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165 Capítulo 9 As faces da discriminação ao refugiado: aspectos étnicos, religiosos e culturais © UNHCR Colin Delfosse

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Capítulo 9As faces da discriminação ao refugiado: aspectos étnicos, religiosos e culturais

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Introdução

Qualquer discriminação que promova desigualdade e injustiça em detrimento ao desenvolvimento social atenta contra a legalidade. Marco na proteção às liber-dades e garantias fundamentais, a Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos determina em seu 2º artigo que “todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, de raça, de cor, de sexo, de lín-gua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita ne-nhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalida-de da pessoa, seja esse país ou território independen-te, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania”, e em seu artigo 7º que “todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual pro-teção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declara-ção e contra qualquer incitamento a tal discriminação.” O histórico de lutas contra as diversas faces e formas de discriminação e as proteções resultantes delas foram conquistas para as minorias.

Para tratar da discriminação vale a pena encará-la como um processo constituído por aqueles que discri-minam, aqueles que atestam a discriminação e aqueles que sofrem com ela.

Na questão da discriminação em relação ao refugia-do cabe, portanto, analisar o perfil dos indivíduos que são vítimas nessa condição ou estão sujeitos a ela. Se-gundo dados fornecidos pelo Conare (Comitê Nacional para os Refugiados)1, em 2015, havia um total de 8.400 refugiados reconhecidos no Brasil. Desse total, 70,7% eram homens e 29,3% eram mulheres. Esses homens e mulheres compõem um grupo culturalmente diversifi-cado, sendo que a nacionalidade mais acolhida naquele ano foi a síria (2.077 refugiados), seguida pela angola-na (1.480) e a colombiana (1.093):

1 Disponível em: <http://pt.slideshare.net/justicagovbr/refgio-no-brasil-51820929>. Acesso em: 10 jan. 2016.2 Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf?view=1>.

Acesso em: 30 dez. 2015.3 Dados apresentados pela Profa. Dra. Rosana Baeninger em curso ministrado na Escola do Parlamento no dia 25 de novembro de 2015 em São Paulo e referentes

à levantamento realizado pelo Observatório das Migrações no biênio de 2014-2015.4 “O imigrante ideal, portanto, é um branco adjetivado, cabendo ao Estado o fomento da imigração européia dentro dos parâmetros da eugenia, da conveniência

política e das tendências à assimilação. Isso significa que, entre os brancos, são excluídos os doentes, portadores de deficiência física e mental, velhos, criminosos, gente de ‘conduta nociva’, etc., além de refugiados, apátridas e as etnias ‘inassimiláveis’”. (SEYFERTH, 2002, p. 143)

5 “Desde o final do século XIX criou-se a ideia de que o imigrante para ser aceito teria que ser branco e europeu, e os imigrantes atuais são indígenas que falam espanhol, como os bolivianos, ou negros que falam francês ou crioulo, como os haitianos”; entrevista da Profa. Dra. Rosana Baeninger concedida à revista Fapesp (FIORAVANTI, 2015, p.18)

O levantamento disponibilizado pelo Conare (2015) também revela as razões que levaram os refugiados a deixar seus países de origem: 51% sofreram grave vio-lação dos direitos humanos, 22,5% sofreram ou alega-ram o temor de perseguição política e 22% alegaram a necessidade de reagrupamento familiar.

Ainda, é preciso levar em conta a presença haitiana nas estatísticas sobre migrações. Embora aos haitia-nos seja concedido o visto para residencia permanente por razões humanitárias, diferente dos procedimentos para refúgio – razão pela qual o Conare não os inclui nas estatísticas referentes à concessão da solicitação de refúgio –, o Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado fundamenta suas ações na Declaração de Cartagena2, reconhecendo a motivação da migração forçada e a vulnerabilidade social que os indivíduos de nacionalidade haitiana apresentam quando chegam ao Brasil como elementos relevantes para caracteri-zação de sua condição de refugiado. Dessa forma os pesquisadores e pesquisadoras do Adus também consi-deraram os haitianos como refugiados na investigação apresentada nesta ocasião.

De acordo com os dados fornecidos pelo Observa-tório das Migrações em São Paulo3, o número de hai-

Sírios 2.077

Angolanos 1.480

Colombianos 1.093

Congoleses 844

Libaneses 389

Palestinos 272

Libérios 257

Iraquianos 250

Serra leoneses 169

Bolivianos 151

tianos registrados em 2015 já ultrapassava o total de 18.700, sendo que desse total mais de 5.600 residiam em São Paulo.

As estatísticas apresentadas são indicadores da ine-gável heterogeneidade da população refugiada no Brasil. E, apesar de toda essa diversidade, é possível identificar um traço comum entre as nacionalidades que buscam refúgio no país: elas conflitam, em sua maioria, com o imaginário4 de migrante ideal europeu que foi construído historicamente na sociedade brasi-leira. Isso porque5, segundo especialistas, as naciona-lidades que atualmente se dirigem ao Brasil em busca de refúgio são latino-americanos, árabes e africanos.

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A não correspondência entre o perfil do migrante ideal e o perfil real da população migrante e refugiada no Brasil gera uma série de estereótipos que orientam preconceitos e práticas discriminatórias direcionadas a esse grupo.

O distanciamento entre esses dois - o perfil do mi-grante idealizado no imaginário social e o perfil da maioria dos contingentes de refugiados - fundamenta discursos que retratam o refugiado como um agrega-do que não oferece contribuições econômicas e que usufrui de benefícios que deveriam ser reservados apenas para brasileiros, aumentando a competição no mercado de trabalho e sobrecarregando os servi-ços públicos6. Há também a criação dos imaginários sociais7, que rotulam o refugiado de modo a margi-nalizá-lo, apresentando-o como vítima ou infrator e relacionando-o ao terrorismo, à preguiça e à falta de interesse ao trabalho.

Segundo relatório publicado em 2015 pela pesquisa Pensando o Direito8, promovida pelo Ministério da Jus-tiça e pelo IPEA, a discriminação é um dos maiores de-safios que a população refugiada enfrenta. O precon-ceito e o tratamento inadequado quanto aos refugiados é consequência do desconhecimento da sociedade so-bre sua condição. Os dados apresentados a seguir fo-ram coletados por meio de entrevistas com membros da sociedade civil (OSCs) e de instituições públicas (Ips), que atuam no âmbito das migrações e do refúgio, bem como com os próprios migrantes e refugiados.

Um dos dados relevantes do relatório diz respeito às principais dificuldades enfrentadas pela população migrante em relação ao acesso a serviços e direitos, relatados por IPs, OSCs e imigrantes. Para as insti-tuições públicas a discriminação foi apontada como a sétima maior dificuldade dentre quase 30 citadas, já para a sociedade civil e os migrantes a discriminação foi apontada como a quinta maior dificuldade.

2. Cenário da discriminação contra migrantes e refugiados no Brasil

6 “Também no Brasil, uma parcela elitista da sociedade e os meios de comunicação, que tão bem a representa, tratam a chegada desses migrantes como uma amea-ça, como se o país tivesse sendo invadido por uma horda de desocupados, baderneiros que vêm para cá para pressionar o tão combalido sistema de proteção social e o mercado de trabalho.” (OLIVEIRA, 2015, p.147)

7 “Os estereótipos acerca da identidade do refugiado são construídos e mantidos nos discursos. É comum a verificação de termos que os relacionam à marginali-zação, ao terrorismo, à preguiça e à falta de interesse ao trabalho. Há também a criação de imaginários sociais nos quais eles são apresentados como vítimas ou infratores: a condição de pessoa sacrificada pelo destino é mantida e há poucos registros sobre a busca de um novo posicionamento social” (CARDOSO, 2012, p. 94)

8 JUBILUT, 2015.9 Ibidem10 Disponível em: < http://indicadores.safernet.org.br/>. Acesso em: 30 dez. 2015.11 Disponível em: < http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/janeiro/ApresentaoASCOMDisque100.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2016.

As violações de direitos humanos sofridas pela po-pulação migrante e refugiada na sociedade brasileira se destaca para a compreensão da discriminação que esses sofrem9. Segundo as instituições públicas, de um total de 31 violações listadas, as relacionadas a discri-minação foram a terceira mais relatada violação dos direitos humanos sofridas por esse grupo, atrás, ape-nas, de violações relacionadas a trabalho e documen-tação. Já para os órgãos da sociedade civil, de um total de 34 violações listadas, a discriminação figura como a violação mais recorrente sofrida por esse grupo.

PRINCIPAIS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELA POPULAÇÃO IMIGRANTE

Instituições públicas

Sociedade civil

Imigrantes

Discriminação: 4,74% (7º)*Total de 28 dificuldades

listadas

Discriminação: 8,73% (5º)*Total de 37 dificuldades

listadas

Discriminação: 5,91% (5º)*Total de 19 dificuldades

listadas

QUAIS AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS SOFRIDAS PELOS IMIGRANTES?

Instituições públicas Sociedade civil

Discriminação: 7,36% (3º)*Total de 31 violações listadas

Discriminação: 22,53% (1º)*Total de 34 violações

listadas

De acordo com a SaferNet Brasil10, organização de-dicada a proteção dos direitos humanos no uso das tecnologias da informação e comunicação, entre 2006 e 2014, foram recebidas e processadas 3.606.419 de-núncias envolvendo 585.778 páginas de internet em 96 países. Desse total, contabiliza-se 141.490 denún-cias de xenofobia, envolvendo 31.277 páginas diferen-

tes em 30 países. No Brasil, dentre as 14.834 páginas denunciadas, 583 foram relacionadas à xenofobia.

Já o balanço de denúncias feitas pelo Disque Direitos Humanos11, publicado em 2015, também mostra que o registro da discriminação, na forma de manifestações xenofóbicas, aumentou no biênio de 2014-2015. Em 2014 foram registradas apenas 45 denúncias desse tipo, enquanto que em 2015 foram registradas 330 denúncias, o que indica um aumento de 633%.

É notável, assim, que tratar da discriminação não é dispensável, nem prescindível, e sua repercussão pode trazer consequências desastrosas, ampliando o distanciamento entre o refugiado e a sociedade por meio de práticas que fundamentam a violência e a marginalização.

Segundo as instituições públicas, de um total de 31 violações listadas, as relacionadas a discriminação foram a terceira

mais relatada violação dos direitos humanos sofridas por esse grupo, atrás, apenas, de violações relacionadas

a trabalho e documentação.

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Uma imagem muito usual que é, recorrentemente, associada ao Brasil, é a de um país acolhedor e recep-tivo a todos. Forjada na hospitalidade essa imagem é sustentada por aquilo que alguns afirmam serem nar-rativas12 que tecem e enredam uma sociedade branda e receptiva para com todas as diferenças. No entanto, tais narrativas ofuscam a relutância em se estabele-cer uma convivência genuinamente intercultural e saudável com as diferenças, assim como a tendência em selecionar as diferenças que são aceitáveis, como ocorre com o migrante ideal, daquelas que são ina-ceitáveis ou apenas toleráveis, como ocorre com o mi-

Pesquisadoras do Adus conduziram um levanta-mento por meio de um questionário17 para avaliar de que modo a discriminação de refugiados e migrantes se manifesta.

O questionário foi compartilhado em janeiro de 2016 na rede social Facebook e respondido virtualmente18. Ao todo, 226 pessoas participaram da pesquisa. O per-fil dos participantes foi restrito a brasileiros que resi-dem no país, que possuem ensino médio completo e acesso à internet, na faixa etária de 18 a 40 anos. Os resultados foram os seguintes:

FAIXA ETÁRIA

18-20 anos: 12,55%

21-30 anos: 56,90%

31-40 anos: 30,55%

1) Você acha que os refugiados podem colaborar com a sociedade brasileira?

Sim: 88,93%

Não: 11,07%

2) Você acha que os refugiados podem trazer problemas para a sociedade brasileira?

Sim: 39,38%

Não: 60,62%

De acordo com os dados levantados, a maioria dos entrevistados afirmou que os refugiados podem cola-borar com a sociedade brasileira, enquanto que uma minoria negou essa possibilidade. No entanto, com

uma margem de diferença de quase 20%, é maior o número de entrevistados que considera que os refu-giados não trazem problemas para a sociedade bra-sileira do que aqueles que consideram que eles não trazem problemas.

Ao analisar comparativamente as questões, consta-ta-se que:

1. A maioria das pessoas que reconhece a colaboração dos refugiados justifica sua posição argumentando que os benefícios são de cunho cultural, mas grande parte das respostas não ultrapassa tal constatação e não fornece mais detalhes na seção dissertativa. Já a minoria das pessoas que negam tal colaboração fundamentam as suas respostas apontando dife-rentes problemas referentes a trabalho, religião, língua, economia e doenças. Isto é, nota-se que há mais tempo gasto para descrever um maior número de preocupações da não-colaboração que refugia-dos podem oferecer; e

2. Ao contrastar as questões 1 e 2 nota-se o seguinte contrassenso: na questão 1, a maioria dos entrevis-tados reconhece a colaboração dos refugiados, o que leva a pressupor, em um primeiro momento, que a sociedade brasileira é aberta e receptiva. No entanto, ao avaliá-la concomitantemente à questão 2, a dife-rença entre as pessoas que reconhecem que os refu-giados trazem problemas para a sociedade brasileira e as pessoas que negam tais problemas é expressiva-mente menor. Assim, nota-se que a ideia generaliza-da e os preconceitos contra refugiados apresentam a seguinte configuração: reconhece-se amplamente que esse grupo colabora com a sociedade mas, por

3. Discriminação velada

grante que não se enquadra no padrão ideal.A proposta de tolerância que oferece forte resistên-

cia ao diálogo apresenta sérias limitações13. Apenas o reconhecimento da diversidade cultural não é o bas-tante, é preciso não apenas garantir a coexistência, mas, também, assegurar a convivência entre minorias e maiorias14. Tolerar não é uma atitude que garante a participação ou efetiva interação15. É preciso cautela para que uma postura de tolerância não seja uma ati-tude que afaste o outro, marginalizando-o e discrimi-nando-o16.

3.1 Percepções, relatos, imaginário social e a discriminação

12 “Embora desgastadas pelo tempo, as narrativas sobre um Brasil manso e acolhedor com as diferenças sobrevivem e são invocadas para maquiar a secular dificuldade em conviver com o diverso.” (RODRIGUES, 2016, p. 42)

13 LOPES, 2012, p. 79.14 idem.15 SILVA, 2012, p. 73.16 SILVA, 2012, p. 73

17 Disponível em: <https://docs.google.com/forms/d/16MI4tMiXmPfZN5P4zEzapyS9b3sW_HDeTFYZYMnlcnc/viewform>. Acesso em: 14 fev. 2016.18 Para responder ao questionário não era necessário que o entrevistado estivesse logado em uma conta específica de e-mail. Além disso, ele foi compartilhado

em diferentes páginas e foi aberto ao público. A pesquisa foi direcionada a pessoas maiores de idade, que completaram o ensino médio. Não houve distinção de gênero.

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As questões culturais e étnicas que afloraram nas respostas abertas podem ser sintetizadas da seguinte forma: os refugiados apresentam culturas incompatí-veis com a cultura brasileira. Grande parte dos entre-vistados que afirmaram a não contribuição dos refu-giados para a sociedade brasileira sustentaram a sua posição por meio desse argumento. Uma breve compi-lação24 de algumas das respostas que mais explicitam esse posicionamento verificado no levantamento por questionário online indica que:

“ (...) não pode se criar ‘comunidades brasileiras’, sem necessariamente ser um brasileiro”

“A cultura dos refugiados é inferior à cultura ocidental”

“(...) muitos sequer falam nosso idioma e possuem características culturais que os diferenciam da cultura local”

“Refugiados vêm de uma cultura que não se encaixa na sociedade ocidental que existe no Brasil”

Desse modo, é consensual por parte desse grupo de entrevistados que a diversidade cultural no contexto do refúgio representa uma ameaça e um ônus à socie-dade brasileira. Trata-se de uma postura nacionalista (“não pode se criar ‘comunidades brasileiras’ sem ne-cessariamente ser um brasileiro”) e ocidentalista (“re-fugiados vêm de uma cultura que não se encaixa na sociedade ocidental que existe no Brasil”).

Visivelmente tais respostas não reconhecem que a diversidade cultural pode contribuir enormemente para o desenvolvimento de um país, do Brasil, e que, apesar do português ser a língua oficial, já há outras culturas e línguas faladas, por exemplo, nas comuni-

outro lado, a convicção de que eles trazem problemas se manifesta de forma relevante.

É importante destacar também que quase 70% dos entrevistados têm idade igual ou menor a 30 anos e a pesquisa revela que, mesmo que 89,1% dos jovens acreditem que os refugiados podem colaborar com a sociedade brasileira, 36,5% do total de jovens dessa faixa etária afirmam que os refugiados podem trazer problemas. Desta forma, percebe-se que, apesar de, inicialmente, verificar-se respostas positivas, algum preconceito e medo ainda permanecem na população, vindo a coadunar e sustentar o que os dados já com-pilados sobre discriminação reportada em diversas instâncias permitem concluir.

O levantamento forneceu, também, por meio de res-postas dissertativas, dados sobre os problemas que os refugiados trazem. . Segundo os entrevistados que res-ponderam sim na questão 2 e especificaram tal posicio-namento19, foram identificados os seguintes tópicos: problemas relacionados ao mercado de trabalho, doen-ças e saúde pública, divergências culturais, infraestru-tura e, por fim, religião. Tais tópicos foram contabiliza-dos e apresentaram a seguinte distribuição20:

TÓPICOSTotal de indicações quanto a problemas supostamente

trazidos por refugiados

Mercado de trabalho 20,54%

Doenças e saúde pública 10,95%

Religião 4,10%

Divergências culturais e integração

28,76%

Infraestrutura 35,61%

121 entrevistados se dispuseram a justificar ou de-talhar as respostas fornecidas para a questão 1 e 116 se dispuseram a justificar ou detalhar as respostas fornecidas para a questão 2.

Ademais, em similar pesquisa preliminar realizada com base em questionários aplicados presencialmen-te nas ruas do centro da cidade de São Paulo21, quando indagadadas sobre os benefícios que o país de acolhi-mento pode ter em relação à vinda de refugiados, mais da metade das respostas foram “não sei”, enquanto o restante dos entrevistados argumentou que a vinda de imigrantes “iria aumentar a competição por em-pregos”, ou que o “país já tem problemas suficientes” ou que “deveria priorizar ajudar os nacionais antes de ajudar estrangeiros” ou que “não deveria assumir o que não pode sustentar”.

Nesse sentido, nota-se que um preconceito – prová-vel fundamento à discriminação – contra os pessoas que solicitam refúgio no Brasil existe, mesmo que des-conhecidos os perfis dessas pessoas. Mas são precon-ceitos e discriminações calcados no imaginário social que se confundem com discursos de recepção e tole-rância. Como consequência, a sociedade não parece reconhecer ou mesmo assumir a discriminação como um problema iminente.

Outros especialistas de diferentes áreas tentam explicar o porquê da rotinização e do não reconheci-mento das práticas discriminatórias no Brasil: alguns afirmam que a sociedade brasileira, por questões his-tóricas, tem dificuldade de enunciar ou reconhecer os conflitos que se instauram perante às diferenças22. Outros que o sujeito que não está em contato direto com a realidade da discriminação, realmente acaba por não enxergar ou assumir que ela existe23.

dades indígenas e quilombolas25. Especialistas26 afirmam que é evidente que o mul-

ticulturalismo decorrente do acolhimento da diversi-dade torna a sociedade mais flexível e produtiva. Isso porque, uma vez que não cerceia oportunidades para alguns e isola outros, permite com que o sujeito parti-cipe ativamente do lugar que ele ocupa e desenvolva o seu potencial, permitindo que procure soluções para resolver impasses culturais.

3.2 Questões culturais e étnicas

19 Do total de entrevistados que responderam sim na questão 2 (um total de 89 pessoas), 48 apresentaram uma resposta dissertativa. O levantamento dos proble-mas apontados foi feito com base nessas 48 respostas.

20 É importante explicitar que algumas respostas mencionaram mais de um tópico. Por essa razão, a quantificação dos dados não se limitou ao número de respostas mas, sim, ao número de tópicos indicados em cada resposta.

21 As entrevistas foram realizadas pelo grupo nas ruas da cidade de São Paulo, aplicando-se o mesmo questionário para 30 pessoas. Foram entrevistadas apenas pessoas maiores de idade, que completaram o ensino médio, sem distinção de gênero.

22 Entrevista do pesquisador Almir de Oliveira Júnior à Revista 22: “Mostramos aversão muito grande em assumir abertamente os nossos conflitos. Daí nossa ne-cessidade de perpetuar esse mito de que somos um país pacífico e muito tolerante”. (RODRIGUES, 2016, p. 36).

23 Entrevista fornecida pelo pesquisador Leandro Karnal à Revista 22: “Temos dificuldade de enunciar a violência” (RODRIGUES, 2016, p. 36).

24 As respostas foram compiladas exatamente como constam no questionário.25 JENNINGS-WINTERLE e LIMA-HERNANDES (2015).26 “É uma ideia totalmente aceita, a de que a diversidade é benéfica, enriquece os processos, traz resiliência e até mesmo proporciona maior produtividade para as

empresas.” (CABRAL, 2016, p. 38)”.

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Segundo dados divulgados em relatório27 do Conare, apenas 3,18% dos refugiados residentes no Brasil alegaram ter sofrido perseguição religiosa em seus países de origem. No levantamento realizado pelo Adus a menção à religião também não foi recor-rente. Questões religiosas foram abordadas apenas em 3 respostas, a saber:

“Os refugiados não são parte da sociedade brasileira, pois muitos sequer falam nosso idioma e possuem

características culturais que os diferenciam da cultura local, i.e., vestimentas, cotidiano, culinária, idioma, religião,

entre outros.”

“Estamos assistindo na Europa os muçulmanos querendo cobrir as mulheres ocidentais por causa das crenças deles”

“Apesar de não ser contra a entrada de qualquer grupo de refugiados em nosso país, acredito que com eles possam vir

perseguições e crenças que possam afetar nossa cultura”

Nas três respostas a religião foi colocada como um empecilho e razão pela qual a presença dos refugia-dos se mostrou um problema. Também é possível de-preender que as questões religiosas são colocadas em relação direta com questões culturais, conforme os dados acima apontam, não havendo uma desvincula-ção clara entre ambas. Não há informações suficien-tes sobre as práticas religiosas de migrantes e refu-giados. Dada não só a liberdade de culto, mas o caráter sensível de tal informação, se colocada dentro dos ter-mos do refúgio, isto é, podendo vir a ser justamente a motivação da fuga a perseguição religiosa, ainda que relevante estatística e sociodemograficamente, uma pergunta sobre tal pode implicar desconforto e des-respeito a quem é forçado a migrar.

Sobre a população em geral, no já citado balanço de denúncias feitas pelo Disque Direitos Humanos28, consta que de 2014 para 2015 houve um aumento de 273% do total de denúncias feitas que alegaram into-lerância religiosa. Ainda, segundo a Secretaria de Di-reitos Humanos da Presidência da República, a cada três dias ocorre uma denúncia de intimidação provo-cada por intolerância religiosa, principalmente contra religiões de matriz africanas29.

3.3 Questões religiosas

27 CONARE (2015, p. 12)28 Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/janeiro/ApresentaoASCOMDisque100.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2016. 29 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1648607-a-cada-3-dias-governo-recebe-uma-denuncia-de-intolerancia-religiosa.shtml>.

Acesso em 13 dez. 2015.

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4. Conclusão e recomendações

Mostra-se evidente que a discriminação em suas diversas formas e manifestações coloca obstáculos à reintegração de refugiados. Ademais, sua configu-ração no Brasil ocorre de maneira encoberta, ou seja, dissolvida na percepção do povo brasileiro como um povo aberto e receptivo, acostumado com uma forma-ção populacional multicultural. Ao mesmo tempo em que pesquisas e estatísticas constatam o impacto da discriminação no acesso a direitos e serviços, a inves-tigação realizada revela haver, ainda, mesmo dentre segmentos da população cujo acesso à informação seria presumidamente mais comum e/ou menos difi-cultado, um discurso bastante reativo, permeado por negatividades – como sobre refugiados roubarem em-pregos ou serem de religiões extremistas. Destacam--se as seguintes particularidades:

• A discriminação é reconhecida pelas instituições públicas, pelas organizações da sociedade civil e pelos próprios migrantes e refugiados como um obstáculo a efetivação de direitos e integração.

• Uma amostra da sociedade que têm acesso a infor-mação, dada a interação online para aplicação de questionários e dada a aplicação de questionários em São Paulo, cidade com maior concentração de migrantes e refugiados no Brasil, reconhece ma-joritariamente que a população dos migrantes e refugiados pode colaborar com o país e que eles não causam problemas de cunho social, cultural e

econômico e, ao mesmo tempo, assume uma posi-ção impregnada por estereótipos e pautada no dis-tanciamento, orientada por suposta tolerância em relação a pessoas naquela condição, que por si só não promove qualquer interação e pertença social.

• A discriminação se configura de tal modo que se reconhece o sujeito discriminado e a existente dis-criminação, mas desloca-se e dissolve o agente da discriminação.

Medidas legais adotadas pelo Brasil para a proteção de minorias e direitos devem ser reconhecidas como esforços relevantes e positivos para o desenvolvimen-to e justiça social. Algumas dessas experências deve-riam, também, nos termos cabíveis, ser encorajadas na formulação de políticas para a melhor integração de refugiados, entendendo que esta população, que se distancia da condição de estrangeiro e busca se apro-ximar da condição de nacional, pode se encontrar, e muitas vezes se encontram, em situação vulnerável, e, por assim estarem, apelam à proteção que o instituto do refúgio pode oferecer. O preconceito em relação ao refugiado dificulta a integração na medida que impe-de ou diminui relações que permitam a demonstração cultural e religiosa deles, e impedindo ou diminuindo, também, a possibilidade de se estabelecerem profis-sionalmente em trabalhos e empregos e terem rela-ções saudáveis com a sociedede brasileira.

Cartilhas e materiais voltadas a informação de re-

fugiados e solicitantes de refúgio sobre seus direitos e obrigações, como as elaboradas em parceria com or-ganizações da sociedade civil e ACNUR em diversos idiomas, são importantes instrumentos para um pri-meiro passo no caminho da integração. Por outro lado, esforços educativos e de campanhas para difundir co-nhecimentos e maior consciência sobre o instituto do refúgio, suas condicionalidades, o perfil de pessoas que dele disfrutam e sobre o papel e resposta do Brasil em solidariedade a essas pessoas e à comunidade interna-cional são, como se nota aqui, expressivamente neces-sários para conscientização de brasileiros e brasileiras.

Esforços envidados pelas instituições públicas de en-sino foram reconhecidos no acolhimento de crianças refugiadas, como ocorrido na 70ª sessão dos Direitos da Criança na ONU. Por outro lado, deve também ser preocupação especial do Ministério da Educação, cuja representação está garantida como mebro do Conare, campanhas e estratégias de conscientização de crian-ças e jovens sobre os direitos e a realidade de pessoas que são forçadas a migrar. O primeiro passo é o consta-tar que a discriminação contra migrantes e refugiados existe, seguido de esforços para combatê-la.

Órgãos estaduais e municipais de Educação, Cultura e Comunicação, por exemplo, devem pensar ações para conscientizar a população de que migrantes e refugia-dos não trazem apenas problemas socioeconômicos e, sim, podem colaborar com o desenvolvimento do país com saber técnico e educacional que trazem de seus

países, e também, com o inter e transculturalismo que podem contribuir na construção da cidadania. Para cumprir seu compromisso com a integração de mi-grantes e refugiados o Estado – em seus diversos entes – deve não só abster-se de interferências sobre as ma-nifestações culturais e religiosas, mas deve incentivar que elas ocorram livremente, atuando para efetivar o direito a expressão cultural e religiosa. Já se sabe, in-clusive, do potencial econômico das produções e mani-festações culturais, além do ganho social no combate contra a discriminação ao se incentivar eventos que tais manifestações aconteçam livremente.

A imprensa tem, também, importante papel na dis-suasão de preconceitos e estereótipos que culminam na discriminação. Incentivar a produção e circulação de informação e comunicação pelos próprios migran-tes e refugiados deve ser uma das prioridades no fi-nanciamento de projetos com fundos públicos. Em que pese ser a legislação aplicável às comunicações, ainda bastante restritiva aos estrangeiros no Brasil, o caráter do refúgio e a proteção que deve ser garantida aos refugiados deve levar em conta essa dimensão co-municativa para o combate da discriminação. Canais, veículos e agências oficiais do governo devem, tam-bém, se dedicar a usar seus próprios potenciais para rebater os estereótipos e equívocos verificados nas informações que divulgam.

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Lista de referências

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LivrosJENNINGS-WINTERLE, F.; LIMA-HERNANDES, M. C. (Orgs.). Português como Língua de Herança: a filosofia do começo, meio e fim. Nova Iorque: BeM, p.104-115, 2015

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