os anais do 12º cole e do i congresso de história da leitura e do
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I Congresso de Histria daLeitura e do Livro no Brasil
12 COLECongresso de Leitura do Brasil
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I Congresso de Histria da Leiturae do Livro no Brasil
13 a 16 de outubro de 1998Auditrio do Instituto de Estudos da Linguagem
Unicamp Campinas/SP
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Apresentao
Foto de ngelo Jos da Silva
Este Congresso pretende congregar pesquisadores provenientes de
diferentes reas do conhecimento envolvidos com trabalhos que tematizem a
questo da leitura e das formas como ela se realiza. A leitura, como
evidente, perpassa todo trabalho intelectual desenvolvido nos ltimos
sculos, de forma que o estudo de sua histria traz contribuies para os
mais variados campos do saber, principalmente para a reflexo sobre a
literatura, educao, histria cultural, poltica e cientfica brasileiras.
A histria do livro no Brasil estava, at h pouco tempo, por se
escrever. Eram inmeros os silncios e as lacunas da historiografia quanto
aos livros, s bibliotecas e s prticas de leitura, particularmente no perodo
colonial. Os estudos, quando se preocupavam com as bibliotecas no Brasil
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como um todo, pecavam ou por no se embasarem numa anlise quantitativa
mais slida, ou por no avanarem sobre o campo das prticas de leitura e
das formas de apropriao das idias contidas nos livros.
Mais recentemente, no entanto, este panorama veio a alterar-se.
Realizaram-se investigaes baseadas, em maior ou menor escala, no uso da
quantificao e que, sobretudo, esboaram uma interpretao sobre a leitura
e a recepo dos livros no pas. Alguns estudos concentraram-se na
abordagem de bibliotecas de indivduos, de grupos, de instituies, outros
detiveram-se sobre a circulao de livros em circunscries geogrficas
delimitadas. Outros ainda buscaram identificar prticas de leitura a partir da
anlise dos prprios textos em circulao, ampliando, nestes casos, os
limites geogrficos e temporais. H autores que procuraram correlacionar
movimentos polticos, ideologias, livros e prticas de leitura, enquanto
outros examinaram a relao entre a produo literria e o mercado
editorial, ou entre polticas educacionais e circulao de livros. Como se v,
as investigaes debruam-se sobre cruzamentos variados entre leitura,
livros, movimentos culturais, polticos em diferentes espaos e perodos
histricos.
Se j existe uma discusso slida referente a algumas pocas e temas,
os pesquisadores, entretanto, trabalham de forma relativamente isolada, o
que mostra a oportunidade da reunio daqueles que se dedicam ao tema da
histria da leitura para que se realizem discusses interdisciplinares que
podero fazer avanar as pesquisas e mostrar as lacunas existentes.
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Assim, o objetivo deste Congresso fazer um balano dos trabalhos
realizados at aqui, identificando avanos, lacunas, reas que demandam
investigaes. Quer-se, deste modo, oferecer aos pesquisadores de
diferentes reas a oportunidade de debater mtodos e resultados de pesquisa.
Deseja-se, alm disso, permitir-lhes a identificao e a superao das
especificidades temporais e espaciais que marcam a histria do livro no
Brasil e, tambm, possibilitar-lhes a superao dos limites inerentes s
prprias perspectivas de anlise que so fixadas pelas reas de saber em que
atuam. Enfim, com este Congresso, almeja-se traar um panorama da
histria do livro no Brasil, fomentar trocas entre pesquisadores de diferentes
campos do conhecimento e estimular a realizao de trabalhos
interdisciplinares em futuro prximo.
Marisa LajoloMrcia AbreuPercival BritoMarisa Lajolo -
rgos Envolvidos
Instituies Promotoras:Associao de Leitura do Brasil (ALB)Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita (CEALE)
Apoio Institucional:Instituto de Estudos da Linguagem,UNICAMP (co-promoo)
Comisso Organizadora
Equipe de Coordenao:Mrcia Abreu (Coordenao Geral (ALB-UNICAMP)Luiz Carlos Villalta (UFOP)Lilian Maria Lacerda Sturzeneker (CEALE)Luciano Faria Filho (CEALE)
Secretaria Geral:Luis Percival Leme Britto (ALB)
Secretaria:Cludio Platero (IEL)
Tesouraria:Glucia Pcora
Coordenao de Monitoria:Guilherme do Val Toledo
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GT 1: Literaturas e leituras: histrias
Imagens de mulheres em PerraultAnete Abramowicz
Bomio: (De La) Mancha da sociedadeJlio Csar de Oliveira
A criana e o livro: memria em fragmentosMrcia Cabral da Silva
Leitores nas leiturasMarisa Martins G. Khalil
Mais que o silncio a censura da ditadura militarno sistema literrio brasileiroRildo Cosson e Cntia Schwantes
Bem do seu tamanho (1980), de Ana Maria Machado:afirmao de um gnero literrioSenise Camargo Lima
Catlogos de Literatura infanto-juvenil: o que elesnos dizem sobre leitor, leitura, escola e mercadoRosa Maria Hessel Silveira
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Foto de ngelo Jos da Silva
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CONTOS DE PERRAULT, IMAGENS DE MULHERES
Anete Abramowicz
Este trabalho, faz parte da minha tese de doutorado intitulada: histrias e contos
de mulheres e discute o processo de apropriao das histrias populares orais, dos sculos XII
ao XV, por Perrault, configurando as imagens de mulheres consagradas e celebradas em seus
contos de fadas, mostrando, como tais modelos de mulheres so construdos e inscritos num
determinado contexto e como propem valores.
Em 1910 Antti Aarne publica o primeiro catlogo sistemtico sobre os contos,
que inventariado e classificado segundo as normas histrico-geogrficas. Em 1928, o
folclorista americano Stith Thompsom completa e aumenta esse catlogo, e a cada ano inclui
novas verses. Em 1961 o livro reeditado consideravelmente ampliado e pretende ser um
catlogo sistemtico de todos os contos populares do mundo.1 Repertoriar os contos de fadas
no uma tarefa fcil dada a dificuldade inerente aos contos de se fixar por escrito as tradies
orais. Alguns dos contos reportam-se aos sculos XII ao XV e foram sofrendo transcries nem
sempre fiis oralidade. Antti Aarne e Stith Thompsom postulam igualmente a existncia para
cada conto-tipo de um arqutipo, ou seja, de uma forma original ao conto da qual derivariam
todas as verses verificadas e tambm, sem dvida nenhuma, outras perdidas no caminho. A
esse arqutipo eles determinam uma existncia histrica, considerando que cada conto-tipo
nasceu num local nico, partir do qual se difundiu. Os autores supem que os contos se
transmitem sem transformaes importantes durante longos perodos, de gerao em gerao,
mas, assim que eles emigram para outras reas geogrficas, se modificam para se adaptar ao
novo contexto cultural.
Muitos estudos na lingstica, entre romancistas e etngrafos, foram e so
elaborados sobre os contos de fadas. Alm dos trabalhos dos classificadores, h os folcloristas,
sendo que um dos primeiros que abriu caminho para uma renovao desses estudos foi o russo
Vladimir Propp, a partir de uma nova proposta de anlise estrutural e das significaes do conto
fantstico russo. Publicou em 1928 o livro: Morphologie du conte2, conhecido no Ocidente em
1958. No entanto, foram os estudos centrados na Psicanlise de Jung, Freud e Bettelheim que
difundiram no Ocidente uma certa maneira de abordar e uma outra forma terica de
esquadrinhar os contos de fadas, que foram considerados como relquias que trazem os
fantasmas que assolam a humanidade.
1 Antti Aarne et Smith Thompsom, The Types of the Folktale. A Classification and Bibliography, Helsinki(F.F.C. no 184), 1961. E Catherine Velay-Vallantin LHistoire des contes, Librairie Arthme Fayard,1992.2 Vladimir Propp, Morphologie du conte, Points, Seuil, 1970.
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Para Bruno Bettelheim3 os fantasmas mais difundidos na tradio oral parecem
ser os mais arcaicos, aqueles que remontam pequena infncia. O conto pensado nessa
perspectiva consagra os elementos de magia e perpetua um certo poder existente nos contos.
Mas do ponto de vista da histria dos contos de fadas o que h uma ausncia,
a histria cultural e social dos contos de fadas a histria dessa ausncia. como se uma
investigao histrica e social pudesse destruir seus poderes mgicos; dada a universalidade dos
contos de fadas parece de pouca importncia definir onde e quando, e para quem foram escritos.
Jack Zipes ser um dos primeiros historiadores a estudar a histria do conto, no sentido de
propor a subverso desse universo, j que um universo inscrito, apesar de sua aparente
neutralidade, universalidade e imutabilidade, num determinado contexto e prope valores.
Valores que foram aceitos como legtimos, por exemplo, durante o perodo da Alemanha
Nazista.
A partir do sec. XVII, com os contos de fadas, Perrault constri com suas
histrias de mulheres, tendo como substrato os contos orais populares, que so largamente
difundidos e contados s crianas at hoje em dia. So imagens simples, claras e
unidimensionais do ponto de vista da perspectiva da narrativa.
Tais imagens variam entre as mulheres ms e as boas. Quando ms, habita a
inveja, o ressentimento, a feiura, a velhice, a perverso, e, obviamente, a maldade e so as que
esto retratadas nas bruxas e nas madrastas, j que as imagens de mes tambm so construdas,
como contraste. Tais mulheres so castigadas no final, morrem, mas no s isto, morrem
exemplarmente, ou ocorre uma inverso de papis, em que elas, de alguma maneira, acabam
sendo submetidas s maldades que cometeram. H as mulheres nem boas e nem ms, so, por
exemplo, mes pobres, que so obedientes e se submetem s ordens do marido, como,
abandonar os filhos na floresta, no caso do Pequeno Polegar.
A pobreza sempre uma referncia, negativa, que faz parte de um certo clima
triste, amargurado, de uma temporalidade sem tempo, em que o trabalho sempre o mesmo,
opressivo e repetitivo. O conto da Cinderela descreve estes trabalhos, nos quais os de casa so
exemplos, que Perrault os qualifica como sendo os mais grosseiros. Ali o trabalho domstico
retratado como negatividade, opresso, submetimento, e ficar rica uma das recompensas
oferecidas. Quando h pobreza, h um trabalho incessante e domstico, que sempre
abandonado pela mulher quando lhe concedido um final feliz. Como mgica, desaparece o
trabalho domstico e quem os realiza.
As qualidades consagradas por Perrault s mulheres exemplares so: bondade,
submisso e obedincia, pacincia, aceitao de uma situao dada, compaixo, generosidade,
graa. Esses atributos femininos esto disposio de um homem que os reconhec,e se case
com aquela que os porte.
3 Bruno Bettelheim, Psycachanalyse des contes de fes. Paris, Laffont, 1976.
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Nos contos clssicos mais populares, como Chapeuzinho Vermelho, a menina
vista como ingnua, infantil e ignorante. A menina quando retratada nos contos de fadas ou
tem um papel secundrio, ou vista com as caractersticas descritas no conto da Chapeuzinho
Vermelho, no qual a ingenuidade e a ignorncia soa s qualidades celebradas e consagradas.
H uma ordem hierrquica na famlia retratada nos contos clssicos: o pai no
cume, em seguida a me, depois os filhos (meninos) e por fim as meninas. Esse o retrato da
famlia patriarcal que no foi absolutamente alterado, mas, sim, constantemente reafirmado e
enfatizado.
O que constri Perrault? O que faz com as histrias contadas oralmente? O que
a escrita busca perpetuar?
Reconstruir a histria dos contos no uma tarefa fcil, como j foi dito, pois
eles trazem tona elementos da oralidade, o seu carter popular e, posteriormente, o tema da
infncia, elementos que nem sempre tiveram importncia nos estudos scio-histricos. Os
contos so originrios de oralidades e foram contados popularmente e esse carter oral se
perpetua nos contos mesmo quando esto escritos.
No momento da produo dos contos, o lugar da oralidade determinante.
Essas histrias foram apropriadas pela mquina de escritura, o que significou que estratgias
editoriais passaram a ter importncia. Os contos, no sec. XVII, esto submetidos s regras de
conversao, quanto mais so ornamentados mais so aceitos como uma forma de discurso
dominante. O carter de oralidade persiste (os contos so para serem contados), mesmo
perdendo sua temporalidade como se tivessem existido desde sempre. Perrault pretende
capturar o pblico da biblioteca azul4. este seu carter oral e popular que permite outras
verses, que so muitas.
Essas histrias descolam de seus meios de produo e subsistem como uma
espcie de energia social, (re) produzindo e (re)propondo modelos de condutas e de feminino,
ou seja, uma literatura oral que se mantm de uma poca a outra sob formas historicamente
diferentes. Estudiosos dos contos de fadas mostraram que este despregamento histrico
permitiu, por exemplo, na Alemanha, que eles fossem usados pelos nazistas para legitimar o
racismo, o sexismo, o autoritarismo, reabilitando uma herana teutnica (Vellay-Vallantin,
1992). Os contos de fadas clssicos foram os mais difundidos e conhecidos das crianas e dos
adultos durante a Repblica de Weimar e no perodo nazista e encontraram um terreno favorvel
durante o 3o Reich. Os contos foram usados com o intuito de persuadir as crianas a se
conformar com os modelos dominantes no processo de socializao.
4 A Biblioteca Azul so sries editadas em Troyes, ao longo do sc. XVII, que reunia textos bemdiferntes entre si, no exclusivamente populares, mas todos uniformizados em edies que pretendiambaratear ao mximo seu custo e alcanar o maior nmero possvel de leitores.
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Apesar dos contos serem utilizados durante o perodo fascista para dar s
crianas o senso da raa e da sua herana nrdica, isto no significa que eles foram assim
aprendidos.
O conto no um objeto imvel, ele (re)apropriado de vrias maneiras, ele
no repetido ao infinito da mesma forma. O conto Barba Azul, por exemplo, um conto que
no final do sc. XVII modificado de sua verso oral para a verso escrita, pis estava presenta a
idia da cristianizao de seu pblico. No conto da Cinderela h diferentes verses orais que
emanam de uma tradio matriarcal e que ridicularizada na verso de Perrault que projeta um
modelo de passividade feminino que no estava prsente na oralidade5; o que deve ter sido
levado em conta para tal modificao foi o auditrio a que se destinava. O conto do
Chapeuzinho Vermelho tem o seu eplogo modificado, pois um certo pblico no pode suportar
o final dado por Perrault, e cria solues como a do caador salvador.
o carter civilizador, a civilidade que a chave para se compreender o papel
que os contos de fadas tiveram na Frana, e sua importncia na dinmica da civilizao,
segundo Zipes. Um discurso simblico, sobre o processo de civilizao.
Esse processo civilizador coincide com um acrscimo de poder scio-
econmico da burguesia, em particular na Frana e na Inglaterra, de tal maneira que as
transformaes sociais e religiosas e as perspectivas polticas foram representativas, por sua vez,
dos interesses aristocrticos e burgueses. Esse processo civilizador significa tambm, na poca
da Reforma, uma caa s bruxas. Por isso os contos de fadas esto permeados de bruxas,
feiticeiras e matanas. O homem civilizado o homem da corte acrescido das qualidades
burguesas de honestidade, aplicao, responsabilidade e ascetismo. Nos contos de fadas no h
padres e nem igrejas e as transformaes mgicas no levam a nenhum outro mundo, o mesmo
mundo, porm civilizado e higienizado. O sonho dos personagens das classes inferiores ou das
pessoas oprimidas no se realiza pela criao de uam nova ordem social ou de novas relaes
familiares, mas sim de se obter reconhecimento no interior e no exterior de sua famlia de
origem, pois a tenso, e no a harmonia, a caracterstica das relaes familiares, h conflitos
na famlia, mas no h rejeio.
A noo de civilidade indispensvel para interpretar o conto como um
discurso literrio com o objetivo de nutrir de hbitos, prticas e valores permitindo uma
entrada mais fcil na civilizao regida por cdigos sociais aristocrticos, necessrio de se
analisar as narraes como apelos s reivindicaes nobres e s novas alianas scio-culturais
(Velay-Vallantin, Catherine).
5 No conto oral da Cinderela deseja-se sobretudo ser reconhecida e no se casar, o fato de usar roupasbizarras afirmao simblica de sua fora e independncia de seu carter, e no desejo de ter ummarido que a tire dessa condio (Zipes, 1986)
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Nos contos de Perrault a infncia est presente no seio de uma comunidade que
no se situa em termos de pblico especfico, no entanto, quanto mais os contos de fadas passam
a ser destinados infncia mais moralizadores se constituem.
Se compararmos os contos populares orais nascidos na tradio das sociedades
matriarcais, que colocam em cena o modelo do casal animal, com as verses literrias dos
contos maravilhosos, por exemplo, da Bela e da Fera, ao final do sc. XVII, fica evidente as
transformaes das maneiras de representar as configuraes sexuais e os modelos culturais que
so conformados s transformaes significativas ocorridas na dinmica da civilizao. A
mulher quem far as vestimentas humanas e far o homem-animal aceitar a casa como uma
ocupao domstica. O modelo cultural simblico do matriarcado que designa a mulher como a
iniciadora da ao e da integrao do homem foi constantemente colocado em questo durante
os sculos tanto na tradio oral quanto na literria. Isto resulta que no fim do sculo XVII, a
salvao feminina s pode ser cumprida com a sacrificao da mulher ao homem, na casa ou
no castelo, em submisso simblica s regras patriarcais. A partir da os contos elaboram
configuraes, produzindo, assim uma constelao esttico-ideolgica em que a autoridade do
macho exerce seu poder de professor ou de moderao sobre a mulher, construda como
ingnua, volvel e fraca. Para provar o seu valor a jovem mulher deve revelar, pelas suas aes,
as qualidades de modstia, perspiccia, humildade, esforo e virgindade e deve ter a capacidade
de esquecer-se de si. O jovem homem geralmente mais ativo e deve revelar suas
caractersticas, tais como a fora, a coragem a sagacidade. Apesar de os contos de fadas
clssicos serem evidentemente marcados pelo feudalismo, a perspectiva narrativa dos contos
de fadas mescla a concepo de mundo campons com o humanistarismo democrtico da
burguesia nascente. Os contos de fadas, em particular, foram usados conscientemente e
inconscientemente, durante a asceno da burguesia, para designar os papis socialmente
aceitos para as crianas. O tratamento dado aos membros da famlia frequentemente
diferenciado segundo os critrios de classe, de riqueza ou de poder. Entretanto, o modelo
emocional dominante que emerge das diversas descries familiares coloca nfase sobre os
princpios de restrio moral, de represso sexual, de abstinncia, exercidas pela figura do
macho, mas que finalmente recompensado pelos valores prprios burguesia, com um slido
casamento ou uma situao socail segura.
Assim, durante anos e anos ouvimos os contos de fadas em que a mulher depois
de um longo percurso de submisso contemplada finalmetne com um prncipe, que lhe uma
graa consentida, e um casamento, para que apenas, dali em diante, possa ser feliz. Parece que
dali se vai adiante, mas na realidade aqui h um enganche no passado. So modelos de
sociedade que se impem com uma imagem tradicional da famlia e a promessa de um lar, com
valores, formas de condutas, de felicidades e promessa de futuro, um nico, o casamento para as
mulheres e a riqueza. Muitas crianas ouvem tal histria, algumas meninas esperam ansiosas
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para que tal futuro tambm lhes acontea, outras se encantam com a magia da leitura e da
narrao, outras se esforam para parecerem com os modelos propostos.
Perrault escreveu muitas histrias sadas de oralidades, algumas foram
simplificadas, modificadas, por ele mesmo, ou por novas verses e mutias foram, totalmente,
ridicularizadas por Disney. Muitos contos foram roubados de seu horror e ficaram sem graa.
Tomar os contos como estratgia de contar histrias propondo outros contos, para ser a
subverso deste universo o que se coloca.
H um desenvolvimento e uma subverso lenta que vem sendo feita pouco a
pouco deste discurso literrio, uma nova magia, subvertida. No entanto, sabemos pouco sobre o
uso que fazem as crianas e as meninas desse discurso, com certeza, muitas j o subvertem.
Essa subverso se realiza, tambm, a partir de uma abordagem interdisciplinar, em que a
histria cultural, a histria das mulheres, as mltiplas prticas discursivas e a histria das formas
materiais indissoluvelmente mescladas, enquanto linhas, na semitica do conto. Sendo
necessrio (re)escrever outros contos, outros acontecimentos anunciando outros espaos-
tempos-de-feminino ou derives-femininos, realizando subverses neste universo.
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BOMIO: (DE LA) MANCHA DA SOCIEDADE
Jlio Csar de Oliveira1
Partindo do pressuposto de que o constante dilogo entre a Histria e a Literatura
contribui para suscitar uma discusso crtica entre os historiadores, e tambm para romper as
amarras daqueles que insistem em fixar uma fragmentao entre os que lidam com a histria e
aqueles que trabalham com a cultura, constitui-se como objeto de reflexo deste texto
estabelecer um dilogo entre o personagem Dom Quixote de la Mancha, da obra homnima de
Miguel de Cervantes, e o bomio, personagem urbano, noturno, que emergiu no seio da
modernidade.
Esse dilogo possvel em virtude de algumas aproximaes que podem ser
estabelecidas entre ambos: tanto um como o outro testemunharam o estranhamento gestado na
encruzilhada de seus respectivos tempos, a saber, Dom Quixote, o fim da Idade Mdia e o incio
da Idade Moderna e o bomio, o turbilho cultural e comportamental da transio da
modernidade para a ps-modernidade.
Segundo Matos2, os estudos realizados sobre o cotidiano tm, na maioria das vezes,
canalizado suas energias e atenes s atividades diurnas, associando-as a uma reflexo que
prioriza o universo do trabalho. Esta abordagem tem contribudo para que se tenha uma
concepo esttica e mecanicista dos espaos fsicos e sociais criados pelos homens, fazendo
com que a noite permanea enquanto um mero fenmeno natural e previsvel, desprovida de
magia e supostamente incapaz de transformar e realizar prticas e relaes de sociabilidade
tecidas entre os homens.
A histria centrada no cotidiano diurno contribui tambm para que se tivesse uma
concepo idealizada da figura do bomio, ou seja, sempre que invocamos a imagem do
bomio, a associamos a de um ser avesso a quaisquer normas e regulamentos impostos pela
sociedade do trabalho. O que nos impede, segundo Matos, de vislumbrar o bomio enquanto um
1 Mestrando em Histria PUC/SP. Bolsista CAPES.2 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran Experincias bomias em Copacabana nos anos 50.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 158 p. / MATOS, Maria Izilda Santos de, FARIA, Fernando A. .Melodia e sintonia em Lupicnio Rodrigues. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. 178p.
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ser mltiplo que vive de uma forma diferente e elabora e concebe regras de uma forma
distinta.
Tentando apreender o cotidiano em uma outra perspectiva, esta pesquisa prope-se a
refletir sobre a vida noturna da cidade de Uberlndia nas dcadas de 50 e 60. Buscando assim
captar o pulsar noturno, cuja magia capaz de transformar uma reles mercearia em um agitado
bar. Durante o dia, este local povoado por homens, mulheres e crianas (que estabelecem entre
si mltiplas relaes), comercializa po, leite e cereais. Ao chegar a noite esta mercearia
transforma-se em um territrio onde comercializa-se a bebida; o espao, que at ento era
preenchido por sacos de cereais, mulheres e crianas, passa a ser ocupado por mesas, cadeiras e
homens.
A noite, com os seus protagonistas, alguns annimos, outros nem tanto, revela
magicamente no servente de pedreiro um cantor, cuja voz impregnada de cimento e cal excita
e transforma, mesmo que esporadicamente; revela tambm no escrivo um poeta e na prostituta
uma musa.
Portanto, pretende esta reflexo ter como ponto cardeal, a lio apreendida no dilogo
com a obra de Matos, ou seja, entender que a experincia bomia deve ser focalizada de forma
relacional, complementar e interdependente do dia e do trabalho, no como estando em
confronto; tambm no se pode simplesmente identific-la como de resistncia, de submisso
e/ou ilegtima, devendo-se destacar toda heterogeneidade de manifestaes e vivncias que
circulam no universo da bomia.3
- HISTRIA E LITERATURA
A partir do sculo XX tornou-se possvel observar uma efervescente renovao
intelectual entre os historiadores e conseqentemente na escrita da histria. A busca incessante
de novas formas para apreender e abordar o passado levou os historiadores modernos a um
constante dilogo com a Sociologia, Psicologia, Antropologia e a literatura; o que possibilitou
3 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran Experincias bomias em Copacabana nos anos 50.Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1997, p.27.
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aos que lidam coma cincia da histria insights tericos e metodolgicos e o descobrimento de
novas fontes histricas.
Quanto ao dilogo existente entre a histria e a literatura, tem ele ensinado aos
historiadores, dentre outras coisas, a aceitarem o papel importante da linguagem, assim como
dos textos e das estruturas narrativas, no somente na descrio da realidade histrica, como
tambm na sua criao.
Mas a reflexo e o estudo da literatura, realizado no seio de uma pesquisa
historiogrfica, exige cautela e ateno, pelo motivo de tal estudo preencher-se de significados
muito peculiares. Se no vejamos.
Inicialmente, devemos levar em considerao que o escritor tem como preocupao
aquilo que poderia ou deveria ser, o seu comprometimento mais amplo com a fantasia do
que propriamente com a realidade. Ou seja, a ucronia, processo por meio do qual o escritor
imagina o que poderia ou deveria ter sucedido se um determinado fato histrico no tivesse
ocorrido.
Se a literatura fornece uma possibilidade do vir-a-ser, uma espcie de mundo paralelo
no qual se pensa um desenrolar de um fato histrico que no se concretizou, o historiador
preocupa-se com o ser das estruturas sociais e portanto coma apreenso do real. Mas, ser,
como indaga Sevcenko4, que toda realidade da histria se resume aos fatos e ao seu sucesso?
Segundo Kramer5, para o historiador Hayden White, influenciado por Nietzche,
Foucault e Derrida, a concepo que fragmenta fato e fico constitui-se em tabus que
inviabilizam o uso de insights oriundos da literatura e da arte, tornando os historiadores cegos
para os processos reais do seu trabalho. Ou seja, por no vislumbrarem o elemento imaginrio
presentes em suas obras, acreditam os historiadores que transcenderam a fico simplesmente
por imporem rigorosas metas para a disciplina da histria.
4 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso Tenses sociais e criao cultural na PrimeiraRepblica. So Paulo: Brasiliense, 1985, 257 p.5 KRAMER, Loyd S. Literatura, crtica e imaginao histrica: o desafio literrio de Hayden White eDominick Lacapra. In: HUNT, Lynn (org.). A nova histria cultural. So Paulo: Martins Fontes, 1995,p.131-76.
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Portanto, ao se refletir sobre uma histria dos desejos e possibilidade que no foram
concretizados estaremos abrigando frestas e portas alternativas que possibilitanm compreender o
mundo daaueles que ficaram margem dos fatos e do sucesso.
Partindo dessas inquietaes e reflexes cabe, a partir de agora, tecer alguns
comentrios sobre a obra Dom Quixote de Miguel de Cervantes tentando perceber como ela
oferece um ngulo admirvel para o estudo e a apreenso da cultura bomia em Uberlndia nas
dcadas de 50 e 60. Para tanto, ser sucintamente analisada a trajetria histrica desta cidade no
perodo citado, ressaltando o seu universo noturno.
- UBERLNDIA NAS DCADAS DE 50 E 60
A cidade de Uberlndia entrecortada pelas latitudes e meridianos da ordem e do
progresso surge oficialmente para o Brasil e para o mundo em 31 de Agosto de 1888, quando a
vila de So Pedro de Uberabinha guindada a condio de Cidade Sede da Comarca de 1a
Entrncia.
J no crepsculo do sc. XIX o visionrio Coronel Jos Tefilo Carneiro movimentou
o cu e o inferno do universo coronelstico do Brasil para que os trilhos da Cia Mogiana, que
inicialmente chegariam somente at Uberaba e de l estenderiam-se para Estrela do Sul e
Catalo, chegassem at Uberlndia. Acontecimento que materializou-se em 1896 com a
inaugurao da estao ferroviria e conseqentemente com a interligao da cidade com o
mercado industrial e comercial importador de So Paulo, tornando Uberabinha (atual
Uberlndia) o elo mais extremo localizado ao Oeste dos portos de Santos e Rio de Janeiro.
Outro fator importante para o impulso econmico da cidade verificou-se com a ecloso
do movimento separatista do Tringulo Mineiro no ano de 1905, cuja meta era a criao do
Estado do Paranaba. O que fez com que o Estado de Minas Gerais e a Unio facilitassem
projetos polticos e a remessa de capital para a regio, o que culminou com a construo, em
1909, da Ponte Afonso Pena sobre o rio Paranaba, interligando a regio do Tringulo a todo
Sudeste de Gois e ao Estado do Mato Grosso.
Na esteira do movimento separatista foi criada em 1912, a Cia. Mineira de Auto-viao,
que por iniciativa do capital privado local, construiu uma malha de estradas rodovirias, depois
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modernizadas por J.K., que possibilitou a ligao entre as cidades circunvizinhas e a
comunicao entre estas e o estado de Gois.
A somatria da Cia. Mogiana, Cia. Mineira de Auto-viao e mais a ponte Afonso Pena
constituiu-se na santa trindade, cujo milagre foi transformar a cidade de Uberlndia em um
grande centro comercial por onde circulava o embrio do progresso.
Um novo salto em direo ao progresso tornou-se perceptvel a partir da dcada de 50
(recorte escolhido para apreender e refletir sobre a cultura bomia em Uberlndia), quando nos
primrdios do governo J.K., pautados pelo clima de euforia e confiana, uma vez que o governo
centralizava suas aes na industrializao concebida enquanto uma chave-mestra, capaz de
emancipar todo o povo brasileiro e possibilitar nao o bem estar social e geral. Braslia,
nesse contexto de euforia e f, representava o sinal dos novos tempos, ou seja, de um novo
Brasil e tambm de uma nova maneira de ser. O que levou o Estado a investir, dentre outras, nas
reas ligadas ao setor pblico, tais como a construo de Braslia e a abertura de estradas.
Os reflexos da poltica desenvolvimentalista de J.K. logo se fizeram sentir em
Uberlndia, uma vez que a construo de Braslia fez com que esta cidade e seu entorno se
transformassem em uma referncia obrigatria para o entrecruzamento de estradas ligando o
sul, norte, nordeste com o centro-oeste do pas. Nesta tica desenvolvimentista, pesados
investimentos federais foram canalizados para a regio. Tambm deve-se salientar que na
dcada de 60, graas a poltica de ocupao dos cerrados (Polocentro) implementada pelo
estado, possibilitou a regio do tringulo mineiro o desenvolvimento da cultura da soja, do
milho e do caf; transformando a cidade de Uberlndia em um grande centro de armazenagem,
distribuio e exportao de gros.
Concomitante a esse crescimento econmico,a cidade recebia um grande nmero de
migrantes, que para c se dirigiam em busca de trabalho e de melhores condies de vida. O que
levou a classe dominante impor em 1950 o seu Cdigo de Postura, fundamentado no Cdigo
Penal Brasileiro de 1940, que dentre outras coisas, assinalavam que s seriam tolerados na
cidade os necessitados naturais de Uberlndia.
Em 1954 iniciava-se um planejamento urbano gestado pelo engenheiro Otvio Roscoe
(DER-MG). Este planejamento pautava-se no trinmio: trfego, urbanizao e saneamento.
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Culminando na meta central de tornar a cidade um local propcio aos mega-investimentos de
capital, canalizados para a construo de novas estaes ferroviria e rodoviria, alargamento de
avenidas comerciais e rodovias, e a criao de um centro industrial que viabilizasse o progresso.
No casusticamente que na dcada de 50, o ento prefeito Tubal Vilela, transfere
oficialmente a zona bomia, at ento localizada na regio central da cidade, para a rua
Uberaba, local geogrfica e socialmente distante das reas comerciais e residenciais.
Essas transformaes fizeram com que o bomio se sentasse na calada da saudade
em busca de um tempo perdido, s possvel de ser resgatado em melodias e letras que
retratavam em versos parnasianos, impregnados de mtrica e rima, um tempo potico em que
era possvel a existncia verdejante de quintais e a conversa fiada sobre as cadeiras nas
caladas to bem retratadas por Mrio Quintana em Tempo Perdido: Havia um tempod e
cadeiras nas caladas. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianas
brincavam sob a clarabia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E tambm o
relgio de parede! Ele no media o tempo simplesmente: ele mediava o tempo.6
O bomio buscava tambm uma realidade que lhe possibilitasse ter tempo para fitar o
cu ou os olhos da mulher amada, como cantaram Pedro de Alcntara e Catulo: Ontem, ao luar
/ ns dois em plena solido / tu me perguntaste / o que era a dor de uma paixo / Nada respondi /
calmo assim fiquei / mas fitando o azul do azul do cu / a lua azul eu te mostrei (...).
Os homens buscavam na bomia a linguagem potica parnasiana sepultada pelo
movimento modernista, algo que traduzisse a perda do potico e da musa divinizada que se
esvaam pelas rachaduras de um tempo perdido entre frutas que apodreciam nos quintais e na
memria, restando apenas o seu perfume e a possibilidade de reinvent-lo com o auxlio da
memria involuntria.
Essas transformaes, que contriburam para uma diversidade social e cultural na cidade
de Uberlndia, asfixiando os homens com o seu ideal de ordem e progresso, possivelmente os
tenha levado a busca de novos espaos de sociabilidade, haja visa que eles estavam fartos de
manifestaes culturais limitadas s festas religiosas e s paradas militares, que
esporadicamente marcavam o seu dia a dia. Da detectar a construo subterrnea de novos
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espaos de lazer, onde fosse possvel a manifestao da espontaneidade e a concretizao de
novas formas de viver.
Nesse sentido, entre as dcadas de 50 e 60 edificado, no oficialmente, no bairro
Oswaldo, o clube Caba-Roupa que se caracterizava por um cotidiano noturno impregnado de
pretos, brancos pobres, trabalhadores e adeptos da cultura bomia de uma forma geral. Neste
clube os freqentadores danavam, ao som da orquestra, mambo e bolero; bebiam em grandes
goles chopp, conhaque de quadra e uma parcela significativa da vida.
Algumas quadras mais acima, na divisa do bairro Oswaldo com o bairro Martins,
portanto mais distante da rea central, disseminou-se uma malha de prostbulos e um cassino
que tinham como eixo catalisador a rua Sem Sol. Prosseguindo pelo bairro Martins, mais a
direita, funcionava o Zanzi-Bar7 e o Cassino Monte Carlo, pontos de referncia para aqueles que
buscavam os prazeres da noite.
Na rua Princesa Izabel estava localizado o clube Treze de Maio que, depois,
transformou-se na boate Marink Veiga. Na rua Uberaba foi instalada a boate do Marra. No
centro da cidade inaugurou-se nesse perodo o Uberlndia Clube, freqentado pela elite local.
Uma vez parcialmente traado o perfil econmio e cultural da cidade de Uberlndia nas
dcadas de 50 e 60, cabe analisar as possveis aproximaes entre o bomio, sujeito histrico,
cujo locus privilegiado nesta anlise ser o seu cotidiano noturno, e o personagem Dom
Quixote, da obra de Miguel de Cervantes.
- BOMIO: (DE LA) MANCHA DA SOCIEDADE.
E no entanto meu pinho / pode crer, eu advinho / aquela mulher / at hoje estnos esperando / Solte o seu som da madeira / Eu, voc e a companheira / Amadrugada iremos pra casa cantando. (Cordas de Ao. Cartola).
6 QUINTANA, Mrio. 80 anos de poesia. So Paulo: Globo, 1986, p.109.7 Deve-se ressaltar que as escolas de samba locais Tabajaras e Garotos do Samba nasceram dasociabilidade existente entre os freqentadores destes dois pontos bomios. A primeira surgiu no Caba-Roupa e a segunda no Zanzi-Bar.
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Tanto o bomio como Dom Quixote viviam aquilo que poderamos chamar de
encruzilhada de seus respectivos tempos. Dom Quixote, o fim da Idade Mdia e incio da Idade
Moderna; o bomio, o turbilho cultural comportamental da modernidade.
Dom Quixote, em meio decadncia da nobreza, observava que ela migrava para a
sociedade da corte, submetendo-se autoridade do rei, o que, segundo Elias, fez com que os
hbitos mais rudes, os costumes mais soltos e desinibidos da sociedade medieval, com sua
classe guerreira superior e o corolrio de uma vida incerta e constantemente ameaada, so
suavizadas, polidas e civilizadas.8
Essas transformaes fizeram com que o personagem de Cervantes negasse e ao mesmo
tempo propusesse uma nova/velha forma de viver, o que fica perceptvel na obra como um todo,
e em alguns exemplos em particular.
O Cavaleiro da Triste Figura nega os novos tempos recorrendo literatura
cavalheiresca, j em desuso no seu tempo, haja vista que no havia pblico para tais obras, uma
vez que os antigos cavaleiros foram tragados pela sociedade da corte ou impiedosamente
massacrados pelas foras repressivas dos reis e, em virtude disto, os seus atos e as respectivas
existncias j estavam sendo sepultados e devidamente esquecidos.
Era um dos belos momentos da obra de Cervantes, Dom Quixote se encontrava diante
de um entroncamento de duas estradas (que, bem o sabemos, no era um entroncamento fsico,
mas, sim, temporal). Indeciso, O Cavaleiro dos Lees deixa ao seu cavalo Rocinante a opo
de escolher entre o caminho da esquerda e o da direita, como rezavam os manuais da cavalaria.
Ora, quando Dom Quixote deixa ao encargo do cavalo a escolha, podemos perceber nesse ato
que o personagem recorre ao instinto animal talvez por saber que o instinto nato eterniza a
possibilidade da liberdade, da aventura, assim como espontaneidade da vida e da ao humana,
o que no era mais possvel de existir em uma sociedade que, na corte, trocava a aventura pelos
cargos burocrticos e, no interior do estado, trocava a narrativa dos grandes acontecimentos
pelas fofocas de salo.
Tambm o bomio encontrava-se diante de um entroncamento temporal, potica e
tristemente traduzido por Eliot em seu poema Homens Ocos: Ns somos homens ocos/Os
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homens empalhados/Uns nos outros amparados/E elmo cheio de nada. Ai de ns! Nossas vozes
dessecadas,/Quando juntos sussurramos,/So quietas e inexpressas/Como o vento na relva
seca/Ou ps de ratos sobre cacos/Em nossa adega evaporada (...).9
Essa mesma realidade foi concretamente detectada por Chesneaux. Segundo este autor,
a vida moderna feita ainda de choques, tenses, violncias, o mais das vezes latente e
implodida, por causa da qual no nos espantamos quando brota de repente em pleno dia.10
Diante dessa realidade impessoal, o bomio, assim como Dom Quixote, optava pelo
instintivo em oposio ao racionalismo iluminista, o que ficou comprovado atravs de inmeras
prticas cotidianas, das quais podemos destacar duas:
Homem de vida airada preferia os subrbios ao centro da cidade. No s por uma
diviso social do espao imposta pela sociedade, mas tambm por intuir que
naquele espao geo-social existia uma fresta pela qual era possvel burlar o
institudo e no ter que possuir uma coerncia verbal e de atitudes, assim como uma
economia de gestos ao se expressar; poderia o nosso vadio degustar uma cachaa,
sem que, para isso, fosse necessrio saber a procedncia e o ano da bebida, como
requeria o vinho to falado e consumido pelas camadas finas da sociedade
uberlandense;
vagabundo acreditava mais na sorte do jogo do que no trabalho metdico
realizado anos a fio. Deixava as cartas traarem o seu destino, cuidar da sua
sobrevivncia imediata e, quem sabe, em um futuro prdigo, proporcionar-lhe
mulheres e bebidas.
A relao entre o bomio e o personagem de Cervantes pode ser constatada tambm na
utilizao, por ambos, de instrumentos para sobreviver s transformaes iminentes. Dom
Quixote, na sua insanidade, armava-se de sua espada e de sua lana e saa pelo mundo
enfrentando as injustias e combatendo o institudo, mesmo que os injustos tivesses ao seu
lado um exrcito profissional e permanentemente equipado.
8 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, v.2, p.18.9 ELIOT, T.S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1981, p.117.10 CHESNEAUX, Jean. Modernidade mundo. 2ed. Petrpolis: Vozes, 1994, p.49.
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Acreditava Dom Quixote que as suas armas haviam sido confeccionadas coma matria
prima da moral e da dignidade; elementos estes suficientes para romper com os fios invisveis
que teciam aqueles novos tempos que Elias assim qualificou:
Um novo comedimento, um controle e regulao novo e mais extensodo comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessrio oupossvel, so agora exigidos do nobre. So resultados da nova e maiordependncia em que foi colocado o nobre. Ele no mais um homemrelativamente livre, senhor de seu castelo, do castelo que sua ptria.Agora vive na corte. Serve ao prncipe (...). Precisa aprender a ajustarseus gestos exatamente s diferentes estaes e posies das pessoas dacorte, medir com perfeio a linguagem, e mesmo controlar exatamenteos movimentos dos olhos.11
Se Dom Quixote usava armas obsoletas para combater a encruzilhada do seu tempo, o
bomio recorria a uma arma revolucionria para combater o institudo e formalizado: o violo.
Portar um violo no incio do sculo na cidade do Rio de Janeiro e depois em todas as regies
onde era utilizado era motivo at de priso, como ficou claro na entrevista concedida por Donga
(bomio e autor do primeiro samba gravado no Brasil) a Carvalho no ano de 1963: O fulano da
polcia pegava o outro tocando violo, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista,
muito pior. Isto que estou lhe contando verdade. No era brincadeira, no. O castigo era
serssimo. O delegado botava l umas 24 horas.12
Quais eram os motivos que levavam a polcia a retaliar impiedosamente tal
instrumento?
Talvez por ser o violo um instrumento barato, se comparado, por exemplo, com o
piano, e que, por assim ser, poderia ser adquirido por qualquer um. Tambm deve-se levar em
conta que o piano fica inscrito s quatro paredes de um salo, sendo ouvido por um pblico
seleto, no s pelo gosto musical, como pelo poder aquisitivo. J o violo, por seu valor e por
seu tamanho e leveza, poderia deslocar-se juntamente com seu dono para qualquer lugar,
fazendo com que o prazer e o lazer brotassem nos locais mais inesperados, ou previamente j
demarcados para atender e corresponder aos seus signos.
11 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, v.1, p.212.12 DONGA, apud: CABRAL, Srgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Limiar,1996, p.27.
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Ou seja, o violo poderia levar a alegria aos lupanares marcados pela tristeza; poderia
tornar as ruas pessoais, quem sabe at transform-las em espao de sociabilidade.
Mas ele poderia tambm surgir bruscamente nos locais de trabalho interrompendo a
disciplina e a produo.
Dependendo da sua batida, poderia fazer balanar os corpos, excitar a carne e o esprito.
Por tudo isso, talvez, o violo e com ele o bomio fossem perseguidos. Da o bomio
empunh-lo no s noite, mas tambm durante o dia, como uma arma sempre pronta a desafiar
o tdio e impor ao normatizado pequenas derrotas cotidianas; vitrias insuficientes, bem o
sabemos, para vencer a grande batalha contra o institucionalizado.
Usava tambm o bomio, tal qual o cavaleiro de Cervantes, uma armadura tecida com
fios da sensibilidade e da loucura; poderosos antdotos contra o impessoal, a sanidade mental
e a tica comportamental. Os moinhos de vento (to presentes no cotidiano de Dom Quixote)
contra os quais deveria lutar o bomio, eram as novas arquiteturas e os novos espaos
caracterizados pela ausncia do lazer e do prazer.
E, por fim, tambm, podemos associar a amizade do bomio com o seu violo
existente entre Dom Quixote e Sancho Pana, considerando-se, a, um seno, ou seja, no violo
no estava subjacente a racionalidade. Muito pelo contrrio, embriagava-se, assim como o
bomio, de lirismo. No mais, a semelhana deve prevalecer, pois se o violo era lrico, tambm
era amigo e cmplice, como Sancho Pana o foi para Dom Quixote nos seus momentos de
desiluses e alucinaes.
Bibliografia Citada
CHESNAUX, Jean. Modernidade mundo. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1994.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
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KRAMER, Loyd S. Literatura, crtica e imaginao histrica: o desafio literrio de Hayden
White e Dominick Lacapra. In: HUNT, Lynn (org.). A nova histria cultural. So Paulo:
Martins Fontes, 1995, p.131-76.
MACHADO, Maria Clara Tomaz.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran Experincias bomias em Copacabana nos
anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.27.
MATOS, Maria Izilda Santos de., FARIA, Fernando A. Melodia e sintonia em Lupicnio
Rodrigues O feminino, o masculino e suas relaes. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1996,
178p.
QUINTANA, Mrio. 80 anos de poesia. So Paulo: Globo, 1986, p.109.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso tenses sociais e criao cultural na Primeira
Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1985. 257 p.
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A CRIANA E O LIVRO: Memrias em Fragmentos*
Mrcia Cabral**
... um livro, uma pgina de livro apenas, por menos ainda,
uma simples gravura em um exemplar antigo, herdado talvez
da me ou da av, poder fertilizar o terreno no qual a
primeira e delicada raiz desse impulso comea a se
desenvolver. Walter Benjamim.
Este estudo compreende duas abordagens: por um lado,busco investigar as
origens do livro destinado infancia; por outro, estabeleo um dialogo com fragmentos
literrios, cujo tema so as primeiras experiencias com a leitura, elegendo como
material de anlise as autobiografias de Elias Canetti e de Graciliano Ramos. Na
confluncia de ambas as abordagens, creio ser possvel depreender algumas pistas para
compreenso da relao da criana com o livro, com a literatura.
A criana e o livro: uma histria ainda mal resolvida
A noo da infncia no foi sempre a mesma. Aris (1981) relata que, nas
sociedade tradicionais, a criana encontrava-se misturada ao mundo adulto, com
intensas trocas afetivas fora da famlia e de onde colhia suas aprendizagens. O sculo
XVIII, contudo, testemunharia mudanas na antiga ordem. Com a ascenso da
burguesia e medida em que a sociedade se industrializava e se modernizava, mediante
a aquisio de novos recursos tecnolgicos e a famlia assumem um novo lugar. A
famla tornou-se o lugar de afeio necessria entre os cnjuges, que se exprimiu
sobretudo atravs da importncia atribuda criana e sua educao.
Tendo como pano de fundo uma nova ordem social, vamos identificando
transformaes significativas: a valorizao da unidade interna da famlia e dos laos
afetivos; a importncia crescente do papel feminino no interior da famlia nuclear; os
* A primeira parte deste estudo baseada na dissertao de mestrado A criana e a literatura: as amarrasde quem est comeando. Rio de Janeiro, PUC, Departamento de Educao, 1996.** Professora de Portugus/Literatura da Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro; graduadaem Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Educao pela PontifciaUniversidade Catlica do Rio de Janeiro.
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cuidados e a ateno que criana devem agora ser dispensados, a privatizao
generalizada da vida, que o modelo social burgus passa a exigir. No entanto, essa nova
ordem no se desenvolve de forma linear. Entrevemos neste percurso contradies. Ao
isolar a criana das relaes comunitrias, a famlia necessitou criar novos mecanismos
para reestabelecer a sua aprendizagem com o meio social. Surge, assim a instruo
obrigatria no interior da nova ideologia, que pderamos chamar era pedaggica.
A partir do final do sculo XVIII, este processo se delinea mais nitidamente.
Estamos diante de um Estado moderno e de profundas diferenas de classe. A
socializao da criana burguesa pela escola responde aos interesses do Estado e da
famlia. Todavia, com a criana proletria o binmio ateno/disciplina ocorre por
outras referncias: a perpetuao do sistema econmico vigente (formao de mo de
obra barata e qualificada) e o controle ideolgico dos valores burgueses.
Zilberman (1981) conta que foi por causa dos alunos da classe operria que o
ensino se tornou obrigatrio na Europa, no sculo XIX. A escola passa a adotar uma
nova feio,tornado-se uma instituio acessivel e aberta a todos os grupos sociais. Tal
processo educativo no deixa de fora a literatura infantil, que se afirma
concomitantemente legitimao da escolarizao e no mesmo momento que se
consolida a noo de infncia: miniatura do adulto, ser ingnuo e desprotegido, entidade
do vir-a-ser. Conceito moldado ideologia burguesa, pois trata-se de instruir seres
frgeis e imcompletos, para que,ultrapassando os estgios evolutivos da vida, atinjam a
plenitude em um futuro redentor. Neste contexto, tem-se, por um lado, a psicologia
embasando a teoria do desenvolvimento; por outro, a pedagogia no campo da didtica; e
nos limites da esfera do artstico/educativo, a literatura infantil.
Todavia, a tendncia pedaggica da literatura para a criana nas suas origens tem
comprometido a autonomia do campo de forma to vigorosa que, at hoje, permenecem
as marcas de tal determinao:a) artificialismo da linguagem-expresso nas histrias
infantis por escolhas lexicaissimplificadas; b) estrutura morfosinttica reduzida-
esteretico do que seja a expresso verbal da criana; c) temas pedaggicos e lies
moralizantes- mais preocupados em veicular contedos morais do que formar uma
personalidade crtica; d) esquemas narrativos fceis do tipo inicio-meio-fim- com
objetivo de facilitar(leia-se controlar) a leitura dos pequenos leitores; apenas para citar
alguns exemplos que, sem duvida, no se esgotam nos limites deste estudo1.
1 Esta anlise encontra-se desenvolvida, de maneira pormenorizada, na dissertao de mestrado antesmencionada, onde examino forma e contedo da Coleo Estrelinha, de Sonia Junqueira, So Paulo;tica, 1994/1995, concebida para crianas em fase de alfabetizao.
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Delimitadas as origens histricas da literatura destinada criana, creio que
ficam claros os vnculos instrutivos e moralizantes que moralizaram o seu surgimento.
No entanto, so as responsabilidades de ruptura desses vnculos, deixando visualizar a
esfera do esttico, do artstico, que podem permitir a afirmao do gnero, a sua
legitimidade. Logo, no o ndice de formao passado s crianas pelos livros infantis
que lhe asseguraria o estatuto esttico, mas o ndice de fruio que toda obra de
qualidade propicia.
A linguagem, esfera ideolgica por excelncia, como considera Bakhtin (1992a),
tambm a matria expressiva da qual a literatura se nutre. , portanto, nela e mediada
por ela que a expresso literria pode se manifestar. necessrio, contudo distanciar-se
de uma inteno utilitria, resgatando todo o simbolismo da linguagem em uma
dimenso prpria do que se pode tomar por literatura: recursos estilsticos,
ambigidades, desvios, ditos e no-ditos.
Por outro lado, possvel admitir que no so pressupostos do fazer literrio
apenas as frases bonitas, as frases nobres do dicionrio, o estilo rebuscado. A literatura
se constitui no somente no nvel de sua produo, mas tambm no espao interativo
com o leitor. Como disse Antonio Cndido (1972-1985), a literatura tem a possibilidade
de confirmar no homem a sua condio de humano e existir enquanto existirem leitores
que a vivam, a decifrem, a aceitem, a transformem. E uma das caractersticas prprias
do ser humano criar, modificar e ser modificado permanentemente pelo meio scio-
cultural. No que diz respeito a literatura infantil e ao ato da leitura neste contexto, o
livro s se torna legtimo quanto possvel por ele interagir, recriando-o,
suplementando-o enquanto leitor com sua prpria viso de mundo. Do contrrio, texto
sem leitor, pgina em branco.
No Brasil, identificamos o surgimento da literatura para criana, entre o fim do
sculo XIX e incio do sculo XX. Trata-se, basicamente, de tradues ou adaptaes de
contos e fbulas da tradio europia e uma tmida produo nacional, marcada por
aqueles traos instrutivos e moralizantes. O gnero apresentava poucas possibilidades
de afirmao ou legitimidade esttica, quando comparado produo literria de carter
geral. No era possvel revelar a matria literria em objeto to compreendido com fins
educativos.
bem verdade que o estatuto inicial do gnero modificou-se, experimentando
significativos rompimentos em seu percurso. Uma primeira marca desse rompimento foi
imprimida, ainda que de forma um tanto isolada, por Monteiro Lobato, nas dcadas de
20 e 30, atravs de uma extensa produo que ora polemiza com a pedagogia, ora com
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os prprios autores do seu tempo. Lobato insere-se no domnio da literatura infantil
conferindo-lhe uma nova perspectiva, tanto de ordem temtica quanto discursiva. A
criana no mais poupada de conflitos sociais, o ponto de vista da narrativa muitas
vezes lhe transferido e abre-se espao para a voz questionadora do personagem-
criana, metamorfoseado e exacerbado muitas vezes na polmica figura da boneca
Emlia.
Como apontava Walter Benjamim (1984) estudioso das questes da infncia
em diferentes momentos de sua trajetria de filsofos e de crticos da cultura a
criana exige do adulto uma representao clara e compreensvel, mas no infantil
(p.50). Ainda em dilogo com o filsofo, focaliza neste texto uma noo de criana que
se ope quela de suas origens, uma vez que nesta abordagem histrica e cultural ela
no miniatura do adulto, ser ingnuo e desprotegido, entidade do vir a ser, mas sujeito
que vive no presente e nesse presente interfere.
No que diz respeito histria do livro infantil no Brasil, as modificaes
temticas e estruturais na figura vanguardista de Lobato apontam para as primeiras
delimitaes e especificidades da literatura destinada infncia; o que, de algum modo,
significa uma perspectiva de afirmao do gnero, crescimento do leitor-criana.
Com efeito, so as coordenadas estticas e no as instrutivas que permitem situar
a literatura infantil na categoria de arte literria categoria esta que elevada a um outro
estatuto pressupe, na definio de Umberto Eco (1994), um leitor-modelo crtico,
perspicaz, inteligente2. No obstante, o outro limite da problemtica se impe, tanto no
que se refere sua produo quanto sua recepo: a relao desigual entre adultos e
crianas em uma sociedade que tende a privilegiar a deciso dos mais experientes, em
detrimento das possibilidades de criao, interveno dos ingnuos, miniaturas de
adultos. O livro infantil escrito, produzido, comprado, distribudo, em geral, por um
adulto. Nesse processo, criana oferecida pouca ou nenhuma chance de escolha,
interferncia, interlocuo.
Bakhtin (1992 a) ao expor o carter dialgico de toda enunciao verbal, defende
que em tudo aquilo que falado est presente o ponto de vista do falante e do
interlocutor. Ocorre no entanto, que o espao dialgico da produo literria para a
infncia encontra-se bastante comprometido por entraves ideolgicos. E esse
comprometimento no se refere apenas a um tempo presente, mas s suas determinaes
histricas. Ceclia Meirelles (1984) contribui para que essa discusso sugerindo que so
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as crianas, na verdade, que deveriam delimitar o mbito do infantil, sendo mais
adequado considerar-se infantil o que elas lem com prazer, ao invs daquilo que para
elas escrito3.
Ainda no que se refere polmica adulto/criana, Fulvia Rosemberg (1977) j
havia tambm identificado a prevalncia da inteno utilitria sobre a esttica ao
circuito autor-texto-leitor, em um grande numero de obras destinadas ao pblico
infantil. A autora demonstra que esse valor utilitrio assegurado atravs do casamento
bem-sucedido entre o maniquesmo, como isntrumento dinamizador, e a idealizao
como pano de fundo. por meio do esquema ordem-desordem-ordem (ordem associada
aos conceitos de bom e belo; desordem aos conceitos de mau e feio), estrutura circular
por excelncia, que estaria garantido por parte do adulto, o controle da interpretao do
leitor-criana e, portanto, das concepes de mundo que as crianas possam ter.4
Deve-se, todavia, em sentido contrrio ao esquemetismo antes assinalado,
redescobrir as obras destinadas ao pblico infantil que conseguiram elaborar um objeto
legitimamente esttico, alcanando estatuto literrio. Na tradio literria infantil
brasileira, possvel identificar um percurdo de continuidades e rupturas. Julgo ser
exatamente nos rompimentos que a leitura infantil tem logrado se legitimar. Nas
dcadas de 60 e 70, autores expressivos como Ceclia Meireles, Vincius de Moraes,
Ziraldo, Clarice Lispector, Lygia Bojunga Nunes, dentre outros, buscaram, tanto na
prosa quanto na poesia, reinventar a arte literria para a infncia. A renovao nessa
esfera pressupe a busca de novas linguagens, a incorporao da oralidade, herana
das rupturas j delineadas nas dcadas de 20 e 30, a exemplo de Monteiro Lobato, assim
como o espessamento do texto literrio, a fragmentao da narrativa (Zilberman e
Lajolo, 1984, p.153-155).
A dcada de 80, pela abrangncia dos aspectos que a caracterizam, um outro
perodo que vale a pena destacar. Nessa poca, o estatuto do gnero j havia se
afirmado, tanto pela diversidade e qualidade das obras quanto em funo de seu
consumo crescente. Some-se a esse quadro a democratizao do acesso escola, as
polticas pblicas de incentivo leitura e mesmo uma progressiva escolarizao das
prticas literrias.
2 Essa expresso integra o ttulo de uma interessante obra de Umberto Eco, na qual se prope a distinoentre o leitor-modelo, aquele que o autor pressupe quando da elaborao do texto, e leitor emprico oque efetivamente realizar a leitura do texto. Ver, especialmente, ECO, 1994, p.21-22.3 A escritora dedicou-se no somente literatura como tambm infncia e educao, tendo criado aprimeira biblioteca infantil especializada em 1934, que foi instalada no antigo Pavilho Mourisco , bairrode Botafogo, municpio do Rio de Janeiro.4 Fulvia Rosemberg analisou quase 200 livros infanto-juvenis brasileiros, editados ou reeditados noperodo 1955-1975, a propsito de pesquisa realizada em convnio com o INEP.
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Ao empreender uma pesquisa sobre a histria do livro no Brasil, Laurence
Hallewell (1985) aborda os livros destinados criana que foram editados nos anos 80.
Destaca que a variedade e a produo tm mostrado um aumento considervel na
dcada, atingindo mais de mil ttulos e, nas palavras do autor a mesma ordem de
grandeza que a dos pases desenvolvidos (p. 591). Outro aspecto em relevo consiste no
crescimento da crtica especializada, pois Leia livros comeou at mesmo a fornecer a
lista dos livros infantis mais vendidos entre suas listas mensais de best-sellers (op.cit.,
p.591). Alm disso, ainda segundo o autor j existiam, em 1982 , algumas livrarias
especializadas para crianas: sete no Rio de Janeiro, trs em Curitiba, duas em So
Paulo, uma em Belo Horizonte, em Itabuna e em Juiz de Fora.
Nesse perodo, do ponto de vista esttico, texto, imagem e projeto grfico so
elementos que bem combinados e cuidadosamente construdos, passam a garantir o
reconhecimento da crtica especializada, a consolidao do gnero. As obras que se
destacam, de reconhecido valor literrio, abrem espao para a narrativa que exacerba os
conflitos interiores, as tenses sociais, permitindo, com frequncia, do ponto de vista
formal, a complexidade do texto e do distanciamento das frmulas narrativas fceis e
teis, do tipo incio-meio-fim, como o velho esquema ordem-desordem-ordem
(Rosemberg, 1977). Embora, com o crescimento do consumo, proliferem as colees
paradidticas, as colees para faixas etrias definidas, os livros interacionais, incluindo
um sem nmero de atividades didticas, ainda assim a relao da criana com o livro
est menos ameaada, pois de algum modo a prpria criana denuncia a inadequao de
livros infantis a seus interesses, rejeitando-os. Consolidam-se estudos que tratam do
respeito cultura infantil e, paralelamente, cresce a diversidade de livros infantis de
qualidade. Estes so alguns dos elementos que problematizam a febre de consumo
desenfreado de livros para a infncia e alertam para os perigos do empobrecimento das
discusses no mbito artstico e cultural.
No obstante o contexto sofra modificaes considerveis, a relao da criana
com o livro est longe de um final feliz. E as dificuldades dizem respeito no s s
determinaes ao longo da histria do livro infantil, como tambm aos mediadores
dessa relao. As queixas ouvidas em diferentes contextos so inmeras e de ordem
diversa: eu era um leitor compulsivo, mas meu filho no quer saber de leitura., esta
criana s se concentra no videogame e detesta livros, pedi a um especialista uma
lista dos clssicos, comprei todos, mas ele no abriu um livro sequer, como fazer uma
criana gostar de ler?... Se frmulas mgicas funcionassem estaria resolvida a questo.
-
Mas como nenhum processo ocorre naturalmente no que diz respeito a condio
humana, procurarei elementos para reflexo na cultura e na histria.
So diversas as instncias mediadoras entre a criana e o livro. Buscando
comprender essa relao, optei por uma determinada abordagem que se constitui no
dilogo com fragmentos literrios, cujo tema so as primeiras experincias com a
leitura. Se essa relao foi sempre de difcil compreenso, os relatos auto biogrficos
daqueles que se tornaram escritores no ajudariam a compreender alguns elementos
desse processo? Como tais pessoas se formaram leitores to experientes a ponto de fazer
da escritura sua profisso? A relao com a leitura sempre prazeroza? Quem foram os
mediadores verdadeiramente significativos nessa formao?
Leitura: memria em fragmentos
A Lngua Absolvida, Histria de uma juventude
Elias Canetti, em A Lngua Absolvida, Histria de Uma Juventude (1987), narra
as memrias da infncia e da juventude, na Bulgria, seu pas de origem, e em outros
pases da Europa, onde, por fora da Primeira Guerra Mundial, envolveu-se em
mudanas constantes: Ruschuk (Bulgria), Londres, Viena, Frankfurt e Zurique so
alguams das cidades que deixaram marcas lingsticas e culturais inapagveis no
escritor, ou que, dito de outro modo, permitiram, atravs da multiplicidade de
experincias as mais diversas, formar um dos maiores escritores contemporneos e, do
mesmo modo um leitor exigente.
No entanto, no dilogo com seus prprios relatos que se pode melhor
compreender porque Canetti no nasce leitor forma-se leitor. Depreende-se em
expressivas passagens, como na ilustrao abaixo, que do reconhecimento da
importncia das palavras, do seu significado para a compreenso do mundo, que o autor
primeiro se alimenta:
Muitas vezes se conversava sobre idiomas; s em nossa cidade eram faladas sete ou oitolnguas, e todos entendiam um pouco de cada uma. Apenas as meninas que vinham dasaldeias s conhecia o blgaro, e por isso eram consideradas tolas. Cada um enumeravaas lnguas que conhecia, e era importante que se dominasse muitas, pois poderiaacontecer que com seu conhecimento se viesse a salvar a prpria vida ou a de outros(Canetti, 1987, p.38).
A partir de questes envolvendo o domnio da linguagem, Canetti comea a
narrar as suas memrias, tema alis to fundamental para a constituio de sua
subjetividade, que d ttulo ao livro. Trata-se de um episdio com sua bab, quando
-
ainda residiam na Bulgria. O namorado da moa, ao se encontrar todas as manhs com
o menino, ameaava-o de cortar-lhe a lngua com um canivete, caso contasse aquela a
algum. O menino guarda o segredo durante dez anos e, s ento, cria coragem de
cont-lo a sua me; fato que metaforicamente permite-lhe apropriar-se da sua condio
humana: a possibilidade de salvar-se por ser capaz de fazer uso da linguagem.
Ao mesmo tempo em que narra os acontecimentos mais marcantes de sua vida, o
autor explicita o quanto e como os vnculos familiares foram formando o fascnio pelas
lnguas diversas que precisava aprender para se manter vivo a paixo crescente pelos
livros, o conhecimento, a literatura:
Quando meu pai voltava para casa, do trabalho, logo se punha a conversar com minhame. Naquela poca eles se amavam muito e usavam, entre si, uma lngua que eu nocompreendia. Falavam alemo, o idioma de seu feliz tempod e estudos em Viena (...) Eutinha bons motivos para me sentir excludo quando meus pais comeavam a conversarem sua lngua. Ficavam muito animados e alegres, e eu ligava essa transformao, queeu bem percebia, ao som do alemo ... No sei explicar copmo no guardei rancor a meupai (...) mas contra minha me alimentei um profundo ressentimento, que sdesapareceu quando anos depois, aps a morte de meu pai, ela prpria me ensinou oalemo (Canetti, 1987, p.33 a 35).
Em meio a uma aprendizagem de idiomas to diferenciados quanto o ladino, seu
idioma de origem, o alemo, o ingls, forma-se uma criana de personalidade curiosa,
sensvel s diversas formas de dizer e de registrar o pensamento e as emoes humanas.
Sem dvida a convivncia com o av, que falava dezessete idiomas e com a me, que
conhecia a humanidade atravs das grandes obras da literatura universal (quando
menina escondia-se nos galhos de uma grande amoreira para ler em silncio e no ser
perturbada), pode ser considerada herana histrica e cultural na qual o escritor ao longo
dos anos se nutria. Todavia, destaca-se desses vnculos familiares aquele que demonstra
ser o mais profundo na sua formao de leitor:
(...) meu pai lia diariamente o Neue Freie Presse, e era um grande momento quando eleo desdobrava lentamente. Assim que ele se punha a l-lo, j no tinha olhos para mim, eeu sabia que, de forma alguma, no me responderia (...) eu tentava descobrir o que tantoo prendia no jornal; No comeo eu pensava que fosse o cheiro e quando ficava s eningum me via, trapava na cadeira e avidamente cheirava o peridico. Mas depoisnotei como ele movia a cabea ao longo da folha e o imitei (...) Certa vez um visitanteque entrara o chamou; ele se voltou e me flagrou em meus imaginrios movimentos deleitura. Ento se dirigiu a mim e explicou (...) Em breve eu tambm saberia ler, disseele, e despertou em mim um insacivel anseio pelas letras (Canetti, 1987, p.37).
Percebe-se que o desejo de penetrar no mundo da leitura anterior ao perodo do
deciframento do cdigo escrito, da prpria escolarizao. No fragmento, a relao com
a descoberta da leitura tecida pela observao e interao com a figura paterna, que de
forma sensvel dialoga com a criana, abrindo-lhe perspectivas para ingressar no mundo
letrado. Portanto, muito mais relevante do que os discursos sobre a importncia do
-
hbito de leitura so as aes vivas com a leitura desenvolvidas em um ambiente
cultural rico, onde tais processos possam, de fato, ocorrer.
, ainda, com o pai que ocorre o ritual de passagem das histrias ouvidas para as
histrias lidas. Canetti relata como esse processo foi marcante em sua vida e como o pai
soube estabelecer de forma ldica e compromissada o seu envolvimento com as
primeiras leituras, que no se interrompeu enquanto o escritor teve vida:
Alguns meses depois do meu ingresso na escola, aconteceu algo solene e excitante quedeterminou toda a minha vida futura, meu pai me trouxe um livro. Levou-me para umquarto dos fundos, onde as crianas costumavam dormir e o explicou para mim.Tratava-se de The Arabian Nights, As Mil e Uma Noites, numa edio para crianas.Na capa havia uma ilustrao colorida, creio que de Aladim com a lmpadamaravilhosa. Falou-me, de forma animadora e sria, de como era lindo ler. Leu-me umadas histrias; to bela como esta seriam tambm as outras do livro. Agora eu deveriatentar l-las, e noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando eu acabasse de ler estelivro, ele me traria outro. No precisou diz-lo duas vezes, e, embora na escolacomeasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o maravilhoso livro, e todas as noitestinha algo para contar. Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro e notive que interromper minha leitura um dia sequer. (Canetti, 1987, p.50).
Identificamos no excerto, ricos e variados elementos de mediao entre a criana
e a leitura. De incio, merece destaque a qualidade do livro selecionado, o que h de
melhor na tradio de contos orientais. Trata-se tambm de uma adaptao para
crianas, com ilustraes que lhes despertam o interesse. Coexistem, portanto, contedo
e suporte adequados ao universo infantil. Alm desses elementos, vale ressaltar a
qualidade da relao entre a criana e a pessoa que estabelece a mediao com as
primeiras leituras, sempre to complexas. O pai contextualizou a obra, obra fundamental
para a compreenso de seu significado; falou de como era linda e no apenas necessria
a leitura, afastando-se de uma postura utilitarista possvel abrir espao para o gosto de
ler por simples prazer; fica estabelecida uma atitude de interlocuo permanente, uma
vez que a criana leria as histrias para, noite, compartilh-las com o pai; criou-se,
finalmente, uma relao duradoura entre o pequeno leitor e o ato da leitura, pela
promessa de um novo livro feita e realizada ao longo dos anos pelo pai.
De outra parte, vale sublinhar algumas questes relevantes para esse estudo. A
formao do leitor no cultural e requer dilogo constante com a cultura e com a
histria. As primeiras experincias significativas com a leitura, as que ficam
verdadeiramente registradas, dizem respeito muito mais a um ambiente de leitura do que
com a alfabetizao no sentido estrito. As leituras que agradam as crianas no so
necessariamente as infantis, mas as que podem ser contextualizadas, e que, de algum
modo, passam a ter significado para elas. O contexto cultural rico em experincias
-
diversificadas com a leitura extremamente relevante no processo de formao do
pequeno leitor.
INFNCIA
Graciliano Ramos em Infncia (1993), seu romance de memrias revela o
quanto foi rdua a sua experincia de criana nos fins do sculo XIX e incio do sculo
XX, vivida praticamente no interior de Alagoas. Promognito de um casal sertanejo de
classe mdia, cresce em meio a uma prole numerosa, distanciado de pequenos gestos de
afeto, aventuras e estrepolias infantis. O leitor indagar, a todo momento: como foi
possvel para uma criana, vivenciando rituais de passagem a ponto de faca, sobreviver
e tornar-se um dos escritores brasileiros dos mais expoentes?
Como tem sublinhado a crtica a respeito deste romance, fica no leitor a
sensao permanente de uma enorme lente realista usada pelo menino Graciliano, para
alertar, com preciso, sobre a dureza nas travessias da vida, a quem desejar acompanh-
lo. Por estas mesmas lentes, o leitor informado dos aspectos mais velados da
experincia infantil, da condio humana-reais, histricos, culturais5.
A exemplo do que afirmei sobre Canetti, Graciliano no nasce nem se forma
leitor naturalmente. enfrentando obstculos de toda ordem que esse processo lenta e
penosamente se desenvolve. Diferentes das experincias afetuosas em famlia, narradas
pelo autor blgaro, Graciliano relata passagens de um ambiente familiar absolutamente
rido, onde s encontra indiferena, injustia, ingratido...
As minhas primeiras relaes com a justia foram dolorosas e deixaram-me fundaimpresso. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por a, e fiquei na qualidade de ru.Certamente j me haviam feito representar esse papel, mas ningum me dera a entenderque se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural(Ramos, 1993, p.29)
Em meio a adversidades de toda ordem ambiente cultural incompreensvel,
tensas relaes familiares, debilidade fsica tm incio as suas primeiras experincias
com a leitura:
Minha me lia devagar, numa toada inexpressiva, fazendo pausas absurdas, engolindovrgulas e pontos, abolindo esdrxulas, alongando ou encurtando palavras.Nocompreendia bem o sentido delas. E com tal prosdia e tal pontuao, os textosmais simples se obscureciam (Ramos,1993, p.63)
O fragmento ilustrativo do grande distanciamento da criana em relao me,
ao contedo da histria, ao modo desatencioso de ler, conforme a prpria criana
denuncia, as histrias mais simples se perdiam em barulhos sem sentido, deteriorados
-
ainda mais pela mediao inexpressiva da figura materna. Era ainda no contato com esta
senhora agressiva, ranzinza que os livros se tornavam cada vez mais desinteressantes,
inapropriados, objetos descontextualizados.
Afinal minha me rebentou em solues altos, num choro desabalado. Agarrou-me,abraou-me violentamente, molhou-me com lgrimas. Tentei livrar-me das carciassperas (...) A exaltao diminuiu, o pranto correu manso, estancou, e uma vozinhatriste confessou-me, entre longos suspiros que o mundo ia acabar. Estremeci e pediexplicaes. Ia acabar. Estava escrito nos desgnios da Providncia, trazidosregularmente pelo correio (...) No percebendo o mistrio das letras, achava difcil queelas se combinassem para narrar a infeliz notcia (RAMOS, 1993, p.65/66).
O menino Graciliano no se reconhece no contedo da histria narrada, tema
distanciado das suas possibilidades de compreenso, de seu universo de interesse. De
outra parte, tudo que se refere a leitura, chega-lhe mal, amedronta-o . Ento, por que a
para que aprender aqueles sons que no faziam sentido, que s lhe causam humilhao,
assombro, sofrimento? Dos vnculos familiares que lhe embotam a curiosidade, o
desejo pela leitura, destaca-se aquele que mais temor lhe causa:
Meu pai no tinha vocao para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabea.Resisti, ele teimou e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impacincia eassustou-me. Atirava rpido meia dzia de letras, ia jogar solo. tarde pegava umcvado levava-me para a sala de visitas e a lio tempestuosa. Se no visse o cvadoeu poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedao de madeira negro,pesado, na largura de quatro dedos (...) Afinal meu pai desesperou de instruir-me,revelou tristeza de haver gerado um maluco e deixou-me. (RAMOS, 1983, p.96-99).
A partir deste trecho, possvel inferir empecilhos diversos na relao da criana
com as primeiras experincias de leitura: a mediao do pai com o ato da leitura
realizada em meio a surras e humilhaes; para o pai, a leitura se restringe a
memorizao de letras, traos sem histria e, portanto, desprovido de sentido; criana
no permitido descobrir o mistrio das combinaes das letras em palavras, em
histrias que lhe despertassem o desejo de penetrar no mundo letrado; das mais
diferentes formas so tencionados os vnculos entre a criana e o meio scio-cultural
que a gerou.
No que diz respeito aos vnculos familiares e a leitura, vai crescendo uma teia
inconsilivel. Naquele contexto, Graciliano decepciona-se sempre o primeiro, o
segundo, o terceiro livro todos tediosos, pesados, inadequados:
Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontveis, asletras fervilhavam, midas, e as ilustraes avultavam num papel brilhante como rastrode lesma ou catarro seco. Principiei a leitura de m vontade (...) Passarinho, queres tubrincar comigo? Forma de pergunta esquisita, pensei (...) Os meus infelizes miolosferviam (...) Achava-me obtuso. Contudo cheguei ao final dele. Acordei bambo, certo deque nunca me desembaraaria dos cipoais escritos (RAMOS, 1993, p.117 a 119)
5 Ver, em especial, BOSI (1994) e FARIA (1993).
-
Na escola, h alguns curtos momentos de aproximao com a leitura,
especialmente quando mediada pelo calor humano e gestos afetuosos. Ocorre, desse
modo, com a professora de nome Maria, mas logo, h mudanas e a escola passa a
circunscrever, uma vez mais, espao vazio de vida, novas e velhas decepes:
O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: Cinco horas desuplcio, uma crucificao (...) No h priso maior do que a escola primria do interior.A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e aurolas, nodeixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda no sabia ler.(RAMOS, 1993, p.188)
Entretanto, o processo de aquisio da leitura comea a tomar um rumo
diferenciado quando o menino Graciliano percebe que diante de meios to adversos o
familiar, o escolar teria ele prprio que vencer toda sorte de dificuldades. Para que o
processo se inaugurasse, conta, pela primeira vez, com entusiasmo de uma figura
feminina, a prima Emlia:
Era necessrio que a priminha lesse comigo o romance e me auxiliasse na decifraodele. Emlia respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que no me arriscaria atentar a leitura sozinho? Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, aimpossibilidade de comprender as palavras difceis, sobretudo na ordem terrvel em quese juntavam (...) Emlia combateu a minha convio, falou-me dos astrnomos,indivduos que liam o cu, percebiam tudo quanto h no cu (...) E tomei coragem, fuiesconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestadena floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas percorridas. E as partes que esclareciamderramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam,vagarosamente me penetravam a inteligncia espessa, vagarosamente (RAMOS, 1993,p.190, 191)
possvel depreender do fragmento que para aquela criana a descoberta da
leitura ocorreu como um temvel rito de passagem. Graciliano, menino, precisou fazer
uso dos recursos que possua e desvendar por si mesmo tantos outros at ento
desconhecidos. S desse modo, a palavra ia ganhando espessura, sentido, amplido.
Processo lento, rduo, que contribuia para formar a personalidade talhada em pedra de
Graciliano menino, de Graciliano adulto, de Graciliano escritor. Como ele prprio
revela, aos poucos, as palavras iam se agrupando em textos que se iluminavam porque,
agora, plenos de significados. Nessa perspectiva, as surras, as humilhaes, o
embrutecimento humano e cultural cediam lugar para a construo de uma histria
diversa, onde a libertao pela linguagem fazia crescer aquele existncia oprimida.
Alm da prima Emlia, merece destaque, ao longo do processo, o leitor tabelio,
Jernimo Barreto, como Graciliano enfrentasse a poca, grande dificuldade financeira
para aquisio de novos livros, precisou recorrer queles profissionais que possussem
biblioteca particular e se dispusessem a lhe emprestar os misteriosos volumes. Neste
momento, crescia o leitor e, com ele, o desejo de conhecer novas histrias, outras terras,
-
infinitos horizontes... As suas palavras so bastante ilustrativas de como esse percurso
se delineava:
(...) eu precisava ler, no os compndios escolares insossos, mas aventuras, justia,amor, vingana, coisas at ento desconhecidas (...) Queria isolar-me, como fiz quandonos mudamos em razo de consertos na casa (...) A pretexto de ver os trabalhos,escapulia-me com o romance debaixo do palet, voltava, desviava-se dos pedreiros,serventes e pintores, ia esconder-me na sala (RAMOS, 1913, p.211).
Mas como conseguir novos e interessantes livros que alimentassem a sua
imaginao, o desejo incipiente de formar-se leitor? Todos eram muito caros,
especialmente enviados de Lisboa. Uma vez mais, a prima Emlia abre-lhe perspectivas,
indicando-lhe os provveis possuidores de bibliotecas particulares na pequena cidade.
Outro rito de passagem, mas dessa vez, realizado em meio a amadurecidas convices:
Dirigi-me a casa, subi a escada, retardei o passo, como de costume, diante dasprocuraes e pblicas formais. E bati porta (...) expressei-me claro, exibi osgadanhos, assegurei que no dobraria as folhas, no as estragaria com saliva, Jeronimoabriu a estante e entregou-me sorrindo O Guarani, convidou-me a sentar, franqueou-meas colees todas (RAMOS, 1993, p.212,213).
Sem dvida, Jeronimo Barreto demonstra ser mediador fundamental entre o
menino Graciliano e o ato da leitura, que ia se adensando lentamente. Leitura, nessa
altura, j no significava tormento, decifrao de palavras mortas, repetio de
contedos sisudos... Depois da leitura de O Guarani, o leitor Jeronimo Barreto o
convidaria a percorrer diversos caminhos: Joaquim Manuel de Macedo, Jlio Verne,
Ponson du Terrail... E, desse modo, os horizontes do pequeno leitor se universalizavam.
bem verdade que continuavam os atropelos no novo colgio, as humilhaes das
redaes rabiscadas consideradas pelo professor incorrigveis- as declamaes de
capitais e rios da Europa... No entanto, Graciliano havia atravessado o mais doloroso
rito de passagem, conquistanto por si mesmo recursos plenos em direo ao seu
crescimento humano, intelectual.
Descurei as obrigaes da escola e os deveres que me impunham na loja. Algumasdisciplinas, porm, me ajudavam a compreenso do romance e tolerei-as bocejei ecochilei buscando penetr-las. Em poucos meses, li a biblioteca de Jernimo Barreto.Mudei hbitos e linguagem. Minha me notou as modificaes com impacincia (...) Anica pessoa real e prxima era Jernimo Barreto, que me fornecia a proviso desonhos, me falava na poeira de Ajcio, no trono de S. Lus, em Robespierre, em Marat(Ramos, 1993, p.216).
Percorrendo o fragmento, observam-se interessantes elementos de anlise,
Jernimo Barreto no apenas lhe fornece as primeiras experincias significativas com a
leitura como tambm lhe abre a perspectiva de um acervo universal: o menino
compreende que, muitas vezes, preciso tolerar conceitos sisudos, pois ali poderia estar
contida a chave para a compreenso de romances mais densos; leitura no significa
somente fonte de prazer, mas perspectiva de crescimento; o contato com Jernimo,
-
leitor, torna-se extremamente significativo porque lhe oferecia material para os sonhos,
alimento farto para suas fantasias; a criana descobria, pela primeira vez, que podia
desgarrar-se da vida dura, de pedra, pois quando voltasse a ela, conseguiria viver
melhor.
Vale dizer que com o romance Infncia, pode-se redescobrir o sentido histrico e
cultural do conceito de leitura. A criana que at os nove anos de idade repudiou a
leitura que lhe era imposta, aprende com um leitor sensvel a conhecer a universalidade
do ato da leitura, a sua histria e as marcas que pode imprimir na humanidade. Aos
poucos, o menino Graciliano se percebe, por meio das leituras, indagando o mundo,
falando e se comportando de modo diferente. O sujeito, grande ou pequeno, tem apenas
no meio scio-cultural as possibilidades de romper as amarras do apagamento e
caminhar em direo ao seu pleno desenvolvimento intelectual sentido maior da
leitura.
Os mediadores da leitura nem sempre estaro, portanto, enraizados nos meios
familiares, nas instituies escolares. Muitas vezes, em meio a outras situaes,
culturalmente significativas, que o sujeito encontrar alimento para o seu pleno
desenvolvimento enquanto leitor.
Retomando as questes postas no incio deste dilogo, podemos dizer que a
observao daqueles relatos autobiogrficos contribui para a compreenso de diversos
elementos em jogo na formao do leitor. Tanto a experincia das primeiras leituras de
Elias Canetti quanto a de Graciliano Ramos, cada uma de sua forma, desenvolve-se em
um contexto histrico e cultural determinado. O modo que cada leitor encontra para
consolidar esse processo varia de pessoa para pessoa e se relaciona, estreitamente, com
o meio scio-cultural em que est inserido. A relao com o ato da leitura nem sempre
prazerosa, pois depende, substancialmente, de mediadores sensveis e atentos
singularidade de cada indivduo e,obviamente, s suas diferenas. Quanto mais a
criana tem acesso a textos universais, a leituras espessas, contextualizadas, mais
exigente e curiosa ser a sua perspectiva de leitura.
O compromisso do livro infantil com a pedagogia; - que tanto tem limitado o seu
crescimento, particularmente, nas suas origens -; lista de clssicos; discursos insossos
em prol da leitura; textos com esquemas teis e lies moralizantes; frmulas e manuais
do bom leitor no tm garantido ao longo de nossa histria incipiente de leitura essa
formao. Ao contrrio, no binmio bem tranado entre leitor e me
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