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abrecampos . REVIST� DE SAUDE MENTAL DO IRS - FHEMIG

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Abrecampos Nº1 IRS - Psicanálise e Prática entre Vários

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abrecampos

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REVIST� DE SAUDE MENTAL DO IRS - FHEMIG

abrecampos Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares - Ano 1 - N2 O - 2000

Psicanálise e Instituição A Segunda Clínica de Lacan

Alfredo Zenoni

.Ait.Janbrt

1lliblintcca iigital

Instituto Raul Soares - Rede FHEMIG

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Abrecampos, v.l - 2000 Belo Horizonte, 2000 - v. llust. 23cm. Anual l.Saúde Mental - Periódicos 2. Psicanálise- Perió­

dicos 3. Psiquiatria - Periódicos 4.1nstituição - Periódi­cos

L Instituto Raul Soares 11. FHEMIG

CDU- 613 .. 86

Ficha Catalográfica: Inês Maria Rodrigues

FUNDAÇÃO HOSPITALAR DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Governador do Estado: Itamar Franco

Secretário de Estado de Saúde: Adelmo Carneiro Leão

Superintendente Geral: Ivan Batista Coelho

Diretor Hospitalar: Helvécio Magalhães Junior

Diretor de Planejamento e Finanças: Augusto Monteiro Guimarães

Diretor Administrativo: Maria Helena Santos

Diretor de Ensino e Pesquisa: Egléia Maria da Cunha Melo

Coordenador de Saúde Mental: José Cesar de Morais

INSTITUTO RAUL SOARES

Diretor Geral: Wellerson Durães Alkimim

Chefe da Divisão Assistencial: Marco Antônio R. Andrade

Gerente Administrativo: Daniela Maria Dinardi A. Pinto

Coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa: Silvane Carozzi

abrecampos Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares -Rede FHEMIG Ano I - N2 O - Junho /2000

Comissão Editorial

Elisa AI v arenga Flavio Durães

Helio Lauar de Barros Juliana Meirelles Motta

Maria Alice Bemardes do Vale Maria Aparecida de Moraes Silva

Regina Capanema de Almeida Silvane Carozzi

Wellerson Durães Alkimim

Tradução: Elisa Alvarenga Revisão de Linguagem: Elisa Alvarenga, Maria Aparecida de

Morais Souza, Silvane Carozzi Diagramação: Silvane Carozzi

Capa: Helio Lauar de Barros - Figura central baseado no Relevo Espacial de Hélio Oticica

Organização: Núcleo de Ensino e Pesquisa - NEP/IRS Av. do Contorno, 3017 - Santa Efigência - Belo Horizonte ­

Minas Gerais - CEP - 30 11 O - 080

Apoio:

Diretoria de Ensino e Pesquisa- DIREP/FHEMIG

UNICENTRO NEWTON PAIVA

Editorial

É com grande alegria que o Instituto Raul Soares entrega ao públi­co leitor a primeira edição da revista "abrecampos". Da concepção até a entrega da revista vivemos uma grande aventura, muitos foram os

obstáculos, as dificuldades, que enfrentamos, mas aqui estamos. As con­ferências que apresentamos nesta primeira edição foram proferidas no final del998. Porém, a atualidade do tema justifica a sua publicação. Além disso, são inéditas e tem sido grande a demanda de sua publica­ção, desde a sua apresentação há quase dois anos.

Queremos agradecer ao psicanalista Alfredo Zenoni por ter, gen­tilmente, cedido os originais de suas conferências para publicação, aqui no Brasil, pelo Instituto Raul Soares.

A revista "abrecampos" quer ser, como o nome indica, um 'locus' onde se possam tornar visíveis novas perspectivas epistemológicas, clínicas e dispositivos terapêuticos no campo da Saú­de Mental. Não se trata, pois, de uma publicação com a pretensão de dar a última palavra, sobre que assunto for, no campo da Saúde Mental, mas

de um esforço para dar visibilidade às várias perspectivas que surgem e promover o seu debate.

Acreditamos que a revista "abrecampos" contribuirá, de ma­neira substancial, para enriquecer o debate em tomo das questões mais importantes concernentes à área de atuação do Instituto Raul Soares e das instituições correlatas.

Nosso projeto ganhou enorme força com a realização da parceria com o Unicentro Newton Paiva, o que tomou possível, em termos

operacionais e financeiros, a realização desta edição. A ele, nossos agra­decimentos.

A todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a reali­zação desta edição agradecemos e convidamos ao trabalho. A próxima

edição já está sendo preparada.

Silvane Catarina de OliveiraCarozzi

Coordenadora do Núcleo de ensino e Pesquisa/ IRS

A realização desta edição é um dos resultados da parceria entre o Instituto Raul Soares!Fhemig -Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais e o Unicentro Newton Pai v a.

Sumário

Apresentação ......... . . . . . ... . .......................................... 9

Qual instituição para o sujeito psicótico ? ............. 12

A clínica da psicose: o trabalho feito por muitos . .32

A psicose fora do desencadeamento . . . ......... . . . ........ 51

Discussão de Caso Clínico .. .............. ..................... 70

Psicanálise e Instituição - A Segunda Clínica de Lacan

Apresentação

Trazer Alfredo Zenoni a Belo Horizonte era um desejo de mui­

tos, leitores que éramos de seus textos sobre a Psicanálise na Ins­

tituição. Mas isso só foi possível graças à decisão de poucos, e em

especial, de Cezar Rodrigues Campos, que sabia da importância

do seu trabalho para a leitura de nossa experiência. Hoje, quase

um ano depois, a publicação de suas conferências não perde sua

atualidade, e é uma homenagem também a Cezar, que não etá

mais entre nós. Essa publicação é uma ocasião de torná-lo pre­

sente, no debate com Zenoni, assim como no relato e discussão de

um caso clínico.

Três conferências- "Qual instituição para o sujeito psicótico ",

"A psicose fora do desencadeamento" e "O trabalho feito por

muitos" - e um caso clínico comentado por Zenoni encontram

aqui o seu registro, testemunhando do interesse, renovado, da Psi­

canálise pela clínica da psicose e, em particular, pela clínica na

Instituição.

Italiano radicado na Bélgica, Alfredo Zenoni é analista mem­

bro da École de la Cause freudienne, de Paris, e terapeuta res­

ponsável por uma estrutura residencial que abriga pacientes

psicóticos, após a alta hospitalar. É desse lugar, então, de psica­

nalista, e ao mesmo tempo, de trabalhador da Saúde Mental, que

ele nos surpreende com uma nova forma de pensar as relações da

Psicanálise com a Instituição de Saúde Mental.

Na sua primeira conferência, introduzindo a questão da Psica­

nálise na Instituição, Zenoni nos diz que a questão não é saber se

a Psicanálise pode ser praticada na Instituição, mas como o dis­

curso analítico pode ser útil à clínica, orientar o tratamento. O analista, na Instituição, não deve se excluir nem reivindicar um

estatuto especial, pois seu desejo não está limitado à cura analíti­

ca. O desejo do analista é também um dever em relação à própria

Psicanálise. Assim, a questão da Psicanálise na Instituição é me-

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Alfredo Zenoni

nos a da prática do analista que a da transmissão da Psicanálise.

Para Zenoni, a Instituição tem, basicamente, duas funções: a

função social de acolher; abrigar o sujeito psicótico, e a função

clínica, terapêutica, de tratá-lo. O paciente em crise deve ser aco­

lhido, mesmo que não se implique de imediato no tratamento, e

este acolhimento pode vir a provocar uma demanda. Do lado da

equipe de técnicos de Saúde Mental, Zenoni não coloca, tampouco,

um imperativo de filiação à Psicanálise: os técnicos são, antes de

mais nada, alunos da clínica, e sua aproximação do discurso ana­

lítico se dá pela via da transferência de trabalho na Instituição.

Zenoni nos fala um pouco das estruturas residenciais na Bélgi­

ca, e de um funcionamento que poderia nos inspirar para a cria­

ção de nossas tão esperadas moradias ou pensões protegidas.

Após intr�duzir a questão de "qual instituição para o sujeito

psicótico ", entramos n o tema da "psicose fora do

desencadeamento ".

Se nos primeiros tempos do ensino de Lacan, costumávamos

aplicar a teoria psicanalítica à clínica das psicoses, com o segun­

do tempo do ensino de Lacan, trata-se de aplicar o que a psicose

nos ensina à clínica psicanalítica. Zenoni nos expõe, com simpli­

cidade e clareza, o que tem-se chamado de segunda clínica de

Lacan, ou clínica do sintoma. Se na primeira clínica, correspon­

dente aos anos 50, Lacan dava ênfase à presença ou ausência do

Nome-do-pai, determinando as estruturas clínicas, na segunda

clínica o Nome-do-pai passa a ser apenas um sintoma entre ou­

tras possíveis formas de arranjo do sujeito com uma falta funda­

mental que existe para todo ser falante.

A segunda clínica, dita continuísta, não invalida o diagnóstico

estrutural, mas acentua o que há de comum entre as estruturas e

de próximo entre os fenômenos, que deixam de ser exclusivos ou

patognomônicos de uma estrutura. As estruturas permanecem, mas

os fenômenos são destipificados. Não basta fazer uma lista de sin­

tomas, enfim, repertoriá-los, para fazer um diagnóstico, é preciso

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Psicanálise e Instituição - A Segunda Clínica de Lacan

construir uma lógica com os fenômenos observados, contraria­

mente à proposta das classificações modernas.

A segunda clínica, no que toca às psicoses, é também anti­

segregativa, retirando à psicose qualquer imputação de déficit, e

classificando-a, enquanto posição do sujeito, ao lado da neurose

e da perversão, em oposição aos quadros orgânicos. Trata-se en­

tão de uma clínica das modalidades de gozo, não consequências

negativas de uma falta, mas soluções positivas, invenções do su­

jeito psicótico, que o analista acompanha no seu "auto-tratamen­

to", numa posição de secretário ativo. Nesse sentido Zenoni la­

menta, na discussão de um caso clínico, que o diagnóstico de Psi­

cose Maníaco-Depressiva venha paulatinamente substituir outros

diagnósticos de psicose, fazendo crer que, por trás do transtorno

do humor, existiria um distúrbio orgânico primário.

Em "O trabalho feito por muitos", Zenoni vai dar ênfase à

Instituição como lugar de diluição do sujeito suposto saber, insu­

portável para o sujeito psicótico. Através de vários exemplos clí­

nicos, ele nos mostra estratégias de manejo no tratamento do su­

jeito psicótico, com soluções encontradas, ora pelo sujeito, ora

pela equipe de técnicos, para lidar com aquilo que frequentemen­

te desencadeia passagens ao ato. Nesse sentido, Zenoni nos acon­

selha não encorajarmos o trabalho de interpretação e elaboração

de sentido, que pode concluir na passagem ao ato, mas o recurso

ao uso combinatório da linguagem, ao escrito. Joyce será então o

modelo para práticas menos elaboradas, a serem encorajadas,

práticas da letra esvaziadas de sentido.

Temos então aqui, com estas três conferências e a discussão de

um caso, um material de grande valor para qualquer um que se

aventure na prática institucional, vetorializada pela Psicanálise,

com o sujeito psicótico. O lugar que o psicanalista pode ocupar

terá que ser visto caso a caso, na medida em que nos dispusermos

a aprender com o sujeito psicótico. Elisa Alvarenga

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Qual Instituição Para o Sujeito Psicótico?

Eu lhes agradeço, inicialmente, o convite para vir a este país, que para nós é sempre um pouco mítico, o Brasil, mas também a oportunidade de trabalhar com vocês questões que se tornaram um pouco menos marginais para os psicanalistas, menos margi­nais do que elas eram há dez ou vinte anos. Talvez porque, neste tempo, uma certa idéia sobre o analista solitário, analista apagado, que não tem nenhum ideal e que não acredita em nada, deixou lugar a uma outra idéia, evocada por Éric Laurent, recentemente em uma conferência, que é a idéia do analista cidadão. Os analis­tas começaram a apreender, ou deveriam começar a apreender, que há uma comunidade de interesses entre o discurso analítico e a democracia e que não se trata somente de escutar fechado no seu consultório, mas de saber transmitir o que concerne à condição humana, o que, da particularidade de um sujeito, pode ser útil para um número maior de pessoas. Para parafrasear o que diz Lacan em "Televisão", a propósito da saída do discurso capitalista, ele não será um progresso se for somente para alguns. Os psicanalistas devem tomar posição, ter uma incidência sobre a orientação da

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política de saúde mental de um estado ou de uma região. Pedir um tipo de saúde mental ou respeito aos direitos do homem; deve ser solidário da introdução do lugar do sujeito na clínica psiquiátrica.

Houve um tempo que pensava que os analistas deviam se manifestar apenas no campo da cultura. Nós acreditamos que de­vemos intervir também sobre pontos mais precisos da sociedade, como em comitês de ética, redes de ajuda, práticas institucionais e sociais, para que a dimensão do sujeito, no sentido psicanalítico seja levada em conta, ao contrário da sua exclusão pelo discurso da ciência, que está nesse momento fagocitando a psiquiatria. O que afastou os psicanalistas de uma intervenção no campo da saú­de mental foi uma formulação do problema em termos de relações de antinomia ou de compromisso entre duas práticas: por um lado, a prática da análise, e, por outro lado, a prática de cuidados médi­cos, sociais e psiquiátricos. Pode-se opor, quase termo a termo, os objetivos da saúde mental e os do discurso do analista, para mos­trar a sua inconciliabilidade. Conclui-se, então, que o analista de­veria, ou se afastar da instituição ou aí se situar, mas em uma posi­ção anti-institucional.

Eu vou lembrar alguns termos desta oposição. A instituição visa reduzir a pregnância do sintoma, enquanto que o analista ten­ta fazer emergir o significante inconsciente. A instituição quer o bem e a saúde do indivíduo, enquanto o analista não visa nenhum bem mas somente a emergência do desejo, que pode comportar o mal-estar e a angústia. A instituição responde à demanda, enquan­to o analista, por sua escuta radical, visa a raiz mesma da deman­da. A instituição tenta construir a unidade do sujeito, enquanto o analista visa a divisão do sujeito. A conclusão prática dessas opo­sições é de conduzir o analista a oscilar entre uma atitude de recu­sa ou de crítica à instituição, crítica à instituição como lugar de tratamento psicanalítico, ou então uma inserção, mas contra a ori­entação da política institucional. Em ambos os casos, a psicanáli­se acaba não tendo mais nenhuma incidência sobre a clínica e so-

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Alfredo Zenoni

bre a prática institucional. Se a questão da relação entre a psicaná­lise e a instituição se esgotasse nesta oposição, ela se traduziria na questão: é possível praticar a psicanálise na instituição ou não?

Isso depende, creio, do fato de se ter ligado muito a psicaná­lise, o discurso analítico, à cura, ao tratamento do neurótico. Esta redução da psicanálise ao tratamento dos neuróticos ignora, ou desconhece, que as instituições ou as redes de ajuda se ocupam de outras categorias sociais diferentes das que se endereçam normal­mente aos psicanalistas. E não somente isso, mas também se ocu­pam de abrigar outras categorias clínicas diferentes da neurose. Elas respondem antes à passagem ao ato. Enfim, essa identifica­ção da psicanálise à cura, ao tratamento dos neuróticos, arrisca-se a ignorar que a consideração do mal estar da civilização teve uma incidência sobre as teorias das pulsões e sobre a prática da psica­nálise no próprio Freud. Então há um impasse, quando transpo­mos o tratamento dos neuróticos à instituição, diretamente.

O esquema comum da prática da psicanálise vai da vida soci­al ao consultório do analista. Há um estado da clínica em que esta passagem não é possível. Então, a prática tende a transpor o con­sultório do analista ao interior da instituição, o que faz com que a instituição apareça, nessa aplicação, como sendo simplesmente o envoltório do consultório do psicanalista. Esse esquema, que trans­forma a instituição um "em tomo" do consultório do analista, des­conhece a razão da existência da instituição e, por essa mesma razão, a natureza da clínica que a instituição acolhe. Quando dis­cutimos para saber quando a instituição é compatível com o con­sultório do analista ou não, desconhecemos a razão da existência da instituição. Porque antes de existir para eventualmente tratar do sujeito, a instituição existe para acolhê-lo, colocá-lo ao abrigo, colocá-lo à distância, assisti-lo . Antes de ter um objetivo terapêutico, a instituição é uma necessidade social, é a necessida­de de uma resposta social a fenômenos clínicos, a certos estados da psicose, a certas passagens ao ato, a alguns estados de

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Psicanálise e Instituição - A Segunda Clínica de LLlcan

depauperamento físico, que podem levar o sujeito à exclusão soci­al absoluta e até à morte. É isto, então, que motiva a criação de uma instituição e não se deve comparar a instituição de cuidados e a consulta psicanalítica e ver se a instituição realiza os objetivos da psicanálise. Não se deve fazer essa comparação. Não devemos tampouco nos limitar a introduzir o consultório do psicanalista na instituição e considerar simplesmente que a instituição é a sala de espera do analista.

Trata-se de reconhecer a diferença de duas práticas. A prática do tratamento psicanalítico é uma coisa e a prática da instituição é outra. A clínica permite frequentemente, a entrada na experiência psicanalítica, mas nem sempre. A clínica exige, também frequen­temente, uma resposta que pode ser simplesmente a de uma práti­ca social ou institucional. Mais ainda que fenômenos de lingua­gem ou delírio, trata-se, nessa clínica, daquilo que do gozo, como diz Lacan, faz retorno no corpo e no agir: passagem ao ato suicida ou perigosa, auto-mutilações, errância, imobilidade catatônica, perda de qualquer interesse, uso excessivo de drogas. Ora, não é porque a resposta a esta clínica se inscreve no discurso do mestre que ela deve ser abandonada pelos analistas ou que os analistas devem se inscrever para contestá-la, por uma outra prática. Quan­do constatamos que na base da existência da instituição há a clíni­ca, nós podemos propor uma terceira via, uma outra forma de co­locar o problema, que nos permite sair do eterno debate de saber se a psicanálise pode ou não ser praticada na instituição e se a instituição é ou não compatível com o discurso do analista. A ques­tão, então, não é da relação entre a instituição e a prática da psica­nálise de consultório, mas a terceira via, que nós propomos, é a de considerar que há duas práticas distintas. A prática da cura, do tratamento a dois e a prática institucional que é necessariamente coletiva.

Não é porque uma prática é a dois que ela é, necessariamen­te, o discurso do analista. O discurso do analista não coincide ne-

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cessariamente com a prática a dois. Nós podemos legitimamente colocar a questão se o discurso do analista pode orientar uma cura a dois ou se ele pode orientar uma prática feita por muitos. A ques­tão não é de saber qual psicanálise praticar na instituição, mas qual instituição praticar na psicanálise. Então, não é a psicanálise na instituição, mas a instituição na psicanálise. Colocar o proble­ma nesses termos supõe reconhecer a motivação clínica da insti­tuição. A instituição constitui a resposta praticável em alguns esta­dos da clínica, a única resposta praticável na ausência da qual as pessoas que sofrem, ou as pessoas que lhes são próximas, ficam expostas a um insuportável, que pode ter consequências dramáti­cas. Em alguns estados da clínica, não se trata de ir ao consultório do analista, trata-se de ser protegido.

Uma jovem mulher que encontramos na apresentação de pa­cientes e cuja posição subjetiva se traduzia por uma certeza - a certeza de ser feia e monstruosa a tal ponto que ela não podia se suportar sem a presença de alguém que a amasse - passava todo o tempo, de um homem a outro sofrendo toda espécie de violência e inconvenientes. Ela dizia no hospital: "fora daqui eu vou dizer sim a não importa a quem, não importa o quê". É por isso que ela queria ficar no hospital. Lembrar a motivação clínica da existên­cia da instituição tem a vantagem de evitar desconhecer sua fun­ção social insubstituível e de evitar sua supressão como foi o caso na Itália. Não é porque a instituição cura que ela deve ser mantida, nem porque ela não cura que ela deve ser suprimida. Se mantemos a instituição porque ela cura, há um grande risco de considerar natural que o paciente fique no hospital indefinidamente, que fi­que no hospital enquanto não fique curado. Se consideramos que a instituição deve curar e se consideramos que a instituição não cura, o risco é grande de deixar o paciente na errância e aos dramas de retomar a uma família e ao seu lugar natural, que dá, frequente­mente, lugar à vagabundagem. Isso acontece quando desconhece­mos a função social da instituição. Eu diria mesmo que manter

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Psicanálise e Instituição -A Segunda Clínica de Lacan

essa função social tem por função colocar um limite à função tera­pêutica. Sem o limite da sua função social, a instituição corre o risco de se transformar em um lugar de alienação, de experimenta­ção e, sem o limite da sua função terapêutica, ela corre o risco de ser simplesmente suprimida. Fazer valer a necessidade social de uma resposta institucional à clínica, uma resposta no social, tem a vantagem que eu mencionei - de evitar suprimir a instituição ou hospitalizar indefinidamente os pacientes. A primeira vantagem é evitar esses dois riscos. A segunda vantagem é a de deslocar o assento do conflito entre dois discursos a uma questão clínica co­mum.

Quando o estado crítico da psicose pode permitir a adesão da transferência a um analista, não é necessário e nem desejável que o sujeito seja acolhido na instituição. O tratamento da psicose não exige automaticamente uma estrutura coletiva de resposta. Muitas vezes, o sujeito se arranja para criar, ele mesmo, uma pequena instituição em torno dele mesmo, com várias pessoas que inter­vêm. Assim, quando o tratamento da psicose pode aderir ao ana­lista, a resposta institucional não é necessária. Mas, a clínica, às vezes, exige uma estrutura coletiva de resposta. É a clínica que exige respostas que não podem ser dadas por um só. Trata-se, en­tão, de saber se a psicanálise pode orientar uma prática que pode não ser a de um só, nem de um só momento do dia. Isso porque a agitação, a injúria, a crise epileptiforme, a briga, a interpretação persecutória de um gesto não esperam a entrevista do dia seguinte para se produzir. Uma certa maneira de responder e de endereçar­se ao sujeito, uma certa maneira de intervir ou não, um cálculo da posição que é preciso ocupar, são exigidos em todos os momentos da permanência do paciente na instituição, sob pena de tornar-se isso difícil para os outros ou insuportável para o sujeito. A ques­tão, então, é saber se nós podemos orientar uma prática que não é de um só e que não se limita a certos momentos de um dia. O acolhimento institucional não está limitado no tempo e nem a uma

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só pessoa. Tomemos o caso do adolescente que tem uma faca e não quer

abandoná-la, mas a equipe teme que ele possa se ferir ou ferir os outros. É preciso tomar uma posição diante disso e essa tomada de posição pode ser feita por qualquer um dos membros do coletivo institucional . É preciso encontrar uma resposta. Então, a resposta, neste caso, foi a de propor ao adolescente guardar a faca dentro de uma caixa fechada com chave e que a caixa fosse colocada no escritório da diretora, que era a única a ter a chave da caixa. Isso é uma historinha que permitiu ao sujeito separar-se da faca sem perdê­la e de não continuar a se constituir em perigo para os outros.

Se uma pessoa que mora na instituição vem se queixar que os outros o agridem, acusando-o de ser um ladrão, ele vem pedir que todos os que o chamam de ladrão sejam afastados da instituição. Não se trata de dizer a ele que, de fato, ele entra nos quartos para pegar cigarros dos outros. Primeiro, é melhor acolhê-lo com o seu protesto, por exemplo, por uma declaração de ordem geral que reconheça sua posição, dizendo que as agressões verbais não são permitidas nessa casa. É uma maneira inicial de acolhê-lo com o seu protesto. Antes de evocar as outras disposições relativas aos quartos, não se trata de discutir com ele para dizer-lhe que talvez os outros tenham razão. Trata-se, sobretudo, de presentificar um Outro no qual ele tem um lugar, que o acolhe enquanto mestre, como alguem que tem razão, por uma declaração do tipo geral, universal , antes de se colocar numa relação dual com ele. São ti­pos de intervenção que todos os membros do coletivo podem ser levados a fazer. Não são reservadas a um ou outro ou a algum momento do dia. É a natureza mesma da clínica, acolhida na insti­tuição, que exige uma resposta comum, uma resposta da qual cada um pode ser o vetor.

Se levamos em conta que a motivação de instituição é a clíni­ca, a questão não é mais entre a psicanálise e a instituição, mas da relação entre a clínica e a instituição e, no centro dessa clínica, a

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Psicanálise e Instituição - A Segunda Clínica de Lacan

clínica da psicose. Ou, como dizia Lacan no fechamento das Jor­nadas sobre as Psicoses das Crianças, a questão de uma instituição que esteja realmente em relação com a psicose. A primeira trans­formação da questão não é a psicanálise e a instituição, mas clíni­ca e instituição e a segunda transformação da questão, não é psi­canálise e instituição, mas a questão da psicose e da psicanálise, que dá valor a um segundo tempo do ensino de Lacan.

Passo a uma segunda parte. Podemos dizer que o primeiro tempo do ensino de Lacan consistia em considerar a psicose prin­cipalmente e essencialmente em termos de déficit. Partia da neu­rose e aplicava às psicoses a psicanálise elaborada a partir do tra­tamento dos neuróticos. Enquanto que um segundo momento do ensino de Lacan consiste antes em aplicar a psicose à psicanálise, impondo uma reviravolta conceitual, modificações teóricas e consequências práticas, passando então, da aplicação da psicaná­lise à psicose à aplicação da psicose à psicanálise. Nós passamos de urn.Aclínica que importava, para o dispositivo institucional, a prática da psicanálise como praticada na cura dos neuróticos, seja para praticá-la só, seja para aplicar as categorias da cura dos neu­róticos à instituição. Então, passamos de uma aproximação tera­pêutica a uma aproximação que eu diria ser mais didática para nós. É a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar.

Colocar-nos numa posição de aprendizagem em relação à clí­nica, posição de aprendizagem na qual nos coloca a psicose, mas também o segundo tempo do ensino de Lacan, o segundo tempo relativo à teoria das psicoses, tem uma primeira consequência so­bre a estrutura da própria equipe, porque ela leva a uma desierarquização do saber prévio. Diante de tudo que temos para aprender, o saber constituído, os títulos, os diplomas, tudo isso vai ser fortemente relativizado nessa posição de pesquisa, de estudo,

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de questionamento. Essa posição tem a imensa vantagem de con­tribuir para dissipar os efeitos imaginários que comporta toda hie­rarquia do saber, em proveito de uma comunidade de trabalho en­tre praticantes, trabalhadores, alunos da clínica. Estar entre traba­lhadores, em uma posição não hierárquica em relação ao saber, repercute-se em uma divisão de uma mesma responsabilidade. A libido da equipe investe-se em colocar hipóteses em comum e dis­cuti-las quanto à estratégia a adotar, em relação à análise do que teve algum efeito antes, em vez de investir em questões de prerro­gativas.

Em segundo lugar, que é o mais importante, este ,esvazia­mento de saber prévio redobra a dispersão natural do sujeito su­posto saber, a dispersão do suposto saber que está implicada num trabalho feito por muitos. Então, o fato de estar trabalhando com muitos já dispersa o sujeito suposto saber e essa dispersão é redo­brada pelo fato de que estamos numa posição de aprendizagem. Essa posição de um sujeito suposto não saber é uma posição favo­rável para encontrar um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é endereçado enigmati­camente. É uma posição favorável para encontrar esse sujeito, sem alimentar uma posição intrusiva, persecutória de transferência.

Então, a inclusão da clínica nos fundamentos da instituição, e sua repercussão sobre a estrutura da equipe comporta, desde já, uma condição de tratamento que é adequada à posição subjetiva que ela acolhe. Ela nos permite saber não saber de uma boa ma­neira no acolhimento dos sujeitos e é por isso que ela tem uma virtude de apaziguamento para o sujeito neurótico. Mas, quando se trata das psicoses, essa significação do saber se liga à existência mesma do sujeito, porque na psicose o saber não é suposto, mas realizado pelo próprio sujeito, que é a referência, o gozo desse saber. É por isso que quando o Outro se apresenta como o Outro do saber, ele pode ser encontrado sob uma forma erotomaníaca ou persecutória. Enquanto que a posição do sujeito suposto não saber

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Psicanálise e Instituição - A Segunda Clínica de wcan

deixa principalmente ao sujeito a iniciativa de saber. Um jovem tem uma verdadeira paixão pelo Pink Floyd, que

vem provavelmente do seu pai. Ele grava todos os discos, ele imi­ta os gestos do baterista, mas desenvolve também, em torno de tudo isso, uma interpretação delirante e uma grande agitação. De­vemos encoraja-lo nessa via aumentando, por exemplo, as ocasi­ões em que ele pode escutar essa música, participar de concertos, enquanto que quando lhe colocamos a questão: "você vai mexer com música mais tarde, por exemplo, profissionalmente?" ele res­ponde: "é preciso que eu faça meu negócio de ônibus, de carro." Quem sabe se nessa história devemos encorajar a interpretação delirante ou levar em conta o que ele diz a propósito desses ôni­bus? Ficamos sabendo, com efeito, que ele conhece toda a carto­grafia da região, as distâncias em quilômetros, as estradas. É ele que organiza os itinerários das excursões. É uma via menos se­mântica na relação com a linguagem, do que a via das interpreta­ções e de todo o discurso que ele pode ter sobre Pink Floyd. Como acompanhá-lo? Como orientar nosso acompanhamento? Eis aí um tipo de problema que pode animar um trabalho em comum de uma equipe, mas cuja orientação vai ser diferente segundo o ponto de gravidade do saber, isto é, seja ele colocado do lado do sujeito ou do lado do técnico. Se nós consideramos que há algo para desen­volver do lado da apresentação, é porque nós pensamos nas suas relações com seu pai. Nós mesmos é que desenvolvemos toda uma explicação e uma interpretação, enquanto que o sujeito, quando nós lhe colocamos a questão, vem nos falar de todas estas históri­as de geografia. Se colocamos a ênfase sobre o saber da equipe, podemos ser tentados a encorajar a primeira via, a da música. Se, ao contrário, deixamos ao sujeito a chance de inventar esse seu próprio trajeto, mesmo se isso parece ter pouco sentido para nós, talvez essa segunda via seja mais conforme com o tratamento da psicose, inerente à própria psicose.

A primeira condição deste acolhimento institucional da psi-

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cose é o esvaziamento de saber, que deriva do fato de colocar a clínica em posição de mestre. E a segunda condição ligada a esta consiste num certo esvaziamento do querer ou do poder. O acolhi­mento feito por muitos da clínica é também o acolhimento de vá­rias pessoas. Nós não somos somente muitos como técnicos, mas há também muitos sujeitos acolhidos. Há o problema que nós vi­mos hoje na discussão de casos que é o problema da coabitação dos sujeitos que vivem em comum. A necessidade de uma certa regulação desta comunidade. Isso coloca o problema da regra e da lei. Da mesma forma que ao nível do saber nós operamos o esva­ziamento, como operar o esvaziamento ao nível do querer, como presentificar para o sujeito um Outro que não seja a encarnação do querer do Outro?

Um dos grandes problemas de supervisão na instituição é o problema da coabitação dos sujeitos que residem aí, o problema da violência, os roubos, os insultos, as injúrias. O sujeito não está somente diante dos técnicos, mas também diante dos outros paci­entes. A nossa posição deve ser de representantes da lei? Em um certo sentido sim, porque somos responsáveis por esses sujeitos, não temos apenas uma relação individual com cada um deles. De­vemos também garantir a coexistência de todos. A manobra con­siste em não presentificar a vontade do Outro, mas em presentificar um Outro que é ele mesmo submetido a uma lei. Não devemos ficar numa posição paterna ao considerar que nós introduzimos a dimensão da lei, mas nos mostramos nós mesmos enquanto sub­metidos à lei. É por isso que trata-se de formular as coisas de tal maneira que ela nos implique também.

Para dar um exemplo simples e banal, quando as injúrias ar­riscam produzir agressividade no outro, antes de dizer você não pode injuriar o outro devemos fo

.rmular algo que fala da regra se­

gundo a qual as injúrias não são permitidas na casa, nem para os residentes na casa nem para os membros da equipe. Um residente nos dá uma idéia disso ele mesmo, quando nos diz como ele res-

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ponde a uma acusação que lhe fazem outros residentes do lugar: a acusação sobretudo das mulheres, que o acusam de andar nu. Ele responde: "são as enfermeiras que querem me ver todo nu". O estilo de resposta que nós temos que ter nesse momento não é de proibir-lhe de andar nu, mas como ele próprio nos sugere: "nin­guém tem o direito de obrigá-lo a andar nu", que é então, de algu­ma maneira, uma forma de colocar o assento sobre o Outro que quer algo dele e em relação ao qual nós nos colocamos do seu lado. "O Outro não tem o direito de obrigar você a andar nu". Não somos nós que o proibimos de andar nu, mas nós nos colocamos do lado dele para colocar uma barra sobre o Outro. "Você pode até vestir uma calça, é melhor".

A regra que rege a vida coletiva é uma regra que se aplica inicialmente ao Outro. Um pouco da mesma maneira que os cole­gas que trabalham com crianças psicóticas podem, ocasionalmen­te, endereçar-se ao Outro para repreendê-lo porque ele está chate­ando o sujeito ou porque ele o obriga a fazer alguma coisa. A um menino chamado Dimítrio que dizia que não conseguia trabalhar, perguntamos: "Alguém te impede de trabalhar?" - "Sim". O téc­nico diz: "mostre-me esse chato". E a criança indica uma manchi­nha no chão. Então, o técnico começa a brigar com esse pontinho no chão.

Quando uma criança tem grande dificuldade para se separar da sua mãe ou da professora, é sobre esse Outro, que é a mãe ou a professora, que deve se efetuar a operação de regulação, e não sobre a criança. É o Outro que devemos regular, limitar. Então, por exemplo, uma criança que queria ir para a piscina, mas não conseguia se separar da professora. O técnico fala a um colega: "Jean François, é preciso que Danielle deixe a criança ir para a piscina". Então, Jean François diz à colega: "perfeitamente, deixe Lulu tranqui la agora" . O que permite que a criança vá tranquilamente dizendo à professora: "até logo!" É um pequeno exemplo da prática com as crianças.

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As coisas são mais complicadas quando estamos diante de pacientes adultos, quando se trata de agressões, roubos, injúrias. O importante nesses casos é considerar que nós não estamos lá para fazer respeitar a lei, mas para presentificar um Outro que res­peita a lei e está, ele mesmo, submetido à lei; que contribui para criar um esvaziamento do querer do Outro. Não personificamos um Outro que quer, mas um Outro do querer que é submetido à lei; que tem a vantagem de confrontar o sujeito não a um Outro que quer alguma coisa, mas a um Outro que está do seu lado, em relação a um Outro que não é regulado. Nós nos colocamos do lado do sujeito enquanto ele mesmo é defensor da ordem e aqui trata-se de evitar dois problemas. O problema da regra pela pró­pria regra, que deve ser mantida a todo preço, sem exceção, isso é um primeiro risco. O outro risco é o da regra terapêutica, regra que é aplicada ou não segundo o estado de saúde do sujeito, regra que decide se o sujeito é ou não responsável. Nós constatamos que o fato de considerá-lo sempre como responsável, nunca tem efeitos nefastos sobre ele. Enquanto que considerar que às vezes ele não é responsável, pode ter efeitos de desencadeamento. E quando nos colocamos do seu lado, para protegê-lo, digamos, do gozo do Ou­tro, nós o consideramos, no entanto, como responsável. O fato de adotarmos uma posição de esvaziamento do querer conceme, es­sencialmente, o Outro e não o sujeito. O sujeito permanece res­ponsável.

Eu tentei mostrar como uma certa maneira de colocar o pro­blema comporta já condições favoráveis ao tratamento. Podemos considerar que o que eu desenvolvi é, essencialmente, uma teoria da equipe. Eu coloquei a ênfase, sobretudo, sobre a comunidade dos técnicos. Uma prática feita por muitos tem por efeito, inicial­mente, tratar os efeitos imaginários próprios a todo coletivo. Cons­tituir uma comunidade de trabalho fundada na clínica não é sim­plesmente uma teoria da equipe, mas realiza condições propícias ao acompanhamento do sujeito que ela acolhe. É uma teoria da

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equipe, de como vão se colocar a trabalho, mas considera que há uma incidência sobre o tratamento, enquanto ela presentifíca o Outro, cujo saber e o poder são esvaziados. Inscrever-se nessa prá­tica feita por muitos pode ser para o analista uma ocasião mais eficaz de transmissão da operação freudiana na clínica do que se ele passar seu tempo reivindicando sua especialidade. O desejo do analista não está limitado ao tratamento, à cura analítica. O desejo do analista é também um dever em relação à própria psicanálise. É por isso que eu penso que a questão psicanálise e instituição é menos a questão da prática do analista, do que a questão da trans­missão da psicanálise. Espero ter-lhes dado algumas indicações para o debate do qual vocês vão participar agora. Obrigado

Discussão:

Cezar Rodrigues Campos: Essa posição de debatedor com­porta várias questões. Eu vou escolher iniciar o debate com uma ou duas questões. Primeiro eu queria ressaltar a importância des­sas conferências para as nossas práticas no serviço público, dizen­do que concordo com essa terceira via e a questão da função social e da função clínica da instituição.

No nosso meio, a função social das instituições, historica­mente, funcionou como impossibilitadora da clínica, dessa clínica que Zenoni está propondo e que nós estamos experimentando na cidade de Belo Horizonte, há alguns anos. A função social de aco­lhimento, de suporte para a clínica em situações críticas e insupor­táveis para o sujeito, no nosso entender, dentro da nossa história, da nossa cidade, do nosso país, não ocorre espontaneamente e nem por ação de uma filtragem; produzindo o discurso analítico, pro­duzindo um tipo de instituição. Nós tivemos que fazer uma desconstrução desse tipo de instituição, não para suprimí-la, por­que nós sabemos e concordamos que ela, nesses momentos críti-

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cos, insuportáveis para os sujeitos, é a única opção. A instituição tem uma função social. Nós não tentamos e nem advogamos isso, a supressão da instituição. Nós estamos trabalhando para suprimir uma instituição com uma determinada lógica que não permite a realização dessa clínica. O nosso trabalho tem sido a desmontagem dessa instituição prescrita pela nossa formação social, que tem se revelado muito mais discriminadora e produtora de exclusão do que de efeitos clínicos. Nós temos trabalhado no sentido de des­montar essas instituições e construir exatamente uma instituição que cumpra essa função social de abrigamento, de acolhimento e de suporte para essas situações críticas do sujeito num momento que ele não suporta. Esse tem sido o nosso trabalho. No nosso país, no nosso estadb, na nossa cidade, a gente tem feito isso e tem tentado construir uma rede de serviços no campo da saúde mental na cidade de Belo Horizonte, cujos dispositivos cumpram deter­minadas funções nos diversos momentos da clínica, principalmente na clínica da psicose, mas também na clínica das outras demandas que aparecem no campo da saúde mental. A pergunta que eu faço é como isso ocorreu numa Bélgica, se o senhor se refere à constru­ção desse tipo de clínica na cidade da Bélgica, ou num setor, ou num serviço e o que o senhor acha da possibilidade de nós fazer­mos isso. Essa é uma primeira pergunta.

A segunda pergunta é, eu concordo plenamente com essa posição nossa de alunos da psicose. Acho que a psicose é total­mente inesperada, não existe um saber que recobre a psicose. Ela está permanentemente a nos ensinar coisas. A pergunta vem a res­peito do coletivo. Fico surpreso, de uma forma satisfatória, com essa abordagem do coletivo, da equipe, a questão da desierarquização, a retirada da hierarquia do saber prévio. Isso é importantíssimo, é isso que temos feito como estratégia para que possamos construir um tipo de clínica. Isso é indispensável, essa estratégia do acolhimento. Eu acho que realmente é o caminho para se começar a construir qualquer caso clínico. Eu queria per-

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guntar o seguinte: eu entendi que na instituição, no trabalho cole­tivo, a equipe vai estar numa posição em que vai operar na disper­são do sujeito suposto saber à enésima potência. Como é que fica a questão da escuta individual? Ela é indispensável ou ela existe para marcar uma posição para continuar posteriormente, mesmo que ela não tenha um efeito? Se o enfoque é dado na abordagem de cada membro da equipe, como fica essa questão da abordagem individual, ela deve existir ou ela é dispensada nesse momento para ser retomada em outro momento? Deve existir para marcar esse lugar, essa função, para dar um certa articulação às diversas ações que acontecem? Enfim, como fica essa questão da referên­cia individual, da referência da escuta individual? São essas duas questões que eu queria colocar para o professor para iniciar o de­bate. Obrigado.

Alfredo Zenoni: A primeira questão é sobre a maneira como essas mudanças foram feitas na Bélgica. Existe uma tradição que remonta aos anos 50. Primeiro, a criação de setores psiquiátricos e nos anos sessenta começou-se a criar, sobretudo na capital, estru­turas residenciais extra-hospitalares, comunidades de vinte a vinte e cinco residentes (moradores); mais tarde, apartamentos supervi­sionados, uma situação relativamente privilegiada. Mesmo na Fran­ça não há um equivalente disso. Na França, sobretudo, foram de­senvolvidos os setores. As estruturas residenciais custam mais, mas eu creio que elas são indispensáveis para conciliar as duas fun­ções, a função social da instituição e a função do tratamento. O risco da instituição clássica que provocou sua desconstrução e destruição na Itália é a dessocialização, a segregação, onde os pa­cientes terminam sendo habitantes de uma estrutura à parte. Me parece que o que não foi feito na Itália, por razões ideológicas, ideológicas no que conceme à doença mental, foi levar em conta a função social da instituição. Eles somente consideraram a função terapêutica e eles constataram que ela não era terapêutica. Eles

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fecharam os hospitais sem perceber que havia uma outra função que não era encampada por uma outra estrutura residencial. Eu creio que quando criticaram a instituição psiquiátrica como um lugar de alienação e até de tortura não se viu que isso era devido à identidade grande demais da função terapêutica com a instituição. Quando vemos a instituição na sua função terapêutica unicamen­te, há dois riscos: primeiro suprimi-Ia porque ela não é terapêuti­ca, porque os psicóticos continuam a ser psicóticos. Então, supri­mimos a instituição, colocamos os pacientes fora e supomos que eles não vão mais ser alienados. Esse é o primeiro risco, que é a supressão da instituição. O segundo risco é manter o sujeito o tempo todo na instituição porque ele não se cura. Nós tomamos apenas o ponto de vista da cura. Ou a suprimimos, ou a mantemos indefini­damente. Por isso eu coloquei a ênfase na função social, não para eliminar a função terapêutica, mas para separá-Ias. A instituição pode ter uma função social, mesmo que ela não cure e, mesmo se distinguimos as duas funções, nós podemos garantir a função tera­pêutica. É preciso distinguir a dimensão do sujeito e a dimensão do cidadão, do indivíduo, que tem direito a assistência e ajuda. A dimensão do sujeito é a dimensão da implicação, da liberdade, da responsabilidade. Os cuidados não são recusados a um indivíduo, mesmo que o sujeito não se implique. São dois planos diferentes e quando distinguimos os dois planos, guardamos a chance do pla­no do sujeito. Se oferecemos a assistência e o acolhimento em troca de psicoterapia e o sujeito aceita o tratamento, será um trata­mento pró-forma, um tratamento no qual o sujeito não se implica. É preciso que o sujeito tenha a assistência à qual ele tem direito, com a liberdade de recusar o tratamento. É somente essa liberdade que garante essa possibilidade. É como quando, por exemplo, só libera-se um sujeito da prisão se ele fizer uma psicoterapia. É muito ambíguo. Isso compromete a possibilidade do sujeito se engajar. É importante distinguir a dimensão social e a dimensão terapêuti­ca. Essa distinção só é possível se colocamos, no ponto de partida,

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a clínica. A causa pela qual os sujeitos estão na instituição, antes do quê, para quê, com vistas a quê eles estão na instituição. As estruturas residenciais abertas criadas na Bélgica permitem isso. O sujeito pode ser acolhido sem ser obrigado a fazer um tratamen­to. Esse tratamento é deixado como uma opção para o sujeito. Mas essa liberdade dada ao sujeito j á tem efeitos terapêuticos.

A segunda questão é sobre a escuta individual. A dimensão da comunidade de trabalho assegura as condições necessárias para o tratamento. Mas as condições necessárias não são as condições suficientes. A dimensão coletiva é sobretudo sensível na prática com as crianças. Com as crianças é preciso estar sempre presente, é preciso ser inter-cambiável e não se pode ficar sozinho com uma comunidade de crianças. Mesmo com os adultos, a estrutura da comunidade de trabalho é necessária em uma instituição, mas não suficiente. Este é um aspecto que eu não desenvolvi hoje, aquele da escolha individual, que, segundo as instituições, se faz de ma­neira diferente. Em algumas instituições, é o paciente que escolhe o interlocutor e, em outras, é a equipe que designa o interlocutor. Na instituição em que eu trabalho, nós deixamos o paciente esco­lher o seu interlocutor na comunidade. É uma escolha que pode, aliás, ser plural. Ele pode escolher um membro da equipe como referência.

Outra questão é: todos tem formação analítica? Não obriga­toriamente. É pela transferência de trabalho que livremente os di­ferentes membros da equipe se tomam alunos da clínica, estudio­sos da clínica e num terceiro tempo, podem entrar em análise. Mas não é obrigatório. O essencial é que haja responsabilidade de cada um no acolhimento da clínica e na elaboração de uma estratégia. Acontece também que sujeitos se enderecem a algum técnico que está em formação analítica.

Pergunta inaudível

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Alfredo Zenoni: Trabalhamos em uma associação que se cha­ma A Equipe. Há cinco estruturas: duas residenciais e três de hos­pital-dia. Eu sou o terapeuta responsável de uma das estruturas residenciais que se chama Le Foyer. Mas em Bruxelas há cinco comunidades terapêuticas. É excepcional, mesmo na Europa. Na Holanda há também muitas estruturas residenciais.

Elisa Alvarenga: É preciso lembrar que em Bruxelas há um milhão de habitantes.

Pergunta inaudível

Alfredo Zenoni: Eu dizia que o tratamento da psicose não exige, necessariamente, uma instituição, corno prova o fato de que muitos psicóticos vêm me ver no consultório. Falando com cole­gas, vemos que há cada vez mais psicóticos que vem ao consultó­rio do analista. No entanto, eu dizia que sujeitos que vêm para um tratamento com um analista, se arranjam para que isso tome a for­ma de uma instituição invisível, muitas vezes. Por exemplo, eles introduzem um segundo analista, um psiquiatra, uma assistente social, um médico, o administrador dos bens, etc. Eu faço com que todas essas pessoas terminem por constituir uma rede. O mí­nimo é um analista, um psiquiatra e um assistente social. Mas, de fato, vemos que há uma certa pluralização do endereçamento do sujeito, mas não necessariamente.

Pergunta inaudível

Alfredo Zenoni: A estrutura residencial é uma estrutura fora do hospital e os pacientes vêm livremente. O princípio de receber sob a base da demanda deles, e eles têm que demandar várias ve­zes, já cria uma seleção. Há sujeitos que não querem voltar, que preferem voltar para a casa da mãe e há sujeitos que prefhem

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permanecer no hospital , porque a estrutura residencial tem movi­mento demais. Metade dos sujeitos que fazem contato não vêm de fato. Então, o fato de deixar a iniciativa para o sujeito, faz com que uma grande parte dos sujeitos acabem não vindo. Isso já, de uma certa forma, seleciona os sujeitos que vão ficar. Isso é o mais com­plicado porque, uma vez que eles passam os limites da entrada, eles ficam bem numa estrutura livre, comunitária. O problema é a saída deles. Nós estabelecemos um limite absoluto de dois anos. A metade do tempo desses dois anos é para preparar alguma coisa para depois, apartamentos, alojamentos, etc. Às vezes eles se or­ganizam a dois ou a três para alugar uma casa ou um apartamento, mas há uns 20% talvez que não conseguem sair e acabam voltan­do ao hospital.

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A Clínica Da Psicose: O Trabalho Feito Por Muitos

Na conferência de ontem à noite eu evoquei uma reviravolta na teoria das psicoses em Lacan, a mudança que consistia em in­verter a aplicação da psicanálise à psicose, mudando para a aplica­ção da psicose à psicanálise. É uma mudança teórica e clínica ra­dical, a partir do momento que Lacan considera o fato de que existam posições subjetivas que podem dispensar o Nome do Pai. Isso implica que o Nome do Pai não esteja automaticamente ins­crito no significante, que a estrutura do Outro pode ser concebida sem o Nome do Pai.

A partir dessa nova concepção, o estatuto da psicose muda. Enquanto que, num primeiro tempo do ensino de Lacan, a psicose era concebida como uma falta de neurose, no segundo tempo do ensino de Lacan, a neurose, ela mesma, aparece como uma estru­tura artificial, ao mesmo título que a psicose, em relação a uma falta no simbólico, nele mesmo, no próprio simbólico. Nós passa­mos de uma perspectiva em que a neurose e a psicose eram estrita­mente opostas, a uma perspectiva que as coloca um pouco mais em continuidade em relação a alguma coisa. Um ponto na estrutu-

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ra que é comum a todos os seres falantes e que é essa ausência de um significante último, de uma garantia do Outro e de uma reabsorção completa do gozo no simbólico. Há sempre, para todos os seres falantes, um gozo que permanece, que não é totalmente simbolizado. Para todo sujeito há um confronto com um ponto do significante, um ponto da linguagem onde o significante não corresponde a uma significação, onde o significante é enigmático. Essa falta ou esse distúrbio no Outro é um distúrbio ao qual todos os seres falantes estão confrontados.

A primeira perspectiva clínica que se destaca das teorias das psicoses, em Lacan, é uma perspectiva de oposição binária. A dis­tinção entre a neurose e a psicose se faz sob a base da presença ou ausência do significante do Nome do Pai, no plano da estrutura. No plano dos fenômenos clínicos, igualmente em termos de pre­sença ou ausência dessa insígnia. Por exemplo, o neologismo, como fenômeno típico da psicose, em oposição a ausência de neologis­mo, que caracterizaria a neurose; presença ou ausência de um de­terminado fenômeno. Na segunda perspectiva teórica de Lacan o esquema muda. Colocamos aqui em evidência o que há de comum a todas as estruturas subjetivas, ou seja, essa falta no Outro, que é, em resumo, o problema ao qual cada ser falante está confrontado porque a linguagem não pode dizer tudo, a linguagem não pode seguir com o sujeito até o momento de seu ato, da sua responsabi­lidade. Há sempre um momento de enigma, de incompletude do Outro.

Agora, o Nome do Pai como solução para esse problema da incompletude do Outro aparece como uma solução entre outras, para o problema da inconsistência do Outro. Mas, podem haver outras soluções para esse problema. Então, colocando em evidên­cia o que é comum às diferentes posições subjetivas, relativizamos também a presença ou ausência de fenômenos que manifestam estas posições subjetivas. Nós estamos menos diante de oposições de presença ou ausência de fenômenos, do que diante de fenôme-

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nos semelhantes, fenômenos que se diferenciam entre si como modalidades da mesma coisa. Por um lado, temos a relativização de uma solução neurótica, mas, do outro lado, estamos diante de uma clínica mais frouxa como conseqüência do fato de que muda a concepção da estrutura do Outro.

É o que nós podemos chamar, nas nossas Seções Clínicas francofônicas, a emergência de uma clínica continuista, em oposi­ção a uma clínica binária, que deriva da primeira teoria da psicose em Lacan. Continuista porque ela acentua o que há de comum entre as estruturas e o que há de próximo entre os fenômenos. Esta colocação em continuidade tem uma vantagem e um inconvenien­te. A vantagem é de afastar, de uma vez por todas, a noção da psicose como uma deficiência. Na primeira concepção de Lacan, nós podemos ainda deduzir uma teoria da psicose como falta do que define a neurose, e considerá-la essencialmente em termos de déficit. Com essa nova concepção continuista temos uma espécie de desierarquização diagnóstica. Não que o diagnóstico da psico­se seja mais grave que o diagnóstico da neurose, mas que esteja em pé de igualdade com a neurose. Neurose, psicose e perversão estão em continuidade, em oposição, por exemplo, à demência e aos problemas neurológicos. A psicose se encontra antes do mes­mo lado da neurose, antes do que do lado das demências, como era antigamente a tendência a considerá-la. Ainda com relação às primeiras teorias da psicose, quando a psicose é concebida essen­cialmente em termos de déficit, nós somos espontaneamente leva­dos a assimilá-la a uma demência.

Enquanto a operação freudiana e lacaniana, renovada pelo segundo tempo do ensino de Lacan, consiste em fazer valer o pa­rentesco entre a neurose, a psicose e a perversão, distinguindo-as de todos os problemas de ordem orgânica. Isso tem um efeito anti­segregação porque, no que concerne à posição subjetiva do psicótico, isso consiste em mostrar que a psicose é um destino subjetivo, positivo, entre outros, em oposição ao que seria uma

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concepção da psicose como ausência do sujeito. Essa é a vanta­gem clínica dessa continuidade. O inconveniente, mesmo se não é inconveniente, é o inconveniente na primeira abordagem desta con­tinuidade. Ela produz uma descontinuidade entre as estruturas e os fenômenos. Isto é, nós não estamos mais diante de fenômenos típicos. Quanto mais nos colocamos do lado da continuidade entre as estruturas, menos estamos diante de sintomas específicos de uma determinada estrutura. Estamos antes diante de fenômenos comuns a todas as estruturas e que se distinguem, entre eles, uni­camente por nuanças, o que nos obriga a um trabalho de logificação muito maior, para poder repartir os fenômenos, segundo as estru­turas subjetivas. O inconveniente desta maior continuidade é nos dar mais trabalho.

Uma conseqüência dessa nova clínica é também de relativizar as relações entre as psicoses e os fenômenos típicos que as defi­nem e que estão ligados ao que nós chamamos de desencadeamento da psicose, que são fenômenos essencialmente de distúrbios da linguagem e delírio. Temos então a psicose em um laço menos estreito a esses fenômenos típicos, os fenômenos típicos do desencadeamento. Nessa segunda clínica a psicose será abordada, portanto, a partir de fenômenos que ela tem em comum com ou­tras estruturas clínicas.

Tomemos, por exemplo, a queixa que um sujeito pode ter de se sentir excluído. Isso pode ser o caso, por exemplo, de uma po­sição histérica. O sujeito histérico vem com um sentimento de nun­ca estar no seu lugar e mesmo de ter u'mteerto gosto de nunca estar no seu lugar. Para não se sentir preso numa definição, faz greve do significante mestre, diz Lacan. Ele não está nunca onde ele está. Ele está sempre com o sentimento de estar excluído do seu lugar, de ser inclassificável, de não estar na sua classe; é como um arqui­vo que não está no seu lugar. É uma maneira de não estar aí. Há um sentimento na significação de exclusão, que é próprio ao sujei­to como tal. O sujeito, enquanto ele é distinto do significante que

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o identifica, o sujeito é sempre de alguma forma, menos Um, me­nos o Um que o identifica.

Mas, o sujeito obsessivo pode vir se queixar e testemunhar essa exclusão sob uma outra forma, diferente da do sujeito histéri­co. É antes sob a forma de uma prisão voluntária. É o sujeito que se fecha num lugar que ele constrói para ele mesmo, para se prote­ger da intrusão do Outro. Para não ser prisioneiro do Outro, ele tem o sentimento de ser prisioneiro de si mesmo e é, por isso, que ele goza, antes de tudo, de sua solidão e que ele pode ter o senti­mento de viver uma vida que não é muito viva. Ele também tem o sentimento de estar excluído, mas sob o modo da auto-proteção, enquanto que no sujeito histérico é antes sob o modo do desapare­cimento, da evanecência.

Bom, o sujeito psicótico também pode investir na significa­ção da exclusão, significação de estar à parte, de ser excepcional. Então, pode estar diante da hostilidade de todo mundo, sentir-se perseguido e, no entanto, prometido a um destino excepcional . Ele também pode se queixar de não estar incluído no conjunto dos outros, mas esta não inclusão é, ao mesmo tempo, o que ele reivin­dica como destino excepcional .

Em seguida a uma profunda decepção amorosa, um homem de trinta anos, que nós vamos chamar de Giovani, apresenta-se no serviço de saúde mental para pedir ajuda. Seu estado de espírito habitual é de depressão, diz ele, e por isso ele se encontra freqüentemente só, como um marciano contra todo mundo. Desde o final de seus estudos universitários, ele leva a vida com uma atitude de inacessibilidade que o leva também a uma rigidez da qual ele se queixa, mas que lhe permite manter os outros à distân­cia. Ele se considera um grande observador ao mesmo tempo que ele se sente constantemente observado, como se estivesse sempre passando por uma prova. "A responsabilidade, isso me mata". Fa­lando da sua vida amorosa, Giovani diz que as mulheres o fasci­nam, e que ele as considera como uma outra espécie. Seu olhar vai

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sempre em direção a elas, não sem angústia, desde a sua mais tenra infância. O sexo, como instinto animal, como ele diz, nunca deixa o seu pensamento, ao ponto que ele se considera um viciado do sexo.

Nesse caso, considerando o que j á foi dito até aqui, estamos diante de uma mortificação obsessiva, na qual o sexual faz irrupção no pensamento sob a forma de tentações, obsessões, de uma infa­tigável verificação fálica, ou estamos diante de um sujeito que não pode estar separado do seu ser de objeto? É um sujeito para o qual o gozo faz retomo no real. Giovani diz que ele se sente olhado, observado pelas mulheres. Ele diz que é sedutor e um belo ho­mem. Ele se considera um objeto sexual para as mulheres, mas desde a sua última experiência amorosa, ele evita as mulheres, ele tem ressentimentos contra todo o gênero feminino e quando uma mulher se aproxima dele, ele se angustia, sente alguma coisa físi­ca, um buraco no peito, se sente muito vulnerável e, ao mesmo tempo, o seu ressentimento lhe dá vontade de esmagar as mulhe­res, como se elas fossem baratas, sobretudo as que querem se mis­turar à vida dele, entrar na vida dele.

O primeiro encontro com uma mulher data da sua infância. Ele tinha sete anos e encontrou, durante as férias, uma menininha que tinha um ano a mais do que ele. Ele não fez nada, foi ela que o tocou, o abraçou e o beijou. Ele vai dizer a propósito de suas lem­branças: "foi como uma vertigem ou como uma náusea que a gen­te sente no mar". Ele perdeu de vista o mundo e foi justamente nesta época que começaram a se manifestar crises que foram con­sideradas epilépticas, mas que não eram constituídas por convul­sões. Eram antes momentos de áurea, de perda de consciência, durante os quais ele ficava rígido, imóvel, sem palavras, uma ma­neira de se deixar cair que deve ser colocada em relação à imagem do corpo e que lembra o que Lacan diz a propósito de um episódio da adolescência de Joyce, quando este foi surrado por seus com­panheiros, em que ele diz que não sentiu nada e que o seu corpo

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tinha se soltado dele como a casca de uma fruta. O episódio que Giovani evoca de sua infância, é o testemunho desse desenovelamento, desse destacamento da imagem do corpo e do real do corpo. E ele dirá que, na escola, durante o recreio, ele não sabia se defender das crueldades das outras crianças.

Vou um pouco mais rápido porque aqui há outro aspecto da construção da sua vida, que ele faz. Ele se lembra com nostalgia do período em que estava na universidade e durante o qual ele se sentia auto suficiente, porque lá só se tratava da relação entre ele e os livros, contrariamente ao que se passa no seu meio de trabalho, onde ele tem que se relacionar com os outros. A existência solitá­ria que ele leva, os diversos fracassos das tentativas de inserção profissional, não deixa menos com ele o sentimento de que ele está destinado a coisas grandes no mundo. Ele possui uma visão panorâmica das coisa que faz dele uma espécie de visionário, em­bora ele reconheça que é míope para os seus próprios erros. Isso dá a ele o sentimento de estar rodeado por seres inúteis ou de estar sendo dirigido por incompetentes.

Eis aí um tipo de encontro que pode acontecer conosco tanto num centro de saúde mental quanto no consultório de um psicana­lista, no qual nós podemos estar diante de fenômenos que podem ser conforme as nuanças, que podem ser testemunho de uma posi­ção subjetiva ou de uma outra. Não poderíamos supor que nesse sujeito o registro imaginário, do qual testemunha o seu narcisismo, essa alta concepção que ele tem de si mesmo, vem se enovelar ao real do gozo, se ligar ao real do gozo, sem poder se apoiar sobre o artifício do Nome do Pai, que permitiria, então, uma negativação desse gozo? Tanto que nós temos a impressão que, para ele, o gozo retoma no real, como uma sensação na relação com as mulheres, uma angústia, e esse ponto de incapacidade do qual testemunha esse seu primeiro encontro infantil com essa menininha.

Não vou continuar relatando essa observação, eu a utilizei apenas para evocar um tipo de encontro em que os fenômenos

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podem se distribuir numa estrutura ou em outra, sem que nós te­nhamos, para nos apoiar, a presença ou ausência de fenômenos típicos. Alguns sujeitos vêm, por exemplo, se queixar de pensa­mentos compulsivos. Um sujeito vem se queixar que ele tem o tempo todo a idéia de cortar os seus cabelos, de raspar sua cabeça, de cortar o seu pescoço, de furar seu próprio corpo, de furar seus olhos. Então, por isso ele tem fobia de tudo que tem ponta, tudo que corta. Será que devemos situar esses pensamentos, esses me­dos fóbicos do lado do neurótico ou do lado de uma impulsão, furar os olhos, cortar o pescoço, quer dizer, atingir a si mesmo na própria vida? Devemos tomar isso como uma tentativa de realizar uma castração no real, tentativa de simbolizar a carne, mas com meios reais? O que nos orienta mais no lado da hipótese da psico­se é a frase que ele diz, em determinado momento: "é como se a idéia de ser criminoso de mim mesmo, de fazer um crime contra mim mesmo, me fosse mais suportável do que a idéia de fazer um crime contra um outro", que fala de alguma coisa da ordem de uma passagem ao ato, do assassinato, enquanto o retorno no real de uma castração, uma negativação que não pode se realizar sim­bolicamente.

Muitos sujeitos vêm, seja para se queixar, seja para expor, para falar de uma tendência homossexual, do medo de ser homos­sexual, de práticas homossexuais, sem que nós possamos necessa­riamente atribuir essa homossexualidade a uma oposição subjeti­va mais do que a uma outra. É o próprio Lacan que nota, na "Ques­tão Preliminar", que a homossexualidade deve ser considerada como sintoma. Devemos considerá-la aí como uma tentativa do sujeito de encontrar uma solução que o leva a se colocar como objeto do Outro, objeto do Outro enquanto aquilo que tem para ele uma dimensão persecutória. Então, a homossexualidade pode ser uma espécie de conciliação com essa posição. É uma maneira de tratar uma questão que é para ele o destino de ser, de certa forma, feminilizado, diferentemente de uma sexualidade que é o desmen-

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tido ou a recusa da castração, no entanto, inscrita. Então, distin­guimos uma homossexualidade que é uma tentativa de Jetichizar a castração, de uma homossexualidade que é, ao contrário, uma ten­tativa de assumir seu ser de gozo, ao encontrar o gozo do Outro como perseguidor.

É então, uma clínica bem diferente ou um outro aspecto da clínica que nós temos, quando consideramos o que é comum a todo ser falante. Antes de partir do que se opõe à classe dos seres falantes, nós partimos do que define essa nova clínica, do que de­fine o ser falante, enquanto que a linguagem tem efeito sobre o real do corpo e introduz o que Lacan chama de uma outra satisfa­ção, um gozo além do princípio do prazer, que é também a pulsão. Então, todo ser falante, quer seja ele neurótico, psicótico ou per­verso, tem relação com uma linguagem que bate no seu corpo, que o marca, que o esvazia do seu gozo, que dá origem a outras formas de satisfação, que nós chamamos com Freud de: as pulsões. Então, com essa nova clínica, nós nos interrogamos menos sobre os fenômenos típicos, do que sobre os fenômenos que são comuns a todo ser falante, enquanto afetado pela linguagem. A grande ques­tão dessa nova clínica ou desse aspecto da clínica, é a do estatuto da pulsão. Nós estamos menos ligados aos fenômenos de lingua­gem do que às modalidades de gozo e aos diferentes estatutos da pulsão, segundo as diferentes estruturas subjetivas.

Como vocês sabem, há toda uma tradição da psicanálise que relaciona as diferentes estruturas clínicas aos diferentes estágios pulsionais. Por exemplo, a melancolia é relacionado com a pulsão oral, a neurose obsessiva com a pulsão anal, etc. A posição que nós tomamos, com Lacan e com Freud, é considerar que todas as pulsões estão em jogo em todas as estruturas clínicas e o que dife­rencia as estruturas clínicas são as modalidades da pulsão. Não se trata de opor a oralidade à analidade, como duas estruturas clíni­cas distintas, mas de opor uma forma de oralidade a uma outra forma de oralidade. Por exemplo, uma maneira de não comer a

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uma outra maneira de não comer. Uma maneira de não comer que consiste numa estratégia de insatisfação, que consiste em comer nada, como diz Lacan, a uma outra maneira de não comer, por exemplo, porque a comida está envenenada, ou de não comer por­que se sente morto. Cada vez, a pulsão oral está em jogo, mas segundo modalidades diferentes. Mas, muitas vezes, os fenôme­nos são muito próximos. Como não estamos falando de fenôme­nos típicos, devemos cada vez tentar ver qual a lógica subjetiva que está em j ogo. Esta lógica subjetiva depende essencialmente do estatuto do gozo, ou do estatuto da pulsão. Por exemplo, o fato de não comer ou de comer nada, pode ser representado por esse circuito, onde esse nada que se come, é constituído essencialmen­te por uma ausência de objeto. Lacan diz, por exemplo, que o cú­mulo da pulsão oral consiste em pedir o menu. Quando nós come­mos, enquanto seres falantes, nós comemos também uma outra satisfação que é feita da culinária, das maneiras de estar à mesa, da preparação, que é algo não substancial. Isso é a satisfação pulsional, que faz com que, quando nós comemos, nós comamos também o vazio. O que faz com que comer não seja satisfazer uma necessi­dade.

A anorexia neurótica acentua essa dimensão do vazio, talvez como defesa contra o desejo, diante de um Outro que sabe qual é o objeto que o sujeito gostaria de ter. Para defender seu desejo, o sujeito busca uma outra satisfação que é essa satisfação de comer nada. Ou a pulsão oral pode não se organizar nesse circuito. Não é um ponto que o sujeito vai contornar no campo da alimentação, que motiva seu desejo, sua atividade. Mas é o sujeito mesmo que é esse objeto, o sujeito mesmo que não está separado deste objeto e então nós estamos diante do que nós poderíamos chamar de pulsão do Outro. Nós estamos também diante da oralidade, mas é o sujei­to que, por exemplo, quando ele se olha numa vitrine, como me dizia recentemente um sujeito, tem a impressão de ver a goela de Deus que quer devorá-lo, ou então é a criança psicótica, que só

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come a beirada do biscoito porque a satisfação de comer é uma satisfação do Outro. É ele mesmo que corre o risco de ser comido pelo Outro. Então ele só come o cantinho do biscoito. É sempre a oralidade, mas sob uma outra forma fenomenológica.

Essa nova clínica é essencialmente uma clínica que trata do estatuto do gozo, das modalidades de retomo do gozo, que não se limitam aos fenômenos típicos da psicose como na alucinação au­ditiva ou nos fenômenos de linguagem. São também aspectos de retomo do gozo no corpo ou no ato, no agir. Há também retomo do gozo nos afetos e, ao mesmo tempo, essa clínica do retomo do gozo é também uma clínica que tem a vantagem de ser uma forma que o sujeito encontra de tratar o retomo do gozo. Enfim, na pri­meira clínica, que poderia ser deduzida do primeiro ensino de Lacan, nós estávamos diante das conseqüências negativas de uma falta. Nessa nova clínica das psicoses, ou simplesmente nessa clí­nica, clínica das modalidades de gozo, não estamos somente dian­te das conseqüências negativas de uma falta, mas nós estamos di­ante de soluções positivas, de invenções da parte do sujeito. Mes­mo que essas invenções possam ter um caráter dramático, elas são sempre consideradas sob um ângulo de tratamento. No limite, mesmo a auto-mutilação pode ser considerada como uma forma dramática de tratamento do gozo.

Então, o interesse prático e clínico dessa nova teoria é de nos permitir encontrar o sujeito psicótico no processo do seu auto­tratamento e de poder nos apoiar sobre o que ele próprio inventa, seja para prolongar isso, seja para deslocá-lo. Para prolongá-lo, por exemplo, no caso de Giovani, acompanhando-o na procura de uma profissão, onde ele não esteja tanto em relação com os outros, mas em relação com os livros; por exemplo, encorajando-o a en­contrar um trabalho de bibliotecário. Ele vai acabar se apaziguan­do com um trabalho de bibliotecário na Universidade. Mas quan­do estamos diante de formas de tratamento dramático, selvagens, não se trata apenas de acompanhar o sujeito, mas de se inserir no

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seu próprio tratamento para tentar transpo-lo a um plano mais da ordem do semblante, permanecendo no veio do que ele mesmo inventa. Considero que a clínica do segundo tempo do ensino de Lacan não é simplesmente uma clínica que não segrega o sujeito em classes, que opõe os positivos e os negativos, mas é uma clíni­ca que nos dá instrumentos para acompanhar o sujeito, nas elabo­rações do tratamento que ele mesmo coloca. É disso que nós va­mos falar hoje à tarde. Obrigado.

Discussão:

Francisco Paes Barreto : Dois breves comentários. Inicial­mente um comentário mais geral. Eu gostaria de situar para Zenoni duas características de Minas Gerais. A primeira é uma forte pre­sença da clínica lacaniana nos serviços públicos da rede de Saúde Mental, no tratamento de psicóticos, no tratamento de toxicôma­nos, no tratamento de crianças e de neuróticos. Esse é um primeiro aspecto. Evidentemente, tudo isso chama a atenção e coloca num primeiro plano os direitos do sujeito. Uma questão ética ligada à clínica lacaniana. Eu diria, por exemplo, com relação ao psicótico, que a presença da clínica lacaniana no serviço público vai nos lembrar a todo momento que o louco é um sujeito. Além dessa questão clínica, surgem inevitavelmente implicações políticas como, por exemplo, aquelas que têm a ver com os direitos do ci­dadão. Para nós, afirmar que o louco é um cidadão, tornou-se corolário de o louco é um sujeito. Consequentemente, nós tive­mos que assumir posições políticas e o que me interessa ressaltar aqui é que a clínica lacaniana, em Minas Gerais, estabeleceu uma aliança com a reforma psiquiátrica. Não havia outro caminho a seguir, dada a brutalidade da segregação produzida pelos asilos, pelos manicômios. A segunda característica seria essa aliança em Minas Gerais da clínica lacaniana com a ref�rma psiquiátrica. É um comentário mais geral que eu trago para o conhecimento de

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Zenoni, se ele já não sabe disso, e passo agora a um comentário mais específico, do que foi dito aqui hoje.

Zenoni nos traz de uma maneira muito feliz, muito rica, con­tribuições para um tema que é um antigo tema nosso, vamos dizer assim. Zenoni traz de uma maneira inteiramente nova, contribui­ções sobre um tema antigo. Qual é esse tema? Eu vou dizer: é o problema da descontinuidade e o problema da continuidade na clí­nica. Isso nos vem desde a velha psiquiatria clássica. Eu vou lem­brar aqui dois autores que nos são familiares: Kraepelin e Kretschmer. Kraepelin na l inha da descontinuidade e Kretschmer na linha da continuidade. Por exemplo, Kraepelin estabelecia uma oposição entre demência precoce e loucura maníaco-depressiva, haveria uma polaridade entre elas . A demência precoce seria uma entidade mórbida, a loucura maníaco-depressiva seria outra enti­dade mórbida. Estaria ai a questão da descontinuidade na psiquia­tria clássica. Já Kretschmer fala em continuidade no campo da esqui zofreni a, por exemplo . Esquizotímico, esquizóide, esquizofrênico. Fala da continuidade na psicose maníaco­depressiva, por exemplo. Ciclotímico, ciclóide e psicótico manía­co-depressivo. Mas ele vai mais além, ele coloca uma continuida­de mesmo entre esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. Ele dizia o seguinte: "não há aqui uma polaridade, há uma gradação". Diante de um psicótico, nós devemos nos perguntar até que ponto ele é esquizofrênico, até que ponto ele é maníaco-depressivo. Toda uma idéia de gradação está presente em Kretschmer. Isso continua na psicanálise. Na linha da descontinuidade eu vou citar Lacan com as estruturas clínicas. Lacan nos fala claramente que há uma demarcação entre neurose, psicose e perversão. Ele faz uma críti­ca do borderline. Sua frase "não é louco quem quer" aponta para a estrutura. Já Melaine Klein, está na linha da continuidade. Ela fala em núcleo psicótico, o nosso núcleo psicótico. Ela fala de uma continuidade, e é a partir das concepções dela que foi possível surgir o borderline. Então, nós temos, na psicanálise, de um lado

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Lacan, com a clínica da descontinuidade, das estruturas clínicas e, de outro lado, Melaine Klein com a continuidade. O que Zenoni nos traz é a última clínica de Lacan. Uma última clínica que recoloca a questão da continuidade. Lacan, na sua última clínica, na sua clínica borromeana, trazendo a questão da continuidade. Mas, e aí vem meu último comentário, não de uma maneira que signifique um abandono da antiga posição. Lacan não abandonou uma clíni­ca da descontinuidade para abraçar uma clínica da continuidade. A posição dele é mais complexa. A nova clínica de Lacan não exclui a antiga. A clínica borromeana que é, nesse aspecto, uma clínica da continuidade, não abole a velha clínica lacaniana das estrutu­ras. Como é possível isso? Como é possível evoluir para uma clí­nica da continuidade, sem abolir uma posição anterior da descontinuidade? Miller faz uma colocação que eu acho muito fe­liz. Ele situa a nova clínica através de uma lembrança de Leibniz. Leibniz estabelece uma oposição, uma polarização entre repouso e movimento, para mais adiante dizer que o repouso é um estado particular do movimento. Em Leibniz nós temos, de maneira rigo­rosa, como é que a descontinuidade pode conviver com a conti­nuidade, sem haver uma exclusão mútua. Através desta lembran­ça, eu encerro o meu comentário, agradecendo mais uma vez a Zenoni e passando adiante.

Alfredo Zenoni: Eu gostaria de dar uma resposta ao comen­tário de meu colega. De fato, uma leitura unilateral dessa clínica do último ensino de Lacan pode acontecer no sentido de tomar caduca a primeira clínica, de relativizar a tripartição clássica: neu­rose, psicose, perversão. Eu queria dizer que não é essa tripartição que é relativizada. O que é relativizado é a relação entre uma es­trutura clínica e os fenômenos. São os fenômenos que são destipificados. A colocação em continuidade das três estruturas não é uma abolição da diferença entre elas, mas uma relativa abo­lição das estruturas e fenômenos patognomônicos. A conseqüên-

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cia disso é que nos exige um maior labor de construção. A clínica não consiste simplesmente em aplicar uma lista de sintomas pré­estabelecido, mas, a cada vez, em construir uma lógica, em desta­car a convergência de fenômenos. Na clínica mais classificatória, nós opomos fenômenos típicos entre eles. Isso pode contaminar também a clínica lacaniana quando vamos, muito depressa, opon­do os fenômenos. Por exemplo, se num relato clínico há uma refe­rência à presença do pai e nós dizemos que não é psicose. Se há presença da demanda, de questão, é uma neurose. O risco de uma clínica classificatória é de conectar muito estreitamente os fenô­menos com uma determinada estrutura, porque o apelo ao pai está presente também na psicose, ao passo que a demanda é também transclínica. Diferentes estruturas se apresentam em modalidades diferentes. Então, não se trata de opor classes de fenômenos, fenô­menos típicos opostos a outros fenômenos típicos, mas de desta­car lógicas diferentes do mesmo fenômeno, por exemplo, lógicas diferentes do apelo ao pai, lógicas diferentes da castração, da pulsão, lógicas diferentes dos fenômenos de oralidade, já que a pulsão não é um fenômeno.

Elisa Alvarenga: Eu queria dar como exemplo a lembrança, que me ocorre, de um paciente que vem a um plantão do hospital psiquiátrico e que fica caindo no chão, caindo e rolando no chão. À primeira vista parece uma conversão histérica e hoje, nessa nova clínica de Lacan, essas quedas ao chão que pareciam uma conver­são histérica, seriam chamadas nessa nova clínica, de neo-conver­são. Ou seja, esse paciente terminou por fazer um quadro catatônico muito grave e foi finalmente diagnosticado como esquizofrênico catatônico. Esse paciente que no plantão parecia um histérico, fez um grave quadro de esquizofrenia catatônica. Parecia uma con­versão, mas era um fenômeno inicial da psicose que se manifesta­va daquela forma. Então, acho que isso é o que os psicanalistas estão chamando atualmente de neo-conversão. Parece uma con-

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versão histérica, mas é um fenômeno a ser considerado dentro de uma nova lógica para se pensar o diagnóstico.

Platéia: Eu queria fazer mais um comentário, ao comentário de Barreto, à conferência de ontem de Zenoni e à de hoje. Eu fi­quei muito bem impressionado com essa proposta da clínica, des­sa nova clínica. Ontem eu estava pensando, o Barreto estava ci­tando hoje a questão da aliança entre a clínica lacaniana e o movi­mento que fazemos e que chamamos, às vezes de reforma psiqui­átrica, às vezes de luta anti-manicomial. Esse movimento foi ini­ciado na terra de Zenoni, por Baságlia e aí eu chamo a atenção para aquela questão da função social da instituição. b que deve­mos à Baságlia é o fato dele ter iniciado essa questão do ponto de vista mundial. Foi o primeiro que questionou, que apontou a con­tradição da função social estar se sobrepondo sempre à função clínica, às vezes até impedindo a função clínica. Baságlia foi o primeiro a apontar essa contradição. O seu trabalho, evidentemen­te, iniciou um processo de desmontagem dessa função social que, analisada historicamente, tinha muito mais efeitos de exclusão, do que efeitos clínicos. Então, o trabalho iniciado com Baságlia é no sentido de inventar outra instituição que não capturasse essa pes­soa que nos demandava. A crítica que podemos fazer ao movi­mento italiano é que, uma vez iniciado esse processo indispensá­vel, louvável, repito que nós devemos isso a Baságlia, a clínica se perdeu. Quer dizer, não cuidaram da clínica, a clínica se disper­sou, ficou-se achando que as ações sociais pudessem resolver essa questão clínica. Aí sim houve uma segregação daquelas pessoas, principalmente dos psicóticos, ou seja, eles não tinham onde aportar porque não havia um esquema clínico que pudesse dar conta dessa abordagem. Essa que é a crítica que podemos fazer a Baságlia, a questão clínica não foi suficientemente abordada. Penso que isso é questão de tempo, alguma coisa vai acontecer, como já está acon­tecendo em Santos, que repete mais ou menos o movimento da

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Itália. Uma clínica do sujeito se impõe para que essa segregação não ocorra. Mas, todas as clínicas anteriores a essa que Zenoni está citando hoje, todas elas, contribuíram talvez involuntariamente para colocar o doente mental como um desqualificado social. A inscrição dele na cultura era de um menor, uma pessoa deficitária, uma pessoa onde falta algo, um ser humano que teve a sua estruturação deficitária. Então, a inscrição social, a inscrição cul­tural destes doentes sempre foi negativa. Acho que essa clínica que Zenoni propõe hoje possibil i ta desfazer politicamente, cultu­ralmente, esse lugar do louco como um elemento desqualificado. É a clinica positiva. O louco, dentro dessa formulação, é um batalhador, é um sujeito que trabalha para lidar com a dispersão do gozo, com as dificuldades pulsionais. Ele trabalha positivamente

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e é um trabalhador que consegue verdadeiros milagres com essa disposição, com essa estrutura que ele tem. Eu acho importante, inclusive me alonguei nesse comentário exatamente para colocar essa questão da clínica. É a primeira vez que eu vejo uma clínica que coloca o doente mental de forma positiva. É um trabalhador, uma pessoa que procura viver da melhor maneira possível, dis­pondo de diversos arranjos do gozo. Eu acho isso muito importan­te do ponto de vista clínico, muito importante do ponto de vista social e muito importante no sentido da construção de uma nova cultura; que essa diferença seja um diferença positiva.

Augusto Nunes: eu tenho só um comentário a fazer. Eu acho que deve ser ressaltado uma coisa que, através do

gozo, o que você propõe na sua colocação é um retorno radical ao conceito de pulsão. Porque se antes na primeira oposição se fazia oposição entre presença e ausência, a partir do momento que as estruturas se estabelecem, isso não se toma mais necessário. En­tão é possível fazer uma oposição mais determinada do pulsional com o que não está mais nesse campo, como as demências, os quadro orgânicos, etc. Então eu acho interessante retomar que a

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novidade é muito antiga. Já está lá nos famosos "Três ensaios" e que me agrada muito esses retornos e essas retomadas, no que poderíamos chamar uma retificação teórica cada vez mais apurada da psicanálise.

Alfredo Zenoni: Eu agradeço seu comentário que me permi­te entender um pouco melhor como no estrangeiro situa-se a figu­ra de Baságlia e a função que ele pode ter na reforma psiquiátrica, apesar da contrapartida anti-clínica. Eu vou responder também fa­zendo um comentário sobre o estudo de caso que nós fizemos on­tem de manhã. É alguma coisa que me foi sugerida pelo fato de que o diagnóstico foi mudado a partir de 1.994. Antes era psicose esquizofrênica e depois se tomou PMD uni polar. Isso me pareceu um sinal de uma mutação na clínica psiquiátrica, regressiva, se posso dizer, na medida em que os problemas do humor generaliza­dos correm um risco de levar a psicose para o lado do orgânico. Eu vejo muito, nos hospitais de Bruxelas, por exemplo, o diagnóstico de PMD estava mais presente em detrimento dos outros diagnósti­cos. Eu me pergunto se a difusão desse diagnóstico de PMD não assinala um retomo a uma clínica do déficit e nós devemos defen­der uma clínica diferencial das psicoses, no sentido que Lacan diz que a operação de Freud nesse assunto das psicoses, foi a de intro­duzir o sujeito. Me parece que defender a paranóia e a esquizofrenia contra a psicose maníaco-depressiva, para dizer as coisas um pou­co grosseiramente, é solidária de uma defesa do sujeito na clínica, mostrando que a psicose faz parte de uma posição subjetiva.

Agora, podemos dizer que o segundo e o terceiro tempo do ensino de Lacan é uma espécie de segundo retomo a Freud, ao Freud das pulsões. O primeiro retomo a Freud de Lacan é um re­tomo ao Freud das formações do inconsciente, da estrutura lin­güística da interpretação, da prática da psicanálise. O segundo re­tomo a Freud de Lacan é um retomo ao que, na própria prática da análise, há de satisfação pulsional ineliminável. Tudo na prática da psicanálise não é significante, mas era necessário que Lacan

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passasse pela estrutura lingüística para que a satisfação própria à pulsão não fosse confundida com uma satisfação do organismo, para que ela fosse, então, o que Lacan chama de outra satisfação, que está ligada ao fato de ser falante, mas que é, no entanto, uma satisfação. É de fato, um retorno à pulsão, mas a uma pulsão desbiologizada. É essa a segunda clínica de Lacan, que é mais uma clínica, ao mesmo tempo, da transferência e uma clínica do sintoma como solução. Não somente de um sintoma que deve ser decifrado, mas do sintoma como efeito de criação. Embora ainda devamos aí diferenciar a neurose e a psicose, há alguma coisa em comum às duas. Nos dois casos o sintoma aparece vindo no lugar de uma certa impossibilidade, a impossibilidade da relação sexu­al, ou a impossibilidade do Outro ser completo. Então, há uma perspectiva de continuidade entre a neurose e a psicose através do sintoma na sua relação com a pulsão.

Elisa Alvarenga: O que Zenoni está colocando é uma forma de falar da psicose estritamente dentro da causalidade psíquica. É um retorno a uma causalidade psíquica da psicose, que muitas ve­zes foi confundida com quadros orgânicos.

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A Psicose Fora do Desencadeamento

Alfredo Zenoni: Ontem nós evocamos uma manobra na trans­ferência que coloca a equipe de técnicos em uma posição em rela­ção à transferência, análoga àquela do secretário do alienado, com esse duplo esvaziamento do saber e do querer que comporta a prá­tica feita por muitos. Isso supõe se fazer de destinatário dos sinais que são endereçados. Trata-se de escolher isso mais do que aquilo. Mas, como eu dizia ontem, isso só designa a condição necessária para presentificar um Outro da transferência, que tenta não ficar preso na perseguição ou na erotomania. Essa é a condição neces­sária em relação à transferência. Mas há todo um outro aspecto do tratamento que está implicado nessa noção de secretário do alie­nado e que é a de acompanhar o trabalho que o próprio sujeito psicótico já iniciou. E aqui não é tanto a noção de interpretação que guia a prática do analista, precisamente pelas razões que aca­bamos de dizer sobre a transferência, mas antes a noção de cons­trução. No plano da interpretação, é o próprio sujeito que se ocupa disto. É toda a dimensão da linguagem que comporta a elaboração do sentido. No entanto, essa elaboração de sentido, que é a do

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tempo para compreender, tende irresistivelmente, cedo ou tarde, para um momento de conclusão, um momento de conclusão que na psicose atinge o real do sujeito. Não somente em um ato, mas em uma passagem ao ato. É por isso que no plano da elaboração do sentido, no plano da interpretação, Lacan sublinhou a anotação freudiana do trabalho de Schreber, a saber, o caráter assintótico desta elaboração. A posição do analista, em relação ao trabalho de interpretação, é, antes, negativa. É, antes, não fazê-lo, não é de encorajar essa elaboração de sentido.

Uma colega de Bordeaux notava, durante a última reunião das Seções Clínicas, que o essencial na relação com o clínico, no que conceme à interpretação, ao delírio, é que isso deve ter um caráter terceiro entre o sujeito psicótico e o clínico. É suficiente que o psicanalista fique avisado que essa elaboração de sentido pode tomar um caráter de objeto. Mas, não se trata de encorajá-la, de desenvolvê-la, porque a elaboração de saber comporta sempre deciframento, tradução, explicação. Ela pode levar a essa dimen­são de enigma, de alguma coisa que não é decifrada, que não é compreendida, que pode ter um caráter persecutório para o sujei­to, que pode levar o sujeito a se interrogar sobre o quê o psicana­lista quis lhe dizer. De maneira geral, a elaboração de saber corre sempre o risco de passar ao real para atingir um momento de con­clusão, um momento de nomeação absoluta, do ser do sujeito. Isso é muito próximo da passagem ao ato. Então, em nível da elabora­ção de saber é melhor que o clínico permaneça discreto.

Há todo um outro plano da linguagem que merece ser enco­rajado, sublinhado, que é o plano no qual o significante pode se tomar como real. Um significante não tanto enquanto ele envia a um outro significante para produzir um sentido, mas o significante isolado, de certa forma. Um significante que não reenvia a outro significante; não é um significante que coloca a questão: o que isso quer dizer? Então, é o significante no seu estatuto de letra ou de número. E aqui podemos encorajar práticas que se fazem justa-

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mente na borda do sentido, que impedem o sujeito de abordar a zona do sentido. Já em um nível muito elementar, podemos consi­derar todas as práticas que utilizam o significante enquanto ele não quer dizer nada, práticas de estudos de línguas, que estudam a gramática, a sintaxe, o dicionário, que abordam a linguagem não sob o ângulo do sentido, mas sob o ângulo da sua combinatória formal. Nesse estudo de línguas, constatamos o seu interesse para a linguagem como máquina. Então, o interesse pela informática, enquanto que isso tem o efeito de afastar o sujeito da dimensão interpretativa, o interesse pela matemática, pela lógica, é cada vez abordar a linguagem separada do sentido, separada do momento de concluir. É por isso que nas nossas instituições nós favorece­mos a introdução dos computadores. O interesse pelos jogos de linguagem, pelas palavras-cruzadas. Tudo que é combinatório na linguagem independente do sentido. Um outro aspecto da lingua­gem, enquanto separada da dimensão do sentido é justamente a linguagem enquanto escrita, enquanto letra. Os testemunhos são muitos a mostrar que o recurso ao escrito permite a um sujeito continuar um longo tratamento, sem que haja rupturas ou passa­gens ao ato. Eu mesmo recebo uma senhora, uma mulher jovem, que tinha muitas dificuldades para falar e cujo tratamento consis­tia numa constante verificação para que eu não a mandasse embo­ra. Antes de vir à sessão, ela ficava na maior angústia e ela se encontrava, depois da sessão, em um vazio insuportável . Pouco a pouco, ela mesma encontrou uma solução que consistia em vir às sessões para localizar aí a presença, mas que isso se separasse da dimensão do sentido e da interpretação. Então, ela colocava den­tro da minha caixa de correio um texto com todos os seus sonhos, cuidadosamente datilografados, endereçados ao meu nome, assi­nados pelo seu nome. Tanto que a interpretação do sentido que está presente nos sonhos, os sonhos que são, por definição, enig­mas a decifrar, encontrava-se transformada em uma espécie de poema, que ela depositava no meu consultório. Não para que eu os

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interpretasse, mas para que eles fosse depositados, guardados en­quanto escritos, reduzidos à sua letra. Nós tomamos essas referên­cias das relações do escrito com a psicose nas invenções do pró­prio sujeito psicótico, em todo caso é a hipótese de Lacan - a in­venção de uma escrita totalmente isolada do sentido. Talvez não seja justo dizer totalmente isolada do sentido. Nós poderíamos dizer até mesmo o contrário, tão cheia de sentido, que não temos mais nenhuma questão para colocar, nada mais para decifrar. É a inven­ção dessa escrita por Joyce que tenta eliminar qualquer dimensão de alusão, todo envio a outro sentido, toda a dimensão do deciframento e da interpretação, porque ele já inclui, nele mesmo, todos os deciframentos possíveis, todas as alusões possíveis. Atra­vés dessa descoberta, ele consegue se liberar do que há de amea­çador no significante, os ecos ameaçadores do enigma, colocando isso no papel sob a forma de letras, mexendo com a linguagem, quase como um objeto de arte, um objeto de arte plástica, como na colagem, como no cubismo, que faz com que o simbólico perma­neça real. Isso não é literatura. Trata-se de uma literatura da qual foi suprimido o sentido. A idéia de Lacan é que a escrita de Joyce pode dar-nos a idéia de um tratamento possível da linguagem, de tal forma que essa linguagem·não comporte mais essa dimensão persecutória, o endereçamento ao sujeito, com todo o trabalho de interpretação que arrisca retomar contra o próprio sujeito, no sen­tido de levá-lo a se engajar numa passagem ao ato. Então, a escrita de Joyce pode fornecer um modelo para práticas menos elabora­das que podem ser encorajadas na relação com o sujeito psicótico.

Por exemplo, encontramos no hospital uma jovem de vinte e oito anos que já tinha um longo passado psiquiátrico, com tentati­vas de suicídio e com marcas feitas no rosto com lâmina de barbe­ar. Ela não tem nada a dizer; ela não sabe por que faz isso. Ela só pode dizer que começou a fazer isso quando fracassou num exa­me, ao final de um curso. Um rapaz da sua classe teria zombado dela. Isso se tomou insuportável. Ela consegue, assim mesmo, con-

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tinuar seus estudos, mas as passagens ao ato se tomam tão violen­tas que ela acaba sendo hospitalizada. Fazem três anos que ela é hospitalizada constantemente. Cada vez que ela encontra alguém que zomba dela ou que ela pensa que zomba dela, ela mutila seu rosto e seu antebraço com todo tipo de instrumentos. O problema na psicose é que a inscrição da linguagem sobre o corpo, que de­termina uma perda de gozo, não se encontra localizada numa sig­nificação de perda simbólica, que é localizada no falo. Então, o sujeito psicótico deve inventar essa significação de perda e ele só pode fazê-lo com meios reais. São, de certa forma, significações de perda realizadas. É por isso que as tentativas de suicídio e as auto mutilações são freqüentes na psicose. Bem, essas passagens ao ato, de mutilação do rosto, cessaram quando essa paciente pode mostrar ao analista cadernos que guardava há dez anos. A partir do momento em que o analista acentuou essa dimensão da escrita, a paciente começou a fazer um ritual de escrita, que consistia em escrever cartas ao seu analista todas as manhãs, diante do espelho. Ela tinha sua própria imagem no espelho, mas no lugar de marcar essa imagem com marcas sobre o corpo, ela transpunha essas mar­cas sobre o papel, com as letras. Era preciso duas coisas: a ima­gem no espelho e as marcas. E com esse ritual, a passagem ao ato e as auto mutilações cessaram.

Nós encontramos sujeitos na dimensão dos quais a clínica se resume a momentos de angústia intensa, de tristeza, que se tratam com drogas ou com álcool. O problema prático desta clínica é que ela está sempre ameaçada de uma passagem ao ato suicida, com progressivas tomadas de drogas ou com auto-mutilações fatais. É por isso que, ao tratar o consumo de drogas e o consumo de álcool, isso só pode ser feito se nós encontramos um derivativo ao trata­mento do gozo pelo real, para então, evitar o tratamento do gozo no real, pelas auto-mutilações, pelas marcas sobre o corpo. Por exemplo, nós encontramos no nosso Centro uma mulher de 39 anos que foi muitas vezes hospitalizada para tratar do seu alcoo-

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Iismo. Nada havia de particular no plano clássico dos sinais de psicose a não ser que ela dizia que quando cessava de beber tinha crises de tetania, e ela sentia necessidade de cortar seus antebraços com pedaços de garrafas. Isso foi uma descoberta por parte dela, favorecida pelo fato de ela ter encontrado no hospital um homem que tinha sido pintor. Veio então, a descoberta de começar a fabri­car obras, espécies de montagens, que eram feitas com pedaços de vidros. Ela quebrava garrafas, vidros, mas desta vez para recom­por um objeto porque ela se cortava não com facas, mas com pe­daços de garrafas. Então, a descoberta dela foi a de fazer um obje­to de arte com os instrumentos mesmos com os quais ela se feria. De certa forma, era fazer uma conexão entre o real da marca com o imaginário estético e a dimensão simbólica da obra de arte, sim­bólico em nível da letra, daquilo que o simbólico tem de real. Era, de certa forma, uma estética do corpo despedaçado.

Uma outra paciente melancólica, que havia feito várias tenta­tivas de passagens ao ato suicidas, tinha tido a idéia de pegar, nas latas de lixo, todos os pedaços de vidro que ela colava depois so­bre uma superfície, para fazer disso uma espécie de espelho e ela chamava essa operação de "se recuperar pela recuperação". Era preciso que fossem coisas jogadas fora e que esse lixo fosse trans­formado em direção de uma dimensão estética, estabelecendo as­sim uma certa distância entre ela mesma e o lixo, uma espécie de exteriorização do seu ser de dejeto, que a afastava da eminência da passagem ao ato. Todas essas atividades que colocam em evidên­cia a conexão do simbólico com o real são atividades que não se situam no plano da interpretação, mas sobretudo no plano da cons­trução.

Isso permite destacar uma outra linha de prática bem diferen­te da dimensão da prática com os neuróticos. É a diferença que o nosso colega Jean Louis Gault resumia pela oposição entre trata­mento do sintoma e tratamento pelo sintoma. O tratamento do sin­toma, que iria do simbólico em direção ao real, na neurose; o tra-

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tamento pelo sintoma que não é feito por alguma coisa que se desfaz, mas por alguma coisa que se constrói. Se nós soubermos ocupar um lugar justo na transferência, se nós nos afastarmos de qualquer posição interpretativa, nós podemos acompanhar o su­jeito nas suas invenções, no sentido de tomar possível, com o laço social, mesmo que sej a sob uma forma marginal , o sintoma construído pelo próprio sujeito. O sintoma pode ser ocasionalmente também um sintoma somático, e não devemos nos precipitar a interpretar os fenômenos corporais como se fossem fenômenos interpretáveis, porque os fenômenos corporais que nós chamamos de hipocondríacos têm uma função terapêutica. Ao lado de fenô­menos corporais, nós podemos fazer de tal forma que sintomas se construam com elementos não semânticos da linguagem, que têm a mesma função que os sintomas corporais, a saber, de localização do gozo, de localização da castração real, alhures do que na vida do sujeito. É nesse sentido que eu dizia ontem que nós estamos, em relação ao trabalho dos sujeitos psicóticos, na posição de apren­dizagem, de alunos, mas com esse sujeito, nós somos também se­cretários do alienado. Essa posição de aluno deve ser uma posição de alunos ativos. Este tipo de tratamento pode se efetuar tanto no consultório do analista quanto nas instituições. O que é comum a ambos é a transposição do tratamento do gozo, do real do corpo, do real da vida ao real do simbólico, ao que o simbólico tem de real. Eis aí algumas indicações para dar um idéia do que nós pode­mos com os sujeitos psicóticos. Obrigado.

Antônio Beneti: Bom, primeiro quero agradecer a contribui­ção de Zenoni, que nos traz uma conferência extremamente rica no sentido da clínica da psicose e com um exemplo de trabalho, através de dois casos clínicos, que nos permitem pensar algo em relação à clínica da psicose. Parece que tivemos um problema, e estamos nele ainda, porque sempre que vamos falar da psicose alguma coisa do real aparece. Deus hoje resolveu fazer chover,

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com todo esse barulho. De qualquer forma, eu pude escutar alguns pontos e sobre eles eu vou me deter um pouco para colocar algu­ma coisa para Zenoni. Primeiro ponto, quando Zenoni traz a ques­tão do tratamento possível. Sobre o final do tratamento, Lacan é bastante preciso e ele diz: o osso da cura - não é com essas pala­vras, mas é assim que eu o leio - o osso do tratamento na psicose é a manobra da transferência. Colocada essa primeira questão so­bre a manobra na transferência, Zenoni nos marcou a dimensão erotômana e persecutória. Penso que uma questão que nos surge, sempre, na cura da psicose é a dimensão da passagem ao ato rela­cionada, articulada, associada à transferência, à manobra da trans­ferência e à dimensão do acting-out na psicose. Bom, Zenoni mar­cou a exclusão da dimensão da interpretação por parte do analista. Na cura da psicose, o intérprete é o sujeito psicótico. Já se coloca, então, uma questão para nós: quais seriam as manobras da transfe­rência, por parte do analista, fora do campo da palavra? Colocada essa primeira questão: que tipo de intervenções poderíamos fazer fora do campo da palavra no manejo desse vínculo?, eu iria para o segundo ponto, que seriam os lugares possíveis para o analista.

Quis Zenoni se referir à posição terceira do secretário. Eu pediria que ele fizesse uma distinção, para nós, do lugar da teste­munha e do secretário. E acho muito interessante que, na cura da psicose, não há lugar para um analista S2, mas o lugar do apren­diz, do ignorante quanto ao saber. Uma outra questão, avançando um pouco, seria a questão do analista com um certo saber fazer, um savoir faire com o sintoma psicótico. Se eu consigo escutar aqui, um saber fazer com o sintoma psicótico seria uma escuta do sujeito psicótico nas suas soluções possíveis, quer dizer, a partir das soluções possíveis que o sujeito nos traz, e aí estaríamos na dimensão das três suplências do imaginário, do simbólico e do real. Zenoni nos traz o exemplo de Joyce com a suplência no real e de Schreber com a suplência simbólica. Bom, ai uma questão que ele nos traz e que eu achei muito preciosa, seria a função do

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escrito na psicose, porque, se Joyce utiliza um caminho, através do escrito, com suas epifanias, reduzindo o significante à sua pura materialidade, à sua dimensão de letra, com toda a extração do sentido, Schreber faz o oposto, com um texto onde o ponto de basta vai se dar numa metáfora. Como é que, na cura da psicose, poderíamos introduzir, seria possível intervenções do analista no sentido de um encorajamento à escrita, em determinadas situa­ções? Ou se aguardaríamos isso como um dado que o sujeito nos traz, como no primeiro caso clínico que ele nos relatou?

Bom, colocando mais uma questão, nos casos em que estarí­amos diante de uma estrutura psicótica estabilizada, vamos dizer estabilizada com toda prudência, estabilizada pela passagem ao ato, como colocar o sujeito numa experiência pela palavra, ou seja, num dispositivo analítico? Sabemos que nessas experiências, as passagens ao ato se reduzem enquanto sua função é de moderação do gozo. Mas, o mais freqüente é que o sujeito passe ao delírio. Quais seriam as intervenções possíveis nesse percurso do sujeito na cura, que pudessem, de alguma maneira, evitar um desencadeamento? Uma questão que eu tenho me debruçado so­bre ela é a do uso de drogas e de álcool , que me parece, contemporaneamente, estaria mais excessivo por parte dos psicóticos. Poderíamos falar, em determinadas situações, da toxi­comania como uma suplência psicótica contemporânea, em certos casos, em que cumpriria uma função de estabilização nessa passa­gem ao ato de se drogar, como uma moderação do gozo, como algo da ordem do Kakon? Poderíamos pensar isso, e qual o mane­jo nessas situações? É o que eu pude escutar aqui e colocar para Zenoni .

Alfredo Zenoni: Bem, eu vou fazer mais um comentário do que uma resposta. Primeiro eu vou lembrar o que eu disse ontem. É que não toda a clínica das psicoses pode se endereçar ao analis­ta. Há estados da clínica que exigem uma resposta institucional.

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Então, a questão do tratamento com o analista se coloca quando este tratamento é possível. Isso não impede que nós possamos cons­tatar que quando um sujeito psicótico chega a estabelecer uma transferência com o analista, a necessidade das hospitalizações diminui. Mas, há mesmo, grosseiramente falando, duas categorias de psicose, como elas foram chamadas recentemente na conven­ção de Antibes, nas Seções Clínicas, na França. As psicoses ordi­nárias, que são as psicoses das quais nós falamos em Antibes e que são os psicóticos que geralmente vão procurar um analista ou um clínico. E depois as psicoses extraordinárias, como nós as chama­mos, tais como a psicose de Schreber. Podemos ter sobre a clínica das psicoses duas percepções diferentes, segundo uma abordagem da psicose do ponto de vista da c l ínica que exige uma hospitalização, ou sob a vertente da clínica que exige um trata­mento a dois. A questão que nós tentamos trabalhar é saber se há passagens possíveis de uma à outra. Do tratamento a dois ao trata­mento institucional e inversamente. Hoje, e em outros contextos, isso foi possível, num contexto de tratamento institucional porque há, por exemplo, as oficinas, porque eles podem encontrar pesso­as diferentes, porque há o que nós chamamos de atividade. Então, há alguma coisa que se passa nas invenções no interior das insti­tuições que podem ser retomadas no encontro com o analista. Isso é um comentário geral no espírito com o qual nós abordamos esse problema.

Como eu dizia ontem, a questão não é saber se podemos pra­ticar a psicanálise na instituição, mas se o discurso analítico pode orientar o tratamento a dois e o tratamento feito por muitos na instituição. Talvez o lugar que o analista pode ocupar no tratamen­to analítico, na transferência, não é sempre o mesmo segundo o caso. Nós sabemos que em alguns casos essa transferência pode ser situada, principalmente, no eixo imaginário, no limite de rela­ções amigáveis e que, em outros casos, o analista ocupa o lugar da presença e que não é possível fazer de outra forma. É aí a posição

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mais delicada. Isso permite ao sujeito localizar a posição enigmá­tica na análise ou, para falar da paciente da qual eu falei há pouco, isso pode lhe permitir se separar da posição de ser a coisa incestu­osa de seu irmão, de ser isso, a coisa e de deslocar isso para a transferência. Mas, com o risco, cada vez maior, de uma dimensão ereto-persecutória. Ela vinha cada vez para saber por que eu a re­cebia, uma vez que ela era uma merda. Eu sem dúvida iria mandá­la embora logo. Eu não a suportaria e ao mesmo tempo ela não suportava saber que havia outras mulheres que vinham ao meu consultório. Então, essa dimensão da presença, que às vezes nós ocupamos sem poder fazer de outra forma, está muito mais do lado do real, de certa forma. No caso da minha paciente, eu acho que a saída ao que ia se tomar algo difícil no plano transferencial, ela mesma a encontrou, com essa maneira de encher minha caixa de correio de cartas. Há então, essa noção de secretário e testemu­nha. Será que elas são suficientes para pensar a nossa noção? O que é comum aos dois, testemunho e secretário, é que a dimensão do saber é deixada do lado do sujeito. De certa forma, a dimensão do depósito da letra, literal, se encontra do lado do analista. Talvez a dimensão da testemunha coloque sobretudo a ênfase sobre a di­mensão do não-saber, enquanto que a dimensão do secretário co­loca o acento sobre a dimensão da letra. Por outro lado, secretário não é simplesmente copista. É estar a serviço do sujeito ativamen­te e não simplesmente testemunha. Mas, a questão da testemunha é importante no plano do saber.

Agora, Schreber faz o oposto de Joyce. Mas, justamente Schreber esteve no hospital psiquiátrico. Vocês sabem que ele foi novamente hospitalizado depois de ter escrito suas memórias. Schreber é o protótipo do trabalho no plano do sentido, no plano da interpretação. Mas, a questão é: no plano do sentido e da inter­pretação, a compatibilidade com o laço social não seria mais pro­blemática? Maleval notava que a dimensão do delírio na interpre­tação era compatível com o laço social, quando o delírio se

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parafrenizava, tomava uma maneira fantástica, não incluindo as pessoas em tomo, concemindo um além do mundo. Mas, se o de­lírio não toma essa forma parafrênica, ou a solução pela metáfora, que pode dar lugar a escritos abundantes, parece menos compatí­vel com o laço social, mais exposto às passagens ao ato que o tratamento pelo real do simbólico, do simbólico enquanto objeto. Isso não quer dizer que o sujeito se toma mais sociável, ele pode até ficar mais solitário que o sujeito delirante. Mas, no entanto, é uma solidão mais distante da passagem ao ato e mais compatível com o laço social em alguma forma de marginalidade, por exem­plo. Há sujeitos que podem não mais serem hospitalizados duran­te anos e eles conseguem combinar um endereçamento transferencial com alguma prática da letra, qualquer que seja ela. Não somente no sentido da escrita, mas no sentido daquilo que conecta o real com o simbólico, o real com o imaginário, com a estética. Será que nós podemos encorajar isso no curso de um tra­tamento?

Na instituição a coisa é mais fácil, porque nós oferecemos ao sujeito várias possibilidades das quais ele pode se valer no plano da arte, da informática, da escrita. Na relação a dois, na relação transferencial, e aí eu falo do papel ativo do secretário, eu não seria tanto partidário de encorajar o paciente a fazer isso ou aqui­lo, artificialmente, mas, ao contrário, de apreender qualquer tenta­tiva que o próprio sujeito evoque, que seja sob o plano de um álbum de fotografias, de organização de uma viagem. Por exem­plo, a paciente que eu evocava: a metade das sessões que não é a metade na qual ela fala do seu irmão ou do seu sobrinho, é consti­tuída pela programação das suas viagens, com todo tipo de docu­mentos, de fotos. Mas é ela mesma que traz isso. Se nós não tivés­semos o trabalho que Lacan fez a partir da psicose, talvez nós tivéssemos abordado a psicose muito exclusivamente no plano da interpretação e nós não teríamos dado importância a esse esboços de invenção que o sujeito traz. Nós teríamos permanecido unica-

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mente na vertente do sintoma, como algo a decifrar. Nós ficaría­mos nos perguntando por que o sujeito traz isso, por que o sujeito nos coloca nessa posição, ao invés de colocá-lo no plano do sinto­ma como uma construção. No que concerne ao álcool e à droga, eu preferiria que você desse a sua opinião sobre esta questão da dro­ga e do álcool . Se eu entendi bem, acho que você disse que temos que ter uma prudência na abordagem do sintoma ou da passagem ao ato no consumo de drogas, prudente no sentido de não tomar isso como um objetivo do tratamento. Será que você poderia de­senvolver um pouco essa idéia?

Antônio Beneti: Bom, eu coloquei a questão da prudência de hipotetizar a toxicomania como uma solução psicótica contempo­rânea, porque não são todos que utilizam droga que seriam sujei­tos psicóticos. Esse é o primeiro ponto. Segundo, eu tenho alguns casos na clínica que se apresentaram, que chegaram a mim como toxicômanos, com essa passagem ao ato de se drogar e outras pas­sagens ao ato e que, pelo menos dois, no decorrer do tratamento, com uma diminuição progressiva do consumo de drogas, vieram a se revelar, pelo menos na minha escuta, no meu diagnóstico, como sujeitos psicóticos. Um deles, nitidamente delirante, já tinha tido uma alucinação verbal antes do uso de drogas e o uso da droga e do álcool - ele se alcoolizava muito e utilizava muita droga, coca­ína, maconha, - de alguma maneira impedia ou dificultava, ou não permitia, o trabalho do delírio. Um outro caso, depois da redução do uso de drogas com várias reincidências, - periodicamente, ele faz uma passagem ao ato de se drogar, - trouxe uma situação que não me parecia bem uma estrutura fantasmática. Ele passa ao ato de se drogar no momento do relacionamento sexual com a mulher, faz algumas fantasias, e fantasias sempre no sentido de que ele se coloque como mulher e imagina um homem que o penetre, nessa cena. Bom, mas eu ainda não poderia dizer se eu estaria diante de uma situação neurótica ou de uma estrutura neurótica, de uma

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temática obsessiva, por exemplo, ou se eu estaria diante de um psicótico porque ele, em determinados momentos, busca alguns desvios com relação ao tratamento da sua problemática. Por exem­plo, ele busca a religião, lendo a Bíblia, buscando se confidenciar com o padre e, em outros momentos faz um discurso onde busca a solução de seus problemas através da ciência, com citações do discurso da ciência. É um quadro que eu não tenho claro. Mas tenho uma clareza, quando a abstinência se prolonga e ele vai tra­zendo um pouco mais as suas questões da relação com a mulher, ele tem filhos, - a questão da paternidade, em determinado mo­mento, é insuportável - e ele se droga muito. Ele vira um verdadei­ro toxicômano naqueles momentos e se mantém assim durante um tempo, depois ele retoma. É em nível de consultório, não é na instituição. Um terceiro caso, de um usuário também de droga e álcool, inclusive com injeção de vodka na veia, jamais apresentou um delírio. Tive que contar com a ajuda da instituição em uma oportunidade. Nunca me trouxe nada que eu pudesse dizer que se tratasse de um fantasma, uma estrutura fantasmática. Ele está já há alguns anos comigo, está trabalhando e se casou recentemente. Mas, depois do casamento, ele me trouxe uma história que ele nunca tinha me dito, que é dele ter tido um filho com uma mulher. Ele não sabia disso. A mulher o procura depois de muitos anos e lhe comunica que ele é pai e ele me relata isso agora, recentemen­te. Isso aconteceu num período em que ele não estava em trata­mento, ele havia interrompido porque essa cura é marcada por in­terrupções. Ele me comunica claramente que teve um quadro psicótico com alucinações. Bem, periodicamente, é insuportável para ele a experiência pela palavra, vir às sessões, e ele se droga, se transforma numa peste, vamos dizer assim, num verdadeiro to­xicômano, que vai às favelas atrás de drogas, etc. A minha constatação é que os psicóticos utilizam, cada vez mais, a quími­ca, vamos dizer assim, contemporaneamente. Não sei se podería­mos falar de alguma suplência química na psicose. Teríamos que

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pensar nos três registros: imaginário, simbólico, real. Não sei bem como pensar, é uma questão que eu estou nela e trabalhando, um pouco, sobre a questão que Lacan coloca no Seminário Les non­

dupes errent, quando ele retoma a questão da Pregung, com a ques­tão da nomeação: você é toxicômano, você é isso, você é aquilo_ Não é muito claro para mim, mas é aí que eu estou.

Alfredo Zenoni: Agora estou refletindo alto. Haveria uma certa equivalência entre uma espécie de nomeação real, uma no­meação produzida pelo real da ciência, uma vez que as drogas são um produto da ciência e a dimensão simbólica da nomeação quan­do ele diz: sou toxicômano. Eu digo nomeação real em analogia com os fenômenos psicossomáticos. O fenômeno psicossomático, Lacan diz em algum lugar, é uma espécie de nome próprio que faz suplência à nomeação simbólica e que se faz sob a forma de uma marca real no imaginário, uma incorporação da libido na imagem do corpo. A libido, ao invés de ficar à deriva, como é o caso da psicose, onde ela não está localizada, não fica localizada nas zo­nas erógenas, graças aos fenômenos psicossomáticos, ela se in­corpora, de certa forma, na imagem do corpo. É o corpo que regis­tra o traumatismo antes do inconsciente. O fenômeno psicossomático é um real no imaginário, que permite uma certa nomeação.

Será que podemos fazer um analogia com a droga? Um certo real conectado com o imaginário do corpo, podemos dizer tam­bém conectado com o princípio do prazer, dá lugar a uma espécie de nomeação real. Para prolongar o que você dizia em relação à questão da suplência química. É por isso que o termo de sintoma introduzido por Lacan, no final de seu ensino, é interessante, pode ter uma função. Isso permite levar em conta diferentes fenômenos de conexão entre o real e o imaginário, ou entre o real e o simbóli­co, para fazer suplência à localização do gozo, tal como ela é fornecida pelo discurso, pelo discurso do mestre. Eu creio que o

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sintoma, da maneira como Lacan o coloca no final de seu ensino, 1 tem essencialmente esse valor de suplência, suplência à função ique tem o discurso de laço social. Esse sintoma vem no lugar do fora do discurso, de certa forma. Então, o uso de drogas, cuja fun­ção você situou no tratamento, deve ser abordado da mesma for­ma que algum sintoma somático do sujeito psicótico.

Platéia: Como fazer a oferta de uma escuta psicanalítica, após o desencadeamento, sem produzir esse efeito de elaboração de sen­tido, de certa forma, um certo encorajamento, que você falou que não é indicado? E a questão do delírio como tentativa de cura, como seria o manejo dessa questão?

Alfredo Zenoni: Sua questão é muito precisa, conceme à psi­cose enquanto ligada ao desencadeamento, o que nós já dissemos sobre os fenômenos de linguagem e de interpretação. Aí também eu creio que o que deve eventualmente ser encorajado, o que seria encorajador, é que o trabalho interpretativo do sujeito tome a for­ma de uma construção, de uma sistematização. No sentido em que Lacan falava de um efeito de estabilização, pela constituição de uma metáfora delirante. Digamos que nem todo delírio é uma me­táfora delirante. Uma metáfora delirante é quando o delírio atinge a função de fazer suplência à metáfora paterna. Portanto, de resta­belecer, como diz Lacan na "Questão Preliminar", a relação entre o significante e o significado, com a estabilização. Eu sou mais partidário da idéia da minha colega de B ordeaux, Carde Dewambrechies, que é fazer de tal forma que a dimensão delirante não permaneça no não dito, que ela seja evocada, mas sem que o analista encoraje um desenvolvimento. É algo que deve ser objetivado, está aí. Isso é introduzido no campo da transferência, mas não tem especialmente que ser elaborado, pelas razões que eu disse: não é certo que a elaboração de saber e da significação pos­sam permanecer numa temporalidade assintótica. Elas podem de-

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sembocar num momento de concluir, paralelamente à elaboração de saber, que não deve ser necessariamente desenvolvida, nem im­pedida.

Eu acho que o que é mais favorável e compatível com o laço social é a promoção, digamos, de práticas que não incluem a di­mensão da interpretação, práticas de lisibilidade, de não lisibilidade, práticas objetais da l inguagem, literais. Tais que elas possam, oca­sionalmente, ser depositadas no analista. Como testemunhava Antonin Artaud, o fato de escrever tinha, para ele, um efeito de apaziguamento. É uma conexão do simbólico com o real que não passa pelo real do corpo. O real do gozo, em conexão com o sim­bólico, sem incluir a anatomia do corpo. Depositar no analista, isso tem uma função de ponto de basta, de ponto de parada, que me parece afastar melhor da passagem ao ato do que a elaboração de saber. É por isso que quando há uma elaboração delirante de saber, eu acho que nós podemos encorajar a escrita disso, no caso em que o sujeito mesmo faça essa elaboração de saber, para orientá­lo num outro tipo de relação com o simbólico, diferente da relação de sentido, em direção a uma relação do simbólico materializado. Não o simbólico na medida do que ele quer dizer. Isso permanece, no entanto, uma questão.

Platéia: Eu queria que o senhor me clareasse: o senhor aten­de o paciente psicótico em crise. Como lidar com essa crise? Qual é manejo? Até quando vai a elaboração desse sintoma no trata­mento mais adiante?

O senhor falou ontem que, muitas vezes, os casos são perma­nentes. É muito difícil para a nossa clínica prever um ano, dois anos. O senhor ontem colocou um teto, se eu entendi bem, de dois anos. Eu queria entender melhor como se dá a alta, quando ela chega a esse ponto e esse processo que vocês vi venciam lá da resi­dência, como foi colocado ontem, quando eles se agregam, assim eu entendi, quando eles se reúnem e passam a morar juntos. O

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Estado banca isso? Há uma grande diferença, nós estamos apren­dendo muito com o senhor e nós temos uma grande diferença cul­tural, econômica, social.

Alfredo Zenoni: Se eu compreendi bem, a primeira questão é sobre os estados de crise. Como fazer com isso. Por exemplo, a paciente da qual eu falei, que se cortava com vidros, uma das pri­meiras reações, porque ela se cortava profundamente, era de fazer sutura, levá-la a um hospital de urgência para fazer sutura. Inver­samente, há atos agressivos que, em certos casos, exigem inter­venção de força. São limites do real. A questão é: nós podemos nos inspirar naquilo que o próprio sujeito propõe para permitir um outro uso desses dejetos? Podem ser pedaços de vidros, mas po­dem ser pedaços de caixas que ele deixa no seu quarto, para que um objeto fora do corpo seja constituído. Não há uma receita, mas o importante é não colocar a questão no plano do quê ela quis dizer, mas do que ela f<l)para ver qual é a função dessa passagem ao ato e tentar ver se é possível transpor essa função para fora do corpo, para fora do outro semelhante. Eu sei que não posso res­ponder à sua questão, mas é ter algumas coordenadas para cada um dar as suas respostas.

A segunda questão é uma questão mais precisa sobre a práti­ca que conceme a instituição onde eu trabalho. É verdade que os contextos são muito diferentes de um país para o outro. Como eu dizia ontem, em Bruxelas tivemos a vantagem, nos anos 60 e 70, de ter muitos subsídios da parte dos poderes públicos, que subsi­diaram muitas residências e comunidades. Agora não é mais a mes­ma coisa. É um período de austeridade econômica. Então, não é possível abrir novas instituições, mas as instituições existentes já permitem uma certa circulação dos pacientes. Nós colocamos esse limite de dois anos, de preferência, a permitir que o sujeito ficasse dez anos, achando que assim seria mais favorável a socialização, um limite para que o sujeito mude de comunidade, vá para uma

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outra comunidade terapêutica, ao invés de ficar muitos anos numa mesma comunidade, para favorecer a provisoriedade da sua insta­lação na psiquiatria, para manter o caráter transitório da perma­nência, mesmo se ele vai ter que ir para uma outra estrutura assistencial. Isso permite ao sujeito visualizar que ele poderia ter uma outra forma de se instalar na relação conosco, mas um pouco separado. Todos são problemas em nível do tratamento, da cura, mas também em nível da instituição, de introduzir uma separação assintótica. Da mesma forma que o final de uma análise de um sujeito psicótico não se coloca da mesma forma que o de um sujei­to neurótico, porque se trata, na psicose, justamente de evitar o momento de concluir, em relação à estrutura institucional, em ge­ral, há algo de análogo que é visado, uma separação e um laço ao mesmo tempo. É uma separação para que o sujeito possa se ins­crever no laço social e, no entanto, um laço para que ele não seja deixado cair. É preciso dizer também que os sujeitos psicóticos que tiveram a ocasião de ter um salário e de trabalhar, quando a psicose se desencadeou na idade adulta, às vezes aos 30, 35 anos, eles têm uma seguridade social e recebem uma pensão. Então, eles podem alugar um apartamento e viver juntos com esses subsídios, o que não é o caso de outros países da Europa, onde as condições econômicas são muito diferentes.

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Discussão de Caso Clínico

Cezar Rodrigues Campos:

Bom dia a todos, especialmente ao nosso convidado Alfredo Zenoni, muito benvindo entre nós. Eu vou fazer o papel, mais ou menos, de um relator de caso, um secretário da reunião, porque eu nunca atendi essa pessoa. Essa pessoa foi atendida, nesses últimos dezesseis anos, nos vários serviços que nós temos. Então, há aqui, entre nós, pessoas que atenderam esse paciente em suas internações, aqui no Instituto Raul Soares (IRS), sempre aqui. Ele passou pelo Hospital-Dia, um projeto terapêutico já um pouco diferente da hospitalização e nos últimos dois anos ele está no Cersam Leste. É um relato que eu fiz mediante a pesquisa em todos os prontuários, prontuários do paciente e da mãe do paciente. A descrição está um pouco longa e acho importante que esse caso seja discutido, por- · que é um caso muito difícil e, ao mesmo tempo, emblemático de uma centena de casos dos quais temos que cuidar e, principalmen­te, agora, com essa variação que nós estamos fazendo em termos de instituição. Ou seja, temos uma rede que deve dar conta dos vários momentos da psicose, como prioridade.

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Caso clínico:

E.M., 32 anos, sexo masculino, negro, solteiro, desemprega­do, natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

História pessoal e familiar: Nasceu em BH, num bairro pobre e violento da periferia. A mãe teve eclâmpsia e o parto foi difícil. Foi amamentado pela mãe por um mês, apesar de proibição médi­ca. A mãe faleceu e, desde cedo, foi criado pela avó. As informa­ções sobre a época da morte da mãe, são contraditórias. Não se sabe quando exatamente ela morreu. O pai aparece pouco na his­tória. Após a morte da esposa casou-se de novo, afastando-se de E.M. Aos sete anos de idade foi levado ao médico pela avó, que receava a loucura da mãe, do pai, dos tios. O médico disse que o menino era normal. Estudou até a 5a série do 1 o ciclo. Quando rapaz, trabalhava como servente de pedreiro, nunca teve emprego fichado ou carteira assinada, o que ele diz ser o sonho de toda a sua vida. Após a morte da avó, ele então com 1 9 anos, foi morar com a família da tia, irmã da mãe. Depois com uma outra tia. Não há relato de namoradas, mas registro de vida sexual com várias mulheres no seu bairro, nas instituições e em outras partes da ci-

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dade. Há relato de uso de drogas e álcool, eventualmente. Não se apegou a nenhuma. É conhecido no bairro como Bruce Lee, Silvester Stalone, Doido, Barata. São citadas algumas jornadas com turmas, mas não são citados nomes de amigos, amigas, etc. Não tem laços mais profundos. Cita a avó como uma pessoa importan­te, as tias, os primos e raramente duas irmãs que têm famílias e moram fora. Fala na mãe com tristeza pela sua morte, não sabendo precisar a época. Foi quando ele nasceu, ele diz, ou um mês de­pois. No prontuário, há até uma alusão a que a mãe tenha morri do quando ele tinha 11 anos de idade. Fala do pai com revolta dizen­do que nunca ligou para ele, nunca deu apoio financeiro, nem afetivo.

História da mãe:

Antes de 1964, a mãe esteve internada neste mesmo hospital. O Instituto Raul Soares era então um hospital para quadros psiqui­átricos agudos. E no hospital de Barbacena, internavam-se paci­entes crônicos, dos quais Zenoni viu as fotografias. Não foram encontrados prontuários dessas duas primeiras internações. De 1964 à 1968, eu recuperei os prontuários do Galba Velloso, onde ela se internou mais de cinco vezes. O Hospital Galba Velloso era um hospital psiquiátrico público, para mulheres em quadros agudos. Em todas as internações, o quadro clínico predominante era: dis­túrbio de conduta, heteroagressividade, idéias persecutórias, alu­cinações visuais: ela via cobras, falava e andava muito, queria sem­pre fugir do lugar onde estava. Na sua terceira internação, dedu­zindo pelas datas, estava grávida de E.M., mas não há registros desse fato no prontuário. Cita-se que teve seis filhos, morrendo três deles de gastroenterite. Ficaram vivos duas filhas e o caçula, E.M. Sua primeira crise foi desencadeada no seu primeiro parto. Relata-se a atração por poços d' água, como o Ribeirão Arrudas,

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querendo sempre pular dentro deles. Ressalta-se, em 1968, na úl­tima internação dela que está registrada, a sua heteroagressividade, dirigida ao filho mais novo, no caso E.M., então com 15 meses de idade. O diagnóstico era psicose esquizofrênica.

A história institucional de E.M.:

A primeira internação ocorreu em 15/03/83 . Não temos da­dos dessa primeira internação. Um registro posterior informa que ocorreu por ocasião da morte de uma tia materna. Essa internação aconteceu no Instituto Raul Soares, o mesmo onde a mãe se inter­nara 20 anos antes.

A segunda internação ocorreu em 15/05/85. Ele diz que ficou nervoso, brigou em casa, a tia o acusou de usar drogas, coisa que ele não fazia. Foi preso. Quando saiu da delegacia, foi nadar no Parque Municipal, e a polícia o trouxe para o Instituto Raul Soa­res. Desde então era só ficar nervoso que o internavam. Foi inter­nado mais treze vezes neste mesmo hospital. O quadro predomi­nante , em todas as internações, sob o ponto de vista fenomenológico, era o seguinte : excitação psicomotora, taquipsiquismo, humor exaltado, agressividade. Ele batia e chuta­va outros pacientes quando o contrariavam ou quando pediam coi­sas a ele. Não tinha limites, quando contrariado ficava irado e era contido fisicamente ou com grandes doses de neurolépticos. Há relato de delírios místicos, de grandeza, persecutórios, alucina­ções visuais e auditivas . O diagnóstico era psicose, psicose esquizofrênica até 1984 e depois houve uma mudança no diagnós­tico para PMD uni polar, forma maníaca. Quase sempre era trazido pela polícia em quadro agudo. Às vezes, era acompanhado por familiares, outras vinha sozinho, pedindo ou forçando a internação. Às vezes simulava impregnação, solicitava internação para não cometer atos violentos que pressentia. Muitas vezes forçava a en-

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trada e a saída, fugindo no decorrer do tratamento. Demonstrava conhecer os movimentos da instituição, entrando e saindo de um território que, por vezes, parecia dominado. Houve muitas recusas de internação e encaminhamentos ao ambulatório, ao qual nunca aderiu.

A proposta terapêutica, nessas últimas internações, visava a erradicação dos sintomas e a reinserção social , quer dizer, condi­ções para ele viver lá fora através de altas doses de neurolépticos e, depois, estabilizadores do humor, associados a atividades cole­tivas, oficinas, grupos, terapia ocupacional. Faziam parte também do projeto terapêutico tentativas de escuta, por profissionais em formação. Não havia continuidade, porque os profissionais termi­navam seus estágios, o próprio paciente interrompia o atendimen­to, ou a escuta se perdia nas contradições do modelo de atendi­mento.

Exemplo de algumas falas colhidas durante algumas internações são: "estou em missão secreta aqui no hospital. Jesus Cristo, Nossa Senhora e três capetas apareceram para mim. Tenho pai, mas não o considero como pai, pois nunca me deu nada. Te­nho poderes. Sou um preto especial. Deus me escolheu para fazer o bem. Minha mãe morreu aqui no hospital quando eu nasci, mi­nha mãe morreu de desgosto, meu pai judiava muito dela. Gosto do hospital, vocês são minha família. Aqui me sinto em casa, só falta a chave. Não agüento ficar preso aqui como um leão. Quando eu sair daqui eu vou matar todos vocês, só porque a minha família não gosta de mim. Sou Deus, sou santo, sou psiquiatrà, sou forma­do em direito, eu faço as leis para acabar com os bandidos. Eu tenho a impressão que sou filho de Deus, sou santo. Eu quero re­ceber alta para ir para a casa do meu pai. Sou Bruce Lee, sou Michael Jackson -jack = Deus; son = filho. Estou ouvindo vozes falando para eu matar as pessoas, para pular na frente dos carros. Ando enxergando coisas e estou com medo das pessoas. Meu ner­vosismo é por causa da família. O que eu mais quero é trabalhar

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fichado, mas perdi a carteira de reservista e a identidade. Ninguém liga para mim, ninguém me ajuda, me sinto abandonado."

Algumas mudanças foram feitas no modelo de atenção. Até aqui o tentado era tratamento hospitalar, várias vezes uma tentati­va de encaminhamento ao ambulatório, ao qual ele nunca aderiu. Então, aqui começa a introduzir-se alguma coisa nova em termos de uma tentativa de articulação da instituição hospitalar, com al­guns serviços abertos. A revisão dos documentos do caso demons­tra que o hospital, nesse período, funcionou como uma caixa de repetição, não oferecendo chances de saídas. A oferta do hospital e ambulatório eram sem consistência, não conseguiam servir de enquadramento para o caso. As chances começam a aparecer, es­peramos que não tarde demais, com os serviços externos, como relato a seguir.

Em 1 994 uma internação foi articulada pela residente de psi­quiatria, também com formação analítica, que é a Míriam, que está aqui presente. Ela articulou uma internação com uma passa­gem pelo Hospital-Dia, com uma seqüência no Hospital-Dia. Ela fazia uma escuta sistematizada com orientação da psicanálise, isso está relatado, claramente n<?S prontuários. Havia a medicação

. neuroléptica, estabilizadores de humor e ações coletivas, assem­bléias, oficinas, esportes. Havia um trabalho interdisciplinar arti­culado, orientado pela psicanálise. É o processo de trabalho que o Hospital-Dia do Raul Soares faz. Foi sustentado durante sete me­ses e foi um período dos melhores em termos de resultados. Isso dá para ver bem quando olhamos toda a seqüência do tratamento. Durante todos os tratamentos, a atuação dele é permanente e nesse período a atuação ficou muito reduzida, a agressividade, aquelas respostas agressivas ficaram muito reduzidas e o relacionamento social melhorou bastante. O próprio paciente interrompeu o trata­mento, ficando seis meses ausente do serviço. Ao retomar, a resi­dente havia terminado seu curso e não estava mais aqui. A inter­rupção se deu nas férias da psiquiatra e após o episódio de morte

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de uma pessoa de uma turma de seis amigos. Quando saíram para nadar, um deles morreu afogado. Ele ficava sempre dizendo que não era responsável, que não tinha nada com isso, que foi um aci,_ dente. Ele só reaparece na urgência do hospital 1 7 meses depois. Aqui há um episódio, uma parte do tratamento, em que temos que ver bem o que é que promoveu essa melhora para aproveitá-lo em tempos futuros. Ele internou-se em crise dia 10/01197, havendo outra tentativa de continuidade com o serviço externo. Aí no caso, o serviço externo havia sido criado recentemente na cidade, uma rede de serviço que pretende ser substitutiva ao modelo centrado no hospital psiquiátrico, constituída por centros de tratamento de crises, os Cersams, os Centros de Convivência e os ambulatórios de Saúde Mental e unidades básicas de saúde espalhadas pela ci­dade, 62 no total. São serviços parecidos com aqueles criados em Trieste no que se refere a considerar os direitos de cidadania, os sujeitos de plenos direitos como pré-condição para qualquer pro­jeto clínico. Porém, diferentemente de Trieste, consideram a psi­canálise um saber imprescindível nesse projeto. E.M. está nesse serviço de crise há quase dois anos. O projeto consta de uma refe­rência individual, no caso um psicanalista, que faz uma escuta, um psiquiatra, que cuida da medicação, e o restante da equipe que oferece oficinas e atividades coletivas no serviço e fora dele. A equipe acha que houve uma mudança no quadro, uma melhor es­tabilização, ou seja, não têm ocorrido, nesses dois anos, as crises psicóticas que ele tinha antes e sim atuações freqüentes dentro do serviço, trazendo dificuldade de manejo, divisão da equipe quanto às formas de lidar com os limites. Como o grupo deve trabalhar essa questão crucial para o caso e como suportar e manejar essas atuações agressivas, essa é uma grande questão que nós estamos trazendo para que Alfredo Zenoni nos auxilie com a experiência que ele tem. Se houve uma mudança no quadro, se a psicose se ajeitou de uma outra forma, a estrutura se ajeitou de uma outra forma, não necessitando mais rupturas violentas, achamos que hou-

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ve um avanço no atendimento do caso. Então, a nossa questão é como conservar esse estado de melhora, o serviço dando suporte a essa nova forma de organização da sua psicose e, quem sabe, me­lhorar alguma éoisa a mais, conseguir mais alguma coisa, ou seja, uma ascensão social, um emprego para ele, alguma coisa que ele possa suportar. Por isso, uma das finalidades dessa reunião, inclu­sive, é ter a ajuda de Zenoni no que se refere a como a nossa equi­pe vai dar seqüência a este caso, evidentemente articulado com a rede, de um modo geral. Estão descritos aqui os últimos aconteci­mentos lá do Cersam, como se deu a última internação. Atualmen­te ele está internado aqui no IRS. Um episódio ocorreu em mea­dos de 1997, quando alguém da equipe negou diretamente uma solicitação do paciente. Este virou a mesa com bandejas e objetos quase em cima de duas profissionais que ali estavam, provocando grande apreensão e receio. A atitude do paciente, na época, foi solicitar a internação no Raul Soares. A atitude da equipe foi, atra­vés da gerente que é a figura de autoridade administrativa do ser­viço, suspendê-lo por uma semana do serviço, o que ele aceitou. Em uma outra situação, E.M. portava um instrumento usado em lutas marciais dentro do serviço. A gerente solicitou que esse obje­to ficasse sob sua guarda e ele concordou. O mesmo ocorreu com uma faca que portava: a gerente a guardou. Uma seqüência de fatos, há cerca de dois meses, provocou uma tensão quase insu­portável na equipe, quase colocando o trabalho a perder. Por outro lado, possibilitou muitas discussões, abrindo possibilidades de apu­ração da clínica, construção do caso clínico. Essa pesquisa foi fei­ta em função disso. Se avançarmos nessa questão dos limites da passagem ao ato, estaremos aumentando o potencial da clínica nos serviços abertos. Nós temos muitos casos desse tipo. Temos que lidar constantemente com esse tipo de problema. Queremos usar a internação com maior precisão clínica. Será o lugar para determi­nados estados da psicose, para os quais não há outra resposta prá­tica naquele momento. Naquele momento na clínica, a seqüência

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de fatos foi a seguinte, para a gente discutir essa questão de como lidar com a passagem ao ato e a atuação freqüente dele.

Primeiro, na referência individual, trabalhava-se a questão de um emprego que se tomava possível para E.M., removiam-se os obstáculos fazendo a mediação desses obstáculos concretos. Por exemplo, a locomoção. "Não posso me empregar porque não tenho como ir ao lugar." Então, foi providenciado vale-transporte. Para a falta de documentos, conseguiu-se a carteira de identidade, etc. Ficou para o paciente a apresentação, em dia e horários mar­cados, para iniciar o trabalho. E.M. tomou na véspera três compri­midos de Diazepan e não acordou na hora, no dia seguinte. Não conseguiu realizar o sonho de tantos anos, ter um trabalho ficha­do, como ele diz. Segundo, na questão das regras de convivência, tinha reclamado com a gerente que outro paciente tinha se apossa­do de uma calça sua. Segundo ele, a gerente não tinha tomado nenhuma providência. Terceiro, o instrumento de luta marcial sob a guarda da gerente tinha desaparecido e ele cobrava isso da auto­ridade do serviço. Quarto, festejava-se o aniversário do serviço com uma programação festiva. Havia um campeonato de futebol. O paciente era um dos jogadores do time, ficou na reserva e não jogou nenhum minuto. Após o jogo, E.M. chega ao serviço e pau­sadamente, com uma cadeira, quebra todas as vidraças. A seguir, assentou-se e ficou quieto. A equipe que ali estava decidiu puni­lo. A gerente falou diretamente com ele que estaria suspenso do serviço por um tempo determinado. Imediatamente, com uma vas­soura, um instrumento, procurou o carro da gerente e quebrou o que pôde, olhando para conferir se ela estava vendo. A seguir, a polícia chegou, sem que o serviço a tenha chamado. Eu pergunto: o serviço deveria chamar a polícia? O serviço não deu queixa à polícia do ocorrido. Deveria dar? E.M. pediu para o serviço encaminhá-lo para internação. Deveria fazê-lo? A polícia acabou levando E.M. para as imediações do IRS e E.M. lá se internou, não por indicação do serviço, que não sabia bem o que fazer. Há

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mais ou menos 40 dias, o paciente está internado no IRS, a equipe discute o que fazer e como dar seqüência ao caso. E.M. não teve uma ruptura psicótica aqui no hospital, não teve delírios, alucina­ções, não teve um quadro produtivo, atuações. Também nesse caso, não houve uma franca psicose. Os atos o levaram à internação. Tem estado apreensivo, com medo de não voltar ao Cersam. Fala em alguma forma de pagamento para o que destruiu da gerente. Ele não fala em pagar o que ele destruiu da coisa pública. Ele só fala da gerente.

A seguir, o texto feito pelo psicanalista, que é a referência individual de E.M., Frederico, que está aqui conosco também.

As dificuldades de abordagem deste caso podem ser aponta­das a partir da frase ouvida na última seção clínica: ele é um doido que sabe fingir de doido, ele coloca-se diante de um paradoxo. Se ele finge é porque pode não ser doido, o que remeteria à neurose. Por outro lado, ele finge porque sabe que é, finge como forma de não ser efetivamente doido, isto é, para que não desencadeie uma psicose que existe nele em estado bruto. Que não haj a desencadeamento não quer dizer que não se trate de psicose. Po­demos dizer, então, que se construiu uma amarração sintomática, sendo a psicose um fenômeno de fundo. A passagem ao ato seria uma ruptura que não chega a ser um desligamento em relação a esta forma sintomática. Recordemos as palavras chaves do caso. Destaca-se, inicialmente, a sua errância, ausência da laços famili­ares. O caso é trabalhado mais na vertente de uma patologia do laço social do que a partir de fenômenos elementares, pouco evi­dentes. Logo se estabelece um laço forte, um serviço, indicando que ele tomou, l iteralmente, nossa seta de referência e a tomou para fazer dela um sintoma que nos engloba, estamos implicados no seu sintoma, o que toma a sua abordagem mais difícil e a dis­cussão mais calorosa. Ele quer se tomar, um de nós, - se diz funci­onário do CERSAM, - assume a condição de garantidor da ordem. O CERSAM é para ele um território, domínio identificatório e

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domínio de gozo. Mas, este laço forte com o serviço constitui uma amarração frágil. É apenas uma forma de suprir o que para ele foi o fracasso do lado social. Assim se produzem as rupturas. Ele tem que buscar em um Outro o que autentificaria essa função. Uma autoridade reconhecida, encarnada, como absoluta. Qualquer tro­peço desta autoridade, o mínimo encontro com o real, que faz furo nessa construção imaginária, pois não existe autoridade absoluta, faz desmoronar a amarração. À exigência interativa de ordem, sus­tentada pelo seu apelo à autoridade, segue-se a quebradeira, a ameaça pelo uso da força, a lógica selvagem onde o uso da palavra está cassado e o que prevalece é o pulsional , uma satisfação pulsional em lugar de uma satisfação narcísica. A culpa moral não funciona aqui como anteparo. O corpo se enfeita, desfila sua oni­potência. "Isso dá no corpo", diz no seu furor. Que ele se antecipe a isso não significa necessariamente que ele o premedite. A anteci­pação se dá, em geral , através de um pedido de internação. Sem saber porque, ele pode se tomar violento. Para isso, às vezes, ele se faz de doido, ou simula uma crise convulsiva. Ao comentar suas passagens ao ato, revela a impotência de fazer-se ouvir. "Eu falei". Seu corpo é a sua metáfora delirante. A esse corpo ele sem­pre retoma como o seu refúgio contra o desencadeamento e para se fazer valer. É incapaz de sustentar o "eu quero". Diante das contingências das frustrações ele diz: "eu quebro". Certa vez eu anotei essa frase que me pareceu significativa. "eu não sou um João Ninguém, tenho que mostrar a eles que eu tenho valor, mas é perigoso eu me tomar um malandro". Isso me lembra a sua troca delirante de nome. Dizia se chamar Janis Lee, condensação de Janis Joplin e Bruce Lee. O culto ao corpo vem em suplência a essa vacilação do nome próprio. Constitui uma tentativa de filiação. "Não tenho identidade", repete, como justificativa por não arru­mar trabalho. Penso que devemos fazer a distinção entre essa jus­tificativa e a impossibilidade de fazer um laço social. Acho cada vez mais difícil calcular o corte entre seu tratamento e a sua per-

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manência-dia no Cersam. Seria suportável? É preciso mediá-lo, como dizia da última vez, em lugar de apenas desligá-lo. Não po­demos jogá-lo no vazio se ele não tem recurso. Isso pressupõe alguém que sirva de ponte para se atravessar o vazio que o separa do social, que faça a tentativa, pois não há garantia de que ele consiga se manter. Quanto a fazê-lo pagar pelo prejuízo, penso que ele mesmo o demanda. Aqui não cabem justificativas a um dano real, sendo possível para ele repará-lo. Ajudaria, talvez, para uma reparação desta autoridade danificada. Temos uma ocorrên­cia e a nota de compra dos vidros. O ideal seria fazê-lo a partir de alguma representação social, quem sabe, um tribunal de pequenas causas.

Bom, esse é o relato que eu, que não estou no caso, consegui fazer. É importante agora que as pessoas que participaram e estão participando deste projeto complementem, corrijam ou retifiquem alguma coisa do que foi dito aqui. Depois passaremos a palavra a Alfredo Zenoni e após os comentários dele faremos a discussão. Então, se alguém quiser fazer um comentário, eu peço que seja breve.

Alfredo Zenoni: Eu pediria uma precisão a respeito da mãe do paciente. Eu não entendi bem se a mãe morreu um mês depois do nascimento dele.

Cezar Rodrigues Campos: Bom, ela não morreu porque em 1 968 o paciente estava com quinze meses e está relatado na internação da mãe que a relação com o filho de quinze meses era de constante agressividade. Então ela não morreu ao nascimento dele.

Alfredo Zenoni: Quando o sujeito tinha 1 5 meses, houve ma­nifestações de agressividade em relação à criança pela mãe. Ao mesmo tempo que a mãe, ela mesma se sentia atraída pela morte.

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Havia ao mesmo tempo o risco de suicídio e de matar a criança. Isso faz pensar algumas coisas sobre o suicídio altruísta, como é chamado. Há algumas formas de suicídio, onde o sujeito se mata e, para o bem da criança, a mata também, dizendo que a criança não poderia sobreviver à morte da mãe. Isso coloca uma questão sobre a posição subjetiva da mãe, que foi diagnosticada como esquizofrênica, mas que talvez tivesse também uma dimensão me­lancólica. Eu queria pedir que precisassem mais algumas informa­ções. Houve várias recusas de hospitalização. A recusa foi da par­te do paciente ou da parte da equipe? Houve recusas de hospitalizações da parte do serviço? No fundo, o trabalho começa a partir de 1 994? Em Bruxelas, acontece também de dar supervi­são nas instituições e, muitas vezes, a supervisão é de casos de pacientes cuja patologia gira em tomo das passagens ao ato. E a questão crucial é como trabalhar com esses pacientes, cuja maior manifestação clínica é esse agir. É um problema clínico e institucional. Por isso mesmo é que são trazidos à instituição. Eles são difíceis e não há respostas. Na medida em que o acompanha­mento de um paciente psicótico se faz regularmente, o caso já não é proposto à supervisão. O problema do tratamento, do acompa­nhamento do sujeito psicótico se coloca quando o· quadro é domi­nado pela passagem ao ato. Eu gostaria de fazer um primeiro co­mentário sobre a noção de desencadeamento. É verdade que o desencadeamento da psicose foi sobretudo relacionado, por Lacan, com fenômenos de linguagem e desencadeamento do delírio. No entanto, nós observamos, freqüentemente na c l ínica, o desencadeamento de psicoses. Nós temos chamado recentemente de neo-desencadeamento ou novas formas de desencadeamento, do registro do ato, suicídio, tentativas de suicídio na adolescência sem explicação, comportamentos agressivos súbitos, sujeitos que quebram tudo na casa deles. São formas de retomo do gozo, não na percepção, sob a forma de alucinações auditivas, sob a forma do automatismo mental, mas sob a forma do ato. O gozo não retoma

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simplesmente na linguagem, no lugar do Outro, mas também no corpo e no agir. E é isso que coloca o problema de acompanha­mento e tratamento na instituição.

Eu faria dois comentários. Primeiro que, a partir do momento que o sujeito tem um interlocutor regular e em que há uma coorde­nação das intervenções, há bons resultados, uma melhora durante sete meses. Infelizmente, como freqüentemente acontece nos hos­pitais, o interlocutor privilegiado é um residente, que vai embora e não pode continuar o trabalho. É um primeiro problema prático. Conceme toda essa série de passagens ao ato. No serviço externo, creio, nos meados de 1997, alguém da equipe recusou-lhe uma solicitação e ele virou a mesa. No entanto, quando ele passeia no serviço com um instrumento usado em lutas marciais, ele aceita confiar o objeto à coordenadora, ele aceita também entregar o ca­nivete. Toda a questão é saber como enunciar os limites e as regras a um paciente como este. Ao observar como o paciente reage, me parece que a passagem ao ato pode ser evitada quando ele próprio é colocado do lado da autoridade ou quando a autoridade se colo­ca para o seu lado. Tudo está na maneira de recusar ou de interdi­tar, sendo que o sujeito, ele mesmo, se coloca como defensor da ordem. A manobra consiste justamente em fazer dele um colabo­rador na defesa da ordem. Eu vou falar disso nessas três conferên­cias. Me parece que lá onde o sujeito reage com passagens ao ato violentas é quando ele está diante de uma recusa dual, quando se endereçam a ele intersubjetivamente. Enquanto que quando se o coloca no funcionamento da instituição, como fazendo parte deste funcionamento, ele consente à regras. A maneira de colocar limi­tes e regras deve ser feita de tal maneira que o paciente não se sinta interpelado de maneira dual e imaginária. Para dar uma for­mulação simples não é dizer "você não pode fazer isso", mas an­tes: "Não pode acontecer que as pessoas aqui se façam injúrias". Os instrumentos de combate, canivetes, devem ter um lugar pró­prio na instituição. As coisas devem ser feitas de tal forma que o

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sujeito se sinta do mesmo lado que a lei e não confrontado com a lei. O que é surpreendente no caso deste paciente é ao mesmo tempo, a incapacidade de suportar uma recusa, uma contrariedade e ao mesmo tempo a exigência de uma ordem absoluta. É a difi­culdade sensível na instituição com estes sujeitos para os quais a dimensão simbólica da lei não está inscrita, que são levados a fa­zer uma suplência por uma lei absoluta, uma autoridade absoluta, como dizem aqui, e que ao mesmo tempo tende a fazer-se, ela mesma, como suporte dessa lei. Por um lado, o sujeito se sente identificado com a instituição, há muitas falas dele que vão nesse sentido, e por outro lado ele se coloca confrontado com a autorida­de institucional. Se examinamos os diferentes episódios relatados aqui, parece que cada vez que a lei é formulada de uma maneira flutuante ou contraditória, há uma passagem ao ato. Quando ele se queixou que alguém roubou as suas calças e a coordenadora não deu nenhuma seqüência à sua queixa, quando o instrumento de luta marcial confiado à coordenadora desapareceu e depois quan­do ele não faz parte da equipe de futebol, ele fica na reserva. Ve­mos aqui que as passagens ao ato são coordenadas a uma certa irregularidade do Outro. O problema das instituições é não tanto de confrontar o sujeito com limites do comportamento, mas de presentificar, ao lado dele, um outro que é limitado, que é regula­do também. Nós não representamos a lei para o sujeito. Nós estamos submetidos à lei como ele. É a maneira de incluí-lo nessa submis­são, na qual nós também estamos incluídos. Nós podemos nos apoiar sobre a sua identificação à ordem e ao mesmo tempo per­mitir a ele se colocar antes do lado da identificação do que da passagem ao ato.

Vou fazer ainda dois comentários. Um sobre a questão do trabalho e outro sobre a questão do alojamento. Quando ele fre­qüenta o serviço externo, onde ele vive? A questão do trabalho me parece análoga à questão da lei, da ordem do mundo. Isso teste­munha da presença de alguns ideais. O problema é que esses ide-

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ais não estão relacionados com uma causa do desejo. Eu vou fazer um esquema. É um esquema grosseiro. Coloca de um lado o ima­ginário e o simbólico, que é também o campo da realidade, da sociedade e, do outro lado, o real. Na neurose, a pulsão, a causa do desejo é transferida ao campo do Outro. Por que o objeto é perdi­do, nós o buscamos na vida, na sociedade, na realidade, trabalhan­do, procurando um objeto de amor, correndo atrás de Deus sabe o quê, o que faz com que haja um projeto. Porque o objeto está per­dido, a gente tenta recuperá-lo na realidade, no parceiro. Na psico­se, o objeto não está perdido, então ele não é transferido para o campo do Outro. É por isso que a televisão fala dele, que ele rece­be mensagens, que ele se sente observado e visado pelos outros. A

contrapartida dessa não separação do objeto é que a realidade, para ele, é feita de ideais, mas de ideais vazios. Esses ideais podem ser perseguidos pelo sujeito, mas essencialmente sob um plano pura­mente identificatório. Isso pode ir muito longe, essa identificação. É o que foi desenvolvido sob um certo ângulo sob o nome de per­sonalidade "como se", mas que pode ser estendida sob a noção de identificação em geral na psicose. A identificação pode acompa­nhar o sujeito bem longe, inclusive no plano sexual, no plano tam­bém do trabalho. O sujeito pode, por exemplo, fazer como seu pai, trabalhar na mesma profissão que o pai, mas quando ele se encon­tra só, quando no trabalho ele não está protegido pelas identifica­ções, então há uma ruptura. Ele não pode assumir a responsabili­dade. Com esse paciente, há todas essas identificações imaginári­as a personagens fictícios, mas sob o plano do trabalho, nós temos simplesmente uma fórmula, ter um trabalho fixo. Minha questão é: não haveria uma identificação que contivesse algo mais pulsional, que contivesse mais gozo, que pudesse desembocar numa pers­pectiva de trabalho?

A segunda questão é: será que nós devemos ter para um su­jeito como perspectiva que ele trabalhe? Ou antes, que ele encon­tre uma prática, qualquer que seja ela, na qual ele possa exteriorizar

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alguma coisa do seu estatuto de objeto? Talvez isso coloque al­guns problemas sob o plano dos subsídios para viver da seguridade social. Essa é uma questão que eu queria discutir com vocês e a outra é a do alojamento. Há as questões da passagem ao ato de que nós já falamos, que pode acontecer quando o Outro não é regular. Isso não impede que o sujeito, ele mesmo, seja violento. O que é interessante é que ele mesmo consiga tomar uma certa distância dessa violência e que, prevendo esses momentos de violência, ele peça para ser hospitalizado. Ele diz que no hospital ele está em casa. E, por outro lado, ele aceita o princípio de uma responsabili­dade pessoal, notadamente no que conceme a pagar os prejuízos. Uma idéia que me veio a propósito de onde morar. O hospital não poderia ser utilizado como um alojamento oficial, onde ele esti­vesse na casa dele, sendo ele sempre autorizado a ficar fora? É um problema que nós temos para esse tipo de sujeitos, com esse vai e vem entre o exterior e o interior. Uma vez nós tivemos um proble­ma com um sujeito que cada vez que ele saia, passava ao ato. Os psiquiatras decidiram mantê-lo no hospital, inscrito no hospital, mas ele estava sempre com permissão para sair ao exterior. Então, inscrito no hospital, mas vivendo no exterior. É uma solução que diminuiu as entradas e saídas do hospital . Então, o hospital não é somente um lugar que responde aos estados agudos. Para alguns sujeitos, o hospital é um abrigo e o fato de ter esse abrigo no hos­pital, mesmo não vivendo no hospital, constitui um ponto de exterioridade em relação a tudo que é persecutório no mundo. Vocês mesmos colocaram questões, não sei se vocês querem insistir em alguns pontos onde eu não respondi ou reagir ao que eu acabo de dizer.

Elisa Alvarenga: Eu gostaria de colocar uma questão sobre os momentos em que ele foi suspenso dos serviços. Há um mo­mento de suspensão e no final há uma questão colocada pelo Frederico sobre se não seria preciso mediá-lo, no lugar de desligá-

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lo. O que poderia ser pensado no lugar dessa suspensão, no lugar desse desligamento?

Frederico: Em relação à questão da suspensão, houve dois momentos em que essa suspensão foi aplicada. A primeira vez após o episódio da derrubada da mesa. Ela se mostrou produtiva. Tal­vez tenha sido o único momento, enquanto eu estou responsável pelo escuta do paciente, onde houve mais trabalho no consultório. O paciente se voltou um pouco para a sua história pessoal, traba­lhou algumas questões relativas à sua identidade, construiu, en­fim, algum sentido para as suas passagens ao ato, que ele relacio­nava a uma perda do nome próprio. Na segunda tentativa, após o episódio da quebradeira dos vidros, foi aplicada a suspensão e o resultado foi a agressão ao carro da gerente. Nesse meio tempo, é um dado que não está no relatório de Cezar, ele simulou um suicí­dio. Colocou uma corda no pescoço, na presença de outras pesso­as, e teve que ser contido. Então, na minha opinião, a idéia de uma mediação é uma idéia substitutiva desse tipo de procedimento. O paciente sempre constrói uma idéia, remeto a uma conversa de ontem com o paciente, que se ele sair da instituição e ficar na rua, ele vai quebrar todos os carros. Uma precisão: ele não tem, apesar de morar, às vezes, na casa da tia ou de um primo, hoje ele diz que não tem lugar para morar e tem um grande horror ao seu ambiente, uma vez que os primos traficam drogas, cometem violências, etc. Está sempre apontando para esse perigo de se tomar como um deles, como alguma coisa que pudesse acontecer e pegá-lo e ele não soubesse como fazer frente a esse perigo. Então, eu penso que hoje a questão da moradia é crucial e eu penso inclusive que ela é a única possibilidade para que ele desenvolva um trabalho em ní­vel de um atendimento, por exemplo. Tudo que ele diz nos atendi­mentos é: "eu quero um lugar para morar, eu quero um trabalho, eu quero viver dignamente". Atualmente estamos pensando numa idéia de subsídio que possibilitasse a ele alugar um quarto, como

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ele demanda.

Platéia: Eu estava só querendo complementar, por que a pro­posta de Zenoni, de certa maneira, vai no sentido inverso de umas conclusões que tiramos de uma reunião ontem à noite, lá no Cersam. Eu não acredito que seja uma proposta definitiva, porque ela surgiu ontem e eu estou me referindo à proposição dele, se eu entendi, que uma idéia possível de alojamento para o caso E.M. seria ele morar dentro do hospital, de tal forma que essa entrada e saída estivessem franqueadas a ele, assim como funciona no Cersam, onde a porta é, para ele, aberta o tempo todo. Mas, a con­clusão a que chegávamos ontem é se mantê-lo no hospital, moran­do aqui indefinidamente, não seria de novo jogá-lo numa espécie de gozo mortífero no qual ele se joga com uma certa insistência.

Frederico: Uma complementação. O paciente não pede para ficar no hospital definitivamente, ad infinitum. Ele diz que esse é o único lugar hoje onde ele pode se sentir seguro. Quer dizer que ele aponta insistentemente para uma saída.

Alfredo Zenoni: O problema é conciliar o lugar que tem o hospital para um grande número de sujeitos psicóticos como abri­go, ponto de exterioridade, abrigo em relação à sociedade, às ame­aças, aos perigos, como conciliar o hospital como abrigo e a ins­crição como laço social . No caso do alojamento, pode ser um quar­to, um apartamento. Nós sabemos que para muitos sujeitos há, ao mesmo tempo, críticas e recusas a estar no hospital, porque no hospital se perde a liberdade, se está no meio dos loucos. Mas, ao mesmo tempo, há incapacidade de viver só sem encontrar uma angústia muito grande. Esse é o desafio: como conciliar as duas coisas? Eu fiz uma analogia com um caso que um colega me con­tou que foi apresentado na França. É o caso de um homem que era hospitalizado, melhorava, quando voltava para a casa da mãe, pas-

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sava ao ato e voltava ao hospital sucessivamente. O colega então encontrou essa idéia de inscrevê-lo no hospital e, ao mesmo tem­po, que ele tivesse permissão constante de sair. Imediatamente as passagens ao ato e as hospitalizações diminuíram. Há sujeitos que aceitam estar lá a partir do momento em que não são obrigados a estar lá. Por exemplo, nos serviços de segmento aos pacientes de­pois da alta, como o que eu trabalho, há uma estrutura residencial. Muitos sujeitos psicóticos aceitam ficar ai com a condição de es­tar ao ponto de partir. Eles ficam dois anos, três anos, mas com a idéia de que eles não são identificados por isso. Eles não são iden­tificados ao estatuto de doentes mentais. Eles estão ai de maneira provisória, esperando. Eles são atendidos e moram nesse lugar. Então, ao mesmo tempo o sujeito tem uma necessidade de ser cui­dado, mas ele reivindica a sua autonomia. Eu temo que para esse sujeito, ir morar sozinho em um quarto, o faça se sentir desligado de uma presença, de uma identificação, que é constituída tanto pelo hospital quanto pelas pessoas da sua família, e que se sinta deixado cair. É um receio que eu tenho. Creio que o ideal seria que ele tivesse uma estrutura comunitária de moradia. É nesse sentido que os hospitais deveriam evoluir, promover estruturas residenciais abertas, comunitárias, com a presença identificatória de um ideal do eu. Tenho a idéia de que o quarto sozinho poderia ter esse as­pecto de deixar cair o sujeito, mas pode-se também tentar.

Vou dar um passo atrás sobre a questão da passagem ao ato. Há um trabalho a ser feito da equipe sobre ela mesma, sobre a maneira de apresentar as regras, os limites, analisar as circunstân­cias nas quais houve essas passagens ao ato e tirar daí lições para a maneira de praticar. Houve uma crítica, uma análise desses epi­sódios pelo serviço?

Platéia: Posteriormente, quando nós chegamos a discutir o caso, porque realmente era um caso difícil de estar levando, nós discutimos essas situações separadamente como a do jogo de fute-

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boi, a agressão das mesas, ou seja, em que situações ele reagiu dessa forma agressiva. Então, pensamos da não participação no futebol, pois isso foi uma gota d' água no dia em que ele quebrou o carro, e outras situações em que, na instituição, ele ficava agressi­vo, que a gente poderia estar negociando de uma outra forma esse dizer não para ele. E retomamos também o que ele acabou de co­locar, de como fazer a equipe interagir um pouco mais nessas res­postas a ele, cada um não dizer de maneira diferente, agir diferen­te, pensar uma forma de estar l idando nessa negociação, de colo­car limites.

Platéia: Eu penso nessa negação, em relação ao momento do laço social que seria uma partida de futebol e lembrando de expe­riências aqui em 1 994 no hospital dia em que E.M. pôde ser pre­miado pela própria equipe com uma medalha por ter conseguido que o time ganhasse. Nesse momento ele oferece a medalha para mim, e eu a devolvo a ele, no sentido de retomar o mérito. Foi positivo no sentido de trazer mais para um sentido pessoal, de que é possível ele conseguir, o mérito pode ser dele também, ele é capaz.

Alfredo Zenoni: Você devolveu a medalha a ele? Ele aceitou a medalha de volta? Poderia ser também uma possibilidade por­que para os sujeitos psicóticos nós somos apenas depósitos, recep­táculos, onde eles podem depositar alguma coisa do seu ser, por exemplo no modelo dos escritos, as cartas que eles nos escrevem, os diários que eles depositam em nós, fotos. Não é para que nós gozemos disso , mas para sermos depositários. O consultório do analista é um local de esvaziamento, de depósito. Isso pode ser uma forma d9 sujeito de ter um lugar no lugar do Outro, estando ao mesmo tempo separado do seu ser de gozo. Suas cartas não ficam com você, é alguma coisa do ser que se encontra localizado nas cartas, ele se separa e ao mesmo tempo ele não se separa por-

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que ele está depositado no seu consultório. É uma inscrição com uma certa separação do seu ser de gozo. Talvez a medalha poderia ficar lá depositada, assim como o instrumento de luta marcial, de­positado. Tudo que é uma exteriorização do ser do sujeito para além do analista. A própria instituição pode ser esse lugar de depó­sito. Sob o modelo do que é o depósito por excelência, que é o depósito dos escritos, das obras, dos desenhos, das pinturas, isso faz uma ligação com a sua questão. Eu coloquei a questão, se não deveríamos dar mais ênfase ao trabalho, no sentido de uma práti­ca, do que ao trabalho no sentido remunerado. O trabalho como inscrição social de ter tal profissão, isto pode subsistir em um su­jeito como um ideal . É o caso de nosso paciente, um trabalho fixo. Isso me parece realmente da ordem do como se, que não deve ser desprezado, isso faz parte de um suporte imaginário, mas eu per­gunto se deveria encorajar o sujeito nesse sentido se ele mesmo não vai nesse sentido, porque no dia que ele tem essa possibilida­de ele toma uns três comprimidos de Diazepan e não acorda. Há muitos sujeitos que dizem, eu quero fazer uma formação, e no dia em que eles podem ir a essa formação eles fazem uma tentativa de suicídio, uma passagem ao ato e vão se refugiar no hospital. Então a inscrição no laço social comporta para cada sujeito um apelo ao Nome-do-pai. Um significante que chama o sujeito no momento em que ele está sozinho. É por isso que alguns sujeitos podem trabalhar desde que a empresa seja inscrita em nome do pai, ou do tio, mas quando ele tem que procurar sozinho um trabalho, aí apa­rece a dificuldade de justificar a sua existência com os próprios fundos.

Em oposição ao trabalho que comporta essa inscrição no so­cial e essa responsabilidade, outras práticas que comportariam mais o ser do sujeito, práticas artísticas por exemplo, estão menos liga­das ao contrato social, ao engajamento e à responsabilidade, mas podem exteriorizar o ser do sujeito, localizar algo do gozo. Essas práticas não seriam um lugar de satisfação mais compatível com o

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laço social do que a perseguição de ideais vazios? Porque na hora que se trata de realizar esses ideais, o sujeito passa em casa e toma uns comprimidos de Diazepan. Ele dá um jeito de sair de cena, de se suicidar socialmente. É a angústia que aparece. Essas práticas podem fornecer ao sujeito algo mais compatível com o lado soci­al, mais do que perseguir o sentido social do trabalho no sentido restrito. Há duas formas de trabalho na psicose. Primeiro, o traba­lho do delírio, o registro da metáfora, o sentido assintótico e se ele não é assintótico, ele pode desembocar na passagem ao ato. Quan­do dizemos assintótico é para evitar, por exemplo, que o sujeito se faça trocar de sexo no real, onde o momento de compreender de­semboca na passagem ao ato. É por isso que com o último ensino de Lacan sobre a psicose, mais do que desenvolver a dimensão auto-terapêutica do delírio, no sentido que Freud dizia que o delí­rio é uma tentativa de cura, há a idéia de desenvolver uma outra pragmática da l inguagem que não coloca tanto o assento sobre o sentido, a interpretação, mas sobre práticas da letra em que a lin­guagem é apreendida, sobretudo, no sentido do objeto, do real, e, em continuidade com isso, toda a prática de produção de objetos fora do corpo é uma outra via de sintomatização, do que a do delí­rio. São duas formas possíveis, mas o delírio comporta sempre o risco de chegar a uma conclusão e pode ser no ato. É uma maneira de tratar o objeto a, que na psicose permanece no bolso do sujeito, de tratá-lo fora do corpo com a letra, objetos de arte, todas as prá­ticas que o sujeito pode encontrar para conectar esse objeto real com um semblante, a linguagem, que é uma forma de satisfação pulsional diferente da alucinação auditiva ou da passagem ao ato.

Andréia : eu acho que esta questão que ele está colocando do pós-hospital poderia ser, tratar com os lares abrigados. É o que estamos tentando, mas esta inscrição, se eu entendi direito a im­portância desta inscrição, porque ela não poderia ser trabalhada através do CERSAM, que é uma instituição? Mesmo que fizésse-

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mos essa tentativa de ele estar morando num quarto, numa pensão por enquanto , por que essa inscrição que ele propôs no hospital não poderia ser no CERSAM? Essa é a questão que eu coloco para ele.

Alfredo Zenoni: a ressalva é que o serviço aberto não tem nenhum alojamento. Mas pode ser uma inscrição. A inscrição pode se no hospital se o paciente concorda, se ele diz que viver na sua família é se confrontar com o gozo do Outro, seus primos que são traficantes. Para alguns sujeitos tudo o que é tráfico de drogas, tráfico ilícito é uma presentificação do gozo do Outro. Ele se sente concemido. Se viver na sua família é insuportável, talvez seria uma alternativa dizer que o seu alojamento é o hospital. Mesmo se ele vive com sua família. O alojamento oficial não é onde está o gozo. Pode ser o hospital na falta de ter uma outra estrutura residencial. É preciso ver como o sujeito toma isso, é preciso ver se isso se apresenta no fio do que ele diz. Há sujeitos também que não querem ter nada a ver com o hospital, na medida em que o hospital não funciona para ele como abrigo, mas assimilação aos outros loucos. É preciso ver com o sujeito, mas eu estou me base­ando no que ele diz. Quando ele diz que no hospital ele está na casa dele, e que ele precisa só da chave, isso não é uma razão para mantê-lo no hospital, mas é preciso pensar que lugar dar ao hospi­tal no seu esquema geral ou no serviço do dia.

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