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A (re)invenção da fronteira na Amazônia: o caso de São Félix do Xingu/ Pará The (re)invention of the economic frontier in the Brazilian Amazon: the case of São Félix do Xingu/ Pará Marcos Felipe Sudré Saidler 1 , Escola de Arquitetura/UFMG, [email protected] 1 Arquiteto urbanista e designer, professor adjunto do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais

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A(re)invençãodafronteiranaAmazônia:ocasodeSãoFélixdoXingu/Pará

The(re)inventionoftheeconomicfrontierintheBrazilianAmazon:thecaseofSãoFélixdoXingu/Pará

MarcosFelipeSudréSaidler1,EscoladeArquitetura/UFMG,[email protected]

1Arquitetourbanistaedesigner,professoradjuntodocursodeArquiteturaeUrbanismodaUniversidadeFederaldeMinasGerais

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DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

OartigodiscuteoavançodafronteiraeconômicanaAmazôniabrasileira,tendocomoestudodecaso o município de São Félix do Xingu, antiga vila ribeirinha no sudeste do Pará. A partir depesquisa de base documental, propõe-se compreender o papel das trajetórias sociais queconformam a realidade urbana local, suas disjunções e impactos na produção do espaço. Sãoanalisadostextosoriginadosdaimprensanacionaleentrevistasrealizadasemtrabalhosdecampo,osquais fornecem subsídiospara a reconstruçãohistóricada regiãoeodebate teórico sobreolugar da Amazônia como fronteira do capitalismo contemporâneo. A discussão levanta anecessidade de repensar a inserção do espaço amazônico no contexto global e de prospectarformas alternativas de organização territorial, sugerindo que a potencialidade local resida nastrajetóriasquetêmsidohistoricamenteocultadaspeloavançodafronteira.

PalavrasChave:fronteiraeconômica,urbanizaçãoamazônica,cidaderibeirinha,trajetóriassociais

ABSTRACT

Thepaperdiscusses theadvanceof theeconomic frontier in theBrazilianAmazonandpresentsthe case study of São Félix do Xingu, a riverside village in southeastern Pará / Brazil. This is adocumentary research and the paper proposes to understand the role of the social trajectoriesthatformthelocalurbanreality,disjunctionsandimpactsintheproductionofthespace.

National press texts and field interviews are analyzed, which provide support for the historicalreconstruction of the region and the theoretical debate about the Amazon as the frontier ofcontemporarycapitalism.Thediscussionpresentstheneedtorethinkthe insertionof theAmazonianspaceintheglobalcontextandtoprospectalternativeformsofterritorialorganization,suggestingthatthe localpotentialresides inthetrajectoriesthathavebeenhistoricallyhiddenbytheadvanceofthefrontier.

Keywords:economicfrontier,Amazonianurbanization,riversidetown,socialtrajectories

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INTRODUÇÃO

O lugar reservado à Amazônia desde os primeiros séculos de conquista é o que tem levado àsujeição do espaço social e natural da região à racionalidade exógena. Como fronteira paraexpansãodocapital, oterritórioamazônicoémarcadopeladestruiçãodo queprecedeonovo,emsuas formaseconteúdos.Ésobomantodafronteiraqueaproduçãonacionalavançasobreafloresta;quepululamgrandesprojetosentreocursodeumrioeoutro;queocampoeacidade se industrializam, dobrando-se ao imperativo da produtividade.Mas é também sob essemesmo manto que várzea e terra firme se constituem como lugar da vida; que citadinos ecamponesesseurbanizam;queribeirinhos,empreendedoresdoagronegócio, índiosenão-índiosvivemoespaço,oproduzemesereproduzemnoterritório.

Diantedessequadro,procurarcompreenderaformaçãodaAmazôniacomofronteiraeconômicaem suas mais diversas escalas e a reativação desse fenômeno a cada rodada de expansão docapital parece ser condição necessária para perscrutar alternativas menos heterônomas deorganizaçãodaquelarealidadeparticular.Oque informaafronteira–territórioemcatequizaçãopelaprodução–diantedareproduçãodavida?Quaistrajetóriassociaissemanifestamaliequaispossibilidadeselastrazemparaumanovarealidade?Adiscussãoqueaquitrazemoséoriginadadepesquisapautadaporessasproposiçõese,considerandoafronteiracomolugarde(des)encontros,admitesuamanifestaçãocomopontodeinflexãopossívelparaaconstruçãoentrediferentes,indoalémdaconstruçãodediferençasirreconciliáveiscomotemocorridonahistória.

Mas buscar compreender a Amazônia a partir de sua condição de fronteira demanda algunsesclarecimentos iniciais. Na literatura brasileira, a fronteira é predominantemente entendidacomoo avançodas frentes agropastoris – o que lhe garante a designaçãode fronteira agrícola oucomotudooquesegueàmargemdaurbanização–oqueatransformaemfronteiraurbana2.Neste estudo, a fronteira envolve todas essas formas, até mesmo porque elas podem serencaradas como faces distintas de um mesmo fato ou ainda como temporalidadesinterdependentes de um único processo: a expansão do capital sobre territórios em conquista.Assim,afronteiranãoéaquiumadelimitaçãopolítico-administrativa.Temporalmente,trata-sedeuma situação ou um estado de fronteira, que se define mais pelo processual do que pelapermanência e estabilidade. Espacialmente, essa reunião de diferenças em trânsito se expressaem formas inacabadas, no que ainda está por fazer. Assim, na perspectiva proposta para estetrabalho,afronteiraéamanifestaçãosócio-espacialdaextensão–aindaincompleta–docapitalsobre o território. É, portanto, uma fronteira do capital, reflexo do avanço da divisão socialhierárquicadotrabalho–dascaracterísticasvitaisquedefinemocapitalismo,ageradoradetodasasoutras,comoafirmaMészáros(2011).

Tal entendimento é o que nos permite reunir sob um mesmo marco teórico-conceitual umuniverso polifônico de exemplares daquilo que Milton Santos (1978, p. 104-105) chamou de“espaçoderivado”,porçãodoterritório“*...+cujosprincípiosdeorganizaçãodevemmuitomaisaumavontadelongínquadoqueaosimpulsosouorganizaçõessimplesmentelocais”.Essacondiçãoderivada do espaço amazônico remonta ao período colonial (Souza, 2005; Risério, 2012) e tem,principalmente, como base a expansão do urbano (Monte-Mór, 2004; Becker, 1985; 2012).Virtualmente,e comoembriãoque indicao futuro,ospadrõesencontradoshojena fronteira jáestavamláorganizadosdesdeasprimeirastentativasdeinserçãodaregiãonocontextoglobal,ouseja,desdeomomentoemqueocapitalviunaAmazôniaumafronteiraparasuaexpansão,ainda

2ParaohistóricosobreaaplicaçãodoconceitoaocasobrasileiroeàAmazônia,verostrabalhosdeLiaOsórioMachado(1992)eBerthaBecker(1988).

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emtemposdecapitalmercantil3.

Entretanto,foiaintensificaçãodosinvestimentosfeitospelogovernofederalapartirdosegundoquarteldoséculoXXoqueproduziualteraçõesexpressivasnoespaçoamazônicoefezcomqueadiscussão sobre a fronteira aplicada àquela realidade ganhasse corpo. Foi nesse período que otradicionalmododeocupaçãoàsmargensdoscursosd’águaviu-sereorientadorumoàsestradasquecomeçavamacortarafloresta,carregandoconsigo levasdemigrantesatraídosporprojetosdecolonizaçãoagrícola,pelamadeiraeosmineraisabundantesnaquelasterras,oumesmopelaoportunidade de trabalho em uma grande empresa instalada no coração da selva. Todas essaspromessas de um novo futuro acabaram por formar uma miríade de realidades urbanas que,grosso modo, podem ser agrupadas em dois modelos básicos amplamente discutidos pelaliteratura (Vicentini,2004;Corrêa,2006)eque têmnomodalde transporteo instrumentomaisimportanteparasuaclassificação:asnucleaçõesdeorigemribeirinhaeaquelasquenascerampelaação predominante das estradas. Esses dois modelos amazônicos – com formas e conteúdosurbanospróprios–encontramexemplos tantonas cidades comonosdemais tiposdeocupaçãoespalhadospelos vastos limitesdosmunicípiosda região. Juntos, eles compõemumaextensaemultifacetadarede,quevaidasedemunicipalàsvilas,povoados,assentamentosagrícolas,aldeiasindígenasequalqueroutrarealidadeespacialquereflita,naatualidade,oprocessodeimplosão-explosãodescritoporHenriLefebvre(2008a;2008b).

TEMPORALIDADESDAFRONTEIRA:SÃOFÉLIXDOXINGU

ParaoesclarecimentodoprocessodeconstituiçãodafronteiranaAmazônia,esboçamosaquiumapesquisa de base documental, que tem como recorte São Félix do Xingu,município do SudesteParaense tomado neste trabalho comometonímia para a percepção do encontro dasmúltiplastrajetóriasnoterritório.AatualsededeSãoFélixsurgiuàépocadaextraçãodolátex,quandoosbarracões de aviamento eram a estrutura inicial para a atividade produtiva. Tão logo eradescoberta uma área com grande número de árvores de caucho (Castilla ulei) ou seringueiras(Hevea brasiliensis), logo ali se estabelecia um barracão, que serviria de residência a umdeterminado patrão da borracha e ponto de apoio para os trabalhadores sob seu controle einstalados nas adjacências. Esses trabalhadores eram chamados de fregueses ou aviados, poisferramentas, armas e alimentos eram adquiridos no barracão por meio de um sistema deadiantamentodemercadorias,queficouconhecidocomoaviamentoeprescindiadamoedafísicana maioria das transações. Antes de saírem para a mata, os seringueiros eram aviados pelospatrõeseessaerauma formade controledamãodeobra, apartirdaqualeramestabelecidasrelaçõespraticamenteservis.EssafoiahistóriavividaporSãoFélixdoXingu,cujosprimeirosanosde existência foram marcados por embates sangrentos entre essa frente de expansão –majoritariamente masculina – e os grupos indígenas que ocupavam a região há vários séculos(Santana,2007).

OdeclíniodaeconomiadaborrachaemtodaaAmazônia,fezcomqueapopulaçãolocalpassasse

3EsseargumentopodeserencontradoemautorescomoRibeiro(2006,p.177),paraquemoBrasil“*...+nasceujácomouma civilização urbana. Vale dizer, separada em conteúdos rurais e citadinos, com funções diferentes, mascomplementaresecomandadaporgruposeruditosdacidade”.DeLisboaàsprimeirascidadesbrasileiras,numaredequeexplodeportodoterritórioapartirdoquintoséculodeocupação,oprocessodetransformaçãodoespaçobrasileirofoi(eainda é) marcado por relações diretas com demandas externas. A contribuição do autor evidencia a predominânciahistórica dos modelos exógenos e demonstra a importância de reconhecer que, nessa relação, o mesmo sujeito podeocuparposiçõesdistintasdeacordocomasituação:dourbanobrasileiro, como fronteiradocapitalmundial,aourbanoamazônico,comoexpressãoregionaldessarelação.

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aviverdacoletadecastanhasedacaçadeanimaissilvestres.Nodecorrerdasdécadasseguintes,as gerações que sucederam os primeiros habitantes desenvolveram duas trajetórias principais.Comaemancipaçãodomunicípio,algunsseenvolveramnaadministraçãopública,sendoqueatéhojefamílias inteirasdessesantigosmoradorestrabalhamemórgãosdogoverno,comdestaqueparaaáreadaeducação.Outrosdessesantigosmoradores,comofimdasatividadesextrativistasfinanciadaspelospatrões,passaramaviverdotrabalhoinformal.SãopartedosatuaisbeiradeirosdeSãoFélix,aquelesquemoramàsmargensdosriosdacidade.

Do início da ocupação até a o final da década de 1970, a frente de expansão em São Félix foimarcadaporumagrandemassadetrabalhadorespobrescomandadosporpatrõesque,emgeral,tinhamsuasbasesemoutrosmunicípios,compredomínioparaAltamira,aquemSãoFélixsempreestevefortementeligadapelorio.Emtodoessetempo,osistemadeaviamentoarticuloupatrõesefreguesesemtornodasatividadesextrativistas,masnãoconsolidouumaelitelocal.Maistarde,novasfrentesalcançaramafronteira.Algunschegarampelosrios;outros,pelasestradas,masfoisomentenoiníciodosanos1980queafrentedeexpansãoemSãoFélixentrouemcontatocomoschamadospioneiros,quandoseiniciouaextraçãodomognonomunicípio4.Conhecidocomo“ciclodo ouro vermelho” – nome dado em função da cor das toras exportadas para a Europa e osEstadosUnidos–,operíododeexploraçãodamadeiranobre trouxeparaa regiãoempresasdeoutrascidades,queabriramsuasserrariasàsmargensdoRioFresco,principalmente.Durantetodaa década, transformações expressivas no espaço urbano passaram a acontecer de modo maisacelerado.Acidadecresceuemdireçãoàestrada,deixandooantigonúcleonoencontrodosdoisrios para trás. Aqueles que chegavam, em geral populações altamente móveis que já haviampassado por outras cidades do sudeste do Pará, recebiam da prefeitura lotes urbanos, comoexplicamSchminkeWood (2012), favorecendoaocupaçãodo territóriodemodorelativamentedesordenado.

Paraalémdacidade,SãoFélixaindapresenciouosurgimentodenucleaçõesdeorigensdiversas.Suasterrasserviramàcolonizaçãoagrícolaestataleparticular,àexploraçãodoouroedeoutrosmetais.Emtemposmaisrecentes,seuterritóriocontinuaaseralvodeinvestimentospontuaisdosetorminerário.MasograndedestaqueéapujanteproduçãopecuáriaqueocorreemmeioaummosaicodeTerrasIndígenaseUnidadesdeConservação,oquelhegarantenãosóotítulodedonadomaior rebanho brasileiro,mas também um dos focos demaior índice de desmatamento daAmazônia5.Portudoisso,aantigavilaribeirinhaàconfluênciadosriosFrescoeXinguetodasas

4Sobreadistinçãoentrefrentedeexpansãoefrentepioneira,verMartins(1997).Conformeoautor,astemporalidadesdossujeitosnafronteirapodemserentendidasapartirdoseguinteesquema:duaslinhasdefronteira(umademográfica,outraeconômica)etrêssituaçõessócio-espaciais (azonadeocupaçãoantiga,a frentedeexpansãoea frentepioneira).Entreazonadeocupaçãoantigaeafrentedeexpansão,impõem-seafronteirademográfica.Entreafrentedeexpansãoea frentepioneira, está a fronteira econômica.Na fronteirademográfica estãoos conflitos entrepopulações indígenaseaqueles “agentes da civilização” que ainda não são os agentes típicos da produção capitalista. Na fronteira econômica,estãoos conflitosentreos sujeitosda frentedeexpansãoea frentepioneira, aquelesque são,de fato,os “agentesdaeconomia capitalista”. É ali o lugar onde, por exemplo, posseiros e grandes latifundiários se desencontram, onde opequeno agricultor próspero e o camponês vivem temporalidades diferentes. Embora seja bastante simplificadora eunilinear a abordagemproposta pelo autor inspiradapor estudos clássicos sobre a fronteira, ela permaneceútil para oentendimentodequeaclivagemdessessujeitossociaisqueintegramcadaumadessasfrentesestánadiferençaentreostemposhistóricosvividosporeles.5A liderança entre osmunicípios brasileiros produtores de gadopassou a ser assumidapor São Félix em2010, quandoforam registradas mais de dois milhões de reses nas fazendas locais. Naquele ano, o município superou Corumbá,município do Mato Grosso do Sul com forte tradição na produção de bovinos há algumas décadas. Esse crescimentoabruptoemSãoFélixdoXinguéapenasumrecorte–emcoresmaisfortes,éprecisodestacar–doqueviveaRegiãoNortedopaíseboapartedosmunicípiosdaAmazôniaLegalnasúltimasdécadas.Noiníciodosanos1980,osestadosdoNorteeram responsáveisporpoucomaisde3,6milhõesde cabeças, oque representava3%do rebanhonacional.Vinteanosdepois, essepercentual já estavapróximodos 14%, com22,4milhõesde reses, ultrapassandoaproduçãodoNordeste(IBGE,2014).EsseprocessodereduçãodaflorestaeaumentodaspastagensplantadaslevouSãoFélixdoXinguaocuparo

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demais realidades urbanas que se espalham pelo território municipal de São Félix guardamconsigotemporalidadeseprocessossócio-espaciaissuficientementedistintosparaacompreensãodaAmazôniadehojeedeontem.

NA RUA, NA MÍDIA: DA ORDEM DISTANTE À PROXIMIDADE DASCOISASCOTIDIANAS

AnteodesafiodeapreenderourbanonessaporçãodaAmazônia,otrabalhofoirealizadoapartirdepesquisasdecampoconcentradas,principalmente,emobservaçõeseentrevistascomsujeitosrepresentativos de diferentes trajetórias sociais6. A esse conjunto de narrativas, foi adicionadooutro agrupamento de textos predominantemente jornalísticos coletados em veículos decomunicaçãobrasileiros. Juntamentecomas falasdossujeitosentrevistados,esses textos foramextremamente úteis para remontar o histórico de São Félix do Xingu, principalmente, a históriadosperíodosquehaviampermanecidoemsilêncionaliteraturaconsultadaequenãochegaramaser narrados com detalhes durante o trabalho de campo. Escolhemos dois veículos decomunicaçãonacionaisparaobservaraocorrênciadeSãoFélixdoXingunasmatériasjornalísticaspublicadas em suas edições7. A opção por veículos de abrangência nacional, em detrimento damídialocal,deu-seexatamenteporcontadanossaintençãodeprocurarinferircomoessaporçãodoterritórioamazônico–reconhecidamenteaindaemincorporaçãoaorestantedopaís–aparecianaspáginasdaimprensasediadanoSudestebrasileiro.Adotamos,então,arevistasemanalVejaeojornaldiárioFolhadeSãoPaulo,quealémdessacaracterísticatambémreuniamavantagemdeofereceremsuasbasesdedadosdigitaistodasasediçõesjápublicadas,oquefacilitouinclusiveabuscapelaexpressãoSãoFélixdoXingu.Entreosanosde1960e2014,o recorte temporalquepropusemos, foram encontrados 85 textos – entre pequenas notas, reportagens e outrascategorias–quedealgumaformafaziamreferênciaaSãoFélixdoXingu,sendo69naspáginasdaFolhadeSãoPauloe16emVeja.Esseconjuntodetextosfoiorganizadoeclassificadoparaanáliseesuadiscussãoestáarticuladaaosdiscursoscoletadosemcampo.

Alémdecontribuiremparaacompreensãodahistóriaqueoferecem,essestextostambémservemàapreensãodasdisjunçõesocorridasentreasracionalidadeslevadasàfronteira,bemcomoparaoentendimento das representações que se produz sobre essa fronteira e do urbano que ali semanifesta.Afinal,ostextoscarregamconsigodiscursosquenospermitemumaaproximaçãodossujeitosqueosproduzemeessesdiscursossãoconstruçõescapazesdecolocarosujeitoemrelaçãoaoutrosdiscursos,permitindoacompreensãodo lugarocupadoporele–pelosujeitoeseudiscurso–noespaçosocial8.

topodalistadosmunicípiosquemaisdesmatamnaAmazôniaLegalapartirde2001,alcançandoacasados20%desuaextensãoterritorialdesflorestadaem2010(Inpe,2014a;b).6Apesquisadecampofoirealizadaemduasetapas:umtrabalhoexploratóriopeloSudesteParaenseentrejulhoeagostode 2012 e uma pesquisa detida em São Félix do Xingu em dezembro de 2013. Foram realizadas entrevistas cominformantesdasadministraçõespúblicas,terceirosetor,comerciantesemoradores,bemcomolevantamentofotográficoecoletadedocumentosoficiais.Suashistóriasdevida,motivaçõesecircunstânciasdechegadaàregião,expectativasatuais,espaçosdemoradiaedeusocotidianonacidadeestãoentreostemasabordados.7OcritérioparaaseleçãodesseconjuntodetextosfoiaocorrênciadomunicípiodeSãoFélixdoXingunocorpodamatériajornalísticaouemalgumdoselementosgráficoscontidosnela.Alémdos textos jornalísticos, tambémagrupamos,nesseconjunto, anúncios epeçaspublicitárias inseridasnamídia impressa analisada, que resultaramdasbuscasnasbasesdedadosdosdoisveículosdecomunicação.Apenaspartedessestextosanalisadosecategorizadosécitadanestetrabalho.8EssaconcepçãoderivadoentendimentodeautorescomoFairclough(2001),quepropõecompreenderodiscursocomobasedeapreensãodapráticasocial.Deigualmodo,associa-seàteoriasociológica–sobretudodebasefoucaultiana–porreconhecerqueaspráticasdiscursivassãoestabelecidasdiantederelaçõesdepoder,quedefinemomodode interação

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Orientados por essa perspectiva, procuramos percorrer, então, um caminho que vai da ordemdistante dos meios de comunicação e demais dados secundários à proximidade das coisaspequenasdavidacotidianadessessujeitos.Fazemos isso inspiradospelos trabalhosdeLefebvre(1991b),apartirdaimportânciadadapeloautoraotrânsitoentreoparticulareoglobal,entreoqueestáaquieoquepermanecelonge9.Atentativadeestabelecerumdiálogoentreessesdoiselementos parece-nos extremamente sugestiva para a compreensão da fronteira por todas ascaracterísticasqueelacongrega,mas,sobretudo,pelosinterstíciosdeixadospelocontatodosdiferentesmodosdevidaalipresentes–condiçãoinerenteàsualógicadepovoamentoedefinidagraçasàorigemdossujeitosqueseestabelecemnassucessivaslevasmigratórias.Assim,otrânsitoentreaordemdistanteeaordempróximalefebvrianaséoquenosconduznacaminhadaindutoradodebateaseguir,construído,principalmente,pelasruasdeSãoFélixdoXinguepelaspáginasdaimprensa.

Abrindoasestradasparao“progresso”

Com seu trabalho de campo no final dos anos 1940, o antropólogo norte-americano CharlesWagley (1964) foi um dos responsáveis por apresentar ao mundo a cidade na Amazônia. Seu“estudodohomemnostrópicos”,comosugereotítulodolivropublicadoem1953,foirealizadonacidadedeItá,nomefictíciodadoporeleàGurupá,localizadaàsmargensdoRioAmazonas.Àépoca,acidadeparaensetinhacercade500habitantesealgumaspoucasruas.Era,nostermosdoautor, uma comunidade tradicional em área pouco desenvolvida, uma vila ribeirinha de acessoexclusivamente fluvial, apesar de ser sede de município. Aluno de Franz Boas e herdeiro dométodo comparativo da Antropologia Cultural, Wagley ensaiou uma aproximação entre a suaamazon town e uma área igualmente remota nos Estados Unidos, uma comunidade localizadaentreos riosOhioeMissouri.Na conclusãodoautor, adiferençaentre asduasnãoestavanascondiçõesclimáticas,nosrecursosnaturaisounosolo.Tampoucoeraumaquestão ligadaàraçadaqueles quehabitavamas duas terras, atémesmoporqueumdos propósitos daAntropologiaCultural era romper com o determinismo racial ainda presente em alguns estudos. A diferençaprincipal estava nas questões sociais e culturais, sugereWagley (1964, p. 287), “incluindo *...+principalmenteorelacionamentoentreacomunidadeeoscentrosnacionaise internacionaisdepodereconômicoepolítico”.Essedistanciamentoentreacidadetradicionaleoscentrosdepoder,avançaoautor,nãoerarestritoàquelaItáemparticular,maspoderiasernotadoemmuitasoutrasespalhadaspeloterritórioamazônico,padecendodosmesmosproblemasdedesconexão.

ApesardadistânciatemporalentreaItádeWagleyeacidadedeSãoFélixdoXingu,aobservaçãodoautornorte-americanoaindaésugestivaparaacompreensãodaatualdinâmicadomunicípiolocalizadonosudestedoPará.SãoFélixéoriginalmenteumaamazontown,comoadescritaporWagley,quesofreu(eaindasofre,emcertamedida)comadesconexãodosgrandescentros.Atéadécada de 1980, o rio era praticamente a única via de acesso à cidade, ou pelomenos amaispopular. Quem não chegava por ele, aterrissava em uma pista de pouso que havia sidorecentemente criada pelo garimpo, onde hoje está uma das principais avenidas da cidade. Nosanosrecentes,acidadequenasceunoencontrodosriosFrescoeXingu,sedistanciacadavezmaisdosdoiscursosd’águaecaminharumoàRodoviaPA-279,quepassapelascidadesdeOurilândia,TucumãeÁguaAzuldoNorte,dandoacessoàPA-150,emXinguara.Esseéotrajetopraticamente

entreossujeitose,consequentemente,conferemgrausvariadosdeautoridadeadeterminadosdiscursos.9Como explicam Limonad e Lima (2003, p. 22), a partir de Henri Lefebvre, “*...+ a ordem próxima e ordem distantecontrapõem-see interpõem-sedemaneira incessanteemumconstante irevirdavidacotidiananomundomodernoàsdeterminaçõesgerais”

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obrigatório de quem vem dos demais municípios do Pará e também dos outros estados. Aconstrução da PA-279 produziu alterações significativas na amazon town, conduzindo fluxosmigratórios mais intensos, reorganizando o espaço e transformando dinâmicas sociais. Noentanto,oquechamaaatençãonaSãoFélixdehojeemrelaçãoàs ItásdescritasporWagleyéque, apesar da comunicação favorecida pelas estradas, São Félix parece se articularmelhor nonível nacional e internacional que dentro do próprio estado do Pará. Ou seja, em alguns casoscomoodeSãoFélix,acaracterísticaquefaziadasItásamazônicasdeCharlesWagleyumasituaçãosingular–eque,aofim,eraograndedesafioparaodesenvolvimentoamazônico–parecetersecomplexificado.ASãoFélixcontemporâneapassadolocalparaonacional,ouatémesmoparaoglobal,semestabelecerdiálogocomcentrosintermediáriosoumesmoacapitalestadual10.

Operíodoentreasdécadasde1960e80éodivisordeáguasdesseprocessodecomplexificaçãodas formas de comunicação entre a cidade amazônica e o que a envolve. Não por acaso, naimprensaanalisada,SãoFélixdoXinguaparececomopartedeumuniversoquemereceeprecisasercolonizado.Paraisso,asaçõesdecaráterdesenvolvimentistaempreendidaspelogovernoparaaampliaçãodamalharodoviáriaamazônicaeaexploraçãodosrecursosmineraismapeadospelosórgãos estatais e empresas privadas são apresentadas como a melhor opção para a região.Promessas de progresso defendidas pelo Estado – e ecoadas pela mídia e absorvidas pelapopulação–asestradaserodoviassão,àquelemomento,“*...+fatorbásicoaodesenvolvimentodequalquerregião”,sãoelasquevão“*...+levandoconsigoasaúde,aeducação,afixaçãodosolo,e buscando descobrir terras férteis, riquezas minerais, potenciais hidráulicos que, em riosinternadosnadensafloresta,ficariamnodesconhecimentodostécnicos*...+”(FolhadeSãoPaulo,1968,p.46).

Mas,emSãoFélixdoXingu,demodoparticular,asestradascompõemumcapítuloemconstantereescritaepermanecemnoimagináriodosmoradorescomopromessadeumanovarealidadeou,pelomenos,deumcotidianoumpoucomelhor.Primeiroporque,emboraarodoviaquepretendialigar São Félix ao restante do Brasil tenha sido construída hámais de 30 anos, o asfaltamentosomentefoiconcluídoem2013.Emumaregiãonaqualachuvaabundanteéumarealidadeemboapartedoano,essefatofazmuitadiferençaenãoháqualquerdificuldadeemencontrarpelasruasdeSãoFélixquemconteasaventurasvividasàépocaqueaprometidaestradanãopassavadeumagrandelinhaenlameadarumoàsdemaiscidadesdaregião.Outrofatoimportanteéqueosmesmosproblemasenfrentadospelosmoradoresdasedeatépoucotempocontinuamafazerpartedavidadetantosoutroshabitantesdasvilasecomunidadesdomunicípio,padecendocomaprecáriainfraestruturadamalharodoviáriaquesemultiplicounosanosrecentes.

Mais de oitomil quilômetros, incluindo estradas vicinais e clandestinas, formam a atualmalharodoviária de São Félix do Xingu. São essas estradas que ligam a cidade às várias vilas que seespalhampelosmaisde84,2milquilômetrosquadradosdoterritóriomunicipal.Valedestacarquecercade80%desseterritóriosãoocupadosporáreasprotegidas–TerrasIndígenaseUnidadesdeConservação – alcançadas também por vicinais e estradas clandestinas, em uma clarademonstraçãodequeafronteiraavança,mesmosobreporçõescujoregimentolegaldeveriaservircomobarreiraàinstalaçãodealgumasatividades11.Poressasestradasesburacadase

10Entre a população, os destinos mais comuns para tratamentos de saúde ou estudo dos filhos evidenciam a poucaarticulaçãocomorestantedoParáevínculosestreitoscomoCentro-Oeste.Naadministraçãopública,ofatodeteramaiorpartedeseuterritórioocupadoporáreasprotegidascontribuiparaaaproximaçãodomunicípiocominstânciasfederaiseorganizaçõesinternacionais.11Nosanos2000,apromessade“progresso”anunciadanasdécadasanterioreséencaradapela imprensacomoumdosprincipaisindutoresdapenetraçãodefrentesdeexpansãoresponsáveispeladevastaçãodafloresta(FolhadeSãoPaulo,2005,p.A20).EsseprocessofezcomquelocalidadescomoSãoFélixdoXingu,atéentãopontoextremodeumaAmazônia

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poeirentasnaépocadaestiageméquechegam,aomercadopúblicodacidade,osagricultoresdasvilaseprojetosdeassentamentoespalhadospelomunicípio.Eles trazemparavendaapequenaproduçãode legumeseverdurase,deSãoFélix, levam tudoaquiloquenãocultivameosbensindustrializados adquiridos nos supermercados locais. A venda dos produtos contribui de formasignificativaparaosustentodasfamíliasassentadasemtornodacidade.Entretanto,paraoabastecimentodeSãoFélix,époucorepresentativa.Aproduçãonãoconsegueatenderàdemandadapopulação,poisfaltaincentivofiscaleapoiotécnicoaosagricultores,alémdeasestradasnãopermitiremoescoamentoadequadodoqueécultivadonocampo,principalmentenoperíododaschuvas.

Assim,afronteiraavança,deixandoclaroque,seosanos1980foramomomentodecisivoparaodesencadeamentodetransformaçõessignificativas,hojesetornanecessárioperceberaqualidadeeareverberaçãodessesfatos.Afinal,aquelaera“adécadadaconquista”,comohaviaanunciadoVejaemuma reportagemespecial logono começodosanos1980, remontandoa trajetóriadosbrasileirosquesedirecionavamparaa regiãoporapostaremnasriquezasdas jazidasmineraisenas vantagens da agropecuária. Como sugere o próprio título da reportagem ao dizer que “ofuturoabreclareirasnafloresta:aAmazôniadeixadeserapenasumparaísonaturalecomeçaaincorporar-seaoBrasil”(Veja,1982,p.80).Apartirdessemomento,aterraaserconquistadanafronteira passou a ser compreendida – não só em São Félix, mas na Amazônia de modo maisamplo–comoespaçorealmentedominadoedomesticadopelospioneiros.Odesmatamentoeapecuária formamos tópicos subsequentes à conquista do território,mas deixamuma perguntaqueseria importanteperseguir:oquemudanourbano–comoespaçodereproduçãodavida–comaexpressivaproduçãoquealcançaafronteira?

Terra,gadoemotosserra:donãolugaraolugardanegação

Se alguém que não conhece São Félix do Xingu tivesse acesso simultâneo às notícias das trêsúltimasdécadassobreacidade,certamentenãoencontrariadificuldadesemconstruir,apartirdostextos reunidos, a representação de um município dominado por problemas fundiários, pelodesmatamentoeoaceleradocrescimentodapecuária.OtrinômioquecompõeaimagemdeSãoFélix na mídia é também facilmente observado nos discursos de seus habitantes, que oralamentam a devastação da floresta ocorrida nos anos recentes, ora se vangloriam de terem setornado“omaiorprodutordeproteínadopaís”,comoafirmaumcomerciantelocalaosereferiràliderançadomunicípioentreoscriadoresdegadodecorte.

Jánofinaldadécadade2000,ediantedasrepercussõesnegativassobreoavançodaproduçãoagrícolaepecuárianaAmazônia,Vejasepropôsa trazer“averdadesobreasaúdeda floresta”,comoindicaoprópriotítulodeumareportagemdecapapublicadapelarevistasemanal.Amatériaespecial deu grande destaque a São Félix do Xingu, traçando o perfil domunicípio paraense edescrevendosuatrajetóriaatéopostodemaiorprodutordebovinosdopaísetambémumdosprincipais responsáveispelodesmatamentoda região.Esse retratoéelaboradopela imprensaapartirdaconstruçãodeumasériedeoposiçõesentreomunicípioeoutraslocalidadesamazônicasque – apesar do desmatamento – transformaram-se em “*...+ verdadeiros oásis no interior daselva”, já que conseguiram trocar a floresta por “*...+ cidades bem estruturadas, com ruasasfaltadas e uma ampla rede de serviços, que nada ficam a dever às localizadas no Sul e no

selvagem, deixassem de ser somente centro de atração populacional para transformaram-se também em ponto dedispersãolocal,comomostraAmaraletal.(2006).ParaumadiscussãosobreoavançoostensivodafronteiraaoesteeanortedoXingu,conferiraindaEdnaCastro,RaimundaMonteiroeCarlosPotiaraCastro(2004).

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Sudestedopaís”(Veja,2008,p.115).

Comparadaàs lavourasdesojaqueseestendiampeloestadodoMatoGrossoeàscidadesqueconstituíamabaseurbanadessavigorosaprodução,SãoFélixaparecenaspáginasdarevistacomooantiexemplodaracionalidade.Apujançadaproduçãomato-grossensetinhamotivo,segundoapublicação: a colonização racional e empreendida por empresas privadas havia levado odesenvolvimentoaocampo.Aocontráriodisso,ocasoparaensefaziaimperaro“caosnafloresta”,produzidoportrabalhadoressem-terraemovimentoscaracterizadospelarevistacomo“obscuros”e“belicosos”–comoaLigadosCamponesesPobres,aFederaçãoNacionaldosTrabalhadoresnaAgricultura Familiar e a Liga Operária e Camponesa –, cuja impunidade era assegurada peloprópriogovernofederal.

Praticamente todo o discurso deVejaé construído emdefesa dos fazendeiros que chegaram àregião,fizeramdelaterritóriodoagronegócioesãoapresentadospelarevistacomosinônimodosucesso e progresso, já que “*...+ contribuem para o desenvolvimento da Amazônia, criamempregosesomampontosaoPIBdopaís” (Veja,2008,p.103-104).Enquanto isso,SãoFélixéaimagemdadevastação,aantítesedesseprocessoracionalconduzidoporquemchegaàfronteira.Na cidade, a riqueza produzida pela pecuária nem de longe poderia ser percebida: “*...+ ruasesburacadas e, em suamaioria, sem calçamento. As fachadas das construções têm um aspectoempoeirado, tingidas pelo lamaçal nos tempos de chuva e pela poeira na estação seca”. (Veja,2008,p.110).NaspáginasdeVeja,SãoFélixéacenadeploráveldeumaAmazôniaquenãosoubesedesenvolvere,nãoporacaso,recebedapublicaçãoaalcunhade“acapitaldamotosserra”.

Até a publicação da reportagem de Veja, em 2008, a cidade de São Félix do Xingu havia sidotratadapelaimprensaanalisadacomoumaligeirareferênciaespacialparalocalizaraprodução.ASãoFélixqueaparecenostextosounosmapaséapenasumpontodistantenoimensoterritóriocercado por recursos minerais, estradas e um gigantesco rebanho bovino. É por isso que, empraticamentetodososregistros,acidadedeSãoFélixéoquepodemoschamardenãolugar.Essenão lugar ocupado por São Félix não tem omesmo sentido do termo cunhado porMarc Augé(2012) para descrever os espaços homogêneos, transitórios e que não permitem a apropriaçãopelos sujeitos12. São Félix é não lugar, no sentido que adotamos aqui, por que é o silêncio dacidadecomoespaçodevida.Naspáginasdaimprensaanalisada,emgeral,acidadeéausentedequalqueratributo.Namaioriadasvezes,ela sequerémencionada,diantedas riquezasperdidas“nosconfinsdoPará”,àesperadaadequadaexploração(FolhadeSãoPaulo,1971;1975;1977;1980;1985;1988),capazde“*…fazeraindependênciaeconômicadoBrasil”(FolhadeSãoPaulo,1982, p. 52).Mas é dessenão lugar como cidade que São Félix rapidamente caminha rumo aolugardanegação,talqualéapresentadanaspáginasdeVejanosanos2000.

Entrebeiradeirosecidadãos

Essa inflexão vividapela cidadenamídia é contemporânea à complexificação local das relaçõesentreossujeitosqueseestabeleceramaolongodasdécadasnaquelaporçãodafronteira.QuandoMarianneSchminkeCharlesWood(2012,p.427)realizarampesquisadecampoemSãoFélixdoXingu,entreosanos1970e80,perceberamque”*...+acidadeondeantesaspessoasviviammaisou menos nas mesmas condições *...+” estava rapidamente se transformando, mas com umacaracterísticabastantepeculiar:opequenonúmerodeempregadoreslocaistinhapadrõesdevidamuitosemelhantesaosdeseusempregados.Essesachados–acreditavamosautores–sugeriam

12Adotamosinclusiveagrafiasemhífenparasediferenciardotermonão-lugarusadoporAugé(2012).

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que, naquele incipiente sociedade de classes, a distinção entre os que estavam inseridos naeconomiamonetária–naposiçãodeempregadoroudeempregado–eramenos importantedoqueasdiferençasentreesseconjuntoeostrabalhadoresnãoassalariados.Assim,apassagemdaeconomia de subsistência para a acumulação capitalista na cidadehavia sido caracterizada pelaexistência de dois grupos principais. Segundo os pesquisadores, havia um setor assalariado –abrangendoaquelesquepagavamerecebiamsalários–eumsetornãoassalariado–formadoporautônomosealgunstrabalhadoresqueaindaviviamcomoaviados,talcomoàépocadaeconomiadaborracha.“Dessaforma,numcenáriorústicocomoSãoFélix,asdiferençasnobem-estareramdeterminadas,principalmente,pelofatodeasfamíliasteremounãoacessoàrendamonetáriaparacompraralimentoseoutrosbenseserviços...”(Schmink;Wood,2012,p.422)eatransiçãoparaotrabalhoassalariadoerafeitacommuitaresistência,poisrepresentavaofimdaautonomiatãovalorizadapelamaioriadostrabalhadores.

Hoje,noentanto,odesejodominanteporsemanterdistantedaeconomiacapitalista–observadoedescritopelospesquisadores–divideespaçocomoanseiopelainserçãonomercadoformal.AdistinçãoinicialencontradaporSchminkeWood(2012)pareceestarorganizadaemumconjuntode múltiplas nuances, permitindo enxergar diferenças que se dão não só quanto à rendamonetária a que se temacesso,mas tambémapartir do espaçoqueesses sujeitos ocupamnomunicípio.Essescontrasteslevamàconstruçãodeumahipótese,queencontrasubsídiosnasfalasdos moradores de São Félix para encará-la como questão que merece o debate. Espacial esocialmente,SãoFélixdoXinguseafastaacadadiadesuahistóriaribeirinha.Ofatodeotecidourbanode São Félix se estender rumoà PA-279 talvez nem seja o quemelhor exemplifica essacondição,pois,comacidadeoriginalconfinadaentreumaáreadetopografiaacidentadaeosriosFrescoeXingu,esseseriamesmoocaminhomaisnaturalparasuaexpansãonosanosrecentes.É,pois,olugarocupadopelosriosnocotidianodacidade–masprincipalmentepelosmoradoresqueestãoàssuasmargensequerelembramatodoinstanteaorigembeiradeiradomunicípio–quenospermitelevantarahipótesedeque,apesardavariaçãodenuances,emSãoFélix,ossujeitosdehojepodemseorganizarsobduascategoriasbasilares:osbeiradeiroseoscidadãos.

AoconstruirmosessadistinçãoapartirdolugarqueédadoaorionocotidianodeSãoFélix,nãoqueremos dizer que a cidade ignore por completo os dois cursos d’água que permitiram seusurgimentonoiníciodosanos1900.ÉpelorioqueasbalsasdãoacessoàsterrasaoestedoXingue também a norte do Fresco, onde estão atualmente diversas vilas, alguns assentamentosagrícolas e grandes fazendas de gado. Além disso, são os rios, praias e ilhas da região quegarantem o lazer durante o verão amazônico – concentrado principalmente entre osmeses dejunhoeagosto–,quandoacidadeseenchede turistasvindosdeoutrosmunicípiosdoSudesteParaenseeatémesmodeestadospróximos.Entretanto,nodiaadiadamaioriadoshabitantesdeSãoFélix–sobretudoaquelesqueestãomaisafastadosdobeiradão–osdois riospermanecemcomo referências visuais importantes, mas relativamente distantes, como já havia observadoMonte-Mór (1984,p.21)emseuestudo:“emmomentoalgumacidadesedebruçasobreo rio,ocupasuasmargens,sedistribuiaolongodoseuleito,comosendoumeixoprincipal”.Essetraçocaracterístico de São Félix já ao início dos anos 1980 se intensificou com o passar dos anos,fazendo com que os rios da cidade, de fato, deixassem a cargo das estradas a definição daestruturaurbanadacidade.

Mas em tempos nos quais se divulgam com vigor os êxitos trazidos pelo embelezamento doespaçourbano,SãoFélixtambémanunciaseudesejodetransformar-seemumacidadeturísticaapartir da reestruturação das orlas dos rios Fresco e Xingu. Com isso, São Félix procura seguir omesmo caminho de outras cidades ribeirinhas da Amazônia, que nas últimas décadas têmdestinado parte de suas orlas ao turismo e o fazem à custa das populações que ali vivem. De

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acordocomoqueapresentamCardosoeVenturaNeto (2012),aocupação tradicional temsidovista,namaioriadasvezes,comoumgrandeempecilhoparaosprojetosdeintervençãoemcursosd’águanaAmazônia,jáqueosfundosdascasasdãoacessodiretoparaorio,bloqueandoavisãoeapassagemdopúblicoemgeral.EmSãoFélixdoXingu,essasituaçãoserepete.NoPlanoDiretordomunicípio, toda a faixa de terra que se estende na confluência dos dois rios é considerada“zonaderecuperaçãoereestruturaçãourbanística”esuashabitações–avaliadascomo precária– estão sujeitas ao remanejamento. Conforme o documento, nessa área, “*...+ deverão serestimuladas,apósoprojetoderevitalizaçãourbanística,atravésdeíndicesdiferenciados,atividadesdebares,lanchonetes,similareseentretenimentosemgeral”(SãoFélixdoXingu,2006,p.27).

Essaspropostas– aindanãoviabilizadaspor faltade recursos– tendema reafirmara trajetóriaseguidapelacidadenosúltimosanosquantoaousodasmargensdeseusrios.Naconfluênciadosdois cursos d’água, que não chegou a ser ocupada por habitações nos anos iniciais, as antigasolarias que abasteciam a cidade na década de 1980 deram lugar a estruturas de lazer, como oPátioOlímpicodeSãoFélixdoXingu,umagrandearenadeterrabatidaecircundadaporpequenasconstruções de madeira que servem de bares à época do verão, quando tendas de lona sãoarmadasparaauxiliaravendadealimentosebebidas.AolongodoRioXingu,égrandeonúmerode ilhas usadas pela população para diversão,mas há também aquelas que foram apropriadasilegalmente para a edificação de casas de veraneio. O mesmo tem ocorrido na faixa de terrabanhadaporaquele rio juntoàsedemunicipaldeSãoFélix,ondealgunshabitantescompraramlotesedelimitarampraiasparticulares.Noextremonortedacidade,serrariasdesativadasnaorlado Rio Fresco se transformaram em alvo do mercado imobiliário local para a abertura deloteamentos de alto padrão. No meio disso tudo, a estreita faixa ocupada pelos beiradeiros àmargemdoFrescopermaneceucomoresíduodaorigemribeirinhadeSãoFélix.

É preciso deixar claro ainda que, quando estabelecemos essa clivagem entre beiradeiros ecidadãosparatentarcompreenderarealidadesócio-espacialdeSãoFélix,não estamosquerendoargumentar que aqueles primeiros não tenham, por exemplo, acesso ao voto ou que sejamexcluídosdetododireito,atémesmoporqueissodemandariaumadiscussãoverticalizadasobreoexercíciodacidadania,queultrapassaosobjetivosdessaempreitada.Estamos sugerindoapenasque, dentro da cidade, eles constituem uma forte alteridade em relação aos demais cidadãossãofelenses. É como se aqueles cidadãos – os integrantes do beiradão – fossem, de fato, umaoposiçãoaoscitadinosquehabitamaSãoFélixqueprocuranegarsuahistóriabeiradeiraou,pelomenos, reformular a imagem ribeirinha de acordo com os novos padrões. Como aparece nodiscursodeumrepresentantedopoderpúblicomunicipalaodefenderaremoçãodashabitaçõesquemargeiamosriosdacidadeparaaconstruçãodeumcomplexodelazer,elesconstituem,“*...+infelizmente, uma situação desagradável para a cidade, é praticamente uma favela”. Ou aindacomoestánafaladeumasenhorapecuaristacapixaba,quechegouaSãoFélixnadécadade1980:

temgentequeeuconheçoquechegoudefora,comprouterra,construiucasa,ficou bem de vida, vendeu a casa, vendeu a terra, foi embora rico; levoudinheirodaqui.Essesbeiradeirosaí,vailápravocêverapobreza.Elespegamopeixe,enquanto tiverpeixecom farinhaeles comem.Quandoacabou,vãopegaroutro!Éigualaoíndio.Porqueíndionãoguardanadapramanhã,né!?Elestêmomesmopensamento.

Comocategoriarelacional,obeiradeiroégeralmenteacompanhadodeatributosquelheconfereuma posição social inferior, relacionada a umdeterminado tipo de uso do espaço, diretamentevinculadoaopassadodessaregiãodaAmazônia.Assumir-sebeiradeiro,deigualforma,demanda

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reconhecer-separtedessahistória,oquemuitasvezespodenãoserfavorável.

SecompreendemoscomCanclini(2010)queacidadaniaseconstróitambémapartirdoconsumo,eemLefebvre(2008c)entendemosqueesseconsumodeveseestenderaoespaço,olugarsocialeespacialocupadopelosbeiradeirosemSãoFélixéprioritariamenteoquelhesnegaacidade,oqueosafastadourbanoe,portanto,osopõeaosdemaiscidadãos,ouseja,aoscitadinossãofelenses.Oconsumodoespaçoetambémoespaçodesseconsumopoderia levarao lefebvrianodireitoàcidade, ou seja, à apropriação efetiva dos espaços, em oposição à contemplação de paisagenscristalizadas?AleituradeLefebvre(1991a)sugerequesim,maspareceserodesejo pelaabstração exógena o que tende a dominar os discursos hegemônicos que atingem a fronteira,fazendodoespaçovividoporaquelesquenãopartilhamamesmaracionalidadealgoquedevesernegadooumesmoapagadodahistória.

Énecessáriodestacaraindaqueessaclivagemtambémnãoimplicaanegaçãodaemergênciadeumapossívelcidadaniabeiradeira–ouribeirinha–emSãoFélixdoXingu,capazdeconstruirumaoutra formadesercitadinoeexperimentaracidade.Essaemergêncianãopodesernegadaatémesmo porque é exatamente desses espaços “entrincheirados”, como descreve James Holston(2013,p.62)quebrotaacidadaniacontemporânea.“Insurgente”,nostermosdoautor,elanascedahistória,como“*...+umaaçãonacontramão,umacontrapolítica,quedesestabilizaopresenteeo torna frágil, desfamiliarizando a coerência com que geralmente se apresenta”. Como diz umrapaz sentado à porta de seu comércio, uma pequena edificação feita de tábuas usada para avendadebebidasàbeiradoRioFresco,

agente sabequeSãoFélixprecisamudar,queessebeiradãonãopode ficarcomoestá,porquequandovemachuva temmuitacasaaíquealaga,masagente tambémsabequenosso lugaré aqui.MeuavônasceuaquinoXingu,cortouseringaepanhoucastanha.Minhamãeviveulavandoroupanesserio.Eucrescipulandonessaáguadesdemolecote.

Mas,porenquanto,poucossãoosqueseveemcomobeiradeirosnaribeirinhaSãoFélixdoXingu,até mesmo entre aqueles que residem no beiradão formado pela confluência dos dois cursosd’água.ÉpelomenosissooquedemonstraafaladeumsenhornascidoemSãoFélixequeviveem uma das casas que se enfileiram pela margem do Rio Fresco: “quem mora aqui não ébeiradeiro. O beiradão é do aeroporto pra lá [acena com os braços e faz referência a um dospontosfinaisdamanchaurbana+.Aquiaindaécidade”.

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Figura1:BeiradãodoRioFresco,SãoFélixdoXingu,ParáFonte:Pesquisadecampo,2013,autoriaprópria.

ALTERANDOOPONTODEVISTA

A história de São Félix do Xingu e suas representantações na imprensa e nas falas de seushabitantes, comovimos até aqui, evidenciama sujeiçãodoespaço amazônico às racionalidadesexógenas.Foiassimàépocadosseringais,quandoaelitequeorganizavaaeconomiadaborrachasequerchegavaamuitasdaslocalidadesqueeramexploradas;ocorreomesmoaindahojecomaproliferaçãodogadonas terrasxinguanas,cujas forçasquecontrolamoexcedentenemsempreestão presentes na cidade amazônica que serve de base para a produção,mas são capazes deocultar aorigembeiradeiradomunicípio. Tudo issoé reveladordeuma fronteiraque,marcadapor surtos de retração e expansão – ou seja, por uma inconstância cujo controle não édeterminado internamente –, traz consigo a disjunção de racionalidades próprias às zonas deinterseçãoentremundosdistintos.Essaéumaconstantedaequaçãoinerenteàfronteira,desdeosprimeiroscontatosatéos(des)encontrosmanifestosnosdiasatuaisemSãoFélixdoXingu.

Mas como pensar a fronteira para além do lugar da penúria e escassez que lhe tem sidodesignado? Como prospectar uma outraAmazônia, que não aquela que tem sido construída apartir de fora? Acreditamos que essa reorientação do olhar talvez possa ocorrer exatamente apartirde suapolifoniaedas tensõesporela colocadas.Reconhecereaceitaressas relações sãofundamentais para o entendimento daquilo que Lefebvre (2008b) encarou como o possível-impossível de uma sociedade urbana, ou seja, a urgência que não é realidade hoje, mas quepoderáseramanhã;oviraserouavirtualidadeemergentequejátemlançadasobreoterritóriosuabasedeconstrução.Comotodanecessidade,essevirtualdemandaumexercíciodeelaboraçãomentalnecessariamentelivredasdeterminaçõesdeixadaspeloreal,aindaquedesselastronãosedespregueeapartirdeleosdesviossejamdesenhados.

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Lefebvre (2008c) já nos mostrou que não é a lógica da produção o que informa a realidadecontemporâneaeastransformaçõeserevoluçõesqueelaprecisaconstruir(massimocotidianoea reprodução que nele se desenvolve), o que indica que a emergência de umaoutraAmazônia(paraalémdafronteira)dependedealgumasinversões,acomeçarpelolugardadoàreproduçãona/davida.Essepareceserumentendimentourgenteenecessárioàfronteira,lugarprivilegiadoparaoencontrodasmúltiplas racionalidades capazesde informaroutras lógicasque superamoprodutivismo que nos assola. E essa sobreposição de mundos que lhe é inerente confere àfronteiraseuproblemateóricoeprático.Trata-sedeumproblemateóricoporquesomentealuztrazidapelacríticaparecesercapazdepermitiracompreensãodeseushibridismos,semsedeixarcegarpeloexotismoaparentedeseusconteúdosoumesmopelaprecariedaderecorrentedesuasformas. De igual modo é o que define seu problema prático porque a realidade presente – eindesejada – exige a pulsão transformadora, procurando se afastar da tentativa histórica desobrepor,sobreasmúltiplasnarrativaspresentesnafronteira,umaúnicafala,sejaestaexógenaoumesmoelencadadentreastrajetóriasqueacompõem.Háqueseralteradoopontodevistaapartirdeumarupturaradical13.

Talentendimentoéoquenospermiteumprimeiroajustenosfiosdatramaqueprocuramostecere essa aproximação parece ser potente para a possibilidade de um urbano que supera asdicotomiasepõeemreuniãoelementosqueocapitalinsisteemseparar.Issoimplicacompreenderourbanonãoapartirdesuacondiçãodepardicotômicoao industrial– lugar tãosomente da reprodução da força de trabalho – ou polo oposto ao ambiental – encarado pelaracionalidadeocidentalcomomatéria-primaqueantecedequalqueração–,massimemsuaformaplenaeindutoradetransformações,comorevoluçãoparaumanovasociedade.Paraafronteira,issoéfundamental,poisresideaíumadasgrandesinquietaçõescolocadaspelaAmazônia:comoeporquetamanhapujançaprodutivaconvive,emboapartedaregião,comtantaprecariedadenaesferadareprodução?

Entre as vilas, as aldeias, a cidade e o mundo agrário que a envolve, São Félix do Xingu nosmostrou – através de suas representações na imprensa e das falas de seus sujeitos – amanifestaçãosócio-espacialdaextensãodocapitalsobreoterritórioamazônico.Era(eaindaé)afronteira por excelência, com suas formas inacabadas, sua instabilidade própria e a avidez comquerecebetudoquevemdefora.Mastambémera(e,esperamos,nãodeveriadeixardeser)olugar das insurgências, da descoberta do novo, o encontro entre os termos aparentementedicotômicos.Talveztenhachegado,defato,omomentodepensarquesuaintegraçãoaoespaçoglobalpossaocorrerporumaviadiferentedatradicionalcondiçãoderebaixamentodoespaçodafronteira (e de suas sociedades) na divisão social hierárquica do trabalho. Ou, de forma maisrevolucionária,talvezsejamesmootempoderecusarsuainserçãoemumprojetouniversalizante,que na promessa de nos levar ao eldorado, elimina as singularidades e deixa como rastro abarbáriequepretendecivilizar.

13Issodemandaumaviradaontológicaquenãosótomaa fronteiracomo lugardo (des)encontroentrehumanosenão-humanosdosmaisdiversostipos,afimderediscutirasváriashumanidadespresentesali,mastambémahumanidadeparaalémdossereshumanos,comosugereViveirosdeCastro(1996;2012).Compreenderomundocomoprocessoconstituídoporsujeitosemrelação–enãodiantedeobjetos– indica,pelomenos,umaalternativacapazdeeliminarasdicotomiastrazidas pelo capitalismo e fazer emergir o urbano como lugar da práxis politica que permite (re)produzir pessoas quetomemassentonocorposocial.

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