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O ESPRITO NO MUNDO

MEDITAES EVANGLICAS

JOS COMBLIN

INTRODUO ..................................................................................................................................................... 2

CAPTULO 1 ........................................................................................................................................................ 4

UM S CORPO E UM ESPIRITO ........................................................................................................................... 4

JESUS E O POVO DE DEUS ............................................................................................................................................. 6 O LANAMENTO DO POVO DE DEUS ............................................................................................................................... 8 AS EXPERINCIAS PAULINAS DO POVO DE DEUS .............................................................................................................. 10 O POVO DE DEUS E OS POVOS DO MUNDO .................................................................................................................... 11 A SABEDORIA DO ESPRITO ......................................................................................................................................... 14

CAPITULO 2 ....................................................................................................................................................... 15

O PENSAMENTO DE CRISTO .............................................................................................................................. 15

O TESTEMUNHO DO ESPRITO ..................................................................................................................................... 15 A PRIMAZIA DE JESUS CRISTO ..................................................................................................................................... 17 OS SEGREDOS DE DEUS ............................................................................................................................................. 19

CAPITULO 3 ....................................................................................................................................................... 20

ELE DAR TESTEMUNHO ................................................................................................................................... 20

JESUS E A FORA DA PALAVRA .................................................................................................................................... 21 O MINISTRIO DO EVANGELHO ................................................................................................................................... 23 A PALAVRA MULTIPLICADA NO POVO ........................................................................................................................... 26

CAPITULO 4 ....................................................................................................................................................... 29

ONDE EST O ESPRITO A EST A LIBERDADE. ................................................................................................. 29

LIBERDADE DA MORTE .............................................................................................................................................. 31 LIBERDADE DO PECADO E DA CARNE ............................................................................................................................ 32 LIBERDADE E CARIDADE ............................................................................................................................................. 36 A LIBERTAO NA HISTRIA ....................................................................................................................................... 38

CAPITULO 5 ....................................................................................................................................................... 41

O PENHOR DO ESPRITO .................................................................................................................................... 41

A VIDA ETERNA ....................................................................................................................................................... 41 O DOM DA VIDA ANTECIPADO .................................................................................................................................... 42 PRESENTE E FUTURO................................................................................................................................................. 44

CAPITULO 6 ....................................................................................................................................................... 49

OS DONS ESPIRITUAIS ....................................................................................................................................... 49

A ORAO ............................................................................................................................................................. 49 OS CARISMAS ......................................................................................................................................................... 50 OS SACRAMENTOS ................................................................................................................................................... 54 O AMOR ................................................................................................................................................................ 57 A FESTA ................................................................................................................................................................. 58 A ARTE .................................................................................................................................................................. 60

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INTRODUO Os evangelistas referem-nos que, at o ltimo minuto, os discpulos de Jesus

permaneciam perplexos e cheios de dvidas: no sabiam compreender porque e para que, afinal de contas, Jesus tinha vindo a este mundo. Perguntavam-se qual o resultado concreto dessa sua visita a este mundo, da sua vida e da sua morte. Estavam desnorteados: aparentemente no havia acontecido nada; o mundo continuava igual; ento, para qu ? Pensavam que no ltimo minuto Ele fosse finalmente desvendar o seu desgnio e o mistrio se revelaria. Se no acontecesse nada no ltimo momento, toda a histria anterior pareceria desembocar em nada. Ento, exatamente no ltimo minuto antes de que Jesus desaparecesse, fizeram essa pergunta : Senhor, agora que pretendes restaurar o reinado de Israel ?(At 1,6). Estavam vibrando, tensos pela expectativa: fazia trs anos que eles esperavam esse minuto.

Possivelmente, se perguntssemos a muitos cristos hoje em dia : afinal de contas, qual foi o resultado concreto da vinda de Jesus a este mundo, muitos ficariam igualmente desnorteados.

Jesus no deixara de falar e explicar que o sentido da sua misso era a vinda do Esprito Santo,mas a resposta parecia no ter significado para os discpulos e no lhe deram ateno. No podiam crer que fosse somente isso. No tinham a experincia do Esprito: esperavam alguma coisa mais espetacular. Contudo,, ltima pergunta dos discpulos Jesus responde de novo : vir o Esprito. Toda a sua vida, morte e misso culminam na chegada do Esprito Santo. O advento do reino de Deus na sua glria fica para uma data ulterior, indeterminada, visivelmente muito remota, e que no deve preocupar. O que deve preocupar e chamar a ateno, essa vinda iminente do Esprito.

Apostamos que para muitos cristos de hoje essa resposta de Jesus deixa um sentimento de frustrao e de certa desiluso assim como aconteceu com os discpulos no dia da ascenso: no realizam o alcance desse dom.

O grande drama da poca moderna foi que muitos homens j no agentaram as promessas da Igreja. Diziam : o que a Igreja no realizou depois de 2000 anos, a cincia vai realizar, a tcnica vai realizar, a democracia vai realizar, o socialismo vai realizar : um mundo fraterno, justo, pacfico, feliz. A promessa de Jesus, ns vamos realiza-la.

Infelizmente a experincia j mostrou suficientemente que tambm essas promessas no foram cumpridas. O bem-estar material da humanidade melhorou muito, mas o mundo ainda injusto, violento, infeliz.

A concluso deve ser que no entendemos bem as promessas de Jesus. O Esprito vem, mas no da maneira como se tinha imaginado. Por sinal n o imaginrio da humanidade o Esprito no representa uma grande fora, e, por isso o advento da cincia, da tecnologia, da democracia prescindiu do Esprito que no podia ajudar em nada.

Com efeito, desde tempos imemoriais na religio popular dos povos catlicos, o papel do Esprito Santo tem sido limitado: reza-se o Veni Creator ou outra invocao ao Esprito Santo para pedir uma iluminao da inteligncia, celebra-se a festa de Pentecostes sem lhe perceber a importncia , e mais nada. Somente a Renovao carismtica restituiu o valor do Esprito Santo para a experincia

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religiosa dos seus membros, mas ela o entende de maneira muito particular que no coincide exatamente com aquilo que est dito no Novo Testamento. Para o conjunto dos fiis, essa renovao carismtica parece ser antes de mais nada uma devoo particular de alguns grupos com sensibilidade religiosa bastante superficial. De qualquer jeito, devotos ou indiferentes interpretam esses dons do Esprito como uma experincia espiritual privada, interior, pessoal.. No percebem o significado desse acontecimento para a marcha do mundo.

Nestas pginas, vamos meditar a mensagem do Novo Testamento sobre o Esprito Santo e a sua misso precisamente na marcha do mundo, no meio das revolues do mundo, como resposta de Deus s aspiraes da humanidade e fio condutor que orienta o povo de Deus na confuso da histria.

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Captulo 1

UM S CORPO E UM ESPIRITO Primeiro que tudo, precisamos fazer um esclarecimento de vocabulrio:

trata-se da palavraesprito. Em portugus, como em todos os idiomas europeus, a palavra esprito sugere imediatamente o contrrio de matria. O fenmeno vem de longe. As nossas palavras so herdeiras das palavras gregas e latinas e seu significado foi forjado pela mentalidade dos gregos e dos romanos. Desde ento as estruturas fundamentais da linguagem europia e, portanto, do pensamento europeu no mudaram. Espontaneamente, o esprito evoca a idia de no-matria, imaterial. E bem sabemos que no pensamento moderno somente vale o material: as realidades que se apresentam como imateriais parecem no ter o mesmo valor de realidade. Imaterial sugere algo etreo, menos real, ou totalmente privado de realidade. Essa estrutura do pensamento moderno desprestigia a palavra esprito. Quando se fala em valores espirituais, todo o mundo imagina que est falando um burgus numa reunio do Rotary ou do Lions Club, depois de uma abundante ceia com bons vinhos e comidas finas: para o povo em geral, valores espirituais equivale a palavras ocas. Com efeito, os discursos dos burgueses ou dos polticos so ocos. Pronunciam muitas palavras para dizer nada

Com certeza, o Esprito Santo sofre um grande desprestgio por causa do seu nome. Infelizmente, no existe outro disponvel em nossa linguagem. Este mais um caso em que aparece claramente que os idiomas europeus, derivados do grego ou do latim, so radicalmente inadequados s realidades crists: no tm palavras para exprimir o pensamento de Jesus Cristo. Jesus sempre falou idiomas semticos: falava aramaico e conhecia a lngua hebraica em que estava escrita a Bblia. Foi um grande problema para os apstolos a traduo da sua`mensagem para o grego e . depois, para o latim: o mesmo problema que temos com a traduo portuguesa que tem a estrutura do grego e do latim. Temos muitas tradues da Bblia em portugus justamente porque nenhuma traduz exatamente o pensamento original e nenhuma o traduzir no futuro, pelo menos nas lnguas europias. Pode ser que rabe seja mais adequado porque pertence mesma famlia da lngua de Jesus.

Tudo isso serve para dizer que o nome no deve enganar quando damos terceira pessoa da Santssima Trindade o nome de Esprito, queremos dizer exatamente o contrrio daquilo que o nome evoca. Conforme as palavras semticas a nossa palavra esprito significa a fora de Deus, uma fora de tempestade, como a fora do vento, a fora do temporal, aquela que se manifestou no dia de Pentecostes. Quando a Bblia diz que o Esprito estava ou desceu na pessoa de Davi, ou de Elias, ou dos profetas, isto significa que a fora de Deus estava neles, que havia neles uma fora inaudita, uma fora nova, que vinha diretamente de Deus, que era a prpria fora de Deus, a fora pela qual Deus tinha feito o mundo.

Ao prometer e anunciar a vinda do Esprito, Jesus abre o caminho para a entrada da fora de Deus: o fora que criou o mundo e volta a esse mundo para refaz-lo, para complet-lo e lev-lo ao seu destino final. Neste captulo queremos

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meditar o fato central, o efeito central da vinda do Esprito: a formao ou a re-formao do povo de Deus. O Esprito faz um povo, aquele povo que fracassou no antigo povo de Israel. Todo o resto da sua atuao no mundo se explica a partir desta finalidade principal.

Na realidade, a misso do Esprito muito diferente da misso de Jesus no sentido de que esta foi muito limitada no tempo, foi uma misso brevssima, e a misso do Esprito Santo se estende ao longo da histria: o Esprito entrou na histria para nunca mais sair dela. Iniciou a histria do povo de Deus e nunca mais desistir de continu-la.

Em verdade, o povo j existia antes de Jesus e Jesus pertencia a ele: foi

criado nos tempos referidos pela Bblia, e o prprio Antigo Testamento a histria do povo nos sculos que precedem a vinda de Jesus. Quando Jesus veio, viu que o seu povo tinha sido desviado e corrompido profundamente: j no era o povo de Deus que devia ser. Veio dar um impulso definitivo para tirar o seu povo dos limites da raa, da cultura e do territrio da Palestina, e para faz-lo alcanar o tamanho do verdadeiro Israel, destinado a envolver todos os povos da terra.

Para que a expresso povo de Deus seja bem entendida, precisamos fazer outra advertncia. Embora o povo de Deus seja o que s. Paulo chama de igreja, isto assemblia no sentido profundo em que ele usa a palavra, no podemos reduzilo quela realidade qual damos o nome de Igreja na linguagem comum. Pois a linguagem comum usa a palavra igreja para designa o sistema institucional dirigido pelos sacerdotes, pelos bispos e pelo Papa. Esta Igreja tem com toda certeza um papel a cumprir dentro do povo de Deus e est chamada a assumir uma funo de mediao a servio do povo de Deus, mas ela permanece ambgua. Este aparelho institucional da Igreja tem a vocao de servir o povo de Deus, ajudando-o na sua promoo na histria, mas por outro lado no deixa de ser traidor a sua vocao, servindo interesses mesquinhos, entre os quais o mais forte a prpria segurana e os meios materiais ou polticos que acha conveniente para garantir essa segurana.

O povo de Deus no pura metfora: um verdadeiro povo. Podemos dizer que o nico verdadeiro povo, embora seja muitas vezes escondido, um povo principiante, um povo de esperana mais do que de presente. Pois os povos atuais das diferentes naes do mundo mal merecem o nome de povo. Pode-se dizer que existe realmente um povo brasileiro ? Povo quer dizer comunidade de seres humanos que tomam conscincia de sua unidade com os seguintes sinais : afirmao de si, organizao, autonomia na ao, direitos e responsabilidades assumidas por todos os membros. Povo o contrrio de massa. Num povo as elites e a multido esto articuladas de modo harmonioso para o bem de todos. Em todos esses sentidos pode-se dizer que existe o povo brasileiro ? Existe, sim, uma aspirao em muita gente para ser um dia um povo. Mas esse povo ainda no existe.

Se examinarmos o que h no fundo da aspirao dos brasileiros para serem realmente povo, veremos que no h nada que o separe dos outros povos. Os povos no aspiram a uma existncia separada, mas o povo verdadeiro deseja a unidade do mundo inteiro, no respeito mtuo das diferenas que no requerem, de modo algum, separao e, menos ainda, rivalidade. O papel dos Estados seria unir uma poro do povo determinada por uma terra com as outras pores para formar um s povo. Um s povo a aspirao de Jesus passando por cima de todas as fronteiras. Na prtica m uitas vezes os Estados fazem o contrrio : separam.

Isto quer dizer que, no fundo da aspirao de todos os povos , h uma aspirao para ser o nico povo de Deus, um e diverso, reunio de todas as culturas

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do mundo. Esse povo de Deus, povo real e verdadeiramente humano, criao do Esprito, obra prpria do Esprito enviado por Jesus e tambm fim da obra de Jesus, j que a sua misso culmina no envio do Esprito. O processo de formao do povo de Deus o fundo do qual brotam todas as aspiraes e os movimentos das multides humanas atualmente divididas em naes para formar povos no sentido autntico da palavra porque todos unidos.

Jesus e o povo de Deus Tudo quanto o Esprito realizar no povo de Deus para desenvolver esse

povo estava prefigurado na ao de Jesus. Pois Jesus delineou claramente pelas obras e pelas palavras o que devia ser esse povo, embora no tenha feito nenhum plano abstrato.

As aes e os discursos de Jesus poucas vezes so dirigidos a pessoas particulares. Jesus habitualmente no fala para pessoas isoladas das outras. O que ele falou na intimidade no foi conservado pela tradio porque no tinha importncia. Pelo contrrio, os evangelistas mostram que Jesus foi uma pessoa pblica, que fala em pblico para o povo. Sua preocupao fundamental no a salvao de almas isoladas e sim o povo de Deus, o verdadeiro povo de Israel.

Melhor dito : Jesus v em torno dele massas abandonadas e sabe que elas so chamadas condio de povo de Deus. A sua inteno fazer delas o verdadeiro povo de Deus.: Ao ver a multido ,ficou profundamente penalizado,porque estava fatigada e estendida por terra como ovelhas que no tm pastor(Mt 9,36).

Jesus tinha conscincia de que era o ltimo na linha dos profetas. A misso dos profetas tinha sido esta: lembrar ao povo de Deus as suas origens, a sua misso e mostrar at que ponto a realidade de Israel estava distante da sua vocao. Ora, Jesus no era um profeta qualquer: no veio somente para denunciar e anunciar, mas para fazer: para promover o advento do povo verdadeiro alm dos limites estreitos da terra de Israel e da Lei de Moiss, e para libert-lo dos obstculos que as elites de Israel tinham colocado no seu caminho.

Para Jesus, o problema do povo de Deus so as barreiras: sacerdotes, doutores, fariseus, todos levantam barreiras e excluem do povo de Deus multides de abandonados no mundo inteiro. Cada categoria invoca pretextos: essa massas abandonadas so pecadores, ignorantes, mal educados, miserveis, rebeldes, pagos, supersticiosos, no observam os preceitos, no oferecem sacrifcios, no so devotos, etc.

Na mente de Jesus, o verdadeiro problema do povo de Deus no consiste em rejeitar e excluir todos esses excludos. Muito pelo contrrio, o problema consiste em abrir as portas a todos aqueles miserveis, at muito alm das fronteiras do Israel histrico. Abrir as portas e convocar a todos: esta a misso de Jesus. Exatamente como na parbola (Lc 14,15-24).

Por isso que Jesus descreveu a sua misso da seguinte maneira: No fui enviado seno as ovelhas perdidas da casa de Israel(Mt 15,24).. Ele prprio mostra aos discpulos uma misso semelhante: Ide s ovelhas perdidas da casa de Israel(Mt 10,6). So todas aquelas que os sacerdotes, os doutores, os poderosos eliminaram dol Israel restringido por eles. As primeiras vtimas so todos os outros povos tratados como pecadores, e excludos.

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Os atos de Jesus manifestam a continuidade com esse propsito. Na realidade os seus atos constituem uma inverso completa dos processos estabelecidos em Israel naquele tempo..Para os sacerdotes, o problema que o povo no comparece como devia no templo, no oferece os sacrifcios devidos. Para os fariseus, o problema que o povo no observa todos os mandamentos, no pratica as obras de piedade e devoo e no tem conduta moral.. Para os ancios das grandes famlias, o problema que o povo perdeu o respeito autoridade. Para os herodianos, o problema que o povo no entende as necessidades polticas e se deixa enganar pelas iluses revolucionrias. E para Jesus, qual o problema? O problema simplesmente que existem sacerdotes, doutores, fariseus, ancios e outras falsas elites que so falsos pastores que afastam o povo em lugar de reuni-lo, que o deixam com fome em lugar de lev-los para a vida, que excluem em lugar de incluir.. Jesus vem para fazer o contrrio dos outros: para desfazer o que fazem os sacerdotes, os doutores e os outros falsos pastores; Jesus vem romper as barreiras, todas essas precaues levantadas por uma falsa prudncia humana, e chamar os pecadores, os rejeitados de toda espcie. Vejamos o que dizem os evangelhos. Tudo o que Jesus faz diz respeito a essa luta contra as elites e a essa aproximao das massas abandonadas que esperam que algum as levante.

Por isso, a atividade de Jesus uma parbola admirvel de toda a histria ulterior do povo de Deus. O povo de Deus vai repetir sem fim os mesmos gestos, as mesmas iniciativas, o mesmo debate entre elites e massas. Sempre a Igreja vai ser movida pelo Esprito para no ceder ao medo e falsa prudncia dos judeus contemporneos de Jesus. Sempre os verdadeiros discpulos vo procurar imitar a Jesus na sua aproximao de tudo aquilo que est perdido. O trabalho do Esprito se acha prefigurado, e tambm inaugurado por esse trabalho de Jesus.

Tal continuidade no surpreende j que Jesus e o povo de Deus receberam o mesmo Esprito. O Esprito quis mostrar em Jesus qual era o seu plano, o seu projeto, a sua obra para orientar os sculos seguintes at o fim da histria.

Como um profeta, como a pessoa em quem culmina toda a histria dos profetas, Jesus recebeu a investidura do Esprito: a fora de Deus estava com ele. S.Lucas mostra essa investidura de Jesus pelo Esprito desde a sua conceio (Lc 1,35). O batismo de Jesus foi como uma renovao da investidura proftica na iminncia do momento em que ele ia comear a sua misso (Lc 3,22). Depois disso cheio do Esprito santo, voltou Jesus do Jordo e foi enviado pelo Esprito ao deserto (Lc 4,1). Depois das tentaes no deserto, regressou Jesus Galilia com o poder do Esprito (Lc 4,15). Entrou na sinagoga de Nazar e leu o texto famoso de Is 61,1-2) tantas vezes lembrado em nossos dias: O Esprito d Senhor est sobre mim porque ele me ungiu para levar a boa nova aos pobres, etc.(Lc, 4,18). Esse texto foi adotado por Jesus como programa: ele se sabia enviado pela fora do Esprito e sabia qual era a direo para a qual o Esprito o enviava. Isaias j havia anunciado tudo.

Contudo, Jesus tinha conscincia dos limites da sua misso. Sendo homem Jesus era limitado no tempo e no espao. Era um ser situado. Estava situado n o povo de Israel to maltratado pelos que deviam ser os seus guias, mas sabia que n o meio do seu Israel, sobretudo nas terras pobres da Galilia estava presente o resto do verdadeiro Israel e com esse resto ia assumir a promessa feita a Abrao. Ele podia dispor de trs anos. Depois dele outros iam continuar a sua misso.

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De certo modo ele ainda pertencia ao Antigo Testamento: sua atividade se

achava delimitada pelo povo do Antigo Testamento. Ele prprio disse aos discpulos: convm a vs que eu v; se no for, no vir a vs o Defensor ( o Esprito); mas se eu for, vo-lo enviarei(J 16,7)

Diante das palavras e dos comportamentos de Jesus, as elites de Israel ficam perplexas e aborrecidas. Tambm as elites de todos os tempos. Elas procuram exegetas e telogos que lhes expliquem que no se deve tomar tudo ao p da letra, que Jesus fala como oriental que sempre exagera na linguagem. Nunca faltaram exegetas e telogos para restaurar a tranquilidade das elites da sociedade e para explicar que no devem levar a srio o que est escrito nos evangelhos. Pois eles sabem melhor o que Jesus quer mesmo. Na realidade, se se tomam literalmente os comportamentos de Jesus, parece que levam a uma utopia total, uma anarquia total.. Ele perdoa tudo, aceita tudo, abre as portas para todos. Os prudentes perguntam-se : O que que vai acontecer agora ? Essas elites podem descansar em paz : porque sempre tero a fora suficiente para crucificar todos os que incomodarem. Alm disso nunca permitiro que os discpulos de Jesus comecem sequer a repetir o que Jesus disse ou fez.. Uma vez pareceu que haveria uma exceo : foi quando Francisco de Assis e os seus companheiros comearam a imitar a vida de Jesus. Logo os prudentes tomaram conta da experincia e os franciscanos deixaram de incomodar. Estudaram a teologia que lhes explicou que Jesus queria dizer o contrrio daquilo que os evangelhos contam. Desde ento a Igreja institucional conseguiu evitar a repetio de tal excesso.

A ao de Jesus ia muito alm de todos os programas de reforma poltica ou social: as revolues polticas e sociais so imediatamente limitadas pelo necessrio realismo dos dirigentes que devem levar em conta as condies reais da humanidade. Jesus lanou um movimento irrealizvel em forma de programa: contudo um movimento que vai fermentar e que ainda no acabou de fermentar e produzir tentativas de encarnar na realidade histrica aquele projeto de povo de Deus.

O lanamento do povo de Deus O livro dos Atos dos Apstolos refere vrios fenmenos de vinda do Esprito.

Contudo, o primeiro deles tem um significado especial e nico. O que aconteceu no dia de Pentecostes foi nico: foi realmente o sinal do incio do novo povo de Deus. Melhor dito: o incio da fase definitiva do povo de Deus. Pois j houvera um primeiro incio no Sinai doze sculos antes.

S.Lucas destaca o significado do acontecimento comparando o dia de Pentecostes com o dia da aliana no Sinai. Naquele dia, o povo de Deus nasceu pelo dom da Lei. A Lei fazia a unidade das tribos de Israel, determinava o seu modo de viver, conclua uma aliana definitiva de tal modo que, graas Lei, o povo de Israel ia viver permanentemente na espera de Deus, e na espera da sua orientao na histria futura.

Na realidade, o que aconteceu foi que o povo de Israel no foi fiel: em lugar de ver na Lei um sinal de fraternidade e de esperana e uma abertura para as promessas de Deus, as elites e os maus pastores desviaram as massas do sentido da sua vocao. Fizeram da Lei uma separao dos outros povos da terra, uma

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defesa das elites contra as massas, um meio para rejeitar os mais fracos, um smbolo de orgulho nacional e no de fraternidade ou solidariedade: enfim, tudo aquilo que os profetas e o prprio Jesus denunciaram.

Mas, agora no dia de Pentecostes, Deus j no intervm dando ou renovando uma Lei. Envia o seu Esprito, a sua fora criadora e renovadora, essa Lei nova no escrita na pedra e sim nos coraes. Doravante a Lei est nos coraes dos homens e deixa de ser uma imposio desde afora. Entre os discpulos reunidos nesse dia no cenculo nasce o verdadeiro e definitivo Israel, destinado a envolver todos os povos da terra. O Esprito j no reservado aos profetas que aparecem de vez em quando. Agora todos so profetas e recebem a palavra de Deus nos seus coraes. Assim o explica Pedro aos cidados que se espantam: Aconteceu o que predisse o profeta Joel: Derramarei meu esprito sobre toda criatura. Vossos filhos e . vossas filhas profetizaro ..(At 2,16-17). Agora no povo todos e todas so profetas. Todos etodas so conduzidos pelo Esprito que a fora de Deus.

Como conseqncia desse lanamento aparece uma nova comunidade, primeiro em Jerusalm, e , depois, em outras cidades Tudo comum entre eles. Reina a fraternidade que o sinal do povo de Deus. J no h sacerdotes, doutores, poderosos, nem distino alguma: todos so irmos e todos participam. Naturalmente bem sabemos que isso foi o lanamento. Depois, reapareceram os mesmos vcios de antes. Mas o movimento tinha sido lanado e o Esprito nunca mais o abandonou Sempre esteve ativo no meio do povo, mesmo quando reapareciam os defeitos que tinham existido no antigo Israel..A histria seguinte vai ser uma luta constante entre uma falsa prudncia humana e o impulso do Esprito. Nunca mais se voltar totalmente ao sistema da casta sacerdotal, da casta dos doutores da Lei, ou do domnio das famlias poderosas. Mas muitas vezes a Igreja ficou bem perto desses desvios No entanto, o povo de Deus nasceu para crescer.

Faltava ainda a integrao efetiva dos pagos, que eram tratados como impuros pelos israelitas. Faltavam os primeiros sinais da supresso definitiva das barreiras entre os dois povos, o santo e o pecador. S.Lucas mostra esse passo em duas fases em que intervieram dois grandes apstolos, Pedro e Paulo.. De certo modo o livro dos Atos dos Apstolos uma apresentao dessas duas fases do grande passo pelo qual o povo de Deus vai adquirindo a sua verdadeira dimenso.

Primeiro teve que agir Pedro. O Esprito obrigou-o a abrir as portas aos pagos no caso do centurio Cornlio (At 10-11). Vendo que o Esprito descia sobre a famlia de Cornlio que era pag, exatamente como descera sobre os discpulos em Jerusalm, Pedro compreendeu que as barreiras estavam destrudas : Poder algum recusar a gua do batismo a esses, que receberam o Esprito Santo da mesma forma como ns?(At 10,47;comp. 10,19.44.45; 11,12.15.16). Pedro convenceu a comunidade de Jerusalm e todos aceitaram o que para eles outrora teria sido uma blasfmia. Eis que Deus concedeu tambm s demais naes a converso que leva para a vida!(At 11,18).

A segunda fase foi presidida por Paulo. O Esprito tomou posse dele em vista dessa misso (At 9,17).Paulo foi o instrumento do Esprito para suscitar comunidades inteiras no meio dos pagos, criando assim, ao lado da comunidade de Jerusalm e das outras comunidades de judeus, novas comunidades cujos membros eram todos alheios ao Israel histrico. Paulo foi chamado pelo Esprito para fazer com que o povo de Deus composto de judeus aceitasse essa entrada dos pagos. Uma vez dado esse passo em poucos anos o povo de Deus foi feito por uma grande maioria de ex-pagos. Como o Imprio romano era feito de uns sessenta povos diferentes, em pouco tempo o povo de Deus adquiriu uma fisionomia bastante universal.

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S.Lucas destaca o momento decisivo na carreira de Paulo. Foi o encontro de Jerusalm, em que os representantes das primeiras comunidades feitas de judeus reconheceram que a misso de Paulo era acertada e que Jesus e o Esprito queriam mesmo suprimir todas as barreiras(At 15,28). Por sinal, s.Lucas mostra como o Esprito conduziu Paulo a cada momento. Os passos dados para chamar os pagos ao povo de Deus foram dados em virtude da autoridade do Esprito que forou o seu apstolo a seguir o itinerrio marcado por ele..

O objeto do livro dos Atos dos apstolos o lanamento ou a fundao do povo de Deus. A continuao desta histria durante 2000 anos no est escrita na terra. Esta escrita nos cus no livro da Vida em que esto escritas as obras de todos os cristos e todos os homens e mulheres de boa vontade que lutaram para que o povo de Deus crescesse e se estendesse ao mundo inteiro.

As experincias paulinas do povo de Deus digno de se notar que o Novo Testamento nos deixou poucas informaes

sobre as primeiras comunidades e as primeiras experincias do povo de Deus entre os judeus convertidos. Pelo contrrio, deu-nos a conhecer amplamente as comunidades criadas por Paulo em terra pag.

S.Paulo percebeu bem depressa que at as Igrejas mais novas dos pases pagos sofreriam a tentao de refazer uma nova Lei e de levantar novas barreiras entre eles os convertidos e os outros no convertidos. Queriam mais segurana para a sua defesa contra o paganismo. Os seres humanos temem a liberdade mais do que tudo. Precisam de normas, regras, sinais, distines e divises, ritos e proibies; precisam de classificaes. A liberdade deixa-os numa sensao de vazio que espanta. Ficam aterrorizados pela idia de que poderiam ter que se encontrar com qualquer tipo de gente, qualquer tipo de conduta ou modo de agir. Ficam aterrorizados pela possibilidade do desconhecido. Querem pode prever de antemo tudo o que pode acontecer. Foi assim que os Glatas restabeleceram bem depressa ritos, observncias e preceitos: desse modo eles podiam incluir e excluir, estabelecer critrios fixos de comportamento. Conhecemos isso. A histria crist est cheia disso e os debates dos nossos dias so novas modalidades desse mesmo problema de fundo. Lembremos os problemas de ttulos eclesisticos, de hbitos dos clrigos ou dos religiosos, de ritos litrgicos fixados at nos mnimos detalhes, todas essas coisas que permitem distinguir entre os observantes, que so os bons, e os no-observantes, que so os maus.Davam um sentido religioso a centenas de observncias que serviam para dar segurana aos observantes e acentuar a separao entre os eleitos e os outros.

S.Paulo lutou contra essa falta de obedincia ao Esprito: Sois to insensatos assim? Comeastes pelo Esprito e agora quereis chegar ao fim pela carne? (Gal 3,3). Ele insiste: preciso escolher: ou Jesus e o Esprito, ou todas essas regras e normas. Pois s.Paulo est consciente do perigo : todas essas regras de falsa prudncia servem para fechar portas e excluir inmeras pessoas do povo de Deus.

Hoje em dia como sempre, h cristos que acham que o grande problema da Igreja consiste em definir sua identidade, determinar mais normas, sinais, frmulas para que se possa imediatamente saber a distino entre um cristo e um no-cristo. Ao mesmo tempo esses cristos ficam preocupados pela falta de converses, falta de recrutamento, pela desistncia de cristos e at de sacerdotes, religiosos,

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religiosas, pela falta de vocaes. Nem percebem a contradio. O problema para s.Paulo e as primeiras comunidades crists no era o recrutamento, as converses, as vocaes. Pelo contrrio, estavam admirados diante da abundncia dos frutos do seu testemunho.

O problema que as Igrejas sempre levantam novas barreiras que expulsam, excluem todos os membros que no se conformam com as regras e normas de prudncia humana inspiradas pela vontade de segurana. O problema no que o mundo no se interessa pela mensagem de Jesus. O problema que a Igreja fecha as portas para muitos que se interessam pelo povo de Deus, e no se interessam pelas normas, regras, ritos e obrigaes.

A segunda experincia de s. Paulo lhe foi inspirada pela comunidade de Corinto. A Paulo viu como uma comunidade nasce de baixo para cima pela fora de Esprito. Ela nasce mais forte quando o Apstolo que a funda, se contenta com anunciar o evangelho, sem pretender organizar, impor normas, introduzir toda um regulamento. A Igreja de Corinto organizou-se a si prpria pela abundncia dos carismas , ou seja, de dons que o Esprito suscitou nela ( 1 Cor 12-14). Esta liberdade trouxe brigas e problemas, mas Paulo achou melhor agentar tudo isso do que impor um sistema de regras que excluem.

No definiu ministrios oficializados porque essa definies destroem a fraternidade. Hoje em dia, essa burocratizao dos ministrios o maior drama da Igreja catlica, um fenmeno que afasta centenas de milhes de catlicos no mundola. No se trata de uma obra de expanso ou de conquista. Em cada regio do mundo, o povo de Deus deve nascer pela oferta dirigida aos mais pobres e humildes: o Esprito suscita neles tudo o que necessrio: no vos falta nenhum dom( 1 Cor 1,7). reconhece o Apstolo.

Essas comunidades no so grupos isolados, fechados em si mesmos. A regra era que houvesse uma igreja em cada cidade. Nessa igreja h muitos grupos que comunicam entre si de tal modo que formam uma s comunidade. Isto quer dizer que todos os grupos sabem que representam a sua cidade, so as primcias da cidade e a sua ambio a animao da cidade toda, j que esta chamada a achar o seu lugar no povo de Deus. Entendemos que, na idia de Paulo, o povo de Deus seria como uma confederao de cidades livres, espalhadas pelo mundo inteiro, cada uma sendo uma parte do povo, cada uma autnoma e mantendo laos de amizade e intercmbio, inclusive de ajuda mtua com as outras, sem que houvesse de dominao de uma sobre outra.

S.Paulo nunca separa os dois plos da ao do Esprito: a formao de inmeras pequenas comunidades e a unificao de todas num s povo. Cada comunidade animada pelo Esprito na medida em que est em comunho com a totalidade do povo. Por si s, ela no seria nada mais do que um grupo cultural. Assim que se constitui um s corpo...num s Esprito(Ef 2,16-18). H um s edifcio um templo santo no Senhor, uma s morada de Deus no Esprito( Ef 2,22; comp. Ef 4,4).

O povo de Deus e os povos do mundo O povo de Deus provoca em ns muitas perguntas que ainda no podiam

estar conscientes nos primeiros tempos. Entre elas, h esta que bsica: qual a relao entre esse povo de Deus e o povo brasileiro ou outros pases do mundo ?

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Embora o problema no estivesse muito claro nos tempos do Novo Testamento, h contudo desde as origens alguns sinais que nos permitem ver que h, a esse respeito, duas opinies e duas tendncias entre os cristos. Podemos dizer que h uma tendncia otimista, a de Lucas e de Paulo, e uma tendncia pessimista, a de Joo. Ambas as tendncias estiveram sempre presentes desde ento, embora em propores diversas, de acordo com as circunstncias sociais e polticas.

Tanto o livro dos Atos como as epstolas paulinas denotam bastante otimismo quanto marcha do povo de Deus. S.Paulo no d a impresso de prever conflitos graves com o Imprio. A idia de uma converso geral, at dos funcionrios do Imprio, no lhe seria alheia. Provavelmente uma falta de perspectiva impediu que pudesse entender que a paz e a tranquilidade da Igreja nos primeiros tempos se devem indiferena do Imprio que ainda no se deu conta da importncia do fenmeno cristo : as comunidades crists ainda eram to insignificantes numericamente que o sistema de vigilncia do Imprio ainda no tinha descoberto a sua existncia.

Por Rom 13,1-7, pode-se ver que S.Paulo tem uma viso otimista do Imprio romano. Confia na sua neutralidade e at na possibilidade de que se preste expanso do povo de Deus. Assim pensaram tambm os apologistas do segundo sculo; nunca faltaram esses otimistas que prepararam a confiana com que muitos bispos e cristos acolheram a mudana de poltica de Constantino. Desde ento, de acordo com as circunstncias, sempre houve tendncias para crer que, sob a cobertura da autoridade poltica, da cultura estabelecida, da sociedade instalada, o povo de Deus iria crescendo. Estavam dispostos a reconhecer na situao estabelecida depois de Constantino uma encarnao do povo de Deus, ou a achar que essa encarnao era provvel.

Nessas condies, h uma aproximao grande entre o povo de Deus e as estruturas sociais em que vivem os seres humanos num momento determinado. Nos tempos da cristandade abertos por Constantino,muitos acharam que o povo de Deus era essa cristandade: j no havia diferena entre os povos reunidos na cristandade e o povo de Deus. Havia-se chegado ao sonho de S.Paulo. Dentro da cristandade os povos do mundo estavam reunidos sob a direo do Esprito.

Infelizmente a cristandade explodiu no desastre da Reforma que mostrou a iluso dessa cristandade. Vieram as monarquias catlicas que foram como reformulaes da cristandade sob a autoridade dos reis. Caram as monarquias catlicas e as revolues geraram um anticlericalismio muito forte. O sonho da cristandade seria pura iluso ? Apesar de tudo, o sonho da cristandade no desaparece. Muitos cristos no podem conformar-se com a ausncia de realizaes concretas de uma sociedade crist.. Esta sociedade seria uma nova fraternidade entre os povos sem dominao imperial, numa verdadeira fraternidade social, poltica e econmica, acima das lutas de classes,de raas ou de naes.

Depois da queda das monarquias, vieram tentativas de realizao de uma igualdade entre povos livres e unidos, que foram formas .secularizadas da cristandade. O que a Igreja no foi capaz de realizar, seria a obra da burguesia liberal :mas esta logo caiu no Imprio francs de Napoleo. Houve a internacional socialista. Mas esta caiu no Imprio russo. Apesar de todas essas tentativas, muitos acham que no podemos desistir e devemos buscar a maneira de formar uma nova sociedade mundial, uma verdadeira democracia mundial, O povo de Deus deveria ser o motor dessa nova humanidade.

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Dentro dessa perspectiva, as denominaes crists que, depois do grande cisma do Ocidente levaram a Igreja para as sacristias e para uma vida puramente interior, representam uma caricatura do povo de Deus. Assim as denominaes crists foram polarizadas pela luta entre elas e se esqueceram da misso principal da Igreja que consiste em anunciar o evangelho ao mundo inteiro. Os cristos no realizam a seu vocao de povo de Deus somente em assemblias de orao. Devem entrar neste mundo e agir nele para ajudar o surgimento do povo de Deus no meio de todas as naes.

No final do primeiro sculo houve as primeiras perseguies oficiais do Imprio contra os cristos. Foram as perseguies de Domiciano. O profeta Joo escreveu o seu Apocalipse onde se enuncia a teoria pessimista das relaes entre a Igreja e os povos da terra..

Joo v o povo de Deus em oposio total com um Imprio que domina todos os povos. O povo de Deus reproduz o destino dos profetas: sendo povo de profetas, ter que sofrer o fim dos profetas que a perseguio e o martrio. Ter o destino do prprio Jesus que foi perseguido e crucificado. O Israel que mata os profetas e o prprio Jesus, a imagem do mundo. Pois, o mundo est dominado por potncias diablicas que submeteram ao seu poder todas as raas, naes, tribos e povos. Os povos da terra esto sob a dominao de Satans que age por meio das duas Bestas e de Babilnia.

Contudo, Joo limita um pouco o seu pessimismo ao anunciar que pela pregao dos profetas uma parte das naes do mundo poder converter-se e passar para o lado de Cristo, formando assim uma nova universalidade dos povos frente outra que dominada pelo Mal absoluto.

Em todo caso para Joo haver sempre uma oposio irredutvel: o mundo est dividido em duas frentes opostas e irreconciliveis e a perseguio o horizonte permanente do povo de Deus.

Nos sculos ulteriores houve perodos de perseguio e perodos em que a perspectiva de perseguio parecia desaparecer. Portanto, a histria do povo de Deus passa de uma conscincia de separao para uma conscincia de identificao com os povos da terra. Muitas vezes a conscincia da Igreja ficou dividida, mas com a predominncia de uma teoria sobre a outra..

Boa parte da experincia histrica parece confirmar a profecia de Joo. Assim foi e ainda na Igreja catlica depois da Revoluo francesa. A conscincia dominante de que os povos sofrem a dominao de poderes que humilham e submetem a humanidade sua prpria grandeza. Os povos so obrigados por poderes militares, polticos, econmicos a edificar o poder de setores privilegiados tratados como smbolos de um Imprio. Os povos sofrem uma alienao .

Para a construo de um verdadeiro povo de Deus na humanidade o primeiro passo seria o reconhecimento dos direitos da pessoa humana, ainda que poucas vezes se consiga isso na histria. Depois deste primeiro passo, viria uma verdadeira participao social, uma sociedade baseada na promoo dos seus membros, Finalmente chegaria a realizao daquilo que proclamava s.Paulo : uma sociedade sem discriminao entre homens e mulheres, ricos e pobres, superiores e inferiores, cultos e incultos, gregos e brbaros. O Esprito est agindo como um fermento para conseguir esse fim.. No existe nenhum lugar do mundo em que se possa dizer que esse povo j existe, mas sempre se renovam tentativas para busca-lo. O Esprito no desanima.

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A sabedoria do Esprito Em todo caso, o caminho para se chegar ao fim desejado, ao verdadeiro

povo de Deus, est claramente indicado no Novo Testamento. Trata-se do caminho de Jesus que se fez pobre e fraco at a morte de cruz, mas nunca descansou, nunca parou multiplicando as denncias, os anncios, as palavras verdadeiras e os sinais realmente significativos que conseguem atrair e convencer. Fez tudo isso fielmente at a morte de cruz. Caminho que s.Paulo chama de loucura e escndalo.

O povo de Deus no se constri de cima para baixo, comeando pelos grandes e pelos poderosos. Esta foi a tentao permanente da Igreja. Dizem: formemos as elites e as elites formaro as massas.. A experincia confirma o que Jesus ensinou : os poderosos querem mais poder e no se importam com o que acontece com as massas. As elites nunca formam as massas, mas fazem delas um instrumento para aumentar o seu poder, colocando os pobres ao seu servio. As elites querem fazer do prprio Jesus um instrumento de dominao. Corrompem tudo e usam as palavras do evangelho para justificar a sua prpria dominao e confundir os pobres.

O povo de Deus comea de baixo para cima. Comea pelos mais fracos e mais pobres, como esperana dos fracos. O que fraco para o mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes; o que vil e desprezvel para o mundo, Deus o escolheu, como tambm aquilo que no nada, para destruir aquilo que .:( 1 Cor 1,27-28). Esta a sabedoria do Esprito, aquela que o Pai revelou aos simples e que os sbios no entendem.

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Capitulo 2

O PENSAMENTO DE CRISTO O povo de Deus tem uma s lei: Jesus Cristo. O seu destino consiste em

prolongar a vida de Jesus nesta terra, fazendo dela a regra e a norma do mundo, encarnando essa vida na histria toda.

primeira vista, tal tarefa pode parecer muito simples. Pois, muito gente acha que no h muita dificuldade em conhecer a Jesus Cristo. Muitos, inclusive, no acharam nela muita coisa interessante como orientao para governar ou organizar o mundo. Mas acontece que no to fcil conhecer a Jesus Cristo no seu significado para os nossos tempos.

Muitos acham que conhecem Jesus porque conhecem o seu nome, ou se lembram de algumas palavras e de algumas aes narradas no evangelho. As iluses so mais graves quando afetam os especialistas. H sacerdotes que acham que conhecem Jesus porque falam dele o dia todo desde o seminrio. H religiosos que acham que o conhecem porque invocam o seu nome sem parar desde o noviciado. H catequistas que acham que o conhecem porque o ensinam h anos. Mas a pergunta : o que que conhecem dele? O que conhecem dele, realmente o que ele ?

Na realidade, o conhecimento de Jesus Cristo pode permanecer na superfcie e no alcanar a realidade. A realidade de Jesus Cristo, o real alcance da sua vida e da sua morte, da sua vinda nesta terra, somente pode ser conhecida pela revelao do Esprito.

A revelao do Esprito no evidentemente uma experincia sensvel: no tem nada que ver com as emoes ou os sentimentos religiosos das pessoas devotas. Estas no ficam comovidas de modo algum por Jesus, mas simplesmente pelos seus prprios sentimentos. As pessoas projetam diante de si um Jesus imaginrio que o reflexo da sua prpria personalidade e se extasiam com maior facilidade quanto mais se encontram a si prprias. Sentem-se felizes porque Jesus lhes diz exatamente o que elas queriam que dissesse. Nada estranho, j que elas prprias lhe atriburam os seus prprios sentimentos.

Quanto ao clero e aos demais profissionais da religio, a preocupao excessiva pela sobrevivncia da sua organizao, por justificar tudo o que faz a Igreja e o que eles prprios fazem, faz com que a realidade da vida de Jesus Cristo fique muito confusa. Jesus utilizado para justificar o que fazem a parquia ou a diocese ou o prprio proco. s vezes acontece que a urgncia pastoral faz com que tudo se atribua a Jesus sem sequer dar-se o trabalho de examinar seriamente se bem assim. Os padres podem facilmente substituir o conhecimento real de Jesus por um conhecimento a partir de noes das suas prprias atividades pastorais.

O testemunho do Esprito Conhecer Jesus Cristo uma operao bem diferente do trabalho histrico.

Bem sabemos que sobre a vida e a morte de Jesus no temos outros documentos que no sejam os evangelhos e o Novo testamento em geral. Fontes judaicas ou

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gregas so praticamente inexistentes. Se existissem documentos escritos por judeus ou romanos desse tempo, seriam inteis. A imagem que dariam de Jesus seria desprovida de significado. No ajudariam a compreender o que ele foi.

Pois, o que queremos conhecer o significado das palavras e dos atos de Jesus para ns agora. A vida de Jesus nos episdios conservados no Novo Testamento tinha uma aplicao imediata para os seus contemporneos, mas tem tambm uma mensagem para todas as geraes. Esse o Jesus que o Esprito revela por intermdio dos escritos do Novo Testamento lidos no contexto atual. Por isso, o Esprito orientou os escritores para que apresentassem da vida de Jesus tudo o que significativo para as geraes futuras. O Esprito orientou a redao dos textos bblicos de tal modo que a sua leitura se tornasse um verdadeiro testemunho e uma orientao para a nossa vida. Devemos ler nos escritos a inteno com a qual foram escritos, isto , a atravs da nossa situao atual. Pode ser que algumas palavras ou alguns atos no tenham valor histrico, mas eles tm valor de revelao. Do a conhecer o que Jesus quis mostrar. Os autores do Novo Testamento no sabiam que haveria muitas leituras no porvir da Igreja, mas o Esprito os orientou de tal modo que narrassem justamente aquilo. No precisamos estar conscientes da ao do Esprito. De fato no um fenmeno consciente

Os evangelhos no so biografias: so testemunhos que apresentam ditos e fatos de Jesus com o seu significado permanente, isto , renovado a cada gerao. O Esprito quis que fossem escritos os testemunhos que Jesus deu de si prprio, mostrando o seu valor em cada gerao . Nesse sentido a compreenso dos evangelhos muda em cada gerao. Nunca se esgota o significado porque nunca para a histria.

Por isso que os evangelhos e demais livros do Novo Testamento so livros do Esprito Santo que o seu principal autor. O Esprito no age como historiador infalvel que poderia garantir a autenticidade histrica dos ditos e fatos. O Esprito revela aos leitores da Bblia o significado que esses escritos tm para a vida deles. Nem os autores humanos podiam imaginar o alcance dos seus escritos para as geraes futuras. Eles escreviam sem saber o que significariam os seus escritos no sculo XXI. Eles pensavam nos seus contemporneos e escreviam como se escrevia naquele tempo. Mas o Esprito estava presente e, por isso, o Novo Testamento ainda permanece to vivo depois de 20 sculos. Ainda o melhor instrumento pelo qual o Esprito nos d a conhecer Jesus.

A primeira grande obra do Esprito foi escrever os evangelhos e demais

livros do Novo Testamento que, alis, so comentrios do evangelho. Com isso, o Esprito colocou Jesus no lugar que lhe convm: lugar de chefe e juiz.

Pois, os evangelhos dirigem e julgam a Igreja. A Igreja no pode de modo algum julgar os evangelhos. Pelo contrrio, os evangelhos so a regra qual a Igreja deve referir-se constantemente. O povo de Deus e a Igreja sofrem todas as corrupes do mundo, as corrupes dos grandes, das ideologias e dos poderes do mundo. Os evangelhos permitem tomar conscincia dos desvios e das traies que se cometem na Igreja, da contaminao por falsas idias e falsos motivos. A presena dos evangelhos na Igreja constitui a presena de um juiz: a presena do livro dos evangelhos no meio da comunidade crist um sinal de vergonha para essa comunidade: o livro denuncia todos os seus pecados, suas traies, sua ignorncia de Jesus.

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verdade que s vezes as comunidades procuram esconder a vergonha: tratam o livro com muita honra, beijam-no, oferecem-lhe incenso com a esperana deque o livro fique calado e no exprima o seu julgamento. Sempre, porm, o Esprito manda algum para lembrar o que o livro denuncia e afirma.

O mesmo Esprito que inspirou a redao do livro, orienta a sua leitura. Os Santos Padres unanimemente reconheceram que somente o Esprito revela o sentido dos evangelhos. Uma leitura puramente indiferente no mostra o alcance real das palavras. Pois o sentido dos evangelhos no consiste naquela interpretao dos fatos e das palavras que teriam podido adquirir testemunhas indiferentes. Nesse sentido, completamente diferente ler um livro de histria e ler os evangelhos. Os evangelhos dizem uma mensagem para ns hoje em dia. Essa mensagem constitui o sentido chamado espiritual dos evangelhos.

Por conseguinte, depois de ter tido o trabalho de escrever o livro, o Esprito est dedicado tarefa permanente de acompanhar a leitura de tal modo que os evangelhos sejam continuamente para o povo de Deus uma fonte de correo, converso e retorno a Jesus Cristo.

A Primazia de Jesus Cristo A misso do Esprito consiste em recordar sempre a primazia de Jesus

Cristo. No imaginemos que a preocupao por Jesus Cristo esteja sempre presente no povo de Deus. Sempre falam dele, mas nem sempre para lhe obedecer. Jesus serve como sinal de identidade: aceitam o nome de cristos que o nome de Jesus Cristo. Mas o nome transforma-se numa bandeira. A pessoa no conhecida.

O grande mistrio no a incredulidade do mundo, mas a incredulidade dos prprios discpulos. Sempre vo atrs de outra coisa. Pem sua esperana em outra coisa que no o Cristo. Assim faziam os Glatas.

Em lugar de Jesus Cristo, ou inclusive usando o nome de Jesus Cristo, colocam um sistema de observncias religiosas, um sistema moral, uma disciplina s vezes um sistema social ou poltico que defendem como se fosse algo indispensvel. Colocam os seus bens como os bens da Igreja, o seu prestigio como o prestigio da Igreja. Tudo aquilo bloqueia a ao e fornece a base de uma prudncia. Ao mesmo tempo, as recomendaes de Jesus aparecem como se fossem imprudentes. Em lugar de Jesus Cristo queremos garantias, segurana, a amizade dos poderosos, ttulos de propriedade, s vezes ttulos de nobreza ou acadmicos, distines sociais. No h tanto tempo que os bispos e os cardeais exigiam ser tratados como prncipes e os sacerdotes como funcionrios do governo. Onde fica Jesus em tudo isso? Um apndice que se venera ou se adora com a condio de que no diga nada e deixe fazer.

Pois bem, o Esprito proclama a primazia de Jesus. O lao entre ambos, Jesus Cristo e o Esprito to forte que Paulo chega a dizer: O Senhor Esprito (2 Cor 3,18). E o ministrio apostlico que consiste em anunciar a exclusividade de Jesus Cristo sem mais nada, chamado ministrio do Esprito (2 Cor 3,8). Eis que vos declaro: ningum, falando sob a ao do Esprito de Deus, diz - Maldito seja Jesus e ningum pode dizer Jesus Senhor seno sob a ao do Esprito (1 Cor, 12,3).

Com essas palavras, Paulo no se refere a meras expresses verbais. Dizer aqui Jesus Senhor diz-lo com autenticidade e compromisso, tom-lo como

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senhor e dono. Ningum pode fazer isso se no for pelo Esprito. Mas verdade que, muitas vezes, achamos que dizemos isso, porque repetimos formulas que pertencem nossa profisso de cristos. Proclamar Jesus Cristo como Senhor to difcil que somente o Esprito capaz de realiz-lo. De outro modo, pronunciamos uma formula convencional e depois seguimos outros senhores que esto mais perto e nos parecem mais seguros. o senhor dinheiro, o senhor propriedade, o senhor boas relaes, o senhor prestigio, o senhor amizade com autoridades, com a polcia, com os poderosos.

Ter a Jesus Cristo como nico senhor somente possvel pela fora do Esprito.

Por outro lado, a prpria compreenso de Jesus no seria possvel sem o Esprito. A compreenso do mundo que mostra Jesus, de tal modo diferente da nossa que no poderamos nem descobri-la, nem reconhec-la se no fosse pelo Esprito Santo. O modo de ser de Jesus uma inverso to radical das nossas escalas de valores que impossvel que se torne jamais o modo de ser constante de uma instituio. Impossvel que uma parquia, uma diocese, uma congregao religiosa, um movimento cristo enxergue de maneira permanente as coisas assim como Jesus as enxerga. A real compreenso de Jesus algo intermitente que o Esprito nos sugere e logra dar a entender em alguns momentos privilegiados da nossa vida.

Jesus sabia que no podia explicar-se aos discpulos durante a sua vida mortal. Para compreender certas coisas, preciso passar por certas experincias. Depois de terem vivido certas experincias, cruciais na sua vida, os apstolos comearam a compreender. As coisas de Jesus no se podem entender por meio de discursos ou raciocnios. O que se explica no discurso, fica na superfcie. A realidade aparece na vida: o Esprito ento vai revelando o que Jesus queria dizer. Quem no vive as suas palavras ou seus atos, no os pode compreender.

Por isso, Jesus o anunciou aos prprios discpulos no ultimo discurso: O Esprito Santo, que o Pai vos h de enviar em meu nome, ele vos ensinar todas as coisas e vos trar memria tudo o que vos disse (Jo 14,26). Neste caso ensinar ou recordar no significa ensinar frmulas: trata-se de ligar as palavras de Jesus a experincias de vida. Nos casos vividos, o Esprito manifestar que aquilo mesmo o que Jesus queria significar. O Esprito mostrar a atualizao das palavras de Jesus em fatos presentes.

Por exemplo, Jesus anunciou a perseguio e a necessidade da cruz. Uma coisa aprender essas coisas atravs de noes tericas. Outra coisa descobri-las na situao prtica da perseguio, no momento da morte, da calunia, das acusaes diante dos tribunais ou da opinio pblica. O Esprito intervm ento para recordar as palavras de Jesus.

O Esprito da verdade, que procede do Pai, ele dar testemunho de mim (Jo 15,26). Trata-se justamente do contexto da perseguio. Ser um tempo terrvel porque os discpulos ficaro assaltados por dvidas e tero a tentao de ceder e buscar uma fuga ou um acordo com os perseguidores; sofrero a tentao da prudncia humana e de inumerveis conselhos de moderao. Ento o Esprito dar testemunho de Jesus: isto quer dizer que o Esprito confirmar nos discpulos a deciso de aceitar a condio de Jesus. O Esprito dar fora para crer no valor da verdade de Jesus e no crer nos argumentos dos prudentes.

Muitas coisas tenho ainda a dizer-vos, que no sois capazes de compreender agora. Quando ele vier, o Esprito da verdade vos conduzir verdade completa. Pois no h de falar por si mesmo, mas dir tudo o que tiver ouvido e vos

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anunciar as coisas futuras. Ele me glorificar porque receber do que meu para vos anunciar (Jo 16,12-14).

Aquilo que o Esprito manifestar assim o destino do povo de Deus no meio do mundo. As foras do mundo impressionam e constituem uma tentao. Mas o Esprito dissipa o medo ou a fascinao do mundo.

Os discpulos no podiam entender em to porque na tinham feito a experincia da perseguio das calunias, das divises, das tentaes de prudncia. Nessa experincia a luz do Esprito lhes far descobrir o que Jesus queria dizer.

Os Segredos de Deus O verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo uma sabedoria nova revelada

pelo Esprito: a sabedoria da cruz, isto , do alcance da cruz. Ela nos permite perceber at onde a cruz se estende na vida e at onde ela marca a ascenso do povo de Deus.

No uma sabedoria deste mundo, nem a dos grandes deste mundo, que sero destrudos. Falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta... Mas nenhum dos grandes deste mundo a conheceu. Pois, se a tivessem conhecido, no teriam crucificado o Senhor da glria... Pois a ns, Deus o revelou pelo Esprito; o Esprito, com efeito, perscruta tudo, at as profundezas de Deus. Pois qual dos homens conhece as coisas do homem seno o esprito do homem que nele est? Assim, tambm os pensamentos de Deus, ningum os conheceu, seno o Esprito de Deus. Ora, ns no recebemos o esprito do mundo, mas o Esprito que vem de Deus, a fim de conhecermos os dons que Deus nos fez (1 Cor 2,7-12).

A sabedoria de Deus a cruz (1 Cor 1,17-25). Para os que se perdem a palavra da cruz loucura; mas para os que se salvam, para ns, poder de Deus (1 Cor 1,18). Os judeus, pois, reclamam sinais e os gregos buscam a sabedoria; ns, porem, anunciamos um Cristo crucificado, escndalo para os judeus e loucura para os no judeus. Mas, para os eleitos, judeus ou gregos, Cristo o poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois a loucura de Deus mais sbia que os homens, e a fraqueza de Deus mais forte que os homens (1 Cor 1,22-25).

A sabedoria da cruz a eleio daquilo que mais fraco, a ausncia de poder, o confronto com o mundo unicamente pela fora da fraqueza, isto , como o veremos agora, pela fora do testemunho, da profecia, do martrio e da palavra.

Tal o conhecimento de Jesus que somente o Esprito Santo podia inculcar. No h outro conhecimento comparvel a este: nenhuma filosofia, nenhuma cincia fornece acesso a ele. Os evangelhos e a Bblia em geral contam essa mensagem em forma de palavras. Mas se as palavras no fossem animadas pela vitalidade do Esprito, afastaramos de ns todos os textos que insinuam a sabedoria da cruz para ficarmos apenas com os textos que nos agradam. Assim faziam os fariseus com a sua Bblia: inconscientemente afastavam de si os textos que no concordavam com a sua prudncia humana. Ningum tem garantia de estar protegido contra tal tentao: o Esprito e a promessa da vinda do Esprito a nossa nica esperana

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Capitulo 3

ELE DAR TESTEMUNHO Acabamos de ver como o Esprito suscita o povo de Deus conformando-o

com o modelo de Jesus. O povo chamado a encarnar o modelo de Jesus no seu destino. O povo de Deus a continuao do modo de ser de Jesus: a mesma sabedoria de Deus fez a vida de Jesus e faz a vida do seu povo.

Vejamos agora os instrumentos do Esprito para realizar a misso que o Pai lhe entregou. Com que instrumento pode contar? Este instrumento nico e muito simples: em si mesmo ele j manifesta que pertence sabedoria da cruz: a palavra.

Com certeza, a palavra o que distingue as pessoas humanas das outras criaturas. A palavra desempenha papeis insubstituveis na convivncia humana. Mas jamais se lhe atribui um papel to importante, aparentemente, fora de proporo com a sua natureza: o papel de criar um povo. Aqui est a loucura de Deus. Como fazer um povo com palavras?

Ora, as mitologias antigas, as filosofias, a histria, as cincias sociais modernas, todas mostram que o que gera povos, naes, imprios, sociedades, a guerra. Somente a guerra, a violncia inteligentemente usada. E a vitria das armas contra os fatores adversos est na raiz de todas as sociedades polticas conhecidas. Por isso mesmo, nas mitologias e nas religies tradicionais, os deuses ou o Deus que preside vida poltico-social um Deus da guerra.

O prestigio da guerra e a convico da sua necessidade para criar paz, ordem, civilizao e desenvolvimento so to fortes que a prpria Igreja crist cedeu inmeras vezes. O Antigo Testamento mostra at que ponto, nas primeiras fases da revelao, os israelitas cederam aos preconceitos comuns: o seu Deus deus dos exrcitos. Ele quem d a vitria na guerra.

A idia de que Deus quem d a vitria na guerra e, portanto, que Deus dirige a historia atravs de guerras, tradicional em toda uma corrente teolgica, desde as origens at os nossos dias. No principal dicionrio de teologia catlica (o Dictionnaire de Thologie Catholique, publicado em Paris) ensina-se que Deus quem d a vitria Diz-se por exemplo, que Deus deu a vitria aos Aliados em 1918, castigando assim a Alemanha. Se fosse assim, Deus estaria sempre ao lado dos vencedores e a fora militar seria a sua caracterstica principal. Os mais fortes militarmente saberiam que Deus est com eles, e os vencidos teriam de converter-se dos seus pecados. Pois a sua derrota seria o sinal de que desagradaram a Deus.

Da os atributos militares tantas vezes dados a Cristo, representado como imperador e rei, e Nossa Senhora representada como general e s vezes com uma espada na cintura (como na Igreja das Mercs, em Quito), ou os Santos armados e revestidos de dignidades militares, como S. Jorge, Santiago, Santo Antonio e outros. Todas essas formas de culto so concesses feitas ao paganismo e traies mensagem da cruz.

Nunca faltaram telogos para corromper a leitura dos evangelhos e apresentar argumentos bblicos para justificar a guerra em nome de Deus como meio de ao de Deus. Na Idade Mdia, durante sculos, citou-se para justificar o recurso da Igreja violncia contra os hereges o texto do evangelista Lucas: disseram-lhe ento: - Senhor, eis aqui duas espadas. Ele lhes respondeu E suficiente (Lc 22,38). Desse texto tiraram argumento para afirmar que o Papa tinha direito s duas

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espadas, isto , aos dois poderes, o poder espiritual e o poder temporal. Somente no exerce o poder temporal por si mesmo, mas entrega-o a leigos. Assim o Papa pode mandar matar: s que no mata por si mesmo. Dessa forma se justificaram as guerras de cruzada contra os hereges e os homicdios da Inquisio!

Contra todas as formas de sacralizao da guerra e da violncia poltica, o Novo Testamento afirma claramente que a nica arma de Jesus e do seu povo a palavra. Vamos aos textos. Pois o Esprito age pela palavra. Se Jesus rei, ele no o maneira deste mundo: no tem tropas, nem armas. O ttulo de rei aplica-se sua pessoa num sentido metafrico. Por outro lado, o ttulo bblico de profeta lhe convm perfeitamente. O Esprito nunca est vinculado violncia. O Esprito est sempre relacionado palavra.

Jesus e a Fora da Palavra Jesus no tem outra arma a no ser a arma dos profetas. Pode aplicar-se a

si mesmo que dizia Isaas: Ele fez da minha boca uma espada afiada (Is 49,2). E Deus disse a Isaas: Vai falar a esse povo! (Is 6,9). Deus tinha dito a Jeremias: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca (Jr 1,6). Isso vale para Jesus com muito mais razo.

J vimos que o batismo de Jesus teve valor de investidura proftica. Ora, a palavra dos profetas tinha dois objetivos: denunciar o mal do povo lembrando-lhe as origens e a vocao e anunciar uma nova aliana, uma renovao da vocao no futuro. No caso de Jesus, a misso proftica recebe um novo objetivo que ficar mais claro ainda no tempo dos apstolos. Por isso Jesus escolhe para se apresentar o texto de Is 61,1-2: O Esprito do Senhor est sobre mim... para levar a boa-nova aos pobres.

O Esprito fez os profetas e deu-lhes as palavras de Deus. No caso de Jesus, o Esprito pe em sua boca as palavras que no somente denunciam ou anunciam de longe; so palavras que mostram a presena, anunciam a realizao das promessas; so palavras de boa nova, de evangelho. O Esprito faz o evangelizador.

O Evangelho de Joo o que desenvolve o tema do Esprito evangelizador que reveste Jesus e faz dele o evangelizador total e definitivo, o evangelizador permanente. O quarto evangelho mostra a presena da palavra que envolve a pessoa de Jesus.

Para Joo, a palavra de tal modo uma dimenso de Jesus que se torna o nome dEle. Jesus chamado a palavra. Ele o enviado do Pai com a misso de pronunciar a palavra. O seu papel no mundo no outra coisa a no ser o papel da palavra: pronunciar a palavra do Pai.

Na teologia de Joo a palavra envolve mais do que a vida terrestre de Jesus. Ser palavra do Pai o papel permanente de Jesus, no somente no decorrer de sua misso terrestre, mas tambm e, sobretudo depois desta, no confronto total com o mundo que se estende durante toda a histria e culmina no juzo final. Jesus aquele que monta o cavalo branco, aquele cujo nome palavra de Deus. Da sua boca sai uma espada de dois gumes, para com ela ferir as naes (Ap 19,11-16). A sua nica arma a palavra.

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A palavra de Jesus forte porque convence : cria discpulos que prolongam a sua obra tambm com a nica arma da palavra.

O povo de Deus transforma-se no agente executivo e portador dessa palavra. H, porm, uma relao entre as palavras de Jesus na terra, e essa palavra que governa o mundo e leva at o triunfo final o povo de Deus. A palavra que Jesus pronuncia na terra j contm a semente da palavra que julga o mundo. A palavra do evangelho contm a promessa de vitria e vida. A sua fraqueza presente, que a expe a todas as perseguies, no deve nem enganar, nem desanimar: as palavras de Jesus tm fora.

O Esprito quem faz de Jesus um profeta armado com a armadura da palavra de Deus. Os exegetas mostraram que todos os smbolos evocados por Joo na descrio do batismo de Jesus e na atuao de Joo Batista se referem aos textos de vocao e investidura dos profetas no Antigo Testamento. O Batista deu o testemunho: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Esprito, esse quem deve batizar com o Esprito Santo. Assim Joo Batista explica o que lhe explicou a voz que lhe ordenara batizar na gua.

No dia dos Tabernculos, grande festa no templo e Jerusalm, Jesus estava no templo com os seus discpulos. E anunciou-lhes o dia em que lhes enviaria o Esprito: o Esprito faria das suas palavras torrente de gua viva. Jesus diz de si mesmo: Correro do seu seio rios de gua viva. Disse isto, referindo-se ao Esprito que haviam de receber os que acreditassem nele (Jo 7,38-39). Esses rios de gua viva so as palavras de Jesus com toda a fora do Esprito, palavras que trazem vida.

No dilogo com Nicodemos, Jesus proclama a necessidade de nascer de novo: a converso exigida to radical que equivale a um novo nascimento, sobretudo para um homem como esse doutor, habituado por toda a sua formao a confiar na sua prpria sabedoria: a mudana de mentalidade h de ser completa. Se algum no nascer da gua e do Esprito, no poder entrar no reino de Deus. O que nasce da carne, carne; o que nasce do Esprito esprito (Jo 3,5-6). Ora, o nascimento novo do Esprito se faz pela palavra: quem recebe as palavras de Jesus nasce de novo. A vida nova consiste em viver as palavras.

mulher Samaritana Jesus promete uma gua viva: essa gua so as palavras que procedem dele (4,10). Essas palavras vo revestidas com a fora do Esprito. Pouco depois, Jesus anuncia-lhe o novo culto, no em Jerusalm, mas em esprito e verdade: esse culto a prpria palavra de Jesus. O culto que agrada a Deus a escuta da palavra que Ele enviou e que atua pelo Esprito. A acolhida ao Esprito que se comunica pela palavra, esse o culto verdadeiro que conduz vida (Jo 4,23s).

Jesus condensa essa mensagem em duas frmulas breves: O Esprito que vivifica; a carne de nada serve. As palavras que eu vos tenho dito so esprito e vida (Jo 6,63). Aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus que lhe d o Esprito sem medida (Jo 3,34).

Nos ltimos tempos da sua vida terrestre, houve vrios sinais desse dom do Esprito vinculado s palavras, dom que procederia de Jesus. Os Santos Padres viram aluses ao Esprito em dois sinais no momento da morte. Jesus exclamou: Tudo est consumado! E, inclinando a cabea entregou o esprito (Jo 19,30). No seria aluso ao Esprito que Jesus havia de entregar s pessoas humanas?

Depois disso, um soldado lhe transpassou o lado com a lana e no mesmo instante saiu sangue e gua (19,34). Muitos vem a uma aluso ao Esprito.

Aps a ressurreio, Jesus apareceu aos discpulos e disse-lhes: A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim eu vos envio. Aps estas palavras,

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soprou sobre eles e lhes disse: Recebei o Esprito Santo (Jo 20,21-22). O envio de Jesus foi para pronunciar as palavras; o envio dos apstolos no ter outro objetivo. O Esprito dado para pronunciar as palavras de Deus, as palavras do evangelho, e estas palavras contm a vida; pois elas so remisso dos pecados, tm o poder de libertar as criaturas humanas dos seus pecados.

Antes da ressurreio, Jesus era portador das palavras de Deus e era conduzido pelo Esprito. Diferente dos profetas, seus antecessores, Jesus tinha consigo o Esprito, de tal modo que seus atos j mostravam o poder do Esprito.

Contudo, aps a ressurreio, houve uma transformao: Jesus tomou a iniciativa. Realizou-se ento o que anunciara no dia dos Tabernculos: ele prprio enviou o Esprito. Pois ele se identificou ento na sua totalidade com a plenitude da palavra do Pai. Jesus assumiu o Esprito em plenitude.

Paulo expressa essa transformao ao apresentar o Cristo ressuscitado como diferente do Cristo terrestre: esse era o Cristo segundo a carne; aquele, o Cristo segundo Esprito (Rm 1,3-4). No se deve exagerar a oposio; pois os evangelhos mostram que, j antes, Jesus agia com o Esprito, ainda que no com a mesma plenitude.

Em todo caso, Jesus aparece na linha dos profetas. O seu messianismo e a sua dignidade de rei entram na histria sob a forma do profetismo: o instrumento pelo qual forma o seu reino a sua palavra, aquela palavras de Deus qual est ligada a prpria fora de Deus, o seu Esprito.

O prprio Jesus salientou a total liberdade do Esprito que sopra onde quer. Nada limita o seu poder. Pode estar presente e agir em qualquer lugar e no depende de ningum. Tal liberdade, porm, no impede que o Esprito use instrumentos humanos. Na realidade, Jesus reuniu os apstolos e o Esprito revestiu-os de uma misso.

A misso dos Apstolos a continuao da misso de Jesus no sentido de que ela tambm pertence ordem do profetismo. O servio ou ministrio dos Apstolos tambm ministrio da palavra. Vejamos esse ministrio.

O Ministrio do Evangelho

Com razo toda a tradio crist salienta a misso apostlica de Paulo: ningum representa melhor o papel do evangelista. Por isso mesmo, ningum melhor do que Paulo podia expressar o que a realidade da evangelizao e do evangelizador.

A misso do apostolo evangelizar, pronunciar o evangelho, a boa-nova: a misso que Deus me confiou junto de vs: dar pleno cumprimento palavra de Deus (Cl 1,25). O servio da palavra; eis a sua vocao! O anncio do evangelho, a propagao do evangelho (Fp 1,5), a consolidao do evangelho (Fp 1,7), essas so as tarefas dos apstolos.

Qual o evangelho? O mistrio de Deus, isto , a vocao de todos os homens. Este o mistrio que no foi manifestado aos homens das geraes passadas, como acaba de ser revelado pelo Esprito aos seus santos apstolos e profetas: as naes so admitidas mesma herana, membros do mesmo corpo, beneficirios da mesma promessa em Cristo Jesus, pelo evangelho. E desse evangelho fui feito ministro, por dom da graa de Deus eu me foi conferida pela fora do seu poder... (Ef 3,5-7).

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O ministrio do evangelho fica na linha do ministrio proftico: por isso Paulo assimila a sua prpria vocao a uma vocao proftica (Gl 1,15-16). Em ambos casos, trata-se de um ministrio da palavra. H porem uma diferena: o profeta anunciava promessas, o apstolo anuncia uma realidade que se tornou presente.

H tambm outra diferena mais profunda. Os profetas do Antigo Testamento tinham a promessa de uma aliana nova e de uma lei nova, mas ainda estavam ligados lei antiga de Moiss. O evangelho, porm, no est ligado a lei nenhuma. O evangelho do Esprito e inaugura ouro tipo de relacionamento com Deus, outra aliana entre Deus e as criaturas humanas, outro tipo de religio, de moral, de culto, de povo e de civilizao. O Esprito renova tudo.

Convm insistirmos na considerao do ministrio espiritual da palavra. A palavra do Esprito no semelhante s palavras anteriores. Paulo distingue claramente, chegando at a opor as duas realidades.

A misso do evangelizador completamente diferente da misso do doutor da lei na sinagoga. O doutor da lei toma um texto, o texto do Antigo Testamento e explica o texto com a finalidade de inculc-lo na memria e na mente dos ouvintes. Faz o que, infelizmente, ainda fazem muitos catequistas e pregadores. O doutor da lei ensina uma doutrina: ensina o texto como uma histria que preciso aprender, e dogmas de f que preciso aceitar. Alm disso, o doutor da lei ensina preceitos e mandamentos, ensina o que o judeu obrigado a fazer. Finalmente, ensina e explica os ritos seja no templo, seja na sinagoga. Em resumo, o doutor da lei procura submeter os alunos a um sistema religioso completo; procura obrig-los a aceitar verdades tericas, preceitos prticos e cerimnias para participarem juntos da mesma mentalidade nos mesmos gestos. O doutor da lei transmite assim s novas geraes a herana cultural e religiosa das geraes anteriores. Est persuadido de que esse sistema necessrio para manter a unidade e a continuidade do povo. Inclusive est convencido de que, ao fazer assim, agrada a Deus e faz plenamente a vontade de Deus. O prprio Moiss, afinal de contas, no fez outra coisa: ele tambm foi ministro a lei e ensinou aos israelitas uma coleo de dogmas, mandamentos e ritos litrgicos, um sistema completo chamado a lei.

Tudo aquilo, para Paulo, o ministrio da letra. Moiss foi um ministro da letra (2 Cor 3,6-11). A letra quer dizer uma palavra morta, sem vida, sem fora. Por isso, Paulo o chama de ministrio da morte (2 Cor 3,7). Pois esse ministrio no procede do Esprito, nem leva vida.

Sem duvida, Paulo no nega todo o valor a esse ministrio do Antigo Testamento. Foi uma preparao, uma pedagogia. Assim tambm as metodologias quase rabnicas ou sinagogais usadas nas igrejas crists tem o seu valor. Podem constituir uma preparao, desde que a preparao desemboque, finalmente, na plenitude do evangelho do Esprito. Pois a experincia mostra e continua mostrando que a letra ambgua: assim foram preparados os discpulos de Jesus, mas tambm os inimigos de Jesus. De todos os que estudaram com pacincia durante anos a letra da Biblia, um punhado seguiu finalmente Jesus, mas a imensa maioria achou na letra um obstculo para deixar de segui-lo: acharam na sua religio de letra argumentos e motivaes para rejeitar o evangelho de Jesus. No foi somente naquele tempo: o mesmo fenmeno pode observar-se em todos os tempos.

O ministrio da letra uma imposio, uma forma de dominao das almas. Por isso, a letra se chama: a lei. Ainda que leis sejam inevitveis neste mundo atual, e boas e teis para manter a ordem, contudo a lei no d vida. No h lei nenhuma que possa dar esperana, f, vitalidade, confiana em si, e muito menos um real conhecimento da verdade sobre Deus.

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O ministrio do Esprito manifestou-se no evangelho de Paulo, tanto nas palavras que pronunciou como no seu modo de falar, tanto no contedo central da mensagem como no contexto em que essa mensagem chega aos ouvintes. O evangelho de Paulo no prope imposies, nem mandamentos, nem cerimnias: um evangelho que abre as portas s pessoas marginalizadas, uma mensagem que anuncia aos que estavam fora e se sentiam rejeitados, que esto salvos. No anuncia o que preciso fazer para se salvar: anuncia que esto salvos, que Jesus resolveu tudo. O ministrio da letra anunciava uma srie de obrigaes para que o israelita se salvasse. O ministrio do Esprito anuncia que Jesus j o salvou: que pode entrar e alegrar-se e confiar. Trata-se de uma mensagem de confiana.

Como era de se esperar, tal mensagem no foi bem recebida pelas pessoas que faziam esforos imensos para salvar-se: estas se sentiram como os operrios da parbola que trabalharam o dia inteiro para, no fim, ficar sabendo que os ltimos que trabalharam apenas uma hora receberiam o mesmo salrio. Contudo, esse o evangelho. Entende-se porque o evangelho foi bem recebido pelos pecadores, pelos pagos, pelos ignorantes, por todos os desprezados, e rejeitado pelos fiis observantes da religio judaica.

Esse o ministrio do Esprito (2 Cor 3,8). O ministrio da letra comenta o que est escrito nas tbuas de pedra de Moiss: uma palavra escrita na pedra. Mas o ministrio do Esprito comenta e anuncia aquilo que o Esprito escreveu no corao dos discpulos (2Cor 3,3). A palavra do Esprito est escrita no com caracteres materiais na pedra: est escrita na transformao maravilhosa dos coraes das comunidades nascidas pela evangelizao.

Para um doutor da lei, semelhante ministrio pura loucura, escndalo, anarquia e desordem. Seria o caminho aberto para a libertinagem e o pecado. Por isso, tantas vezes as razes da prudncia humana levam-nos a voltar a uma catequese e a uma pregao do tipo do ministrio da letra. Em lugar de abrir caminhos para a esperana e a confiana, em lugar de anunciar um Pai de perdo e ressurreio, achamos mais prudente ensinar um Senhor severo e exigente e contar com o temor e o respeito s autoridades.

Apesar de todas as objees, a experincias mostra que o ministrio do Esprito o nico que procede de Jesus Cristo. Em nossos dias podemos experiment-lo principalmente nas comunidades novas que nascem entre os pobres do campo e das periferias urbanas. A comunidade surge como resposta a um evangelho de libertao. Uma vez que se anuncia que no necessrio adotar o estilo das parquias, passar pela humilhao imposta pelos paroquianos mais cultos ou mais ricos, freqentar os lugares de culto tradicional, submeter-se passivamente palavra catedrtica do sacerdote. Uma vez que numa populao abandonada ressoa o anncio do Pai dos pobres, do Libertador dos humilhados, o apelo para formarem eles prprios a sua comunidade e terem seus responsveis, o Esprito trabalha. O Esprito escreve nos coraes. Os pecadores tornam-se santos, generosos, dedicados, sacrificados. Os covardes tornam-se valentes. Os desesperados e resignados da vida nascem para a esperana. Os desanimados comeam a trabalhar. O evangelho aquela palavra que desperta a vida, estimulando a confiana e a audcia.

A partir de tal experincia que se pode compreender qual a fora do Esprito: aquela fora que se revela no evangelho para suscitar comunidades. Por isso mesmo que Paulo se nega a combater com as armas da carne (2Cor 3,4). No quer invocar nem argumentos de autoridade, nem usar o prestgio, a capacidade de presso que tem para influir nas igrejas. Pretende apoiar-se unicamente naquela

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fora do Esprito que tem a palavra do evangelho, lembrar insistentemente o evangelho e cit-lo sempre como motor permanente da vida nova.

To convencido estava Paulo da fora do evangelho! Tinha visto em todos os cantos esse poder do evangelho pela fora do Esprito (Rm 15,13-19). Minha palavra e pregao no consistiram em discursos persuasivos de sabedoria, mas em demonstrao do Esprito e do poder divino, para que a vossa f no se apoiasse na sabedoria das criaturas humanas, mas no poder de Deus (1 Cor 2,4-5).

Na fora do evangelho revela-se um alcance desconhecido e novo da palavra. A palavra que faz a diferena entre o ser humano e os demais seres vivos: o ser humano um ser vivo que fala. Pelas palavras o homem distingue as coisas e estabelece relaes entre elas, e, desse modo,, edifica pouco a pouco uma cincia que chega a ser funcional e operativa servindo para agir, para usar as coisas de acordo com as suas finalidades definidas, elas tambm por palavras. Pelas palavras, a pessoa chega a criar ordem nas suas relaes com os demais homens. As palavras sustentam as sociedades. As palavras so necessrias tambm para mudar as sociedades. Pelas palavras a pessoa pode influir nas outras pessoas, colaborar com elas para produzir efeitos novos. Mas nenhuma outra palavra receber a fora e o alcance do Evangelho.

O evangelho vai buscar a criatura humana no mago do seu ser, onde se decide pela confiana na vida ou pelo ceticismo geral, pela busca de algo superior, ou pela resignao, pela busca de si mesmo ou pela busca de algo mais. O evangelho a palavra que vai buscar a criatura humana no fundo do seu desnimo e da sua incredulidade, para lan-lo na obra da construo do povo de Deus No o faz apelando para a vingana, ou o desespero, ou a iluso da sua prpria fora, ou a iluso de um messianismo, mas somente apelando para a confiana na libertao desencadeada pela palavra de Jesus Cristo, confiana no ser humano restaurado pelo Esprito. O evangelho dirige-se em primeiro lugar aos que mais desconfiavam, aos que no contavam com nada, que se sentiam mais fracos: entre eles que a sua fora aparece com mais esplendor.

A Palavra multiplicada no Povo

No Antigo Testamento, a palavra do Esprito era reservada a algumas personalidades que apareciam de vez em quando, uma ou duas em cada sculo, em mdia. Com o advento de Jesus Cristo, de repente produz-se uma avalancha de Esprito. A palavra era muito limitada, mas eis que comea a multiplicar-se cada vez mais.

Entre todos os portadores da palavra do Esprito os apstolos ocupam um lugar eminente. Bem depressa, uma categoria destacar-se- na Igreja primitiva: alguns tm um dom extraordinrio para evangelizadores. No so somente os Doze escolhidos por Jesus. H outros com eles, tais como Paulo e Barnab e outros citados no Novo Testamento e certamente outros que no so citados. Esse o dom supremo, de acordo com Paulo, o primeiro carisma. Todos os discpulos, todos os cristos so evangelizadores: mas alguns tm um dom to extraordinrio que devem reservar toda a sua vida para esse ministrio do Esprito. So os que, como Paulo, so fundadores de comunidades, semeadores de comunidades. So portadores de toda a fora da palavra. No so nem doutores, nem cultos, nem eloqentes: tm o dom de transmitir exatamente o evangelho de Jesus Cristo.

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Tais evangelizadores existem em todos os tempos. H tambm dons semelhantes em nossos dias. No so necessariamente sacerdotes, nem religiosos, nem necessariamente formados, diplomados que recebem esse dom; so pessoas simples, mas com uma fora extraordinria.

Contudo, a grande novidade de Jesus Cristo que o Esprito est percorrendo o mundo inteiro e que cada discpulo novo se torna virtualmente um profeta e um evangelizador. A vocao no limitada por considerao nenhuma, j que no se requer nenhuma condio de raa, sexo, idade, cultura, formao: muitas vezes, os mais preparados so tambm os que tm mais vergonha e no se atrevem a pronunciar palavra nenhuma.

O livro dos Atos dos Apstolos mostra no inicio do povo de Deus essa efuso do Esprito sobre todos. E acrescenta o discurso de Pedro que revela o alcance do acontecimento: nasceu um povo de profetas! Todos vo poder pronunciar as palavras do Esprito. Todos vo poder ser colaboradores do Esprito: Sobre meus servidores e servidoras derramarei meu esprito e eles profetizaro (At 2,18)

As epstolas paulinas mostram a realizao concreta de Pentecostes. Entre todas as igrejas paulinas, a mais representativa a de Corinto. Na Igreja de Corinto houve essa exploso de dons: todos recebem um dom; todos so portadores da fora do Esprito; todos tm alguma palavra para pronunciar, alguns em discursos, outros em sinais, mas todos so realmente profetas.

Vrios so os dons espirituais, mas o mesmo Esprito; vrios so os ministrios, mas o mesmo Senhor; vrias so as obras, mas o mesmo Deus que opera em todos. A cada um dada a manifestao do Esprito em vista da utilidade. A um dada pelo Esprito uma palavra de sabedoria; a outro uma palavra de cincia, segundo o mesmo Esprito; a outro a f, no mesmo Esprito; a outro o dom de curar, neste nico Esprito; a outro o poder de operar milagres; a outro a profecia; a outro a diversidade de lnguas; a outro o discernimento dos espritos; a outro o dom de interpret-las. Mas tudo isso o nico e o mesmo Esprito que opera, que distribui em particular a cada um como quer (1 Cor 12,4-11).

O mais notvel que todos receberam um dom. Infelizmente, nem sempre em todas as comunidades houve tantas manifestaes. Ns temos, antes, a impresso de que tais comunidades so excepcionais. Contudo, potencialmente todas so chamadas. Os obstculos procedem do temor, da prudncia que fazem com que prefiramos comunidades mais sossegadas em que no acontece nada. Preferimos praticar os mtodos dos doutores da lei e como eles ensinar dogmas, mandamentos e cerimnias em lugar de suscitar dons espirituais.

Parece que os Corntios davam grande valor ao dom de lnguas, que para eles devia parecer mais extraordinrio. Esse dom ressuscitou em nossos dias no movimento pentecostal, depois de dezenove sculos de ausncia. O que nos interessa, que Paulo, embora tenha sido favorecido tambm ele com esse dom, no o colocava em primeiro lugar, mas em ltimo lugar. Aos Corntios mostra, pelo contrrio, a superioridade do dom de profecia. E o mais interessante de tudo o motivo que ele d.

O dom da profecia tomado aqui num sentido mais especfico do que nas referencias aos profetas do Antigo Testamento. Trata-se aqui de uma profecia dentro da comunidade, uma maneira de falar dentro da comunidade. As epstolas aos Corntios no nos fornecem muitas explicaes, mas, pelo que diz o apostolo, trata-se de um dom que consiste em edificar a comunidade. Edificar quer dizer construir, formar, desenvolver. A profecia situa-se, portanto, na continuidade do dom de

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evangelizao: o evangelho cria e funda a comunidade; a profecia constri sobre os fundamentos. a mesma palavra, mas adaptada a novas circunstancias.

As cartas do Apocalipse de Joo fornecem exemplos da atuao dos profetas. Os profetas lembram o evangelho em comum idades qu