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2020 5 a edição revista atualizada ampliada Cristiano Chaves de Farias Felipe Braga Netto Nelson Rosenvald Manual de Direito Civil

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2020

5a edição

revista atualizada ampliada

Cristiano Chaves de FariasFelipe Braga NettoNelson Rosenvald

Manual de

Direito Civil

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1CONTEXTUALIZANDO

O NOVO DIREITO CIVIL

“A criação é um meio melhor de autoexpressão do que a posse; é através do criar, e não do ter, que a vida se revela”.

Vida Dutton Scudder (The life of the spirit in the modern english

poets)

1. DIREITO CIVIL: ORIGENS E FUNÇÕESCONTEMPORÂNEAS

Seria exagero falar em novo direito civil? Será que o direito civil não se renova sempre, a cada geração, a cada passo do caminhar histórico? Sim e não. Há, naturalmente, a cada geração, mu-danças legislativas, mudanças nesse ou naquele entendimento jurisprudencial. Isso é algo natural, esperado. Porém os nossos dias testemunham algo (muito) maior, algo – com o perdão da palavra gasta – revolucionário. O direito civil do século XXI é fundamentalmente distinto daquele que vigorou durante boa parte dos séculos passados. É um direito civil que consagra um sistema aberto, dinâmico, fortemente influenciado por princípios normativos e com particular cuidado com as di-mensões existenciais do ser humano. Promove um diálogo entre as conquistas conceituais da tradição e as espantosas mudanças dos nossos dias. É clar-amente um edifício em construção.

Convém esclarecer algo desde já. Este primeiro capítulo é introdutório. Nele não tratamos, ainda, da Parte Geral do Código Civil (pessoas, bens, atos ilícitos etc.). Nem da Lei de Introdução às Normas

do Direito Brasileiro, que veremos no capítulo seguinte. É fundamental, antes disso, em tópicos breves, contextualizar o sentido das mudanças que vêm atingindo o direito civil. Não faria sentido repetir, com novo verniz, velhas lições. É essencial verificar o sentido das mudanças, é preciso fazer a pergunta: para aonde estamos indo?

O direito civil participa da vida e da cultura dos povos – e em boa medida as reflete. É uma expressão cultural poderosa, forjada ao longo de muitos séculos, alternando períodos de maior empirismo com períodos de grandes construções conceituais (não esqueçamos que o próprio direito romano era fundamentalmente prático. Talvez esse, aliás, seja um dos seus trunfos, uma das causas de sua longevidade)1.

Trata-se de construção não só normativa, mas também histórico-cultural. O direito civil é obra coletiva dos séculos. Nasceu da sabedoria empírica

1 Mary Beard – professora de Cambridge e respeitada escritora – dest-aca: “Roma Antiga é importante. Ignorar os romanos é não apenas fechar os olhos para o passado distante. Roma ainda nos ajuda a definir o modo como entendemos nosso mundo e pensamos a respeito de nós mesmos, e isso abrange da alta cultura à comédia barata. Após 2 mil anos, ela continua na base do pensamento e da política ocidental, daquilo que escrevemos e do modo como vemos o mundo e nosso lugar nele. No entanto, a história da Roma Antiga mudou radicalmente ao longo dos últimos cinquenta anos. Isso sedeve em parte às novas maneiras de interpretar os dados antigos,e aos diferentes questionamentos que escolhemos fazer. É um mito perigoso achar que somos historiadores melhores do que aquelesque nos precederam. Não somos. Mas chegamos à história romana com outras prioridades – desde identidade de gênero a suprimento de comida – que fazem o passado antigo falar conosco num novoidioma. A história de Roma está sempre sendo reescrita, e semprefoi; em certos aspectos, sabemos mais sobre a Roma Antiga do que os próprios romanos. A história romana, em outras palavras, é umaobra em progresso” (BEARD, Mary. SPQR. Tradução. Luis Reyes. SãoPaulo: Planeta, 2017, p. 17-19).

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MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto

dos romanos2 e ao longo dos séculos ganhou em abstração e conceitualismo – atingindo um refina-mento admirável com os pandectistas (estes, em notável trabalho analítico, construíram um modelo que por muito tempo pareceu definitivo). Mas a historicidade das categorias jurídicas mostra, hoje, com muita clareza, que não existem modelos eternos. Como diz o poeta, “o pra sempre, sempre acaba”. As estruturas e funções do direito civil mudaram bastante nas últimas décadas. Passamos de um regramento mais engessado e previsível para a aceitação, cada vez maior, do sistema jurídico como um sistema aberto de princípios normativos, que busca realizar valores e fins3.

Nossa formação cultural, romano-germânica, tradicionalmente está habituada a trabalhar com regras jurídicas, não com princípios. Isso, aos poucos, está mudando. Em sociedades plurais e complexas como a nossa só as regras não resolvem. Não por acaso, alguns autores alemães sustentam que o Estado Constitucional de Direito é um Es-tado de Ponderação (Abwägungsstaat). De especial relevância, nesse contexto, é a Constituição como um sistema aberto de princípios e regras. O sis-tema jurídico, assim, cada vez mais se põe como um sistema aberto de princípios normativos. Esses princípios, que estabelecem objetivos e fins, são articulados de modo dinâmico, não estático. Não há nem mesmo uma hierarquia prévia entre eles. Eles trabalham com uma lógica de ponderação, o que significa que apenas nos casos concretos, dev-idamente contextualizados, é que os princípios se expandem ou se retraem, à luz das especificidades das circunstâncias.

O direito civil do século XXI dialoga com a sociedade complexa em que se insere. Não tenta negar essa complexidade, nem virar as costas para as profundas mudanças em curso – que repercutem

2 As influências são, até hoje, sensíveis e fortes: “A base do direito da chamada civilização ocidental cristã é o direito romano, donde nos vieram as noções fundamentais, o método e os principais institutos, principalmente em matéria de obrigações”. Adiante, complementa: “O legado do direito romano, até hoje presente na cultura do mundo ocidental, traduz-se em alguns institutos de direito civil, como a teoria da personalidade, a capacidade de direito, a teoria dos bens e os direitos reais, a teoria da posse, a teoria geral das obrigações e dos contratos e a sucessão” (AMARAL, Francisco. Direito Civil. Intro-dução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109 e 115). Aliás, é preciso não esquecer – em favor do caráter sempre renovador e dinâmico da interpretação jurídica – que o próprio direito romano teve suas grandes características firmadas no período da interpretatio, mercê de substanciais trabalhos hermenêuticos perspectivados embora a partir da praxis (JOLOWICZ, H. F., Historical Introduction to the study of Roman Law. Cambridge: University Press, 1952, p. 87).

3 Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Paulo Motta Pinto e Ingo Wolfgang Sarlet. Coimbra: Coimbra editora, 2003.

intimamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Ampliam-se, em nosso século, os espaços de liberdade no que diz respeito às situações subjetivas existenciais. Essa liberdade de escolha para as situações existenciais não infirma o caráter indisponível dos direitos da personalidade. As es-colhas não podem contrariar a dignidade da pessoa humana, e a diretiva vale não só relativamente aos outros, mas também a si próprio (mas a autode-terminação também deve ser resguardada, o que torna particularmente delicada certas discussões). Nesse contexto, o STJ, a pedido do Ministério Pú-blico Federal, proibiu que o apresentador Ratinho exibisse deficiências físicas como atrações do seu programa, quando a deficiência fosse a própria atração do quadro, com propósitos sensacionalistas. A alegação do apresentador, no sentido de haver censura, foi afastada (STJ, Ag 886.698). O direito civil dos nossos dias é um processo de elaboração contínua e realização permanente.

2. PARA AONDE ESTAMOS INDO? AESTRUTURA TEÓRICO-NORMATIVA DONOVO DIREITO CIVIL

“Um dia serei feliz? Sim, mas não há de ser já:

A Eternidade está longe, Brinca de tempo-será”.

Manoel Bandeira

Vivemos dias complexos e velozes4. Nossa sociedade é caracterizada por amplo pluralismo axiológico, com muitos e distintos interesses inter-agindo no quadro social. Isso, de certo modo, explica a heterogeneidade de valores e princípios acolhidos na Constituição. Temos uma Constituição pluralis-ta – como a sociedade que ela busca reger – que tem, entre outros objetivos, a proteção da dignidade humana e a redução das desigualdades sociais. É verdade que nem sempre chegamos na velocidade que queremos chegar. As mudanças, que julgamos lentas, nem sempre correspondem às nossas ansiosas expectativas. Mais importante, no entanto, de quando chegar, é caminhar na direção certa.

O direito civil do século XXI prestigia a diver-sidade e a tolerância. Reflexo de uma sociedade plural, ele busca afirmar o pluralismo reconhecendo

4 Barbosa Moreira, a respeito, constata que “no liminar do século XXI, a vertiginosa aceleração do ritmo histórico parece prestigiar a consagração do efêmero como categoria suprema” (BARBOSA MOREIRA. O transitório e o permanente no direito. Temas de direito processual, quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994, 225/231).

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Cap. 1 • CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL

a dignidade em cada ser humano – não importa sexo, crença, idade, raça, opção sexual, ou local de nascimento. Em cada ser humano o direito reconhece o potencial do livre desenvolvimento de sua personalidade. O direito não pode, natural-mente, assegurar que seremos felizes – isso, para o bem e para o mal, é construção de cada um denós. Pode, porém, fixar espaços de livre e plenodesenvolvimento da personalidade, assegurando omínimo existencial e o respeito aos direitos básicosde alimentação, educação, saúde e moradia.

A solução dos casos difíceis (hard cases) gan-hou, em nossos dias, uma complexidade inédita. A ponderação de princípios envolve, com frequência, valores igualmente valiosos e constitucionalmente protegidos. Sabemos, hoje, ademais, que o intér-prete não é um ser absolutamente neutro, que interpreta o direito como se estivesse fora da Terra. Isso não existe. O intérprete traz sempre sua carga de valores, seus conceitos e suas reservas, e esse conjunto humano influi, em graus variados, na interpretação que será dada à norma5.

Também se aceita cada vez menos a ideia – muito forte no século XIX e em parte do século XX – de que a ordem jurídica traz soluções predefinidas para todos os problemas e que cabe ao intérprete, apenas, encontrá-las, mediante a subsunção (o intérprete, nessa visão, seria um ser neutro, cuja função, puramente técnica, seria dizer o direito aplicável ao caso concreto – a famosa “boca da lei”, de Montesquieu). A interpretação jurídica, hoje, é algo bastante complexo que não pode ser reduzida a fórmulas esquemáticas. A construção de sentido da norma é algo dinâmico e nunca estático ou formal.

Em outras palavras, a interpretação jurídica não pode, por óbvio, desprezar o direito posto, mas tampouco se prende ao literalismo. O di-reito exige uma leitura ética, que dialogue com a sociedade, e não se satisfaz com conceitos puramente apriorísticos e formais. Isso não significa, convém repetir, que o juiz possa se libertar dos limites do sistema jurídico. Não se trata de voluntarismo, mas de reconhecer a força normativa dos princípios e a importância da teoria dos direitos fundamentais.

As construções de sentido das normas, por-tanto, resultam de uma complexa interação entre o intérprete e os demais atores sociais, com valores

5 Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. 3ª edição. Pierre Fruchon (org.). Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1998, p. 70. Há, inclusive, fatores inconscientes que escapam, ou podemescapar, da percepção do intérprete.

plurais e nem sempre homogêneos. Isso, porém, não significa – nem pode significar – um desprezo pela técnica. Trata-se apenas de reconhecer que a dimensão técnica, isoladamente, não explica nem responde muitos dos problemas do nosso século, é preciso ir além.

Essa redefinição dos valores do direito civil exige certa humildade epistemológica. É dizer: ao civilista atual não é dado isolar-se, manter-se em clausura intelectual, como se no século XIX estivesse. O direito de hoje exige uma abordagem menos estreita e parcial, que possibilite visões multissetoriais e, portanto, mais integrais. Ou seja, o civilista não pode se isolar e se satisfazer apenas com a coerên-cia e a beleza formal dos seus conceitos. O século XXI é, nesse sentido, mais pragmático. Pessoas que nasceram e foram educadas com a multiplicidade de informações que o mundo digital proporciona não aceitam um direito arcaico e preso a fórmulas sem sentido6. Um dos desafios do direito atual é se legitimar pela fundamentação das decisões, pela razoabilidade das soluções e pela dimensão social das suas normas. Não basta impor, é preciso impor com legitimidade.

As democracias constitucionais contem-porâneas – com a contribuição dos princípios, conceitos e regras do direito civil – não toleram qualquer tentativa de coisificar a pessoa humana. A dignidade remete, sem dúvida, entre seus sentidos principais, a não coisificação do ser humano. Se há, aqui e ali, certos exageros no uso conceitual e normativo da dignidade da pessoa humana, isso não pode encobrir a verdade básica, que se extrai da nossa Constituição: trata-se de vetor normativo vinculante, da mais alta importância, e que redefine, em muitos sentidos, a incidência e aplicação das normas jurídicas brasileiras. Não esqueçamos que o Brasil foi o último país da Américas a abolir a propriedade de uma pessoa sobre outra, em terrível mancha histórica. O intérprete do século XXI deve ter uma atenção prioritária com a pessoa humana, e não com o seu patrimônio. O patrimônio é mero instrumento de realização de finalidades existenciais e espirituais, não um fim em si mesmo.

6 Nesse sentido as observações de Weinberger: “Nos dias de hoje, sob o influxo das idéias democráticas, ninguém mais crê na sacralidade do direito ou vê na tradição uma justificação suficiente das institu-ições sociais. Estamos convencidos de que o homem pode modelar e remodelar o seu sistema político e que as disposições jurídicas e as instituições sociais devem ser examinadas criticamente e justificadas sobre a base de análises funcionais e valorativas” (WEINBERGER,Ota. Politica del diritto e istituzioni. Il diritto come istituzione, NeilMacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffrè, 1990, p. 287).

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Aliás, talvez caiba uma palavra mais ampla: a brutalidade humana continua a espantar. Da Síria de hoje chegam imagens que chocam, que nos fazem perguntar se estamos mesmo no sécu-lo XXI. A história humana é manchada, desde a noite dos tempos, pela perversidade de ditadores e seus asseclas, que agem como se não tivessem que responder pelas agudas maldades que prati-cam (convém lembrar que Stálin impôs a fome sistemática aos camponeses do seu país, matando mais pessoas do que os mortos durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo se somarmos as vítimas dos dois lados do conflito)7. Hoje, estima-se que haja 70 milhões de refugiados no mundo. 1 em cada 110 pessoas fugiu do seu país. Metade tem menos de 18 anos. A ONU os chama de “desloca-dos à força”. A cada 2 segundos alguém tem que ir embora de casa por causa dessa ameaça. Guerras terríveis (citamos a Síria, mas são tantas), extrema pobreza, perseguição étnica, torturas... 148 mil refugiados chegaram ao Brasil em 2017. Sobretudo venezuelanos, haitianos e africanos de vários países. Trata-se de realidade que terá impacto no direito civil das próximas décadas.

Hoje a experiência jurídica repele abordagens unilaterais, tão comuns nos séculos passados. O civilista, em especial, é chamado a sair dos códigos e dialogar com outras formas de conhecimento. Sem falar na interdisciplinaridade entre as matérias ju-rídicas, algo tão fundamental atualmente que deixou de ser novidade. A formação cultural do civilista, tradicionalmente, é vista como conservadora e avessa a mudanças. Isso, no entanto, mudou, está mudan-do. Poucos campos teóricos, atualmente, são tão receptivos às novas abordagens como o direito civil.

2.1. O direito civil em sociedades complexas e plurais

“Nada é, tudo se outra”.

Fernando Pessoa

“As nuvens são sombrias mas, nos lados do sul,

um bocado do céu é tristemente azul”.

Fernando Pessoa

O direito civil – talvez mais ainda que os outros ramos – traz a marca dos costumes dos povos. Por dialogar, muito de perto, com a vida diária

7 REID, Anna. Borderland: A Journey through the History of Ukraine. Boulder: Westview Press, 1999, p. 132.

das pessoas, o direito civil é moldado por aquilo que cada comunidade, século após século, tem por valioso, correto, necessário. O conservadorismo, por exemplo, que sempre timbrou o direito de família – baseado no poder do marido e do pai – refletia por certo a sociedade que tínhamos8. Hoje a sociedade é plural, com muitos modelos familiares aceitos, e o direito civil, como não poderia deixar de ser, também reflete isso.

O Código Civil de 1916 – tecnicamente ad-mirável – refletia os padrões mentais e culturais da sociedade patriarcal e patrimonialista em que se inseria (não esqueçamos que ele foi elaborado ainda antes de 1900, e teve tramitação lenta, assim como seu sucessor, quase um século depois). A propriedade era a instituição em torno da qual orbitavam os demais interesses juridicamente pro-tegidos. Convém lembrar que o Código Civil de 1916 – que chegou, não esqueçamos, até o século XXI –, foi elaborado pouquíssimo tempo depois do fim da escravatura entre nós. Pode-se dizer que são contemporâneos9.

Nesse sentido, não é exagero dizer que as dimensões existenciais do ser humano são de consideração relativamente recente, na caminhada histórica do direito civil. Hoje tanto a propriedade como os contratos ganham notas funcionais, isto é, a função define, em certo sentido, o que estes institutos são, e não apenas até aonde eles podem ir. Isto é, a funcionalização dos conceitos, categorias e institutos não atua apenas como limites externos.

Nos anos anteriores ao Código Civil de 2002, era voz corrente, no Brasil – e, antes, na Itália – a convicção de que o tempo das codificações tinha passado. Que os códigos civis estratificavam demais

8 Não por acaso, os civilistas sempre simbolizaram o conservadorismo jurídico. Pierre Bourdieu, por exemplo, enxerga nos privatistas o “culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, quer dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 252. De modo semelhante, percebeu-se que “a permanência jurídica se manifesta, em toda sua plenitude, no setor específico das codificações. E, aí, especialmente em matéria de Direito Civil, tido por protótipo do conservadorismo jurídico” (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 144). Nesse contexto teórico, convém lembrar que o século XIX foi pródigo em generalizações, amplas construções teóricas e esquemas abstratos (MEAD, George H. Movements of thougt in the nineteenth century. Chicago: The University of Chicago Press, 1972).

9 No período “de elaboração do Código Civil, o divórcio entre a elite letrada e a massa inculta perdurava quase inalterado. A despeito de sua ilustração, a aristocracia de anel representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico, apesar do seu sistema de produção ter sido golpeado fundamente em 1888. Natural que o Código refletisse as aspirações dessa elite” (GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 22).

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2UM OLHAR DO DIREITO

CIVIL PARA O NOVO

“Nem todas as verdades são para todos os ouvidos”.

Umberto Eco

“Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas creem numas coisas e noutras não. Tudo é crível. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vidaé que já é por si mesma paradoxal, desde queseja vista não apenas pela superfície”.

Cecília Meireles

1. DIREITOS QUE ESTÃO NA PAUTA DOSÉCULO XXI

Não nos cabe, aqui – nem haveria espaço para tanto – desenvolver os temas apresentados. Nosso intuito é outro. É apenas apresentar, do modo mais breve possível, certas questões que estão sendo discutidas em relação aos direitos da personalidade e aos direitos fundamentais, como forma de introduzir esses temas para o leitor, como informação básica.

1.1. Direito à identidade sexual

“É mesmo? Pessoas que vivem machucadas pelo preconceito, prostituídas pela falta de empregos, carentes de respeito, compreensão e amor... Nossa, realmente hilário”.

(Tati Bernardi, em resposta a um produtor que disse que “traveco é sempre engraçado”).

O direito do século XXI trabalha cada vez mais com o direito à diferença e com o reconhecimento de identidades. A autodeterminação deve ser valo-rizada e respeitada, como componente integrante da dignidade humana. Sabemos, hoje, que os direitos fundamentais são frutos de construção histórica, não caem do céu, resultam de lutas e de constru-ções coletivas não só para valorizar as pessoas em termos de equidade mas também para fundamentar o exercício do poder a partir desses direitos87. Osexo hoje é visto não como algo adquirido quandoda concepção, mas de uma forma mais culturale dinâmica. Isto é, não é algo irreversível – a sermantido vitaliciamente, ainda que com profundossofrimentos quanto à própria identidade –, mas algode certo modo construído, com respeito ao percursoexistencial de cada um88.

Sabemos quão fortes foram (e são) os preconcei-tos contra quem realizou opções sexuais que fogem do padrão clássico entre homem e mulher. Houve,

87 HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 119. Habermas menciona ainda, em outro texto, que a dignidade humana não é apenas uma expressão classificatória, mas a “fonte moral” da qual todos os direitos fundamentais derivam seu conteúdo.

88 Cf. RODOTÁ, Stefano. Présenttatios générale des problémes liés au transsexualisme. In: Transsexualisme, médecine et droit. XXIII Coloque de Droit Européen, Pays Bas, Vrije Universiteit, 1993.

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contudo, inegáveis avanços. O panorama – social, jurisprudencial e doutrinário – é outro, sem dúvida, tendo como paradigma de comparação o que exis-tia, por exemplo, anteriormente à Constituição de 1988, e mesmo na década seguinte. O STF aceitou, de modo unânime, a união estável para casais do mesmo sexo (trata-se de valioso caso de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas)89. As liberdades existenciais fundamentais – como, por exemplo, a de escolher o parceiro afetivo e, eventualmente, casar-se com ele – devem ser em tudo as mesmas, não importa a orientação sexual do casal. Caminhamos, portanto, em direção a padrões de igual respeito e consideração para todos os casais, não importando a orientação sexual.

Em relação ao casamento de pessoas do mes-mo sexo, Daniel Sarmento afirmou: “Na verdade, é exatamente porque o casamento é tão valorizado na nossa cultura, simbolizando no imaginário social o vínculo amoroso mais sólido que duas pessoaspodem manter, que o acesso a ele tem de ocorrerem termos absolutamente igualitários e democrá-ticos. Portanto, trata-se não somente de asseguraraos homossexuais o acesso aos benefícios materiaisque advém do status de casada ou de casado, comotambém de franquear, aos que optarem por isso, asportas do universo simbólico associado ao casamento, que, para muitos, denota, em seu máximo grau, arespeitabilidade social de um vínculo afetivo. É porisso – porque os símbolos importam tanto na eco-nomia das interações sociais – que o nome da coisaé relevante: os homossexuais devem ter também odireito ao casamento, e não apenas à união estável,ou a qualquer outra figura jurídica com que sepretenda enquadrar as famílias que constituírem”90.

A família, cada vez mais, é vista como um grupo social baseado fundamentalmente nos laços de afetividade. Ou seja, “não como portadora de

89 Isso se deu não obstante a Constituição da República prever, no art. 226, § 3º, que “para efeito de proteção do Estado, é reconhe-cida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. Há, portanto, na Constituição, a menção a “o homem e a mulher”, em relação à união estável. Queremos, por acaso, exemplo melhor de que a literalidade da norma é apenas o ponto de partida de uma atividade – muito mais rica e complexa – de interpretação? O STF foi além da literalidade da regra. A construção dos horizontes de sentido das normas, portanto, parte do texto, mas não é o texto.

90 SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo: perspectivas constitucionais. SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coords). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 656. Conferir ainda sobre o tema: NUSSBAUM, Martha C. Sex and Social Justice. Oxford: Oxford University Press, 1999; BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. Já citamos, no primeiro capítulo, trechos do relevante voto do Min. Celso de Mello na na ADIN nº 3.300-DF, relativa ao tema.

um interesse superior e superindividual, mas, sim, em função da realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa”91. A justificação da família, portanto, apenas a partir de funções políticas, econômicas ou mesmo de procriação não mais se sustenta, pelo menos não com exclusividade. O afeto vem, ou deve vir, em primeiro lugar.

Julgando caso de troca de nome (no registro público) de alguém que havia realizado cirurgia de redesignação sexual, o STJ, em acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, assim se manifestou: “A afirmação da identidade sexual, compreendida pela dignidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expres-sar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua iden-tidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade” (STJ, REsp 1.008.398). A jurisprudência admitia não apenas a troca do nome, mas também a troca, no registro civil, do próprio gênero (de masculino para feminino, por exemplo, nos casos em que tivesse sido feita a cirurgia de redesignação sexual). Porém mesmo isso já ficou para trás. Em 2017 o STJ deu um passo além. Admitiu a reti-ficação do registro de nascimento para troca de prenome e do gênero (masculino para feminino), sem que para isso seja necessária a realização de cirurgia de transgenitalização. Argumentou-se que “à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico” (STJ, REsp 1.626.739).

1.2. Direito à autodeterminação informativa e paper less society: entre o mundo físico-convencional e omundo digital

A expressão foi criada e desenvolvida por um dos grandes juristas de nosso tempo, Stefa-no Rodotà, Professor Titular de Direito Civil da Universidade La Sapienza, em Roma. Ele sustenta que se trata do direito de manter controle sobre

91 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243.

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Cap. 2 • UM OLHAR DO DIREITO CIVIL PARA O NOVO

as próprias informações, de modo a modular a construção da própria esfera privada. Sustenta o professor que não se trata do antigo “direitoa ficar só”. Este dizia respeito à vida privada efamiliar e expressava, sobretudo, o padrão mentalindividualista dos séculos passados, quando opoder exauria-se na exclusão da interferência deoutrem (uma tutela estática e negativa). Já o direi-to à autodeterminação informativa, ao contrário,estabelece princípios e regras sobre o tratamentodos dados e se concretiza em poderes de inter-venção (tutela plural e dinâmica)92. A legislação,no caso, não deve se ater a formas disciplinarescasuísticas, mas a princípios.

O Marco Civil da internet – Lei n. 12.965/2014 – segue essa tendência, e é composto por normasfundamentalmente (não exclusivamente) principio-lógicas. Nesse contexto, prevê que a disciplina dainternet no Brasil se baseia na liberdade de expressão,comunicação e manifestação do pensamento, nalinha das garantias constitucionais. A privacidadetambém é protegida, bem como os dados pessoais.Preserva-se e garante-se a neutralidade de rede93

(ponto de intensa discussão durante os debates le-gislativos). Protege-se ainda a natureza participativa da rede (não poderia, dizemos nós, ser diferente),e contempla-se a possibilidade de responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades. Porcerto, a previsão é puramente exemplificativa, enão exclui outros princípios, venham de fontesnacionais ou internacionais.

Reconhece, no art. 2º, que a disciplina do uso da internet tem como fundamento o respeito à liber-dade de expressão, bem como os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercícioda cidadania em meios digitais. São fundamentosainda do uso da internet a pluralidade, a diversidade, a abertura e a colaboração, a livre iniciativa, a livreconcorrência, a defesa do consumidor e a finalidadesocial da rede. Reconhece a lei, como não poderiadeixar de ser, a escala mundial da internet. Emrelação ao tópico que estamos tratando, relevantemencionar que são nulas de pleno direito as cláusulas

92 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. A privacidade hoje. Organização e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Doneda, Luciana Doneda e Caitlin Mulholland. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 3/10 e passim.

93 O art. 9º prevê a propósito: “O responsável pela transmissão, co-mutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. O § 3º prevê ainda que na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados.

contratuais que impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas pela internet (art. 8º, I).

Seja como for, algo é certo: o mundo digital potencializa enormemente os danos. As informa-ções lá postas trazem consigo duas peculiaridades: a) dificilmente conseguem, uma vez inseridas, sertotalmente eliminadas (na melhor das hipóteses,é copiada por alguém, que depois pode sempredisponibilizar em outro lugar)94; b) tem umatendência espantosa de difusão: expande-se ex-ponencialmente, e se a foto, vídeo, informação oucomentário é ofensivo, os danos são incalculáveis.Bem por isso, ou os provedores, uma vez avisados,retiram rapidamente a ofensa do ar, ou respondemsolidariamente pelos danos.

No bullying convencional, por assim dizer, as agressões acontecem no mundo físico-tradicional. No digital, as agressões são virtuais, e talvez ainda mais terríveis, diante do peso que as redes sociais têm para os adolescentes de hoje (basta lembrar da onda de suicídios e mutilações de adolescentes, em 2017, a partir do jogo Baleia Azul). Não só isso, houve no Brasil e no mundo muitíssimos casos de suicídios relacionados ao bullying digital. Massacra--se, cruelmente, adolescentes (quase sempre colegas da escola), com montagens pornográficas, xinga-mentos e ameaças constantes95. Em grande partedos casos, o ato digital de agressão ocorre em casa,fora do horário das aulas e das sedes físicas dosestabelecimentos de ensino. Como não responsa-bilizar os pais dos agressores? Sem que possamosexcluir a vigilância (e a responsabilidade civil)das escolas, públicas ou privadas, parece intuitivoque não podemos, em absoluto, isentar os pais.Mesmo porque, no mundo veloz e inefável quevivemos, como definir de onde partiu a agressão?As agressões, no caso, podem ser facilmente pos-tadas do celular. Onde se estava quando se envioua mensagem agressiva? Na escola? Em casa? Narua? Isso tem relevância jurídica?

Tanto o bullying quanto o cyberbullying bus-cam desestabilizar psicologicamente o ofendido. A jurisprudência já teve oportunidade de condenar

94 Em sentido semelhante, ROSEN, Jeffrey. The web means the end of forgetting. New York Times, 21 de julho de 2010. Também, RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 42.

95 Fala-se, no Brasil, em certos meios, na criação de uma espécie de “Lei Maria da Penha” para o mundo digital. São frequentes casos de ex-companheiros que postam cenas de sexo com as parceiras afetivas que tiveram, e com isso destroem as vidas das garotas. Ficou célebre, no Brasil, em outubro de 2013, um caso desse teor ocorrido com uma jovem de Goiânia.

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MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto

civilmente a mãe pelo cyberbullying praticado pelo filho menor, que criou página na internet exclusivamente para ofender colega de classe, com fatos e imagens extremamente agressivas (TJRJ, AC 7003750094). Outro aspecto particularmente difícil é a quantificação do dano – não só aqui, mas também aqui. No mundo digital, uma infor-mação caluniosa, por exemplo, tem um potencial expansivo imenso, inesgotável. Isso deve ser levado em conta na quantificação dos danos.

Por outro lado, há, ninguém duvida, aspectos altamente positivos nas novas possibilidades digi-tais. A tecnologia reduz custos operacionais dos deslocamentos, interliga pessoas e comunidades, diminui o uso de papel e a necessidade de estocagem física de documentos. As gerações que cresceram e foram educadas longe do mundo digital não se sentem confortáveis com essa “fuga do papel”, digamos assim (paper less society). A desmate-rialização é uma tendência irreversível, gostemos ou não. Nesse contexto, nota-se uma progressiva desmaterialização dos bens. Não só a forma de aquisição é digital (pedimos, por exemplo, táxis ou pizzas pela internet), como os próprios serviços se desmaterializam (pensemos, por exemplo, num e-book. Não há bem físico palpável, nos moldes domundo físico-convencional. Os processos judiciaismigram, cada vez mais, para o mundo digital,abandonando o papel).

Seja como for, vivemos dias em que muitos questionam se não está havendo o “fim da priva-cidade”. Rodotà menciona: “Mesmo antes do 11 de setembro, particularmente por conta de exigências do mercado e da tendência de montagem de bancos de dados cada vez maiores de consumidores e de seus comportamentos, havia comentários sobre o fim da privacidade. Atualmente, no entanto, se percebemos o modo como o mundo está mudando, emerge uma questão mais radical para responder. O fim da privacidade é cada vez mais comentado. Alguns anos atrás, Scott MacNally, executivo-chefe da Sun Systems, disse com sinceridade: vocês não têm nenhuma privacidade, de qualquer modo. Acei-tem isso”96. A discussão é bastante pertinente. Seja por razões de segurança – invocada pelos países, com receio do terrorismo, por exemplo –, seja por razões empresariais (as grandes empresas tentam, de

96 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. A privacidade hoje. Organização e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Doneda, Luciana Doneda e Caitlin Mulholland. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 3/10 e passim. A propósito, vale mencionar que a sociedade britânica é tida como a mais vigiada do mundo. Há, lá, uma câmera para cada 14 pessoas (cerca de 4,2 milhões no total, em números de 2007).

todo modo, apropriar-se de uma quantidade cada vez maior de dados sobre os consumidores e lucrar com isso), seja pela difusão – sem precedentes na história humana – das novas tecnologias, não há dúvida que o fim da privacidade é um item que deve estar em permanente discussão em nosso sé-culo, sobretudo ao pensarmos modos e fórmulas de tentar minorar os perigosos efeitos do problema97. Trataremos adiante, no final deste capítulo, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD – relevante legislação do segundo semestre de 2018.

1.3. Direito à verdade acerca da própria origem genética

Uma das mais visíveis características do di-reito em nosso século é a ausência de respostas definitivas para vários dos problemas com que nos deparamos. A origem genética, hoje, é intensamente discutida nos direitos da personalidade. Prevaleceu, tradicionalmente, entre nós, a filiação biológica em detrimento da filiação socioafetiva. Hoje, porém, de certa forma a situação se inverteu, e tanto na dou-trina como nos tribunais é forte e intensa a defesa da filiação socioafetiva, refletindo os novos ventos sociais e, também, constitucionais. A afetividade ganha força como princípio reitor das relações de família e o estado de filiação é, hoje, sobretudo de natureza socioafetiva. O estado de filiação decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos entre pais e filhos, sendo esse o fundamento essencial da atribuição da paternidade ou da maternidade. Não está vinculado, de modo necessário, à origem genética (lembremos que o STF, em 2016, no RE 898.060, admitiu a multiparentalidade, isto é, o vínculo concomitante com um pai biológico e um socioafetivo).

Há, porém, aspectos em que a origem gené-tica se mostra relevante. Por exemplo, para que a pessoa investigue e descubra sua real origem genética. Pondera-se que “toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, iden-tificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, per-sonalíssimo, não dependendo de ser inserido em

97 Conferir, a respeito, CASTELLS, Manoel. The rise of the network society. Oxford: Bleckwell, 1996; CABRAL, Rita Amaral. O direito à intimidade da vida privada. Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 1988; DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961; DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; FRIEDMAN, L. M. The Republic of Choice: Law, Authority and Culture. Cambridge: Harvard UP, 1990.

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Cap. 2 • UM OLHAR DO DIREITO CIVIL PARA O NOVO

relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade”98.

Lembremos que pode haver, também, a chamada inseminação artificial heteróloga (Código Civil, art. 1.597, V). É utilizado, nesse caso, sêmen de outro homem, que não o do marido (normalmente do-ador anônimo), com autorização deste. O marido, no caso, por ter autorizado, não pode contestar a paternidade da criança. A criança nascida nessa situação poderia, por exemplo, futuramente, solicitar os dados genéticos, não para fins de atribuição de paternidade do doador, mas para conhecer a ver-dade sobre sua origem genética. A propósito, o STJ decidiu em 2019 ser possível a inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução as-sistida heteróloga e com gestação por substituição, não configurando violação ao instituto da adoção unilateral (STJ, REsp 1.608.005).

Há outro aspecto da questão, não vinculado à doação anônima de sêmen. Uma das expressões possíveis do fenômeno está na existência, ou não, do direito do filho de saber quem é o pai. O homem pode, fundado na integridade física, recusar-se a fornecer material para o exame de DNA? O STF, por apertada maioria (6x4), entendeu que a recusa é possível (embora, para efeitos patrimoniais, possa haver a presunção de paternidade, nesses casos). (STF, HC 71.373, Rel. Min. Marco Aurélio). Mas a questão existencial persiste: o princípio do melhor interesse da criança não sobrepujaria a questão da integridade física (mínima, no caso, já que pode-se obter material genético com saliva, cabelo etc.)? A tendência do direito civil constitucional, na hipótese, manifesta-se preferencialmente a favor do direito à verdade sobre a própria origem genética99.

O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em

98 LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. CEJ. Brasília, n. 27, p. 45-56, out./dez. 2004, p. 54.

99 Assim, “o direito à integridade física configura verdadeiro direito subjetivo da personalidade, garantido constitucionalmente, cujo exercício, no entanto, se torna abusivo se servir de escusa para eximir a comprovação, acima de qualquer dúvida, de vínculo genético, a fundamentar adequadamente as responsabilidades decorrentes da relação de paternidade. A perícia compulsória, então, se, em princípio, repugna aqueles que, com razão, veem o corpo humano como bem jurídico intangível e inviolável, parece ser providência necessária e legítima, a ser adotada pelo juiz, quando tem por objetivo impedir que o exercício contrário à finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiação, direito de terceiro, corresponde à dignidade de pessoa em desenvolvimento” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da personalidade. Revista Forense, n. 343, p. 168, jul-set de 1998).

face dos pais ou seus herdeiros. O STJ já decidiu não ser correto impedir uma pessoa, qualquer que seja sua história de vida, de ter esclarecida sua verdade biológica. Argumenta-se, em doutrina, que são “direitos da personalidade do filho que investiga sua paternidade o direito à identidade, em sentido lato, e o direito geral da personalidade”100.

No contexto descrito, “os direitos da persona-lidade, entre eles o direito ao nome e ao conheci-mento da origem genética são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes” (STJ, REsp 807.849, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, DJ 06/08/2010). O tribunal afirmou que “o direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88”. O STJ, ao fun-damentar seu acórdão, lembrou que a jurisprudência alemã já abordou o tema, adotando semelhante solução. Em julgado proferido em 31/1/1989 e pu-blicado no periódico jurídico NJW (Neue Juristische Woche) 1989, 891, o Tribunal Constitucional Alemão (BVerfG) afirmou que “os direitos da personalidade (Art. 2 Par. 1º e Art. 1º Par. 1º da Constituição Alemã) contemplam o direito ao conhecimento da própria origem genética”. Aliás, entre nós, o ECA prevê que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica” (ECA, art. 48, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009).

1.4. Direito de não saber

“As perguntas nunca são indiscretas. As respostas é que às vezes são”.

Oscar Wilde

Uma primeira pergunta se põe: existe, de fato, esse direito? De que se trata?

Cuida-se de discussão que traz certo sabor inusitado: haveria, em relação aos dados genéticos, o direito de não saber? Realizados, digamos, deter-minados exames ou pesquisas, a pessoa envolvidapode sempre esgrimir seu direito de não saber dosresultados? Esse direito seria oponível a qualqueroutra pessoa? Seria oponível a familiares, a pos-síveis empregadores, ao Estado? Imaginemos, porexemplo, que determinados testes genéticos apontem a predisposição para esclerose múltipla, haveria

100 CHINELATO E ALMEIDA. Exame de DNA, filiação e direitos da per-sonalidade. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes temas da atualidade. DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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interesse e utilidade na comunicação ao portador da referida tendência genética (sobretudo nos casos em que nada se pode fazer preventivamente)? E se, por exemplo, a predisposição para determinadas doenças futuras for usada pelos possíveis empre-gadores para contratar – ou, melhor dizendo, não contratar – prováveis empregados?

Em hipótese não idêntica, mas algo semelhante, o STJ julgou caso cujos contornos fáticos foramos seguintes: um cidadão solicitou determinadosexames (na solicitação, porém, não constava oexame acerca do vírus HIV). Ao receber os re-sultados, porém, deparou-se com a notícia queera portador do vírus da AIDS, mesmo sem tersolicitado tal exame. O STJ, por maioria, no lea-ding case relativo ao tema, decidiu que tal danonão é indenizável. O voto vencedor argumentaainda que o abalo psíquico, a rigor, provém dofato do indivíduo ser portador do HIV, fato nãocausado pelo hospital, fato alheio ao nexo causalimputado à conduta hospitalar101. Por outro lado,é preocupante e questionável a argumentação dovoto vencedor, trazendo muitas vezes a questão dointeresse público (conforme contextualizamos noprimeiro capítulo). Trata-se, sabemos, de conceitojurídico indeterminado, amplíssimo e vasto, quepode comportar, dentro de si, conteúdos não sódiversos, mas antagônicos.

101 A maioria entendeu que “sob o prisma individual, o direito do indi-víduo não saber que é portador do vírus HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, decorrente de sua intimidade), sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável. Mesmo que o indivíduo não tenha interesse ou não queira ter conhecimento sobre a enfermidade que lhe acomete (seja qual for a razão), a informação correta e sigilosa sobre seu estado de saúde dada pelo hospital ou laboratório, ainda que de forma involuntária, não tem o condão de afrontar sua intimidade, na medida em que lhe proporciona a proteção a um direito maior”. Continua: “Sob o enfoque do interesse público, assinala-se que a opção de o paciente submeter-se ou não a um tratamento de combate ao vírus HIV, que, ressalte-se, somente se tornou possível e, certamente, mais eficaz graças ao conhecimento da doença, dado por ato involuntário do hospital, é de seu exclusivo arbítrio. Entretanto, o comportamento destinado a omitir-se sobre o conhecimento da doença que, em última análise, gera condutas igualmente omissivas quanto à prevenção e disseminação do vírus HIV, vai de encontro aos anseios sociais” (STJ, REsp 1.195.995, rel. p/ acórdão Min. Massami Uyeda). Já o voto vencido, da sempre corajosa e brilhante Ministra Nancy Andrighi, consigna ser “possível a condenação de hospital ao pagamento de indenização por dano moral a paciente na hipótese de equívoco cometido por preposto do hospital que realizou exame diverso do autorizado, com a consequente descoberta e comunicação de ser o paciente portador do vírus HIV, porque ainda que a informaçãonão tenha sido divulgada a terceiros, trata-se de indevida invasãona esfera privada do paciente, investigação abusiva da vida alheia,conduta negligente que viola a intimidade, sendo a responsabili-dade do hospital objetiva pelos atos de seus prepostos”. Trata-se,como se vê, de outra forma (possível e jurídica) de abordar o tema, vislumbrando a ocorrência de acidente de consumo (caracterizadopela falha na prestação de serviço) e, ainda, caracterizando conduta negligente que violaria a intimidade.

O direito de não saber pode ser abordado em outro contexto, alheio à questão dos dados genéticos. Há outras dimensões, bem distintas, do problema. Por exemplo, houve – especialmente na Argentina e no Chile – casos dramáticos, com intensa re-percussão social. Casos que trouxeram delicados dilemas (envolvendo o direito de não saber e crimes do regime militar). A questão se põe do seguinte modo: os regimes militares torturavam e assassi-navam os pais biológicos de determinada criança (muitas vezes, recém-nascida). Os torturadores e assassinos entregavam a criança para uma família amiga do regime militar. Três ou quatro décadas depois, os crimes vêm à tona. Essa criança, hoje um adulto, tem o direito de não saber que as pessoas que ela tem como pais escondem, na verdade, um obscuro e no mínimo conivente passado?

A legitimidade de uma decisão, nas democracias constitucionais contemporâneas, é aferida não só pelas formas, mas também pelos conteúdos. Há uma rica e variada interação entre os dois modos de controle. A lei, nesse contexto, perde muito do caráter arbitrário que ostentava no passado e a proporcionalidade é princípio que tem como des-tinatário também o legislador (dissemos também). Aceita-se mais naturalmente, hoje, que a atividade judicial, em alguma medida, tem função criativa, circunstância que se mostra ainda mais forte na jurisdição constitucional102. Seja como for, não há, por certo, na matéria deste tópico, respostas defi-nitivas. Convém, apenas, alertar para o contexto em que se dá a discussão e lembrar que muito, neste século, ainda se discutirá acerca do direito à informação genética, em seus vários prismas jurídicos e sociais. Podemos, de todo modo, en-xergar o direito de não saber como dimensão da autodeterminação informativa103.

102 A propósito, certos autores citam exemplos de nações que ostentam o traço democrático sem, no entanto – pelo menos durante certoperíodo histórico – trazerem a nota institucional da revisão judicial(GRIMM, Dieter. Jurisdição Constitucional e Democracia. Revista deDireito do Estado. 4:3, 2006, p. 6-9. De modo semelhante, NINO, Carlos Santiago. La Constitución de la Democracia Deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997). A tendência contemporânea, no entanto, pareceapontar no sentido de uma progressiva adoção do judicial review.Um exemplo eloquente, e muito citado, é a França, que não dispu-nha de um sistema de controle repressivo de constitucionalidade e passou a adotá-lo depois da reforma constitucional de 2008.

103 “Na legalidade constitucional, o direito de não saber deve ser tutelado como desdobramento do direito à autodeterminação informativa, que pressupõe que o controle do fluxo de informa-ções que ingressam na esfera privada (...). Como consequência da expansão da privacidade na sociedade de informação, o controle do conteúdo que compõe o acervo informacional impõe a garantia de um poder negativo de excluir da esfera privada determinado tipo de informação, ainda que essa exclusão desafie os padrões sociais e culturais sobre as noções de saúde e vida saudável” (VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Desafios para a tutela do direito de

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Cap. 2 • UM OLHAR DO DIREITO CIVIL PARA O NOVO

1.5. Direito ao esquecimento

“Até parece que foi ontem minha mocidade meu diploma de sofrer de outra universidade

minha fala nordestina, quero esquecer o francês.

E vou viver as coisas novas, que também são boas

o amor (humor) das praças cheias de pessoasAgora eu quero tudo, tudo outra vez”.

Belchior

O poeta Mário Quintana escreveu: “Nós vivemos a temer o futuro. Mas é o passado quem nos atropela e mata”. Nessa pergunta se insere, simbolicamente, muito do que hoje se discute acerca do direito ao esquecimento. Trata-se de tema cercado de perple-xidades. É juridicamente legítima a pretensão de impedir que episódios e fatos do passado ressur-jam no presente, atrapalhando a vida de alguém? Existe o direito de impedir que o passado retorne ao presente, sobretudo se modo descontextualizado e desconforme à realidade? Podemos exigir que o passado não nos siga para sempre?

Um episódio sempre citado, a propósito do tema, é o caso Lebach. Houve, na Alemanha, um documentário feito para a televisão a respeito de determinado crime (morte de quatro soldados que guardavam um depósito de munição, com o roubo de armas e munições). Acontece que quatro anos após o crime os condenados já estavam prestes a sair da cadeia, tendo cumprido as respectivas penas. Argumentou-se, na ocasião – e a argumentação foi aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão, em 1973 – que a exibição do documentário reviveria a hostilidade social contra os autores do crime, que já haviam cumprido a pena. No documentário seriam exibidos o nome e as fotos dos criminosos.

O Tribunal de Justiça da União Europeia re-conheceu o direito ao esquecimento em julgado de 2014, porém já célebre. As Jornadas de Direito Civil aprovaram o Enunciado n. 531, consignando que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao es-quecimento”. A jurisprudência brasileira começa a se defrontar com o problema, com posturas em ambos os sentidos, alguns contra outros favoráveis. É preciso certo cuidado com a orientação que acolhe

não saber: corpo, autonomia e privacidade. In: MENEZES, Joyce-ane Bezerra de; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 191-204).

abertamente o direito ao esquecimento (isso pode ser adequado em alguns casos, mas certamente não o será em todos).

Trataremos do tema – ainda que com extremabrevidade – um pouco adiante, quando cuidarmos do direito à imagem. Adiantemos que as liberdades comunicativas podem ser seriamente abaladas se a tese do direito ao esquecimento for aceita com amplitude. Não parece ser essa a melhor estrada para nossa jovem democracia constitucional. Sobretudo nos fatos que digam respeito ao interesse público, parece pouco recomendável que alimentemos ex-cessivamente a tese do direito ao esquecimento. O STF, nos últimos anos, tem caminhado no sentido oposto (lembremos, por exemplo, da decisão que tornou desnecessária a autorização do biografado, ou daquela que afastou a proibição do humor nas eleições, dentre outras). A memória coletiva, e a própria liberdade de expressão e de informação, precisam de ventos mais livres, de janelas abertas e amplas por onde possam passar.

1.6. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade

Atualmente, nos estudos dos direitos da perso-nalidade – ou mesmo nos autores que cuidam dos direitos fundamentais, fora do direito civil – percebe--se, cada vez mais, a menção ao princípio (ou direito) do livre desenvolvimento da personalidade104. É um princípio que traz um olhar prospectivo, para o futuro, abrindo os caminhos – nos limites das possibilidades regulatórias do direito – para que as pessoas sejam realmente livres para desenvolver suas potencialidades (sonhos, projetos e escolhas íntimas). Pressupõe, como se vê, pessoas concretas, e não o sujeito de direito abstrato do século XIX.

Vivemos, hoje, em sociedades plurais, marcados por concepções diversas e múltiplas acerca dos melhores caminhos a seguir, coletivos e individuais. A literatura jurídica atual percebe que os direitos fundamentais são reconhecidos a toda e qualquer pessoa, pelo só fato de ser pessoa105. Somos iguais

104 Cf. PINTO, Paulo Mota. O Direito ao Livre Desenvolvimento da Perso-nalidade. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal-Brasil ano 2000. Coimbra Editora, 1999.

105 Habermas aponta que “após duzentos anos de história constitucional moderna, nós temos uma maior compreensão sobre o que distinguiu esse desenvolvimento desde o princípio: a dignidade humana forma o ‘portal’ através do qual a substância igualitária e universalista damoralidade é importada para o direito”. Continua: “A ideia de dig-nidade humana é o eixo conceitual que conecta a moral do igualrespeito por cada um ao direito positivo e ao processo legislativodemocrático, de tal modo que essa interação, sob circunstânciashistóricas favoráveis, pôde se originar uma ordem política fundadanos direitos humanos. (HABERMAS, Jürgen. O conceito de dignidade

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5INVENTÁRIOS E PARTILHAS

“Há tanto tempo que eu deixei você,Fui chorando de saudade.

Mesmo longe não me conformei. Pode crer...

Eu viajei contra vontade.O teu amor chamou e eu regressei.

Todo amor é infinito.Noite e dia no meu coração.

Trouxe a luz no nosso instante mais bonito.

Na escuridão o teu olhar me iluminava

E minha estrela-guia era o teu risoCoisas do passado

são alegres quando lembramnovamente as pessoas que se amam”...”

(Roupa Nova, A Viagem, de Cleberson Horsth e Aldir Blanc)

1. NOÇÕES GERAIS SOBRE O INVENTÁRIO

As suas origens são romanistas, como de restosói acontecer no campo sucessório. No Direito Romano, notadamente com Justiniano, o inventário era concebido como um mecanismo de proteção dos herdeiros (heres), apresentando a finalidade específica de separar o patrimônio transmitido pelo falecido e aquele já pertencente ao herdeiro anteriormente.

A toda evidência, o inventário não se trata de um instituto exclusivo do Direito das Sucessões. No procedimento de falência e no divórcio ou dissolução de união estável litigiosos também se mostra necessário proceder a um levantamento (inventário) dos bens pertencentes aos interessados para que sejam partilhados.

Sob o específico ponto de vista sucessório, por seu turno, o inventário é o procedimento, admi-nistrativo ou judicial, tendente ao levantamento e descrição individualizada das relações jurídicas patrimoniais (ativas e passivas) transmitidas auto-maticamente pelo falecido, em razão da incidência da regra de saisine (CC, art. 1.784), para que, posteriormente, pagas as dívidas deixadas e reco-lhido o tributo respectivo, seja partilhado o saldo remanescente entre os sucessores.

Se não existem bens transmitidos pelo finado, por lógica, não se justifica a abertura de inventá-rio. O inventário não se presta à transmissão do patrimônio deixado pelo de cujus. A herança é transmitida automaticamente aos herdeiros, com transferência de posse e propriedade. O inventário, tão só, serve para catalogar o ativo e o passivo transferido e promover a partilha.

Nessa ambiência, o inventário é um procedimen-to especial tendente a apurar o patrimônio trans-mitido automaticamente, pelo falecido, pagando as dívidas deixadas, recolhendo o tributo incidente na espécie e, em arremate, promovendo a partilha entre os sucessores. Por conta dessa amplitude de interesses subjacentes no inventário, há uma legi-timidade ativa concorrente entre plúrimos sujeitos

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MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto

em nosso sistema jurídico (cônjuge, companheiro, herdeiro, legatário, testamenteiro, Fazenda Pública, Ministério Público, se houver incapaz...).

De qualquer maneira, o art. 610 do Código de Processo Civil de 2015, mantendo um avanço de-tectado desde o advento da Lei 11.441/07, admite a realização do procedimento de inventário em juízo, por meio de jurisdição especial contenciosa, ou em cartório (administrativamente), através de um procedimento realizado perante o tabelião, sem intervenção do Ministério Público e sem a necessi-dade de homologação do juiz, lavrado por meio de uma escritura pública, quando todos os herdeiros são maiores e capazes, inexistindo litígio. Havendo a presença de interesse de incapaz ou a existência de testamento, a forma judicial é obrigatória.

2. O PROCEDIMENTO DE INVENTÁRIO

2.1 O procedimento contencioso de inventário

Trata-se de um procedimento especial de jurisdição contenciosa, disciplinado pelo Código Instrumental. De fato, a potencialidade de um conflito entre os sucessores direciona o procedimento de inventário para os confins divisórios da jurisdição contencio-sa. No âmbito específico da jurisdição voluntária, o Poder Judiciário não compõe litígios, mas, sim,promove a integração de um ato jurídico praticadopelas partes.

No caso do inventário, a toda evidência, a atividade judiciária não é meramente integrativa, mas compositiva do conflito de interesses potencial. Realmente, o inventário se emoldura no campo da jurisdição contenciosa porque, mesmo não havendo um litígio estabelecido entre os interessados, há uma potencialidade de conflitos de interesses. Ou seja, há um estado de latência de conflitos, mesmo sem litígio.

É bem verdade que, na sistemática do Código de Ritos, até mesmo o arrolamento sumário (per-mitido pelo art. 659 quando todos os interessados são capazes e inexiste conflito de interesses entre eles) é enquadrado como jurisdição contenciosa. No entanto, nessa específica hipótese, é de se lem-brar que o inventário poderia ser extrajudicial, por meio de escritura pública, lavrada diretamente no cartório. Aqui, afigura-se-nos tratar de jurisdição voluntária, e não contenciosa.

2.2 O inventário negativo

Malgrado o inventário tenha como pressuposto existencial (ratio essendi) a transmissão dos bens pelo falecido, fala-se, abertamente, em nossa doutrina e

jurisprudência sobre o inventário negativo. Trata-se de uma figura criada jurisprudencialmente, permi-tindo ao interessado formular ao juiz um pedido declaratório de que uma determinada pessoa faleceu sem deixar patrimônio a ser inventariado. Enfim, um pedido de que alguém faleceu sem deixar bens ou valores econômicos.

Entrementes, a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo o inventário negativo para aten-der aos interesses de alguém que pretende obter uma declaração judicial de inexistência de bens deixados pelo defunto. Prospectamos alguns casos que podem, abstrata e hipoteticamente, justificar a propositura do inventário negativo: a outorga de escritura pública na promessa de compra e venda feita pelo falecido, a descaracterização de uma he-rança como jacente ou repelir a tributação estatal.

De qualquer modo, o inventário negativo não estará submetido às regras do procedimento de inventário, não havendo necessidade de nomeação de inventariante, nem de prestação de primeiras declarações e avaliações, até mesmo porque ine-xiste patrimônio a ser inventariado. Não se trata, também, de procedimento especial de jurisdição voluntária. Cuida-se, em verdade, de procedimento comum ordinário, visivelmente litigioso.

O Ministério Público somente precisará intervir como fiscal da ordem jurídica (custos juris) no inventário negativo se houver interesse de incapaz. Outrossim, é de fundamental importância, em rela-ção à proteção jurídica de terceiros, sublinhar que a decisão prolatada na ação de inventário negativo não atingirá a esfera jurídica de terceiros. Assim, a sentença que, eventualmente, reconhecer que o falecido não deixou bens não impedirá terceiros--interessados de ajuizar demandas contra o espólio(ou os sucessores) do extinto.

In fine, se registre quem vem sendo admitido o inventário negativo por escritura pública, con-forme previsão do art. 28 da Resolução n. 35 doConselho Nacional de Justiça, desde que todas aspartes sejam capazes e concordes e estejam assistidas por advogado comum ou advogados de cada umadelas ou por defensor público.

2.3 Os diferentes procedimentos de inventário

A legislação processual estabeleceu um procedi-mento básico, padrão, para o inventário. Trata-se de um procedimento bifásico, escalonado, dividido em duas partes: inventariança e partilha. Na primeira fase, busca-se a individualização dos bens, com a

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respectiva avaliação, além do pagamento das dívidas do falecido e recolhimento fiscal. Depois disso, em um segundo momento, faz-se a divisão dos bens.

Ao lado desse procedimento básico, foram dis-ponibilizadas outras possibilidades procedimentais, mais simplificadas e abreviadas, para atender a situações sem complexidade ou sem litigiosidade. São as hipóteses de arrolamento sumário e de arro-lamento comum, nas quais o procedimento ganha celeridade e menos dinâmica.

Outrossim, permite-se o inventário extrajudicial, lavrado por meio de escritura pública, perante o notário, desde que, inexistindo testamento, todos os herdeiros sejam plenamente capazes e estejam harmô-nicos quanto à partilha do patrimônio transmitido.

Para além de tudo isso, conserva-se a possibi-lidade de alvará judicial, para o levantamento de pequenas quantias pecuniárias deixadas pelo extinto, sem outros bens a partilhar, conforme regulamen-tação prevista na Lei no 6.858/80, regulamentada pelo Decreto no 85.845/81.

2.4 O procedimento tradicional de inventário

O inventário tradicional é o mais complexo rito procedimental sucessório, sendo tratado como uma hipótese de jurisdição contenciosa pelo Código de Processo Civil. A complexidade é maior, dividindo o seu andamento em duas fases: i) a inventariançapropriamente dita, dizendo respeito à avaliaçãodo patrimônio deixado pelo finado, bem como opagamento de suas dívidas e recolhimento fiscal;ii) a partilha dos bens entre os beneficiários.

Trata-se do tipo padrão de procedimento, maiscadenciado e com cognição mais ampla e vertical. Inicia-se através de petição inicial, seguindo-se com a nomeação do inventariante, primeiras declara-ções, citações e impugnações, avaliação e cálculo de imposto, últimas declarações, pagamento de dívidas até desaguar na partilha ou adjudicação. Será obrigatória a adoção desse procedimento quando há interesse de incapaz ou conflito entre os interessados acerca da partilha dos bens e o valor do patrimônio exceder a um mil salários-mínimos.

O iter procedimental será analisado adiante, por conta da sua maior complexidade.

2.5 O arrolamento sumário

O art. 659 do Código de Processo Civil de 2015 autoriza a simplificação do procedimento inventarial quando, independentemente do valor do

patrimônio transmitido, todos os herdeiros forem maiores e capazes e estiverem de acordo quanto à partilha. Até mesmo porque a via cartorária (extrajudicial) é facultativa, podendo o interessado preferir o Poder Judiciário. Ressalta-se, pois, como grande marca registrada do arrolamento sumário o ajuste de vontade entre os interessados.

Também se utiliza o procedimento abreviado do arrolamento sumário quando se tratar de herdeiro único, com vistas à adjudicação do patrimônio transmitido (CPC, art. 659, § 1º).

É o chamado arrolamento sumário, que, a toda evidência, possui natureza de procedimento especial de jurisdição voluntária, malgrado esteja topologica-mente encartado na jurisdição contenciosa. Até porque, relembre-se à exaustão, nessa hipótese, o inventário e a partilha podem ser feitas em cartório, por mero procedimento administrativo.

Apresenta-se ao juiz para homologação uma proposta de partilha dos bens deixados pelo de cujus, com a petição inicial, atribuindo-lhes valor e acompanhada da comprovação de quitação tri-butária e da certidão de óbito do extinto (CPC, art. 660). Vê-se, portanto, que as partes devem providenciar a quitação fiscal antes da propositura do arrolamento, comprovando-a com o protocolo da ação, como condição à homologação.

Não será admitido o arrolamento sumário, obviamente, se um dos coerdeiros ou legatários não tiver sido localizado, presumindo-se, nessa hipótese, a existência de litígio, impondo o uso da via tradicional do inventário.

Nessa modalidade (arrolamento sumário), não haverá intervenção da Promotoria de Justiça, como fiscal da ordem jurídica, uma vez que inexiste in-teresse de incapaz. Por igual, não há necessidade de citação da Fazenda Pública, na medida em que o tributo já foi recolhido.

Na mesma tocada, dispõe o art. 662 do Códigode Processo Civil de 2015: “no arrolamento, não serão conhecidas ou apreciadas questões relativas ao lançamento, ao pagamento ou à quitação de taxas judiciárias e de tributos incidentes sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio”.

Exatamente por conta do seu caráter simpli-ficado, não serão lavrados termos de qualquer espécie, nem procedida qualquer avaliação dos bens, apenas sendo necessária a homologação judicial. Apenas se impõe a avaliação patrimonial se algum credor do espólio, cientificado a respeito do procedimento, impugnar os valores estimados. Aliás, pondera Luiz Paulo Vieira de Carvalho que a eventual existência de credores do falecido “não

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impede a homologação da partilha ou da adjudi-cação, desde que reservados bens suficientes para o pagamento da dívida”.100

Singrando os mesmos mares, infere-se que aeventual existência de interesses de credores não serve como óbice à homologação da partilha pro-posta pelos sucessores, se existem bens suficientes reservados para tanto. No caso, os credores podem se valer das vias ordinárias para a cobrança de seu crédito, não se justificando obstar a homologação do arrolamento.

Nada impede que, no curso de um inventário tradicional, em que os interessados controvertem quanto a partilha dos bens, se chegue a um consenso, amigavelmente. Nesse caso, é possível a conversão do inventário em arrolamento sumário, atendidos os requisitos exigidos para este.

2.6 O arrolamento comum (ou arrolamento sumaríssimo)

A outra hipótese de simplificação do procedi-mento de inventário tem como fundamento o valor do patrimônio transmitido pelo falecido, pouco interessando a capacidade, ou não, das partes ou a eventual existência de conflitos de interesses. Se a soma dos bens deixados pelo finado for igual, ou inferior, a mil salários-mínimos não se justifica a imposição de um procedimento mais cadenciado e exauriente.

Conquanto a maioria da doutrina aluda a esta categoria de inventário sob a terminologia de arrolamento comum, alguns autores preferem denominá-lo de arrolamento sumaríssimo, por conta do seu objeto mais simplificado.

Giza, a respeito, o art. 664 do Código Instrumental:

“Quando o valor dos bens do espólio for igual ou inferior a mil salários-mínimos, o inventário processar-se-á na forma de arrolamento, cabendo ao inventariante nomeado, independentemente de assinatura de termo de compromisso, apresentar, com suas declarações, a atribuição de valor aos bens do espólio e o plano da partilha. § 1º Se qualquer das partes ou o Ministério Público impugnar a es-timativa, o juiz nomeará avaliador, que oferecerá laudo em 10 (dez) dias. § 2º Apresentado o laudo, o juiz, em audiência que designar, deliberará sobre a partilha, decidindo de plano todas as reclamações e mandando pagar as dívidas não impugnadas. § 3º Lavrar-se-á de tudo um só termo, assinado pelo juiz, pelo inventariante e pelas partes presentes ou por

100 CARVALHO, Luiz Paulo Vieira. Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 845.

seus advogados. § 4º Aplicam-se a essa espécie de arrolamento, no que couber, as disposições do art. 672, relativamente ao lançamento, ao pagamento e à quitação da taxa judiciária e do imposto sobre a transmissão da propriedade dos bens do espólio. § 5o Provada a quitação dos tributos relativos aosbens do espólio e às suas rendas, o juiz julgará apartilha.”

No ponto, é conveniente chamar a atenção para um detalhe importantíssimo: o que se deve levar em conta para a admissibilidade deste procedimento facilitado é o valor dos bens integrantes do espólio, sendo irrelevantes outras indagações.

O arrolamento comum se inicia por petição inicial de um dos herdeiros ou legatários, acompa-nhada da certidão de óbito do titular do patrimônio e da comprovação do recolhimento. Em seguida, nomeado o inventariante, será apresentada, com as primeiras declarações, uma proposta de partilha entre os interessados, com a respectiva atribuição de valores aos bens deixados pelo de cujus. Por óbvio, se algum dos coerdeiros ou legatários – ou ainda algum credor, a Fazenda Pública ou o Mi-nistério Público, quando eventualmente intervir no feito – impugnar o valor estimado dos bens, deverá o magistrado nomear avaliador e, em se-guida, deliberará sobre a matéria, promovendo a partilha, se for o caso.

No limite do valor previsto em lei (mil salários mínimos), mesmo existindo interesse de incapaz, o procedimento será abreviado, exigindo, nessahipótese, a atuação do Promotor de Justiça comofiscal da ordem jurídica (custos juris), embora semse atrelar à defesa destes interesses (CPC, art. 665).Igualmente, não afasta o uso dessa via a eventualexistência de litígio entre os interessados.

Outrossim, advirta-se que o juiz do arrolamento comum não decidirá qualquer questão que exija prova não documental. Sendo necessária a produ-ção de provas, as partes devem ser encaminhadas para as vias ordinárias. É condição necessária à prolação de decisão judicial a comprovação da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas.

2.7 O inventário extrajudicial

Buscando a racionalização das atividades proces-suais (no que tange ao inventário) e a simplificação da vida jurídica dos cidadãos brasileiros, foi editada a Lei no 11.441/07, tornando possível o inventário pela via cartorária. A partir da aludida norma le-gal, o inventário consensual se tornou possível na esfera administrativa, através de escritura pública,

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quando as partes interessadas forem maiores e capazes e desde que estejam acordes (isto é, não exista conflito de interesses) quanto aos termos da partilha dos bens transmitidos por morte. Por natural, exige a comprovação do recolhimento tributário decorrente da transmissão patrimonial causa mortis e independe de homologação judicial e de intervenção do Ministério Público, pela ine-xistência de incapazes.

O art. 610 do Código de Processo Civil de 2015, mantendo a diretriz, assevera:

“Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a parti-lha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de impor-tância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”

Registre-se, no ponto, adesão à opinião de Christiano Cassettari no sentido de que impede o uso da via cartorária a existência de nascituro do autor da herança: “como o nascituro teria, neste caso, direito sucessório, caso venha a nascer com vida, por ser ele incapaz, impossível será adotar o procedimento extrajudicial, sendo necessário,obrigatoriamente, o inventário judicial”.101

Em síntese apertada, porém completa, Rodrigo Santos Neves assevera ser possível o inventário extrajudicial desde que preenchidos os seguintes requisitos: “a) capacidade civil plena de todos os herdeiros; b) acordo entre todos os herdeiros; c) que todos os herdeiros estejam assistidos por ad-vogado; d) comprovação de quitação dos débitos fiscais; e) pagamento do ITCD; f) lavratura da escritura pública”.102

É possível a lavratura de escritura pública de inventário mesmo que pendente uma ação de inventário. É que as partes podem ter chegado a um consenso quanto à partilha ou pode um dos interessados ter atingido a plena capacidade civil. Não é requisito para a lavratura do ato a prova da inexistência de inventário em tramitação. Aliás, exatamente pela mesma lógica, é possível às par-tes realizar em cartório a sobrepartilha de bens supervenientes a um inventário que tramitou em

101 CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública. 5. ed. São Paulo: Método, 2012, p. 150.

102 NEVES, Rodrigo Santos. Curso de direito das sucessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 360.

juízo, desde que capazes e concordes os interes-sados. Assim, sobrevindo a um inventário judicial a descoberta de bens pertencentes ao falecido, é possível fazer a sobrepartilha em cartório, se um dos herdeiros, antes incapaz, já alcançou a plena capacidade.

Segundo o texto legal, o uso da via cartorária é facultativo, não obrigatório, aos interessados. Assim, em conformidade com a lei brasileira, é possível optar entre o inventário em juízo e o in-ventário administrativo, malgrado abalizada crítica doutrinária, que reclama cuidadosa reflexão pela sua pertinência.103

Sob o ponto de vista prático, não há distinção eficacial entre uma sentença de partilha e uma escritura pública, uma vez que, em ambas as esfe-ras, tem-se um título executivo, com idoneidade e idêntica força executiva. A propósito, inclusive, o §1º do art. 610 é de clareza solar ao asseverar que a escritura pública é idônea para quaisquer atos de registro, bem como para o levantamento de valores em instituições financeiras.

Todavia, em proibição pouco coerente, a legis-lação não admite o uso da via administrativa de inventário se o falecido deixou testamento. Nesse caso, imperativo o manejo de inventário em juízo, por conta da necessidade de prévia homologação do testamento. Entretanto, em 2019 o STJ decidiu: “mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a ex-pressa autorização do juízo competente” (STJ, REsp 1.808.767). O tribunal destacou que a mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes.

Com vistas à facilitação do procedimento ad-ministrativo de inventário, padronizando regras, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução no 35/07, normatizando a matéria. Perlustrando o caminho pavimentado pela legislação processual (CPC, art. 610) e pelo ato normativo do órgão administrativo de cúpula do Poder Judiciário, nota--se que não se aplicam ao inventário em cartório as regras de competência judicial – até mesmo porque tabelião não possui poder jurisdicional. Por isso, é admissível a lavratura de escritura pública

103 cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2012. v. 3, p. 495-496.

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de inventário em qualquer cartório do território nacional, independentemente do local do óbito ou de onde estejam situados os bens deixados pelo de cujus. Ademais, como não poderia ser diferente, a lavratura da escritura pública de inventário e demais atos notariais serão gratuitos para as pessoas que se declarem pobres (Resolução CNJ 35/07, arts. 6º e 7º). Contudo, a isenção de taxas cartorárias não abrange, por óbvio, a isenção tributária – que só pode ser determinada por lei.

É obrigatória a assistência dos interessados por um advogado ou Defensor Público, com vistas à preservação de seus interesses (CPC, art. 610, §2º). Pode se constituir um advogado único para assistir a todos os interessados, bem como cada um pode constituir o seu patrono. Dispensa-se a apresentação de instrumento procuratório, se todos os presentes ao ato lavrarem a escritura, uma vez que a vontade do interessado é declarada no ato. Exige, outrossim, o art. 11 da Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça a nomeação de um dos interessados como inventariante, com vistas a representar o espólio.

O notário pode se recusar à lavratura da es-critura pública de inventário quando ausente um dos seus requisitos, como, exempli gratia, quando há interesse de incapaz. Além disso, também pode se negar à prática do ato quando há “fundados indícios de fraude ou em caso de dúvidas sobre a declaração de vontade de algum dos herdeiros” (Resolução CNJ 35/07, art. 32). Nesses casos, com vistas a evitar arbitrariedades pelo tabelião, é cabível a impetração de mandado de segurança contra a negativa do agente público.

2.8 O alvará judicial

Se o falecido não deixou bens a partilhar, apenas resíduos pecuniários (dinheiro), não se mostra coerente exigir a abertura de inventário. Impor ao interessado perpassar por ambas as fases da inventariança para receber pequenas quantias seria exacerbado formalismo. Nesse caso, admite--se o levantamento de maneira simplificada, por meio do chamado alvará judicial, disciplinado na Lei no 6.858/80, regulamentada pelo Decreto no 85.845/81.

O alvará judicial é um procedimento especial de jurisdição voluntária tendente a disciplinar a transmissão do patrimônio de alguém que faleceu deixando, tão somente, valores pecuniários (di-nheiro) não excedentes a 500 OTNs (Obrigações do Tesouro Nacional). Em moeda corrente, o valor

remonta a algo em torno de vinte mil reais e pode ter diferentes origens, como FGTS, PIS/PASEP, saldo de salário, restituição de imposto de renda etc.

Havendo bens a partilhar, além dos valores pecuniários, o entendimento dos Tribunais vem sendo cimentado no sentido de que seria necessária a abertura de um inventário para que se promova a partilha do patrimônio transmitido (TJ/RS, Ac. 7ª Câmara Cível, ApCív 70062359955 – comarca de Soledade, rel. Desa. Liselena Schifino Robles Ribeiro, j. 4.11.14, DJRS 6.11.14). Em nosso entendimento,porém, considerando que os procedimentos dejurisdição voluntária, admitem o julgamento como uso da equidade, sem a legalidade estrita (CPC,art. 723, Parágrafo Único), vislumbramos a pos-sibilidade de concessão de alvará mesmo quandoexistem outros bens a serem partilhados (como umautomóvel ou mesmo ações de uma empresa), desde que respeitado o limite pecuniário estabelecido noantes referido Diploma Legal.

Ainda sobre o alvará judicial, pontue-se uma questão a exigir interpretação conforme a Constituição. É que o art. 1º da Lei no 6.858/80 dispõe que os valores pecuniários deixados pelo falecido serão pagos “aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da le-gislação específica dos servidores civis e militares” e, somente na falta deles, “aos sucessores previstos na lei civil”. Com efeito, mostra-se absurdo ga-rantir o pagamento aos dependentes habilitados no Órgão Previdenciário em prejuízo dos filhos do falecido eventualmente não habilitados no INSS, por qualquer motivo. Violaria a isonomia constitucional entre os filhos, a mais não poder, manter esse entendimento.

Por derradeiro, chame-se a atenção para que não se confunda o alvará judicial com o alvará incidental. Aquele é um procedimento para o levantamento de resíduos pecuniá rios deixados por quem não transmitiu outros bens. Este é uma autorização judicial, concedida em um inventário que tramita perante o juízo das sucessões, com o propósito de autorizar a prática de um determinado ato ou antecipar a entrega de dinheiro a um interessado. É o exemplo do herdeiro que, necessitando atender asituações emergenciais, recebe valores pecuniárioscomo antecipação de herança.

Em ambas as hipóteses, a competência para processar e julgar o pedido de alvará é do juízo competente para processar e julgar as questões relativas à sucessão, mesmo quando se trate do levantamento de quantias depositadas em órgãos federais, conforme sacramentado pela Súmula 161