa fala-se na verdade de outra coisa Assim no mundo Antigo alegoria pode ser definida como a figura de linguagem na qual haacute um sentido aparente e um outro oculto por traacutes do aparente Mas tambeacutem pode ser entendida como o procedimento hermenecircutico que visa descobrir o sentido oculto dos mitos que eacute o verdadeiro2

2 Leitores que se interessem pela histoacuteria da alegoria devem consultar os claacutessicos estudos de BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 e de PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue et augmenteacutee Paris Etudes augustiniennes 1976 BRISSON L Introduction agrave la philosophie du mythe 1 ndash

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O significado mais corrente do termo alegoria na Antiguidade eacute fazer compreender uma coisa dizendo outra Poreacutem Goulet3 adverte nem tudo o que foi historicamente chamado de alegoria eacute obrigatoriamente alegoacuterico Donde a difiacutecil compreensatildeo do que eacute essencial na alegoria Pode-se mesmo dizer que a alegoria possui uma relaccedilatildeo com a metoniacutemia4 o eufemismo5 a ironia6 a antiacutefrase7 a metaacutefora8 Todas estas figuras de linguagem tecircm em comum o fato de dizer uma coisa querendo significar uma outra A fim de compreender a especificidade sem negar a complexidade da alegoria eacute importante observar que para um comentador antigo interpretar alegoricamente um texto eacute reconhecer o sentido oculto sob a letra do texto Mesmo que os primeiros exegetas de Homero natildeo utilizassem a palavra grega alegoria para designar sua tarefa o sentido do termo alegoria designa a postura geral deles diante dos mitos e este sentido eacute subsumido a outros termos como hypoacutenoia de uso comum nos exegetas mais antigos Com efeito hypoacutenoia tem o sentido primeiro de ldquosuspeitardquo ldquoconjeturardquo Este substantivo corresponde ao verbo hyponoeacuteo que significa ldquosuspeitarrdquo9 mas tambeacutem ldquoverrdquo ldquopensar sobrdquo Em um sentido geral designa a operaccedilatildeo muitas vezes elementar que faz um dado percebido se tornar uma hipoacutetese10

Sauver les mythes Paris Vrin 1996 traduzido para o portuguecircs Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo Paulus 2014 A ediccedilatildeo de PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 Haacute ainda o artigo de TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly (2) 1934 105-114 que antecipa pontos dos estudos sobre a alegoria que se seguiram E o recentemente publicado HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers Oxford University Press 2017 3 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir) GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 4 Consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semacircntico normal por ter uma significaccedilatildeo que tenha relaccedilatildeo objetiva de contiguidade material ou conceitual com o conteuacutedo ou o referente ocasionalmente pensado Natildeo se trata de relaccedilatildeo comparativa como no caso da metaacutefora 5 Palavra locuccedilatildeo ou acepccedilatildeo mais agradaacutevel usada com o fito de suavizar ou minimizar o peso conotador de outra menos agradaacutevel ou mesmo tabuiacutestica 6 Figura por meio da qual se diz o contraacuterio do que se quer dar a entender 7 Uso de uma palavra ou frase com sentido oposto ao verdadeiro para efeito estiliacutestico por tabuiacutestica ou por ironia 8A metaacutefora exprime algo sem nomeaacute-lo diretamente mas nomeando algo aparentado ou semelhante (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1405 a 35) 9 Em Aristoacutefanes o termo aparece com o sentido de suspeita (A paz 993) Em Platatildeo haacute uma ocorrecircncia com este sentido nas Leis 679 c5 10 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85

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Em outros termos a passagem da sensaccedilatildeo agrave conjetura constitui a hypoacutenoia Outra acepccedilatildeo de hypoacutenoia estaacute ligada agrave interpretaccedilatildeo alegoacuterica de poemas mitos e representaccedilotildees visuais11 Trata-se de decifrar nessas narrativas ou descriccedilotildees o sentido oculto ou subentendido Esse sentido particular natildeo se afasta do sentido mais geral uma vez que concerne agrave relaccedilatildeo entre um dado sensiacutevel e uma representaccedilatildeo intelectual Quanto agrave traduccedilatildeo desse termo para o vernaacuteculo eacute liacutecito guardar a polissemia optando ora por ldquosentido profundordquo ora por ldquosubentendidordquo ou ainda por ldquoalegoriardquo quando se referindo especialmente agrave interpretaccedilatildeo de mitos O uso teacutecnico do termo hypoacutenoia parece remontar aproximadamente ao IV seacuteculo AEC12 Com efeito as atestaccedilotildees mais antigas do termo alegoria parecem remontar ao seacuteculo I AEC mas a palavra allegoriacutea pode ter sido difundida a partir da escola de Peacutergamo embora isso natildeo se possa afirmar com certeza Sabe-se poreacutem que na escola de Peacutergamo natildeo era praticada uma exegese literal dos textos mas sim inspirada nas teses estoicas o que pode ser considerado um dos fatores que abriu a via para os meacutetodos neoplatocircnico e cristatildeo de interpretaccedilatildeo de textos miacuteticos13 Jaacute Plutarco indica ter havido uma mudanccedila na terminologia de hyponoiacutea para allegoriacutea em uma passagem emblemaacutetica do seu Como os jovens devem ouvir os poetas14 Com efeito as duas palavras parecem indicar a mesma coisa Inicialmente alegoria era um termo retoacuterico que significava expressar um pensamento como uma metaacutefora Passou a designar uma narrativa inteira em termos metafoacutericos e simultaneamente compreender uma narrativa dessa maneira Ambos os termos incluem aspectos composicionais e interpretativos do ato de comunicaccedilatildeo15

11 E neste caso um bom exemplo se encontra em Euriacutepides ao descrever a imagem em relevo do escudo de Capaneu dizendo que eacute siacutembolo (hypoacutenoia) da sorte reservada agrave cidade (As Feniacutecias 1128 ndash 1133) 12 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 p 52 13 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon Porto Alegre nordm 49 julho-dezembro 2010 pp155-167 p 156 14 ldquoEstes mitos alguns comentadores com o que eles chamavam outrora subentendido (hyponoiacuteais) e que chamamos agora alegorias (allegoriacuteais) torturam e falseiam a interpretaccedilatildeordquo (Plutarco De aud poet 4 Moralia 19) O texto inteiro do De aud poet se encontra no primeiro volume das Moralia entre 14d - 37b 15 HERREN M The Anatomy of Myth p 73

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

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traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

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Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

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O significado mais corrente do termo alegoria na Antiguidade eacute fazer compreender uma coisa dizendo outra Poreacutem Goulet3 adverte nem tudo o que foi historicamente chamado de alegoria eacute obrigatoriamente alegoacuterico Donde a difiacutecil compreensatildeo do que eacute essencial na alegoria Pode-se mesmo dizer que a alegoria possui uma relaccedilatildeo com a metoniacutemia4 o eufemismo5 a ironia6 a antiacutefrase7 a metaacutefora8 Todas estas figuras de linguagem tecircm em comum o fato de dizer uma coisa querendo significar uma outra A fim de compreender a especificidade sem negar a complexidade da alegoria eacute importante observar que para um comentador antigo interpretar alegoricamente um texto eacute reconhecer o sentido oculto sob a letra do texto Mesmo que os primeiros exegetas de Homero natildeo utilizassem a palavra grega alegoria para designar sua tarefa o sentido do termo alegoria designa a postura geral deles diante dos mitos e este sentido eacute subsumido a outros termos como hypoacutenoia de uso comum nos exegetas mais antigos Com efeito hypoacutenoia tem o sentido primeiro de ldquosuspeitardquo ldquoconjeturardquo Este substantivo corresponde ao verbo hyponoeacuteo que significa ldquosuspeitarrdquo9 mas tambeacutem ldquoverrdquo ldquopensar sobrdquo Em um sentido geral designa a operaccedilatildeo muitas vezes elementar que faz um dado percebido se tornar uma hipoacutetese10

Sauver les mythes Paris Vrin 1996 traduzido para o portuguecircs Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo Paulus 2014 A ediccedilatildeo de PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 Haacute ainda o artigo de TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly (2) 1934 105-114 que antecipa pontos dos estudos sobre a alegoria que se seguiram E o recentemente publicado HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers Oxford University Press 2017 3 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir) GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 4 Consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semacircntico normal por ter uma significaccedilatildeo que tenha relaccedilatildeo objetiva de contiguidade material ou conceitual com o conteuacutedo ou o referente ocasionalmente pensado Natildeo se trata de relaccedilatildeo comparativa como no caso da metaacutefora 5 Palavra locuccedilatildeo ou acepccedilatildeo mais agradaacutevel usada com o fito de suavizar ou minimizar o peso conotador de outra menos agradaacutevel ou mesmo tabuiacutestica 6 Figura por meio da qual se diz o contraacuterio do que se quer dar a entender 7 Uso de uma palavra ou frase com sentido oposto ao verdadeiro para efeito estiliacutestico por tabuiacutestica ou por ironia 8A metaacutefora exprime algo sem nomeaacute-lo diretamente mas nomeando algo aparentado ou semelhante (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1405 a 35) 9 Em Aristoacutefanes o termo aparece com o sentido de suspeita (A paz 993) Em Platatildeo haacute uma ocorrecircncia com este sentido nas Leis 679 c5 10 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85

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Em outros termos a passagem da sensaccedilatildeo agrave conjetura constitui a hypoacutenoia Outra acepccedilatildeo de hypoacutenoia estaacute ligada agrave interpretaccedilatildeo alegoacuterica de poemas mitos e representaccedilotildees visuais11 Trata-se de decifrar nessas narrativas ou descriccedilotildees o sentido oculto ou subentendido Esse sentido particular natildeo se afasta do sentido mais geral uma vez que concerne agrave relaccedilatildeo entre um dado sensiacutevel e uma representaccedilatildeo intelectual Quanto agrave traduccedilatildeo desse termo para o vernaacuteculo eacute liacutecito guardar a polissemia optando ora por ldquosentido profundordquo ora por ldquosubentendidordquo ou ainda por ldquoalegoriardquo quando se referindo especialmente agrave interpretaccedilatildeo de mitos O uso teacutecnico do termo hypoacutenoia parece remontar aproximadamente ao IV seacuteculo AEC12 Com efeito as atestaccedilotildees mais antigas do termo alegoria parecem remontar ao seacuteculo I AEC mas a palavra allegoriacutea pode ter sido difundida a partir da escola de Peacutergamo embora isso natildeo se possa afirmar com certeza Sabe-se poreacutem que na escola de Peacutergamo natildeo era praticada uma exegese literal dos textos mas sim inspirada nas teses estoicas o que pode ser considerado um dos fatores que abriu a via para os meacutetodos neoplatocircnico e cristatildeo de interpretaccedilatildeo de textos miacuteticos13 Jaacute Plutarco indica ter havido uma mudanccedila na terminologia de hyponoiacutea para allegoriacutea em uma passagem emblemaacutetica do seu Como os jovens devem ouvir os poetas14 Com efeito as duas palavras parecem indicar a mesma coisa Inicialmente alegoria era um termo retoacuterico que significava expressar um pensamento como uma metaacutefora Passou a designar uma narrativa inteira em termos metafoacutericos e simultaneamente compreender uma narrativa dessa maneira Ambos os termos incluem aspectos composicionais e interpretativos do ato de comunicaccedilatildeo15

11 E neste caso um bom exemplo se encontra em Euriacutepides ao descrever a imagem em relevo do escudo de Capaneu dizendo que eacute siacutembolo (hypoacutenoia) da sorte reservada agrave cidade (As Feniacutecias 1128 ndash 1133) 12 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 p 52 13 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon Porto Alegre nordm 49 julho-dezembro 2010 pp155-167 p 156 14 ldquoEstes mitos alguns comentadores com o que eles chamavam outrora subentendido (hyponoiacuteais) e que chamamos agora alegorias (allegoriacuteais) torturam e falseiam a interpretaccedilatildeordquo (Plutarco De aud poet 4 Moralia 19) O texto inteiro do De aud poet se encontra no primeiro volume das Moralia entre 14d - 37b 15 HERREN M The Anatomy of Myth p 73

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Em outros termos a passagem da sensaccedilatildeo agrave conjetura constitui a hypoacutenoia Outra acepccedilatildeo de hypoacutenoia estaacute ligada agrave interpretaccedilatildeo alegoacuterica de poemas mitos e representaccedilotildees visuais11 Trata-se de decifrar nessas narrativas ou descriccedilotildees o sentido oculto ou subentendido Esse sentido particular natildeo se afasta do sentido mais geral uma vez que concerne agrave relaccedilatildeo entre um dado sensiacutevel e uma representaccedilatildeo intelectual Quanto agrave traduccedilatildeo desse termo para o vernaacuteculo eacute liacutecito guardar a polissemia optando ora por ldquosentido profundordquo ora por ldquosubentendidordquo ou ainda por ldquoalegoriardquo quando se referindo especialmente agrave interpretaccedilatildeo de mitos O uso teacutecnico do termo hypoacutenoia parece remontar aproximadamente ao IV seacuteculo AEC12 Com efeito as atestaccedilotildees mais antigas do termo alegoria parecem remontar ao seacuteculo I AEC mas a palavra allegoriacutea pode ter sido difundida a partir da escola de Peacutergamo embora isso natildeo se possa afirmar com certeza Sabe-se poreacutem que na escola de Peacutergamo natildeo era praticada uma exegese literal dos textos mas sim inspirada nas teses estoicas o que pode ser considerado um dos fatores que abriu a via para os meacutetodos neoplatocircnico e cristatildeo de interpretaccedilatildeo de textos miacuteticos13 Jaacute Plutarco indica ter havido uma mudanccedila na terminologia de hyponoiacutea para allegoriacutea em uma passagem emblemaacutetica do seu Como os jovens devem ouvir os poetas14 Com efeito as duas palavras parecem indicar a mesma coisa Inicialmente alegoria era um termo retoacuterico que significava expressar um pensamento como uma metaacutefora Passou a designar uma narrativa inteira em termos metafoacutericos e simultaneamente compreender uma narrativa dessa maneira Ambos os termos incluem aspectos composicionais e interpretativos do ato de comunicaccedilatildeo15

11 E neste caso um bom exemplo se encontra em Euriacutepides ao descrever a imagem em relevo do escudo de Capaneu dizendo que eacute siacutembolo (hypoacutenoia) da sorte reservada agrave cidade (As Feniacutecias 1128 ndash 1133) 12 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 p 52 13 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon Porto Alegre nordm 49 julho-dezembro 2010 pp155-167 p 156 14 ldquoEstes mitos alguns comentadores com o que eles chamavam outrora subentendido (hyponoiacuteais) e que chamamos agora alegorias (allegoriacuteais) torturam e falseiam a interpretaccedilatildeordquo (Plutarco De aud poet 4 Moralia 19) O texto inteiro do De aud poet se encontra no primeiro volume das Moralia entre 14d - 37b 15 HERREN M The Anatomy of Myth p 73

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Na tentativa de explicar o que eacute alegoria para os antigos Goulet16 elaborou um conjunto de caracteriacutesticas que podem servir como regras a partir das quais a alegoria merece ser julgada ainda que nem toda alegoria antiga respeite tal conjunto de regras17 Em todo caso pode-se tomaacute-las como ponto de partida para a presente anaacutelise Satildeo sete assim enunciadas

1) A alegoria concerne essencialmente a obras e natildeo a fatos histoacutericos Tratando-se de descobrir um sentido oculto eacute preciso supor que um autor o ocultou Evidentemente acontece de os exegetas se referirem aos deuses tais como satildeo conhecidos nos poemas de Homero e Hesiacuteodo sem todavia fazer referecircncia aos textos 2) O sentido oculto pode natildeo ser percebido Esta eacute uma diferenccedila entre a alegoria e as figuras de linguagem com que pode ser confundida Nos tropos em questatildeo o sentido literal figurado deve ser percebido pelo leitor enquanto na alegoria tem-se a intenccedilatildeo de velar o sentido verdadeiro para aquele que lecirc superficialmente o texto 3) A alegoria implica coerecircncia e continuidade para desvelar o sentido oculto eacute necessaacuterio levar em conta o conjunto do texto e natildeo apenas uma passagem isolada 4) A alegoria implica normalmente a negaccedilatildeo do sentido literal Por conseguinte o absurdo ou mesmo a inconveniecircncia ou a inadequaccedilatildeo do sentido literal indicam a existecircncia de um sentido oculto A questatildeo fundamental aqui eacute a seguinte supondo que os mitos comportem partes literais e partes alegoacutericas como distinguir sem risco de errar umas das outras uma vez que o mito se apresenta sob uma aparecircncia perfeitamente homogecircnea Esta questatildeo posta por Arnoacutebio em Adversus Notiones jaacute havia sido entrevista pelos exegetas pagatildeos que entendiam o absurdo do sentido literal de um mito como sendo um indiacutecio infaliacutevel da necessidade de explorar alegoricamente o mito18 Portanto a alegoria nega a historicidade

16 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo pp 100-104 17 As expressotildees ldquoregrasrdquo ldquoleisrdquo ou ainda ldquopreceitos da alegoriardquo aparecem sob a pluma de vaacuterios exegetas antigos da Biacuteblia como mostra Peacutepin alguns favoraacuteveis outros hostis agrave alegoria O comentaacuterio de Peacutepin a tais expressotildees assim como um pequeno dossiecirc das suas ocorrecircncias encontra-se em PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 pp 185-197 18 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie a Dante pp 167-185

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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das narrativas miacuteticas De fato natildeo parece haver motivo para encontrar fatos histoacutericos ocultos pelo simbolismo da alegoria 5) Como um meacutetodo a alegoria deve respeitar regras ldquoA alegoria eacute um meacutetodo racional e ela pressupotildee que o autor tenha construiacutedo sua obra de tal modo que todos os detalhes do texto e que o conjunto dos episoacutedios tomem lugar na elaboraccedilatildeo de um sentido oculto coerenterdquo19 6) Historicamente a alegoria aparece como uma soluccedilatildeo a um problema cultural bem determinado trata-se do momento em que textos venerados natildeo correspondem mais agraves exigecircncias de uma sociedade com novas normas intelectuais e morais 7) Por fim a alegoria eacute passiacutevel de ser interpretada por qualquer leitor capaz de examinar inteligentemente o texto

Evidentemente estas regras natildeo se encontram sistematizadas desta maneira nos textos antigos Mas considerando-as eacute mister observar que tanto inovaccedilotildees como deformaccedilotildees surgiram ao longo da antiguidade greco-romana II As origens da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Ao descrever o nascimento da alegoria Peacutepin20 considera que Pitaacutegoras e Heraacuteclito de Eacutefeso preparam o terreno para a exegese alegoacuterica A justificativa reside no fato de que ambos se utilizam de uma linguagem enigmaacutetica e simboacutelica Ao lado disso por meados do seacuteculo V AEC parece que Anaxaacutegoras e seus disciacutepulos teriam desenvolvido um tipo de alegoria moral ou psicoloacutegica21 Dois dentre seus disciacutepulos destacam-se na histoacuteria da alegoria Metrodoro de Lampsaco e Dioacutegenes de Apolocircnia Ao final do Vdeg seacuteculo Demoacutecrito tambeacutem pratica a alegoria fiacutesica e a psicoloacutegica Eacute curioso considerar que Heraacuteclito tenha preparado o terreno para a alegoria logo ele que como seraacute visto agrave frente encetou duras criacuteticas aos mitos Mas o que estaacute em

19 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo p 102 20 PEPIN J Mythe et alleacutegorie p 85-92 21 ldquoAnaxaacutegoras parece ser o primeiro a declarar que a poesia de Homero dizia respeito agrave virtude e agrave justiccedilardquo (59 A 1 DIELS-KRANZ = DIOacuteGENES LAEacuteRCIO II 11) Ou ainda ldquoOs disciacutepulos de Anaxaacutegoras submetem agrave interpretaccedilatildeo os deuses tais como apresentam os mitos Zeus eacute para eles a razatildeo Atena a arte ()rdquo (61 A 6 DIELS-KRANZ)

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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questatildeo aqui eacute o uso da linguagem simboacutelica natildeo propriamente a atividade hermenecircutica Resta pois tentar identificar a primeira ocorrecircncia de uma pratica alegoacuterica que tenha chegado aos dias de hoje Outra hipoacutetese sobre o iniacutecio da praacutetica alegoacuterica foi apresentada por Tate em um breviacutessimo texto de 192722 e desenvolvida posteriormente no claacutessico artigo de 193423 Em linhas gerais Tate diz que jaacute em Fereacutecides de Siro encontra-se uma forma consciente de alegoria que o historiador pode considerar de algum modo como uma forma embrionaacuteria de alegoria Ele considera que Fereacutecides comentou duas passagens notoacuterias da Iliacuteada I 590 e XV 18 Baseado nisto afirma que Fereacutecides apropriou-se do vocabulaacuterio e revisou as doutrinas das passagens em questatildeo Assim para ele o ponto natildeo eacute saber se Fereacutecides mencionou o nome de Homero alguma vez mas sim que Fereacutecides fornece um excelente exemplo do processo de remodelaccedilatildeo e extensatildeo dos mitos aos seus proacuteprios propoacutesitos Tate diz que para Fereacutecides estaria em questatildeo pois explicar doutrinas que possam estar contidas na poesia homeacuterica Ao explicaacute-las ele amplificaria as doutrinas e as expressaria em outra linguagem Esta tese eacute polecircmica Schibli24 por exemplo discorda abertamente de Tate dizendo que natildeo haacute evidecircncia de exegese alegoacuterica de Homero nos fragmentos de Fereacutecides Bastos25 por seu turno insiste na aproximaccedilatildeo da Teogonia de Fereacutecides aos mitos mesopotacircmicos preacute-helecircnicos mais que a Hesiacuteodo ou Homero Herren26 considera que haacute algumas evidecircncias que permitem ver em Fereacutecides um dos primeiros a fazer interpretaccedilotildees alegoacutericas tendo ele interpretado os nomes dos deuses alegoricamente Mas ele proacuteprio acredita que ldquoestamos em um terreno mais soacutelido com Teaacutegenesrdquo a quem eacute atribuiacutedo um tratado sobre Homero que teria sido o primeiro a interpretar alegoricamente seus poemas Teaacutegenes de Reacutegio viveu na primeira metade do seacuteculo VI AEC A atribuiccedilatildeo dos primoacuterdios da alegoria a ele eacute fundamentada em um antigo testemunho que remonta a Porfiacuterio de Tiro filoacutesofo de estirpe platocircnica que viveu no seacuteculo III EC Porfiacuterio escreveu as ldquoQuestotildees Homeacutericasrdquo texto em defesa de Homero contra seus detratores As questotildees focavam nas inconsistecircncias contradiccedilotildees ilogicidades

22 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review (XLI 6) 1927 214-215 23 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo 105-114 24 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 p 99 n 54 25 BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 26 HERREN M The Anatomy of Myth p 79

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

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improbabilidades criticando as objeccedilotildees morais de Platatildeo Xenoacutefanes e o ldquoassim chamado flagelo de Homerordquo Zoilo de Anfipolis27 Eis o que diz Porfiacuterio

Tοῦ ἀσυμφόρου μὲν ὁ περὶ θεῶν ἔχεται καθόλου λόγος ὁμοίως δὲ καὶ τοῦ ἀπρεποῦς οὐ

γὰρ πρέποντας τοὺς ὑπὲρ τῶν θεῶν μύθους φησίν πρὸς δὲ τὴν τοιαύτην κατηγορίαν οἱ

μὲν ἀπὸ τῆς λέξεως ἐπιλύουσιν ἀλληγορίᾳ πάντα εἰρῆσθαι νομίζοντες ὑπὲρ τῆς τῶν

στοιχείων φύσεως οἷον ἐν ταῖς ἐναντιώσεσι τῶν θεῶν καὶ γάρ φασι τὸ ξηρὸν τῷ ὑγρῷ καὶ

τὸ θερμὸν τῷ ψυχρῷ μάχεσθαι καὶ τὸ κοῦφον τῷ βαρεῖ ἔτι δὲ τὸ μὲν ὕδωρ σβεστικὸν

εἶναι τοῦ πυρός τὸ δὲ πῦρ ξηραντικὸν τοῦ ὕδατος () Μάχας δὲ διατίθεσθαι αὐτόν

διονομάζοντα τὸ μὲν πῦρ Ἀπόλλωνα καὶ Ἥλιον καὶ Ἥφαιστον τὸ δὲ ὕδωρ Ποσειδῶνα

καὶ Σκάμανδρον τὴν δ αὖ σελήνην Ἄρτεμιν τὸν ἀέρα δὲ Ἥραν καὶ τὰ λοιπά ὁμοίως

ἔσθ ὅτε καὶ ταῖς διαθέσεσι ὀνόματα θεῶν τιθέναι τῇ μὲν φρονήσει τὴν Ἀθηνᾶν τῇ δ

ἀφροσύνῃ τὸν Ἄρεα τῇ δ ἐπιθυμίᾳ τὴν Ἀφροδίτην τῷ λόγῳ δὲ τὸν Ἑρμῆν τῇ λήθῃ δὲ

τὴν Λητώ καὶ προσοικειοῦσι τούτοις οὗτος μὲν οὖν τρόπος ἀπολογίας ἀρχαῖος ὢν πάνυ

καὶ ἀπὸ Θεαγένους τοῦ Ῥηγίνου ὃς πρῶτας ἔγραψε περὶ Ὁμήρου τοιοῦτός ἐστιν ἀπὸ τῆς λέξεως28 O discurso geral acerca dos deuses liga-se geralmente ao inapropriado e mesmo ao inconveniente pois os mitos que ele narra sobre os deuses natildeo satildeo convenientes Para dissolver tal acusaccedilatildeo haacute quem evoque a maneira de falar estes estimam que tudo foi dito sob o modo da alegoria e concerne a natureza dos elementos como por exemplo no caso de desacordos entre os deuses Eacute assim que segundo eles o seco combate o uacutemido o quente o frio e o leve o pesado a aacutegua apaga o fogo mas o fogo seca a aacutegua () ltDizem quegt ele organizou batalhas dando ao fogo o nome de Apolo Heacutelio ou Hefesto agrave aacutegua o de Posecircidon ou Escamandro agrave lua o de Aacutertemis ao ar o de Hera etc Do mesmo modo acontecia-lhe de dar os nomes de deuses para disposiccedilotildees Atena para a sabedoria Ares para a insensatez Afrodite para o desejo Hermes para a fala e associam ltestas disposiccedilotildeesgt a eles Este modo de defesa eacute muito antigo e de Teaacutegenes de Reacutegio que foi o primeiro a escrever sobre Homero considerando sua maneira de falar

De acordo com o testemunho de Porfiacuterio Teaacutegenes pode ser considerado o primeiro a ter feito alegorias fiacutesica e moral como exemplificadas neste escoacutelio Brisson29 indaga sobre este trecho se podemos fundando-nos apenas no testemunho de Porfiacuterio atribuir a Teaacutegenes de Reacutegio a invenccedilatildeo da alegoria fiacutesica e moral Embora seja possiacutevel duvidar nada haacute de surpreendente em que este

27 MACPHAIL Jr Introduction in Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011 p 2 28 PORFIRIO Questotildees Homeacutericas Y 67-75 = I 240 14 Schrader = Scholia B in Il III 67 = 8 A 2 DIELS-KRANZ 29 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito p 47-48

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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grammatisteacutes tenha buscado justificar todos os detalhes da obra homeacuterica investigando um sentido profundo sob o literal De todo modo a alegoria tornou-se rapidamente uma praacutetica corrente inclusive entre os filoacutesofos Efetivamente o que se pode depreender da leitura deste escoacutelio isolado Que Teaacutegenes defendeu Homero ou melhor fez uso de interpretaccedilatildeo alegoacuterica para defender uma passagem particular da Iliacuteada XX 67 contra a acusaccedilatildeo de inconveniecircncia O testemunho de Porfiacuterio no escoacutelio mencionado eacute portanto emblemaacutetico da querela em torno a Homero informando que a sua defesa se fundamenta em compreender os poemas sob o modo da alegoria Teaacutegenes parece ter sido um defensor de Homero A atitude defensiva desencadeia uma praacutetica hermenecircutica determinada a alegoria na qual eacute possiacutevel distinguir dois movimentos por um lado trata-se de defender Homero e Hesiacuteodo contra seus detratores buscando nos poemas os fundamentos das criacuteticas a fim de invertecirc-las Por outro trata-se de descobrir sob o sentido literal um sentido oculto mais profundo que permite ver nas figuras miacuteticas representaccedilotildees de elementos naturais de disposiccedilotildees da alma ou ainda de virtudes e viacutecios Neste segundo movimento percebem-se em siacutentese os trecircs tipos de alegoria a fiacutesica a psicoloacutegica e a moral que se disseminaram por todo o mundo antigo Enfim se Teaacutegenes estava em atividade no quarto final do VIordm seacuteculo AEC eacute possiacutevel que ele tenha respondido a Xenoacutefanes acrimonioso detrator de Homero e de Hesiacuteodo30 Supondo que a essa altura Xenoacutefanes estivesse em atividade em Eleia seu livro bem poderia ter encontrado um leitor em Reacutegio Natildeo haacute como comprovar a hipoacutetese de Herren por sedutora que seja Todavia eacute sabido que a escrita e a leitura rapidamente se difundiram por Atenas Naxos Rodes Corinto entre outras cidades A escrita foi portanto um fator de unificaccedilatildeo da cultura Textos circulavam em diferentes suportes como a superfiacutecie de vasos por exemplo Eacute sabido que livros tambeacutem circulavam Ediccedilotildees eram feitas para circular como eacute o caso de uma ediccedilatildeo dos textos de Homero encomendada por Pisiacutestrato por meados do seacuteculo VI AEC31 III A querela em torno a Homero e a Hesiacuteodo Mas no que consiste de fato a querela em torno a Homero Ao longo do seacuteculo VI AEC uma seacuterie de criacuteticas foi dirigida a Homero o que suscitou uma reaccedilatildeo de

30 HERREN M The Anatomy of Myth p 79 31 CIacuteCERO De oratore 3 137

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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defesa aos poemas da tradiccedilatildeo Donde se pode aduzir que esta batalha em torno a Homero e Hesiacuteodo apenas confirma a importacircncia que seus poemas tinham para os gregos Heraacuteclito o alegorista que possivelmente viveu no seacuteculo I EC fazendo referecircncia a essa querela inicia seu comentaacuterio aos poemas homeacutericos ldquoFizeram a Homero um processo colossal furioso por sua irreverecircncia com respeito agrave divindade Tudo nele eacute impiedade se nada for alegoacutericordquo32 Heraacuteclito entatildeo aponta o carinho e a admiraccedilatildeo que a maioria dos gregos nutria pelos mitos da tradiccedilatildeo e questiona assim as acusaccedilotildees sofridas pelo poeta Ora para os gregos Homero e Hesiacuteodo ao lado de Orfeu e Museu satildeo a fonte da antiga tradiccedilatildeo E os testemunhos a este respeito satildeo bem anteriores a Heraacuteclito o alegorista Aristoacutefanes por exemplo oferece uma boa representaccedilatildeo desta ideia quando ele potildee lado a lado Homero Hesiacuteodo Orfeu e Museu poetas de alma nobre que deram agrave Greacutecia suas mais belas tradiccedilotildees33 Uma diferenccedila entre eles eacute que Orfeu e Museu que teriam vivido antes de Homero e Hesiacuteodo satildeo apenas lembrados Homero e Hesiacuteodo por seu turno podem ser lidos e citados aleacutem de lembrados Com efeito os poemas deles por serem os mais antigos escritos possuem um caraacuteter de autoridade Homero daacute aos gregos o comeccedilo da sua histoacuteria com a guerra de Troia narrada na Iliacuteada Hesiacuteodo daacute aos gregos uma explicaccedilatildeo sobre a origem do cosmos na sua Teogonia Datildeo tambeacutem uma geografia noccedilotildees de justiccedila inteligecircncia amor Os poemas educam ensinam tecircm um caraacuteter formativo Natildeo eacute agrave toa que Platatildeo escreve no livro X da Repuacuteblica ldquoPor conseguinte oacute Glaucon quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Greacutecia e que eacute digno de se tomar por modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humanardquo (606 e1- 607 a1) Eacute claro que ele natildeo vai aceitar na cidade nada aleacutem dos hinos aos deuses e elogios a homens honestos Mas a passagem tem interesse porquanto traduz algo vigente neste periacuteodo a poesia eacutepica era pilar da educaccedilatildeo

32 HERACLITO Alegorias de Homero 1 1 Heraacuteclito ldquonatildeo o obscuro mas o que se propocircs tornar criacuteveis as histoacuterias incriacuteveisrdquo (EUSTATIO 1504 55 apud BUFFIERE F ldquoIntroductionrdquo in HERACLITE Alleacutegories drsquoHomegravere p IX) Heraacuteclito natildeo deve ser confundido com Heraacuteclido Pocircntico disciacutepulo de Platatildeo Alcunhar-lho aqui ldquoo alegoristardquo eacute apenas uma forma de introduzir o personagem estabelecendo uma diferenccedila entre os diversos Heraacuteclitos da Antiguidade de quem chegaram textos ou fragmentos aos dias de hoje 33 As Ratildes 1030 sq

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Assim natildeo parece exagero da parte de Heraacuteclito o alegorista referir-se aos versos de Homero como o leite que amamentava os gregos34 Ora eacute consabido que desde a infacircncia os jovens atenienses liam e memorizavam Homero35 Assim os filoacutesofos estudavam Homero e Hesiacuteodo antes de se tornarem filoacutesofos de tal modo que quando seu pensamento filosoacutefico se desenvolvia jaacute estavam absortos pelo estilo e pelo vocabulaacuterio da tradiccedilatildeo O respeito pelas teogonias tradicionais percebe-se na proacutepria maneira conforme a qual os gregos referiam-se a Homero poeta divino O epiacuteteto ganha mais forccedila ainda no neoplatonismo que considera os mitos homeacutericos e hesioacutedicos revelados diretamente pelos deuses36 Enfim vistas sob este acircngulo as teogonias satildeo expressatildeo da mais alta verdade Ora mas se o respeito e a admiraccedilatildeo pelos poetas articulam a defesa o que caracteriza a acusaccedilatildeo De modo geral podem-se alegar duas vias de ataque 1 A filosofia dos preacute-socraacuteticos promove uma ldquodesmitologizaccedilatildeordquo da religiatildeo ao tentar explicar a origem da natureza e do cosmos 2 Os detratores consideram a mitologia tradicional imoral e inconveniente Quanto ao primeiro ponto cabe considerar que a tentativa de racionalizar o cosmos natildeo exclui o divino Com efeito como observa Herren37 nenhum filoacutesofo dos seacuteculos VI e V AEC tentou livrar o universo dos deuses O interesse deles era separar o que pertencia agrave natureza das atividades e poderes divinos Para tanto era necessaacuterio reinterpretar os deuses dos poetas O resultado foi uma transferecircncia dos poderes divinos para a natureza o que implicou em uma substituiccedilatildeo da linguagem da cosmologia pela linguagem da filosofia natural nascente Essa foi uma tarefa lenta e difiacutecil e em grande parte eles regularam ou

34 ldquoDesde a mais tenra idade ao inocente espiacuterito da crianccedila que faz seus primeiros estudos damos Homero como ama de leite de fato desde os cueiros mamamos em nossa ama de leite seus versos Crescemos e ele estaacute sempre perto a noacutes Natildeo podemos deixaacute-lo sem logo ter sede de retomaacute-lo podemos dizer que seu comercio soacute termina junto com a vidardquo (HERAacuteCLITO Alegorias de Homero 1 5) ldquoNatildeo eacute estranho que alimentados com o leite de Homero os escritores gregos no seu conjunto atribuam ao velho poeta uma autoridade extrema que eles o evoquem incessantemente um pouco como um autor cristatildeo face agraves santas Escrituras Sem duacutevida esta autoridade se estende a todos os poetasrdquo (BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 11) Na eacutepoca heleniacutestica os grammatikoiacute satildeo encarregados de explicar os claacutessicos aos efebos 35 PLATAtildeO Protaacutegoras 325 c ndash 326 a 36 Sobre Homero e Hesiacuteodo como poetas divinos e a conotaccedilatildeo no neoplatonismo ver LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 Ver tambeacutem TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo p 103 37 HERREN M The Anatomy of Myh p 40-41

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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racionalizaram as atividades dos deuses com as de um cosmos preacute-existente Nestes dois seacuteculos os filoacutesofos parecem ter concordado que o cosmos eacute constituiacutedo por algo que sempre foi e sempre seraacute e este algo natildeo foi produzido por nenhum deus Os deuses podiam ateacute desempenhar um papel na organizaccedilatildeo dos cosmos mas natildeo eram vistos como criadores Assim dentre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos por exemplo Heraacuteclito de Eacutefeso reconhece a grande sapiecircncia de Homero e Hesiacuteodo mas encontra questotildees sobre as quais considera que os poetas pensaram de modo errado Em um fragmento emblemaacutetico a este respeito Heraacuteclito afirma que Hesiacuteodo eacute o maior de todos os mestres mas que ele nada conhecia sobre os dias e as noites que satildeo uma soacute coisa38 O que estaacute em questatildeo neste fragmento eacute a inadequaccedilatildeo de um aspecto da teologia miacutetica agrave doutrina de Heraacuteclito da unidade e interdependecircncia entre pares de opostos que parece ter constituiacutedo o tema central do seu ensinamento39 Aleacutem de Heraacuteclito de Eacutefeso pode-se mencionar ainda Xenoacutefanes de Coacutelofon que parece ter exercido papel decisivo na querela contra os poetas Xenoacutefanes parece ter vivido por 92 anos entre os seacuteculos VI e V AEC Nascido na Jocircnia ele viajou bastante antes de chegar a Eleia Estudou teologia cosmologia se debruccedilou sobre o que poderiacuteamos chamar de teoria do conhecimento em que pese o anacronismo do termo Fez poesia natildeo filosoacutefica e estudou fosseis Ele critica as concepccedilotildees antropomoacuterficas da divindade40 e acusa Homero e Hesiacuteodo pelos crimes que imputaram aos deuses tais como o adulteacuterio o roubo o infanticiacutedio41 ldquoA criacutetica de Xenoacutefanes tornou-se possiacutevel e atuante no seu tempo porque entatildeo se afirmou uma nova maneira de descrever a realidade despretensiosa exata e prosaicardquo sentencia Burkert42

38 ldquoMestre de todos eacute Hesiacuteodo Creio que ele soubesse quase tudo no entanto nada conhecia sobre os dias e as noites que certamente satildeo uma so coisardquo (22 B 57 DIELS-KRANZ = Hippol IX 10) 39 Sobre a polecircmica entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo pode-se consultar KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary p 109 ldquocommentaryrdquo XVIII 40 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromates V 110 41 ldquoHomero atribuiu aos deuses todas as accedilotildees que os homens tecircm por vergonhosas ou condenaacuteveis o estupro o adulteacuterio e a traiccedilatildeo reciacuteprocardquo (21 B 11 DIELS-KRANZ = Sexto Empiacuterico Adv Math IX 193) 42 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 p 60

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Natildeo somente os filoacutesofos mas tambeacutem certos oradores atacaram Homero e Hesiacuteodo43 Um dos mais ceacutelebres dentre esta classe de detratores foi Zoilo de Anfiacutepolis que parece ter escrito nove livros contra Homero Eacute consabido que todo futuro orador devia se exercitar na interpretaccedilatildeo de Homero o que deve ter sido o caso de Zoilo Eles levantavam problemas de detalhe que deviam ser resolvidos pelos lytikoi (aqueles que buscavam soluccedilotildees)44 Um exemplo do tipo de ataque praticado por Zoilo tem por alvo o episoacutedio dos amores de Ares e Afrodite que aliaacutes eacute uma das passagens da Odisseia que mais fez correr tinta na Antiguidade Quando os dois amantes satildeo pegos em delito os deuses riem forte e Hermes diz que gostaria de estar no lugar de Ares ainda que isso implique em certa vergonha ora diz Zoilo o riso dos deuses eacute inconveniente e as palavras de Hermes deslocadas A que tempos depois replica certo escoliasta ldquoos deuses dos poetas natildeo satildeo os dos filoacutesofos eles riemrdquo45 De fato para um detrator os mitos natildeo devem admitir nem a imoralidade nem o sarcasmo dos deuses Por sua vez para os alegoristas a poesia pode se servir de imagens inconvenientes pois tanto a imoralidade quanto o sarcasmo satildeo sinal de que haacute um sentido subjacente agrave letra do texto IV Platatildeo a recusa da interpretaccedilatildeo alegoacuterica Haveria muito ainda sobre o que discorrer acerca destes seacuteculos de leitura e interpretaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo E sobre os tempos vindouros haja vista que os sofistas os ciacutenicos os estoicos os meacutedios e neoplatocircnicos interpretaram mitos da tradiccedilatildeo Todavia as informaccedilotildees aduzidas ateacute aqui permitem perceber em linhas gerais os primoacuterdios da alegoria considerando igualmente as criacuteticas aos poetas Igualmente permitem perceber que Platatildeo estaacute familiarizado com a interpretaccedilatildeo alegoacuterica de mitos Com efeito Platatildeo reage contra a alegoria especialmente no Fedro onde a alegoria eacute tida como aacuterdua tarefa e no livro II da Repuacuteblica onde eacute definida a educaccedilatildeo que seraacute

43 Nos limites desta pesquisa natildeo seraacute possiacutevel adentrar no campo das alegorias praticadas pelos oradores e sofistas mas eacute mister registrar que a praacutetica da exegese alegoacuterica nos seus dois movimentos de ataque e de defesa foi amplamente praticada no mundo grego natildeo somente pelos filoacutesofos Assim aqui seratildeo mencionados apenas de passagem alguns oradores sofistas e mesmo gramaacuteticos quando parecer necessaacuterio seja para ilustrar ou situar historicamente uma questatildeo 44 BUFFIEgraveRE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 22 45 Scholia Q in Od 332

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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dispensada aos jovens guerreiros Eis a passagem da Repuacuteblica onde a alegoria eacute rejeitada

Ἥρας δὲ δεσμοὺς ὑπὸ ὑέος καὶ Ἡφαίστου ῥίψεις ὑπὸ πατρός μέλλοντος τῇ μητρὶ

τυπτομένῃ ἀμυνεῖν καὶ θεομαχίας ὅσας Ὅμηρος πεποίηκεν οὐ παραδεκτέον εἰς τὴν πόλιν

οὔτ ἐν ὑπονοίαις πεποιημένας οὔτε ἄνευ ὑπονοιῶν ὁ γὰρ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε

ὑπόνοια καὶ ὃ μή ἀλλ ἃ ἂν τηλικοῦτος ὢν λάβῃ ἐν ταῖς δόξαις δυσέκνιπτά τε καὶ

ἀμετάστατα φιλεῖ γίγνεσθαι ὧν δὴ ἴσως ἕνεκα περὶ παντὸς ποιητέον ἃ πρῶτα ἀκούουσιν

ὅτι κάλλιστα μεμυθολογημένα πρὸς ἀρετὴν ἀκούειν

Mas que Hera foi algemada pelo filho e Hefesto projetado agrave distacircncia pelo pai quando queria acudir agrave matildee a quem aquele estava a bater e que houve combate de deuses quantos Homero forjou eacute coisa que natildeo deve aceitar-se na cidade quer essas histoacuterias tenham sido inventadas com um significado profundo quer natildeo (ouacutetrsquohyponoiacuteais pepoiemeacutenas ouacutete aacuteneu hyponouocircn) Eacute que quem eacute novo natildeo eacute capaz de distinguir o que eacute alegoacuterico do que natildeo eacute (hoacuteti te hypoacutenoia kaigrave hograve me) Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indeleacutevel e inalteraacutevel Por causa disso talvez eacute que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histoacuterias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possiacutevel orientadas no sentido da virtude46

Nesta passagem ocorre uma palavra importante hypoacutenoia que como foi visto eacute o termo mais antigo a designar a praacutetica da alegoria Platatildeo ao aventar a hipoacutetese de que Homero tenha forjado narrativas com duplo sentido afigura-se como testemunho das alegorias de Homero Mas natildeo somente isso ele rejeita de um soacute golpe tanto as narrativas como a interpretaccedilatildeo alegoacuterica Para entender o porquecirc desta recusa eacute interessante tentar identificar o tipo de alegoria a que ele se refere Com efeito algumas das interpretaccedilotildees do mito de Hefesto provavelmente conhecidas agrave eacutepoca de Platatildeo chegaram aos dias de hoje atraveacutes de Heraacuteclito o alegorista47 Hefesto o deus claudicante representa o fogo terrestre em oposiccedilatildeo ao

46 PLATAtildeO Repuacuteblica 378 d3-e3 [trad M H R Pereira] Estas satildeo efetivamente as trecircs uacutenicas ocorrecircncias do substantivo hypoacutenoia no corpus platocircnico Haacute apenas duas ocorrecircncias do verbo hyponoeacuteo no corpus platocircnico em Goacutergias 454b-c e Leis 676 c Sobre estas duas ocorrecircncias ver BRISSON L Platon les mots et les mythes pp 153-154 47 Quanto a Hera algemada pelo filho Cf PAUSANIAS Descriccedilatildeo da Greacutecia I 20 3 em referecircncia a Iliacuteada I 590 sq e XVIII 304 Heraacuteclito informa que esta alegoria marca a ordem da sucessatildeo dos quatro elementos (ver Alegorias de Homero 23 1) Quanto ao episoacutedio referente a Hefesto seratildeo vistas as alegorias mencionadas por Heraacuteclito que parece iniciar seu arrazoado aludindo ao ataque platocircnico ldquoAtacou-se tambeacutem Homero sobre Hefesto lanccedilado (do ceacuteu) primeiro porque o poeta no-lo apresenta claudicante e mutila assim a natureza divina depois porque o potildee em perigo mortal

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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eacuteter aos astros e ao sol Ora esse fogo precisa ser alimentado com pedaccedilos de lenha (xyacutelon) donde Hefesto seja simbolicamente (symbolikocircs) chamado ldquoclaudicanterdquo (kholoacuten)48 Sobre o deus ter sido jogado do ceacuteu e ter caiacutedo em Lemnos isso representa um fenocircmeno fiacutesico Hefesto seria uma faiacutesca proveniente das regiotildees celestes Lemnos recebe a primeira chama jogada do ceacuteu pois neste lugar brotam espontaneamente as chamas de um fogo saiacutedo da terra Ora o fogo visiacutevel (Hefesto) se acende e se apaga imediatamente49 caso natildeo encontre algo capaz de conservaacute-lo (Lemnos)50 Outra interpretaccedilatildeo possiacutevel tambeacutem atestada por Heraacuteclito mas que deve remontar a Estesiacutembroto de Tasos51 eacute a seguinte Zeus quis medir o mundo com a ajuda de duas chamas animadas com igual velocidade Hefesto e Heacutelio Assim ele lanccedilou Hefesto dos limites do Olimpo e fez Heacutelio percorrer o mundo indo da aurora ao poente Esta eacute a explicaccedilatildeo do seguinte verso da Iliacuteada ldquoao mesmo tempo em que o sol se potildee Hefesto cai em Lemnosrdquo52 Eacute portanto contra este tipo de interpretaccedilotildees que na Repuacuteblica e no Fedro Platatildeo se posiciona Na Repuacuteblica o motivo alegado para recusar a alegoria eacute a incapacidade das crianccedilas em distinguir o alegoacuterico do natildeo alegoacuterico Embora natildeo seja muito evidente haacute boas razotildees que infelizmente escapam aos limites deste estudo para se considerar que segundo a Repuacuteblica os mitos dirigem-se agrave

Eu caiacutea diz ele todo o dia ao pocircr do sol aterrissei em Lemnos estava agrave beira da morterdquo (HERACLITO Alegorias de Homero 26 1-2) 48 HERACLITO Alegorias de Homero 26 8-10 CORNUTO Compendio di Teologia Greca 19 Scholia E a Od VIII 300 concordam com esta interpretaccedilatildeo Jaacute Plutarco parece consideraacute-la uma brincadeira (PLUTARCO De facie 922) 49 Este eacute segundo tal alegoria o significado das palavras de Hefesto mencionadas em HOMERO Iliacuteada I 593 50 HERACLITO Alegorias de Homero 26 12-16 51 Estesiacutembroto de Tasos eacute mencionado juntamente com Metrodoro de Lacircmpsaco e Glauco pelo personagem Iacuteon como algueacutem que dizia belas coisas sobre Homero (PLATAtildeO Iacuteon 530 c-d) Xenofonte tambeacutem menciona Estesiacutembroto no seu Banquete III 6 permitindo supor que ele conhecia o ldquosentido ocultordquo (hypoacutenoias) das palavras de Homero Enfim Estesiacutembroto eacute dentre os personagens nomeados por Iacuteon o mais citado nos escoacutelios tendo sido provavelmente um alegorista bastante conhecido na eacutepoca O gramaacutetico Crates de Malos adota certas interpretaccedilotildees de Estesiacutembroto e Heraacuteclito o alegorista tem em Crates uma das suas fontes o que natildeo deixa de ser uma filiaccedilatildeo interessante a observar (BUFFIEgraveRE F Les mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque p 134) 52 HOMERO Iliacuteada I 592 Heraacuteclito que traz a lume esta interpretaccedilatildeo natildeo a considera a mais exata Poreacutem adverte qualquer que seja o caso Homero natildeo eacute responsaacutevel por impiedade no que tange a Hefesto (HERACLITO Alegorias de Homero 27 1-4) Donde Heraacuteclito reforccedila a defesa de Homero contra tais acusaccedilotildees que encontram seacuteculos antes um importante porta-voz em Platatildeo

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Gredos 2001 HEacuteRACLITE Alleacutegories dHomegravere Texte eacutetabli et traduit par F Buffiegravere Paris Les Belles Lettres

1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

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2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

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Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

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parte ardorosa (thymoacutes) da alma que eacute maleaacutevel e pode ser marcada desde a infacircncia de modo a formar o caraacuteter53 Assim a funccedilatildeo do mito natildeo deixa de ser educativa pois mesmo sendo um discurso inverificaacutevel54 o mito carrega um tipo de saber partilhaacutevel por todos que eacute um elemento importante para a formaccedilatildeo do caraacuteter Mas justamente por isso Platatildeo condena certos mitos Trata-se da conhecida passagem da Repuacuteblica 377b-d na qual ele diz que eacute preciso vigiar os ldquocompositores de mitosrdquo (compositor de mitos mythopoioacutes b11) se eles fazem bons mitos entatildeo sim os mitos podem ser adotados Deste modo as matildees e as mulheres que cuidam das crianccedilas devem contar os bons mitos de modo a modelar (tyacutepos)55 as almas dos pequenos Poreacutem os mitos ruins ou seja a maioria daqueles que se contam devem ser rejeitados pois os pequenos ao escutaacute-los absorvem maacutes opiniotildees (doacutexai) Platatildeo informa logo a quem pertencem os maus mitos a Homero Hesiacuteodo e outros poetas pois eles compuseram mitos mentirosos que se contam aos homens A passagem em questatildeo deve ser lida com cautela pois haacute uma problemaacutetica complexa envolvendo a falsidade na Repuacuteblica Ou seja nem toda mentira eacute ruim Haacute boas mentiras uacuteteis das quais o governante pode e deve se servir para persuadir os cidadatildeos e moldar um bom caraacuteter56 Mas na

53 No vocabulaacuterio platocircnico da educaccedilatildeo a imagem da plasticidade da alma eacute muito forte educar eacute modelar (plaacutettein) as almas como se modela a argila A parte da alma passiacutevel de ser modelada eacute justamente a ardorosa que nas crianccedilas ndash e em muitos adultos ndash ainda natildeo foi dominada pela parte racional Algumas consideraccedilotildees sobre a impressatildeo dos mitos na alma encontram-se em OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus 2016 n 21 pp 143-161 54 O discurso verificaacutevel versa sobre alguma realidade que estaacute para aleacutem do proacuteprio discurso mas que pertence a um domiacutenio acessiacutevel ou ao intelecto ou aos sentidos Assim o discurso verificaacutevel pode se referir seja agraves formas inteligiacuteveis seja agraves coisas do mundo sensiacutevel que se situam no presente ou em um passado proacuteximo O discurso verificaacutevel corresponde ao loacutegos tal como definido no Sofista 259 d-264 b O discurso inverificaacutevel que natildeo eacute acessiacutevel nem ao intelecto nem aos sentidos eacute proacuteprio do mito Platatildeo admite que natildeo eacute possiacutevel falar sobre certos referentes a natildeo ser sob a forma do mito Eacute o caso de tudo o que tange ao domiacutenio da alma aos deuses ou daquilo que se situa em um passado muito distante como o surgimento do mundo Ora as coisas que pertencem ao acircmbito da alma constituem um niacutevel intermediaacuterio entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Logo satildeo incessiacuteveis tanto aos sentidos como ao intelecto Jaacute aquelas que se situam no comeccedilo do mundo em um passado muito distante tampouco podem ser verificadas por nenhum mortal Sobre o tema ver o capiacutetulo ldquoLrsquoopposition mythediscours veacuterifiablerdquo in BRISSON L Platon les mots et les mythes p 114-138 55 Neste contexto Platatildeo usa tyacutepos nos dois sentidos que o termo guarda o que fica impresso moldado e o que imprime molda Ou seja o mito fica impresso na alma e deste modo a modela 56 Sobre os tipos de mentira ver BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 Para um quadro sinoacuteptico dos casos em Repuacuteblica II ver tambeacutem OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitosrdquo

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Fontes ARISTOacuteFANES A paz Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M F de Sousa e Silva Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Q Racionero Madrid Gredos

1990 CIEacuteRON De lrsquoOrateur Texte eacutetabli traduit et annoteacute par F Richard Paris Garnier sd CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Stromates V T I Introduction texte critique et index par A Le

Boulluec traduction de P Voulet T II Commentaire bibliographie et index par A Le Boulluec Paris Cerf 2006

CORNUTO Compendio di Teologia Greca A cura di I Ramelli Milano Bompiani 2003 [DIELS-KRANZ] DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch Berlin

Weidmannsche (Editada com aditamentos por W KRANZ) 1960-1961 DIOGEgraveNE LAEumlRCE Vie et doctrines des philosophes illustres Traduction franccedilaise sous la direction de

MO Goulet-Cazeacute Paris LGFLe Livre de Poche 1999 ESTRABOacuteN Geografiacutea v 4 livros VIII-X Traduccioacuten y notas de J J T Esbarranch Madrid

Gredos 2001 HEacuteRACLITE Alleacutegories dHomegravere Texte eacutetabli et traduit par F Buffiegravere Paris Les Belles Lettres

1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

Pouilloux et commenteacute par F Chamoux Paris Les Belles Lettres 1992 PLATAtildeO Repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de M H da Rocha Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2001 PLATON Les Lois Livres I agrave VI Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006a PLATON Les Lois Livres VII agrave XII Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

1991 PLATON Phegravedre Traduction ineacutedite introduction et notes par L Brisson Suivie de La pharmacie de

Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

1999 PLUTARQUE Oeuvres morales Introduction geacuteneacuterale par R Flaceliegravere et J Irigon texte eacutetabli et

traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

1880

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Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011

Bibliografia BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo

Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

Deacutecouverte 1994 BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis

par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir)

GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary

Cambridge University Press 1981 LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition

Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon nordm 49 2010 pp155-167 OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus nordm 21 2016 pp 143-161 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue

et augmenteacute Paris Etudes augustiniennes 1976 PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la

Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers

Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

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passagem em questatildeo trata-se de uma grande mentira que se explica em analogia com a pintura

Ὅταν εἰκάζῃ τις κακῶς [οὐσίαν] τῷ λόγῳ περὶ θεῶν τε καὶ ἡρώων οἷοί εἰσιν ὥσπερ

γραφεὺς μηδὲν ἐοικότα γράφων οἷς ἂν ὅμοια βουληθῇ γράψαι

Eacute o que acontece quando algueacutem delineia erradamente em uma obra literaacuteria a maneira de ser dos deuses e heroacuteis tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar (377 e1-3)

Fica claro que o desenho natildeo alude ao modelo ou seja a mentira aqui parece ser uma representaccedilatildeo malfeita Aqui esteacutetica e eacutetica se entrelaccedilam definitivamente nestes mitos os deuses e os heroacuteis satildeo representados de maneira errada tal como em um retrato no qual aquilo que foi pintado natildeo guarda nenhuma semelhanccedila com o que se pretendia retratar Platatildeo daacute como exemplo de grande mentira (megiacuteston pseucircdos) a passagem da Teogonia de Hesiacuteodo na qual Urano comete grandes atrocidades e Cronos se vinga Note-se que Platatildeo natildeo narra as atrocidades nem diz qual a vinganccedila Ele apenas adverte que falsidades deste gecircnero natildeo devem ser contadas ou se for necessaacuterio falar a respeito que seja para um pequeno nuacutemero de ouvintes57 Mas retomando a questatildeo da alegoria soacute pouquiacutessimas pessoas tecircm a capacidade de distinguir o que seria falso daquilo que natildeo seria em um discurso miacutetico Logo haacute mais perigo em deixar um discurso do gecircnero circular do que trancafiaacute-lo e assim evitar a praacutetica da interpretaccedilatildeo de mitos Platatildeo natildeo quer proibir o mito ao contraacuterio quem o lecirc sabe que bom fazedor de mitos eacute Enseja no acircmbito da Repuacuteblica banir um conjunto de praacuteticas e crenccedilas culturais que bebem e se beneficiam dos mitos e das suas possiacuteveis interpretaccedilotildees Platatildeo eacute como Heraacuteclito de Eacutefeso parece ter sido algueacutem cioso por transformaccedilotildees tais que natildeo basta apenas mudar a interpretaccedilatildeo eacute necessaacuterio desfazer praacuteticas jaacute arraigadas No Fedro Platatildeo recusa a alegoria alegando a dificuldade em fazecirc-la mas tambeacutem o fato de que voltar a atenccedilatildeo para este tipo de tarefa desvia a alma do conhecimento de si58 Todavia nesse diaacutelogo o mito em questatildeo natildeo eacute o de Hefesto mas o do rapto de Oritia por Boacutereas Em siacutentese Fedro quer saber se Soacutecrates estaacute persuadido de que o mito de Boacutereas e Oritia eacute verdadeiro Soacutecrates responde que natildeo seria nada extravagante duvidar como fazem os saacutebios (sophoiacute) E tal como eles poderia ateacute dar uma explicaccedilatildeo ao mito Ele daacute pistas de tal explicaccedilatildeo fazendo uso de um

57 PLATAtildeO Repuacuteblica 377 d-378 a Trata-se dos versos 154-184 da Teogonia de Hesiacuteodo 58 PLATAtildeO Fedro 229 c-230 a

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

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Fontes ARISTOacuteFANES A paz Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M F de Sousa e Silva Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Q Racionero Madrid Gredos

1990 CIEacuteRON De lrsquoOrateur Texte eacutetabli traduit et annoteacute par F Richard Paris Garnier sd CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Stromates V T I Introduction texte critique et index par A Le

Boulluec traduction de P Voulet T II Commentaire bibliographie et index par A Le Boulluec Paris Cerf 2006

CORNUTO Compendio di Teologia Greca A cura di I Ramelli Milano Bompiani 2003 [DIELS-KRANZ] DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch Berlin

Weidmannsche (Editada com aditamentos por W KRANZ) 1960-1961 DIOGEgraveNE LAEumlRCE Vie et doctrines des philosophes illustres Traduction franccedilaise sous la direction de

MO Goulet-Cazeacute Paris LGFLe Livre de Poche 1999 ESTRABOacuteN Geografiacutea v 4 livros VIII-X Traduccioacuten y notas de J J T Esbarranch Madrid

Gredos 2001 HEacuteRACLITE Alleacutegories dHomegravere Texte eacutetabli et traduit par F Buffiegravere Paris Les Belles Lettres

1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

Pouilloux et commenteacute par F Chamoux Paris Les Belles Lettres 1992 PLATAtildeO Repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de M H da Rocha Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2001 PLATON Les Lois Livres I agrave VI Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006a PLATON Les Lois Livres VII agrave XII Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

1991 PLATON Phegravedre Traduction ineacutedite introduction et notes par L Brisson Suivie de La pharmacie de

Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

1999 PLUTARQUE Oeuvres morales Introduction geacuteneacuterale par R Flaceliegravere et J Irigon texte eacutetabli et

traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

1880

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Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011

Bibliografia BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo

Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

Deacutecouverte 1994 BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis

par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir)

GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary

Cambridge University Press 1981 LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition

Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon nordm 49 2010 pp155-167 OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus nordm 21 2016 pp 143-161 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue

et augmenteacute Paris Etudes augustiniennes 1976 PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la

Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers

Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

Manifestations of the Ancient and Medieval World Manifestaciones de los mundos antiguo y medieval

Manifestaccedilotildees da Antiguidade e da Idade Meacutedia Jan-Jun 2017ISSN 1676-5818

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procedimento de uso corrente na exegese alegoacuterica as etimologias59 O recurso agrave etimologia pode fundamentar uma alegoria fiacutesica por exemplo Oritia eacute a ldquocorredora de montanhasrdquo (oacutere theicircn) Ou moral Tiacutefon eacute a alma enfumaccedilada (tŷphos) de orgulho60 De fato ele reconhece que explicaccedilotildees deste tipo satildeo agradaacuteveis mas exigem muito talento e muito trabalho Ademais este esforccedilo desvia do preceito deacutelfico conhece-te a ti mesmo Seria ridiacuteculo diz Soacutecrates ocupar-se em conhecer coisas estranhas antes de se conhecer a si mesmo Ora sabemos que o preceito deacutelfico eacute fundamental para a filosofia socraacutetica e para a platocircnica Mas o imperativo de se autoconhecer seria razatildeo suficiente para evitar a alegoria Se Platatildeo admitisse que os mitos ocultam em si a verdade natildeo haveria porque recuar diante desta grande tarefa Este velamento da verdade no mito eacute inequivocamente o pressuposto baacutesico da exegese alegoacuterica Platatildeo rejeita exatamente este postulado pois para ele a verdade se manifesta no discurso filosoacutefico natildeo no poeacutetico Assim atinge-se a verdade natildeo atraveacutes da interpretaccedilatildeo de mitos mas sim atraveacutes da dialeacutetica61 Logo deve-se procurar a verdade exatamente onde ela se encontra isto eacute na filosofia E natildeo fazer uso da filosofia para transformar a falsidade dos mitos em verdade pois a consequecircncia disso seria uma inversatildeo dos valores62 Em outros termos se os mitos escondessem uma verdade que deveria ser desvelada pelo filoacutesofo a filosofia seria reduzida a um mero instrumento de interpretaccedilatildeo de mitos O que todavia natildeo implica em rejeitar o mito como praacutetica filosoacutefica

59 Uma criacutetica agraves etimologias encontra-se no Craacutetilo ndash ver especialmente 435 sq 60 Aliaacutes no Feacutedon Platatildeo alude agrave tradiccedilatildeo fortemente arraigada que considerava a alma um sopro um fumo que esvaece no momento da morte ldquo() Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a alma subsiste algures e natildeo fica destruiacuteda e aniquilada no mesmo dia em que o homem morre Quem sabe se logo que dele se liberta e sai natildeo se desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar rastro de existecircnciardquo (Feacutedon 70a) Na Iliacuteada XXVIII 100 a alma de Paacutetroclo esvaece debaixo da terra como fumo Platatildeo cita esta passagem da Iliacuteada na Repuacuteblica 387a inclusa no rol dos versos que mesmo de grande valor poeacutetico natildeo devem ser ouvidos por homens que devem ser livres e temer a escravidatildeo mais que a morte 61 Esta aliaacutes tambeacutem eacute a conclusatildeo de Tate para quem o motivo maior da recusa reside no fato de que a praacutetica da exegese alegoacuterica implica em reconhecer a autoridade dos poetas sobre determinados assuntos ora o conhecimento cientiacutefico soacute pode ser obtido pelo meacutetodo dialeacutetico (TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo p 150) Brisson caminha no mesmo sentido mas vai um pouco aleacutem como se pode ver na sequumlecircncia do texto 62 BRISSON L Platon les mots et les mythes p 159

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

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Fontes ARISTOacuteFANES A paz Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M F de Sousa e Silva Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Q Racionero Madrid Gredos

1990 CIEacuteRON De lrsquoOrateur Texte eacutetabli traduit et annoteacute par F Richard Paris Garnier sd CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Stromates V T I Introduction texte critique et index par A Le

Boulluec traduction de P Voulet T II Commentaire bibliographie et index par A Le Boulluec Paris Cerf 2006

CORNUTO Compendio di Teologia Greca A cura di I Ramelli Milano Bompiani 2003 [DIELS-KRANZ] DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch Berlin

Weidmannsche (Editada com aditamentos por W KRANZ) 1960-1961 DIOGEgraveNE LAEumlRCE Vie et doctrines des philosophes illustres Traduction franccedilaise sous la direction de

MO Goulet-Cazeacute Paris LGFLe Livre de Poche 1999 ESTRABOacuteN Geografiacutea v 4 livros VIII-X Traduccioacuten y notas de J J T Esbarranch Madrid

Gredos 2001 HEacuteRACLITE Alleacutegories dHomegravere Texte eacutetabli et traduit par F Buffiegravere Paris Les Belles Lettres

1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

Pouilloux et commenteacute par F Chamoux Paris Les Belles Lettres 1992 PLATAtildeO Repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de M H da Rocha Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2001 PLATON Les Lois Livres I agrave VI Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006a PLATON Les Lois Livres VII agrave XII Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

1991 PLATON Phegravedre Traduction ineacutedite introduction et notes par L Brisson Suivie de La pharmacie de

Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

1999 PLUTARQUE Oeuvres morales Introduction geacuteneacuterale par R Flaceliegravere et J Irigon texte eacutetabli et

traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

1880

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

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Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011

Bibliografia BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo

Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

Deacutecouverte 1994 BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis

par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir)

GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary

Cambridge University Press 1981 LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition

Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon nordm 49 2010 pp155-167 OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus nordm 21 2016 pp 143-161 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue

et augmenteacute Paris Etudes augustiniennes 1976 PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la

Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers

Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

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Conclusatildeo Vista como praacutetica hermenecircutica a alegoria visa descobrir o sentido oculto sob a letra dos mitos Ela surge concomitantemente ao movimento de criacutetica aos poemas de Homero e Hesiacuteodo Ambas as posturas a alegoacuterica e a criacutetica marcam uma mudanccedila nas mentalidades da eacutepoca Haacute uma busca pela verdade que denota uma atitude natildeo ingecircnua diante dos mitos Natildeo se trata de desacreditar nos deuses de abandonar a religiatildeo tradicional de deixar de lado ritos e cultos Eacute sabido que as relaccedilotildees entre mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga satildeo complexas mas tambeacutem eacute sabido que o ateiacutesmo eacute considerado crime grave A alegoria e a criacutetica aos mitos implicam antes em uma visatildeo criacutetica sobre textos E para aleacutem disso em uma visatildeo criacutetica acerca da autoridade destes textos Platatildeo mais que um testemunho da querela em torno a Homero e Hesiacuteodo eacute declaradamente contraacuterio agrave praacutetica alegoacuterica No entanto sua atitude a respeito dos mitos eacute ambivalente na Repuacuteblica condena os poetas ao exiacutelio retira os mitos tradicionais do conteuacutedo educacional mas natildeo propotildee um abandono completo do mito Pelo contraacuterio tanto neste como em outros diaacutelogos segue fazendo mitos e contando mitos De fato em Platatildeo a relaccedilatildeo entre mito e filosofia eacute extremamente complexa e natildeo cabe ser comentada em trecircs ou quatro frases No entanto observa-se que mesmo rejeitando a alegoria ao seguir fazendo mitos ele lega aos seus poacutesteros um quadro exegeacutetico difiacutecil de resolver Como compreender as aparentes contradiccedilotildees dos diaacutelogos Como entender a condenaccedilatildeo aos mitos quando os diaacutelogos estatildeo repletos de mitos Como enfim conciliar Platatildeo com Homero Eis a tarefa sobre a qual se debruccedilaratildeo filoacutesofos platocircnicos dos primeiros seacuteculos do Impeacuterio romano que fazem alegoria e tentam conciliar Homero e Platatildeo Tais filoacutesofos desenvolvem outra forma de interpretar os mitos na qual mitos satildeo associados aos misteacuterios Plutarco parece ser um bom testemunho dessa nova postura E essa atitude se verifica por exemplo em Numecircnio de Apameia Com efeito estes platocircnicos desejavam situar Homero ao lado de Platatildeo no cacircnone daqueles que proporcionam uma possibilidade de acesso agrave verdade A tendecircncia a enfatizar a autoridade de Homero deve-se em parte agrave necessidade de um texto capaz de suportar comparaccedilotildees com as escrituras da tradiccedilatildeo cristatilde cada vez mais forte

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

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Fontes ARISTOacuteFANES A paz Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M F de Sousa e Silva Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Q Racionero Madrid Gredos

1990 CIEacuteRON De lrsquoOrateur Texte eacutetabli traduit et annoteacute par F Richard Paris Garnier sd CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Stromates V T I Introduction texte critique et index par A Le

Boulluec traduction de P Voulet T II Commentaire bibliographie et index par A Le Boulluec Paris Cerf 2006

CORNUTO Compendio di Teologia Greca A cura di I Ramelli Milano Bompiani 2003 [DIELS-KRANZ] DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch Berlin

Weidmannsche (Editada com aditamentos por W KRANZ) 1960-1961 DIOGEgraveNE LAEumlRCE Vie et doctrines des philosophes illustres Traduction franccedilaise sous la direction de

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1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

Pouilloux et commenteacute par F Chamoux Paris Les Belles Lettres 1992 PLATAtildeO Repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de M H da Rocha Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2001 PLATON Les Lois Livres I agrave VI Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006a PLATON Les Lois Livres VII agrave XII Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

1991 PLATON Phegravedre Traduction ineacutedite introduction et notes par L Brisson Suivie de La pharmacie de

Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

1999 PLUTARQUE Oeuvres morales Introduction geacuteneacuterale par R Flaceliegravere et J Irigon texte eacutetabli et

traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

1880

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Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011

Bibliografia BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo

Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

Deacutecouverte 1994 BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis

par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir)

GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary

Cambridge University Press 1981 LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition

Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon nordm 49 2010 pp155-167 OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus nordm 21 2016 pp 143-161 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue

et augmenteacute Paris Etudes augustiniennes 1976 PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la

Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers

Oxford University Press 2017 TATE J ldquoOn the history of allegorismrdquo The Classical Quarterly nordm 2 1934 pp 105-114 TATE J ldquoPlato and allegorical interpretationrdquo The Classical Quarterly nordm 24 1930 pp 1-10 TATE J ldquoThe beginnings of greek allegoryrdquo The Classical Review nordm XLI 6 1927 pp 214-215

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Fontes ARISTOacuteFANES A paz Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M F de Sousa e Silva Coimbra

Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Q Racionero Madrid Gredos

1990 CIEacuteRON De lrsquoOrateur Texte eacutetabli traduit et annoteacute par F Richard Paris Garnier sd CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Stromates V T I Introduction texte critique et index par A Le

Boulluec traduction de P Voulet T II Commentaire bibliographie et index par A Le Boulluec Paris Cerf 2006

CORNUTO Compendio di Teologia Greca A cura di I Ramelli Milano Bompiani 2003 [DIELS-KRANZ] DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker griechisch und deutsch Berlin

Weidmannsche (Editada com aditamentos por W KRANZ) 1960-1961 DIOGEgraveNE LAEumlRCE Vie et doctrines des philosophes illustres Traduction franccedilaise sous la direction de

MO Goulet-Cazeacute Paris LGFLe Livre de Poche 1999 ESTRABOacuteN Geografiacutea v 4 livros VIII-X Traduccioacuten y notas de J J T Esbarranch Madrid

Gredos 2001 HEacuteRACLITE Alleacutegories dHomegravere Texte eacutetabli et traduit par F Buffiegravere Paris Les Belles Lettres

1989 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HESIacuteODO Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas C Werner Satildeo Paulo Hedra 2013 HOMERO Iliacuteada 2 vols Trad de H de Campos Introduccedilatildeo e organizaccedilatildeo T Vieira Satildeo Paulo

Mandarim 2002 HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo C Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014 NUMEacuteNIUS Fragments Texte eacutetabli et traduit par E des Places Paris Les Belles Lettres 1973 PAUSANIAS Description de la Gregravece Livre I LrsquoAttique Texte eacutetabli par M Casevitz Traduit par J

Pouilloux et commenteacute par F Chamoux Paris Les Belles Lettres 1992 PLATAtildeO Repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de M H da Rocha Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2001 PLATON Les Lois Livres I agrave VI Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006a PLATON Les Lois Livres VII agrave XII Traduction par L Brisson et J-F Pradeau Paris Flammarion

2006b PLATON Pheacutedon Traduction nouvelle introduction et notes par M Dixsaut Paris Flammarion

1991 PLATON Phegravedre Traduction ineacutedite introduction et notes par L Brisson Suivie de La pharmacie de

Platon par J Derrida Paris Flammarion 2000 PLATAtildeO Protaacutegoras Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de A P E Pinheiro Lisboa Reloacutegio drsquoaacutegua

1999 PLUTARQUE Oeuvres morales Introduction geacuteneacuterale par R Flaceliegravere et J Irigon texte eacutetabli et

traduit par A Philippon et al Paris Les Belles Lettres 1972 PORPHYRII Quaestionum Homericarum ad Iliadem Pertinentium Reliquiae Ed H Schrader Lipsiae

1880

COSTA Ricardo da SALVADOR GONZAacuteLEZ Joseacute Mariacutea (coords) Mirabilia 24 (20171)

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Porphyryrsquos Homeric Questions on the Iliad Text Translation Commentary by J A MacPhail Jr BerlinNew York Walter de Gruyter 2011

Bibliografia BASTOS F A Teogonia de Fereacutecides de Siro Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 2003 BRANDAtildeO J L Antiga Musa (arqueologia da ficccedilatildeo) Belo Horizonte Relicaacuterio 2015 BRISSON L Introduccedilatildeo agrave filosofia do mito Salvar os mitos (Trad J C Baracat Juacutenior) Satildeo Paulo

Paulus 2014 BRISSON L Platon les mots et les mythes Comment et pourquoi Platon nomma les mythes Paris Ed La

Deacutecouverte 1994 BUFFIERE F Les Mythes drsquoHomegravere et la penseacutee grecque Paris Les Belles Lettres 1956 BURKERT W Mito e mitologia Lisboa Ediccedilotildees 70 2001 CHIRON P ldquoAlleacutegorie et languagerdquo In PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis

par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 GOULET R ldquoLa meacutethode alleacutegorique chez les stoiumlciensrdquo In ROMEYER DHERBEY G (dir)

GOURINAT J-B (ed) Les Stoiumlciens Paris Vrin 2005 KAHN C H The art and Thought of Heraclitus Na edition of the fragments with translation and commentary

Cambridge University Press 1981 LAMBERTON R Homer the theologian Neoplatonist allegorical reading and the growth of the epic tradition

Berkeley Los Angeles London University of California Press 1986 OLIVEIRA L ldquoNotas sobre a exegese de mitos em Plutarcordquo Organon nordm 49 2010 pp155-167 OLIVEIRA L ldquoObliquamente os mitos Repuacuteblica IIrdquo Prometeus nordm 21 2016 pp 143-161 PEPIN J La tradition de lrsquoalleacutegorie De Philon drsquoAlexandrie agrave Dante Paris Eacutetudes Augustiniennes 1987 PEacutePIN J Mythe et alleacutegorie Les origines grecques et les conteacutestations judeacuteo-chreacutetiennes Nouvelle eacutedition reacutevue

et augmenteacute Paris Etudes augustiniennes 1976 PEREZ-JEAN B EICHEK-LOJKINE P (eacutetudes reacuteunis par) Lrsquoalleacutegorie de lrsquoAntiquiteacute agrave la

Renaissance Paris Honoreacute Champion 2004 SCHIBLI H S Pherekydes of Syros Oxford Clarendon Press 1990 HERREN M The Anatomy of Myth The Art of Interpretation from the Presocratics to the Church Fathers

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