da justiça como realização

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ev is ta a Fac u a e e Le tras rie e Fi os o a,  29 2012 9 58 1 9  Investigadora doutoranda do Grupo de investigaçã Philosophy and Public Space o Instituto de Filosoa da Universidade do Porto. Bolseira da FCT . Este estudo insere-se no projeto de doutoramento ica, cida da nia e educaç . A los o a pr ica de Ade la Cor tina   1 Ó, ica a Nicómaco, rad. portu guesa de Ant nio C. Caeir o, Quetzal Ed itor es, Lisboa 2004, Liv. V , 1, 1129b30-1130a1 (p. 109). * DA JUS A C OMO REALIZA Çà . UM PERCURSO COM AMARTYA SEN E ADELA CORTINA bstract is reexion intends to present a brief philosophical dialogue between two distinct, but nevertheless, complementary , pathways of justice: 1. fairness as ruling principle for the public institutions: the living- ogether; 2. liberty as the capability to accomplish justice, specially focusing on Sen´s conception of capabilities. Final ly , I intend to develop a brief consideration on Adela Cortina´s cordial and civic ethics, in order to interconnect both the anthropological and the political conceptions of justice. eywords: Justice, capabilities, libert y , cordial reason, commitment. Resu o  presen te reex ão estabelece um pequeno diálogo los co entre dois tr ajectos d istintos da just iç , contudo co mplementare s: 1. Da equ idade co mo ideia r egulado ra das ins tituiç s socia is e polí ticas em prol do vi ver junto s; 2. Da liberdad e como cap acidad e de real izaçã da justi ç a partir do e nfoque da s capacidades de Amartya Sen. Para nalizar, farei uma breve apreciaç o da ca cívica e cordial de Adela Cortina , para as sim fa zer comun icar os do is percu rsos da ju stiç : o políti co e o antrop oló ico. alavras chave  just iça, capaci dades , li berda de, raz cordial, co mpromisso .  justiça concentra em si toda a excelência. É, assim, de modo supremo mais comple ta das excel ncias. na verdade, o uso da excel ncia comple ta. comple ta, porque quem a p oss uir tem o poder de a usar n o apenas s para s , as tamb com outr em. P ois , de f acto , há muit os q ue tê m o po der d e fazer uso da excel nci a em a ssu ntos que l hes pert encem e dizem respeito, mas s impot entes pa ra o fazer na sua relaç o com outr em. ica a Nicómaco, Aris t tele s 1

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Apontamentos sobre direito e justiça.

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evista a Facu a e e Letras – Série e Fi oso a, 29 2012 9 58 1 9 

 Investigadora doutoranda do Grupo de investigaçã  Philosophy and Public Space  o Instituto deFilosofia da Universidade do Porto. Bolseira da FCT. Este estudo insere-se no projeto de doutoramento“ ica, cidadania e educaç . A filosofia pr ica de Adela Cortina  

1 Ó, ica a Nicómaco, rad. portuguesa de Ant nio C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa2004, Liv. V, 1, 1129b30-1130a1 (p. 109).

*

DA JUS IÇA COMO REALIZAÇà  .UM PERCURSO COM AMARTYA SEN E ADELA CORTINA 

bstract is reflexion intends to present a brief philosophical dialogue between two distinct, but nevertheless,

complementary, pathways of justice: 1. fairness as ruling principle for the public institutions: the living-ogether; 2. liberty as the capability to accomplish justice, specially focusing on Sen´s conception of

capabilities. Finally, I intend to develop a brief consideration on Adela Cortina´s cordial and civic ethics,in order to interconnect both the anthropological and the political conceptions of justice.

eywords: Justice, capabilities, liberty, cordial reason, commitment.

Resu o presente reflexão estabelece um pequeno diálogo filos fico entre dois trajectos distintos da justiç ,

contudo complementares: 1. Da equidade como ideia reguladora das instituiç s sociais e políticas emprol do viver juntos; 2. Da liberdade como capacidade de realizaçã da justiç a partir do enfoque dascapacidades de Amartya Sen. Para finalizar, farei uma breve apreciaç o da ca cívica e cordial de AdelaCortina, para assim fazer comunicar os dois percursos da justiç : o político e o antropoló ico.

alavras chave  justiça, capacidades, liberdade, raz cordial, compromisso.

 justiça concentra em si toda a excelência. É, assim, de modo supremomais completa das excel ncias. na verdade, o uso da excel ncia completa.

completa, porque quem a possuir tem o poder de a usar n o apenas s para s ,as tamb com outrem. Pois, de facto, há muitos que têm o poder de fazer

uso da excel ncia em assuntos que lhes pertencem e dizem respeito, mas simpotentes para o fazer na sua relaç o com outrem.ica a Nicómaco, Arist teles1

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reconhecer que, para Sen, o comportamento individual dos cidadãos e a sua capacidaderacional em destrinçar o justo do injusto, em raciocinar com justiça sobre os seus «objectivos,

na i a es e va ores» ão ou mais importante para a esco a socia o que os me oresarranjos institucionais, mesmo que estes tenham sido «razoavelmente» definidos ao níveltranscen enta , ou ao n ve e um «como se» inte ectua mente em pensa o, segun o as

etapas construtivas de uma « ociedade bem ordenada»Recon ecemos pois, neste passo, a termino ogia raw siana, a que exp icita que a virtu eda justiça, ao estabelecer e aprumar o funcionamento das instituições democráticas, devepautar-se pe as exig ncias eitas pe a equi a e, que, por sua vez, pressup em uma postura eimparcialidade, embora esta última seja resolvida pela situação a-histórica da posição original.

ssa posição e imparcia i a e, « ec a a» ava ia Sen em re ação a Raw s, encarcera so «o v uda ignorância» as distintas conceções de vida boa das partes deliberantes e remete-as preci-amente para uma concepção política de justiça: grupal, não individual, e razo vel, mais do

que racional, porque em ú tima análise, a concepção da justiça deve conseguir estabelecer ascondições de possibilidade de existência das instituições sociais e políticas na sua capacidade

e equi a e. Os ci a ãos, por outro a o, j evem ter em «escon i os» os seus nteresses epreferências porque estes não são necessários ou bem-vindos à deliberação «original»Para Raw s, raciona e razo ve são uas i eias istintas e in epen entes, o que nã

quer dizer que não possam ser complementares. São duas ideias que não podem funcionarepara amente, mas a ver a e que, segun o Raw s: «o razo ve p ico num senti o em que

o racional não é. Isso significa que é graças ao razoável que nos inserimos no mundo públicoe que estamos ispostos a propor, ou a aceitar, con orme seja o caso, termos equitativos ecomparação com os outros.» O razoá el subentende um uso público da razão e esse é, por suavez, mais va oriza o o que o raciona e o nico que permite o exercício a imparcia i a e na« osição original». Ora para Sen, e de acordo com o enfoque das capacidades, o entendimento

rawlsiano do uso público da razão esquece uma das tarefas mais essenciais do uso daracionalidade, e que mais acima já apresentámos, a saber: a capacidade de escrutínio moraldos nossos interesses, sentimentos e preferências, que temos de ser capazes de analisar e deconver er em mot vaç es inte igentes a nossa açã  8  Por esse motivo, Sen pre ere o mo e o a«imparcialidade aberta» de Adam Smith, um modelo mais próxima da realidade antropoló ica

e ca a pessoa e que perante si mesma tem a o rigação e se examinar, escutan o «o omemdentro do peito» Segundo o autor da Teoria dos sentimentos morais ublicada em 1759:

unca somos capazes de pesquisar os nossos sentimentos e motivos pr prios:a seu respeito, nunca somos capazes de elaborar qualquer juí o, a menos que, porassim dizer, nos retiremos a n s mesmos do nosso posto natural e, com denodo, nos

S, Amartya, A ideia de justiça , op. cit., p. 72.7 S, Amartya, A ideia de justiç  , op. cit., p. 84.8 O conceito ou a aç convers o , que podemos avaliar como uma das posturas mais sin nimas

o conceito de capacidade de Amartya Sen, estava já presente na sua obra O desenvolvimento comoliberdade  de 1999, e nas seguintes palavras: Se a quest o está em centrar-nos na oportunidade real doindivíduo para conseguir os seus fins (como Rawls explicitamente recomenda), ent ter-se- de term conta n apenas os bens primários que cada pessoa possui, mas tamb as característ cas pessoa s

relevantes que comandam a convers o dos bens prim rios em capacidade pessoal de promover os

pró rios fins.» S, Amartya, O desenvolvimento como liberdade, rad. portuguesa de Joaquim CoelhoRosa, Gradiva, Lisboa 2003, p. 88.

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S, Adam, e theory of moral sentiments , III, 1, 2, Clarendon Press, Oxford 1976, p. 110.Citado por S, Amartya, A ideia de justiç  , op. cit., p. 187.

0 Ao autor da obra eoria dos sentimentos morais , preocupa, avalia Sen, necessidade de alargar aiscuss a fim de evitar o apego acrítico a valores de tipo local ( aroquialismo local dos valores, localarochialism), pois este poderia levar a ignorar certos argumentos pertinentes que fossem pouco familiares

no mbito de uma cultura particular. (…) insistência de Adam Smith em que, entre outras coisas,lhemos para os nossos sentimentos « uma certa dist ncia (de nó pr prios)» encontra o seu motivo na

necessidade de submeter a escrutín o n só os nteresses pr prios, mas tamb m o impacto exercido porusos e tradições j estavelmente entrincheiradas. S, Amartya, A ideia de justiç  , op. cit., p. 187.

1 R, John, ma teoria da justiç  , trad. portuguesa de Carlos Pinto Correia, Editorial Presenç ,Lisboa 1993, p. 27.

apliquemos a vê los como que a uma certa distância de n mesmos. Mas de nenhumaoutra maneira poderemos fazer isto senã aplicando-nos denodadamente a vê-loscom os olhos de outras pessoas, como essas pessoas provavelmente os ver . 9

 nessa postura «a uma certa ist ncia e n s mesmos» que resi e o ver a eiro exerc cioda imparcialidade, que embora se inicie dentro de nó , veiculado por um exame racional aoqua su metemos as nossas priori a es, insiste na necessi a e e pensar um ora e n s,com o auxílio de outras vozes, mais informadas ou mais sábias, desviando-nos assim do«paroquia ismo oca os va ores»10. O que est em jogo, nas pa avras e A am Smit , oresgatar da dimensão antropoló ica compreensiva da justiça sem a qual o sentido do político,ou do que público ou universal, permanecer assente numa ideia contratual ou ficcionalda justiça, na qual temos de «ignorar» os nossos interesses, preferências, prioridades, desejos,necessidades, etc. Nenhuma ideia de justiça funciona, ou tem sentido, se a sua aplicabilidaderesi ir na ignor ncia os interesses mais pr rios, priva os. E, segun o Sen, não po emos

ois rejeitá-los, é preciso sim perscrutá-los, ver se se coadunam com a realidade; se são ou nãorea iz veis, se preju icam ou não a vi a e a gu m, e a partir essa consci ncia «examina a»agir. Talvez seja por esse motivo que Aristóteles disse, na epígrafe deste texto, que a justiçaconsiste no «uso a exce ncia comp eta [e] comp eta, porque quem a possuir tem o po erde a usar não apenas só para si, mas também com outrem.» Vemos que, de acordo com a suai eia e justiça, Arist te es não es iga o senti o e si o senti o e comuni a e, porquenão podemos esquecer que para o filósofo grego, a ética é pref cio da política e que, por suavez, não po e existir ci a ão virtuoso sem que este seja tam m um omem virtuoso. Seeste descurar o «modo antropológico» de ser e de querer ser - de tornar-se melhor e maisinteligente, como diria Wittgenstein - todo o esforço tico ou projeto político democrático

oderá estar condenado a «estacionar», e infelizmente, a esquecer a primeira parte da asserçãodo próprio Wittgenstein: «estou a trabalhar com grande afinco»

. No início da sua obra Uma teoria da justiç  , John Rawls asseverava que «a justiçaa virtu e primeira as instituiç es sociais, ta como a ver a e o para os sistemas e

ensamento.» 1  A dinâmica justa das instituições sociais, progressivamente entendida,conseguir tornar, no enten er e Raw s, a pr tica a ci a ania mais equitativa, sem exceçã ,

 já que inspirará os cidadãos a serem menos egoí tas e mais conscientes do seu dever de pertençacomuni a e. A posição origina cciona a por Raw s servir , portanto, para acentuar a

forte divergência entre: 1. as distintas doutrinas compreensivas de bem comum ou de vidaboa (que todas as pessoas reconhecem num determinado projeto de vida, na sua profissão ou

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religião, por exemplo); e 2. a ideia de justiça como estrutura bá ica da sociedade e pilar dasdistintas instituições sociais Constituição; leis do domínio da propriedade; leis da fiscalidade;nst tu ç es que co rem os ireitos sociais os ci a ãos . Segun o ava ia João Car oso Rosasobre este tema: «o liberalismo igualitário de Rawls  polí ico, não abrangente » 2. A ideiae justi a raw siana e a sua consequente consci nc a p ica - razoa i i a e mais o que

racionalidade - têm lugar apenas no domínio político institucional. O modo procedimental depensar, passo a passo, o contrato socia não eve, portanto, ser a eta o pe as i eias expressivasdo bem comum, pois as suas incomensurá eis vivências - factum do pluralismo moral -, nãopo em jamais contaminar o quo uncionamento as instituiç es sociais constituciona menteinspiradas. E é ainda por esse motivo, que as partes deliberantes da posição original se sujeitame pactuam so o « u e ignor ncia», ou seja, no escon ecimento em re ação sua posiçãopessoal e social, actual ou vindoura: de classe, de estatuto, de riqueza, de profissão, de religião,numa palavra, de realização de um projeto de vida boa 3.

É a cidadania que importa a Rawls não a pessoalidade ou a personalização do humanoque segundo Arist teles pressuporia a autorrealização do thos  - do caracter enquanto morada

pr pr a - a nstauração e si, que nas pa avras e A as air MacIntyre enten e a passagem o« omem-tal-como-é» ao «hombre-tal-como-poderia-ser-se-realizasse-sua-natureza-essencial» 4.O o jetivo e Raw s azer assentar a pr tica po tica, grosso mo o, na justi a, inspiran o-aà não-aversão a princí ios éticos universais, maximizando o mínimo de liberdade, primeiro,e e igua a e, segun o. Mas, em oa ver a e, a sua intenção con eriu tica uma projeçãunicamente política e tornou depreciativa e ineficaz a relação entre o espaço público e o espaçopriva o, o ci a ão e a pessoa, issocian o e mo o c aro essa re ação. No un o, a sua i eiade imparcialidade, como também já analisámos, esgotou-se numa posição que, para além deer origina - a- ist rica -, ignorou o escrutínio mora situa o e ca a pessoa em re ação ai pró ria, esqueceu o modo antropológico de examinar-se, de examinar os seus valores e de

12 R, João Cardoso, Concepções de justiç  , Edições 70, Lisboa 2011, p. 52.13 Como defende John Rawls, na obra O liberalismo pol   t co, a sua teoria da justiça como equidade,

riunda do republicanismo cl sico, deve rejeitar o humanismo cívico de Arist teles, por este últimoresidir no núcleo das doutrinas compreensivas do bem. Segundo Rawls «[O humanismo cívico é] umaorma de aristotelismo, às vezes é enunciado como a vis de que o homem é um animal social, outé mesmo político, cuja natureza essencial se realiza mais plenamente numa sociedade democr ticande existe uma participaç ampla e vigorosa na vida política. A participaç n encorajada como

necessária proteçã das liberdades fundamentais da cidadania democr tica; (… é uma forma do bemntre outras, por mais importante que seja para muitas pessoas. Ao contrário, tomar parte ativa na vida

pública de uma democracia considerado como o lugar [locus ] privilegiado da vida boa. Isso voltar aar um lugar central àquilo que [Benjamin] Constant chamava as « iberdades dos antigos» e tem todoss seus defeitos . No entanto, penso que a revitalizaç do espaç público como espaç comum terá e se reavivar neste sentido do bem que também é justiç , na pr pria auto-realizaçã humana e não s

na auto-realizaç o da cidadania ou da raz o pública, tal como Rawls afincadamente defendeu. R, John, El liberalismo polí   tico, Crí ica, Barcelona 1996, pp. 240-241.

14 Tal como comenta MacIntyre, a teleologia aristot ica que pressup e a passagem « l-hombre-al-como-es ao l-hombre-tal-como-podrí -ser-si-realizara-su-naturaleza-esencial d lugar ao sujeitoutónomo do Iluminismo: « l agente moral individual liberado de la jerarquí y la teleologí , [que]e autoconcibe y es concebido por los fil ofos morales como soberano en su autoridade moral. Umoberano legislador que d a si mesmo a lei universal, sem a necessidade da mediaç da alteridade,

em a sua aprovaçã ou conhecimento. MIY, Alasdair, ras la virtud  5  ed., trad. castelhana dem lia Valc rcel, Crí ica, Barcelona 2009, pp. 76 e 87.

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erguntar se eles passam ou não pelo tamis da objectividade moral. Assumimos que a procurada objectividade moral não pode deixar de passar pela capacidade humana de analisar oin ivi ua atrav s o universa , e perscrutar os meus va ores atrav os va ores os outros,e de abrir o «meu» juízo moral à comunidade, circunstanciando-o. Essa experiência pessoale comum eve ser eva a a ca o atrav o i ogo - connosco pr r os e com os outros -, o

qual possibilitará a abertura de um espaço-tempo onde possamos ouvir as vozes dos outros,escutar as suas posturas, para me or nos « istanciarmos e n pr rios.»fortunadamente, a perspectiva de Amartya Sen quanto à questão da justiça - da justiça

como imparcia i a e - não escura este aspeto in ivi ua o ju zo pon era o, raciona ,que pensa as suas necessidades e desejos através dos valores. Se cada ser humano se detiver e

ensar um pouco me or so re as suas esco as, se or capaz e iagnosticar raciona menteas condições de possibilidade e de objectividade da sua ação moral, com vista a que esta seja

 justa e não «paroquial», nesse caso, a tarefa construtiva da justiça j ter valido a pena, aindaque pessoalmente; porque terá consistido num esforço da racionalidade que nenhum ser

umano consciente será capaz de desvalorizar. E, segundo este ponto de vista, o problema

que mais sensi i iza Sen o segu nte:«O ponto de car cter geral que aqui está em causa consiste em saber se

podemos deixar a soluç de todos os problemas ao cuidado da escolha institucional,abdicando, ao mesmo tempo, de questionar o estatuto dos acordos e das instituiçõ s,uma vez que os arran os soc a s tenham sido escolhidos, sejam quais forem as reaisconsequ ncias que daí possam advir. 15

 resposta a esta pergunta ou problema será pois negativa. Não podemos deixar todasas imens es a nossa vi a, inc uin o a a rea ização a justiça, «ao cui a o a esco ainstitucional»; não podemos considerar a justiça como se se tratasse apenas de um princí io

ou e um va or que oravante con ere egitimi a e istintas instituiç es sociais ou, fortiori , ao contrato social. Neste horizonte, Sen denuncia a fase estacionada da justiça como

e de um solstitium se tratasse: solstício da justiça entendida como  justitium 6; tal como oSol perde a sua força depois do solstício, e se resguarda durante o Inverno, a ideia perfeita de

 justiça tamb m se põe, ao modo de um contrato, e encerra princípios primeiros inaliená eisa partir dos quais todas as escolhas sociais sairão bem. O institucionalismo transcendental oucontratual da justiça, precisa assim de ganhar vigor, vida, a partir da sua realização antropoló icacompreens va e a partir esse campo a erto i er a e umana que o en oque as capaci a esde Sen pretende situar-se.

Po emos exemp i car essa preocupação antropo ica e Sen na questão que evanta a

Rawls quanto à utilidade dos distintos bens sociais primários para as pessoas e à sua possívelconversão em ens sociais e ectivos. a como aponta Jo n Raw s na sua o ra O i era ismo

 pol ico, os bens sociais primários são «direitos, liberdades e oportunidades básicos, assimcomo os meios e uso universa - como ren imentos e riquezas, e to os rece em o apoiodas bases sociais do respeito pró rio.»17 Estes bens sociais permitem dar resposta e colmataras necessidades mais b sicas dos cidadãos. E nitidamente, este índice de bens assenta numaconceção equitativa da justiça; numa conceção distributiva de rendimentos e riquezas que

5 S, Amartya, A ideia de justiça , op. cit., p. 136.6 S, Amartya, A ideia de justiça , op. cit., p. 123.7 R, John, El liberalismo polí   t co, op. cit., p. 213-214

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possam assim ajudar as pessoas menos abonadas ou desfavorecidas da sociedade. Mas, emdefinitivo, o que podem os bens sociais primários fazer por uma vida pessoal e social mais

 justa? Ou, por outras pa avras: o que po emos azer para converter esses mesmos ens sociaisprimários em capacidades?

Pois em, para Sen o pro ema a justi um pro ema e rea ização, pressup e en rentar

e tomar o poder de fazer algo para mudar a minha condição ou a condição desafortunada deoutrem, es ocan o assim o en oque os ireitos para o en oque as capaci a es. Capaci a eé ter o poder de fazer as coisas de outra maneira, de um modo não injusto ou mais justo,e e acor o com a circunst ncia. Os ens sociais prim rios po em ser-me assegura osinstitucionalmente, são um direito ou direitos, mas cada pessoa tem de ser capaz de decidir oque po e ou não azer - rea izar - com esses mesmos ens e para ta necessitamos e pon eraçãoe de decisão. Não podemos descurar que, segundo Sen, a liberdade deve ser entendida comocapacidade - poder de conversão que realiza a justiça em circunst ncias específicas, no seuentender, mais importante do que a equitativa distribuição de rendimentos e riquezas, aindaque somente contratada ou legislada. Nas palavras de João Cardoso Rosas, em relação ao

en oque as capaci a es e Sen, «o essencia nã a quanti a e e in eiro que se possui,mas o facto de isso proporcionar - ou não - o acesso ao que é essencial à vida humana numcon ex o espec co e epen ente e uma s rie e actores i erentes, como o am iente natura ,as tradições culturais e religiosas»18. Aqui Sen aproxima-se de Aristóteles quando o filósoforego izia que «a vi a e ica a o tenção e riqueza e certa orma uma vio ncia e a

riqueza não será manifestamente o bem de que estamos à procura, porque é meramente útil,portanto, enquanto ti , existe apenas em vista e outra coisa i erente e si.» 9

De acordo com a visão «já clássica» de Sen, medir o nível de desenvolvimento humanope a quanti a e e riqueza que uma pessoa tem ou que um povo possui , a to as as uzes,desvalorizar a própria capacidade humana de transformar o seu mundo e o mundo, em mudá-

lo, ao fazer da sua obra uma realidade boa, um trabalho apurado e esforçado da intelig ncia 

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. A capacidade vital de transformação de si mesmo - a liberdade de agência – deve, para ser capazdessa transformação, aliar-se a uma rede comum de pessoas, de gente próxima ou distante,que recon ecemos e nos recon ecem, que ouvimos. A i er a e e ag nc a e o comprom ssocomo valor devem estar a par; um ao lado do outro. Ambos são capacidades que não devemos

ar por a quiri as, temos e atua iz - as, no senti o o «ergon» aristot ico, se, e etivamente,queremos projetar a nossa vida na companhia dos outros, em boa companhia, e a partir dessare ação criar a nossa rea i a e. Por esse motivo, i er a e pressup e tam m o rigaçã ,responsabilidade; valores a cumprir e a partir dos quais escrutinamos as nossas preferênciase priori a es. Se apouca amente recon ecermos que a i er a e mais o que um ireito

18 R, João Cardoso, Concepções de justiç  , op. cit., p. 46.19 AÓ , É ica a Nic m co, rad. portuguesa de Ant nio C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa

2004, Liv. I, 5, 1096a5-10 (p. 24)20 Tal como reflete Sen sobre este tema: «Se liberdade é o que o desenvolvimento promove, ent

emos uma forte raz o para nos concentrarmos nesse objectivo englobante, mais do que em alguns meiosparticulares ou em alguma lista instrumental especialmente escolhida. Considerar o desenvolvimentocomo expans o de liberdades substantivas orienta a atenç para os fins que tornam o desenvolvimentolgo importante, mais do que, simplesmente, para meios que, entre outros, desempenham um papel

e relevo no processo.» S, Amartya, O desenvolvimento como liberdade , trad. portuguesa de JoaquimCoelho Rosa, Gradiva, Lisboa 2003, p. 19

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um processo - uma conquista de autenticidade - e que, por sua vez, necessita do valor docompromisso como cimento estruturante dessa morada que dentro de n s habitamos, essemo o apouca o e ver as coisas aca ar por a rir espa o, e emasia as vezes, ao mon smomotivaciona  utilitário do bem-estar.

Para que ta não acon e a, a rea ização a justi a eve pressupor uas tare as: a ag nc a

do perguntar e a agência do viver; dois modos uníssonos de estar e de ser no mundo comreocupação e com atenção. Do mo o seguinte, iz Sen:

a «[Por um a o] perguntar como vão as coisas e in agar se po eriam ser me ora as,[é] uma parte integrante da demanda da justiça a que não se poderá escapar e que,a i , ever ser constante»21

b) «[Por outro] viver num mundo em que poderá ser muito dif   cil ser-se completamenteindependente da ajuda e da boa-vontade dos demais, e, por vezes, ali s, poder nemer essa a coisa mais importante a alcançar»22.

Fica c aro que para Sen ser capaz e ser ivre con ere i er a e uma up a signi caçãe caminho: de oportunidade e de processo; e, por outro lado, de direito e de obrigação, e éor esse motivo, que as necessi a es e pre er ncias umanas terão quase sempre e passar pe o

crivo atento da racionalidade e de acordo com o reconhecimento atento dos valores morais.sses são ois momentos ina ien veis a rea ização a justi a, como temos vin o a notar:

1. O exercício da racionalidade que questiona e perscruta a realidade, inclusivamente, nósr rios; 2. O recon ecimento situa o os va ores, entre os quais o va or a on a e, aque e

que melhor ajuda a perceber o impacto das nossas ações na vida dos outros, a companhia quees evemos votar, sem escurar que ser- om não o mesmo que estar- em. O primeiro

é um processo, o segundo um resultado. No fundo, é melhor seguirmos o sábio conselho

de Arist teles: h um bem em tudo diferente do bem da riqueza, porque afinal esta últimaé somente útil para outras coisas, é um meio que serve para uma outra coisa, ou uma outracausa, e certamente, bem maior.

3.  Na perspectiva os ca e A e a Cortina, o recon ecimento cor ia os va oresmorais radica na compreensão de que os seres humanos são seres de dignidade e de grandeza,

ão, igua mente, seres e ragi i a e, e vu nera i i a e, que «o - igan» ao respeito e « igan»à compaixão, ao com-padecer. Mais a desfavor da postura deontológica da ética que advogaa a stração a re exão mora em re ação con uta ou atitu e propriamente ita, Cortinadefende que não pode existir é ica sin mora  3  , ou seja, que, por vezes, a fronteira filosóficaque separa a mora pensa a a mora vivi a tem e ser ranquea a e a em o pr priodesenvolvimento moral humano. Por esse motivo, e a dado passo da sua É ica de la razó   ncordial  Cortina defende:

 A ética cívica foi-se constituindo como o conjunto de valores e princí ioséticos que uma sociedade moralmente pluralista partilha e que permite aos seusmembros construir a vida juntos. 1. Era - e - a ética das pessoas enquanto cidad   s ,

1 S, Amartya, A ideia de justiça , op. cit., p. 139.2 S, Amartya, A ideia de justiça , op. cit., p. 412.3 C, dela, É ica sin moral  9ª ed., Tecnos, Madrid 2010.

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comprometidas na vida de uma comunidade política da qual devem ser protagonistasindiscutíveis. (…) 2. Era - e é ética : forja do caracter, do êthos , e nunca instruçãem pr ncí ios polí cos, por mu to que pertençam a const tu ç es democrát cas e pormuito que se explique a hist ria atrav s da qual se geraram tais constituiç s. 4

Sublinho: «Era - e é - é ica : forja do caracter, do êthos », motivação não original do seu

pensar, porque e ica o primariamente egitimi a e eonto ica e uma tica m nima,transcendental no sentido kantiano e dialó ica na linha da ética do discurso de Karl-Otto

 Ape e J rgen Ha ermas, mas cujo recentrar a motivação mora umana nas imens es ocuidado, da compaixão ou da cordialidade o aproxima agora do teleologismo aristotélico, numapa avra: o contexto. Neste senti o, Cortina procura revita izar pe a virtu e a compaixão oimperativo categórico kantiano tomado na formulação prática: « ge de tal modo que trates ahumanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamentecomo um fim e nunca simplesmente como um meio.»25 Procura animá-lo pela prática cordial einteligente da decisão e da ação morais; numa nova maneira ou modo de olhar a razão prática,como razão cordial, ao tornar mais humana a procura da objectividade moral e, por sua vez,

ao torná-la mais próxima do «modo antropológico» de ser e de querer ser humano.esta a rmação unem-se uas ireç es gemina as a sua Et ica cor is  : 1. Um m

limitativo: que obriga a não instrumentalizar as pessoas; a não trata-las como meios; 2. Umm positivo: aju ar as pessoas a empo erar ou a me orar as suas vi as, para que ten am

capacidade de realizá-la como algo valioso; por outras palavras, para que tenham liberdade deconquistar a sua vi a como rea i a e que va a a pena - e que su suma as penas e as a egrias- do viver2 . A ética pressupõe, portanto, esses dois modos de ser do humano, que se cumpremum no outro, e que, este mo o, não po emos pensar em separar: o mo o antropo gico emodo político, entendidos no sentido projetivo e prospetivo do humano.

O importante não somente averiguar a justiça das ações levadas a cabo pelos seres

humanos, é preciso também saber analisar se o sujeito que as protagoniza é um ser humano justo, com um caracter bem forjado, construído e, por sua vez, educado. E esta análise tamb mde nó próprios sobre nó pró rios. Foi em 1986, no prólogo dedicado à obra É ica mí ima de Adela Cortina, que Jos Luis Aranguren apontava à ticas procedimentais da justiça, deKant a Ha ermas passan o por Jo n Raw s, a seguinte imitaçã «À tica intersu jectiva,deve conjugar-se a ética intrasubjectiva, ou seja, o diá ogo que cada um de nó somos»27.Se apren emos com Arist te es, e antes e e com o mestre P atão acerca a ra ica i a e odiálogo que devemos reavivar constantemente connosco próprios, ao jeito de exame, pois diriaS crates na Apo ogia: «uma vi a não examina a não va e a pena ser vivi a»; a tica ever serempre pref cio da política e não o contrário. Não podemos continuar a insistir na inversão

o percurso mora o ser umano ao mun o, va orizan o a tica somente como tica socia dialó ica, descurando a sua feição antropoló ica.

24 C, Adela, Ética de la razón cordial. Educar en la ciudadanía en el siglo XXI  2ª ed., EdicionesNobel, Oviedo 2009, p. 11. (Itálico da autora; numeração minha)

25 K, Immanuel (1785), Fundamentação da meta   ica dos costumes , trad. portuguesa de PauloQuintela, Ediç s 70, Lisboa 2005, p. 69.

2 C, Adela, Ética de la razón cordial , op. cit., p. 223-226.27 C, Adela, É ica mí ima. Introducción a la filosofia pr   tica , 15ª ed., Tecnos, Madrid 2010,

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osé Luis Aranguren tem razão, embora uma razão intempestiva: antes de o ser humanoer um diá ogo «inter», um diálogo com os outros, deve ser um diá ogo «intra», num pensar

que examina o seu caracter e, por sua vez, inaugura e e enca aos mais pr ximos, recon ecen o-os. Aranguren vê com acutil ncia o perigo de dissolução do fenómeno moral no direito e na

o tica, ao re uzir o va or o compromisso ega i a e os princ p os t cos e, por outro

ado, ao descaracterizar o papel inédito da vida do sujeito à responsabilidade das instituições.Pois em, in agar atentamente so re a justi a as nossas aç es, sa ienta Cortina em un ssonocom Amartya Sen, é perguntar pela sua humanidade e pela do próximo, é um perguntar

os co que vigia as ronteiras a maturi a e e a esumanização, a rea ização e a ang tia,e que essa vigí ia aconteça é necessário ser tão racional quanto razoável, tão privado quanto

ico, esejan o que a pa avra o po ítico, o juiz ou o ci a ão, possa ser uma pa avrade humanidade.