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  • 7/23/2019 artigo Contemplao

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    CONSIDERAES SOBRE ESCRITA E EDUCAO NAFILOSOFIA DE KIERKEGAARD

    CONSIDERATIONS ABOUT WRITING AND EDUCATION INKIERKEGAARDS PHILOSOPHY

    Leonardo Arajo Oliveira1

    Resumo: O presente artigo estabelece uma relao entre educao e escrita, numa interpretaode obras de Kierkegaard, no seguinte seguimento: abordando o conceito de comunicaoindireta, em meio a categorias como indivduo, ironia, paradoxo, estilo, pseudonmia esubjetividade, circunscrito a uma concepo existencial da filosofia.

    Palavras-chave: Educao. Comunicao indireta. Escrita. Kierkegaard. Estilo.

    Abstract: This article establishes a relationship between education and writing into aninterpretation of the works of Kierkegaard, in the segment following: addressing the concept ofindirect communication, amid categories as individual, irony, paradox, style, pseudonymity andsubjectivity, circumscribed by a existential philosophy.

    Keywords: Education. Indirect communication. Writing. Kierkegaard. Style.

    * * *

    1. Introduo

    Segundo Luis Guerrero, o pensador Sren Kierkegaard elabora a proposta deuma comunicao indireta a partir de algumas inquietaes, a saber: no sendo umaautoridade, como apontar para os erros de seu tempo e de sua sociedade? Como falarcom autoridade diante das iluses impostas pelas autoridades estabelecidas? Como falarcom autoridade quando se intenta comunicar problemas existenciais, como aquelesimplicados liberdade humana? (GUERRERO, 2004, p. 43). A comunicao indireta um conceito central em nosso trabalho. Ela se aplica ao processo de escrita deKierkegaard, refletindo, por exemplo, em sua opo pela pseudonmia, por tratar detemas filosficos e teolgicos no somente com tratados, mas tambm com narrativas,em que se envolvem personagens que, chegam por vezes a se confundir com o prprioautor, isto , a se tornarem um pseudnimo como o caso de Johanes Climacus, personagem de preciso duvidar de tudo e autor de Migalhas filosficas e do Ps-

    1 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista UNESP.Bolsista CAPES. E-mail:[email protected]

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    escrito conclusivo no-cientfico s Migalhas filosficas, ambos textos de grandesimportncia para o presente artigo.

    Ao refletir sobre a comunicao indireta, levaremos em conta a questo do estilona escrita kierkegaardiana, mas a ultrapassaremos. Como indica Guerreiro, Kierkegaardtem como preocupao, nesse contexto, questes de ordem social, tica e em certosentido, poltica21. Pensa-se em termos de autoridade e de liberdade. Desse modo, nos permitirmos estender a proposta da comunicao indireta ao tema da educao, tendocomo horizonte de leitura o fato de que Kierkegaard no tenha elaborado uma teoria daeducao.

    Nosso texto se divide em trs partes. Na primeira, tomaremos como ponto de partida uma passagem daquilo que se pode considerar a autobiografia intelectual deKierkegaard, Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor , em que,discutindo em torno do cristianismo, surge o problema da imposio de convices aooutro. Essa parte iniciar uma posio que ocupar todo o trabalho, a preocupaokierkegaardiana com a liberdade em relao com o pensamento e com o indivduosingular. A segunda parte, que servir como um ponto temtico de ligao, introduzir o paradoxo como elemento relacionado ao pensamento e explorar a escrita do autor. Emseguida, na ltima parte do trabalho, desenvolveremos mais detidamente o tema da

    comunicao, j principiada nas sees anteriores, relacionando-o de modo maisexpressivo com a temtica da educao, sob o pano de fundo da ideia de existncia emKierkegaard, em que aparece as figuras do pensador subjetivo e do pensador objetivo.

    2. Da tarefa e do cuidado de tornar o outro atento

    Kierkegaard, em Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor , parece

    oferecer uma estratgia pedaggica no que diz respeito aos problemas enfrentados naeducao do outro, afirmando que no se pode impor convices a algum, mas pode-seobrig-lo a tornar-se atento:

    Um homem pode ter a sorte de fazer muito por outro, a de conduzir

    2 Uma discusso importante no debate sobre a obra de Kierkegaard diz respeito a possibilidade ouimpossibilidade de uma filosofia poltica. Kierkegaard no possui uma teoria poltica, e a comunicaoindireta, sobretudo o carter desconstrutor da ironia, parece impor barreiras construo de uma

    normatividade. Por outro lado, a prpria comunicao indireta permite se pensar a poltica emKierkegaard atravs de leitores seus, como Arendt e Adorno. o que faz Bartholomew Ryan norecentemente publicado Kierkegaard's Indirect Politics.

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    at onde deseja lev-lo, para nos atermos ao nosso tema principal econstante, pode ter a felicidade de o ajudar a tornar-se cristo. Masesta possibilidade no est em meu poder; depende de uma multidode circunstancias [...]. Nunca posso de modo algum impor a algumuma opinio, uma convico, uma crena; mas posso uma coisa, numsentido a primeira (porque ela condiciona a seguinte: a aceitao daopinio, da convico, da crena), e num outro, a ltima, se no quer acontinuao: posso obrig-lo a tornar-se atento (KIERKEGAARD,1986, p. 45).

    Um ponto que ressalta nessa passagem a presena da religio crist. Em uma perspectiva pedaggica, o que se nota, em uma primeira aproximao, a tentativa deconduzir algum pelo caminho do tornar-se cristo. Destarte, somos forados aenfrentar a seguinte questo: a proposta pedaggica kierkegaardiana consistiria em um

    programa teolgico e no em uma educao filosfica? Para defender a perspectivafilosfica da pedagogia kierkegaardiana, mostrando que, embora seja evidente a preocupao religiosa, sua abordagem ultrapassa o plano teolgico, precisamoscompreender o que significa, para o autor dinamarqus, tornar-se cristo.

    O prprio Kierkegaard declara no ser cristo (VALLS, 2013, p.72). Trata-se,em primeiro lugar, de uma afirmao irnica, diante de uma sociedade em que todos se proclamam cristos. Para Kierkegaard, tornar-se cristo exige uma entrega completa e

    rdua da existncia. Somente no caminho que leva a si mesmo, como fruto de umtrabalho da subjetividade, de construo da interioridade, possvel tornar-seautenticamente cristo (ALMEIDA, 2012, p.4). Por isso o recurso ironia: A ironia absolutamente contrria ao social e uma ironia em maioria , eo ipso, uma coisainteiramente diversa da ironia (KIERKEGAARD, 1986, p. 58). Nesse sentido, tornar-se cristo voltar para dentro de si, significa retorno, aprofundamento e educao dainterioridade, que diante da cristandade, isto , da massa informe que se diz crist,eleva-se como tarefa do indivduo singular (den Enkelte)32, como batalha do indivduocontra a multido que tende a esmag-lo e acopl-lo. O autenticamente cristo no amaa multido, enquanto abstrao43, e sim, ama cada homem em particular, enquantoindivduo:

    3 Na passagem que segue, o prprio Kierkegaard declara a posio seminal que a questo do indivduosingular ocupa em sua filosofia: Se a questo de o Indivduo fosse para mim uma futilidade, poderiadeix-la cair, e at o faria com prazer e vergonha para mim se no estivesse disposto a isso com toda aateno possvel. Mas no o caso; para mim, como pensador e no pessoalmente, a questo doIndivduo decisiva entre todas (KIERKEGAARD, 1986, p.105). 4 A multido, no esta ou aquela, actual ou de outrora, composta de humildes ou de grandes, de ricos oude pobres, etc..., mas a multido considerada no conceito (KIERKEGAARD, 1986, p.98).

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    O testemunho da Verdade , claro, completamente alheio poltica edeve sobretudo velar com a ltima energia por no se confundir comum poltico; tem como tarefa, no temor de Deus, comprometer-se, se possvel com todos, mas sempre individualmente, falar a cada umisoladamente, na rua ou na praa - para dispensar, ou falar multidono para formar, mas para que este ou aquele se afaste da assembleia ev para casa, a fim de se tornar o Individuo (KIERKEGAARD, 1986, p. 100).

    Se a multido, como abstrao, vence, o indivduo se torna tambm abstrato ediludo. Nesse sentido, o exerccio e a tarefa de tornar-se cristo, que corresponde a prtica da educao filosfica, , tambm, um exerccio de solido.

    Kierkegaard alerta que, ao tornar um homem atento, torna-o capaz de pensar porconta prpria e fazer com que seu prprio pensamento no esteja sob o poder de quem o

    tornou atento, de quem o ensinou:

    Que isto seja uma boa ao, no h a menor dvida; mas tambm no preciso esquecer que o golpe arriscado. Obrigando este homem atornar-se atento, foro-o a julgar. E ele julga. Mas o que ele julga noest em meu poder. Talvez julgue o contrrio daquilo que desejo. E,alm disso, talvez esta necessidade em que o coloquei de se pronunciar o exaspere, e at ao furor, contra a questo e contra mim; etalvez seja eu, no final, a vtima do meu procedimento(KIERKEGAARD, 1986, p. 45).

    Transpondo tais afirmaes para uma problemtica diretamente pedaggica, seentrev a possibilidade de concepo de relao entre educador e educando que leve emconsiderao a potncia que o educando tem de pensar por si prprio, no no sentido deuma total independncia e voluntariedade de seu pensamento, mas na medida em que,afetado por uma fora exterior que o torne atento, se encontre capaz de pensar mesmoalm do pensado pelo educador, que se torne potente para pensar o impensado.

    Em suas Migalhas filosficas, sob a assinatura do pseudnimo Johanes Climacus,Kierkegaard trabalha com o impensado na forma do paradoxo. Para Kierkegaard, o pensamento tem como sua grande paixo o paradoxo, e como a potncia mais alta detoda paixo querer sua runa, a paixo do pensamento consiste em buscar o choque; eo maior paradoxo do pensamento tender a pensar o impensvel (KIERKEGAARD,2011, p. 59). Interpretamos essa linha de raciocnio como um indicativo de que o pensamento forado pelo paradoxo.

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    3. Do paradoxo escrita

    Perguntamo-nos se em Kierkegaard, o paradoxo no seria o elementodeterminante para a atuao do pensamento, enquanto seu pathos. O desenvolvimentoda relao entre o domnio do pensamento e o plano do pattico desenvolvido porKierkegaard tambm sob o pseudnimo Johanes Climacus, em sua obra Ps-escritoconclusivo no-cientfico s Migalhas Filosficas, expressivamente maior do que olivro a que ela serve de comentrio.

    No Ps-escrito, Kierkegaard/Climacus defende que a relao estabelecida entreo mundo e o existente passa necessariamente pelo pathos. O pathos transforma aexistncia, o que h de mais elevado na interioridade do existente (KIERKEGAARD,2010, p. 200) e impede que a existncia se encerre em quantificaes objetivadoras(KIERKEGAARD, 2010, p. 345). A existncia, composta no incessante movimento dotornar-se, precede o pensamento (KIERKEGAARD, 2010, p. 94), fazendo-o pensar, e a pensar, inclusive, o impensado, a saber, o paradoxo.

    A importncia do paradoxo para a filosofia exaltada por um leitor apaixonadode Kierkegaard, um importante filsofo do sculo XX, cuja obra vem sendo cada vezmais discutida em problemas relativos a educao. Em Diferena e repetio,Gilles

    Deleuze (2010, p. 214) afirma:

    A manifestao da Filosofia no o bom senso, mas o paradoxo. O paradoxo o pathos ou a paixo da Filosofia. H ainda vrias espciesde paradoxos que se opem ao bom senso e ao senso comum, estasformas complementares da ortodoxia. Subjetivamente, o paradoxoquebra o exerccio comum e leva cada faculdade diante de seu prpriolimite, diante de seu incomparvel, o pensamento diante doimpensvel que, todavia, s ele pode pensar.

    Ambos os pensadores possuem essa caracterstica em comum, a de colocaremem relevo o impensado no pensamento, que, se em Kierkegaard marcante, sobretudo, pela figura do paradoxo, em Deleuze, se liga ao que ele denomina plano de imanncia.O que se destaca, de sada, na relao entre paradoxo e plano de imanncia, umelemento em comum, o da existncia, como campo afetivo onde se processa e se temrespostas somente na ao e na afeco, e como instncia possibilitadora da filosofia,onde o conceito no est formulado, mas que encontra a condio de possibilidade para

    sua criao. Na mesma obra, enfrentando a questo do estilo na histria da filosofia, Deleuze

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    destaca a presena de Kierkegaard, ao lado de Nietzsche, como um dos maisimportantes renovadores do modo de expresso filosfica, em consonncia com a crticado que seria um falso movimento hegeliano, em proveito de uma introduo domovimento no texto filosfico, capaz de afetar o esprito de tal modo que no se permitaencerr-lo na mediao, trazendo

    Filosofia novos meios de expresso. [...] inventar vibraes, rotaes,giros, gravitaes, danas ou saltos que atinjam diretamente o esprito.Esta uma ideia de homem de teatro, uma ideia de encenador avanado para seu tempo. neste sentido que alguma coisa decompletamente novo comea com Kierkegaard e Nietzsche. [...] Elesinventam, na Filosofia, um incrvel equivalente do teatro, fundando,desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma novafilosofia (DELEUZE, 2009, p. 28-29).

    A reflexo sobre a linguagem um elemento seminal para se pensar e efetuar prticas educativas. No caso de Kierkegaard, a efetivao dessa reflexo se encontra emsuas inovaes estilsticas, uma vez que, trabalhando com temas clssicos da histria do pensamento, persistiu com uma inclinao potica em grande parte de sua obra, fazendouso de pseudnimos e de personagens, com falas que partem de lugares especficos, deinterioridades lapidadas, que ainda que, enquanto mscaras literrias, atuam em funo

    de um mtodo pedaggico, uma vez que, como apontado no Ponto de vista explicativo,o efeito esttico daquilo que Kierkegaard concebe como comunicao indireta se insereem uma proposta tica, religiosa e filosfica, como ttica imprescindvel para tarefa detornar o homem atento (KIERKEGAARD, 1986, p. 45).

    A comunicaodireta caracterizada por Kierkegaard como comunicao desaber, tendo uma dupla direo: serviria aquele que sabe algo e que, a partir disso, julgaria o que lhe comunicado; e aquele que no sabe, e, portanto, apreenderia o quelhe comunicado. A proposta de uma comunicaoindireta opera, assim, um duplodesvio, concentrando-se, contudo, em se afastar da sntese em que se pode fixar tanto oendereo da comunicao dos que julgam saber e daqueles esvaziados de conhecimento prontos a captarem saberes. O dilogo com Scrates se faz presente. A comunicaoindireta no visa transmitir, mas convocar o leitor/interlocutor interpretao. Comoexpe Valls (2013, p. 68, grifos do autor):

    Inspirado por Scrates, um irnico, e Cristo, um mistrio, Kierkegaardno fcil de decifrar. Em seu jogo de pseudnimos os mltiplosfalantes deixam os discursosem suspenso, como que disposio da

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    interpretao do leitor, para que este escolha e se identifique com oque o melhor o convencer. Como Scrates, Kierkegaard abre umsilncio nossa frente quando escreve. Como Scrates, fala de muitosassuntos, eruditos e populares, e percebemos que o que resta umainterrogao que mexe com o leitor.

    A comunicao kierkegaardiana consiste em um exerccio de linguagem dainterioridade, em que a subjetividade dos interlocutores no pode deixar de serressaltada. Ela se expressa pelo que Kierkegaard denomina de dupla-reflexo; ou seja,em primeiro lugar, a reflexo da interioridade, em que o pensador subjetivo procuracomunicar sua existncia, com todo o enigma que lhe inerente, e num segundomomento, a reflexo da alteridade, que leva em considerao a interioridade do outro,do interlocutor que receber a mensagem indireta. No entanto, por conta dasingularidade da mensagem, da forma em que comunicada, a recepo do leitor sempre uma interpretao, no podendo ser confundida, desse modo, com um processo passivo por parte de quem recebe, mas sim como uma prtica propriamente ativa eexistencial. Como explica Rossati (2011, p. 130-131, grifos do autor):

    A comunicao indireta enquanto teoria da linguagem ou dacomunicao estabelece a si mesma de partida como umacomunicao subjetiva, mas, note-se bem,duplamente subjetiva, umavez que o emissor ele mesmo um ser humano existente em processode vir-a-ser, isto , em processo de aprofundamento em suasubjetividade, e que por isso mesmo se v na incumbncia de levar emconta a posio do receptor, isto , a subjetividade ativa do receptor,exatamente por ser ele tambm um ser humano inserido em suaexistncia, vale dizer, no vir-a-ser de sua prpria existncia.

    Se Kierkegaard admite em maior grau a influncia da figura de Scrates em seu prprio pensamento, levando-a em considerao, noConceito de ironia, sob os trsgrandes testemunhos gregos (Aristfanes, Plato e Xenofonte), preciso reconhecertambm a concordncia com Plato no que diz respeito ao apagamento do Eu na escrita,se colocarmos em relevo o fato de que Kierkegaard optou por marcar a maior parte desua produo com assinaturas de pseudnimos, em que o jogo de se mostrar e de seocultar evidenciado pela voz dada aos variados personagens e personalidades contidasno pensamento do Scrates dinamarqus. Kierkegaard no oculta o carterimprescindvel desse tipo de abordagem na expresso de suas ideias como afirma nasltimas pginas do Ps-escrito: A pseudonmia no teve uma base acidental em minha pessoa [...], e sim uma base essencial em minha produo (KIERKEGAARD, 2010, p.

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    603, grifos do autor).Essas relaes se esclarecem com as seguintes passagens deO ponto de vista

    explicativo de minha obra como escritor : Pode enganar -se um homem em vista doverdadeiro e, para lembrar o velho Scrates, engan-lo para o levar ao verdadeiro(KIERKEGAARD, 1986, p. 48), uma vez que

    Ser mestre no cortar a direito fora de afirmaes, nem dar lies para aprender, etc.; ser mestre verdadeiramente ser discpulo. Oensino comea quando tu, o mestre, aprendes com o teu discpulo,quando te colocas naquilo que ele compreendeu, na maneira como ocompreendeu, ou, se ignoravas tudo isso, quanto simulas prestares-te aexame, deixando o teu interlocutor convencer-se de que sabe a lio(KIERKEGAARD, 1986, p. 42).

    A ironia se faz presente, quando se vlido enganar o discpulo para lev-lo aoverdadeiro. Como dito n O conceito de ironia: A ironia , como o negativo, o caminho;no a verdade, mas o caminho (KIERKEGAARD, 1991, p. 278). Mas o que significa,aqui, enganar?Logo aps o reconhecimento da influncia de Scrates, citado acima, o pensador dinamarqus afirma que essa a nica maneira de proceder quando o homem vtima de uma iluso (KIERKEGAARD, 1986, p. 48). Diferente do dilogo falado deScrates e do dilogo escrito de Plato, a ttica kierkegaardiana para dissipar a iluso

    o que ele denomina de comunicao indireta. Isso implica em afirmar que enganar,nesse contexto, consiste em confundir, em expor as questes em toda sua complexidade

    sem redues simplistas. A enganao de Kierkegaard a recu sa s prescriesfilosficas, s respostas dadas de antemo, pretenso de clareza e objetividade no quediz respeito aos problemas da existncia.

    4. Existncia, educao e comunicao indireta

    Dentre os elogios a Scrates na histria da filosofia, marcante o deKierkegaard, na obra Migalhas filosficas, onde, focando na educao, v em Scrates o processo de aprendizagem como uma relao de singularidade entre indivduos, onde omestre apenas a ocasio para o aprendiz (KIERKEGAARD, 2008, p. 33). Contudo,nessa mesma obra, como retomaria mais tarde no Ps-escrito, Johanes Climacus pseudnimo de ambos os textos busca outro modelo de relao entre mestre e

    discpulo, onde o conhecimento aparea a partir de fora, e no como um potencialexclusivamente dependente do aprendiz, baseado na rememorao, onde o homem est

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    de posse formal da verdade, uma vez que o conhecimento identificado aoreconhecimento, recordao, reminiscncia5 4, vive a remeter o processo deaprendizado a instncias residentes fora da experincia histrica e do devir existencial, ea reduzir s condies de possibilidade do conhecimento ao sujeito do conhecimento.

    Apesar das crticas de Kierkegaard a aspectos do modelo de educao socrtico- platnico, consideramos que, a concepo de filosofia, desde o seu surgimento naGrcia, no se concretiza apartada da educao, mas tambm no pode ser separada deum cuidado com o estilo. Os dilogos socrticos (logoi sokratikoi65), escritos por Plato,no relacionam filosofia e educao somente via contedo, por uma ilustrao de um projeto poltico-pedaggico, como pretendido n' A repblica. Indo alm, procurando permanecer com a essncia dos dilogos que Scrates travava em Atenas, o texto platnico convida o leitor para o dilogo, atraindo-o por intermdio do apagamento da personalidade do escritor. Plato no escreve em primeira pessoa, e utiliza Scratescomo mscara. Um Scrates desde o incio mascarado por si s, que faz uso d a ironiae se coloca no lugar da ignorncia; assim como Kierkegaard, que se movimenta natenso de se mostrar e se ocultar, atravs da ironia, do humor e da pseudonmia, e paraquem o mestre deve abandonar a pretenso de sabedoria para ocupar o lugar dodiscpulo, o lugar do no saber.

    A prtica kierkegaardiana, apoiada na comunicao indireta, entra em confrontocom um modelo de pensamento que, passando pela imagem sistemtica e categorialligada a Aristteles, e o modelo cartesiano de produo de conhecimento, alicerado nafigura hierrquica da rvore, levado frente no modelo humboldtiano de universidade,onde, como afirma Lyotard, cada cincia ocupa seu lugar num sistema dominado pela

    especulao (LYOTARD, 2002, p. 94).Essa imagem permanece, parcialmente, nos dias atuais, sustentada cada vez

    menos por uma argumentao rigorosa, e mais por postulados congelados pela ausnciade crtica. No nos parece corrente, no contexto atual da educao, a reflexo sobre alinguagem, mas nem mesmo a prpria determinao do domnio especulativo oumetafsico, caracterstico da modernidade, como base estrutural aos outros saberes. No

    5 O conhecimento do escravo de Mnon teria vindo luz atravs da rememorao, configurando adoutrina platnica da reminiscncia, ao ponto de Plato afirmar, atravs da figura de Scrates, queaprender necessariamente rememorar (PLATO, 2003, p.53). 6 Os dilogos da juventude de Plato, conhecidos por dilogos socrticos, so menos conhecidos pelocontedo da filosofia de Plato do que pela dinmica do dilogo socrtico, caracterizando-se, por muitas

    vezes, pelo trmino emaporia, diferenciando-os dos dilogos de maturidade, mais caracteristicamentedoutrinrios e menos dialgicos, uma vez que so menos conflituosos e fazem prevalecer claramente umalinha de pensamento, qual seja, a defendida pelos personagens de Scrates ou do Estrangeiro de Elia.

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    entanto, permanece o regime de disciplinas compartimentadas que no estabelecemrelaes e atuam na contramo de um tipo de um conhecimento de carter maisabrangente, que possa indicar para os estudantes os devires e as conexes internas entreos mais diferentes tipos de saberes. Por essa imagem, pensar significa dividir, repartir,adequar cada teoria a um campo prprio.

    O estilo de Kierkegaard, que faz com que sua escrita encontre espao nos maisdiferentes mbitos, como o filosfico, o religioso, o psicolgico e o literrio, se inserena via contrria imagem do pensamento estatutrio, que se expressa pela forma dodiscurso objetivo, direto e unidimensional. No entanto, no somente sua forma deexpresso o coloca em uma posio crtica em relao tradio filosfica, mas tambmsua reflexo acerca do prprio estilo, que se encontra no cerne de sua filosofia, pois seenvolve com o problema da comunicao de uma teoria filosfica que trate das questesexistenciais.

    No Ps-escrito, estabelecida uma diferenciao entre as figuras do pensadorsubjetivo e do pensador objetivo, afirmando-se que, quando aplicadas interioridade, asestruturas do conhecimento objetivo produzem apenas falsos saberes (KIERKEGAARD,2010, p. 342-343). Por outro lado, o pensador subjetivo possui conscincia da imensacontradio que a existncia, porm, no procura refgio em abstraes, pois possui a

    tarefa de pensar a existncia, evitando que ela seja enquadrada ao domnio daquantificao. Na primeira parte do Ps-escrito, nas teses sobre Lessing, j se encontraessa diferenciao:

    Enquanto o pensamento objetivo indiferente ao sujeito que pensa e sua existncia, o pensador subjetivo, enquanto existente, estessencialmente interessado pelo seu prprio pensamento, existe nele.Portanto, o seu pensamento possui outro tipo de reflexo, a saber, a dainterioridade, da posse, em virtude da qual pertence ao sujeito pensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador objetivo estabelecetudo em termos de resultado, e estimula toda a humanidade a trapacear,mediante a transcrio e repetio de resultados e de fatos, o pensamento subjetivo pe tudo em devir (KIERKEGAARD, 2010, p.82).

    A objetividade sistemtica tem como pressuposto o acabamento, por isso aexistncia se ope a ela, uma vez que para o sistema pensar a existncia, precisa pens-la superada, isto , sem o movimento que lhe inerente (KIERKEGAARD, 2010, p.

    126). Essa perspectiva se adqua menos filosofia do que cincia, na medida em quesupe como investigador um espectador imparcial, distanciado, neutro, isto , um ideal

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    de no engajamento.A fuga da existncia para a abstrao e para objetivao reificadora indica um

    temor do devir. Para Kierkegaard, o pensador subjetivo no um cientista, um erudito,mas um artista (KIERKEGAARD, 2010, p. 346); o que evidencia a posio central queo estilo ocupa em seu pensamento.

    O pensador subjetivo, ao invs de compreender o concreto de maneira abstrata, busca compreender o abstrato de maneira concreta (KIERKEGAARD, 2010, p. 347),diferenciando-se do pensador objetivo em sua indiferena existncia daquele que pensa, operando sempre mediante a transcrio e repetio de resultados e fatos(KIERKEGAARD, 2010, p. 82).

    Essa diferenciao entre os dois tipos de pensadores culmina diretamente no problema da comunicao e, por conseguinte, da educao, com o rigor e a seriedadeem que ela abordada pelo pensador subjetivo, uma vez que sua comunicao,enquanto sua forma, deve ser essencialmente conforme a sua prpria existncia

    (KIERKEGAARD, 2010, p. 89), e o devir e a multiplicidade da existncia devemrefletir no estilo, pois quemo tem de verdade, nunca o tem acabado, mas cada vez queinicia, agita as guas da linguagem e consegue que a expresso mais cotidiana surja

    para ele com a originalidade de um recm nascido (KIERKEGAARD, 2010, p. 94-95).

    O pensador subjetivo se esfora para atentar-se dialtica da comunicao(KIERKEGAARD, 2010, p. 82). O esforo do pensador subjetivo caracteriza o seuconstante tornar-se a si mesmo, libertando-se, no interior do devir e da afirmao de sicomo pensador existencial. Para Kierkegaard, assim como o pensador subjetivo liberta asi mesmo, o enigma, na comunicao, reside precisamente em libertar o outro, da que

    no se deva comunicar diretamente (KIERKEGAARD, 2010, p. 83).Kierkegaard se preocupa com a liberdade do outro. Uma proposta coerente com

    essa preocupao no pode se dar via discurso doutrinrio, como em um processo quereduz a educao transmisso de contedos de um professor para um aluno. lvaroValls (2013, p. 74-75) taxativo: Kierkegaard, no tendo, a rigor, uma doutr ina nova para ensinar, recusa-se comunicao magistral . A pessoas com indigesto h quereceitar um vomitrio, e no mais comida!, e o lado positivo do processo no poderia

    residir no numa transmisso de saber por parte daquele que ocupa o posto professoral esim em um dispor-se como guia? Continua Valls (2013, p.75): Afinal: ser que

    precisamos de um novo Messias, ou basta hoje umauxiliar que nos ajude a reler ostextos antigos, talvez de maneira mais pessoal, mais profunda e interiorizada?.

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    Consideraes sobre escrita e educao na filosofia de Kierkegaard

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    Nos comentrios supracitados se faz entrever o processo de esvaziamento doconhecimento, tipicamente socrtico. Mas Kierkegaard se preocupa com o ensino daverdade. Modificando a pergunta de Plato no Mnon, sobre a possibilidade do ensinoda virtude, Clmacus toma como ponto de partida de suas Migalhas filosficasaseguinte questo: Em que medida se pode aprender/ser ensinada a verdade?

    (KIERKEGAARD, 2008, p. 27). Mas de que verdade estaria se falando? Se, comoexposto pelo mesmo pseudnimo mais tarde, no Ps-escrito, a verdade asubjetividade (KIERKEGAARD, 2 010, p. 191), trabalho da interioridade na existncia,a comunicao da verdade no deve ocorrer de maneira objetiva, uma vez queobjetivamente, se acentua o que se diz; subjetivamente, como se diz

    (KIERKEGAARD, 2010, p. 204). Isto , a verdade como apropriao do Indivduo emsua interioridade, no pode ser tratada, simplesmente como contedo claro e distinto,que possa ser ensinado meramente atravs de um procedimento de transferncia.Portanto, ao contrrio do pensador objetivo, o pensador subjetivo incorpora o contedo forma de sua expresso, em constante ateno, no somente ao que enuncia, mas elaborao do seu enunciado de acordo verdade com a qual procura trabalhar.

    Consideraes finais

    O carter pedaggico do cuidado estilstico de Kierkegaard se faz evidente emtorno da importncia da comunicao e em como ela deve se afastar do cientificismo edo objetivismo, constituindo-se como uma comunicao que toma a existncia em seucontnuo processo de transformao. A reflexo sobre a linguagem implica em umrompimento com o discurso direto dos tratados filosficos. Dessa maneira, acomunicao indireta aparece como a forma mais apropriada para expressar o tipo de

    filosofia que Kierkegaard se prope a fazer, de um pensamento que no se separa daexistncia e das dificuldades que lhe so inerentes, como o movimento real (no-conceitual) e o devir.

    Kierkegaard faz referncia a Scrates em vrios momentos de sua obra,sobretudo nos contextos envolvendo educao, destacando o procedimento da ironia. No que diz respeito ao estilo literrio, embora no escreva em dilogos, comunga comPlato a perspectiva do apagamento do Eu na escrita, atravs da pseudonmia, elemento

    essencial da proposta de uma comunicao indireta. Se pensarmos a comunicaoindireta para alm da escrita, levando-a a contextos pedaggicos, podemos concluir que

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    o Eu do professor como centro do processo de ensino-aprendizagem cai em declnio. Nesse sentido, a proposta kierkegaardiana chega a soar como antipedaggica ou

    antieducativa. Mas essa parte negativa do discurso pode ser levada a frente como umacrtica a processos correntes de ensino-aprendizagem, abrindo espao para que surjaalgo novo. No difcil constatar, hodiernamente, a presena da comunicao realizada pela via do discurso direto, em que o comunicante ou o educador serve como meio detransferncia de informao, enquanto que o educando se reduz a um receptculo. Essetipo de comunicao-educao anula a existncia de cada indivduo envolvido no processo. Assim, a educao no deve se concretizar por prticas em que um professordiscursa para uma turma indiferente atuao do discente no processo. Essa umaconcluso possvel a partir de um debruamento sobre o estilo kierkegaardiano, que,quando necessrio, recusa a forma direta e objetiva de comunicao, envolvendo o leitorem um processo ativo de interpretao, onde escritor e leitor se agenciam dialeticamente,construindo a obra em conjunto.

    Referncias

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