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ASPETOS CONTRATUAIS ESPECÍFICOS DA CONSTRUÇÃO SUBTERRÂNEA, EM ESPECIAL OS TÚNEIS SPECIFIC CONTRACTUAL ISSUES OF UNDERGROUND WORKS, WITH SPECIAL ATTENTION TO TUNNELS Diniz Vieira, Gonçalo; eSPap I.P., Lisboa, Portugal, [email protected] Monteiro, João; Soares da Costa S.A., Porto, Portugal, [email protected] Almeida e Sousa, Jorge; Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, [email protected] Baião, Carlos J. Oliveira; Cenor Consultores S.A., Lisboa, Portugal, [email protected] RESUMO As particularidades da construção subterrânea, que em muitos casos lida com situações previsivelmente incertas, exige do engenheiro e do legislador uma capacidade extraordinária para criar as melhores condições contratuais, técnicas e legais, por forma a poder capacitar o projetista e/ou o construtor a adaptar em tempo útil os métodos construtivos à realidade geológica-geotécnica e comportamental observada em obra. Os riscos geotécnicos são inevitáveis e indissociáveis da construção subterrânea em geral, e ganham particular relevo na construção de túneis. A implementação de procedimentos formais de gestão de risco em projetos subterrâneos é fundamental para reduzir o “custo associado ao risco”, em especial o geotécnico. Neste artigo apresentam-se algumas recomendações da ITA (International Tunneling Association) que, em conjunto com a FIDIC (International Federation of Consulting Engineers), está presentemente a elaborar cláusulas particulares que visam atender aos aspetos contratuais específicos das obras subterrâneas complexas. Faz-se uma análise do direito comparado nos ordenamentos jurídicos com mais experiência neste tipo de obras geotécnicas complexas, com destaque para os túneis. Por fim, apresentam-se alguns contributos para ajustar a legislação portuguesa de contratação pública e dotá-la das melhores práticas contratuais para lidar com esta realidade, o que poderá acontecer no âmbito da revisão do Código dos Contratos Públicos atualmente em curso. ABSTRACT Underground works are usually carried out in a scenario of uncertainty in what respects underground conditions. This requires contractual conditions that allow both the designer and/or the contractor to timely adapt the construction methodology to the real geological and geotechnical conditions and soil/structure interaction behavior observed during excavation. This is only possible with the appropriate legislation and contractual structure. The geotechnical risks are inevitable and inseparable from the subsurface construction. The risks are more relevant within the construction of tunnels. Implementing formal risk management procedures in underground projects is very important to reduce the "cost associated with the risk," especially costs connected with geotechnical risks. In this article are highlighted some of ITA’s recommendations. ITA is currently collaborating with FIDIC in order to update the “red” and “yellow books” with some special clauses designed to meet the specific contractual aspects of complex underground works. Also, this article provides an analysis of different legislation applicable in jurisdictions with more experience in this type of complex geotechnical works, especially the tunnels. Finally, this article summarizes the contributions submitted towards the preparation of the Portuguese legislation on public procurement for subsurface construction contracts, which might be included in the Public Procurement Code revision that is currently in progress. 1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS A construção subterrânea é muito diferente de qualquer outro tipo de construção “à vista”, pois as propriedades do material de construção – o terreno – não podem ser conhecidas com precisão a priori, nas fases de projeto e de preparação do contrato de empreitada. As condições imprevistas, a dependência relativamente aos meios e aos métodos construtivos, o acompanhamento e a análise dos resultados da monitorização e os inevitáveis riscos de construção são fatores indissociáveis da construção subterrânea em geral, e que ganham particular relevo na construção de túneis (ITA-AITES, 2013). As melhores práticas contratuais em países com grande tradição neste tipo de obras geotécnicas complexas promovem a adequação dos métodos construtivos inicialmente previstos às condições reais encontradas em obra. Fazem-no através de mecanismos contratuais simultaneamente flexíveis e rigorosos, adaptando os métodos construtivos por aplicação de regras sobre modificação dos contratos para os cenários de projeto admissíveis, previamente analisados e previstos no concurso.

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ASPETOS CONTRATUAIS ESPECÍFICOS DA CONSTRUÇÃO SUBTERRÂNEA, EM ESPECIAL OS TÚNEIS

SPECIFIC CONTRACTUAL ISSUES OF UNDERGROUND WORKS, WITH SPECIAL ATTENTION TO TUNNELS

Diniz Vieira, Gonçalo; eSPap I.P., Lisboa, Portugal, [email protected] Monteiro, João; Soares da Costa S.A., Porto, Portugal, [email protected]

Almeida e Sousa, Jorge; Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, [email protected]

Baião, Carlos J. Oliveira; Cenor Consultores S.A., Lisboa, Portugal, [email protected]

RESUMO

As particularidades da construção subterrânea, que em muitos casos lida com situações previsivelmente

incertas, exige do engenheiro e do legislador uma capacidade extraordinária para criar as melhores

condições contratuais, técnicas e legais, por forma a poder capacitar o projetista e/ou o construtor a

adaptar em tempo útil os métodos construtivos à realidade geológica-geotécnica e comportamental

observada em obra. Os riscos geotécnicos são inevitáveis e indissociáveis da construção subterrânea em

geral, e ganham particular relevo na construção de túneis. A implementação de procedimentos formais de gestão de risco em projetos subterrâneos é fundamental para reduzir o “custo associado ao risco”, em

especial o geotécnico. Neste artigo apresentam-se algumas recomendações da ITA (International

Tunneling Association) que, em conjunto com a FIDIC (International Federation of Consulting Engineers), está presentemente a elaborar cláusulas particulares que visam atender aos aspetos contratuais

específicos das obras subterrâneas complexas. Faz-se uma análise do direito comparado nos

ordenamentos jurídicos com mais experiência neste tipo de obras geotécnicas complexas, com destaque para os túneis. Por fim, apresentam-se alguns contributos para ajustar a legislação portuguesa de

contratação pública e dotá-la das melhores práticas contratuais para lidar com esta realidade, o que

poderá acontecer no âmbito da revisão do Código dos Contratos Públicos atualmente em curso.

ABSTRACT

Underground works are usually carried out in a scenario of uncertainty in what respects underground

conditions. This requires contractual conditions that allow both the designer and/or the contractor to

timely adapt the construction methodology to the real geological and geotechnical conditions and soil/structure interaction behavior observed during excavation. This is only possible with the appropriate

legislation and contractual structure. The geotechnical risks are inevitable and inseparable from the

subsurface construction. The risks are more relevant within the construction of tunnels. Implementing formal risk management procedures in underground projects is very important to reduce the "cost

associated with the risk," especially costs connected with geotechnical risks. In this article are highlighted

some of ITA’s recommendations. ITA is currently collaborating with FIDIC in order to update the “red” and “yellow books” with some special clauses designed to meet the specific contractual aspects of

complex underground works. Also, this article provides an analysis of different legislation applicable in

jurisdictions with more experience in this type of complex geotechnical works, especially the tunnels. Finally, this article summarizes the contributions submitted towards the preparation of the Portuguese

legislation on public procurement for subsurface construction contracts, which might be included in the

Public Procurement Code revision that is currently in progress.

1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A construção subterrânea é muito diferente de qualquer outro tipo de construção “à vista”, pois as

propriedades do material de construção – o terreno – não podem ser conhecidas com precisão a priori, nas fases de projeto e de preparação do contrato de empreitada. As condições imprevistas, a

dependência relativamente aos meios e aos métodos construtivos, o acompanhamento e a análise dos

resultados da monitorização e os inevitáveis riscos de construção são fatores indissociáveis da construção subterrânea em geral, e que ganham particular relevo na construção de túneis (ITA-AITES, 2013).

As melhores práticas contratuais em países com grande tradição neste tipo de obras geotécnicas

complexas promovem a adequação dos métodos construtivos inicialmente previstos às condições reais encontradas em obra. Fazem-no através de mecanismos contratuais simultaneamente flexíveis e

rigorosos, adaptando os métodos construtivos por aplicação de regras sobre modificação dos contratos

para os cenários de projeto admissíveis, previamente analisados e previstos no concurso.

Uma análise do direito comparado revela que, nos ordenamentos com mais experiência neste tipo de

obras geotécnicas complexas (com destaque para os túneis), existe uma abordagem mais flexível e

adequada a este tipo de obras. Nesses outros ordenamentos, é patente que existe uma maior sintonia entre as soluções legais e regulamentares e o estado da arte do ponto de vista das boas práticas de

projeto e gestão de obras com características geotécnicas complexas (CPT, 2015).

Os contratos que incluam um mecanismo de adaptação das remunerações do construtor de acordo com as condições encontradas em fase de obra só vão pagar pelos riscos que realmente

ocorram. No entanto, esses contratos exigem vigilância contínua e especializada para o exercício efetivo

do mecanismo de remuneração. No cerne da gestão prudente do risco geotécnico está o grau de compreensão das particularidades do ambiente subterrâneo. Os benefícios do projeto subterrâneo

precisam de ser equilibrados no contrato com os riscos das incógnitas decorrentes do subsolo, resultantes

das inerentes incertezas geológicas, geotécnicas, hidro-geológicas e de desempenho estrutural do espaço subterrâneo.

A implementação de procedimentos formais de gestão de risco em projetos subterrâneos é

altamente incentivada pela ITA (International Tunneling Association) e já é correntemente utilizada em projetos internacionais com financiamento público/comunitário, ou através de fundos de investimento

privados, usando registos de riscos e melhorando a capacidade para identificar, controlar, monitorar,

comunicar e alocar os riscos contratuais. Todas as partes envolvidas no empreendimento devem participar neste processo para gerir e mitigar os riscos identificados. Em alguns países, os procedimentos

formais de gestão de risco tornaram-se obrigatórios para a obtenção de seguros para os grandes projetos

de obras subterrâneas.

A ITA recomenda o recurso a processos especializados de resolução de litígios como um meio de gestão

de conflitos, incluindo o recurso a peritos com experiência e conhecedores dos assuntos específicos da

construção subterrânea. Todos os procedimentos eficazes de resolução de conflitos em empreitadas de construção subterrânea dependem da identificação precoce dos problemas que necessitam de resolução e

da existência de procedimentos claros e ágeis para a resolução dos litígios. Esta associação internacional

está a trabalhar em conjunto com a FIDIC (International Federation of Consulting Engineers) na elaboração de cláusulas contratuais particulares para responder às especificidades das obras

subterrâneas, em especial os túneis.

Em seguida iremos apresentar os argumentos que motivaram esta necessidade de complementar os

experientes contratos FIDIC com cláusulas contratuais específicas para obras subterrâneas complexas e

faremos uma breve análise da resposta que a legislação portuguesa atual dá a esta matéria da incerteza

e dos trabalhos complementares neste tipo de obras públicas. Faremos também uma breve alusão ao direito comparado em países com maior experiência neste tipo de obras.

Por fim, apresentam-se alguns contributos que pretendem melhorar e ajustar a legislação portuguesa ao

dotá-la das melhores práticas contratuais para lidar com esta realidade das obras públicas subterrâneas complexas, o que poderá acontecer no âmbito da revisão do Código dos Contratos Públicos, que está em

curso.

2 - GESTÃO DO RISCO: A importância de “olhar os problemas de frente e não os empurrar com a barriga…”

É sobejamente conhecida a definição de risco (R), que resulta do produto da probabilidade de ocorrência

de um fenómeno adverso (P) pelo seu impacto (I) em pessoas ou bens, ao nível da segurança, do custo, do prazo, do ambiente, ou outros:

R=P x I [1]

Os riscos geotécnicos são inevitáveis e indissociáveis da construção subterrânea em geral, e ganham

particular relevo na construção de túneis. Este tipo de risco está associado à natureza, qualidade e

variabilidade das condições do terreno e da água, sendo potenciado pela existência de falhas, zonas

fraturadas, estratificação, alteração, aquíferos, propriedades resistentes, etc que poderão induzir a existência de condições geológicas distintas das previstas nos estudos de projeto e, consequentemente,

poderão implicar uma menor estabilidade da cavidade e conduzir à alteração do método construtivo

inicialmente previsto.

A gestão do risco é já muito valorizada internacionalmente e noutros setores, como por exemplo na

banca ou na indústria nuclear, mas no setor da construção, e em particular em Portugal, a sua aplicação

é muito pontual (talvez mais associada à construção de barragens ou de grandes infraestruturas construídas à superfície) apesar de por vezes as obras serem previsivelmente incertas, em especial

durante a construção de túneis.

Uma gestão de risco bem estruturada durante todas as fases da obra, desde a conceção e estudos de

viabilidade, passando pelo concurso público até à construção, monitorização e exploração, é necessária e

deveria ser alargada a muitas obras geotécnicas complexas que lidam com elevados graus de incerteza.

Assim, a implementação de procedimentos formais de gestão de risco em projetos de obras

subterrâneas, tendo em consideração a partilha do risco entre o dono de obra e o construtor, traz

mais eficiência e justeza ao contrato e traz também uma maior capacidade de gerir e antecipar eficazmente os problemas e de resolver conflitos e reclamações, o que é fundamental para reduzir o

“custo associado ao risco”, em especial o geotécnico.

O aumento da complexidade das obras obriga a considerar relações contratuais mais “colaborativas” (o que já é uma tendência atual nos países de cultura anglo-saxónica), traduzindo-se na alocação de cada

um dos riscos ao interveniente melhor colocado para o gerir. De outra forma, se se procurar

“empurrar” o risco apenas para uma das partes, isso contribui em si mesmo para o aumento do nível de risco global da obra, o que na prática se poderá traduzir no seu maior custo e, também,

por exemplo, na maior dificuldade em garantir o seguro de determinados trabalhos.

O modelo adequado para o efeito é a instituição do Plano de Gestão de Risco (PGR), o qual deverá assegurar que todas as situações de risco significativo ou de consequências muito severas se encontram

devidamente tratadas. Com efeito, não sendo possível eliminar inteiramente o risco, é obrigação dos

intervenientes mantê-lo num nível que seja tolerado, quer do ponto de vista técnico, quer pela sociedade no seu conjunto ou, de outra forma, num nível “as low as reasonably possible” (o chamado critério ALARP

conforme exemplificado na Figura 1).

Figura 1 – Critério ALARP de aceitabilidade do risco (Cândido, 2010)

Os processos de Análise e Avaliação do Risco podem ser qualitativos e/ou quantitativos, em função da

importância da obra, dos parâmetros em análise e dos dados disponíveis e, em qualquer dos casos,

devem ser transversais a todas as fases de um empreendimento: estudos de viabilidade, concurso(s), projeto, construção e operação e manutenção. Estes processos devem ser entendidos como ferramentas

de ajuda à tomada de decisão, sempre com o objetivo de anular ou minimizar para níveis aceitáveis o

impacto e/ou a probabilidade de ocorrência dos vários riscos que podem afetar o empreendimento.

Assim, recorrendo à experiência pessoal, a bases de dados, a bibliografia ou reunindo especialistas,

deverão ser identificados todos os perigos (acontecimentos com potencial para causar danos),

atribuir-lhes uma probabilidade de ocorrência e o impacto que eles possam ter. Com base nesta análise deverá ser avaliado cada um dos riscos, atribuindo-lhes uma classificação que permita decidir quais os

riscos que são aceitáveis e quais aqueles que têm que ser mitigados ou eliminados. Este processo

encontra-se ilustrado na Figura 2.

Na celebração do contrato entre o Dono de Obra e o Construtor, as cláusulas devem clarificar a fronteira

entre as obrigações de desempenho e as especificações técnicas de metodologia de trabalho, de modo a

potenciar o equilíbrio entre os interesses de cada um dos intervenientes e o risco assumido pelos mesmos.

Figura 2 – Objetivo da gestão do risco (adaptado de Grasso et al., 2002)

Mas, na realidade, muitas das vezes durante a celebração do contrato o Dono de Obra procura passar os

riscos da construção subterrânea (incluindo o risco geotécnico), com as consequentes derrapagens de

preço e prazo, para o Construtor. Ao não aceitar a existência de potenciais riscos e incertezas e ao não assumir as suas consequências, o Dono de Obra poderá estar a menosprezar potenciais problemas que só

serão resolvidos na pior altura, i.e., durante a fase de construção da obra. Tal abordagem simplista de

querer um “pacote fechado” da obra com preço fixo e prazo determinado tem sido responsável por um grande número de disputas contratuais em empreitadas de obras subterrâneas devido às consequências

da existência de condições geológicas adversas inesperadas.

Um exemplo concreto onde ocorreu litigância devido à existência de condições geológicas desfavoráveis, entre tantos outros que existem, pode ser consultado no Relatório de Auditoria N.º 33/06 (TC,2006) que

o Tribunal de Contas realizou à empreitada de construção da 1ª fase do metro ligeiro do Porto. Nesse

relatório apresenta-se o diferendo entre o Dono de Obra (Metro do Porto) e o Construtor (Consórcio Normetro) decidido por Acórdão do Tribunal Arbitral. Em causa estavam diversos sobrecustos que o

construtor alegava ter incorrido com a alteração das condições de execução do contrato que, entre

outros, se consubstanciaram em adaptações do método construtivo na escavação de túneis, que resultaram das características dos terrenos se terem revelado menos favoráveis do que as inicialmente

previstas.

Neste caso, refere-se no citado relatório “…A proposta da Normetro era substancialmente mais cara do que a de outro concorrente (Metropor), tendo sido especialmente valorizado o facto de a Normetro

assumir os custos inerentes ao risco geológico, o que o outro concorrente não aceitava, tendo por isso

sido ela a escolhida.” Ora, tal como se poderá ver no Acórdão Final do tribunal, corridos os trâmites do processo, com a audiência preliminar, despacho saneador, produção de prova, audiência de discussão e

julgamento e alegações, a tentativa de passagem total da responsabilidade do risco geotécnico para o

construtor não foi aceite, pois “…naturalmente inspirado pelo recurso à equidade e não pela aplicação rigorosa e “cega” do direito positivo, a razão relativamente à questão da alocação dos riscos

geológicos, determinantes na adjudicação do contrato à Normetro, foi, grosso modo, dividida

equitativamente por ambas as partes, tendo o Tribunal dado ainda por assente que, por causas muito diversas, existiu de facto um desequilíbrio financeiro na execução de tal contrato em desfavor do

Construtor."

Também a ITA refere, nas suas recomendações de práticas contratuais para contratos de construção subterrânea (ITA-AITES, 2013), que os Donos de Obra que apenas pretendam um preço e prazo fixos

deverão estar à espera de pagar um valor premium pela “certeza do preço e do prazo”, pois vão pagar

pelos riscos que podem não ocorrer. Para mais, como vimos com o caso prático acima mencionado, mesmo quando as condições encontradas são inesperadamente adversas, o Dono de Obra terá de

assumir, muito provavelmente, a sua quota de responsabilidade e pagar pelos trabalhos adicionais que

resultem de alterações do processo construtivo e se enquadrem no regime legal das modificações objetivas ao contrato.

Por fim, no que respeita a este tema da gestão do risco, interessa reforçar que compensa uma

preparação cuidada da empreitada de construção subterrânea, com uma adequada campanha de prospeção e um projeto suficientemente abrangente para se poder adaptar às reais condições

encontradas durante a escavação. O plano de gestão do risco deverá acompanhar todas estas fases numa

perspetiva de “olhar os problemas de frente” e preveni-los, preparando soluções de contingência de forma antecipada. Não compensa, pois, “empurrar os problemas com a barriga…” pois mais tarde eles

voltam, e mais fortes.

No fundo, e citando Laura Caldeira, “O risco geotécnico poder ser gerido, minimizado, partilhado,

transferido ou aceite. Contudo, não pode ser ignorado.” (Caldeira, 2015).

3 - ASPETOS CONTRATUAIS ESPECÍFICOS DA CONSTRUÇÃO SUBTERRÂNEA

3.1 - Legislação Portuguesa de Contratação Pública

As particularidades da construção subterrânea, que em muitos casos lida com situações previsivelmente incertas, exige do engenheiro e do legislador uma capacidade extraordinária para

criar as melhores condições contratuais, técnicas e legais, por forma a poder capacitar o projetista e/ou o

construtor a adaptar em tempo útil os métodos construtivos à realidade geológica-geotécnica e comportamental observada em obra.

Mas por vezes as legislações nacionais não respondem eficazmente aos requisitos de adaptabilidade

tantas vezes necessários nas obras subterrâneas complexas, realizadas em condições de elevada incerteza geotécnica (ou de outros tipos de incerteza mas que não serão exploradas neste artigo).

Em Portugal, o Código dos Contratos Públicos (CCP) trata as modificações ao contrato de empreitada

de obra pública em sede de execução da obra nos artigos 370.º e seguintes, com destaque para os artigos 370.º – Trabalhos a mais; 376.º – Trabalhos de suprimento de erros e omissões; 378.º –

Responsabilidade pelos erros e omissões. Para que se enquadrem como trabalhos a mais os trabalhos

complementares não previstos no contrato, em espécie ou quantidade, devem ser necessários à execução

da obra, na sequência de uma circunstância imprevista, e não podem ser técnica ou economicamente

separáveis do objeto do contrato sem inconvenientes graves para o Dono de Obra ou, embora separáveis,

sejam estritamente necessários à conclusão da obra.

Com a publicação do Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho (versão mais recente do CCP), os

trabalhos adicionais resultantes de obras complexas do ponto de vista geotécnico, deixaram de ser

enquadrados de forma excecional no regime de trabalhos a mais (com limite de 25% do preço contratual conforme o n.º 3 do art. 370.º do Código dos Contratos Públicos nas versões anteriores a 2012), e

passaram a estar referenciados de forma excecional no regime de trabalhos de suprimento de erros e

omissões (EO), com limite de 10% do preço contratual, conforme o n.º 4 do art. 376.º do Código dos Contratos Públicos, na redação atual.

Esta alteração, a par do entendimento jurisprudencial do Tribunal de Contas sobre a responsabilidade

pelos erros e omissões numa empreitada de obras públicas, veio levantar diversas questões sobre o acerto do enquadramento destes trabalhos adicionais ocorrentes em obras complexas do ponto de vista

geotécnico como erros e omissões, ou mesmo como trabalhos a mais, já que muitas das vezes as

circunstâncias em que ocorrem não são imprevistas, mas sim previsivelmente incertas. E para essas situações previsivelmente incertas (em especial durante a construção de túneis), os trabalhos de

adaptação dos métodos de escavação à realidade encontrada in situ devem ser enquadrados como

resultantes de uma circunstância previsivelmente (mal) prevista e, portanto, enquadrados como EO, ou como resultantes de uma circunstância imprevista (ou, pelo menos, que não devia ter sido prevista na

fase pré-contratual) e, portanto, enquadrados como trabalhos a mais?

No fundo, em resumo, a questão que se coloca é a seguinte:

Quando é certa a incerteza, o que é certo fazer?

A legislação portuguesa atual não responde eficazmente a esta pergunta, pelo que durante o último ano o

Grupo de Trabalho N.º2 da Comissão Portuguesa de Túneis (CPT) esteve a refletir, a debater, a recolher experiências e opiniões e a produzir alguns contributos para poderem ser incorporados na revisão do

Código dos Contratos Públicos atualmente em curso.

O resultado desses contributos encontra-se resumido no capítulo 4.

3.2 - Direito Comparado

As melhores práticas contratuais em países com grande tradição neste tipo de obras geotécnicas

complexas promovem a adequação dos métodos construtivos inicialmente previstos às condições reais encontradas em obra, através da utilização do método observacional, conforme estabelecido no

capítulo 2.7 da Norma Europeia de Projeto Geotécnico – EC7: Parte 1 Regras Gerais. Tal só é possível

através de soluções legislativas adaptadas a esta realidade, que acompanhem as melhores práticas construtivas e permitam gerir eficazmente o risco geotécnico.

Uma análise do direito comparado revela que, nos ordenamentos com mais experiência neste tipo de

obras geotécnicas complexas (com destaque para os túneis), existe uma abordagem mais flexível e adequada a este tipo de obras. Nestes ordenamentos, é patente a maior sintonia entre as soluções legais

e regulamentares e o estado da arte do ponto de vista das boas práticas de projeto e gestão de obras

com características geotécnicas complexas.

3.2.1 - Caso Italiano

Por exemplo, no direito italiano dispõe-se expressamente que é possível realizar “modificações durante a

obra” nas seguintes situações (tradução e itálicos nossos, art. 132º do Codice dei Contratti Pubblici):

“… b) por causas imprevistas e imprevisíveis determinadas pelo modo pré-estabelecido no regulamento,

ou pela possibilidade superveniente de utilizar componentes e tecnologias não existentes no momento do

projeto que possam determinar, sem aumento de custo, significativas melhorias na qualidade da obra ou das suas partes e sempre que não alterem os pressupostos de projeto;

c) pela presença de eventos inerentes à natureza e especificidades dos bens sobre os quais se intervém,

verificadas em curso de obra, ou de achados imprevistos ou não previsíveis na fase de projeto;

d) nos casos previstos no artigo 1664, parágrafo 2º, do Código Civil;

e) pela manifestação de erros ou omissões do projeto de execução que prejudicam, no todo ou em parte,

a realização da obra ou a sua utilização; em tal caso, o responsável do procedimento comunica imediatamente ao Observatório e ao projetista”.

Como se verifica, o legislador tem o cuidado de separar os erros e omissões, que considera realidades

censuráveis, das situações, perfeitamente naturais, que determinam, numa ótica de razoabilidade, a necessidade permanente de adaptação às condições reais da obra. Entre essas situações

encaradas como naturais – e portanto expressamente separadas dos trabalhos de erros e omissões,

encontram-se, precisamente, as “obras geológicas, hídricas e similares”: de facto, o artigo 1664, 2º parágrafo, do Código Civil, para onde remete a alínea d) do n.º 1 do artigo 132 do Codice dei Contratti

Pubblici, dispõe que “Se durante a execução da obra se manifestam dificuldades de execução resultantes

de causas geológicas, hídricas ou similares, não previstas pelas partes, que tornem significativamente mais onerosa a prestação do empreiteiro, este tem direito a uma compensação equitativa”.

3.2.2 - Caso Francês

Outras experiências de direito comparado confirmam esta necessidade de uma regulação específica para este tipo de trabalhos, sempre na linha de enfatizar que as adaptações que naturalmente

sucedem no seu decurso não são resultado de erros ou omissões (salvo em casos residuais), mas são

situações em que, conscientemente, se assume que a informação que pode ser recolhida antes da

execução dos trabalhos é forçosamente incompleta e só poderá ser complementada durante essa

execução.

Em França, a planificação e execução de obras subterrâneas é objeto de um fascículo específico do “Cahier des Clauses Techniques Generales Applicables Aux Marchès Publics de Travaux” (o fascículo 69).

Um dos pilares essenciais desse regime é precisamente a necessidade de elaboração de um plano de

gestão de riscos geológicos, que visa:

i) identificar os “riscos não eliminados pelos estudos”;

ii) “definir os procedimentos técnicos e contratuais a aplicar em caso de ocorrência de eventos que

se considere necessitarem de adaptações técnicas às especificações construtivas previstas e à estimativa de custos”.

Tratam-se de “riscos identificados, seja porque as suas consequências são difíceis de apreciar, seja

porque o conhecimento do evento não é suficiente no momento dos estudos, seja porque a sua verosimilhança é frágil” (de acordo com as notas interpretativas oficiais aprovadas com esta peça

regulamentar; tradução nossa). O desenvolvimento do clausulado desse Caderno de Encargos tipo é

depois coerente com esta abordagem progressiva e flexível do processo de realização da obra.

3.2.3 - Caso Norte-Americano

No direito norte-americano, a lei obriga, por regra, a que nos contratos de empreitada de preço fixo seja

incluída a chamada cláusula “Differing Site Conditions” (cf. n.ºs 36.502 e 52.236-2 do United States Code), que tem precisamente a natureza de uma cláusula de adaptação às condições do terreno. Nos

seus termos, o empreiteiro deve dar conta ao dono de obra de quaisquer “condições físicas subterrâneas

ou latentes no local da obra que difiram de modo relevante das indicadas no contrato, ou de condições físicas desconhecidas do mesmo local, de natureza pouco habitual, que difiram de modo relevante das

normalmente encontradas e geralmente reconhecidas como inerentes ao tipo de obra que constitui o

objeto do contrato.”

Subjacente à referida cláusula está, mais uma vez, a ideia segundo a qual o projeto é concebido de

acordo com pressupostos considerados normais, numa estimativa razoável, mas que podem não

corresponder à realidade. Sobre tais situações não recai qualquer estigma, não sendo as mesmas

associadas a erros de projeto, mas antes consideradas como inerentes à prática corrente, e mesmo às

melhores práticas.

3.2.4 - Caso Norueguês

A Noruega tem forte tradição na construção de túneis, a maior parte em maciços rochosos. A maioria dos

túneis têm contratos baseados em preços unitários para diferentes soluções construtivas, com quantidades flexíveis e uma partilha de risco equilibrada (NFF, 2012).

Os contratos com partilha de risco destinam-se a abordar os dois principais aspetos de risco:

i) As condições do terreno, cuja responsabilidade é do Dono de Obra. Sendo proprietário do terreno, o Dono de Obra é também responsável pela campanha de prospeção e pelos resultados

dos estudos geológico-geotécnicos realizados na fase pré-contratual;

ii) O desempenho, o empreiteiro é responsável pela execução eficiente dos trabalhos de escavação. Ele é reembolsado pelos trabalhos realizados de acordo com os preços unitários

propostos e o prazo de execução é ajustado com base em capacidades padrão pré-definidas para

as diferentes tarefas.

Os princípios de partilha de risco eliminam a maioria das discussões acerca das diferenças entre as

condições geológicas previstas (as de referência do projeto) e as encontradas em obra. Na Figura 3 é

ilustrado como a alocação adequada do risco pode dar origem ao menor custo possível, seguindo os princípios do Norwegian Method of Tunneling.

Figura 3 – Princípios de alocação do risco (NFF, 2012)

3.3 - Recomendações da ITA – International Tunneling Association

Há já vários anos que a ITA se tem debruçado sobre a temática das práticas contratuais na construção de túneis. O Working Group N.º3 editou em 2011 as recomendações “Contractual Framework Checklist for

Subsurface Construction Contracts” (ITA-AITES, 2011) e encontra-se atualmente a trabalhar numa

segunda edição do documento, revista e alargada.

A ITA considera que a otimização das disposições contratuais nas obras subterrâneas é altamente

vantajosa porque os projetos que envolvem estruturas subterrâneas são inerentemente arriscados e

propensos a derrapagens em cascata de custos e de prazo, se os riscos não forem mitigados física e contratualmente.

Uma das recomendações mais importantes da ITA passa pela implementação de procedimentos

formais de gestão do risco, de forma a envolver todas as partes no processo construtivo (projetista, revisor, fiscalização, dono de obra, construtor) desde o início da conceção, e desta forma mitigar os riscos

identificados (geotécnicos e outros). No cerne da gestão prudente do risco geotécnico está o grau de

compreensão das particularidades do ambiente subterrâneo. Os benefícios do projeto subterrâneo precisam de ser equilibrados no contrato com os riscos das incógnitas decorrentes do subsolo.

A ITA considera também que o recurso a procedimentos judiciais tradicionais para a resolução de

conflitos não é do melhor interesse dos empreendimentos, exceto em circunstâncias extremas. Há uma série de mecanismos modernos preferenciais para a resolução desses conflitos, que vão desde conselhos

de especialistas de resolução de litígios, à arbitragem e à mediação. Todos os procedimentos eficazes de

resolução de conflitos em empreitadas de construção dependem da identificação precoce dos problemas

que necessitam de resolução e da existência de procedimentos claros para resolução dos litígios.

3.4 - Contratos FIDIC

Também a FIDIC (Fédération Internationale des Ingénieurs Conseils / Federação Internacional de

Engenheiros Consultores) sentiu a necessidade de adaptar os seus contratos (FIDIC, 2011), reconhecidos internacionalmente como equilibrados do ponto de vista da gestão do risco contratual, para implementar

algumas cláusulas contratuais específicas para túneis e obras subterrâneas. O trabalho está a ser

desenvolvido em parceria com a ITA (International Tunneling Association) e os princípios que justificaram a elaboração destas condições contratuais específicas para obras subterrâneas são resumidos em

seguida:

a) A alocação do risco hidrogeológico e geotécnico deve ser atribuído ao proprietário do terreno, o Dono de Obra, enquanto a componente do risco de desempenho para as condições

geotécnicas expectáveis deve ser atribuído ao construtor;

b) Toda a informação geológica e geotécnica disponível deve ser patenteada no concurso;

c) Os limites contratuais do concurso são baseados num relatório geotécnico de referência, que

resume as condições geotécnicas previstas (as mais prováveis) que poderão ser encontradas

durante a construção;

d) Nas situações em que as condições reais do terreno sejam diferentes das previstas no projeto,

deve ser incorporada uma cláusula contratual de “condições físicas imprevistas” que permita uma

flexibilização contratual para compensar o construtor por eventuais sobrecustos ou para permitir eventuais benefícios para o dono de obra;

e) Deve ser implementado um sistema de classificação das condições do terreno baseado nos

trabalhos que o construtor tem de executar para escavar e suportar o terreno;

f) Devem ser reguladas as alterações no prazo de execução decorrentes das diferenças nas

condições geotécnicas encontradas em obra;

g) Deve ser definido um mecanismo flexível de remuneração de acordo com as condições geotécnicas reais encontradas durante a construção, através de um sistema de pagamento por

série de preços unitários, organizados de modo a permitir a distinção entre custos fixos, custos

devido ao prazo de execução, custo devido ao valor dos trabalhos e custo devido às quantidades

realizadas.

Consideramos que estes princípios são muito importantes e foram tidos em consideração na proposta de

alteração da legislação nacional de contratação pública apresentada no capítulo 4.

4 - A REFORMA DO CCP: Janela de oportunidade para novas soluções legislativas?

4.1 - As Novas Diretivas Europeias de Contratação Pública

Em março de 2014 foram publicadas as novas Diretivas Europeias de Contratação Pública (2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE), cuja data limite de transposição para a legislação nacional é a 18 de abril de

2016.

A aprovação deste recente pacote legislativo europeu veio demonstrar que as instituições europeias reconhecem a importância da flexibilidade contratual para conseguir os objetivos que presidem à

celebração de um contrato público. Isso ficou bem expresso nos preceitos das Diretivas que tratam das

modificações aos contratos (artigo 43º da Diretiva 2014/23/UE, artigo 72º da Diretiva 2014/24/UE e artigo 89º da Diretiva 2014/25/UE), os quais preveem, com rigor, mas ao mesmo tempo, com muita

abertura, múltiplas situações que podem levar à modificação de contratos públicos durante a sua

execução.

As novas Diretivas admitem como fundamento de modificação contratual:

i) as tradicionais situações de circunstâncias que um contraente público diligente não poderia ou

não deveria prever (artigo 43º, n.º 1, alínea c), da Diretiva 2014/23, artigo 72º, n.º 1, alínea c), da Diretiva 2014/24, e artigo 89º, n.º 1, alínea c), da Diretiva 2014/25);

ii) a hipótese de opções que tenham sido devidamente indicadas nas peças do

procedimento (artigo 43º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2014/23, artigo 72º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2014/24, e artigo 89º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2014/25), e que permitem enquadrar

a metodologia de previsão de cenários alternativos para a evolução da obra.

As novas Diretivas reforçam a possibilidade de criação de mecanismos contratuais mais flexíveis durante

a execução do contrato, nomeadamente por aplicação das regras sobre modificação dos contratos

durante o seu período de vigência, mais abertos à adaptação às reais condições encontradas durante a escavação nos casos de obras complexas do ponto de vista geotécnico, eventualmente com base em

cenários de projeto. Isto foi tido em conta na proposta de revisão ao CCP que se resume em seguida.

4.2 - Revisão do CCP: Proposta de alteração legislativa

Tudo o que foi dito fundamenta a necessidade de rever a legislação portuguesa atual, adaptando-a às

melhores práticas contratuais deste tipo de obras subterrâneas complexas realizadas em condições

previsivelmente incertas.

Conforme já dissemos anteriormente, o Grupo de Trabalho N.º2 da CPT, de que os autores são membros,

elaborou alguns contributos para a revisão do CCP (CPT, 2015) que se resumem em seguida:

1) Inclusão no Código dos Contratos Públicos de um novo tipo de modificação objetiva ao contrato, denominada de Trabalhos de Adaptação Especiais (TAE) resultantes de modificações de

quantidade, e/ou tipos de trabalho e/ou prazo de execução, e que apenas podem ser realizados

para adaptações do método construtivo decorrentes da existência de condições geotécnicas

diferentes das previstas no cenário base (mais provável) do projeto que foi lançado a concurso;

2) Revogação do número 4 do artigo 376.º, desaparecendo o regime especial de trabalhos de

suprimento de erros e omissões para obras cuja execução seja afetada por condicionalismos naturais com especiais características de imprevisibilidade;

3) Os TAE podem significar um acréscimo de custo para o dono de obra (nas situações mais

adversas do que as inicialmente previstas) mas também podem ser benéficos para o dono de obra e originar trabalhos a menos (nas situações onde os terrenos apresentam um

comportamento melhor do que o expectável). O dono de obra deve beneficiar totalmente das

melhores condições encontradas na medida em que assume também o risco geotécnico associado à escavação. Nestas situações não deve, portanto, ser aplicado o artigo 381.º do CCP

respeitante à indemnização por supressão de trabalhos;

4) Para que os TAE sejam elegíveis em sede de execução do contrato será necessário existir rigor na fase pré-contratual, através do cumprimento de certas condições e pressupostos, a saber:

a) deve existir uma Assistência Técnica Especial (ATE) do projetista no

acompanhamento da construção, de acordo com o previsto na Portaria n.º 701-H/2008 de 29 de julho, para adaptação do projeto às reais condições do terreno encontradas;

b) as obras a construir devem ser consideradas, à luz do código atual, como que afetadas

por condicionalismos naturais com especiais características de imprevisibilidade, nomeadamente as obras marítimas portuárias e as obras complexas do ponto de vista

geotécnico, em especial a construção de túneis, bem como as obras de reabilitação ou

restauro de bens imóveis;

c) na fase de preparação do concurso, o projeto deve ser objeto de revisão, desde a

fase inicial de conceção, por entidade devidamente qualificada para a sua elaboração,

distinta do autor do projeto. A revisão deve seguir o estabelecido no artigo 43.º, n.º 2 do CCP e acompanhar todas as fases do projeto;

d) as peças do concurso devem conter obrigatoriamente toda a informação geológica e

geotécnica disponível, incluindo a prospeção dos terrenos adequada para a obra a realizar, da responsabilidade do dono da obra, compilada num relatório de informação

geológico-geotécnica;

e) as condições de referência do subsolo previstas pelo dono de obra, consideradas como as que podem existir com maior probabilidade de ocorrência, definem o cenário

base do projeto (cenário A), para o qual a escavação e construção devem ser

dimensionadas;

f) o projeto deve ainda abranger, pelo menos, mais dois cenários possíveis, embora

menos prováveis, e prever os métodos construtivos e as soluções técnicas mais

adequadas para uma situação de piores condições geotécnicas (cenário B) e para uma outra situação de condições geotécnicas mais favoráveis (cenário C) que as do cenário

base;

g) o concurso deverá conter uma cláusula de “differing site conditions” onde se prevejam

os procedimentos qualitativos e quantitativos (financeiros e técnicos) a seguir no caso de

existirem diferentes condições do local relativamente ao que seria expectável, que saiam fora do âmbito dos cenários de projeto;

h) deve ser criada de uma Comissão de Resolução de Conflitos, com três membros (um

nomeado pelo Dono de Obra, o outro pelo Construtor e um terceiro nomeado por esses dois membros) capaz de analisar tecnicamente as situações, para atuar rapidamente

como decisor nas situações de modificações objetivas ao contrato por alteração das

condições geotécnicas inicialmente previstas, respeitando sempre o regime legal aplicável;

i) as obras devem ser monitorizadas periodicamente por forma a permitir obter informação

em tempo útil acerca do comportamento do terreno e das edificações próximas, durante a escavação. A informação obtida da monitorização deverá servir para sustentar uma

modificação das condições encontradas em obra, em sede de TAE;

j) todos os trabalhos previstos para o cenário base de projeto e para os outros cenários alternativos menos prováveis serão contabilizados e valorizados nas propostas a

apresentar pelos construtores. Na avaliação das propostas o dono de obra deverá utilizar

o critério da proposta economicamente mais vantajosa, tendo em atenção as probabilidades associadas aos cenários de projeto a definir no Caderno de Encargos

(referem-se, a título indicativo, critérios de aproximadamente 70% de valor ponderado

para o cenário A e de 15% de valor ponderado para cada um dos cenários B e C).

Nos concursos de obras que envolvam grande complexidade geotécnica e grande incerteza associada,

como é o caso de grande parte dos túneis, os projetos devem abranger diferentes cenários e prever

soluções construtivas adequadas a cada situação. Devem também ser utilizadas técnicas de gestão do risco, abrangendo todas as partes envolvidas e todas as fases do empreendimento.

As alterações propostas à legislação em vigor trazem, por um lado, uma maior flexibilidade contratual

durante a fase de construção mas também, por outro, um maior rigor na fase de preparação do concurso. A Figura 4 resume as opções e pressupostos assumidos na proposta de revisão do CCP:

Figura 4 – Pressupostos da revisão do CCP: maior rigor na preparação e maior flexibilidade na execução.

Ao tentarmos juntar todos os argumentos e

peças deste puzzle técnico-legal, deparámo-nos

com uma evidência:

é muito importante que a revisão do CCP

incorpore a figura de Trabalhos de

Adaptação Especiais, para aproximar a nossa legislação às melhores práticas

contratuais de construção de obras

subterrâneas complexas realizadas em circunstâncias previsivelmente incertas, em

particular os túneis.

O puzzle pode ser visualizado na Figura 5. Figura 5 – Puzzle Técnico-Legal da revisão do CCP: Trabalhos

de Adaptação Especiais (TAE) (Diniz Vieira, G., 2015)

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretende-se com este artigo a divulgação dos aspetos contratuais específicos em obras geotécnicas

complexas e a sensibilização dos stakeholders destes grandes projetos de forma a alcançar uma melhor gestão do risco geotécnico e, muito provavelmente, uma maior economia na globalidade destas

obras. As melhores práticas contratuais baseiam-se no pressuposto de que uma alocação equilibrada do

risco geotécnico permite, por um lado, que a construção deste tipo de obras fique tendencialmente mais económica, com valores mais ajustados às condições reais ocorridas durante a escavação e, por outro

lado, que as condições de segurança sejam asseguradas em qualquer circunstância (especialmente

quando ocorram condições de escavação e construção subterrânea mais difíceis do que o previsto).

Assim, o contrato e as suas cláusulas devem clarificar a fronteira entre as obrigações de desempenho

e as especificações técnicas de metodologia de trabalho, de modo a potenciar o equilíbrio entre os

interesses de cada um dos intervenientes e o risco assumido pelos mesmos.

Considera-se que dos elementos de direito comparado acima referenciados resulta um quadro

substancialmente diferente do quadro resultante da lei portuguesa de contratação pública (CCP) tal como

está em vigor desde 2012. Nesses outros ordenamentos, é patente que existe uma maior sintonia entre

as soluções legais e regulamentares e o estado da arte do ponto de vista das boas práticas de projeto e

gestão de obras com características geotécnicas complexas.

De facto, a alteração legislativa que ocorreu em 2012, ao estabelecer uma potencial associação entre obras geotécnicas complexas e trabalhos de suprimento de erros e omissões, contraria as melhores

práticas do sector a nível internacional; não observa algumas outras indicações relevantes do direito

português; e cria um regime que está em desarmonia com as indicações mais relevantes do direito comparado.

A “rigidez contratual” neste tipo de obras geotécnicas complexas e previsivelmente incertas é

desajustada do ponto de vista (geo)técnico e construtivo e está desalinhada com os últimos considerandos das diretivas europeias em matéria de contratos públicos, que pretende uma ”utilização

mais eficiente dos fundos públicos”.

As novas Diretivas Europeias de Contratação Pública reforçam a possibilidade de criação de mecanismos contratuais mais flexíveis durante a execução do contrato, nomeadamente por aplicação das

regras sobre modificação dos contratos durante o seu período de vigência, mais abertos à adaptação às

reais condições encontradas durante a escavação nos casos de obras complexas do ponto de vista geotécnico, eventualmente com base em cenários de projeto.

A existência de contratos colaborativos e equilibrados, rigorosos nos seus pressupostos e ao mesmo

tempo flexíveis na possibilidade de adaptação à realidade encontrada em obra, permite uma melhor repartição do risco geotécnico entre o Dono de Obra, que fica responsável pela prospeção e pelas

condições do terreno, e o Construtor, que receberá pelo que realmente se executou na obra decidido em

sede de Assistência Técnica Especial (ATE). Isto contribui decisivamente para a redução significativa das tensões e de risco assumido por todos os intervenientes na obra, minimiza as disputas e impasses, com

ganhos para todas as partes, conduzindo a uma obra geotécnica segura, com melhor qualidade final e

mais controlada do ponto de vista de custos finais.

Para que tal seja possível, será necessário aproveitar a reforma do Código dos Contratos Públicos para

introduzir algumas alterações, sendo a mais importante a inclusão de um novo tipo de modificação

objetiva ao contrato, denominada de Trabalhos de Adaptação Especiais (TAE) resultantes de modificações de quantidade, tipos de trabalho ou prazo de execução, e que apenas podem ser realizados

em sede de ATE para adaptações do método construtivo decorrentes da existência de condições

geotécnicas diferentes das previstas no cenário base de referência (mais provável) do projeto que foi lançado a concurso.

Aliás, esta proposta vai também ao encontro das preocupações mais recentes do Tribunal de Contas que

no seu primeiro relatório de 2016 (TC, 2016) recomenda a criação de “… exigências e condições acrescidas para um maior rigor dos projetos de obras públicas”, assim como a promoção de “… cuidada

revisão dos projetos… adotando, quando aplicável, o procedimento de revisão de projetos estabelecido no

artigo 43.º, n.º 2, do CCP”.

Por fim, resta dizer que as propostas aqui apresentadas pretendem, acima de tudo, aproximar a

legislação nacional das melhores práticas contratuais, por forma a permitir uma utilização mais

eficiente (best value for money) do dinheiro público na execução destas obras públicas subterrâneas geotecnicamente complexas, em particular os túneis realizados em circunstâncias previsivelmente

incertas. É que, no fundo, para um engenheiro, projetar e construir um túnel é, em todas as situações e

por força das especiais condições que envolvem a construção subterrânea, um trabalho envolto numa

dose elevada de incerteza que, na maior parte das situações, não é tecnicamente ultrapassável – ainda

que a lei possa dizer o contrário (Diniz Vieira, G e Diniz Vieira, J., 2014).

AGRADECIMENTOS

Os autores desejam agradecer a todos os que contribuíram com a sua experiência e dedicação para as propostas aqui apresentadas, em especial aos restantes membros do Grupo de Trabalho N.º2 da CPT,

Frederico Melâneo, Miguel Assis Raimundo e Marco Caldeira.

Um mesmo agradecimento é devido à Comissão Portuguesa de Túneis, na pessoa do seu presidente Professor João Bilé Serra, pela motivação e empenho que sempre transmitiu desde a criação deste grupo

no seio da CPT e por todo o apoio científico e logístico, indispensável ao funcionamento do grupo.

REFERÊNCIAS

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Complexas, Riscos Contratuais e CCP: Como Conviver?, realizado na Ordem dos Engenheiros, Lisboa,

dezembro.

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CPT (2015). Contributos Iniciais para a Revisão do Código dos Contratos Públicos à luz das novas Diretivas Europeias

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https://geogdv.files.wordpress.com/2015/10/cpt_gt2_englaw_doc_rev_ccp_20150530.pdf.

Diniz Vieira, G., Diniz Vieira, J. (2014). Trabalhos adicionais ao contrato no caso de obras complexas do ponto de vista

geotécnico, em especial os túneis. 14º Congresso Nacional de Geotecnia, Covilhã (CD_ROM).

Diniz Vieira, G. (2015). Caracterização do problema: especificidade das obras subterrâneas complexas e falta de

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