a mão e o número - dissertação prof mario fontanive

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Dissertação do Prof. Mário FOntanive

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  • Dissertao de mestrado apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria, Teoria e Crtica da Arte.

    A Mo e o Nmero

    Sobre a possibilidade do exerccio da intuio nas interfaces tridimensionais

    Mrio Furtado Fontanive

    Orientadora: Profa. Dra. Blanca Brites

  • Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais Instituto de Artes - UFRGS

    A comisso organizadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao A mo

    e o Nmero: sobre a possibilidade do exerccio da intuio nas interfaces tridimensionais, elaborada por Mrio Furtado Fontanive,

    como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre em Histria,

    Teoria e Crtica da Arte.

    Comisso examinadora:

    _________________________________________________________

    _

    Profa. Dra. La da Cruz Fagundes

    _________________________________________________________

    _

    Prof. Dr. Eduardo Vieira da Cunha

    _________________________________________________________

    _

    Prof. Dr. Jos Augusto Avancini

    _________________________________________________________

    _

    Profa. Dra. Blanca Luz Brites

  • Agradecimentos

    Orientadora Blanca Brites, pela dedicao pacincia e senso de humor com algum to pouco linear.

    Ao Professor Armindo Trevisan, pelas conversas e observaes em nossos trs

    encontros reveladores e pela dedicao com que h muito me fala de arte.

    s colegas Letcia Cardoso, Adriane Hernandez e Josiane Bornu por suas leituras e crticas perspicazes.

    Professora La da Cruz Fagundes por me livrar de certezas pouco inteligentes.

    Crmen Nunes pela correo do texto e por outras ajudas mais. Ao Mauro Fuke pela sua ateno e inteligncia.

    Para Francisco

  • 01

    14

    16 18 27 32 38

    41 41 45 48 51 55

    57 59 67

    71

    72 79 80 86

    101 102 107

    116

    119

    Sumrio ___________________________________________________________

    Lista de figuras Resumo Abstract

    Introduo

    1 Histrico da passagem da linguagem linear para a no-linear

    1.1 Linguagem - Discernimento e distncia 1.1.1 O gesto e a palavra 1.1.2 A escrita e as cidades 1.1.3 Desejo e conhecimento 1.1.4 Os ideogramas

    1.2 A palavra impressa 1.2.1 A mistura medieval 1.2.2 O relgio, o livro, o nmero e o espao 1.2.3 A narrativa e a idia de progresso 1.2.4 O desenho como padronizao de processos 1.2.5 O iluminismo

    1.3 Eletricidade a quebra da linearidade 1.3.1 A arte moderna e o fim das fronteiras 1.3.2 A rvore e o rizoma

    2 A intuio e as interfaces tridimensionais

    2.1 A possibilidade da intuio 2.1.1 O nmero e o tato 2.1.2 O nmero como extenso do tato 2.1.3 As interfaces tridimensionais

    2.2 As interfaces tridimensionais e a arte 2.2.1 Char Davies 2.2.2 Mauro Fuke

    Consideraes Finais

    Bibliografia

  • 21 25 28 31 40 49 60 62 88 89 89 90 91 92 93 94 94 94 95 95 96 97 98 99 100 103 104 109 110 112 113 115

    Lista de figuras __________________________________________________

    Figura 1 - O Basto de Ishango Figura 2 - Lascaux sala principal Figura 3 - Santuario em Eridu Figura 4 - Estrela dos Abutres Figura 5 - Poema - Dinastia Song Figura 6 - Nicolas Oresme: A primeira representao grfica do movimento Figura 7 - Etienne-Jules Marey, Descent dun plan inclin Figura 8 - Grande Vidro - Duchamp Figura 9 - As luvas permitem pegar um objeto virtual Figura 10 - Mouse 3D Figura 11 - Mouse de dedo Figura 12 - Fita de forma Figura 13 - Cave Painting Table Figura 14 - Monitor Figura 15 - Ambiente de Cave Figura 16 - Cave Figura 17 - Mesa de trabalho Figura 18 - Display hemisfrico Figura 19 - Display para cabea Figura 20 - Display montado em brao fixo Figura 21 - Monitor tridimensional Figura 22 - Brao tipo exoesqueleto Figura 23 - Performance- "Terceira mo" Figura 24 - Realidade aumentada Figura 25 - Realidade aumentada Figura 26 - Osmose - Char Davies Figura 27 - Osmose - Char Davies Figura 28 - rvore - Mauro Fuke Figura 29 - Biti des pos To - Mauro Fuke Figura 30 - Sem ttulo - Mauro Fuke Figura 31 - rvore - Mauro Fuke Figura 32 - Sem ttulo - Mauro Fuke

  • Resumo

    Esta dissertao versa sobre a possibilidade de uma relao intuitiva com as

    interfaces tridimensionais, interfaces essas que acredito serem o caminho mais rico

    que as novas tecnologias podem tomar. O pensamento sempre foi acompanhado de

    imagens e, se conseguirmos ver as coisas de outras maneiras alm daquelas com que

    estamos acostumados, talvez tenhamos uma compreenso maior do mundo. Uma

    compreenso que inclua os sentidos, o tempo e, com isso, possibilite o exerccio da

    intuio, o que, para Bergson, o mtodo mais preciso em filosofia.

    Tomei por base as idias de Marshall Mcluhan, no livro Os meios de

    comunicao como extenso do homem. A diviso da histria de acordo com as

    mudanas dos meios de comunicao proposta por Mcluhan estruturam o meu

    trabalho.

    O trabalho est dividido em dois captulos. O primeiro se prope a fazer um

    histrico dos caminhos da tecnologia tendo por base o pensamento de Mcluhan. O

    segundo conceitua intuio segundo o que Henri Bergson propunha e mostra como

    ela pode se dar nas interfaces tridimensionais, com alguns exemplos em arte.

    Esta dissertao visa estabelecer um vnculo entre a tcnica e a formao do

    homem. O homem se constri em um dilogo com o mundo, e muito desse dilogo

    se d pela tcnica e filtrado por ela. Essa construo no est determinada, no tem

    um fim a atingir e pode se desenvolver por diversos caminhos que no se excluem.

    Nesse sentido, a dissertao no se prope a indicar um caminho, mas antes dissolver

    conceitos que impeam ver a pluralidade de direes possveis.

    Palavras-chave: arte e tecnologia, interfaces tridimensionais, intuio.

  • Abstract

    The dissertation examines the possibilities of having an intuitive relationship

    with tridimensional interfaces, which I believe is the richest course new technologies

    can take. Thought has always come along with images and, if we manage to see

    things in a different light other than our usual mindset, we might be able to have a

    greater understanding of the world. An understanding, which involving the senses

    and time can make the practice of intuition possible. This, for Bergson, is the most

    precise philosophy method.

    The basic underpinnings of my project are Marshall Mcluhans ideas in the book Understanding Media: The Extensions of Man. The division in history

    according to the changes in the media proposed by Mcluhan is the structure of this

    project. This project is divided into two chapters. The first chapter attempts to draw the

    history of technology paths having Mcluhans thinking in the background. The

    second provides a concept for intuition, according to what Henri Bergson proposed,

    and shows how intuition may happen in the tridimensional interfaces, with some art

    examples.

    My dissertation aims at establishing a link between technique and mans

    evolution. Man builds a dialogue with the world and, lot of this takes place and it is

    filtered by technique. This construction is not predetermined, has not got an aim and

    can evolve through various paths which do not exclude one another. Therefore, this

    dissertation does not attempt to appoint a path; in fact it suggests the dissolution of

    concepts which will prevent one from seeing the plurality of possible directions.

    Keywords: art and technology, tridimensional interfaces, intuition.

  • 1

    Introduo

    Num pequeno texto do livro Minima Moralia, chamado No bater a porta,

    Theodor Adorno diz que, por sua estrita funcionalidade, os aparelhos no permitem

    que a pessoa manifeste a sua individualidade. Bater a porta de um carro requer um

    mnimo de violncia, sem a qual a porta no fecha. Assim, no possvel a uma

    pessoa delicada manifestar a sua delicadeza. Os aparelhos se fecham ao dilogo e

    impem um caminho pronto.

    No deperecimento da experincia, um fato possui uma considervel responsabilidade: que as coisas, sob a lei de sua pura funcionalidade, adquirem uma forma que restringe o trato delas a um mero manejo, sem tolerar um s excedente seja em termos de liberdade de comportamento, seja de independncia da coisa que subsista como ncleo da experincia porque no consumido pelo instante da ao.1

    Em funo disso, se considerarmos que a fala, a escrita e as tcnicas tm um

    desenvolvimento paralelo, chegaremos a mesma concluso que Marcuse no seu livro

    O Homem Unidimensional onde ele escreve sobre o fechamento do universo da

    locuo e conclui que a linguagem hoje se tornou funcional e no permite mais uma leitura aberta a outros significados. A palavra transmitida de tal modo, que no

    deixada uma tenso, a margem, onde podemos incluir a nossa interpretao pessoal de

    uma leitura, est cada vez menor. A palavra se torna um clich e, como tal, governa a

    palavra ou a escrita; assim, a comunicao evita o desenvolvimento genuno do

    significado.2

    O homem se constituiu num dilogo com o mundo e neste dilogo, lentamente,

    formou a linguagem. A linguagem difcil de definir. Heidegger diria que o campo

    onde se inauguram caminhos, a narrativa encaminha o mundo. A linguagem se

    estabelece em diversas extenses, a fala, a escrita, os gestos compem a linguagem.

    Hoje, temos o surgimento de novas tcnicas computacionais, que esto alterando a

    1 ADORNO,Theodor. Minima moralia. So Paulo: Ed. tica, 1993, pg.33.

    2 MARCUSE,Herbert. O Homem Unidimensional A ideologia da sociedade industrial. Rio de

    Janeiro: Zahar Ed. ,1982, pg.95.

  • 2

    relao do homem com o mundo e, conseqentemente, com a linguagem. A minha

    dissertao trata de um tipo de interface, as interfaces tridimensionais, que, penso

    poderiam servir como exemplo para um modo de dilogo mais rico com o mundo, por

    remeter possibilidade da manifestao da subjetividade no dilogo com a tecnologia. Esta dissertao baseada numa esperana, a de que as interfaces tridimensionais e as

    mudanas a que elas podem levar propiciem uma leitura menos funcional, para ser

    coerente tenho de aceitar este caminho de esperana. Bergson diz que a vida a

    expresso de uma tendncia, antes de ser o efeito de uma causa. E como uma das

    bases desta dissertao Bergson, assim me conduzi.

    Os sentidos e as tcnicas

    Os nossos sentidos so condicionados culturalmente, a leitura que fazemos do

    mundo passa por uma srie de filtros - tcnicos e conceituais - que conformam o

    nosso modo de perceber. Dificilmente notamos diferena no rosto de dois macacos,

    mas, em compensao, distinguimos o rosto de cada um dos bilhes de seres humanos

    na terra, o olhar se especializa no que lhe mais necessrio. Diferenciamos no

    somente cada rosto, mas lemos as diferentes emoes neles expressas.

    Para Arnold Toynbee, a tcnica qualquer mudana consciente que o homem

    faz do mundo. As tcnicas, que para Mcluhan so extenses do nosso corpo, sempre

    condicionaram o modo de ver o mundo e com isso a nossa conscincia. Da inferimos

    que o homem se formou num dilogo com o mundo, pois no mesmo instante em que

    ele est intervindo de forma consciente no mundo, est alterando a sua percepo do

    mesmo.

    Com o surgimento das tcnicas ligadas eletricidade, telefone, cinema,

    computadores entre outros, talvez pela primeira vez estejamos podendo perceber a maneira como as tcnicas influenciam os nossos sentidos. Ao se falar em computador

    o discurso preponderante o que considera que as tcnicas de sntese propiciadas

    pelos computadores perdem a relao com a realidade pelo fato de se colocar, entre o

    real e a simulao, uma operao computacional ou algortmica. Edmond Couchot diz

    que:

  • 3

    Quer o computador tenha procedido a partir de objetos reais numerizados ou de objetos descritos matematicamente, a imagem que aparece sobre a tela no possui mais, tecnicamente, nenhuma relao direta com qualquer realidade preexistente. Mesmo quando se trata de uma imagem ou objeto numerizado, pois a numerizao rompe esta ligao - esta espcie de cordo umbilical - entre a imagem e o real. So nmeros e somente nmeros3 expressos sob a forma binria na memria e nos circuitos do computador que preexistem a esta imagem e a engendram. 4

    Para muitos, essa a maior ameaa das novas tcnicas: a perda de relao com a

    realidade e a criao de um universo da mquina totalmente abstrato. A partir dessa

    observao, inicio a minha abordagem, considerando a relao com o real e as formas

    de percepo da realidade.

    O mundo que estaria sendo criado a partir das novas tcnicas computacionais

    seria um mundo de meras representaes, mas o mundo tradicional do conhecimento

    cientfico e artstico, quanto sua matria, no tambm a mesma coisa? Baxandall,

    quando fala do Renascimento, no se assusta tanto quanto os que temem as novas

    tcnicas computacionais com o condicionamento do olhar, ele diz que o olhar

    renascentista muito condicionado pela cultura vigente:

    Parte del equipamiento mental con el que un hombre ordena su experiencia visual es variable, y, en su mayora, culturalmente relativo, en el sentido de que est determinado por la sociedad que ha influido en su experiencia. Entre estas variables hay categoras con las que clasifica sus estmulos visuales, el conocimiento que usa para complementar lo que le aporta la visin inmediata y la acti tud que adopta hacia el t ipo de objeto art if icial visto. El espectador debe usar frente a la pintura la competencia visual que posee, una competencia que slo en pequea proporcin es, salvo casos excepcionales, especfica para la pintura, y f inalmente es probable que uti l ice los t ipos

    3 No decorrer da dissertao, digo que o nmero que se interpe entre o real e a imagem produzida no

    computador no mais o nmero cartesiano de que fala Couchot, mas um nmero prximo de como o pensamento mtico o entendia, um nmero que pode captar um sabor do mundo e integrar os sentidos num modo de percepo intuitivo. 4 COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte, da fotografia realidade virtual.Porto Alegre: Ed. da

    UFRGS, 2003, pg.163.

  • 4

    de competencia que su sociedad t iene en gran estima. El pintor responde a eso; la capacidad visual de su pblico debe ser su medio. Cualesquiera que sean sus propias habil idades profesionales especializadas, l mismo es un miembro de la sociedad para la cual trabaja y con la que comparte su experiencia y hbitos visuales.5

    Apreendemos o real atravs dos nossos sentidos, viso, audio, gosto, olfato e

    tato. A nossa viso, por exemplo, tem limites, no conseguimos ver coisas muito

    pequenas, muito rpidas, no conseguimos ver no escuro. Em outros seres vivos os

    sentidos so talvez mais aguados. O co ouve melhor, tem um olfato mais acurado, o

    gato enxerga melhor no escuro. Alguns animais usam os sentidos de maneira diferente

    da nossa, para o morcego, por exemplo, o som tem um valor semelhante ao que tem

    para ns a viso, alguns insetos se orientam pelo tato. A percepo que eles tm do

    mundo muito diversa da nossa. O que percebemos do mundo passa pelos nossos

    sentidos, mas esses tambm so orientados pelas concepes que temos do mundo.

    Segundo Kant, no apenas o entendimento impe suas formas a priori s

    informaes que chegam atravs dos sentidos. Formas so, ao mesmo tempo,

    impostas pela sensibilidade, compondo-se um cenrio mais completo do

    conhecimento, numa troca permanente. Assim, existe uma sntese entre os sentidos e

    o intelecto, agentes dos dois aspectos citados, o conhecimento se d a partir dessa

    sntese. Portanto, temos uma leitura particular do mundo, uma leitura inerente

    espcie humana.

    O nosso modo de ver condicionado pela nossa concepo de mundo. Mas a

    nossa concepo do mundo tambm pode ser alterada a partir de novas formas de

    perceber a que levam as tcnicas. A linguagem tambm uma tcnica, e ela tambm

    altera a nossa percepo do mundo. A linguagem estabelece estruturas que

    condicionam, alm do prprio conhecimento, a nossa forma de ver o mundo. E a

    formao da linguagem tem uma histria ligada das outras tcnicas.

    5 BAXANDALL,M. Pintura y vida cotidiana en el Renacimiento, Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1981,

    pg.60.

  • 5

    As mudanas que esto ocorrendo com a chegada das tecnologias da informao

    s tm similar na lenta passagem do paleoltico para o neoltico, quando o homem

    moldou as bases do mundo que conhecemos hoje, deixando de ser nmade para se tornar sedentrio e estruturando uma linguagem que, possivelmente, est sendo

    mudada atualmente com o surgimento das tcnicas da computao ligadas

    eletricidade.

    A base conceitual do trabalho

    Para conduzir a argumentao do trabalho, utilizarei como base terica o

    pensamento de dois autores, Henri-Louis Bergson e Marshall Mcluhan. Alm desses

    dois autores, posso citar tambm a influncia de Theodor Adorno, especialmente do

    seu livro Minima Moralia - que se tornou o meu livro de cabeceira nesse tempo de

    mestrado.

    Henri-Louis Bergson :

    Bergson defende a intuio como o mtodo mais preciso em filosofia. Em sua

    viso, a intuio seria um modo de conhecimento capaz de captar a essncia temporal

    e fluida da realidade. Ele critica a razo que s apreende os valores que percebe do

    mundo como extenso. Tudo mensurado como se fosse esttico e, mesmo o

    movimento, que um contnuo, dividido em vrios pequenos segmentos para poder

    ser compreendido. Esse saber avalia o mundo em termos quantitativos, concebe tudo

    em termos de mais e de menos e s percebe diferenas de grau ali onde existem

    diferenas de natureza.

    Para Bergson, s podemos escapar a essa tendncia intelectual recorrendo

    intuio, que a forma de sair das armadilhas da razo e incluir o tempo na filosofia,

    com tudo o que isso acarreta de indeterminao. Para ele, o universo constitudo de

    modificaes, perturbaes, mudanas de tenso e energia que se do no tempo.

    Existe uma pluralidade de ritmos de duraes. A memria, para Bergson, uma forma

    de contrao da nossa percepo do mundo pura extenso que se contrai na memria

  • 6

    , faz com que o corpo conhea algo distinto da instantaneidade, faz perceber as

    qualidades. A intuio pressupe a durao, ela consiste em pensar em termos de

    durao. o mtodo para sairmos de nossa durao e percebermos outras duraes. Ela implica inmeras leituras, de pontos de vista mltiplos, no-lineares, que

    permitem sentir a diversidade das duraes que constantemente se dividem e mudam

    de natureza.

    De que serve o tempo?.... o tempo o que impede que tudo seja dado de uma s vez. Ele atrasa, ou antes, ele o atraso. Deve, pois, ser elaborao. No seria, ento, o veculo de criao e escolha? A existncia do tempo no provaria que h certa indeterminao nas coisas? 6

    O determinismo torna impossvel o encontro com a realidade mutante. O

    mundo, como estamos descobrindo hoje graas s novas tecnologias e sua maior capacidade de leitura da realidade, o movimento e a mudana permanentes. O

    realismo e o indeterminismo so solidrios.

    O pensamento de Bergson crtico de uma organizao hierrquica do mundo

    que se guia por concepes que diluem o pensamento no geral: Na cincia e na

    metafsica, Bergson denuncia um perigo comum: deixar escapar a diferena, porque

    uma concebe a coisa como um produto e um resultado, porque a outra concebe o ser

    como algo imutvel a servir de princpio7. Para ele, a natureza seguiu um caminho de

    diferenciaes sucessivas, no determinadas. Durao o que difere de si, a prpria

    natureza da diferena, o tempo pressupe uma indeterminao nas coisas. A vida

    fruto desse processo.

    A cultura ocidental tende a negar a indeterminao, tende a ver tudo como fixo,

    no inclui a mudana que ocorre no tempo. Para Cassirer, esta tendncia se

    manifestou nos primrdios da civilizao:

    A linguagem no pode comear por uma fase de puros

    6 BERGSON, Henri. Apud: PRIGOGINE,Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza.

    So Paulo: Ed. da Universidade Estadual Paulista, 1996, pg.33. 7 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. So Paulo: Ed. 34 , 1999, pg. 129.

  • 7

    conceitos nominais, nem de puros conceitos verbais, porquanto ela prpria que produz a distino entre ambos e provoca a grande crise espiritual, em que o permanente se contrape ao transitrio e o ser, ao devir. Assim, os conceitos lingsticos primitivos, desde que se admita a sua possibilidade, devem ser compreendidos como anteriores e no posteriores a esta separao, como se contivessem configuraes de certo modo suspensas entre a esfera nominal e a verbal, entre a expresso da coisa e do processo ou da atividade, num peculiar estado de indiferena.8

    Nesta dissertao, sustento - e desenvolvo este pensamento no 1 Captulo

    Histrico da passagem da linguagem linear para a no-linear- que, na transio do

    paleoltico para o neoltico, a escrita tenha comeado a se tornar linear e provocado a

    grande crise espiritual de que fala Cassirer. Para melhor controlar as propriedades

    que surgiam, a escrita incorporou uma contabilidade necessria ao controle das

    posses. Ela prpria, a escrita, era tambm uma posse dos sacerdotes e comandantes.

    Com a escrita linear, as verdades foram gravadas de modo permanente, o mundo

    passou a ser visto como uma estrutura imutvel, as leis se escreveram na pedra. Para

    que chegssemos idia de posse, foi necessria uma mudana no modo de ver o

    mundo. Comeamos a pensar nas coisas como categorias e deixamos de ver cada

    coisa como nica.

    A rigidez que levou o controle, o medo da perda embutida na escrita linear,

    no baseou suas certezas na natureza imediata e sempre mutante que circundava as

    cidades que surgiram neste perodo , mas foi colher nas estrelas distantes uma

    estrutura inflexvel que explicasse o nosso destino. Assim, nos movimentos dos

    astros, como na imagem visvel do tempo, se exprime a nova unidade do sentido

    sentido que, para o pensamento mtico religioso, comeou a estender-se sobre a

    totalidade do ser e acontecer. A ordem das necessidades, da ao e da sociedade, nos

    inclina a reter s as coisas que nos interessam, a ordem da inteligncia e sua afinidade

    natural com o espao; a ordem das idias gerais que recobrem as diferenas de

    natureza. Desde ento a arte ocidental se cartesianizou, os sons foram reduzidos s

    notas musicais, houve um predomnio das linhas verticais e horizontais nas estruturas

    8 CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1972, pg.26

  • 8

    artsticas alm de inmeras regras que definiam o belo e o bem , e, sempre que

    nomeamos as coisas, homem, mulher, rvore, impomos fronteiras para outras

    significaes. Para Bergson, a cincia e a arte tm neste caminho a histria de uma

    alienao progressiva que s pode ser mudada com a adoo da intuio como forma

    de pensar o mundo. Acredito que algumas tcnicas computacionais ampliam a

    capacidade de apreenso da essncia temporal e fluida da realidade. Os computadores

    permitem fazer um mapeamento do mundo de modo como nunca foi feito antes, isso

    entra em choque com a tendncia de um pensamento generalizador, na medida em que

    temos a possibilidade de ver cada coisa como nica.

    A inteno mostrar aqui que o pensamento lgico pode se afastar de um modo

    de pensar dicotmico e, citando Bergson, fabricar uma mecnica que triunfe sobre o

    mecanismo e empregar o determinismo da natureza para atravessar as malhas da

    rede que ele havia distendido. Superar as contingncias da sua feitura no novidade

    para a arte. A intuio que Bergson considera a que ultrapassa a mera soma das

    percepes, mas talvez nunca se tenha tido uma possibilidade de um movimento to

    potente, que inclua a percepo dos sentidos e a cincia, livres das limitaes do

    imediato. E isso propiciado pelas novas tecnologias, pelo seu uso difundido no meio

    artstico em especial com as interfaces tridimensionais.

    Nesta dissertao, abordarei as novas tcnicas de mapeamento do mundo

    desenvolvidas para o computador e as leituras possveis desse mapeamento.

    Marshall Mcluhan:

    Outro autor em que baseio a minha dissertao Mcluhan que em seu principal

    livro Os meios de comunicao como extenses do homem9, cita Bergson vrias

    vezes e se pode perceber uma similitude de pensamento. Mcluhan era muito crtico

    em relao razo ocidental e tinha a crena de que as novas tecnologias mudariam o

    9 McLUHAN, Marshall.Os meios de comunicaes como extenso do homem.So Paulo:Cultrix, 1969.

  • 9

    panorama da nossa civilizao de forma a alterar uma razo que levou a um

    distanciamento frio. Esperava que as novas tecnologias se parecessem com uma

    oralidade que integrasse novamente as faculdades humanas excludas da razo.

    Para ele, as tecnologias vinculadas eletricidade trariam um modo de pensar

    com algumas caractersticas prximas s do pensamento mtico, para o qual a

    separao e a estratificao so totalmente estranhas. Enquanto o pensamento

    cientfico se relaciona com aquilo que vem ao seu encontro como seu objeto e se posiciona diante dele com suas prprias normas, a conscincia mtica no se prende

    ao esquematismo de uma regra e toma o objeto como algo incomparvel e prprio. Mcluhan dizia que, com a automao, os homens passariam a ser nmades em busca

    de conhecimento, livres do especialismo fragmentrio.

    Mcluhan cita quatro grandes etapas na comunicao da humanidade, a fala, a

    palavra escrita, a palavra impressa e, por fim, a eletricidade - que seria energia e

    informao simultaneamente. Constri um caminho baseado no desenvolvimento

    desses meios e considera que a partir da palavra escrita houve um processo gradativo

    de separao das faculdades humanas e uma grande reduo na percepo do mundo.

    Ele julga que, com a eletricidade, este processo est se revertendo a uma oralidade similar a da fala, anterior escrita, oralidade esta inclusiva de modos de perceber

    perdidos com a linearidade imposta pela escrita fontica e pela palavra impressa.

    Minha dissertao sobre computao grfica 3D, sobre as interfaces

    tridimensionais que se tornam lugares de encontro de diversas formas de apreenses

    tcnicas do mundo que se misturam, gerando novas significaes. Estas interfaces so

    exemplos dessa volta oralidade de que fala Mcluhan. Alguns softwares de

    computao tridimensional podem ser tomados como referncias de uma nova

    linguagem intuitiva integrada mquina.

    A questo da minha dissertao

    Para Mcluhan, qualquer inveno ou tcnica uma extenso do nosso corpo. A

  • 10

    roda a extenso do p, a luneta do olho, a casa da pele e assim por diante. Para ele,

    as extenses dos nossos sentidos estabelecem novos tipos de relaes, no apenas

    entre os sentidos como tambm entre si, na medida em que se relacionam. A nossa

    percepo do mundo mudada a cada nova extenso do corpo. Quando dominamos o vidro e fizemos lentes, uma nova dimenso se abriu, o microscpio desvendou o

    mundo das pequenas coisas e o telescpio das distantes, a nossa leitura se ampliou e

    alterou a concepo do universo. Segundo este autor, as tecnologias que surgiram com

    o advento da eletricidade seriam extenses do nosso crebro. Partindo do pressuposto

    de que essa assertiva correta, pergunto se a computao poderia trazer um

    incremento na nossa capacidade intuitiva. Se com a computao poderamos perceber

    melhor a essncia temporal e fluida da realidade? Se no computador poderia haver

    uma extenso10 das estruturas que conformam a intuio de acordo com o que Bergson

    prope que seja a intuio? Penso que nas interfaces tridimensionais temos um exemplo dessa possibilidade.

    Segundo Paul Klee11, em arte,

    no se chega a nada sem a intuio. Podemos

    argumentar, fundamentar, construir, organizar, mas a intuio capaz de chegar a

    uma totalizao, a uma sntese que transcende a reunio das partes. Esta dissertao

    trata da arte na medida em que versa sobre a intuio, um aspecto que, para muitos,

    inerente ao trabalho artstico.

    Se for verdade que temos uma extenso da intuio em alguns aparelhos - como

    veremos no captulo 2-, podemos ter a esperana de uma leitura que incorpore a

    incessante mudana e indeterminao do mundo e o construa em funo das

    possibilidades que surgem e evoluem com o tempo, no apenas baseada numa rgida

    concepo de causa e efeito que procura dar conta de todas as respostas

    aprioristicamente.

    Ilya Prigogine expe a contradio entre dois pensamentos fundamentais de

    10 No estou perguntando se o computador pode ter intuio, assim como no se diz que uma luneta

    enxerga, mas ela permite ver mais prximo. Pergunto se ele pode trazer um incremento na nossa capacidade intuitiva. 11

    KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pg. 85.

  • 11

    nossa civilizao: o primeiro, que considera que todo evento causado por um evento

    que o precede, de modo que se poderia predizer ou explicar qualquer acontecimento.

    O segundo, quando atribumos s pessoas sadias a capacidade de escolher livremente

    entre vrias aes distintas. Isso nos leva ao dilema de sabermos se o futuro dado ou

    est em perptua construo. Nesse sentido, a noo do tempo fundamental para a

    definio desta questo. A cincia clssica considera que a percepo do tempo como

    passado e futuro era fruto da limitao da percepo da natureza pelos sentidos.

    Atribua ao carter aproximado da nossa descrio da natureza, nossa limitao, a

    noo do tempo como progresso. Prigogine inverte a questo e entende as certezas

    como fruto da limitao das nossas concepes, e exemplifica:

    Como meu saudoso amigo Lon Rosenfeld no se cansava de ressaltar, toda a teoria se funda em conceitos fsicos associados a idealizaes que tornam possveis a formulao matemtica dessas teorias; por isso que nenhum conceito fsico suficientemente definido sem que sejam conhecidos os limites de sua validade, limites que provm das prprias idealizaes que o fundamentam. 12

    As leis da natureza enunciadas pela fsica so da esfera de um conhecimento

    ideal que alcana a certeza. Uma vez que as condies iniciais so dadas, tudo

    determinado. A natureza um autmato que podemos controlar, pelo menos em

    princpio. Ele considera que a novidade, a escolha, a atividade espontnea so apenas

    aparncias, relativas ao ponto de vista humano. Isso levou a toda uma esttica da

    geometria euclidiana, da urea proporo como noo de harmonia, de um equilbrio

    da natureza. Levou a msica ocidental, por exemplo, a ficar restrita a uma limitada

    gama de notas. Prigogine considera que a aceitao da indeterminao do universo, de

    que ele est aberto a mudanas no previstas que se adaptam s situaes novas

    encontradas, que nos permite entender a vida como s sendo possvel num universo

    longe do equilbrio. A vida a novidade e a mudana permanente e irreversvel, o que

    no leva desordem, mas a uma diversidade de novas ordens. Um novo entendimento

    12 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. So Paulo: Ed. da

    Universidade Estadual Paulista, 1996, pg. 31. Prigogine Premio Nobel de Qumica, professor da universidade livre de Bruxelas e da universidade do Texas, Austin, EUA.

  • 12

    de como o mundo se organiza:

    A manuteno da organizao na natureza no e no pode ser realizada por uma gesto centralizada, a ordem s podendo ser mantida por uma auto-organizao. Os sistemas auto-organizadores permitem a adaptao s circunstncias ambientais; por exemplo, eles reagem a modificaes do ambiente graas a uma resposta termodinmica que os torna extraordinariamente flexveis e robustos em relao a perturbaes externas. Queremos sublinhar a superioridade dos sistemas auto-organizadores em relao a tecnologia humana habitual, que evita cuidadosamente a complexidade e gere de maneira centralizada a grande maioria dos processos tcnicos.... Uma tecnologia inteiramente nova dever ser desenvolvida para explorar os grandes potenciais de idias e de regras dos sistemas auto-organizadores em matria de processos tecnolgicos. A superioridade dos sistemas auto-organizadores ilustrada pelos sistemas biolgicos, em que produtos complexos so formados com uma preciso, uma eficincia, uma velocidade sem iguais. 13

    O pensamento de Ilya Prigogine, que, poderamos dizer, uma traduo

    matemtica do pensamento de Bergson, vincula a teoria do caos diversidade de

    formas que a evoluo biolgica encontrou para se adaptar a cada condio ambiental,

    e, para ele, o possvel mais rico que o real. Segundo Prigogine, qualquer sistema,

    mesmo o mais catico, tende a uma ordem.

    A arte e as interfaces tridimensionais.

    Desde os tempos imemoriais a arte esfora-se por salvar o particular...A reprodutibilidade em massa de nenhum modo se tornou a sua lei formal imanente, como a identificao com o agressor se compraz em afirmar... A industrializao radical da arte, a sua adaptao integral aos padres tcnicos alcanados, colidem com o que na arte se recusa a integrao.14

    A arte tentou se contrapor desde sempre aos conceitos universais, porque,

    mesmo os autores que trabalhavam com cnones bem definidos, quando

    13 PRIGOGINE, Ilya. 1996, pg.75.

    14 ADORNO, T. W.Teoria Esttica, Lisboa: edies 70, 1982, pg.227-244.

  • 13

    concretizavam uma obra autntica Adorno cita Bach como exemplo , criavam algo

    de nico, no passvel de ser reduzido s regras que a constituram. Nisso, a nova

    tecnologia das interfaces tridimensionais, que, penso, tm a possibilidade de perceber

    uma diversidade maior no mundo, se aproxima do modo de ver da arte e, espero,

    possa inaugurar uma liberdade que prescinda de regras que impeam de ver as

    diferenas.

    Como exemplo de uma arte ligada s novas tcnicas, vou apresentar o trabalho

    de Char Davies, artista que desde 1987 scia da Softimage uma das maiores

    empresas desenvolvedoras de software para animao tridimensional do mundo e que

    fez ambientes de imerso que integram os sentidos ao mundo virtual. Falo tambm de

    Mauro Fuke, escultor que atualmente se utiliza de um software de animao

    tridimensional para a elaborao dos seus trabalhos. Proponho-me a analisar como a

    utilizao desse software influi na sua produo, o que ele pensa a respeito e tom-lo

    como exemplo da possibilidade de um trabalho intuitivo no computador.

    Estruturei o meu trabalho em dois captulos. O primeiro, um histrico que

    penso ser necessrio para situar no tempo e contrapor a lgica das interfaces

    tridimensionais das outras formas de comunicao. O segundo, pensa as interfaces

    tridimensionais como possibilitadoras do exerccio da intuio na relao com os

    computadores. Se isso for possvel, creio que haver uma grande mudana, o saber

    voltar a integrar os sentidos numa nova forma de entendimento do mundo.

  • 14

    Captulo 1 Histrico da passagem da linguagem linear para a no-linear

  • 15

    Em 1964, Marshall Mcluhan publicou um livro chamado Os meios de

    comunicao como extenses do homem15. Para ele, como j disse, a tecnologia sempre uma extenso do homem, desde a fala, como prolongamento da nossa

    conscincia, at a eletricidade, como extenso do nosso sistema nervoso. Ele analisa

    a histria sob o ponto de vista das mudanas geradas na nossa percepo com a

    chegada de novas tecnologias de comunicao. Estruturou o livro em quatro grandes

    formas de comunicao: a fala, a escrita, a imprensa e a eletricidade. Ele afirma: Os

    efeitos da tecnologia no ocorrem aos nveis das opinies e dos conceitos: eles se

    manifestam nas relaes entre os sentidos e nas estruturas da percepo, num passo

    firme e sem qualquer resistncia.16

    Neste primeiro captulo, pretendo fazer um resumo do desenvolvimento das

    tecnologias, tendo como base as idias de Mcluhan e, com isso, poder situar as

    interfaces tridimensionais num contexto histrico.

    15 MCLUHAN, Marshall. Understanding Media. New York: Mc-Graw-Hill Book Company, 1964.

    16 Idem. 1969, pg.34.

  • 16

    1.1 Linguagem - discernimento e distncia

    Quando a conscincia transborda um corpo, tambm um corpo que dela se destaca ...

    Arthaud

    Foram muitas as mudanas fsicas e climticas decorrentes dos diversos

    cataclismas pelos quais o planeta terra passou at chegar s condies de vida da

    espcie de mamferos que hoje conhecemos. Os hbitos desses seres se transformaram com as novas condies de vida,

    puderam trocar a noite, que antes os protegia, pelo dia, que agora era mais seguro.

    Com essa mudana, a viso teve de se adaptar e se tornar mais flexvel. A evoluo

    criou um novo modo de sintetizar os sentidos de longo alcance num mesmo lugar no

    crebro. Viso, audio e olfato comearam a ser integrados num mesmo lugar. Essa

    sntese permitiu que os objetos percebidos ganhassem identidade e estabilidade, ainda que estivessem em movimento, ou que o observador mudasse o seu ponto de vista17.

    No livro A angstia da influncia18, de Harold Bloom, h uma passagem que

    aborda a teoria da origem da poesia de Vico. Ele se refere a homens ainda no dotados

    da faculdade da razo, solitrios, nmades, em meio ao caos de uma natureza

    misteriosa. Esse homem teria uma fora de imaginao incompreensvel para ns. Era,

    provavelmente, um homem com uma memria prodigiosa que no esquecia de nada,

    sendo capaz de descrever a forma das nuvens, lembrava todos os detalhes do dia

    anterior, via o mundo em toda a sua riqueza, diversidade, cada coisa como o seu

    prprio conceito. Para governar sua vida, o homem primitivo de Vico criou um

    sistema cerimonial de mgica, que Vico mesmo denominava de poema severo.

    Esses nmades primitivos eram poetas, e sua sabedoria cerimonial era aquilo que ns

    mesmos estamos procurando: a sabedoria potica.

    Outro fato importante que podemos observar que os humanos passam a nascer

    17 OLIVEIRA, Luiz Alberto. Imagens do tempo. Tempo dos tempos / organizado por Mrcio Doctors.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pg.35. 18

    BLOOM, Harold. A angstia da influncia: uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991; pg.94.

  • 17

    cada vez mais inacabados. Enquanto os outros animais j nascem sabendo, o conhecimento humano se forma a partir de um dilogo com o mundo.

    Pensar esquecer diferenas, abstrair. Existe uma fase no incio da formao

    do homem em que cada coisa em particular, em vez de ser membro de um sistema,

    ainda possui a marca de uma individualidade, uma fase em que as categorias no

    possuem validade universal abstrata. A arte pode nos remeter a esta fase e parecer

    estranha, porque nos afasta da nossa tendncia generalizao. A estranheza ao

    mundo um momento da arte. Para comear a discriminar as coisas em categorias, o

    homem teve que deixar de ver o todo e se ater ao que lhe interessava:

    Nossa representao da matria a medida de nossa ao possvel sobre os corpos; ela resulta da eliminao daquilo que no interessa s nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funes. Num certo sentido, poderamos dizer que a percepo de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, j que esse ponto recolhe e transmite as aes de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa conscincia s atinge algumas partes por alguns lados. A conscincia - no caso da percepo exterior - consiste precisamente nessa escolha. Mas, nessa pobreza necessria de nossa percepo consciente, h algo de positivo e que j anuncia o esprito: , no sentido etimolgico da palavra, o discernimento. 19

    Para Bergson, atravs de uma educao dos diversos sentidos, de uma

    combinao entre eles, o homem cria representaes dos objetos apreendidos. E, para Piaget, representaes no so apenas percepes e movimentos, mas sim conceitos

    ou esquemas mentais. ... evocaes simblicas das realidades ausentes...o conceito

    um esquema abstrato e a imagem um smbolo concreto mas, embora j no se reduza o pensamento a um sistema de imagens, poder-se- admitir que todo o pensamento se faz acompanhar de imagens, portanto, se pensar consiste em interligar significaes, a imagem ser um significante e o contedo um significado 20.

    O homem primitivo, para poder comear a ter discernimento e desenvolver a

    19 BERGSON, Henri. Matria e memria. Ensaio sobre a relao do corpo com o esprito. 2 ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 1999, pg.35. 20

    PIAGET, Jean. A formao do simblico na criana. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1978, pg.87.

  • 18

    conscincia, teve de perder o olhar que via cada coisa como nica e esquecer as

    diferenas. A linguagem uma abstrao e a desconsiderao do individual nos d o

    conceito, assim como nos d tambm a forma, enquanto que a natureza no conhece

    formas nem conceitos, portanto tambm no conhece espcies, mas somente algo para

    ns inacessvel e indefinvel, sobre o qual a nossa linguagem no consegue falar - mas

    que, talvez, a arte nomeie. A generalizao s pode ser feita por uma extrao de

    caractersticas comuns; mas as caractersticas, para serem comuns, devero j ter sofrido um trabalho de generalizao. Mas o que vem antes e o que vem depois?

    Bergson diz:

    O progresso que resultar da repetio e do exerccio consistir simplesmente em desembaraar o que estava inicialmente enredado, em dar a cada um dos movimentos elementares essa autonomia que garante a preciso, embora conservando-lhe a solidariedade com os outros, sem a qual se tornaria intil. correto afirmar que o hbito se adquire pela repetio do esforo; mas para que serviria o esforo repetido, se ele reproduzisse sempre a mesma coisa? A repetio tem por verdadeiro efeito decompor em primeiro lugar, recompor em seguida...21

    Podemos deduzir da que a generalizao provm da repetio, do hbito, o que

    chamamos agir precisamente fazer com que essa memria se contraia ou, antes, se

    aguce cada vez mais, at apresentar apenas o fio de sua lmina experincia onde ir

    penetrar.

    1.1.1 O gesto e a palavra

    As extenses tcnicas desse discernimento so basicamente a linguagem que se

    manifesta na fala, na escrita, nos gestos e as tcnicas que o homem comeou a

    desenvolver para a sobrevivncia. Lentamente, o homem comeou a construir um

    mundo e, simultaneamente, essa construo alterou a percepo e o discernimento do

    prprio homem.

    21 BERGSON, Henri, 1999, pg. 119.

  • 19

    A Linguagem uma tcnica que destacou o homem da vastido do real e o fez

    se distanciar dos objetos do seu discernimento. Sem a linguagem, a inteligncia humana teria permanecido absorvida nos objetos da sua ateno.

    Segundo Leroi-Gourhan, a rea do crebro destinada ao desenvolvimento da

    fala a mesma usada para o desenvolvimento da criao dos utenslios e das grafias.

    O desenvolvimento da fala, das tcnicas e da escrita simultneo. A mo e a fala

    esto relacionadas. Provavelmente no h razo para separar, nos estgios primitivos

    dos antropdeos, o nvel de linguagem do utenslio, pois que, atualmente, e em todo o

    decurso da Histria, o progresso tcnico est ligado ao processo dos smbolos tcnicos

    da linguagem22. A tcnica - o fazer - utiliza a mesma estrutura sinttica da linguagem

    no seu desenvolvimento. uma srie de operaes proposta pelo crebro. Na sintaxe da linguagem est presente o mesmo processo. A fala, a escrita, as representaes por

    imagens e as tcnicas dos utenslios surgem e se desenvolvem simultaneamente.

    Derrida cita Rousseau no seu livro Gramatologia que fala desse desenvolvimento

    paralelo:

    medida que crescem as necessidades, que se tornam complexos os negcios, que se difundem as luzes, a linguagem muda de carter; torna-se mais justa e menos apaixonada; substitui os sentimentos pelas idias; no fala mais ao corao, mas razo. Por isso mesmo o acento se extingue, a articulao se expande; a lngua torna-se mais exata, mais clara, mas tambm mais morosa, mais surda e mais fria. Este progresso me parece inteiramente natural.23

    O incio do que poderamos chamar de um olhar esttico est vinculado ao

    surgimento da conscincia, interessante salientar as primeiras manifestaes de

    reconhecimento de formas. Os Neandertalenses levaram para suas cavernas um certo

    nmero de objetos, que constituam-se de um aglomerado de esferas rugosas, do molde interno de uma concha fssil. Leroi-Gourhan diz que se trata do primeiro

    testemunho de um sentimento esttico. As concrees, os cristais faiscantes, afetam

    22 LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, tcnica e linguagem. Rio de Janeiro: Ed. 70,

    1990, Pg. 117. 23

    DERRIDA, Jacques. Gramatologia. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1999,pg.329.

  • 20

    diretamente as zonas mais profundas do pensamento refletido do homem, pois

    representam no domnio da natureza, palavras ou pensamentos, smbolos de forma ou

    de movimento.24

    Kant, na primeira seo do Juzo Teleolgico, diz que muitos produtos da

    natureza existem como se tivessem sido especialmente planejados para o nosso julgamento. Atravs da sua multiplicidade e unidade, servem, ao mesmo tempo, para fortalecer e sustentar os poderes mentais que entram em ao, como se houvesse uma

    ressonncia entre o objeto observado e as estruturas formadoras do pensamento. Ainda para Kant, o objeto belo aquele que se adapta aos nossos sistemas cognitivos, que lhes permite uma atividade livre e sem restries e os estimula ao mximo. As

    idias estticas so representaes da imaginao.

    Chomsky afirma que a linguagem quase como um rgo que o ser humano

    naturalmente desenvolve a partir do seu nascimento. Como uma asa para o pssaro,

    temos a linguagem para o ser humano. Milhares de anos de evoluo aperfeioaram a

    capacidade no homem de desenvolvimento da linguagem. Esse sentido humano

    fruto de um processo dialtico milenar que o homem formou na percepo do mundo.

    O reconhecimento atento, dizamos, um verdadeiro circuito, em que o objeto exterior nos entrega partes cada vez mais profundas de si mesmo medida que nossa

    memria, simetricamente colocada, adquire uma tenso mais alta para projetar nele suas lembranas.25 No sentimento esttico, o crebro seria como que motivado por

    estruturas consoantes com as suas.

    As primeiras manifestaes de arte Paleoltico no estavam reguladas por

    um espao estruturado, mas por uma concepo que no definia as direes, no havia

    uma orientao que preponderasse sobre as outras nem hierarquia entre os signos.

    Essa arte era executada em paredes ou pequenos objetos que no possuam a superfcie plana - ossos ou galhos. Entre 50.000 e 30.000 a.C., surgiram os primeiros

    signos gravados, alinhamentos de traos paralelos com a provvel inteno de

    24 LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, memria e ritmos. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1990,

    Pg. 184. 25

    BERGSON, Henri. 1999, pg.92.

  • 21

    Figura 1

    O Basto de Ishango Tem entre 20mil e 25 mil anos, o mais antigo testemunho matemtico da humanidade.

    marcao de um ritmo. Para Leroi-Gourhan26, essa srie de traos corresponderia,

    talvez, ao ritmo verbal, representaria o primeiro registro de ritmos a intervalos

    regulares. O mundo natural oferece uma srie de ritmos, as estaes do ano, os dias,

    os ciclos da lua. Aos ritmos existentes, o homem comeou a sobrepor um ritmo criado

    por ele, pelo seu corpo, gerado pelos seus gestos e pelas suas emisses vocais que vai

    se expandindo at chegar ao traado grfico, fixado pela mo na pedra ou no osso.

    O incio da reflexo determinou o surgimento do grafismo. Esses desenhos so

    o incio de um pensamento simbolizador. Para Derrida27, um certo tipo de escrita foi

    necessrio, provisoriamente, como instrumento e tcnica de representao de um

    sistema de lngua. Esse grafismo permitiu pensar na lngua, conceitos tais como os do

    signo, tcnica, representao e o da prpria lngua tambm. O grafismo no comea

    por uma representao do real, mas do abstrato.

    A arte figurativa posterior, e Leroi-Gourhan afirma que a partir de ento pode-

    se concluir que a arte figurativa est diretamente vinculada ao desenvolvimento da

    26 LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, memria e ritmos. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1990,

    Pg.126. 27

    DERRIDA, Jacques, 1999,pg.40.

  • 22

    linguagem, e quanto mais esta se elaborou, mais figurativa a arte se tornou. A

    figurao nasceu da formao do conjunto intelectual fonao-grafia. A fala, que seria o domnio dos sons emitidos pela boca e das expresses comunicadas pela face, est

    ligada ao grafismo, que seria o domnio dos gestos, smbolos materializados

    graficamente e transmitidos pela mo. Essas sries de traos regulares marcados em

    ossos corresponderiam ao ritmo verbal. As respostas que o corpo d s inmeras

    sensaes que percebemos do mundo so limitadas, respondendo a uma quantidade

    grande de sensaes com um mesmo reflexo, o prprio corpo comea a generalizar,

    discriminar sensaes de acordo com o tipo de reflexo com o qual responde. O sentido

    que primeiro funda uma instncia reguladora seria o tato, a caminhada e a batida do

    corao estabelecem ritmos regulares que se sobrepem aos ritmos existentes na

    natureza. O tato seria o integrador dos outros sentidos. Essa seria uma explicao de

    porque os primeiros grafismos conhecidos so a expresso de valores rtmicos. Desde

    o princpio, fonao e grafismo tm o mesmo objetivo. O simbolismo grfico sempre teve uma certa independncia em relao palavra falada, o seu contedo se exprime

    no espao, enquanto a fala se exprime no tempo. A imagem incorpora dimenses que

    a palavra no consegue atingir. Como observa Leroi-Gourhan: Assim, se a arte est

    intimamente ligada religio, deve-se ao fato de a expresso grfica restituir

    linguagem a dimenso do inexprimvel, a possibilidade de multiplicar as dimenses

    do fato nos smbolos visuais instantaneamente acessveis28. Podemos dizer que uma

    imagem, enquanto significante, guarda leituras outras que no apenas as estritas ao

    significado, no exata, deixando sempre uma margem para outras interpretaes. Na

    introduo desta dissertao, citei Cassirer quando afirma que houve um tempo em

    que o substantivo no se distinguia do verbo. A separao dos dois provocou a

    grande crise espiritual, em que o permanente se contrape ao transitrio e o ser,

    ao devir. As palavras comearam a criar fronteiras nas suas significaes. Observa-se

    isso tambm nos desenhos, em Lascaux e em outros stios, nos quais os desenhos so

    bem definidos por contornos, a separao aparece tambm na imagem. Isso j denota

    28 LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, tcnica e linguagem. Rio de

    Janeiro:Ed.70,1990,Pg.197.

  • 23

    um modo peculiar de ver o mundo, modo esse que percebe o mundo em funo da

    nossa ao sobre ele. Bergson diz:

    Que existem, num certo sentido, objetos mltiplos, que um homem se distingue de outro homem, uma rvore de outra rvore, uma pedra de outra pedra, incontestvel, uma vez que cada um desses seres, cada uma dessas coisas tem propriedades caractersticas e obedece a uma lei determinada de evoluo. Mas a separao entre a coisa e seu ambiente no pode ser absolutamente definida; passa-se, por gradaes insensveis, de uma ao outro: a estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas aes e reaes recprocas, demonstra suficientemente que eles no tm os limites precisos que lhes atribumos. Nossa percepo desenha, de certo modo, a forma de seu resduo; ela os delimita no ponto em que se detm nossa ao possvel sobre eles, e em que eles cessam, conseqentemente, de interessar nossas necessidades.29

    Obviamente no temos registros da fala daquele perodo, o contexto fontico

    dos lugares de culto foi perdido. Permaneceram as imagens, que so smbolos muito

    elaborados de mitos. Os mitos e o simbolismo grfico esto intimamente ligados.

    Temos a possibilidade de inferir uma estrutura da sintaxe fontica a partir das imagens

    do mesmo perodo:

    Podemos deduzir da uma fala estranha atual, com uma lgica diversa da

    nossa, que nos pareceria desconexa e incoerente. At hoje, a fala envolve todos os sentidos. Mcluhan faz uma comparao entre uma pessoa letrada, que fala de maneira

    concatenada, e uma pessoa proveniente de um lugar onde a palavra escrita ainda no

    preponderante. Nesses locais, a fala acompanhada do tocar, dos gestos (o que incluiria o olhar), da audio, do olfato provavelmente (porque ali os cheiros ainda no foram banidos). Ele cita um guia grego que diz:

    ....no se surpreenda com a freqncia com que voc abraado, acariciado e cutucado, na Grcia. Voc pode acabar se sentindo como um cachorro domstico....numa famlia carinhosa. Essa inclinao para o toque e os tapinhas nos parece uma extenso ttil da vida curiosidade dos gregos acima referida. como se os

    29 BERGSON, Henri, 1999,pg. 246.

  • 24

    anfitries estivessem querendo descobrir do que voc feito.30

    O mesmo autor tambm faz uma comparao entre a escrita e a fala, mostrando

    a perda expressiva que a palavra escrita tem em relao palavra falada. Esse autor

    conta que Stanislavsky costumava pedir para seus atores que pronunciassem de

    cinqenta modos diferentes a palavra noite. A platia ia experimentando os

    diferentes matizes de sentimentos e significados expressos por eles. Mais de uma

    pgina em prosa e mais de uma narrativa tem sido dedicada a exprimir o que no

    seno um soluo, um gemido, um riso ou um grito lancinante. A palavra escrita

    desafia, em seqncia, o que imediato e implcito na palavra falada31. As sociedades

    letradas tendem a uma observao dos fatos mais distante, envolvem menos os

    sentidos na compreenso do mundo.

    A primeira concepo de espao era dinmica, baseada num modo de vida

    nmade. O homem percorria o espao e assim tomava conscincia deste. O corpo

    humano e seus membros foram o sistema de referncia para o qual foram transpostas

    todas as demais diferenciaes espaciais, as expresses adiante, atrs, em cima,

    embaixo saram da intuio do corpo e foram para a linguagem. Essa via nos dava

    uma imagem do mundo com base num itinerrio e estava relacionada predominncia

    das percepes musculares e olfativas. A figurao da mmica e da dana situava-se

    na base: o gesto, inseparvel da linguagem, deve ter prosseguido o seu

    desenvolvimento inicial para bem depressa vir a emergir em nvel de figurao. Como

    nos mostra Giedion: A seleo de uma direo aparente estranha ao homem

    primitivo. O homem pr-histrico no dividia o mundo em componentes, ainda que tenha alguns elementos proeminentes aos quais nunca renunciou: significado mltiplo e transparncia, falta de interesse pelo passado e o futuro e liberdade de disposio dentro de um caos aparente.32

    A mitologia dos caadores comporta essencialmente a imagem de trajetos. Nas

    30 MCLUHAN, Marshall, 1969, Pg.96

    31 Ibidem, pg.97.

    32 GIEDION, Siegfried. O presente eterno. Madrid: Alianza Forma, 1986, pg.413.

  • 25

    Figura 2

    Lascaux sala principal - aprox. 15000 a.C. As figuras se dispem ao longo de um trajeto.

    imagens nas cavernas, as figuras repartem-se ao longo das salas, moldando-se ao

    relevo das paredes. No existe uma perspectiva que as organize. As figuras em

    Lascaux no estavam ordenadas em conjuntos, mas ao longo de um trajeto, ligadas entre si por uma relao temtica, cujo sentido nos escapa. Em Niaux, as imagens se repetem por mais de um quilmetro.

    O mais notvel nessa arte a exatido do desenho que, ao apreender os

    movimentos e gestos fugazes, se aproxima da realidade de diversas maneiras. As

    imagens feitas eram consideradas como extenso da prpria realidade, no se tinha o

    conceito de arte. Podemos aqui traar um paralelo com a atual realidade virtual e a

    dificuldade que temos de defini-la como realidade ou sonho. O bisonte pintado na

    parede da caverna era um bisonte real para o homem do Paleoltico, que chegava a

    atirar setas nas imagens pintadas. A arte deles privilegiava o olhar acima de tudo,

    percebia um mundo imediato.

  • 26

    Se no Paleoltico o desenho chegou a um grande nvel de virtuosidade, isso no

    se deu atravs de dogmas e frmulas fixas, mas sim por um modo cambiante e

    extremamente rico em sua expresso.

    Pelo fato de ser nmade - apesar de o seu andar se limitar a um territrio restrito

    -, o homem do Paleoltico no tinha a noo de passado e futuro. Nem a morte nem o

    nascimento eram entendidos como lei do tempo. O tempo para ele era imvel, o que

    se movia era o espao no seu deslocamento.

    Cassirer trata da possibilidade das primeiras classificaes do homem no se

    darem por generalizaes, mas pela apreenso do que diferencia determinada coisa.

    As ovelhas, por exemplo, no seriam classificadas como aquelas que tm l, ou pela

    sua altura, mas sim, pela peculiaridade do som que emitem, que diferente de todos

    os outros.

    Assim, a linguagem mtica estaria baseada numa viso de mundo onde cada

    coisa tem uma qualidade que a diferencia. A nova cincia advinda da computao no

    pode levar a isto?

    A natureza ainda no tinha se tornado material de uma classificao. Na magia e

    na arte do Paleoltico ainda havia representantes especficos. O mundo da magia ainda

    continha as diferenas e isso se reflete na sua arte. Os deuses momentneos de que

    fala Cassirer, variavam, eram fruto de uma relao sem intermediaes entre o homem

    e a natureza na diversidade de percepes do seu caminhar. Os deuses ainda no

    tinham se separado da viso imediata do mundo como suas essncias. Sonho e

    imagem no valiam como meros signos da coisa, mas eram vinculados a ela por

    semelhana, mimese ou pelo nome.

    Mais tarde o homem foi obrigado a se assentar num local e ter uma atividade

    pastoral: o incio do trabalho, a expulso do paraso. Com a atividade pastoral, a

    percepo do tempo como cclico efetivada. O conceito de tempo est ligado idia

    de propriedade. Historicamente, o prprio conceito de tempo formou-se tendo

    por base a ordenao de propriedade. Mas a vontade de possuir reflete o tempo como angstia diante da perda, diante do irrecupervel. Fazemos a experincia do que em relao possibilidade de seu no-ser. Com isso, a que ele se torna mesmo

  • 27

    uma posse, e nessa rigidez que se torna algo funcional, passvel de ser trocado por outra posse equivalente.33

    Os mitos se voltaram para o que se repete - ao sol que nasce e morre todos os

    dias, ao trigo que germina a cada estao, aos pssaros que migram e retornam - e a j comearam a conter o germe da viso da cincia moderna, que considera todos os

    processos como passveis de repetio.

    1.1.2 A escrita e as cidades

    Na histria da civilizao, podemos estabelecer um paralelo entre o

    aparecimento da escrita linear e o surgimento das cidades. As moradias, os templos,

    os cemitrios, todos os elementos encontrados na cidade j existiam anteriormente dispersos. O nico elemento urbano que surgiu juntamente com a cidade foi a fortaleza, que serviu para subjugar e controlar o excedente da produo. Esse smbolo de fora serve estratificao em castas. Lvi Strauss confirma essa estratificao na

    ligao entre o surgimento da cidade e da escrita: O nico fenmeno que a tem fielmente acompanhado [a

    escrita] a formao das cidades e dos imprios, isto , a integrao num sistema poltico de um nmero considervel de indivduos e a sua hierarquizao em castas e em classes(...) Se a minha hiptese for exata, necessrio admitir que a funo primria da publicao escrita foi a de facilitar a servido. O emprego da escrita para fins desinteressados com vista a extrair dela satisfaes intelectuais estticas um resultado secundrio, se que no se reduz, na maior parte das vezes, a um meio de reforar, justificar ou dissimular a outra.34

    No neoltico, com a concepo do tempo e do espao mudando, o homem

    comeou a perceber a rvore no como uma rvore mas como testemunho de um

    outro.35

    A natureza

    comeou a ser representada

    nos mitos e nos ritos mgicos, como

    processos que se repetem. Em lugar dos deuses e demnios locais, apareceram o cu e

    33 ADORNO,Theodor. Minima moralia. So Paulo, Ed. tica: 1993, pg 67-68.

    34 STRAUSS,Lvi. Apud: TREVISAN, Armindo. A Dana do Szinho. So Paulo: Ed. Perspectiva,

    1988, pg. 38. 35

    BENJAMIN, Walter et ali. Os Pensadores - Textos escolhidos. So Paulo: Abril Cultural; 1983. pg. 97.

  • 28

    Figura 3

    Santurio em Eridu - 5000 a.C.Um dos mais antigos que se conhece, com altar definido.

    sua hierarquia. Esse processo pode ser percebido na elaborao das formas de

    arquitetura. De incio, os cultos religiosos eram efetuados por cada famlia em sua

    casa, no havia sacerdotes. Com o tempo, comeou a surgir uma construo

    diferenciada das outras casas, para servir aos cultos que se transferiram de espaos

    privados para espaos pblicos, assim se constituram os templos. O altar se

    desenvolveu gradativamente, assim como o surgimento dos sacerdotes e da

    transposio de deuses locais para uma hierarquia celeste.

    Mcluhan fala sobre o mito grego de Cadmo, rei que teria criado as cidades e

    introduzido as letras do alfabeto na Grcia, o alfabeto fontico foi o maior

    processador de homens para a vida militar homogeneizada que existiu na

    Antiguidade. A lenda contava que ele havia semeado dentes de drago e deles

    germinaram homens armados.

    As cidades, a escrita linear e os exrcitos surgem juntos para a mitologia grega. A formao de exrcitos foi a primeira manifestao de uma industrializao, ou seja, a concentrao de grande quantidade de energia homogeneizada em alguns poucos tipos

    de produo. A cidade seria a primeira mquina que permaneceu por muito tempo

    invisvel aos arquelogos, porque a substncia de que era feita corpos humanos foi

    desmantelada e decomposta.

    Tambm a guerra surge com a escrita linear e as cidades. Lewis Mumford, no

  • 29

    seu livro A cidade na histria36, considera que, anteriormente s cidades, no havia

    incurses organizadas de um grupo com fins de extermnio em massa de outro grupo,

    ou seja, guerra. Havia talvez incurses para a captura de algumas pessoas a fim de escraviz-las ou imol-las em sacrifcios rituais e banquetes canibais. Somente com as

    cidades surgiu a figura da guerra, que posteriormente pode ter se disseminado para

    lugares onde ainda no havia nem cidades.

    A alfabetizao, em si mesma, um conjunto de comportamentos abstratos que prepara o caminho para padres de ordenao comunitria. Esta mudana de

    percepo do mundo, na passagem da aldeia para a cidade, est intimamente ligada ao

    surgimento do alfabeto fontico. Mcluhan faz uma comparao com as outras formas

    de escrita: A palavra fontica escrita sacrificou mundos de significado e

    percepo, antes assegurados por formas como o hierglifo e o ideograma chins. Estas formas de escrita culturalmente mais ricas, no entanto, no ofereciam ao homem as pontes de passagem do mundo magicamente descontnuo e tradicional da palavra da tribo para o meio visual, frio e uniforme. Sculos de emprego do ideograma em nada ameaaram a trama inconstil das sutilezas familiares e tribais da sociedade chinesa.37

    Simultaneamente ao surgimento das cidades comeou a haver um predomnio

    das linhas horizontais e verticais como princpio organizador. Esse predomnio

    atravessou os sculos e s comeou a perder a sua importncia no incio do sculo

    XX, com o surgimento do Cubismo - que tratarei no final do captulo, relacionando o

    seu surgimento no-linearidade trazida pela eletricidade.

    A origem da verticalidade est profundamente centrada na mudana do

    pensamento mitopotico. Essa concepo corresponde fixao da cidade-capital no

    cruzamento dos pontos cardeais e elaborao de um cdigo de correspondncia que,

    pouco a pouco, acaba por assimilar na sua teia toda a criao.

    Templum significa recortado e talvez a primeira demarcao de um terreno

    delimitado. A primeira noo de posse vem da circunscrio de um lugar sagrado.

    36 MUMFORD, Lewis. A Cidade na Histria. Belo Horizonte: Itatiaia 1965.

    37 MCLUHAN, Marshall, 1969. Pg.102.

  • 30

    ...o espao celeste aparece ento como um tal domnio, consagrado e fechado em si

    mesmo; como um templum habitado por um ser divino e dominado por uma vontade

    divina.38 O cu se diferencia em quatro partes: norte, sul, leste, oeste. A ordem

    celeste desce terra. A linha leste-oeste determinada pelo curso do sol originou o

    cardo e o decumano a partir do que o pensamento religioso elaborou o sistema de

    coordenadas que se estendeu para todos os setores da vida.

    O tempo urbano o tempo humanizado por excelncia, mas a insero do ncleo constitudo pelos homens e o seu meio tecno-econmico s pode fazer-se no mbito da procura de uma continuidade ordenada entre este ncleo humanizado e a aurola do mundo natural. Esta continuidade ideal assegurada pelo cu que fornece a encruzilhada dos pontos cardeais ou qualquer outra referncia astral considerada como fixa. 39

    A cidade situava-se no centro do mundo e integrava-se no dispositivo universal

    cuja imagem refletia. A referncia que o homem tinha antes na natureza imediata, de onde provinham os deuses momentneos, substituda por uma referncia

    hierarquizada que se vincula ordem celeste. A verticalidade que comeou a

    predominar na arte, se manifestou em vrios elementos: no menir, na pirmide, no

    zigurat, nos monolitos e no obelisco. Ela uma linha de movimento, a integrao da

    terra com o cu, da cidade com a natureza idealizada. O obelisco foi o resultado final

    de um processo de progressiva abstrao geomtrica, reduzindo a materialidade ao

    extremo. De acordo com Giedion, a vertical foi o princpio organizador que deu

    origem a combinaes bsicas para a evoluo da cincia e da geometria. Os estilos

    mudam, mas a vertical permanece, de onde a percepo do eixo e da seqncia.

    Podemos dar como exemplo os cilindros-selos na Mesopotmia: sua inveno

    anterior escrita e se pressupe que seja decorrncia do descobrimento da roda. J se nota a uma idia de seqncia e ciclo bem pronunciada. O eixo fez com que o homem

    percebesse o mundo atravs de uma ordem de simetria e repetio. S no sculo XIX,

    38 CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simblicas II- O pensamento mtico. So Paulo: Martins

    Fontes, 2004. pg.178. 39

    LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, memria e ritmos. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1990.pg.141.

  • 31

    Figura 4

    Estrela dos Abutres, talvez a primeira expresso cartesiana na arte, mostra uma cena de guerra.

    Terceiro milnio a.C.

    com o domnio da eletricidade, essa ordem comeou a ser quebrada.

    Leroi-Gourhan diz que as escritas fonticas no so um desenvolvimento das

    escritas pictogrficas, elas tem por raiz uma conjuno das representaes mitogrficas com uma contabilidade elementar. Diz o autor que a simplificao das

    figuras se deu por fora do meio adotado que era provisrio e pouco monumental

    papiro provavelmente o que levou

    a um afastamento progressivo do contexto do qual as imagens eram provenientes. Os

    smbolos se tornaram sinais por fora da necessidade do rigor contbil e parecem

    fonetizar-se a partir de nmeros e quantidades. A escrita fontica tinha como

    fundamento o controle. Para Adorno, o homem no tardou a identificar a verdade com

    um pensar cujas firmes diferenciaes so imprescindveis para que possa subsistir. Quanto do que entendemos por razo no apenas um modo de contabilizar o mundo? As classificaes nas quais esta razo se baseia so arbitrrias, se formaram

    de modo a fortalecer relaes de poder. Mas, com o tempo, quanto mais crescia o

    poder social da linguagem, mais suprfluas tornavam-se as idias para fortalec-lo, e a

    linguagem da cincia lhes deu o golpe de misericrdia40.

    40 Walter Benjamin et ali.1983,pg.102.

  • 32

    Essa razo nos infundiu uma iluso que se enraizou no mais profundo da nossa

    inteligncia, a de que podemos conhecer todas as coisas pela sua extenso, e, assim,

    no conseguimos falar sobre as qualidades. Quem conseguiria descrever a sensao do gosto de uma ameixa? Segundo Heidegger, percebemos a essncia da linguagem

    quando no encontramos a palavra certa:

    Mas onde a linguagem como linguagem vem palavra? Raramente, l onde no encontramos a palavra certa para dizer o que nos concerne, o que nos provoca, oprime ou entusiasma. Nesse momento, ficamos sem dizer o que queramos dizer e assim, sem nos darmos bem conta, a prpria linguagem nos toca, muito de longe, por instantes e fugidiamente, com o seu vigor.

    Quando se trata de trazer linguagem algo que nunca foi dito, tudo fica na dependncia de a linguagem conceder ou recusar a palavra apropriada. Um desses casos o do poeta. Um poeta pode at mesmo chegar ao ponto de a seu modo, isto , poeticamente, trazer linguagem a experincia que ele faz com a linguagem.41

    Inmeras vezes, quando nos colocamos diante de uma pintura nos quedamos em

    silncio ou fazemos um discurso relacionando as impresses com outras coisas

    familiares, temos grande dificuldade em relatar a experincia esttica, que talvez seja uma via de libertao da reificao do mundo.

    1.1.3 Desejo e conhecimento

    Como se explica que seres humanos, cujos contatos com o mundo so breves, pessoais e limitados, sejam, no entanto, capazes de saber tanto quanto na realidade sabem? A fala, que seria a extenso da nossa conscincia, j traz consigo um empobrecimento da apreenso do mundo, uma concentrao da ateno nas coisas

    mais necessrias a nossa sobrevivncia, mas, em compensao, a linguagem, atravs

    da gramtica formal, gera estruturas abstratas que se associam com formas lgicas

    atravs de princpios gramaticais mais desenvolvidos... O lugar da faculdade de

    linguagem na capacidade cognitiva uma questo de descoberta e no de

    41 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrpolis,RJ: Ed. Vozes, 2003, pg. 123.

  • 33

    conveno42. A prpria linguagem com a sua estrutura gera um campo onde se abrem

    caminhos para o conhecimento.

    Aristteles dizia que o mundo est estruturado de certa maneira, e que somos

    capazes de perceber essa estrutura, elevando do particular espcie, em um grau cada

    vez mais amplo at o conhecimento dos universais. Hoje somos mais propensos a pensar que a linguagem que nos faz ver o mundo como estruturado, fazer distines,

    generalizaes e reduzir diferenas, tomar distncia para poder agir.

    A palavra escrita linearmente moldou a fala de forma lenta. Isso ocorreu

    concomitantemente ao incio da histria, formao das cidades, diviso do

    trabalho, ao tempo em que as tbuas da lei baniram as imagens como falsa idolatria.

    Ela levou separao das faculdades humanas, separao entre razo e emoo.

    Mcluhan d como exemplo a passagem da cultura oral para a cultura da escrita entre

    os gregos. Com a cultura oral, os gregos se organizavam de forma tribal. Tinham

    memorizado dos poetas o que seria uma espcie de enciclopdia tribal. Os poetas

    seriam donos de uma sabedoria operacional para todas as contingncias da vida.

    Homero no imps reformas - nem pblicas nem privadas -, no ganhou guerras nem

    fez descobertas. Desconhecemos a existncia de um grande nmero de seguidores que

    o tenham venerado ou amado. Na oralidade, as hierarquias e as classificaes ainda se

    do de forma branda, porque a tradio narrativa oral mais prxima da

    multiplicidade de direes da rede do conhecimento, misturas, antecipaes. Tornam

    uma rgida diviso hierrquica mais difcil.

    Com o surgimento da escrita, o que resultou foi um individualismo e a

    conseqente destribalizao do homem. Foi necessria uma nova educao. Do

    conhecimento operacional de Homero e Hesodo e da enciclopdia tribal da cultura

    oral se passou para o conhecimento classificado de Plato. Desde ento, o

    conhecimento por dados classificados tem sido a linha programtica do Ocidente. A

    razo abole o mito e transfere tudo o que no se reduz aos seus pressupostos para o

    42 CHOMSKY, Noam. Reflexes sobre a linguagem. Lisboa: Edies 70, 1977, pg.50.

  • 34

    reino da poesia.

    Para Adorno, a idia de que o pensamento ganha ao se apartar das emoes

    equivocada. O conhecimento falho quando permanece ligado aos objetos de sua ateno, porm diz ele:

    As faculdades, elas mesmas desenvolvidas atravs da interao, atrofiam-se quando dissociadas umas das outras...o pensamento que mata o desejo, seu pai, se v surpreendido pela vingana da estupidez...a castrao da percepo pela instncia do controle, que lhe recusa toda a antecipao desejante, obriga-a a inserir-se no esquema da repetio impotente do que j conhecido. O fato de que, a rigor, no seja mais lcito ver conduz ao sacrifcio do intelecto... A razo toda pura daqueles que se desembaraam por completo da faculdade de representar um objeto mesmo sem a sua presena, vai convergir com a pura inconscincia, com a debilidade mental no sentido literal do termo pois, medido pelo exagerado ideal realista do dado livre de toda a categoria, qualquer conhecimento falso.... 43.

    Referncia bvia a Plato, que foi, talvez, quem metodizou essa passagem.

    Scrates no escrevia, mas, para Nietzsche, ele j era o porta-voz de uma razo que despotencializou o mundo grego. Ele fez ver aos gregos que estavam equivocados por

    acreditarem nos mitos e terem uma potncia de imaginao e criao inigualveis. O

    pensamento de Scrates trouxe a estrutura da cidade para a linguagem, a vida social e

    poltica, contradies e incertezas. O que ratifica a idia de Leroi-Gourhan de que

    tcnica e linguagem andam juntas. Por ironia, com a morte de Scrates, Plato sai da cidade e funda a Academia,

    onde o pensamento filosfico se afastou da convivncia entre os pares e comeou a

    encarar a poltica como uma atividade no tica, suja a est uma das origens do pensamento totalitrio ligado escrita linear. Para Adorno, com a escrita e a

    compilao dos mitos, esses deixaram de ser relato e se tornaram doutrina.

    Freud estabeleceu um paralelo entre a criao dos mitos - que intermediavam a

    relao do homem com a natureza - e a relao edipiana. A figura de Deus como pai

    seria fruto disso. Os mitos, depois de perderem suas prerrogativas diante dos poderes

    43 ADORNO, Theodor, 1993,Pg.107.

  • 35

    da natureza e dos poderes do destino (Moira), s permaneceram como instrumentos de legitimao da civilizao. Em lugar dos deuses e demnios locais, aparecem o cu e

    sua hierarquia, em lugar da prtica de conjurao do feiticeiro da tribo, surgem os sacrifcios de vrios nveis hierrquicos e o trabalho dos escravos mediatizados pelo

    mundo44. Os preceitos da civilizao foram creditados a uma origem divina numa

    espcie de superego comunitrio. Mas, como no indivduo, um superego que reprime

    demasiadamente as pulses pode causar neuroses e psicoses uma civilizao que

    castra a percepo pela instncia do controle objetiviza o prprio homem. Os mitos, que um dia foram dilogo com a natureza imediata, se tornaram

    instrumentos de um pensamento que encara todas as instncias como passveis de

    repetio, vincula tudo ao passado ou ao formalismo matemtico e perde a capacidade

    de ver. O persistente foi sendo separado cada vez mais do fluido; o permanente, do

    varivel; o slido, do mutante. As estruturas da escrita linear, que na oralidade ainda

    permitiam pensar sobre o nico e ver o mundo como um movimento permanente,

    estabeleceram cada vez mais regras que se tomaram por universais, eternas. Plato

    idealizou tudo, desde cidades at o amor. Regras que entenderam o mundo como um

    imenso esquema pr-determinado do qual no se pode escapar. Tenho esperana de

    que as novas tecnologias que conseguem apreender a fluidez e diferenciao do

    mundo sejam tomadas como modelos para a estruturao de uma nova linguagem. Essas novas interfaces so uma construo coletiva, sem um autor preponderante e se

    disseminam muito rpido. Elas certamente esto alterando a nossa relao com a

    linguagem.

    Em Plato, no judasmo e no mundo rabe, a imagem banida, a razo e a religio afastam o princpio da arte e da feitiaria que perseguem os seus fins pela

    mimese, pela semelhana e no pelo afastamento e anlise do objeto. Vilm Flusser fala dessa passagem e considera que:

    ... tal inteno deve ser vista contra o pano de fundo da alucinao idlatra que marcava a cultura. Cultura que vivia em

    44 Walter Benjamin et ali. 1983. pg. 92.

  • 36

    funo de imagens. No apenas no sentido bvio de eliminar as imagens da prpria escrita ao tornar seus smbolos to abstratos que no era mais possvel reconhecer-se a imagem original no smbolo (a imagem do touro na letra A). Mas no sentido mais radical de insurgir-se contra o domnio das imagens sobre a vida, de torn-las transparentes. () A funo primeira do texto a de penetrar pela superfcie das imagens at o seu universo de significado. funo anti-mgica, anti-mtica, desmitificiante. Os inventores dos textos so iconoclastas.

    O gesto de escrever textos o de alinhar smbolos claros e distintos segundo determinadas regras constituindo discursos. () O significado de tais discursos so imagens: contam eles imagens. Fazem-no ao arrancar os smbolos da imagem no seu contexto plano, ao traduzir tais smbolos no cdigo alfabtico, e ao alinhar tal cdigo em linhas. E fazem-no a fim de explicar que as mensagens das imagens significam eventos () Fazem reaparecer o mundo processual por detras das imagens. como se os textos desfiassem o tecido das superfcies e ordenassem os fios linearmente. Ler textos movimento dos olhos e da mente ao longo das linhas. Por tal movimento os smbolos do cdigo so recolhidos um por um, a fim de serem reunidos no final da leitura e formarem a mensagem do texto.45

    Para Flusser, e talvez para todos os que temem as imagens e seus significados

    parasitas, o pensamento um alinhamento de smbolos que so recolhidos e que

    juntos formam finalmente a mensagem, como se as imagens fossem um tecido a ser desfiado. Ele raciocina como se uma frase se compusesse de nomes que vo evocar

    imagens de coisas. Como ser que Flusser descreveria o vermelho de uma imagem a

    um cego?

    A escrita foi uma instncia que inibiu a nossa capacidade de ver. As imagens

    comearam a ser substitudas por smbolos abstratos que se repetiam, para ler s

    deduzimos, atravs de relances rpidos, o que est escrito, no precisamos discriminar

    cada letra da frase, aprendemos a especializar a vista e presumir o bsico necessrio

    para o seu entendimento. Vemos muito mais atravs de conceitos do que pelos olhos.

    Voltando citao de Adorno: O fato de que, a rigor, no seja mais lcito ver conduz ao sacrifcio do intelecto... Homens como Leonardo da Vinci nos espantam mais

    45 FLUSSER, Vilm. Conferncias na XVI Bienal de So Paulo: 1981Mario Ramiro, Oficina

    Virglio, agosto 2003.

  • 37

    pela sua incrvel capacidade de ver, tm um olhar que descortina o mundo esquecido. Tambm no impunemente que se ter fixado em termos

    distintos e independentes a continuidade de um progresso indiviso. Esse modo de representao ser suficiente talvez enquanto estritamente limitado aos fatos que serviram para invent-lo: mas cada fato novo obrigar a complicar a figura, a intercalar ao longo do movimento estaes novas, sem que jamais essas estaes justapostas cheguem a reconstituir o prprio movimento.46

    A escrita cria uma fronteira, separa, para Heidegger a palavra uma renncia,

    na escrita h uma renncia maior ainda. Presa na pgina, campo onde a palavra uma

    posse, a escrita tenta recuperar o que perdeu com a separao. Apenas os poetas talvez

    consigam isto.

    Um signo aquilo que se repete. Sem repetio no h signo, pois no

    poderamos reconhec-lo, e o reconhecimento que origina o signo. Toda a escrita se

    baseia nessa repetio, se baseia na convico de uma continuidade e repetio, que

    fundamentalmente no o mundo, o mundo movimento e mudana. Bourdieu: A

    escrita retira a prtica e o discurso do fluxo do tempo. As convices da escrita

    cometem secretamente pequenos assassinatos. A escrita, para se efetivar, inventa a

    repetio. O movimento atual gerado pela computao tende a ter uma leitura cada

    vez mais abrangente do mundo onde podemos ver as coisas na sua peculiaridade.

    Lewis Carroll, no incio do uso da eletricidade, j intua essa possibilidade: Lewis Carroll observava que, medida que os mapas de grande escala se tornavam mais

    detalhados e extensivos, tendiam a confundir-se com os campos - o que certamente

    provocaria o protesto dos fazendeiros... Por que no usar a terra natal como mapa de

    si mesma?47

    Hoje o levantamento que est se fazendo do mundo tende a se confundir com o prprio mundo, nunca houve uma descrio to detalhada. As leis para o

    estabelecimento de padres que percebam uma instncia ordenadora do universo

    observam cada vez mais a unicidade de cada fenmeno. Enquanto isso a crtica que se

    46 BERGSON, Henri, 1999, pg.140.

    47 McLUHAN, Marshall, 1969.pg. 70.

  • 38

    faz aos computadores, de que estabelecem uma reduo na sua leitura do mundo, tem

    raiz num pensamento iconoclasta milenar, acreditando que a razo s pode se

    estruturar num sistema de signos que estabelece regras de repetio de fenmenos,

    quando, na realidade, as novas mquinas levam a perceber riqueza e diferenciao. O

    levantamento que as novas mquinas fazem do mundo progressivamente mais

    acurado, viso, olfato, tato, os computadores esto se aproximando dos sentidos

    humanos e ampliando-os. A nova direo da vista se d em inmeros sentidos, de uma

    maneira prxima de como o homem no qual as faculdades ainda no tinham sido

    separadas percebia, com a diferena que agora podemos percorrer o mundo virtual

    sem as ameaas antigas.

    1.1.4 Os ideogramas

    A escrita chinesa um exemplo da possibilidade de desenvolvimento da escrita

    diverso do que se deu no mundo ocidental. Essa escrita talvez no seja de to fcil aprendizado, mas conservou algumas caractersticas pictogrficas que mantiveram na

    percepo oriental sentidos que se perderam na cultura ocidental com a introduo da

    escrita fontica linear. A China fez chegar at ns o nico sistema que conservou mais

    do que uma dimenso nos smbolos grficos.

    Essa escrita se assemelha ocidental por ocupar linearmente uma posio, de tal

    modo que possvel ler oralmente as frases, e cada caracter conter os elementos do

    seu fonetismo. Leroi-Gourhan diz que:

    no entanto, a referncia fontica aproximada, isto , um ideograma que serve apenas para representar um som, etapa que as lnguas com letras tambm conheceram...Por muito imperfeito que este utenslio seja, pela multiplicidade de sinais, assegurou uma notao fontica de linguagem satisfatria. Mas necessrio salientar que apenas a tradio oral pode assegurar a manuteno do fonetismo e que sem ela os caracteres seriam para sempre impronunciveis, mesmo se possussemos o registro da lngua falada.48

    48 LEROI-GOURHAN, Andr.O gesto e a palavra, memria e ritmos.Rio de Janeiro:Ed.70,

    1990.pg.203.

  • 39

    Para Mcluhan, a percepo oriental diversa da nossa pela riqueza da sua

    escrita que a capacita manuteno de uma percepo inclusiva e profunda da

    experincia e que tende a se malbaratar nas culturas civilizadas do alfabeto

    fontico.49

    Como j abordamos anteriormente, uma imagem, enquanto significante, guarda leituras outras que no as estritas ao significado. O ideograma incorpora essa

    dimenso da imagem, conjugando uma percepo dos sentidos com uma objetividade dos conhecimentos. Leroi-Gourhan d o exemplo de uma palavra moderna, lmpada

    eltrica, para mostrar a flexibilidade de interpretaes que as imagens dos

    ideogramas conservam. Tien-ki-teng seria definido por trs caracteres relmpago-

    vapor-luminoso, a imagem trivial da lmpada eltrica acompanhada por outras

    imagens parasitas que do ao pensamento:

    um caminho difuso, sem relao com o objeto de notao, sem interesse quando se trata de um objeto moderno, mas este exemplo banal serve para fazer sentir em que pode ter consistido um pensamento ligado evocao de esquemas multidimensionais difusos, por oposio ao sistema que fechou progressivamente as lnguas no fonetismo linear.50

    A escrita chinesa conduz a um modo diverso de apreenso do mundo. At o

    sculo XVII, os chineses marcavam a passagem do tempo atravs de mudanas dos

    aromas dos incensos51. Conforme o incenso ia queimando, diferentes aromas iam se

    alternando, numa forma integradora do olfato que, talvez seja o sentido que se liga mais memria. Aos sentidos menos racionais se permite uma maior liberdade de

    percepo, eles podem se ligar a uma memria que no se relaciona com uma

    construo lgica, no limitada pelos filtros da conscincia, por isso o olfato nos

    prega tantas surpresas com as suas aparies. O olfato envolve toda a sensorialidade

    49 McLUHAN, Marshall, 1969.pg. 103.

    50 LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra, tcnica e linguagem. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1990,

    Pg.204. 51

    McLUHAN,Marshall, 1969, pg 169.

  • 40

    Figura 5 Poema - Dinastia Song aprox. 960-1279 d.C.

    humana de maneira mais completa do que qualquer outro sentido. Mcluhan afirma

    que as sociedades altamente letradas tomam providncias para neutralizar os odores

    dos ambientes. No sistema chins, o tempo era percebido pelos sentidos e no apenas

    deduzido pela razo, como se faz quando se l um relgio.

    Os ideogramas mostram que o caminho da linguagem escrita linear no o

    nico, mostra que poderia ter havido um desenvolvimento mais prximo da intuio,

    que no exclusse os sentidos do entendimento do mundo.

    Por ter uma escrita que carrega c