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AS ARTES DO DAIMON: à procura de uma poética perdida por Vicente Marins Rangel Junior Departamento de Ciência da Literatura Tese de Doutorado em Ciência da Literatura – Poética, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Dr. Antonio Jardim Rio de Janeiro, 2 o semestre de 2006

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  • AS ARTES DO DAIMON: procura de uma potica perdida

    por

    Vicente Marins Rangel Junior

    Departamento de Cincia da Literatura

    Tese de Doutorado em Cincia da Literatura Potica, apresentada Coordenao dos Cursos de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Orientador: Professor Dr. Antonio Jardim

    Rio de Janeiro, 2o semestre de 2006

  • Para Allan Kardec,

    personagem benfeitora da Humanidade,

    s vsperas do sesquicentenrio

    de seu (re)nascimento,

    maieuticamente ocorrido

    nas pginas

    que de-marcam novas eras

    para a cultura humana:

    Le livre des Esprits,

    Paris,

    1857.

  • II

    AGRADECIMENTOS

    Ao generoso amigo Prof. Dr. Antonio Jardim sem nenhum favor um dos mais importantes

    compositores da gerao contempornea brasileira, que me deu a honra de ser fiador deste trabalho

    , pelas sempre sbias intervenes e pelo gesto imenso da acolhida: de mim (teimoso) e do tema

    (at certo ponto in-grato em face de suas convices). Seu referendo a este documento

    demonstrao viva de respeito ao pensamento de seus alunos e um reconhecimento cabal de que no

    universo potico existem efetivamente muitas moradas.

    Aos ilustres Professores Drs. Joo Camillo Penna e Alberto Pucheu Neto, respectivamente ex-

    Coordenador e Coordenador atual do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura desta

    Faculdade de Letras da UFRJ, pelas vrias demonstraes de solicitude, compreenso e apreo.

    Ao estimado Mestre Manuel Antnio de Castro, pelas palavras amigas e santificadas a mim

    dirigidas em momentos difceis e pelo desafio lanado no Exame de Qualificao, que me induziu

    a pronunciar sem peias o que eu realmente pensava, precisava e queria dizer.

    Ao preclaro Professor Luiz Edmundo Bouas Coutinho, alma plena de muita bondade, pela

    decisiva palavra incentivadora, articulada em certssima hora.

    ilustre Prof. Dra. Anglica Soares, pela simpatia permanente e pelos clarividentes conselhos.

    Ao erudito Prof. Dr. Ronaldes de Melo e Souza, pela inestimvel ajuda traduzida nas justas

    objees, nas certeiras indicaes bibliogrficas e na jobiana/gentil pacincia em ler-me as

    primeiras mal-traadas linhas deste per-curso.

    Ao grande conhecedor das peripcias da alma Prof. Dr. Frederico Secco, pelos bondosos estmulos

    ao desenvolvimento deste trabalho.

    Aos gentilssimos Profs. Drs. Dora Incontri, Caio Meira e Srgio Arruda, pela aquiescncia em

    figurarem na Banca Examinadora de to ex-tenso documento.

  • III

    A todos os gabaritados professores do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura desta

    Faculdade de Letras, em cujas classes tivemos o privilgio de figurar, bebendo-lhes a mais-que-

    evidente sabedoria, assim como aos inteligentes colegas com quem tivemos ocasio de trocar

    informaes, experincias e idias, de forma prazerosa e estimulante em especial talentosa

    colega-poeta Ktia Rose Pinho, pela qualidade de sua energia positiva em meu favor.

    A todos (sem exceo) os prestimosos funcionrios da Secretaria da Ps, sempre prontos a receber-

    nos e a contornar nossa inquietude discente, lembrando os nomes daqueles a quem mais

    perturbamos: Ezenira, Laelson, Jos Pellizon, Glria, Celi, Vilma, Leonardo e Ftima Quintela.

    Ao eminente escritor, orador e professor esprita Jos Carlos Leal e sua esposa Vitria, amigos de

    longa data, pelas gentilezas, pela fraternidade, pelos aconselhamentos e pelos generosos incentivos.

    Ao grande pesquisador e pensador esprita Hermnio Corra de Miranda, alqumico da mente, a

    quem no conheo pessoalmente, mas sem cujas observaes no teria sido possvel visitar, como

    visitei, os complexos domnios da inspirao anmico-espiritual.

    Universidade Estadual do Norte Fluminense, ao CEFET-Campos e ao Grupo Esprita Francisco

    de Assis, que nos ofertaram o preciosssimo dom do tempo para que instrumentssemos a longa

    batalha.

    A todos os nossos familiares, amigos, colegas e colaboradores, sem cujo auxlio infra-estrutural no

    teria sido possvel caminhar na direo ociosa do estudo e da pesquisa (que tanta dedicao e

    tempo nos exigem).

    Aos extremados amigos que de muito perto nos suportaram as omisses e nos sustentaram nas

    buscas, nos achados, nos empeos, nas dvidas, nas alegrias e nas dores acontecentes ao longo do

    longo caminho de vinda at aqui: Vilma Rangel Braga, Eleonora e Marco Aurlio Rangel Braga,

    Luciano Antonio Campos Soares, Maria das Graas e Carlos Roberto Pessanha da Silva, Cludia

    Luciana Rodrigues Fonseca Manhes, Denise Vianna, Norival Rocha Cruz, Terezinha Lumbreras e,

    last but not least, Vania Ventura Barreto.

  • IV

    HOMENAGEM

    Aos canalizadores da arte,

    em todos os tempos

    (artistas tambm, meritoriamente),

    sustentculos vivos da criao dos mais-que-vivos:

    sua entrega,

    seu desprendimento,

    seus sacrifcios

    e sua coragem

    no dar--luz a luz

    no foram em vo:

    vo re-construindo

    os alicerces

    arcaico-futuristas

    (etereosslidos)

    da relegada potica do ontem

    miraculosamente re-legada

    aos cuidados do amanh.

  • V

    SINOPSE

    Este um trabalho interdisciplinar que estabelece os fundamentos de uma potica

    pneumtica ou medinica, literalmente perdida no espao e no tempo do per-curso

    ocidental da histria da arte. A partir do resgate dos conceitos originrios de pneuma,

    psych e daimon em sua importncia sobre a inspirao (entendida como fator recorrente

    nas investigaes sobre a gnese da obra de arte), recorre-se ao instrumental terico do

    Espiritismo para a reivindicao de um real ampliado, no s aos limites do inconsciente

    clssico, mas tambm s fronteiras do mundo extra-fsico lugares esses de onde emerge

    uma nova e particular interpretao da origem de certas obras de arte.

  • VI

    SUMRIO

    PROLEGMENOS (Calar ou falar, eis a questo) ................................................... 1

    1. CONSIDERAES INICIAIS ....................................................................................... 1

    2. CONCEITUANDO POTICA ....................................................................................... 17

    CAPTULO I

    DO ESPRITO (O sopro em cinco tempos) ................................................................ 25

    1. ALMA E FILOSOFIA GREGA CLSSICA ................................................................. 25

    1.1. Introduo ................................................................................................................ 25

    1.2. A alma como questo filosfica socrtico-platnica ............................................... 26

    1.2.1 A descoberta platnica ................................................................................ 30

    1.2.2. As peripcias da psiqu nos textos platnicos ............................................... 39

    1.3. As sub-stncias segundo Aristteles ................................................................. 50

    2. ALMA E PR-SOCRATISMOS .................................................................................... 53

    2.1 Introduo .................................................................................................................. 53

    2.2 Tales de Mileto .......................................................................................................... 57

    2.3 Anaximandro de Mileto ............................................................................................. 59

    2.4 Xenfanes de Clofon ............................................................................................... 60

    2.5 Herclito de feso ..................................................................................................... 61

    2.6 Pitgoras de Samos .................................................................................................... 68

    2.7 Parmnides de Elia .................................................................................................. 71

    2.8 Empdocles de Agrigento .......................................................................................... 75

    3. DAIMON & CIA ............................................................................................................ 78

    3.1 Daimon, a palavra .................................................................................................. 78

    3.2 Daimon e controvrsias .......................................................................................... 79

    3.3 Um daimon polissmico ......................................................................................... 83

    3.4 Intervenes daimnicas ..................................................................................... 87

    3.5 As artes do daimon ................................................................................................. 89

  • VII

    4. SOPROS E ESPIRITUALISMOS ................................................................................. 94

    4.1 O espiritualismo em conceitos ................................................................................. 94

    4.2 O espiritualismo experimental e seu parentesco platnico ...................................... 97

    5. SOPRANDO ONDE QUER E ONDE NO SE QUER ............................................... 102

    5.1 Ainda esclarecendo o esprito .................................................................................. 102

    5.2 Outros vos da falena ............................................................................................... 103

    5.3 Um pneuma sobre-vivente: crditos a mais ............................................................. 108

    5.3.1Os investigadores psquicos ............................................................................ 109

    5.3.2 Parapsicologia e cincia psi ........................................................................ 112

    5.3.3 O imortalismo esotrico entre os sculos XVII e XX .................................... 113

    5.3.4 O Espiritismo em face do esoterismo ............................................................. 117

    5.4 Esprito e sobrevivncia em verso filosfica .......................................................... 119

    5.4.1 Hegel .............................................................................................................. 120

    5.4.2 Freud ............................................................................................................... 122

    5.4.3 Scheler, Kant e Goethe ................................................................................... 123

    5.4.4 Schopenhauer ................................................................................................. 127

    5.4.5 Leibniz ............................................................................................................ 133

    5.4.6 James .............................................................................................................. 137

    5.4.7 Bergson ........................................................................................................... 139

    5.4.8 Jung ................................................................................................................ 144

    5.4.9 Outros filsofos espiritualistas entre os sculos XIX e XX ........................... 153

    5.4.10 Consideraes necessrias ............................................................................ 154

    5.5 Aviltada ou evitada: a sobrevivncia sobre-vivente na religio .............................. 158

    5.6 Em busca de uma poiesis pneumtica .................................................................. 172

    CAPTULO II

    DA INSPIRAO (Ars gratia delirationis) ............................................................... 174

    1. INSPIRAO, A PALAVRA ....................................................................................... 174

    1.1 Aspectos gerais ........................................................................................................ 174

    1.2. Inspirao e intuio ............................................................................................... 176

  • VIII

    2. PEQUENA TIPOLOGIA DA INSPIRAO NO CAMPO DA ARTE ....................... 179

    3. POIESIS E QUESTES ORIGINRIAS .................................................................. 185

    3.1 Poiesis e dimenso ontolgica ................................................................................. 185

    3.2 Mistrios poiticos ............................................................................................... 189

    3.3 Origem e origem ...................................................................................................... 191

    4. CRIAO ARTSTICA E PSICANLISE .................................................................. 193

    4.1. Por que Psicanlise .................................................................................................. 193

    4.2. Ecos de um ligeiro mal-estar ................................................................................... 196

    4.3. A inspirao segundo a Psicanlise ......................................................................... 197

    4.4. Outros evangelhos psicolgicos .......................................................................... 201

    5. SONDANDO O ICEBERG ........................................................................................... 206

    5.1 Myers, um precursor .............................................................................................. 206

    5.2 Morte mente: a cincia comportamentalista .................................................... 209

    5.3 O inconsciente clssico .......................................................................................... 210

    5.4 O inconsciente segundo Jung ................................................................................. 211

    5.5 O inconsciente e a subjetividade ............................................................................ 213

    6. OS PRISMAS DA INSPIRAO ................................................................................ 217

    6.1 O prisma endgeno da inspirao ........................................................................ 217

    6.2 O prisma exgeno da inspirao .......................................................................... 217

    7. DOIS INSTRUMENTOS DO INCONSCIENTE ......................................................... 222

    7.1 O desdobramento .................................................................................................... 222

    7.2 O sonho ................................................................................................................... 225

    8. A INSPIRAO NA ANTIGA GRCIA .................................................................... 230

    8.1. Generalidades ......................................................................................................... 230

    8.2. A inspirao nos Dilogos platnicos .................................................................... 235

    8.3. A inspirao no ps-platonismo ............................................................................. 252

  • IX

    9. A INSPIRAO PS-HELNICA ............................................................................. 254

    9.1. Helenismo e Roma .................................................................................................. 254

    9.2. Idades Mdia e Moderna ......................................................................................... 256

    9.3. Romantismo e Ps-Romantismos ........................................................................... 261

    10. A INSPIRAO NO NEGATIVO ............................................................................... 263

    10.1 Intencionalidade versus acaso ................................................................................ 264

    10.2 Gnese versus inspirao ....................................................................................... 266

    11. A INSPIRAO NO POSITIVO ................................................................................. 268

    11.1 MPB e inspirao ................................................................................................... 268

    11.2 Rilke, Nietzsche e a inspirao .............................................................................. 270

    11.3 A inspirao daprs Brian Inglis ......................................................................... 275

    11.4 Cristina Pereira e os autores inspirados ................................................................. 286

    11.4.1 Lorca .......................................................................................................... 287

    11.4.2 Pessoa ......................................................................................................... 288

    11.4.3 Rosa ............................................................................................................ 292

    11.5 Outros autores inspirados ....................................................................................... 300

    CAPTULO III

    DA POTICA PERDIDA (A poiesis entre musas e mesas) ......................................... 304

    1. LA RECHERCHE... .................................................................................................... 304

    1.1 As danas da matriz ................................................................................................. 304

    1.2. A realidade reduzida ............................................................................................... 307

    2. MEDIUNIDADE(S) ...................................................................................................... 313

    2.1. O conceito de mdium ............................................................................................ 313

    2.2. Mediunidade e inspirao ....................................................................................... 314

    2.3. A percepo e a recepo medinicas .................................................................... 318

    3. A POIESIS PNEUMTICA EM E-VIDNCIAS ........................................................ 326

    3.1. Francisco Cndido Xavier e a sociedade dos poetas mortos .................................. 326

    3.1.1 Humberto de Campos, pstumo .................................................................... 332

    3.1.2. Vozes do contra ........................................................................................ 335

  • X

    3.1.3. Desfazendo equvocos .................................................................................. 338

    3.1.4. Linconnu sob teste grafo-lgico .................................................................. 340

    3.1.5. Uma questo mal interpretada ...................................................................... 341

    3.1.6. Concluso? ................................................................................................... 344

    3.2. Waldo Vieira e as balzaquianas mmoires doutre-tombe ...................................... 345

    3.3. Outros casos literrios ............................................................................................. 352

    3.3.1 Fiona Macleod e William Sharp ................................................................... 352

    3.3.2. Dickens e o mecnico .. 352

    3.3.3. Wilde em verso ps-tumular .. 353

    3.3.4. O caso Azevedo Cruz .................................................................................. 354

    3.4. Gasparetto e a sociedade dos pintores mortos ........................................................ 355

    3.5. Lesage: das minas de carvo s miniaturas de ouro ............................................... 360

    3.6. Ana Pavlova e a sndrome de Ddalo ..................................................................... 363

    3.7. Rosemary Brown e a sociedade dos compositores mortos ..................................... 365

    CONCLUSO (Uma potica re-encontrada) ............................................................ 374

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 393

    BIBLIOGRAFIA DE APOIO ..................................................................................... 405

    OUTRAS REFERNCIAS DOCUMENTAIS .......................................................... 407

    ANEXO .......................................................................................................................... 409

    OBSERVAES SOBRE O ANEXO ......................................................................... 410

    RESUMO ....................................................................................................................... 411

    ABSTRACT .................................................................................................................. 412

  • 1

    PROLEGMENOS (Calar ou falar, eis a questo)

    Sobre aquilo que no se pode calar, deve-se falar.1

    1. CONSIDERAES INICIAIS

    Para assumir com honestidade as posies que resultaro do presente

    documento, importante seja de-clarado de pronto o seu carter eminentemente

    investigativo. Com efeito, desde muito vimos experimentando algo como o velho

    thaumatsein grego, diante da enxurrada de indcios de que algo h de misterioso nos

    reinos da poiesis humana, bastando apenas nos voltemos para indagar a respeito da origem

    imediata de uma enorme cpia de manifestaes artsticas, dentro de vrias tipologias, ou

    gneros, ou espcies, em diferentes lugares e em todas as pocas, e muita vez na

    presentificao de depoimentos mais ou menos assertivos, ofertados espontaneamente ou

    no, de forma direta ou indireta, por diversos artistas criadores. Aproveitando as palavras de

    George Steiner, certo que na gnese da grande arte e da intuio filosfica, h sempre

    algo estranho ou inumano. um problema que persegue as gramticas da criao.

    Esse dado de mistrio imbricado na arte, fazendo ressoar o prprio

    desafio sub-reptcio da realidade, nos evocado por Carneiro Leo (2000/II): aps

    asseverar que o homem jamais chega realidade propriamente dita, patinando que si

    permanecer, mais ou menos conscientemente, sobre o cho escasso das apenas realizaes,

    admite ele que este mesmo homem, com as obras de arte, as vezes produz2 realizaes

    privilegiadas ... que do acesso, embora indireto e oblquo, ao mistrio da realidade.

    1 Inverso pardica da proposio 7 do Tractatus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein, que diz: Sobre aquilo de que no se pode falar, deve-se calar. Cf. Strathern (1997:60). 2 Atente-se para a formulao da frase: o homem produz: neste momento ele, o ser humano, o agente, o criador, o pro-dutor da obra de arte. Cf. op. cit., pp. 49 e 92. O grifo nosso.

  • 2

    Aps compulsar manuais de filosofia e tratados de esttica, livros

    religiosos, opinies de abalizados cientistas, obras inteiras de eminentes pensadores, e mais:

    levando em conta o abismo fecundssimo do inconsciente humano, esse que muita coisa

    efetivamente explica (quando no justifica), lcito confessar, a bem da verdade, que no

    logramos divisar um painel convincente que a um s e mesmo tempo explicasse e

    reflexionasse, de forma integral, satisfatria e/ou definitiva, sobre a matria. Todo este

    estado de coisas, fcil deduzir, nos incitou a pensar, investigando e a investigar,

    pensando. Para abordar a questo que nos incomodava/espantava, comeamos por reunir

    dados que pudessem configurar um estudo srio e profundo, quanto possvel, sobre as

    relaes que insofismavelmente se patenteiam entre a arte e o extraordinrio, entre o

    esttico e o sagrado, entre o impulso criativo e a transcendncia, entre o potico e o

    inesperado, entre o belo e o mistrio. O que equivale dizer: tivemos de descer (ou subir) ao

    fenmeno em-si, coisa (no-kantiana) em-si e ao julgamento que dela tm feito os seus

    fazedores, ou autores, ou pro-dutores imediatos (os artistas), para nos aproximarmos de uma

    possvel clarido e de uma clarido possvel a respeito do tema. Em suma: ensaiamos jungir

    razo e juzo (brincando com Kant) para sondar a presena do inefvel neste riqussimo

    campo de ao humana que a grande arte, capaz de erigir mundo e encher de sentido, no

    dar ou no restituir, grande parte da vida de todos os homens.

    Em outras palavras, uma enorme pergunta nos aodava o

    pensamento, pergunta fundamental que de certa forma provocou a inclinao pelo tema e

    cuja resposta certamente no a extinguir3: seria possvel trabalhar a hiptese de alguma

    modalidade de gnese artstica localizar-se num nvel transcendente de realidade?

    Tais foram, portanto, em linhas gerais, a motivao mais forte e o

    ponto de partida do estudo que ora se enceta, e que com humildade estaremos submetendo

    apreciao de nossos leitores. Escusado dizer que nosso esforo no tem por meta seno

    somar-se s contribuies que tm sido oferecidas, ao longo de diversificados tempos e

    variados espaos, compreenso da questo aqui delineada e, por isso mesmo, tambm

    no poderia ter a pretenso de esgotar, definitizar ou estabelecer concluses exclusivistas

    3 Segundo Carneiro Leo, apud Castro (1994, p. 31), uma pergunta, cuja resposta a extingue, no sobrevive na resposta. No uma pergunta Essencial. Esta proposio ecoa uma outra de Martin Heidegger (1999, p. 57): Toda resposta s mantm a sua fora de resposta enquanto enraizada na pergunta.

  • 3

    sobre a discusso. Mesmo porque, se se trata de uma questo de sondar origens, ser sbio

    permanecer pequeno diante do terror secreto da presena de tudo que inicial.4

    de pensar (e alguns podero sem dvida concordar) que outra coisa

    no fazemos seno exibir marcas de muita ousadia, em imaginando, concebendo e por fim

    anunciando/enunciando o presente trabalho. Afinal, para abordar tais questes que, por

    inusitadas, de certa forma desafiam a academia, mister acreditar-se munido de flego, de

    tmpera, de fibra, de estofo, isto , inventar-se cabedais suficientes que, em vo, procuro em

    meu entorno, sem deles achar sequer vestgio que valha. Deveramos, ento, desistir do

    cometimento? Aceitar previamente a impossibilidade de bom xito, e portanto abortar a

    tarefa? Que razes, alm da teimosia e do j referido espanto, poderiam justificar a

    insistncia em tema to distante dos que habitualmente so tratados na ambincia

    acadmica, esta que se mostra geralmente infensa aos sopros de uma heterodoxa meta-

    physis?5

    Entretanto, a bem dizer, mais que uma meta-physis mal-comportada o

    que se quer na verdade um delirante meta-logos: aventar a possibilidade de ir alm do

    discurso trivial ao dis-cursar sobre uma pre-tensa origem transcendente6 de obras de arte e

    de manifestaes artsticas em geral. No que respeita criao, no queremos significar

    origem transcendente da obra de arte, nem de todas as, mas simplesmente de obras,

    assim sem artigo e sem pronome. Sem qualificativos ou quantificativos, sem nada: no

    indefinido puro o que equivale dizer: sem arroubos alethicos, sem declaraes solenes,

    sem empfias dogmticas. S humilde estudo, s alentada pesquisa, s abusada hiptese, s

    argumentada tese, na visada da produo de determinados objetos estticos.7

    O aludido sentido lato da palavra transcendente vai ento tangenciar

    o vu, vu do sagrado, vu do mistrio (alm talvez do de sis), vu do dificilmente

    4 Heidegger, em 1941. Apud Steiner (2003, p. 25). 5 A referncia que se faz aqui academia como um todo, na sua feio ainda eminentemente conservadora, e obviamente no vale para o Programa especfico que, na Faculdade de Letras, nos proporciona e assegura a realizao deste estudo. 6 No sentido mais largo desta palavra, ou seja: aquilo que faz ultrapassar (transcendere) uma mdia, ou que pertence a uma ordem radicalmente diferente da usual. Evita-se aqui o sentido estrito kantiano de o que est alm de qualquer experincia possvel. 7 Expresso usada sem rano hegeliano.

  • 4

    sondvel ou do insondvel, se assim o quisermos, uma vez que tangenciar no equivale

    propriamente a penetrar. Fica-se, portanto, no entre, pois que em mistrio no se adentra

    bate-se porta, sonda-se, indaga-se, pronuncia-se no mximo um reverente abra-te

    Ssamo, ao mesmo tempo sem nenhuma e com alguma esperana de entrada, de uma rstia

    qualquer de luz assim como clareira na floresta... S assim, a nosso ver, ser possvel lanar

    alguma luz por sobre o enigma que a arte em si mesma mas sem a pretenso de

    resolv-lo: porque a tarefa consiste em ver o enigma.8

    [Embora tenhamos dito que estamos a evitar o

    sentido kantiano de transcendncia, deve-se fazer breve

    referncia chamada coisa em si kantiana, uma vez que

    seu conceito repercute no imo de nossas intenes aqui.

    Em consonncia com Kant, assevera Schopenhauer

    (1912:193) que a coisa em si aquilo que h de

    unicamente real em todos os fenmenos. Ora,

    investigando o fenmeno, no fundo a perspectiva do

    presente trabalho tende a fustigar a noo mesma de

    nmeno, desafiando de certo modo a rigidez kantiana em

    no considerar que se possa acessar a transcendncia.9 Tal

    considerao faz ecoar certos posicionamentos de Theodor

    Adorno, extrados sua Dialtica negativa e anotados por

    seu comentador Umberto Galeazzi (in Penzo & Gibellini,

    2002:364), que assim se expressa: Adorno reivindica a

    abertura metafsica da mente humana, a sua capacidade de

    pensar o Absoluto, no capturado na imanncia da

    subjetividade: A autoridade do conceito kantiano de

    verdade torna-se terrorista com a proibio de pensar em

    geral. O bloqueio kantiano projeta sobre a verdade a

    automutilao da razo, que ela realizou sobre si mesma

    como rito de iniciao sua cientificidade.]

    8 Heidegger, no Posfcio de A origem da obra de arte (1999:65). 9 Deve-se entretanto ressalvar que as longas digresses de Kant sobre a questo do esprito, em seu ensaio Sonhos de um visionrio, surpreendem pela incurso visionria do filsofo no reino que ele prprio vetou.

  • 5

    A tarefa prope, pois, uma escuta/leitura10 apenasmente di-ferente da

    poiesis artstica11 expresso entendida aqui como feitura originria da obra de arte: um ler-

    escutar que traga (ferente) dois (di) mundos a uma unidade, uma abordagem sensvel

    (em duplo sentido) de alguns possveis efeitos gerados pelo mundo inteligvel, um apelo

    da existncia emprica aos provveis arcanos da supra-emprica, uma certa inquirio da

    imanncia transcendncia... Uma escuta e uma leitura, enfim, sob as bnos da physis, de

    ecos daquele logos12 que tambm (e sobretudo) adora esconder-se, e que atende s vezes

    pelo enigmtico nome de esprito o pneuma novo-testamentado que sopra onde bem

    quer, e cuja origem/destinao estamos longe de saber.13 V-se bem que estaremos a bulir

    com o sagrado, e mais que isso, com o sagrado institudo na religio ainda que se v

    depreender o sentido desta e-bulio pari passu, ao longo do caminho a ser trilhado. Alm

    disso, percebe-se que forosamente teremos de meter a mo na cumbuca daquela

    Metafsica inaugurada, nos arraiais do Ocidente, pelo velho Plato de guerra, e que acabou

    revestida de m fama, como uma espcie de dama decada, em funo de algumas

    interpretaes filosficas in-formadas ou de-formadas no trnsito histrico: outro problema

    a ser contornado, com tornados remetidos (mais ou menos bem) em direo a multilteros

    campos de batalha.

    Brincadeiras palavrantes parte, diante de assunto que de antemo

    queremos pro-fundo (e pra cima), perguntvamos h pouco quais razes, outras que as j

    apontadas, poderiam ainda justificar a insistncia no tema. Uma, forte, parece-nos residir

    no dever. O dever de falar o que por dentro de ns clama e no pode ser calado, o dever de

    fustigar a doxa dos atenienses que detm nominalmente o poder de determinar como e se

    10 Escuta palavra mais doce cujo sabor sonoro ao mesmo tempo a aproxima e a distingue de leitura, que tem um matiz semntico mais profundo, levando-a s raias da hermenutica de modo mais direto. De qualquer modo, para efeito de referncia ao que pretendemos com este trabalho, podem ser considerados termos equivalentes. 11 A expresso pleonstica, uma vez que Aristteles definiu expressamente poiesis como produo artstica, por oposio a theoria e a praxis, as trs atividades bsicas humanas. Cf. Blackburn (1997, p. 346). 12 Para con-fundir, bom lembrar o portal do Evangelho de S. Joo: No princpio era o Logos... 13 Jo 3:8. Quanto aos outros nomes gregos que podem ter o sentido de esprito, v. Cap. I.

  • 6

    deva ser abordado/pesquisado este ou aquele universo temtico. D vontade de nos confiar

    aos costados do espadado Plato, que pela boca de Scrates pondera ao aflito Crton:

    Portanto, querido Crton, no devemos nos preocupar com aquilo que o povo venha a dizer, mas sim pelo que venha a dizer o nico que conhece o justo e o injusto, e este nico juiz a verdade. 14

    vlido admitir que, para a compreenso da matria que est em

    vias de desenvolver-se no presente trabalho, faremos uso de alguns pressupostos, sem os

    quais o ncleo do discurso carecer de senso e fundamento. Tais pressupostos podem-se

    resumir, por ora, nas trs expresses seguintes: imortalidade anmica, ingerncia

    daimnica e Deus15, por conseqncia (ou causa).16

    Diga-se de passagem que, aps a constatao do desmoronamento

    de uma Metafsica re-conceituada por um dos gigantes17 do pensamento ocidental no

    sculo que passou, no nos ser fcil re-tomar congruente ou coerentemente tais temticas,

    mas preciso se proceda ao esforo. Geralmente se admite que pouca coisa no mbito da

    filosofia poder ser a mesma aps a virulncia do furaco heideggeriano, esse que, num

    segundo momento, desviou do prumo o corao da Metafsica. Entretanto, porque o prprio

    pensador nos pro-pe a suavidade poeirenta e pedregosa dos caminhos, faz-se necessrio

    trilh-los, mesmo que no levem a parte alguma: ou, quando nada, a alguma insuspeitada

    parte que a nossa parca inteligncia permita di-visar.

    [Devia-se dizer assim mesmo num segundo

    momento , porque na famosa Preleo de 192918 (que se

    14 Plato, Crton. Edit. Nova Cultural, 1996, p.107. A verdade que pretendemos evocar aqui, sob o pretexto da fala socrtica, a chama interior que sente nas veias o dever de pronunciar-se. 15 A criao do cosmo seria o nico ato a singularidade absoluta de uma criatividade autntica. (...) Tautologicamente, s Deus cria. (Cf. Steiner, op. cit.:33). 16 Permitimo-nos considerar os ditos pressupostos como genuinamente filosficos, como se explicar no Cap. I do presente trabalho, lugar onde se estampar igualmente uma abordagem dos sentidos que se conferiram ao controvertido termo daimon. 17 Referimo-nos ao pensador alemo Martin Heidegger (1889-1976). 18 Que Metafsica?, in Os Pensadores (Heidegger), Ed. Nova Cultural, 1996.

  • 7

    insere num primeiro momento das posies daquele

    filsofo), longe de desmoralizar a Metafsica, Heidegger

    nos ensina o que ela significa em plenitude, a partir e em

    torno da elaborao cuidadosa, por ele formulada, dos

    sentidos que se devem conferir aos termos nada e angstia.

    Nesse discurso, traduzido para o vernculo (no sem certa

    dificuldade confessa) pelo eminente estudioso Ernildo

    Stein, o pensador germnico mostra como a colocao do

    Dasein para alm do ente, suspenso na angstia do nada,

    faz o pensamento dirigir-se inapelavelmente para sua

    caracterizao originria: sempre, e essencialmente,

    metafsica. curioso como esse precioso texto, que

    posterior obra magna do mestre19, tem ficado

    praticamente arquivado em favor do privilegiamento e

    da superestimao de uma Metafsica superada.

    Atendendo a uma viso unitria da obra de Heidegger,

    coisa que perfeitamente plausvel, o desprezo a que se

    relegou esta referida abordagem de tema to capital20

    poderia soar como acobertamento de uma indesculpvel

    contradio filosfica do grande pensador, um vacilo

    que no acreditamos procedente.

    Esta observao soa como anteparo s provveis

    crticas que nossa trama investigativa sofrer, em funo

    de suas conotaes metafsicas.]

    Fica patente, pois, que intentamos tomar a nosso encargo, com a

    devida conscincia de nossos escassos recursos, a tarefa de tentar tematizar aqui a questo

    da alma enquanto elemento emanador de pro-duo artstica o que equivale dizer que

    ser preciso re-ver, re-modelando-a, a discusso da dualidade esprito-corpo, talvez mais

    19 Ser e tempo, publicada em 1927. 20 De forma consciente, estamos focando unicamente o contedo integral da Preleo de 1929, evitando referncias aos adendos explicativos de 1943 (o Posfcio) e de 49 (a Introduo), sobretudo considerando que aquele estudo primeiro, se contivesse erros ou impropriedades em sua formulao original, teria sido certamente renegado, no todo ou em partes, por seu Autor.

  • 8

    aparente que real mas de qualquer forma um item que certa prxis heideggeriana, por

    exemplo, classifica um tanto pejorativamente de metafsico, uma vez que traz de novo

    baila a surrada questo do corte na episteme que teria sido efetuado, com conseqncias

    fatais, pela filosofia dualista (ontologicamente viciada) de Plato.

    Hoc opus hic labor est: a comear deste ponto, embora no

    necessariamente em razo dele, algumas dificuldades comeam a surgir e a espessar-se, de

    tal modo que os mais-ou-menos velados protestos acima delineados, a respeito de um

    tambm mais-ou-menos velado pr-juzo acadmico, terminam por ganhar sentido. Tocar

    nas questes da alma ou do esprito, ainda hoje, representa no mnimo a garantia da

    aquisio gratuita de uma srie de dificuldades e embaraos difceis de superar. provvel

    sejamos questionados quanto ao teor deste nosso desabafo inicial, mas, do ponto de vista

    histrico, fica difcil camuflar o fato de que a posio oficial da academia, como um

    todo, foi e continua sendo, seno francamente avessa, pelo menos muita vez hostil, a abrir-

    se nessa direo. Apesar das aberturas evidenciadas por parte de valorosos segmentos

    acadmicos, a prenunciar melhores tempos para a acolhida dessa e de muitas outras

    questes de variados gneros, os ecos da mencionada intransigncia nos repercutem ainda

    na carne e no esprito.

    Veja-se por exemplo o que ocorre com grandes nomes da filosofia

    e/ou do pensamento. Onde nos manuais, nos dicionrios ou nos estudos biogrficos as

    referncias honestas e claras, por exemplo, religiosidade insofismvel dos pensadores

    originrios, ao interesse inslito de um Schopenhauer pelas cincias ocultas e pela apario

    de espritos, desconhecida pacincia de um Leibniz ao discorrer sobre as crenas

    imortalistas dos orientais ou ainda coragem de um Max Scheler a discutir com

    abundncia em torno da sobrevivncia espiritual? Dir-se-, talvez, que essas no foram as

    faces que ficaram dos nomes aludidos, da mesma forma que no ficou a verso de um

    Plato duplamente crente (por ele e por seu mestre Scrates) na existncia da alma e em

    sua imortalidade, ou a do mesmo Plato francamente favorvel tese palingensica. de

    perguntar por que o ensaio de Schopenhauer sobre as aparies dos fantasmas est

    esgotado em francs, no existe em lngua portuguesa, e para l-lo tivemos de fotografar na

    Biblioteca Nacional duas edies francesas de 1912, totalmente maltratadas pelo tempo; e

    por que igualmente no h o mnimo interesse de se editar em nossa lngua (e de resto

  • 9

    mesmo em se lhe fazer referncia) uma obra capital de Bergson, cujo ttulo desanima

    porque talvez no reflita in toto o Bergson que ficou: Lnergie spirituelle...

    Em que espelho ficaram perdidas essas faces que se dizem a si

    prprias, e apofanticamente a ns se mostram, instigantes e plenas de interesse? Pois

    exatamente a elas, no obstante, que o presente estudo se apega, teimosa ou qui

    desafiadoramente, a residindo, notre avis, parte de sua prpria originalidade: parece ser

    esse desnudamento despudorado de algumas falas menos votadas (pinadas

    maliciosamente s obras de grandes pensadores) justamente o que constri a di-ferena

    desta nossa pesquisa. Mas a ousadia ainda fica nas linhas, evitando o exagero das

    entrelinhas a acusar um parti pris que em absoluto no nos passa cabea.

    Por outro lado, observa-se que, no campo da cincia, as incurses

    pelas bandas do esprito tm historicamente gerado dores de cabea fenomenais aos

    atrevidos estudiosos que ousaram desafiar o pr-conceito imperante para mexer com tais

    excrescentes objetos de investigao, to anti-cientficos porque assim o querem os

    proprietrios de um saber que imagina tudo poder medir e perscrutar aquele tudo, e

    somente ele, claro, que as boas-maneiras cientficas consentem admitir como mensurvel e

    perscrutvel. Dessa forma, respeite-se Einstein enquanto desdobra raciocnios qunticos e

    relatividadistas, mas escarnea-se dele quando brinca de falar de um Deus que se recusa a

    jogar dados rea interdita a um cientista digno desse nome. Enquanto descobridor do

    tlio, dos raios catdicos e do estado radiante da matria, com reconhecimento geral da

    comunidade cientfica internacional, o notvel sbio ingls William Crookes foi um

    benfeitor da humanidade mas passou a ser tido por deficiente mental a partir do momento

    em que se decidiu a no evitar as pesquisas e experimentaes psquicas, essas que o

    levaram, inclusive como resultado das bem-sucedidas ectoplasmias luminosas que logrou

    obter, a concluir pela realidade palpvel dos fenmenos sobrenaturais, para espanto e

    subseqente deboche de seus antigos pares. De forma anloga, a biografia de Charles

    Richet no estar enriquecida diante da cincia oficial, em absoluto, se e quando, alm de

    referi-lo como Nobel de Fisiologia em 1913, alguma enciclopdia julgar valioso (ou

    curioso, talvez) cit-lo como autor de um monumental Tratado de Metapsquica21, e

    21 Termo criado por Richet, em lugar do qual prefere-se hoje usar parapsicologia, uma cincia ridicularizada por muitos cientistas...

  • 10

    admirador do pioneirismo de Allan Kardec, o fundador do Espiritismo, nas pesquisas de tal

    estranha rea.

    Recuando um pouco mais, s origens do paradigma mecanicista

    que levou ao atesmo militante uma fornada inteira de crebros brilhantes, observa-se que

    foi a partir das contribuies de Newton ao mundo cientfico que se iniciou a clivagem

    profunda entre Fsica e Metafsica entendida esta ltima aqui (o que plenamente

    possvel, de acordo com as definies clssicas da disciplina) como a vertente pesquisante

    sobre o esprito22, em contraste com a primeira, a que observa e descreve a matria.23

    Segundo o fsico francs Jean Charon, constitui verdadeiro paradoxo que Isaac Newton,

    de quem se quis fazer o modelo do cientista, isto , do sbio apenas preocupado com as

    certezas associadas aos fatos observveis, tenha na verdade orientado toda sua vida para

    os problemas do Esprito: ele escreveu mais pginas sobre a alquimia e sobre o que hoje

    chamaramos de parapsicologia do que sobre a tica e a gravidade.24 Parece que os

    interesses materialistas, vidos em afastar Deus de suas concluses mecanicistas

    (suficientes, na aparncia, para explicar o universo), conseguiram torcer a natureza do

    genuno pensamento newtoniano, fazendo o grande vulto oscilar entre o que ele foi e o

    que dele fizeram, ocultando algumas de suas pesquisas e mesmo dispersando uma grande

    parte de sua obra.25 Fato anlogo sucede com Descartes, sobre quem pontuou o Dr. Patrick

    Drouot, misto de fsico e terapeuta psquico (sic):

    Faamos justia a Descartes: no o seu pensamento que deve ser posto em cheque, mas o que fizeram dele as geraes

    22 Segundo Hans Reiner, no ensaio O surgimento e o significado original do nome Metafsica (in Zingano, 2005:93 ss.), Aristteles designa a cincia da qual trata a sua assim chamada Metafsica como Filosofia Primeira (prte philosopha), tambm como Teologia (theologik) ou pura e simplesmente como sabedoria (sopha). Autores como Baur (no Compndio de Metafsica, de 1922) concordam que esta denominao (Metafsica) se refere ao objeto suprasensvel (transfsico, transcendente). Cf. op. cit., p. 116. Mas est claro que esta apenas uma das maneiras de conceituar a palavra. Grifei. 23 Na opinio de Jean Charon (1979, p. 24), esta maneira de conceber a Metafsica leva o cientista a uma viso flexvel e harmoniosa do Universo, convidando-o ao ato criador, que mais que o ato de descoberta o que permite se estabeleam co-relaes profcuas entre os aspectos cientfico, artstico e at mesmo religioso do conhecimento. 24 Charon (op. cit., p. 19). 25 Zefiropulo & Monod, apud Charon (op. cit.:19 e 20).

  • 11

    posteriores. Descartes, de certa maneira, nunca foi cartesiano. Apesar disso, sua viso pouco a pouco levou a um conceito racional desenfreado.26

    Na mesma direo, critica Bergson duramente a metafsica

    (entendida aqui apenas como conhecimento especulativo ou racional) dos sculos XVIII e

    XIX, ou antes o seu aviltamento, aps discorrer sobre as posturas de Espinosa e Leibniz a

    respeito do paralelismo, por eles defendido, entre corpo e alma:

    (...) du moins sabstinrent-ils de faire de lme un simple reflet du corps ; ils auraient aussi bien dit que le corps tait un reflet de lme. Mais ils avaient prpar les voies un cartsianisme diminu, triqu, daprs lequel la vie mentale ne serait quun aspect de la vie crbrale, la prtendue me se rduisant un ensemble de certains phnomnes crbraux auxquels la conscience se surajouterait comme une lueur phosphorescente. De fait, travers tout le XVIIIe. sicle, nous pouvons suivre la trace cette simplification progressive de la mtaphysique cartsienne. A mesure quelle se rtrcit, elle sinfiltre davantage dans une physiologie qui, naturellement, y trouve une philosophie trs propre lui donner cette confiance en elle-mme dont elle a besoin.27

    Tais procedimentos levaram o Ocidente cientfico a engendrar um

    colossal esquecimento do esprito, de certo modo to grave e fatal como o j antolgico

    esquecimento do ser, do qual se ocupa to percucientemente no sculo XX o pensador

    Martin Heidegger. A incapacidade humana, patente aos olhos, de dizer o real, de dar conta

    da natureza total da realidade, sugere (embora por proposio negativa) que o real no se

    resume ao que se pensa sobre ele nunca , pelo menos, o que se diz que :

    Essas abordagens por aproximaes sucessivas do real, desenvolvidas pela fsica deste sculo [XX], levam a fazer desaparecer gradualmente a barreira cartesiana que separa sujeito e objeto, e vm juntar-se s abordagens preconizadas h milnios pelo pensamento oriental. Assim, veramos o conhecimento racional, a fsica, subir passo a passo a alta

    26 Drouot (2000, pp. 192/3). 27 Bergson (1990 :40), com destaques nossos.

  • 12

    montanha que leva ao real, para achar finalmente, j instalado no topo, o Conhecimento... intuitivo!...28

    A insistncia nas referncias cincia pode parecer incua ou

    improcedente nestas pginas, mas na verdade no o . A fragmentao do conhecimento,

    mui caracterstica de nossa modernidade, especialmente a partir do sculo XIX (poca em

    que as cincias conquistam seu droit de cit, a par de uma autonomia que se foi

    arrogantizando a pouco e pouco), um cncer epistemolgico que precisa de tratamento

    urgente, a modo de ser adequadamente debelado. Ao que saibamos, nenhuma lei

    despermite que se referencie a cincia num estudo sobre literatura e arte, mormente quando

    nosso intuito mostrar que determinados postulados cientficos (que, como veremos, de

    forma geral se formulam ambiguamente sobre a temtica que elegemos) tm recentemente

    vindo em socorro, mais que em detrimento, desta questo para a qual procuramos em

    primeira instncia apontar ou remeter, antes que propriamente desvendar. Compare-se, a

    respeito disso, o que disse Carneiro Leo nas referncias que fizemos acima: que se no

    dir da Arte, essa que abre fissuras no real para sondar-lhe e refletir-lhe o mistrio, se a

    prpria Fsica atual, na opinio de Charon, caminha para o intuitivo como alternativa

    praticamente inevitvel, na subida (sisfica, talvez?) da montanha que leva ao mesmssimo

    real?

    Em reforo a esta posio, vale referir: quando estvamos

    pretendendo anotar aqui o dado de que, entre a segunda metade do sculo XIX e as trs

    primeiras dcadas do seguinte, tinha havido um verdadeiro boom dos estudos psquicos na

    Europa Ocidental e nos Estados Unidos, seguindo-se a isso um silncio que reputvamos

    longo at o momento atual, eis que, no sem certa surpresa, fomos levados a constatar que

    nos ltimos vinte, ou vinte e cinco, ou trinta anos tem crescido paulatinamente o interesse

    das cincias ditas exatas (e tambm das consideradas humanas) pelo feixe de

    fenmenos que dizem respeito situao espiritual do homem, mesclando-se sem empeos

    tradies antigas do Ocidente, tradies milenares do Oriente e por incrvel as

    modernssimas conquistas da Fsica, como vimos h pouco:

    28 Jean Charon, apud Drouot, op. cit., p. 220. O respeitado Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouas Coutinho, lente do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura desta Faculdade de Letras, no se cansa de repetir, enfatizando, que o real no : o real e...

  • 13

    Porque a cincia nossa metfora principal, vivemos entre duas histrias da cincia: a velha e a nova. Poderamos dizer que a cincia de hoje est transcendendo a si mesma. Tendo repelido qualquer outra forma de verdade, ela revelou seus prprios limites. A fsica, a neurofisiologia, a neuropsicologia, a nova psicologia esto pondo abaixo o materialismo do sculo XIX. (...) / Depois de ter considerado o universo como um mundo-mquina e o ser humano como separado desse universo, depois de ter considerado o corpo e o esprito como duas entidades distintas e separadas, a cincia atual envereda pouco a pouco por um caminho holstico, universal, onde a noo de corpo, de esprito e de universo se torna UM nesta dimenso temporal.29

    evidente que as manifestaes culturais, nas quais se incluem as

    brotaes da arte em geral e da literatura em particular (que tambm arte, por supuesto)

    no poderiam sair inclumes dessa onda holstica, ou globalizante, ou ecolgica profunda

    (como quer Fritjof Capra30) que perpassa hoje o conhecimento humano como um todo.

    Escusado dizer que a dita onda , no mnimo, e com toda certeza, espiritualizante e

    de tal maneira, que cabe ressaltar a evidente atualidade de nossa escolha temtica: o re-

    conhecimento de elos entre o espiritual e o artstico, investigando em que medida possvel

    e/ou vlido pressupor a presena e detectar (por conseqncia) o modus operandi do

    esprito na poiesis, independentemente de crena na veracidade ou no de pretensos

    fenmenos anmico-espirituais; do mesmo modo, a recuperao de certos fios histricos e a

    re-composio de provveis evidncias perdidas de uma potica desconsiderada ou talvez

    esquecida. Nesse sentido, este um trabalho de memria, de resgate e de exerccio

    epistmico em torno do imaginrio coletivo no campo da criao artstica.31 In nuce, o

    que o leitor poder acompanhar no decorrer dos captulos que se seguiro.

    H mister agora declarar o que este documento definitivamente

    no : uma profisso de f ou uma exibio pretensamente confirmatria de crenas

    29 Drouot, ibid., pp. 209 e 222. Observe-se aqui a prova da referida ambigidade da cincia em relao questo espiritual. H, portanto, cincia e cincia, a velha (tambm chamada comum) e a nova, essa que nos estimula (tida como complementar). 30 Cf. Capra (2004), passim. 31 Steiner (op. cit., pp. 29/30) adverte: Teologias e cosmogonias francamente materialistas e mecanicistas, a partir de Comte e Darwin, passariam a exorcizar integralmente o espectro da criao. Vimos que esse um espectro que renasce, hoje, no prprio interior dessas cincias; cincias que tambm querem saber o que d vida vida? (como Hofmannsthal em sua Morte de Ticiano: Indes er so dem Leben Leben gab?)

  • 14

    prvias. Em nenhum momento pretender-se- convencer quem quer que seja de qualquer

    questo aqui abordada, uma vez que aventaremos to somente hipteses, em cima ou em

    torno das quais sero apenas sugeridas possibilidades (ainda que reais e objetivas) de

    abordagem da construo potica, despretendendo-se, entretanto, chegar a concluses de

    natureza transcendente por descabidas, desnecessrias e dificilmente possveis.

    Importa dizer, pois, que para tentar a tal pretendida escuta de

    uma poiesis pneumtica32, estivemos recorrendo aos instrumentais do conhecimento

    humano (filosficos, cientficos, estticos ou religiosos) que nos pareceram pertinentes,

    sem censura e sem vergonhas epistemolgicas, passando por obras contendo depoimentos e

    exemplificaes de peas artsticas propriamente ditas todo e qualquer dado, enfim, que

    nos pudesse auxiliar na fundamentao da tese investigatria que aqui estamos a propor.

    Dentre as ferramentas tericas de trabalho utilizadas, registrem-se

    preferencialmente os seguintes referenciais:

    1) os pensadores gregos originrios, por terem sido inaugurais

    para o conhecimento ocidental no que tm de obscuro e no que pde ser clareado (pela

    exegese oficial j estabelecida e pelas inferncias que pudemos aqui realizar);

    2) a Metafsica33 socrtico-platnica, por ter (bem ou mal)

    inventado a filosofia e tantas outras disciplinas tais como hoje as entendemos, e

    sobretudo por terem seus arautos versado de forma explcita sobre o tema que aqui se re-

    trata;

    3) como instrumental espiritualista moderno, escolhido entre

    outros possveis, especialmente pela vantagem de ter sido academicamente menos

    abordado e pelo fato de nos parecer mais fecundo e bem con-formado (dentre as gnoses

    similares), tendo-se em vista o objetivo especfico visado: o Espiritismo enquanto doutrina

    francesa do sculo XIX;

    4) o que viram e pensaram, sobre as questes levantadas,

    ajudando-nos a discernir, as vozes de alguns filsofos ocidentais de diferentes pocas e

    tendncias, assim como depoimentos dos prprios artistas e, quando pertinentes,

    32 Com plena conscincia de que a palavra poiesis soaria melhor sem adjetivao, optamos por dizer da forma que a est para efeito de maior clareza a respeito do que pretendemos estudar nestas pginas. 33 As aspas querem dizer que tentaremos coloc-la em seu devido lugar na hora oportuna.

  • 15

    determinadas observaes de crticos da cultura em geral e da cultura literria em

    particular;

    5) da mesma maneira e com propsito similar, o parecer de

    alguns cientistas que demonstraram ter pensado.34

    Dessa forma, foi dividida a dissertao em 05 (cinco) partes, a

    saber:

    1. Os presentes Prolegmenos, intitulados Calar ou falar, eis a

    questo;

    2. O primeiro captulo, chamado Do Esprito ou O sopro em

    cinco tempos, onde se procurou fundamentar os pressupostos

    bsicos de toda a investigao temtica empreendida;

    3. O segundo, nomeado como Da inspirao ou Ars gratia

    delirationis, cujo objetivo foi identificar as caractersticas da

    detonao da poiesis em estados alterados de conscincia, bem

    como especificar a tipologia do fenmeno da inspirao artstica;

    4. O terceiro, chamado Da potica perdida ou A poiesis entre

    musas e mesas, no qual intentamos, inclusive atravs de

    exemplos, estabelecer uma interao entre a intercorrncia da

    inspirao dita exgena e o corpus pensamental do Espiritismo,

    de modo a cunhar a efetiva possibilidade de existncia de uma

    potica pneumtica ou medinica, perdida temporal e

    espacialmente no per-curso da histria ocidental;

    5. Finalmente a quinta e ltima parte, que s poderia ter-se

    chamado Concluso (ou A potica re-encontrada): a que

    34 No sentido heideggeriano de pensar, conforme est no ensaio O que quer dizer pensar?. Cf. Heidegger (2002:115).

  • 16

    mostrou que alea jacta est, amarrando os fundamentos e os pontos

    nodais da tese apresentada.

    Algumas observaes sobre o formato do texto discursivo que ora

    se apresenta devem ser registradas, a fim de que nos justifiquemos, por assim dizer, com os

    leitores que forem instados a nos acompanhar neste trajeto de descobertas. A primeira diz

    respeito extenso das pginas, pela qual nos desculpamos desde j anotando apenas

    que, em face do ineditismo da proposta feita, ficou impossvel resumir o que precisava de

    argumentao farta, com vistas ao enfrentamento das provveis objees que pudessem

    surgir em face de uma abordagem assim ousada de to inacadmico assunto.

    Outra se refere profuso das notas de rodap. Solicitamos no

    sejam elas consideradas meras anotaes de rotina, mas partes integrantes do corpo textual,

    apresentando ora dados confirmatrios das assertivas a que se referem, ora acrscimos

    julgados valiosos para o alargamento da compreenso do texto principal, ora objees s

    idias inicialmente expressas.

    A meio termo entre as notas de p-de-pgina e o discurso

    propriamente dito esto os perodos entre colchetes, redigidos em tipo menor e margens

    maiores, anotando lembranas importantes suscitadas pelo andamento das questes do

    texto principal ou registrando observaes paralelas, guisa de curiosidade e/ou

    aprofundamento. Tais inseres se fizeram necessrias no s para se evitar mal-entendidos

    como para fugir-se a uma estreiteza de abordagem que, de resto, soaria incompatvel com

    os propsitos a que nos obrigamos no presente trabalho.

    Last but not least, necessrio admitir que nosso estudo diz

    respeito e se circunscreve ao universo cultural do Ocidente. As referncias a nomes,

    situaes ou conceitos de outras culturas, resultantes das pesquisas nesse sentido que

    pudemos efetivar, devem ser vistas como dados conjunturais de exceo, diante do

    esmagador corpus exemplificativo relacionado vida ocidental, que aqui reunimos.

  • 17

    2. CONCEITUANDO POTICA

    Somos de opinio que no se desprov de interesse toda e qualquer

    dmarche no sentido de produzir esclarecimentos acerca dos propsitos que temos ao

    apresentar um trabalho mormente como este que estamos colocando em pauta. Com

    efeito, a partir da questo primeira de sua prpria denominao, que configura uma rea

    acadmica envolvida em instigante fascnio e ao mesmo tempo sujeita a conceituaes nem

    sempre niveladas amplitude generosa que o seu domnio nos possibilita visitar, cremos

    que a palavra potica deva ser logo de pronto aqui pronunciada conforme os sentidos que

    se lhe atriburam e que vez por outra aparecero no decurso do trabalho.

    Segundo o Prof. Massaud Moiss35, que recupera com propriedade

    a etimologia da famlia vocabular grega envolvida no assunto,

    Aristteles foi, como se sabe, o primeiro filsofo a consagrar todo um tratado (...) ao exame do fenmeno potico: PERI POIETIKES, ou Arte Potica, ou Potica. A rigor, o ttulo deveria ser Acerca da Potica, ou melhor, Acerca da Arte [ou Cincia] da Criao, uma vez que o vocbulo poietik se origina de poiein (fazer), de que ainda derivam poiesis (poesia) e poiema (poema, ou o que feito). Na verdade, Aristteles propunha-se a refletir acerca do objeto esttico, ou antes, acerca da criao do objeto esttico.

    Ainda segundo o Prof. Moiss36,

    Os estudiosos germnicos, com sua peculiar capacidade mental para assuntos de teoria filosfica e esttica, chegaram a uma frmula sedutora de obviar a questo: a poesia37 seria o ncleo residual e essente de toda manifestao artstica. Desse modo, a poesia estaria presente na Msica, na Pintura, na Escultura, na Arquitetura, na Coreografia, como se fosse o seu objeto ltimo.

    35 Moiss (1984:105). O negrito nosso. 36 Loc. cit., p. 82. Os destaques so nossos. 37 No sentido de essncia artstica (Id., ibid., p. 83).

  • 18

    Embora refutando parcialmente esse pensamento, que segundo ele

    significaria eliminar a poesia38 como forma autnoma de arte, ou reduzir a ela todas as

    manifestaes artsticas, desindividualizando-as, o eminente crtico admite logo a seguir

    que dentro dum conceito relativista, porm, procede afirmar que todas as artes, dadas as

    suas caractersticas comuns, possuem aspectos, falta doutro rtulo, poticos.39

    A mesma idia de imanncia do viger potico nas grandes obras de

    arte (em qualquer setorizao, da literatura s artes plsticas) recebe de Martin Heidegger

    (1999, p. 58) um aval de peso: Toda arte, enquanto deixar-acontecer da advenincia da

    verdade do ente como tal, , na sua essncia, Poesia. Tal assertiva fica mais fcil de

    entender quando encontramos reproduzida, nas pginas da coletnea intitulada O belo

    autnomo40, a ltima parte de A origem da obra de arte texto no qual, em boa hora,

    insere a tradutora Maria Jos Rago Campos uma esclarecedora nota a respeito:

    Heidegger utiliza os dois sentidos que a palavra poesia possui em alemo, Dichtung e Poesie,(...) Explorando os recursos da lngua alem, o filsofo vai usar o termo Poesie para designar o sentido habitual de poesia como arte literria; o termo Dichtung utilizado para designar Poesia como toda expresso do ser. Por no possuirmos dois termos em portugus que distingam os dois sentidos referidos, escreveremos Poesia com maiscula para traduzir Dichtung.

    Esta observao se confirma na seguinte passagem do ensaio em

    pauta, Heidegger falando:

    Se toda a arte , na essncia Poesia (die Dichtung), ento a arquitetura, a escultura, a msica devem ser reduzidas poesia (die Poesie). Isto pura arbitrariedade. A no ser que consideremos as citadas artes como subespcies da literatura e caracterizemos a poesia (die Poesie) com esta denominao ilegtima. Mas a poesia (die Poesie) apenas um modo de projetar iluminador da verdade, ou seja, do Poetar (der Dichten), neste amplo sentido.41

    38 J entendida aqui como centro da Literatura (Id., ibid.). 39 Ibid., p. 83. V-se que no sem propsito que se d ao compositor Frdric Chopin o epteto de poeta do piano. 40 Duarte (1997, p. 232). 41 Trecho de A origem da obra de arte, apud Duarte (1997:233). Os realces no texto no so originais.

  • 19

    Seguindo uma trajetria afinada com o pensamento heideggeriano,

    o Prof. Dr. Manuel Antnio de Castro pondera com muita propriedade sobre o mbito e o

    sentido da Potica, rea de estudos que ele distribui em quatro modalidades histricas,

    defendendo com nfase uma delas a Potica hermenutica, entendida como uma

    potica que se abre para a obra potica, baseada na Linguagem (Logos) enquanto lugar

    habitado pelo homem e resguardado por poetas (criadores) e pensadores. Nesta dimenso,

    o que importa nas artes a Linguagem como sentido e verdade, ou seja, uma Linguagem

    que assume seu carter ontolgico, como oferta que da physis (o Ser em Heidegger). A

    re-flexo sobre a essncia do agir humano (poiein) permite Potica Hermenutica

    estabelecer uma tenso dialgica entre obra e intrprete, em meio a uma tarefa

    interpretativa que diz respeito a todas as manifestaes artsticas, pois s so artsticas na

    medida em que vigem na e pela Linguagem, embora se manifestem como linguagens. O

    que obra a grande questo potica, diz pela voz do autor42 a Potica Hermenutica,

    esta que floresce em estudos no-sistemticos e no-cannicos caracterizados por uma

    escuta (abertura) originria que sempre a escuta da verdade que se opera nas obras,

    voltando-se para a origem da obra de arte como fundamento tanto do artista como da obra

    de arte e do intrprete:

    O nome Potica originou-se do verbo grego poiein, que significa agir, pro-duzir. Ele indica a mais antiga reflexo sistemtica sobre a arte, na cultura ocidental, quando Aristteles, no sculo IV antes de Cristo escreveu o famoso tratado Peri poietikes technes. A cincia nos sculos XVIII e XIX d origem a duas disciplinas que procuram substitu-la: a Esttica e a Teoria Literria, e depois a outras disciplinas de acordo com as novas perspectivas cientficas. Os poetas e os artistas, em geral, resistem a estas novas denominaes e continuam a falar em suas obras da Potica, das suas poticas. Estas poticas, que caracterizam as obras de todos os artistas, sejam poesia, msica, pintura, escultura, cinema etc. que so propriamente o campo e mbito de reflexo e pesquisa da rea de Potica. Desta maneira, a sua atividade volta-se tanto para as obras j realizadas como se abre tambm para as novas realizaes. No mbito desta dinmica sempre atual e no se prende a nenhum perodo ou teoria. At porque a obra, sendo artstica, portanto originria, sempre atual, no sentido de que sempre age (atual e autor se originam do verbo latino agere, de onde se formou o verbo portugus agir).

    42 Castro (2000), passim.

  • 20

    J a posio do estetlogo Luigi Pareyson (1997:10 ss., com

    destaques nossos) um pouco diferente quando estabelece distines entre as reas

    fronteirias da potica, da crtica e da esttica, com seus respectivos campos de

    abrangncia:

    Que a potica e a crtica esto essencialmente ligadas atividade artstica fica claro no apenas quando se pensa que a potica diz respeito obra por fazer e a crtica obra feita: a primeira tem a tarefa de regular a produo da arte, e a crtica a de avaliar a obra de arte. So indispensveis ao nascimento e vida da arte, porque nem o artista consegue produzir arte sem uma potica declarada ou implcita, nem o leitor [sic] consegue avaliar a obra sem um mtodo de leitura mais ou menos consciente, mesmo que no seja necessrio que se traduzam em termos explcitos, isto , que a potica seja consignada num cdigo de normas e preceitos ou a crtica governada por um mtodo declarado. (...) A potica programa de arte, declarado num manifesto, numa retrica ou mesmo implcito no prprio exerccio da atividade artstica; ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma poca projetada no campo da arte. A crtica o espelho no qual a obra se reflete: ela pronuncia o seu juzo enquanto reconhece o valor da obra, isto , enquanto repete o juzo com que a obra, nascendo, aprovou-se a si mesma. A esttica, pelo contrrio, no tem nem carter normativo nem valorativo: ela no define nem normas para o artista nem critrios para o crtico. Como filosofia, ela tem um carter exclusivamente terico: a filosofia especula, no legisla.

    Encontramos em Barilli (1994:149 e ss.) algumas preciosas

    pontuaes em torno da Potica e das poticas que merecem nossa transcrio, dessa vez

    em tpicos, uma vez que nos ajudam a esclarecer um pouco mais, e sob outro ponto de

    vista, o sentido que se pode conferir s palavras que nos ocupam:

    1. (...) cada artista obrigado a escolhas, tanto de meios como de objetos, e nada o probe de proceder a essas escolhas com intervenes de natureza reflexiva: delineia-se assim aquela que se costuma definir a potica de cada produtor de obras de arte (...); 2. (...) existe uma potica onde quer que se possa encontrar uma zona de produo artstica (...);

  • 21

    3. (...) a potica, segundo a acepo hoje corrente, a interveno reflexiva que o poeta, o produtor, o artista acompanha ao seu prprio fazer, avanando talvez de forma tosca e compendiaria, mas sem renunciar por isso ao direito-dever de dar a sua contribuio de idias, de acompanhamento cognitivo ao ato de produo; 4. (...) calhou bastante freqentemente encontrar grandes produtores de textos literrios que tambm desenvolviam hipteses de natureza terica sobre o seu comportamento, com formulaes mais ou menos gerais. Quase todos os nossos clssicos [italianos] procederam nesse sentido (Dante, Petrarca, Boccaccio, Tasso, Manzoni, Leopardi...), ainda que, bem entendido, nem sempre tenha sido por eles redigido um tratado especial, especificamente intitulado arte potica (...); 5. (...) esta predisposio para anexar ao esforo criativo os oportunos documentos de potica foram indubitavelmente crescendo, medida que nos aproximamos dos nossos tempos (...); 6. Quase todos os artistas visuais contemporneos foram protagonistas de notveis contributos nesse sentido, redigidos sob a forma de ensaios, memrias, paralies, entrevistas (Boccinoni, Mondrian, Klee). Mas naturalmente tudo isto no uma obrigao (...).

    O genial Igor Stravinsky, talvez o maior vulto da msica de

    concerto no recm-terminado sculo XX, tendo sido assistido em seus escritos por Paul

    Valry, declarou em Harvard, Universidade que o havia convidado para uma srie de

    conferncias, a possibilidade efetiva de uma potica musical:

    No esquecerei que estou ocupando uma cadeira de potica. (...) O verbo poiein, do qual a palavra deriva, significa exatamente fazer ou fabricar. (...) ... a Potica de Aristteles muitas vezes sugere idias referentes ao trabalho pessoal, organizao do material e estrutura. A potica da msica justamente sobre isso que vou falar a vocs; isto , falarei sobre o fazer no campo da msica.43

    O poeticista e compositor Dr. Antonio Jardim vai mais alm:

    A msica como o lugar do mais alto grau de qualquer real se pe como o lugar propcio para a vigncia do pensar potico. Significa: o lugar em que este pensar tem o mais alto grau de

    43 Stravinsky (1996, pp. 15 e 16).

  • 22

    realizao de sua vigncia. Talvez de nenhuma outra forma o pensar potico seja capaz de se fazer vigoroso como na msica.44

    Henry Suhamy, nas primeiras pginas de seu livro A potica

    (1988:7-8), define o termo-ttulo como a arte e a cincia da poesia, fechando-o portanto

    stricto sensu.45 Um pouco mais adiante, entretanto, ele acrescenta:

    Sabemos que poesia e Potica derivam, historica e semanticamente, do grego poisis, criao. Certos especialistas, ou escritores, tiveram, recentemente, o cuidado de reviver essa raiz, substituindo a palavra antiga Potica por Poitica, ainda mais velha, mas no me parece que esse purismo filolgico seja necessrio, pois a origem do grupo de palavras que giram em torno de poesia conhecida do pblico. Segue-se que etimologicamente poeta significa criador.

    Coisa semelhante faz o prestigioso Dicionrio Houaiss, dizendo

    que potica a parte dos estudos literrios que se prope a investigar os processos que

    dizem respeito s normas versificatrias dos textos, os componentes tericos de que se

    revestem, bem como os compndios de potica que, desde Aristteles at os nossos dias,

    abordaram o assunto. Em seguida a esta primeira definio, mostra que pode ser

    igualmente a arte de fazer versos ou elaborar composio potica, ou tratado de

    versificao e de poesia, ou ainda sistema potico de um escritor, de uma poca, de um

    pas. A mesma obra registra mais frente que o adjetivo potico deriva do gr. poitiks,

    , n que tem a virtude de fazer, de criar, de produzir, prprio para fabricar, inventivo,

    engenhoso(...). Tendo como origem o lat. poeta,ae, o que faz, artista e o gr. poietes,

    ou, autor, criador, compositor de versos, poeta, poeta dito o escritor que compe

    poesia, o autor cuja obra impregnada de poesia (compositores como Chopin e Debussy

    so verdadeiros p[oetas]), ou ainda o ser humano com o dom da poesia..., aquele que

    tem imaginao inspirada e aquele que dado a devaneios ou tem carter idealista. As

    acepes podem, portanto, enlarguecer-se prodigiosamente.

    44 Jardim e Castro (1997, p. 04). Negritei. 45 Apesar de estarmos referindo aqui algumas conceituaes estritas do termo, deve ficar claro que propugnamos aqui por um entendimento lato sensu de Potica enquanto rea acadmica de estudos.

  • 23

    [O sentido estrito do termo potica se ressalta

    ainda em Tavares (1969:171), que, enfeixando uma

    extensa relao de autores e ttulos de poticas, lembra

    que na histria da literatura universal surgiram vrios

    tratados de Potica, como tambm outras obras que,

    embora no especficas, traziam em contribuies

    renovadoras no que se refere estrutura dos versos, dos

    poemas e dos gneros literrios.

    Valry, num texto de suas Varits (V, De

    lenseignement de la potique au Collge de France ),

    defendendo a noo de Potica como atividade de

    descrio geral das propriedades da literatura, e no como

    estudo de textos literrios especificizados, ensina que

    o nome Potica parece-nos que lhe convm [ noo referida acima], entendendo esta palavra segundo a sua etimologia, isto , como nome de tudo aquilo que diz respeito criao ou composio de obras cuja linguagem ao mesmo tempo a substncia e o meio e nunca no sentido restrito de conjunto de regras ou de preceitos estticos respeitantes poesia.46]

    Entretanto, aps lutar durante cerca de 100 pginas para delimitar a

    autonomia e as especificidades (incontestveis) da Potica, o blgaro Tzvetan Todorov

    capitulava, enfim, no fechamento de um de seus mais importantes escritos sobre a matria:

    Mas hoje no h qualquer razo para reservar s literatura o tipo de estudos que se cristalizou na potica; preciso conhecer enquanto tais no s os textos literrios mas tambm todos os textos, no s a produo verbal mas todo o simbolismo. (...) Recm-nascida, a potica v-se chamada, por fora dos seus prprios resultados, a sacrificar-se no altar do conhecimento geral. E no certo que tenha de se lastimar essa sorte.47

    46 Apud Todorov (1993:12), com grifo nosso. 47 Todorov (loc. cit., p. 101). Os destaques so por nossa conta. Na seo Bibliografia de apoio enumerar-se-o outras obras relevantes para o entendimento dos significados histricos da palavra potica.

  • 24

    Uma instigante assertiva de Hegel, em sua Esttica, talvez servisse

    para selar, con-fundindo-as, as idias expostas neste prembulo: O objeto da poesia o

    reino infinito do esprito.48

    48 Apud Moiss, op. cit., p. 84. A frase soa propositadamente provocativa, dado ser evidente que a noo de esprito (absoluto) na filosofia hegeliana no coincidir exatamente com as definies que lhe emprestaremos no decorrer do presente trabalho. Mas este um detalhe conceitual que se desvendar a posteriori: cf. Cap. I, item 5.4.1.

  • 25

    CAPTULO I DO ESPRITO (O sopro em cinco tempos)

    Ah ! cest ici que nous pouvons nous demander si la philosophie a bien donn ce quon tait en droit dattendre delle. A la philosophie incombe la tche

    dtudier la vie de lme dans toutes ses manifestations.

    HENRI BERGSON

    1. ALMA E FILOSOFIA GREGA CLSSICA

    1.1 Introduo

    Na inteno de investigar de mais perto o mistrio ou o enigma

    histrico de nossa eleio, resolvemos estabelecer no presente captulo uma abordagem

    dos sentidos assumidos pelas palavras portuguesas alma e esprito, conforme

    configuradas: na pr-filosofia e na filosofia clssica gregas (privilegiando Plato e

    Scrates); em alguns filsofos posteriores que tocaram no assunto; em determinadas

    declaraes e certos contedos de obras artsticas cujos autores veicularam idias explcitas

    sobre o assunto; e na verso do espiritualismo moderno do sculo XIX, em especial o

    corpus pensamental denominado Espiritismo49 uma de nossas ferramentas declaradas

    de trabalho, cujos pressupostos bsicos entram, em determinados ngulos, em aprecivel

    homologia com o ensinamento dos grandes pensadores helnicos a serem aqui

    mencionados (os socrticos propriamente ditos, y compris Aristteles, e os pr-socrticos

    ou originrios).

    49 Sistema doutrinrio de implicaes filosficas, cientficas e morais (ou religiosas), nascido em Frana por volta da metade do sc. XIX e presumidamente originado do pensamento conjunto de Espritos (ou almas) de seres humanos desprovidos de corpos materiais densos. O fundador (mais propriamente o organizador ou codificador) da Doutrina Esprita o educador francs conhecido como Allan Kardec (1804-69).

  • 26

    1.2 A alma como questo filosfica socrtico-platnica

    Como se disse, a questo que nos convoca a ateno e nos

    deslancha a presente argumentao refere-se a um elemento que, segundo sabedorias

    milenares, confirmadas nos escritos platnicos, composicional da criatura humana, a

    saber, o esprito, cujo conceito se (con)funde variadas vezes ao de alma (a psych grega),

    geralmente compreendida na conjuno de seus mais importantes atributos: sua autonomia

    em relao ao corpo material, sua anterioridade perante a primeira encarnao corprea,

    sua sobrevivncia nos domnios do Hades, sua imortalidade supra-celeste e suas sucessivas

    transmigraes no mundo tangvel.50

    Tal como no mito arcaico51, segundo o qual a bela Psiqu

    permaneceu por muito tempo errando (qual falena esvoaante de prejudicado vo) at

    poder ser de novo recebida por seu amado Eros, a questo da alma tem sido

    sistematicamente descartada ou negligenciada no universo filosfico como indigna de ser

    pensada: de um lado, pelo fato de ter sido associada religio (e mais especificamente ao

    Cristianismo de feio neoplatnica); e de outro, por ter sido considerada como devaneio

    caprichoso da dupla ateniense mais clebre da histria do pensamento ocidental ningum

    menos do que os dois filsofos inaugurais propriamente ditos. Chegou a hora, segundo

    pensamos, de resgatar ao des-Amor, ainda que despretensiosa e parcialmente, a dignidade

    de uma questo que, queiramos ou no, encontra-se agendada de direito e de fato como

    temtica legtima nos domnios filosficos quando nada por ter sido includa, de forma

    no desprezvel, em cerca de dez trabalhos do celebrrimo fundador da Academia.

    Avaliar a importncia de Plato no tarefa to fcil.52 Tido como

    o filsofo mais importante que jamais existiu, por ter colocado pela primeira vez, de forma

    50 Para o detalhamento das definies de esprito e alma, v. especialmente itens 5.1 e 5.2 do presente captulo. 51 A expresso mito arcaico usada por oposio aos mitos platnicos e deve ser entendida de acordo com o sentido que confere Dodds (2002:57) palavra arcaico enquanto perodo da histria grega. 52 A observao vlida igualmente para o conseqente Platonismo, sistema que, embora no se possa confundir com o pensar original do grande filsofo, nos permite vislumbrar um panorama que vai desde o pensamento de Scrates, o mestre de Plato que nada deixou escrito, at os desdobramentos epigonais da filosofia platnica.

  • 27

    explcita, os questionamentos fundamentais do pensar na histria do Ocidente, e

    inevitavelmente respeitado em sua genialidade e fecundidade at por ferrenhos opositores,

    seus Dilogos so alternativamente claros e obscuros, de interpretao por vezes obtida (se

    tal) a duras penas, em face da dificuldade de se estabelecer a sua opinio prpria53 em meio

    ao discurso dos personagens por ele mesmo criados para dialogar:

    Em alguns dilogos ningum oferece uma concluso definitiva, e descobrimos que fomos presenteados com uma questo, uma refutao ou com um quebra-cabeas. (...) Mesmo quando um personagem de autoridade nos dilogos, em geral Scrates, parece nos deixar com uma concluso ou teoria para ser deles tirada, no deveramos necessariamente supor que isso o que Plato est nos dizendo para acreditar.54

    Fica difcil, igualmente, defender a idia da concepo de um

    corpus filosfico sistmico em Plato, conforme poder-se-ia querer deduzir de sua obra.

    Sobre esta ausncia de uma natureza previamente calculada nas escolhas temticas do

    filsofo, lembra Leal (2001:43) a dificuldade (demonstrada por vrios especialistas do

    classicismo helnico) de se aprisionar o platonismo e o prprio Plato em uma espcie de

    sistema filosfico. Plato, comenta Jaeger em sua Paidia, no pretendeu expor um sistema

    de filosofia, mas apresentar o homem filosfico no momento dramaticamente fecundo da

    investigao e do descobrimento das aporias e dos conflitos.

    No obstante, a viosa vigncia do pensamento platnico ainda

    chega com impacto aos tempos atuais, como fica evidenciado nas palavras do Prof. Manuel

    Antnio de Castro que assevera ser mais que nunca preciso repensar Plato

    (Castro,1994:104), j que este pensou sobretudo o essencial, e por isso podemos pensar

    com ele tambm a nossa poca , tanto quanto nas de Bernard Williams:

    Ele [Plato] nunca pensou que os meios ou as condies de uma tal transformao [da vida] pudessem ser formuladas em uma teoria, ou que uma teoria pudesse explicar, em algum nvel condizentemente avanado, a coisa vital que precisamos saber... (...) porque o essencial da filosofia no pode ser formulado em lugar algum, mas pode apenas, com sorte e em ambientes

    53 Descontada a conotao tcnica (depreciativa) do termo opinio (doxa) na concepo adotada por Plato. Esta observao evidentemente no implica em dizer que seja impossvel detectar, e mesmo de maneira contundente e afirmativa, certos pontos cardeais de seus posicionamentos filosficos. Assim cremos ser na questo que nos move aqui o interesse. 54 Williams (2000:10). Cf. nota anterior.

  • 28

    favorveis, emergir. (...) Ele reconheceu, como Scrates deixa claro no Fedro, que os dilogos no poderiam ser veculos de uma determinada mensagem, e justamente porque eles no pretendem controlar as mentes de seus leitores, mas abri-las, que eles continuam tendo tanto para oferecer. No tem sentido perguntar quem o maior filsofo do mundo: por uma razo muito simples, a de que h muitos modos de se fazer filosofia. Mas podemos dizer quais as vrias qualidades dos grandes filsofos: poder intelectual e profundidade; domnio das cincias; um sentido do poltico e da destrutividade e criatividade humanas; amplitude de viso e uma imaginao frtil; uma relutncia em acomodar-se ao que superficialmente seguro; e, em um caso muito especial, os dons de um grande escritor. Se perguntarmos que filsofo tem, mais do que qualquer outro, todas essas qualidades combinadas, para essa pergunta h certamente uma resposta: esse filsofo Plato.55

    Apesar do respeito e da venerao multisseculares de que desfruta

    em abundantes meios, Plato tambm recebe, em contrapartida, acusaes srias entre

    outras a de ser responsvel mais ou menos direto pelo statu quo no apenas filosfico, mas

    vivencial e prtico da louca sociedade em que vivemos. Subliminar ou escancaradamente,

    virou moda, em alguns crculos do conhecimento ocidental, insinuar-se que tudo o que a

    est tem sua origem no erro fatal de Plato56 um como eco, talvez, das imprecaes

    passionais contra Plato detectveis na pena de Nietzsche, o incorrigvel romntico de

    hiperblica sensibilidade que se tornou, por assim dizer, o grande difamador do inventor da

    filosofia tal como hoje a conhecemos:

    Plato se lhe apresenta [a Nietzsche] como o insidioso e pernicioso hierofante das formas imutveis e das normas inaceitveis, que deve ser julgado e condenado como o arquetpico detrator da hierofania do xtase sensorial... (...) Mais do que modelo (pardeigma) de tudo que existe no habitculo terrestre, as idias platnicas constituem as matrizes absolutas de uma doutrina escatolgica, que nadifica o mundo em que se exerce a experincia propriamente antropolgica. (...) A valorizao eidtico-notica do alm estelar suscita e provoca a desvalorizao esttico-somtica do aqum sublunar, e a

    55 Id., ibid., pp. 63/64. 56 O erro fatal de que se acusa Plato o de ter des-qualificado o mundo sensvel. Do ponto de vista heideggeriano, o erro se caracteriza especificamente pelo desvio efetuado no sentido originrio de altheia no grego antigo, a partir do famoso Mito da Caverna, ocasionando o deslocamento do Ser para o domnio do completamente visvel (o mundo das Formas), fator primordial do seu subseqente esquecimento devido qui ao fato de ter sido remetido, esse antigo Ser da physis, a um mundo abstrato que progressivamente foi tido por inexistente, ou seja, sem existncia real e somente acessvel ao pensamento, dirigido este pelo olhar adequado ou em correo (orthtes).

  • 29

    fulgurao da espiritualidade celeste supe e prope dogmaticamente a ofuscao da corporalidade terrestre. A platonizao equivale degradao da temporalidade e desvitalizao da humanidade. A insurreio contra a mistagogia platnica se concebe, portanto, como a nica possibilidade da salvao humana e da redeno mundana. 57

    No se deve pensar que objetivamos desagravar a figura histrica

    de Plato mesmo porque seria essa uma tarefa despropositada (o Ateniense grande o

    bastante para defender-se a si prprio) e ingenuamente descabida para os limites de nossas

    possibilidades.58 Desejamos to-somente indagar sobre a psico-logia fundada pelas

    especulaes socrtico-platnicas na Grcia clssica, uma vez que temos indubitavelmente

    em Plato um grande paradigma cujas formulaes, sempre referenciais para louvores

    e/ou crticas, continuam a fornecer elementos para sistemas nascidos cerca de 22 sculos

    depois, como o caso do Espiritismo do sculo XIX: relegada embora, a doutrina

    socrtico-platnica sobre a alma foi e continua sendo re-legada.

    De acordo com Bernard Williams59, foi Alfred North Whitehead

    quem cunhou a famosa frase de efeito segundo a qual a tradio filosfica europia