a ideia de justiça - amartya sen

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Page 1: A ideia de Justiça - Amartya Sen

1A IDEIA DE JUSTIÇA

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2 A IDEIA DE JUSTIÇA

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3A IDEIA DE JUSTIÇA

AMARTYA SEN

A Ideia de Justiça

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4 A IDEIA DE JUSTIÇAA IDEIA DE JUSTIÇA

AUTOR

AMARTYA SEN

TÍTULO ORIGINAL

The Idea of Justice

Copyright © 2009 by Amartya SenFirst published by Penguin Press an imprint of Penguin Books Ltd, 2009

TRADUÇÃO

Nuno Castello-Branco Bastos

REVISÃO

Madalena Requixa

EDITOR

EDIÇÕES ALMEDINA. SAAv. Fernão Magalhães, n.º 584, 5.º Andar3000-174 CoimbraTel.: 239 851 904Fax: 239 851 [email protected]

DESIGN DE CAPA

FBA.

PRÉ-IMPRESSÃO | IMPRESSÃO | ACABAMENTO

G.C. GRÁFICA DE COIMBRA, LDA.Palheira – Assafarge3001-453 [email protected]

Outubro, 2010

DEPÓSITO LEGAL

317468/10

Os dados e as opiniões inseridos na presente publicaçãosão da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquerprocesso, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícitae passível de procedimento judicial contra o infractor.

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

SEN, Amartya, 1933-

A ideia de justiçaISBN 978-972-40-4324-1

CDU 330340304

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5A IDEIA DE JUSTIÇA

Em memória deJOHN RAWLS

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6 A IDEIA DE JUSTIÇA

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7A IDEIA DE JUSTIÇA

ÍNDICE

Prefácio 9

Agradecimentos 25

Introdução – Uma Perspectiva da Justiça 35

PARTE I

As Exigências da Justiça

1. Razão e Objectividade 71

2. Rawls e para lá de Rawls 97

3. Instituições e Pessoas 125

4. Voz e Escolha Social 141

5. Imparcialidade e Objectividade 173

6. Imparcialidade Fechada e Aberta 185

PARTE II

Formas de Racionalidade

7. Posição, Relevância e Ilusão 223

8. A Racionalidade e os Outros 247

9. A Pluralidade das Razões Imparciais 273

10. Realizações, Consequências e Agência 291

PARTE III

Os Materiais da Justiça

11. Vidas, Liberdades e Capacidades 311

12. Capacidades e Recursos 345

13. Felicidade, Bem-Estar e Capacidades 365

14. Igualdade e Liberdade 391

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8 A IDEIA DE JUSTIÇA

PARTE IV

Argumentação Pública e Democracia

15. A Democracia como Racionalidade Pública 425

16. A Prática da Democracia 447

17. Direitos Humanos e Imperativos Globais 469

18. A Justiça e o Mundo 509

Notas 543

Índice Onomástico 571

Índice de Matérias 581

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9A IDEIA DE JUSTIÇA

PREFÁCIO

«No pequeno mundo em que as crianças vivem a sua existên-cia», diz Pip no livro Grandes Esperanças, de Charles Dickens,“nada há que seja mais finamente percebido e sentido do que ainjustiça»1. Quer-me realmente parecer que Pip tem toda a razão:depois do seu encontro humilhante com Estella, acorreu-lhevivíssima a memória de como, enquanto criança, ele fora alvo deuma «coacção caprichosa e violenta» às mãos da sua própria irmã.Mas esta aguda percepção da injustiça evidente é algo que tambémacontece nos seres humanos adultos. O que nos toca, e é razoável queo faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de umestado de completa justiça – coisa de que poucos têm esperança –,mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamenteremediáveis e que temos vontade de eliminar.

Na nossa vida do dia-a-dia, isto torna-se muito claro diante deiniquidades ou subjugações de que possamos ser alvo e das quaistenhamos boas razões para nos podermos ressentir; mas é algo quetambém verificamos quando procedemos a um mais amplo diagnós-tico da injustiça que se pode encontrar nesse mundo mais vasto emque todos vivemos. Parece razoável admitir que nem os parisiensesteriam invadido a Bastilha, nem Gandhi teria desafiado esse impérioem que o sol não se punha, nem Martin Luther King teria combatidoa supremacia branca nessa land of the free and the home of thebravent, se não fosse a sua percepção da existência de injustiçasevidentes que podiam ser vencidas. Não se tratava para eles de tentarconseguir um mundo perfeitamente justo (ainda que, em qualquerdos casos, tenha chegado a haver um qualquer acordo sobre como

nt Nota do tradutor. Extraído do hino dos Estados Unidos da América: «país doshomens livres e terra dos bravos».

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1 0 A IDEIA DE JUSTIÇA

deveria ser um tal mundo), mas, o que, isso sim, já queriam eraremover as injustiças evidentes na medida do que lhes fosse possível.

A identificação da injustiça superável não é somente aquilo quenos leva a reflectir sobre a justiça e a injustiça, é, a mais disso, algode central para a teoria da justiça, e é esse um ponto que pretendodemonstrar neste livro. Na investigação que aqui apresentamos, odiagnóstico da injustiça aparecerá amiúde como ponto de partidapara discussões críticas2. Todavia – é o que logo nos podemos per-guntar – se este é um ponto de partida razoável, porque não poderáser também um bom ponto de chegada? Que necessidade há de irpara além do nosso sentido de justiça e injustiça? Porquê a necessi-dade de possuirmos uma teoria da justiça?

Entender o mundo é sempre muito mais do que apenas registaras nossas percepções imediatas. Entender implica iniludivelmenteuma acção discursiva, um raciocínio. Temos de “ler” o que sentimose o que temos a impressão de ver, e, depois, perguntar o que é queindicam tais percepções e como haveremos de as ter na devida contasem, ao mesmo tempo, sermos por elas sobrepujados ou arrebatados.Uma destas questões relaciona-se com a fiabilidade das nossas sensa-ções ou impressões. Um sentimento ou sentido de justiça poderiafuncionar como um sinal que nos move, mas um sinal exige sempreum exame crítico, e toda a conclusão que se baseie sobretudo emsinais há-de pedir um determinado grau de escrutínio relativamente àrespectiva solidez. Adam Smith tinha a convicção da importância dossentimentos morais, mas nem por isso se viu impedido de procuraruma “teoria dos sentimentos morais” nem de insistir em que o senti-mento de uma conduta errónea devesse ser examinado criticamentepor meio de um escrutínio discursivo, a fim de se descobrir se pode-ria vir a ser a base de uma condenação sustentável. E uma semelhan-te necessidade de escrutínio também se aplicará aos casos em que oque sintamos é uma inclinação que nos move a louvar uma pessoaou uma coisa*.

* O clássico de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, foi publicado háexactamente 250 anos, em 1759, e a sua última edição revista – a sexta – em 1790. Naintrodução à edição comemorativa do aniversário de A Teoria dos Sentimentos Morais(Nova Iorque, Penguin Books, 2009), tive a oportunidade de discutir a natureza do compro-metimento moral e político de Adam Smith e o modo como ele continua a ser relevante nomundo contemporâneo.

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1 1PREFÁCIO

Temos também de nos perguntar que tipos de raciocínio deve-rão ser adoptados quando quisermos avaliar conceitos éticos e políti-cos como os de justiça e injustiça. De que maneira poderão serobjectivos um diagnóstico da injustiça ou a identificação de tudoaquilo que a possa reduzir ou eliminar? Será que isso exigirá umparticular tipo de imparcialidade, como, por exemplo, o desapegodos próprios interesses já adquiridos? Será que isso exigirá tambémum reexame de certas atitudes, mesmo que estas não sejam relativasa interesses já adquiridos, reflectindo porém alguns pré-juízos oupreconceitos locais, sendo que estes poderão não conseguir sobreviverao confronto argumentado com outras atitudes que já não se vejamrestringidas pelo mesmo tipo de “paroquialismo” (parochialismnt)?Que papel hão-de desempenhar a racionalidade e a razoabilidade noprocesso que nos leva a entender as exigências da justiça?

Estas preocupações e também algumas outras questões de carác-ter geral serão vistas nos primeiros dez capítulos, após o que tratareide passar para temas de tipo aplicativo envolvendo uma avaliaçãocrítica dos fundamentos que servem de base aos juízos sobre a justi-ça (sejam aqueles liberdades, capacidades, recursos, a felicidade, obem-estar ou outros), a especial relevância de certos considerandosque figurarão sob o título geral de igualdade e liberdade, mas ainda aevidente conexão entre a prossecução da justiça e a busca da demo-cracia, esta, enquanto é vista como um (regime e modo de) governopela discussão, e ainda a natureza, viabilidade e alcance das reivindi-cações em prol dos direitos humanos.

UMA TEORIA, MAS DE QUE TIPO?

O que aqui se apresenta é uma teoria da justiça num sentido muitolato. O seu escopo é mais o de clarificar como havemos de tratar asquestões da amplificação ou reforço da justiça e da eliminação dainjustiça, e menos o de oferecer soluções para as questões que se

nt Nota do tradutor. De paróquia, expressão geral aplicável a qualquer tipo de tendên-cia acrítica para a protecção de interesses locais, nacionais ou regionais. Preferimos ficarmais próximos da letra, pois, embora pudesse corresponder à expressão “provincianismo”,o campo semântico de ambas não é propriamente coincidente.

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1 2 A IDEIA DE JUSTIÇA

levantam acerca da natureza da justiça perfeita. Neste ponto, eladifere claramente das teorias da justiça que são mais preeminentes nafilosofia moral e política contemporâneas. Como se dirá mais deespaço na Introdução que se segue, há sobretudo três diferenças quemerecem uma atenção específica.

Primeiro: uma teoria da justiça que possa servir de base parauma racionalidade prática terá de incluir meios para ajuizar de comoreduzir a injustiça e incrementar a justiça, em vez de apenas procuraruma caracterização das sociedades perfeitamente justas – prática estaque é traço assaz dominante em muitas das teorias da justiça dahodierna filosofia política. Os dois procedimentos que servem, res-pectivamente, para identificar quais sejam os arranjos ou combina-ções de factores perfeitamente justos e para determinar se uma parti-cular alteração social traria um incremento de justiça, se é certo quetêm entre si ligações motivacionais, são porém analiticamentedisjuntos. Esta última questão, sobre a qual se debruça este trabalho,é central para a tomada de decisões acerca das instituições, compor-tamentos e outros determinantes da justiça, sendo certo que o modopelo qual se chega a tais decisões não pode deixar de ser crucial parauma teoria da justiça que pretenda ser um guia para a razão práticano momento em que a mesma discorre sobre o que se deve fazer.Quanto à convicção de que esta operação de comparação não sepode levar por diante sem primeiro proceder à identificação de quaissejam as exigências da justiça perfeita, pode-se demonstrar ser elatotalmente incorrecta (ponto que será tratado no capítulo quarto,“Voz e Escolha Social”).

Segundo: conquanto possamos resolver com sucesso muitas dasquestões comparativas relativas à justiça – sobre as quais se podechegar a acordo discorrendo a partir de um confronto de argumentosracionais –, pode bem acontecer que haja outras comparações emque pontos de vista conflituantes fiquem à míngua de uma completaresolução. Pretende-se aqui sustentar que é possível existirem dife-rentes razões de justiça, cada uma delas conseguindo sobreviver aoteste de um escrutínio crítico e cada uma delas conduzindo, aindaassim, a conclusões divergentes*. De pessoas com experiências e

* A importância da pluralidade valorativa foi extensamente – e poderosamente –explorada por Isaiah Berlin e Bernard Williams. As pluralidades podem sobreviver dentro

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1 3PREFÁCIO

tradições diferentes podem emanar argumentos dotados de razoabi-lidade que seguem em direcções conflituantes, mas podem proviroutrossim do interior de uma determinada sociedade, e, aliás, nadaimpede que provenham de uma mesma pessoa*.

Ao lidar com pretensões conflituantes, impõe-se a necessidadede uma discussão assente em argumentos de razoabilidade, seja con-sigo próprio seja com os demais, e não tanto aquilo que poderíamoschamar de “tolerância descomprometida” (“desengaged toleration”),com o conforto de uma solução preguiçosa do género: «o senhor temrazão para a sua comunidade e eu tenho razão para a minha».O raciocínio e o escrutínio imparcial são coisas essenciais. Contudo,até mesmo depois do mais vigoroso dos exames críticos, poderãosobrar ainda argumentos conflituantes e concorrentes que não forameliminados pelo escrutínio imparcial. No texto que segue, terei algomais a dizer sobre isto, mas quero aqui enfatizar que de modo algumficam o raciocínio e o escrutínio prejudicados pela possibilidade dehaver prioridades concorrentes que venham a sobreviver, não obs-tante o seu confronto com a razão: esta pluralidade com que, nofinal, nos veremos a braços há-de ser o resultado do exercício darazão e não de uma abstenção do mesmo.

Terceiro: a presença de injustiças remediáveis pode muito bemestar relacionada com transgressões comportamentais, mais ainda doque com deficiências institucionais (a memória que, em GrandesEsperanças, Pip tinha daquela sua irmã coactiva era isso mesmo, enão uma dedução de acusação contra a família como instituição). Emúltima análise, a justiça está ligada à maneira como vai correndo avida que as pessoas vivem e não apenas à natureza das instituições

de uma mesma comunidade, ou até numa mesma pessoa, e nem por isso têm de sernecessariamente o reflexo de valores de “comunidades diferentes”. No entanto, as variaçõesdos valores entre pessoas de diferentes comunidades também poderão ser significativas(ponto que foi debatido de vários modos nas importantes contribuições de Michael Walzer,Charles Taylor e Michael Sandel, entre outros).

* Marx, por exemplo, invocava a possibilidade quer da eliminação da exploração dotrabalho (relacionada com o facto de ser ajustado que se obtenha aquilo que pode ser vistocomo produto do próprio esforço) quer de uma afectação de recursos de acordo com asnecessidades (relacionada com as exigências da justiça distributiva). Mais tarde, vê-lo-íamosa discutir o conflito inarredável que subsiste entre estas duas prioridades; seria no seuúltimo trabalho substancial: A Crítica do Programa de Gotha (1875).

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1 4 A IDEIA DE JUSTIÇA

que as rodeiam. Em contrapartida, e contrastando com isso, muitasdas principais teorias da justiça concentram-se abundante e principal-mente em como chegar a fundar “instituições justas”, deixando paraum papel derivado e subsidiário os aspectos comportamentais. Sejaum exemplo: a perspectiva de John Rawls que via a “justiça comofairness”nt e que é merecidamente aclamada, fornece-nos um conjuntoúnico de “princípios de justiça” preocupados exclusivamente com aedificação de “instituições justas” (que viessem a constituir a estruturabásica da sociedade”), ao mesmo tempo que reclamava das pessoasum comportamento que se conformasse inteiramente com as exigên-cias de funcionamento dessas mesmas instituições3. Na perspectivada justiça que aqui se apresenta, defender-se-á a existência de algu-mas inadequações cruciais numa perspectiva que opte por dedicaruma atenção dominante às instituições (com o comportamento huma-no a ser tomado como necessariamente conforme), em detrimento dese concentrar nas vidas que as pessoas conseguem ir construindo.Ora, pôr o foco de atenção nas vidas reais, quando se trata de avaliarda existência da justiça, é algo que trará consigo muitas implicaçõesde longo alcance no que toca à natureza e ao alcance da ideia dejustiça*.

A diferente perspectiva que, enquanto ponto de viragem nateoria da justiça, se pretende explorar neste trabalho, irá ter umimpacto directo no campo da filosofia política e moral, como tentareimostrar. Além disso, também tentarei pôr em confronto a relevânciados argumentos que aqui se apresentam com algumas das posiçõesque hoje se vão tomando no campo do direito, da economia e dapolítica; e, se estivéssemos dispostos a ser optimistas, eles até poderiamchegar a mostrar a sua pertinência no âmbito de debates e decisões

nt Justice as Fairness, expressão que é também o título de uma obra deste autor e quepoderíamos traduzir, como já fizemos acima, por justeza e/ou lisura (fairness), mas empre-garemos a já costumada tradução de equidade.

* A recente investigação em torno do que se veio a chamar de “capability perspective”(“perspectiva da capacidade ou das capacidades”) relaciona-se directamente com o entendi-mento que vê a justiça à luz das vidas humanas e das liberdades que as pessoas possamexercer por si mesmas. Vide Martha Nussbaum e Amartya Sen (coord.), The Quality ofLife, Oxford, Clarendon Press, 1993. O alcance e as limitações de uma tal perspectiva serãoanalisados nos Capítulos 11-14.

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sobre políticas a seguir em concreto e programas de actuação de tipoprático*.

O recurso a uma abordagem comparativa, indo muito além dalimitada – e limitante – moldura do contrato social, pode-nos trazeraqui um contributo valioso. Com efeito, ver-nos-emos ocupados aproceder a comparações que tenham em conta a progressão da justi-ça, seja pela luta contra a opressão (como no caso da escravatura ouda subjugação das mulheres), seja pelo protesto contra um sistemá-tico abandono em termos de assistência médica (devido à ausênciade instalações e recursos médicos em várias partes de África ou daÁsia, ou à inexistência de uma assistência médica universal na maio-ria dos países no mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos), sejaainda pelo repúdio da admissibilidade da tortura (que continua a serempregue no mundo contemporâneo com uma notável frequência –e, por vezes, por pilares do cenário institucional mundial), ou pelarejeição da silenciosa tolerância das situações crónicas de fome (as-sim por exemplo, na Índia, apesar de se ter conseguido abolir asgrandes carestias)†. Suceder-nos-á não poucas vezes darmos a nossaanuência ao facto de que algumas das mudanças previstas (tais comoa abolição do apartheid, para nos valermos de um exemplo doutrotipo) irão diminuir a injustiça, mas ainda que todas essas mudançaspreviamente acordadas se venham a aplicar, o resultado que teremosnunca há-de ser algo a que possamos chamar justiça perfeita. Tantoquanto o discurso racional teorético, também as preocupações práticas

* Seja, por exemplo, o caso do que chamarei de “imparcialidade aberta”, a qual, nainterpretação da justiça das leis, admite a presença de vozes que venham de perto ou delonge (não apenas para fazer jus a um tratamento justo e equitativo dos demais, mas tambémpara que assim melhor se possa evitar o fenómeno do “paroquialismo” (parochialism),ponto já tratado por Adam Smith na sua obra Teoria dos Sentimentos Morais e nas suasLições de Jurisprudência); a defesa de uma tal “imparcialidade aberta” terá uma relevânciadirecta no âmbito de alguns dos debates que têm hoje lugar no Supremo Tribunal dosEstados Unidos, como veremos no capítulo que encerra este livro (Capítulo 18).

† A 11 de Agosto de 2008, por convite do seu presidente, Somath Chatterjee, tive ahonra de me dirigir ao parlamento indiano a propósito do tema “As Exigências da Justiça”,tendo essa sido a primeira das “Lições em Memória de Hiren Mukerjee”, que se destinam aser um acontecimento anual do parlamento. A versão integral do discurso encontra-sedisponível numa brochura impressa pelo parlamento indiano, encontrando-se publicada umaversão abreviada in The Little Magazine, vol. 8, tomos 1 e 2 (2009), sob o título “WhatShould Keep Us Awake at Night”.

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parecem vir exigir uma ruptura radical no tipo de análise da justiçaque se tem feito.

ARGUMENTAÇÃO PÚBLICAnt, DEMOCRACIAE JUSTIÇA MUNDIAL

É certo a perspectiva da justiça que aqui se apresentará não tratará dedefinir os princípios da justiça em termos de instituições, mas antesem ligação com as vidas e liberdades das pessoas envolvidas; toda-via, as instituições não podem deixar de desempenhar um papelinstrumental significativo na busca da justiça. A par dos determinan-tes de comportamento individual e social, uma escolha adequada dasinstituições também há-de ter um papel de importância crítica naempresa de ampliação e reforço da justiça. As instituições hão-de sertidas em linha conta de várias maneiras. Elas podem contribuir direc-tamente para as próprias vidas das pessoas, na medida em que elastentam conduzi-las de acordo as coisas a que por algum motivo dãovalor, mas também poderão ser importantes com vista a facilitar anossa capacidade para submeter a escrutínio os valores e prioridadesque haveremos de levar em conta, especialmente através das oportu-nidades de discussão pública que venham a ser proporcionadas (noque se incluirão considerações relativas à liberdade de expressão eao direito à informação, para além de serem proporcionados espaçose meios para uma discussão informada).

Nestas páginas, a democracia é vista em termos de argumenta-ção pública (public reasoning, Capítulos 15-17), o que conduz a umentendimento da democracia como regime de “governo pela discus-são” (uma ideia cuja expansão muito ficou a dever a John StuartMill). Todavia, impõe-se também que se veja a democracia de umamaneira mais geral, como capacidade para reforçar a participação ou

nt “Public Reasoning”, que ao longo da obra traduziremos por expressões várias, taiscomo, ou na linha de raciocínio, racionalidade, argumentação, discurso, deliberação, reflexãoargumentativa/argumentada, exercício retórico, exercício/actividade raciocinante, uso darazão, ou, simplesmente, razão, e, sendo o caso, (exercício de um/uma) raciocínio público,racionalidade pública, pública argumentação, senão mesmo pública discussão raciocinada/argumentada.

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1 7PREFÁCIO

comprometimento discursivamente sustentados por meio de um alar-gamento das disponibilidades informacionais e da viabilidade de dis-cussões interactivas. Há que julgar a democracia não só tendo emvista as instituições formalmente existentes, mas atendendo igual-mente à medida em que se fazem efectivamente ouvir as vozes dosdiferentes sectores da população.

Mais ainda. Esta maneira de olhar para a democracia pode vir ater impacto também na prossecução da mesma a nível global – e nãoapenas no seio de cada estado-nação. Se a democracia não for vistatão-somente em termos de constituição de específicas instituições (talcomo um órgão de governo global ou eleições à escala mundial),mas também na perspectiva da possibilidade e do efectivo alcance deuma argumentação pública, então, fazer progredir – ao invés demeramente aperfeiçoar – tanto a democracia como a justiça mundiaisjá não nos parecerá uma ideia incompreensível, antes passando a seruma ideia extraordinariamente compreensível, e é plausível que elavenha a inspirar e a influenciar acções práticas transfronteiriças.

O ILUMINISMO EUROPEU E A NOSSA HERANÇA GLOBAL

Que dizer sobre os antecedentes da perspectiva que aqui estou atentar apresentar? Tratarei desta questão de modo mais exauriente naIntrodução que se seguirá, mas, ainda assim, gostaria de salientar quea análise da justiça que apresentarei neste livro pretende traçar linhasde argumentação racional que foram alvo de uma particular explora-ção nesse período de descontentamento intelectual que ocorreu du-rante o Iluminismo Europeu. Todavia, e não obstante isto mesmo queacabámos de dizer, devo apressar-me a fazer de imediato duas clari-ficações para evitar possíveis mal-entendidos.

Na primeira dessas clarificações, cumpre explicar que a sua liga-ção à tradição do Iluminismo Europeu não fará deste livro uma obracom uma bagagem intelectual particularmente “europeia”. Com efei-to, um dos traços pouco habituais – alguns provavelmente dirãoexcêntricos – deste livro, quando comparado com outros escritosdedicados à justiça, é o amplo uso que fiz de ideias oriundas desociedades não ocidentais, em especial da história intelectual indiana,mas também de outras. No passado intelectual da Índia, bem assim

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1 8 A IDEIA DE JUSTIÇA

como no pensamento que foi florescendo em várias outras socieda-des não ocidentais, podemos verificar que existem poderosas tradi-ções de argumentação e reflexão racional, mais até do que tradiçõesque repousem na fé e em convicções a-racionais. A confinarmos anossa atenção quase inteiramente à literatura ocidental, teria de con-cordar que, na nossa era, as demandas da filosofia política, em geral,e a prossecução das exigências da justiça, em particular, têm sido emcerta medida de tipo “paroquial”*.

Todavia, não pretendo com isto afirmar que haja nestas matériasuma qualquer dissonância radical entre pensamento “ocidental” e“oriental” (ou, em geral, não ocidental). Há muitas diferenças no seiodo pensamento discursivo do Ocidente como naquele do Oriente, eseria absolutamente fantasioso pensar em termos de um Ocidenteunido que se viesse confrontar com prioridades “orientais na suaquinta-essência”†. Tais opiniões, que não são alheias às discussõescontemporâneas, estão bem longe daquele que é o meu entendimentodas coisas. O que pretendo afirmar, ao invés, é que em muitas ediferentes partes do mundo se tem procurado atingir ideias semelhan-tes – ou intimamente ligadas – de justiça, equidade, lisura, responsa-bilidade, dever, bondade e rectidão, e isso pode vir alargar o alcancede certos argumentos que se vêem reflectidos na literatura ocidental;

* A moderna literatura, nos casos em que se deu conta da existência de Kautilya, umantigo escritor indiano em matérias de estratégia e economia políticas, chegou por vezes adescrevê-lo como o “Maquiavel indiano”. De certa maneira, não é de espantar que o tenhafeito, uma vez que há, de facto, certas semelhanças entre as ideias de ambos no que toca aestratégias e tácticas (sem embargo de profundas diferenças em muitas outras áreas – áreasamiúde mais importantes), mas não deixa de ser divertido que um analista político indianodo século IV a.C. tenha de ser apresentado como uma versão local de um escritor europeuque haveria de nascer no século XV. Já se vê que isto não é o reflexo da crua asserção deuma ordem geográfica que se quisesse afirmar por pura implicância, mas tão-somente deuma falta de familiaridade com a literatura não ocidental por parte dos intelectuais ocidentais(e, aliás, por parte dos intelectuais de todo o mundo moderno, dado o domínio global que aeducação de tipo ocidental exerce hoje em dia).

† De facto, já noutro sítio tive a ocasião de defender que não existem prioridadesorientais na sua quinta essência oriental, e nem mesmo prioridades de quinta essência tão-sóindianas, porquanto, na história intelectual de tais países, sempre poderemos encontrarargumentos que vão em muitas e diferentes direcções (veja-se os meus The ArgumentativeIndian, Londres e Nova Déli, Penguin, e Nova Iorque, FSG, 2005, e Identity and Violence:The Illusion of Destiny, Nova Iorque, Norton, e Londres e Nova Déli, Penguin, 2006).

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1 9PREFÁCIO

por outro lado, nas tradições dominantes do discurso ocidental con-temporâneo, é frequente que se passe por alto ou se marginalize apresença a nível mundial daquele tipo de raciocínio.

Assim, por exemplo, alguns dos raciocínios de Gautama Buddha(o paladino agnóstico do “caminho do conhecimento”) ou dos escri-tores da escola Lokayata da Índia do século VI a.C. (apostada numescrutínio incansável de todo o tipo de crença tradicional) poderãosoar extremamente alinhados, muito mais do que em confronto, commuitos dos escritos críticos dos principais autores pertencentes aoIluminismo Europeu. Porém, não há porque nos abespinharmos atentar decidir se deveríamos ver em Gautama Buddha um membropercursor de uma qualquer liga do Iluminismo Europeu (afinal, o seunome adoptado, em sânscrito, sempre quer dizer “iluminado”); e tão--pouco somos forçados a seguir a rebuscada tese segundo a qual asorigens do Iluminismo Europeu se hão-de encontrar na influência deum remoto pensamento asiático. Nada há de particularmente estra-nho em reconhecer que tais ligações ou perfilhações intelectuaissempre se deram em diferentes partes do globo e em distintas épocasda história. A levarmos em conta que frequentemente se foram tecen-do diferentes teses a propósito de questões deste género, é bempossível que, como confinemos a nossa investigação a uma dadaregião, nos acabem por escapar algumas das pistas possíveis para areflexão argumentativa sobre a justiça.

Exemplo disso, com certo interesse e relevância, é a importantedistinção entre dois diferentes conceitos de justiça que encontramosna primitiva jurisprudência indiana, isto é, a diferença entre niti enyaya. O primeiro, niti, corresponde a uma nota de propriedade que,em geral, caracteriza o arranjo organizacional, associada à correcçãodos comportamentos, ao passo que o segundo, nyaya, diz respeito àscoisas que se passam, como realmente se passam, e, em particular, àvida que efectivamente as pessoas levam. Esta distinção, de cujarelevância se curará na Introdução, ajuda-nos a ver claramente queexistem duas espécies de justeza bem diferentes, ainda que não des-conexas, e a ideia de justiça deverá beber de ambas*.

* A distinção entre nyaya e niti não é apenas significativa no seio de uma determinadacomunidade política, mas também para lá das fronteiras dos estados, como tive ocasião dereferir no meu ensaio “Global Justice”, apresentado no Fórum Mundial da Justiça de Viena,

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2 0 A IDEIA DE JUSTIÇA

A minha segunda observação, e explicação, prende-se com ofacto de os autores do Iluminismo não falarem em uníssono. Comomostrarei na Introdução, há uma dicotomia substancial entre duasdiferentes linhas de raciocínio acerca da justiça, que podem ser ob-servadas em dois grupos de filósofos de nomeada, associados, todoseles, ao pensamento mais radical do período iluminista. Uma dasperspectivas concentrava-se na identificação do arranjo ou combina-ção de factores sociais que se apresentasse como perfeitamente justae tomava por tarefa principal da teoria da justiça – e amiúde a única aser especificada – a qualificação do que fossem “instituições justas”.Teceram importantes contributos nesta linha de pensamento e à voltada ideia de um hipotético “contrato social”, Thomas Hobbes, noséculo XVII, e, mais tarde, John Locke, Jean-Jacques Rousseau eImmanuel Kant, entre outros. A perspectiva dita contratualista(“contractarian”) tem vindo a ser a influência dominante na filosofiapolítica contemporânea, especialmente desde que, em 1958, vimossurgir um estudo pioneiro (Justice as Fairness, Justiça como Equida-de) de John Rawls, que é o antecessor daquela que haveria de ser asua última palavra relativamente a esta perspectiva, a sua obra clássica,Uma Teoria da Justiça4.

Em contraste, outros filósofos iluministas (por exemplo, AdamSmith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, John Stuart Mill)seguiram perspectivas variadas que partilhavam entre si o interessecomum em proceder a comparações entre os diferentes tipos de vidaque as pessoas podem levar, e nisso deixaram-se influenciar tantopelas instituições como pelo real comportamento dessas mesmas pes-soas, pelas interacções sociais e por outros determinantes dignos designificado. Em grande medida, este livro socorrer-se-á desta últimatradição alternativa*. A esta segunda linha de investigação pertence a

em Julho de 2003, patrocinado pela Associação Americana das Ordens dos Advogados, junta-mente com a Associação Internacional das Ordens de Advogados, a Associação Interamericanadas Ordens de Advogados, a Associação Interpacífica das Ordens de Advogados e a UnionInternationale des Avocats. Integra o “Programa de Justiça Global” da Associação Americanadas Ordens dos Advogados, e foi publicado in Global Perspectives on the Rule of Law, JamesHeckner, Robert Nelson e Lee Cabatingo (coord.), Nova Iorque, Rowtledges, 2009.

* No entanto, isso não me impedirá de também me socorrer das considerações daque-la primeira perspectiva, bem assim como das iluminações que podemos colher, por exem-plo, nos escritos de Hobbes e Kant, ou, nos nossos tempos, naqueles de John Rawls.

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2 1PREFÁCIO

disciplina analítica – e de feições bem matemáticas – da “teoria daescolha social”, que podemos fazer remontar às obras de Condorcet,no século XVIII, tendo assumindo a forma que hoje tem graças àscontribuições pioneiras de Kenneth Arrow em meados do século XX.Como tentarei mostrar, uma abordagem deste tipo, desde que devida-mente adaptada, pode trazer um contributo substancial para o trata-mento das questões atinentes à ampliação e reforço da justiça e àeliminação da injustiça em todo o mundo.

O LUGAR DA RAZÃO

Apesar das diferenças entre estas duas tradições do Iluminismo –uma contratualista e a outra comparativa –, há também entre elasmuitas semelhanças. Entre os traços comuns encontra-se a confiançana razão e uma invocação das exigências próprias da discussão pú-blica. Não obstante este livro mostre afinidade sobretudo com a se-gunda perspectiva exposta, e não tanto com a argumentaçãocontratualista desenvolvida por Immanuel Kant e outros, uma grandeparte dele será motivada por uma concepção kantiana fundamental(nas palavras de Christine Korsgaard): «Trazer a razão para o mundotorna-se a principal empresa da moralidade, não tanto da metafísica,e também a obra e a esperança da humanidade»5.

Claro está que saber até que ponto a racionalidade pode forne-cer uma base fiável para uma teoria da justiça é algo já de si contro-verso. Ora, o primeiro capítulo do livro tratará precisamente do papele do alcance da razão. Aí, contesto a plausibilidade de, sem umacertificação raciocinada, se vir encarar as emoções, a psicologia ouos instintos como se fossem fontes independentes de valoração. Semembargo disso, os impulsos e as atitudes mentais não perderão a suaimportância, pois temos boas razões para os levar em conta nasnossas avaliações sobre a justiça e a injustiça à face da terra. Nem sevê que haja aqui um conflito irredutível entre razão e emoção –como pretendo mostrar –, havendo muito boas razões para dar odevido espaço à importância das emoções.

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Há, contudo, um outro tipo de crítica dirigida à confiança narazão, segundo a qual o que neste mundo prevalece é tudo aquiloque nos aparece como “não-razão”, pretendendo então mostrar comoé irrealista partir do princípio de que o mundo seguirá na direcçãoditada pela razão. Numa crítica gentil, mas firme, ao meu trabalhoem áreas relacionadas com esta, Kwame Anthony Appiah veio de-fender que «por muito que alarguemos a nossa compreensão darazão, seguindo os tipos de caminhos que Sen nos quereria ver atrilhar – e, note-se, este é um projecto cujo interesse é por mimbrindado –, nunca conseguiremos chegar ao fim»6. Enquanto esta foruma descrição do que se passa no mundo, claro está que Appiah temrazão, e a sua crítica, que não tem a intenção de elaborar uma teoriada justiça, apresenta sólidos fundamentos para um cepticismo acercada eficácia prática de uma discussão raciocinada em torno de temassociais confusos (tal o caso, por exemplo, das políticas a adoptar emmatéria de identidade). A prevalência e a tenaz resistência de tudo oque é “não-razão” podem levar a uma muito menor eficácia dasrespostas dadas a questões difíceis e que se queiram basear na razão.

Este tipo de cepticismo acerca do alcance da racionalidade nãoapresenta – nem é suposto que pretenda apresentar (como Appiahdeixa claro) – qualquer fundamento para que as pessoas deixem deempregar a razão até ao limite do que lhes seja possível, quandodecidam ir em busca da ideia de justiça ou de qualquer outro concei-to com relevo social, como seria o caso da noção de identidade*. Poroutro lado, ele também não prejudica que se argumente no sentidode nos tentarmos persuadir mutuamente a fazer um escrutínio quepermita verificar a validade das nossas respectivas conclusões. Alémdisso, é importante fazer notar que aquilo que a alguns poderá parecerum exemplo claro do domínio da “não-razão”, pode, afinal, não o

* De facto, há sobejas provas de que a promoção de discussões públicas interactivaspode ajudar a enfraquecer a rejeição de uma reflexão racional. Sobre este ponto, veja-se omaterial empírico apresentado in Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford,Clarendon Press, 1999, e Identity and Violence: The Illusion of Destiny, Nova Iorque,Norton, e Londres, Penguin, 2006.

† Como faz notar James Thurber, se é verdade que os supersticiosos preferem evitarpassar por debaixo de escadotes, bem pode acontecer que as mentes científicas que «sepropõem desafiar a superstição» saiam «a procurar escadotes para se deliciarem a passar pordebaixo deles» (James Thurber, Let Your Mind Alone!, New Yorker, 1 de Maio de 1937).

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2 3PREFÁCIO

ser†. Uma discussão assente na razão pode levar ao acolhimento deposições conflituantes que, para os demais, poderiam parecer merospreconceitos “não-raciocinados” (isto é, não ponderados ou reflectidosracionalmente), quando, afinal, o caso não era bem esse. Diferente-mente do que às vezes se presume, perante diferentes posições obti-das por meio de um processo argumentativo ou raciocinado, nadaexige que se tenha por compulsiva e necessária a eliminação detodas as alternativas à excepção de uma.

De qualquer modo, o que principalmente interessa a este propó-sito é que, normalmente, os preconceitos andam a cavalo de umcerto tipo de racionalidade – por muito fraca e arbitrária que elapossa ser. Na verdade, até as pessoas mais dogmáticas costumam teras suas razões, quaisquer que elas sejam (possivelmente muito tos-cas), que possam servir de fundamento para os seus dogmas (perten-cem a este domínio os preconceitos racistas, sexistas, de classe ou decasta, entre outras espécies de intolerâncias que nos aparecem assen-tes em raciocínios grosseiros). O mais das vezes, a “não-razão” não éuma prática que consista em dispensar por completo o raciocínio,mas sim uma prática que se vê apoiada em raciocínios muito primitivose deficientes. Ora, aqui ainda há lugar para esperança, pois a um mauraciocínio sempre se pode contrapor um raciocínio melhor. Assimsendo, mesmo neste caso, não se pode dizer que seja despropositadopensar-se num compromisso com a razão, ainda que, pelo menos aprincípio, muitas pessoas se possam recusar a comprometer-se comela, apesar de a isso serem desafiadas.

Para os argumentos contidos neste livro não interessa de todoque, no presente momento, se possa afirmar uma omnipresença daracionalidade na maneira de pensar por todos seguida; uma tal pre-sunção não é nem possível nem necessária. A concepção de que aspessoas haveriam de chegar a acordo acerca de uma determinadaproposição, se tivessem a oportunidade de raciocinar sobre ela de ummodo aberto e imparcial não implica afirmar que, de facto, as pesso-as já se achem empenhadas em fazê-lo, nem que estejam ansiosaspor assumir um tal compromisso. O que nos interessa sobretudo éexaminar quais as exigências que a racionalidade faz quando se tentaalcançar justiça – aceitar a possibilidade de que possam existir dife-rentes posições, todas elas razoáveis. Ora, isso é perfeitamente com-patível com a possibilidade, e até com a certeza, de que num dado

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momento histórico, nem toda a gente está disposta a levar a cabo umtal exame. A racionalidade é imprescindível para a compreensão dajustiça, mesmo num mundo repleto de muita “não-razão”. Mais, énum mundo assim que ela se poderá revelar particularmente impor-tante.

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2 5PREFÁCIO

AGRADECIMENTOS

Ao agradecer a ajuda que recebi na realização do trabalho queaqui se apresenta, tenho de começar por deixar dito que a minhamaior dívida é para com John Rawls, que me inspirou a trabalharnesta área de estudo. Além do mais, ele foi também um magníficoprofessor por várias décadas e as suas ideias continuam a influenciar--me, mesmo quando discordo de algumas das suas conclusões. Estelivro é dedicado à sua memória, não só por causa da instrução e doafecto que dele recebi, mas também pelo encorajamento para quefosse no encalço das minhas dúvidas.

O meu primeiro contacto mais demorado com Rawls aconteceuem 1968-1969, quando vim da Universidade de Nova Déli paraHarvard como professor visitante, tendo aí ministrado um seminárioconjunto ao curso de licenciatura com Kenneth Arrow. Arrow foitambém outra influência poderosa para este livro, como sucedeu emmuitos dos meus livros anteriores. A sua influência resulta não só dasamplas discussões que tivemos ao longo de muitas décadas, mastambém do facto de eu recorrer à moldura analítica da modernateoria da escolha social, por ele iniciada.

A obra que aqui se apresenta foi elaborada em Harvard, quedesde 1987 tem sido a minha principal base, e no Trinity College, emCambridge, especialmente durante os seis anos entre 1998 e 2004,altura em que regressei a Harvard como Professor daquela grandeuniversidade, onde, cinquenta anos antes, iniciara a pensar sobretemas filosóficos. Fui influenciado, em particular, por Piero Sraffa epor C.D. Broad, e Maurice Dobb e Dennis Robertson encorajaram--me a seguir as minhas inclinações.

Este livro levou o seu tempo a fazer-se, porque as minhas dúvi-das e as minhas reflexões construtivas também precisaram de umlongo período para se desenvolverem. Ao longo destas décadas, tive

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2 6 A IDEIA DE JUSTIÇA

o privilégio de receber comentários, sugestões, questões, discordân-cias rotundas e encorajamentos de um grande número de pessoas, etudo isso me foi de grande préstimo. Assim, a minha lista de agrade-cimentos não vai ser curta.

Em primeiro lugar, tenho de salientar a ajuda e o conselho quepude receber da minha mulher, Emma Rothschild, cuja influência sereflecte ao longo de todo o livro. A influência de Bernard Williamsno meu pensamento em matérias filosóficas também será evidentepara quem esteja familiarizado com os seus escritos. Esta influênciaderiva de muitos anos de uma “amizade conversadeira” e ainda deum produtivo período de trabalho conjunto, em que planeámos, edi-támos e escrevemos a introdução de uma colectânea de artigos acercada perspectiva utilitarista e das suas limitações (Utilitarianism andBeyond, 1982).

Tive também a dita de ter colegas com quem pude travar diver-sas conversas instrutivas sobre filosofia política e moral. Além deRawls, tenho aqui de reconhecer a minha enorme dívida para comHilary Putnam e Thomas Scanlon, por tantas charlas iluminantes aolongo dos anos. Também aprendi muito à conversa com W.V.O.Quine e Robert Nozick, que, infelizmente, já nos deixaram. O factode ter dado aulas em conjunto, em Harvard, também foi para mimuma constante fonte de instrução dialéctica, que recebi tanto dosalunos como dos professores que partilhavam comigo essas aulas.Robert Nosick e eu regemos todos os anos cursos conjuntos durantecerca de uma década; em algumas ocasiões, fizemo-lo também comEric Maskin, e ambos foram uma influência que marcou os meuspensamentos. Em algumas alturas, também ministrei cursos comJoshua Cohen (do MIT – Massachusetts Institute of Technology, quenão fica assim tão longe), Christine Jolls, Philippe Van Parijs, Micha-el Sandel, John Rawls, Thomas Scanlon e Richard Tuck, e ainda comKaushik Basu e James Foster quando vinham visitar Harvard.À parte o absoluto prazer tirado destas aulas dadas em conjunto, averdade é que elas também foram tremendamente úteis para quepudesse desenvolver as minhas ideias, frequentemente graças a trocade argumentos com os professores com quem fui partilhando a re-gência desses cursos.

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2 7AGRADECIMENTOS

Sempre beneficiei muitíssimo das críticas e observações dosmeus alunos em todos os meus escritos, e este livro não é excepção.Ora, no que diz respeito a este livro em particular, gostaria de registarem particular as impressões que fui trocando com Prasanta Pattanaik,Kaushik Basu, Siddiqur Osmani, Rajat Deb, Ravi Kanbur, DavidKelsey e Andreas Papandreou, ao longo de várias décadas, e, maistarde, com Stephan Klasen, Anthony Laden, Sanjay Reddy, JonathanCohen, Felicia Knaul, Clemens Puppe, Bertil Tungodden, A.K. ShivaKumar, Lawrence Hamilton, Douglas Hicks, Jennifer Prah Ruger,Sousan Abadian, entre outros. Também gostaria de lembrar as impor-tantes discussões que fui tendo com outros alunos meus, sobre dife-rentes assuntos, mas sempre relacionados com os temas aqui trata-dos, nomeadamente com Sourin Bhattacharya, Luigi Sparento, D.P.Chauduri, Kanchan Chopra, John Wriglesqorth, Yasumi Matsumotoe John Riley.

No que me diz respeito, as alegrias e as vantagens de um ensinointeractivo remontam já aos anos 70 e 80, altura em que dei aulas – esegundo me dizia um estudante, mais pareciam um “motim” – emOxford, regendo a disciplina em conjunto com Ronald Dworkin eDerek Parfit, agregando-se mais tarde G.A. Cohen. As minhas gratasmemórias dessas discussões e trocas de argumentos foram recente-mente reavivadas graças à gentileza de Cohen, que organizou umseminário extremamente cativante na Universidade de Londres, emJaneiro de 2009, dedicado à principal tese apresentada neste livro.A assembleia que aí se juntou estava agradavelmente repleta de opi-niões discordantes, incluindo Cohen (claro está), mas também JonathanWolff, Laura Valentis, Riz Mokal, George Letsas e Stephan Guest; asdiferentes críticas que todos eles fizeram foram-me de grande valia(Laura Valentis teve a bondade de enviar mais comentários, mesmodepois do seminário).

Se bem que uma teoria da justiça seja algo que pertence primaria-mente ao domínio da filosofia, este livro expõe também certas ideiasque são do âmbito de outras disciplinas. Um dos grandes campos deinvestigação de que este livro trata abundantemente é também o dateoria da escolha social. Apesar de os meus contactos com quemtrabalha nesta vasta área serem demasiado numerosos para poderemcaber nestas curta linhas, seja-me ainda assim permitido declarar oquanto beneficiei de ter trabalhado com Kenneth Arrow e Kotaro

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Suzumura, com os quais tenho estado a editar o Handbook of SocialChoice Theory (o primeiro volume já saiu, mas o segundo já vaiatrasado), mas também celebrar o notável papel de liderança nestecampo que tem cabido a Jerry Kelly, Wulf Gaertner, PrasantaPattanaik e Maurice Salles, em especial devido ao seu trabalho incan-sável e visionário que levou ao aparecimento da revista SocialChoice and Welfare e que, agora, a faz florescer.

Gostaria ainda de poder confessar os préstimos que recebi dolongo caminho percorrido em conjunto e das amplas discussões acercade problemas relacionados de alguma maneira com o tema a escolhasocial que fui tendo com (a juntar aos nomes já mencionados) PatrickSuppes, John Harsanyi, James Mirrlees, Anthony Atkinson, PeterHammond, Charles Blackorby, Sudhir Anand, Tapas Majumdar,Robert Pollak, Kevin Roberts, John Roemer, Anthony Shorrocks,Robert Sugden, John Weymark e James Foster.

É ainda antiga e constante a influência sobre o meu estudo dajustiça, em especial em matéria de liberdade e capacidade, vinda deMartha Nussbaum. O seu trabalho, combinado com o seu firme em-penho em desenvolver a “perspectiva da capacidade”, influenciouprofundamente muitos dos seus progressos recentes, incluindo a ex-ploração das ligações com as ideias clássicas de Aristóteles sobre“capacidade” e “florescimento”, e ainda com estudos em matéria dedesenvolvimento humano, diferença dos sexos e direitos humanos.

A relevância e o recurso à perspectiva da capacidade foi explo-rada de modo poderoso nos últimos anos graças à investigação deum grupo de académicos notáveis. Muito embora seja certo que osseus escritos influenciaram grandemente o meu pensamento, um sualistagem seria demasiado extensa para que a pudesse incluir aqui.Ainda assim, sinto-me obrigado a mencionar a influência que recebidas obras de Sabina Alkire, Bina Agarwal, Tania Burchardt, EnricaChiappero-Martinetti, Flavio Comim, David Crocker, SéverineDeneulin, Sakiko Fukuda-Parr, Reiko Gotoh, Mozaffar Qizilbash,Ingrid Robeyns e Polly Vizard. Há ainda uma estreita conexão entrea perspectiva da capacidade e o nova área relativa ao desenvolvi-mento humano, de que foi pioneiro o meu amigo já falecido, Mahbubul Haq, e que exibe também a influência de Paul Streeten, FrancesStewart, Keith Griffin, Gustav Ranis, Richard Jolly, Meghnad Desai,Sudhir Anand, Sakiko Fukuda-Parr, Selim Jahan, entre outros. É certo

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que o Journal of Human Development and Capabilities tem um forteenvolvimento no trabalho relativo à perspectiva da capacidade, masa revista Feminist Economics também tem vindo a mostrar um inte-resse especial nesta área, e as minhas conversas com a sua directora,Diana Strassman, têm sido sempre estimulantes, versando sobre arelação entre uma abordagem feminista e a perspectiva da capacidade.

Já no Trinity College, pude desfrutar da excelente companhia defilósofos, pensadores jurídicos e outros mais que se interessavampelos problemas da justiça, tendo tido a oportunidade de interagircom Garry Runciman, Nick Denyer, Gisela Striker, Simon Blackburn,Catharine Barnard, Joanna Miles, Ananya Kabir, Eric Nelson e, oca-sionalmente, com Ian Hacking (que, de quando em vez, voltava àsua antiga faculdade, onde, ainda estudantes e colegas, nos encontrá-mos e falámos pela primeira vez nos anos 50). Tive, além disso, afantástica oportunidade de travar conversas com matemáticos, cien-tistas da natureza, historiadores, cientistas das áreas sociais, teóricosdo direito e académicos do ramo das humanidades, todos notáveis efora de série.

Beneficiei ainda substancialmente das minhas conversas comdiversos outros filósofos, entre os quais (e juntando a quantos jámencionei) Elizabeth Anderson, Kwame Anthony Appiah, ChristianBarry, Charles Beitz, o já falecido Isaiah Berlin, Akeel Bilgrami,Hilary Bok, Sissela Bok, Susan Brison, John Broome, Ian Carter,Nancy Cartwright, Deen Chatterjee, Drucilla Cornell, NormanDaniels, o falecido Donald Davidson, John Davis, Jon Elster,Barbara Fried, Allan Gibbard, Jonathan Glover, James Griffin, AmyGutmann, Moshe Halbertal, o falecido Richard Hare, DanielHausman, Ted Honderich, Susan Hurley, também já falecida, SusanJames, Frances Kamm, o falecido Stig Kanger, Erin Kelly, IsaacLevi, Christian List, Sebastiano Maffetone, Avishai Margalit, DavidMiller, Sidney Morgenbesser, também falecido, Thomas Nagel, SariNusseibeh, o falecido Susan Moller Okin, Charles Parsons, HerlindePauer-Struder, Fabienne Peter, Philip Pettit, Thomas Pogge, HenryRichardson, Alan Ryan, Carol Rovane, Debra Satz, John Searle,Judith Shklar, falecida, Quentin Skinner, Hillel Steiner, DennisThompson, Charles Taylor e Judith Thomson. No que tange ao pen-samento jurídico, foram-me muitíssimo vantajosas as discussões com(para além de outros já citados) Bruce Ackerman, Justice Stephen

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Breyer, Owen Fiss, o falecido Herbert Hart, Tony Honoré, AnthonyLewis, Frank Michelman, Martha Minow, Robert Nelson, Justice KateO’Regan, Joseph Raz, Susan Rose-Ackerman, Stephen Sedley, CassSunstein e Jeremy Waldron; de todas estas discussões tirei grandesbenefícios. Sendo verdade que, de facto, o meu trabalho para estelivro começou com as minhas “Conferências John Dewey” (sobre“Well-being, Agency and Freedom”) no Departamento de Filosofiada Universidade de Columbia, em 1984, e que veria o seu termo comoutro conjunto de lições de filosofia, na Universidade de Stanford(com o tema “Justice”), apesar disso, não deixei de ensaiar os meusargumentos em torno da teoria da justiça em diversas faculdades dedireito. A juntar a várias conferências e seminários nas Faculdades deDireito das Universidades de Harvard, Yale e Washington, tive tam-bém ocasião de apresentar as “Conferências Storrs” (sob o tema“Objectivity”), na Faculdade de Direito de Yale, em Setembro de1990, as Conferências “Rosenthal” (sobre “The Domain of Justice”),na Faculdade de Direito da Northwestern University, em Setembro de1998, e uma aula especial (sobre o tema “Human Rights and the Limitsof Law”) na Faculdade de Direito de Cardozo, em Setembro de 2005*.

No âmbito das economias, que foi a primeira área a que medediquei, e que, aliás, tem uma considerável relevância para a ideiade justiça, recebi grandes contributos de regulares discussões que fuitendo ao longo de muitas décadas com (além dos nomes que jámencionei) George Akerlof, Paul Anand, Amiya Bagchi, o falecidoDipak Banerjee, Nirmala Banerjee, Pranab Bardhan, Alok Bhargava,Christopher Bliss, Samuel Bowles, Samuel Brittan, Robert Cassen,Sukhamoy Chakravarty, já falecido, Partha Dasgupta, Mrinal Datta--Chaudhuri, Angus Deaton, Meghnad Desai, Jean Dre‘ze, BhaskarDutta, Jean-Paul Fitoussi, Nancy Folbre, Albert Hirschman, DevakiJain, Tapas Majumdar, Mukul Majumdar, Stephen Marglin, DipakMazumdar, Luigi Pasinetti, o falecido I.G. Patel, Edmund Phelps,K.N. Raj, V. K. Ramachandran, Jeffrey Sachs, Arjun Sengupta,

* As “Conferências Dewey” foram promovidas sobretudo por Isaac Levi, as “Confe-rências Storrs”, por Guido Calabresi, as Lições “Rosenthal”, por Ronald Allen, e aquelaaula na Faculdade de Direito de Cardozo, por David Rudenstine. Muito me serviram tam-bém as discussões que pude manter com eles e com os seus colegas.

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3 1AGRADECIMENTOS

Rehman Sobhan, Barbara Solow, Robert Solow, Nicholas Stern,Joseph Stiglitz e Stefano Zamagni.

Tive também conversas utilíssimas com Isher Ahluwalia, MontekAhluwalia, o falecido Peter Bauer, Abhijit Banerjee, Lourdes Beneria,Timothy Besley, Ken Binmore, Nancy Birdsall, Walter Bossert,François Bourguignon, Satya Chakravarty, Kanchan Chopra, VincentCrawford, Asim Dasgupta, Claude d’Aspremont, Peter Diamond,Avinash Dixit, David Donaldson, Esther Duflo, Franklin Fisher, MarcFleurbaey, Robert Frank, Benjamin Friedman, Pierangelo Garegnani,os já falecidos Louis Gevers e W.M. Gorman, Jan Graaff, Jean--Michel Grandmont, Jerry Green, Ted Groves, Frank Hahn, WahidulHaque, Christopher Harris, Barbara Harris White, John Harsanyi, jáfalecido, James Heckman, Judith Heyer, o falecido John Hicks, JaneHumphries, Nurul Islam, Rizwanul Islam, Dale Jorgenson, DanielKahneman, Azizur Rahman Khan, Alan Kirman, Serge Kolm, JanosKornai, Michael Kramer, Jean-Jacques Laffont, o falecido RichardLayard, Michel Le Breton, Ian Little, Anuradha Luther, JamesMeade, também falecido, John Muellbauer, Philippe Mongin, DilipMookerjee, Anjan Mukherji, Khaleq Naqvi, Deepak Nayyar, RohiniNayyar, Thomas Piketty, Robert Pollak, Anisur Rahman, Debraj Ray,Martin Ravallion, Alvin Roth, Christian Seidl, Michael Spence, T.N.Srinivasan, David Starrett, S. Subramanian, Kotaro Suzumura,Madhura Swaminathan, Judith Tendler, Jean Tirole, Alain Trannoy,John Vickers, o falecido William Vickrey, Jorgen Weibull, GlenWeyl e Menahem Yaari.

Lucrei também enormemente com conversas que fui tendo aolongo dos anos, e a propósito de temas variados relacionados com ajustiça, com Jasodhara Bagchi, Alaka Basu, Dilip Basu, SeylaBenhabib, Sugata Bose, Myra Buvinic, Lincoln Chen, Martha Chen,David Crocker, Barun De, John Dunn, Julio Frenk, Sakiko Fukuda--Parr, Ramachandra Guha, Geeta Rao Gupta, Geoffrey Hawthorn,Eric Hobsbawm, Jennifer Hochschild, Stanley Hoffmann, AlishaHolland, Richard Horton, Ayesha Jalal, Felicia Knaul, Melissa Lane,Mary Kaldor, Jane Mansbridge, Michael Marmot, Barry Mazur,Pratap Bhanu Mehta, Uday Mehta, o falecido Ralph Miliband,Christopher Murray, Elinor Ostrom, Carol Richards, David Richards,Jonathan Riley, Mary Robinson, Elaine Scarry, Gareth StedmanJones, Irene Tinker, Megan Vaughan, Dorothy Wedderburn, Leon

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Wieseltier e James Wolfensohn. A parte do livro que trata da demo-cracia e da sua relação com a justiça (Capítulos 15-17) inspira-se nasminhas três conferências sobre “Democracy”, na School of AdvancedStudies (SAIS) da Universidade John Hopkins, e que tiveram lugarno seu campus universitário de Washington DC, em 2005. Estasconferências foram o resultado de uma iniciativa de Sunil Khilnani,com o apoio de Francis Fukuyama, tendo recebido de ambos suges-tões muito úteis. Depois, as conferências acabaram por gerar outrasdiscussões ao longo destes encontros do SAIS, e também elas viriama ser muito úteis.

O novo “Programa de Justiça, Estado Social e Economia”(“Program on Justice, Welfare and Economics”) de Harvard, quedirigi durante cinco anos, entre Janeiro de 2004 e Dezembro de2008, também me deu uma excelente oportunidade para contactarcom estudantes e colegas interessados em problemas semelhantes,ainda que no âmbito de ramos diferentes. O novo director, WalterJohnson, está a dar continuidade a todas estas oportunidades de inte-racção – e a ampliá-las – com grande liderança, tendo eu tomado aliberdade de apresentar o principal filão deste livro no meu discursode despedida ao grupo, após o que recebi muitas questões e comentá-rios excelentes.

Erin Kelly e Thomas Scanlon foram de grande ajuda e imensa-mente prestáveis ao aceitarem ler uma parte considerável do manus-crito, tendo feito diversas sugestões de importância crítica. Estou-lhes,por isso, muitíssimo reconhecido.

Tive também a grande ventura de poder dar a minha colabora-ção a Sudhir Anand ao longo de várias décadas e de ter podidotravar debates regulares com ele sobre assuntos variados relaciona-dos com o tema deste livro, os quais vieram engrandecer o meuentendimento acerca das exigências da justiça.

As despesas da investigação e do trabalho de assistência à mesmaforam cobertas parcialmente por um projecto de cinco anos sobredemocracia, desenvolvido pelo Centro de História e Economia doKing’s College da Universidade de Cambridge, custeado juntamentepelas Fundações Ford, Rockfeller e Mellon, entre 2003 e 2008; mastambém, subsequentemente, por um novo projecto custeado pelaFundação Ford, dedicado ao tema “A Índia no Mundo Global”, comuma atenção especial dirigida à relevância da história intelectual da

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3 3AGRADECIMENTOS

Índia para os problemas dos nossos tempos. Estou muito grato poreste apoio e também quero mostrar o meu reconhecimento pelo notá-vel trabalho de coordenação de ambos os projectos, levado a cabopor Inga Huld Markan. Tive ainda a felicidade de ter junto de mimassistentes de investigação extremamente capazes e imaginativos,que se empenharam profundamente no livro e fizeram comentáriosvários e muito produtivos que me ajudaram a melhorar o conteúdo ea apresentação dos meus argumentos. Por isso, sinto-me muito penho-rado para com Pedro Ramos Pintos, que trabalhou comigo mais deum ano, deixando uma influência no livro que viria a ser duradoura,e, presentemente, para com Kirsty Walker e Afsan Bhadelia pela suaajuda e contributo intelectual, ambos extraordinários.

O livro é publicado pela editora Penguin e, nos Estados Unidosda América, pela Harvard University Press. O meu editor de Harvard,Michael Aronson, também fez várias sugestões gerais excelentes.Além disso, houve dois revisores anónimos do manuscrito que meproporcionaram comentários úteis. Visto que ao cabo de uma investi-gação de detective, revelou-se que eram eles Frank Lovett e BillTalbott, agora, também lhes posso agradecer citando os seus nomes.A preparação e a montagem do livro, na Penguin Books, foram levadasa bom porto de modo excelente e sob grande pressão de prazos, tudograças ao trabalho desembaraçado e incansável de Richard Duguid(o editor-chefe), Jane Robertson (editora de texto) e Philip Birch(editor-assistente). A todos eles, estou profundamente reconhecido.

Não tenho palavras para expressar adequadamente a minha gra-tidão ao editor desta obra, Stuart Proftt, da Penguin Books, que con-tribuiu com sugestões e comentários inestimáveis a propósito de todosos capítulos (para dizer toda a verdade, a propósito de quase todas aspáginas de cada capítulo) e me convenceu a reescrever muitas daspartes do manuscrito, para o tornar mais claro e acessível. Alémdisso, os seus conselhos acerca da organização geral do livro tambémforam indispensáveis. É fácil imaginar qual não será o seu alívio,quando vir que, finalmente, já não tem este livro entre mãos.

AMARTYA SEN

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3 5AGRADECIMENTOS

INTRODUÇÃO

UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

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3 7AGRADECIMENTOS

UMA PERSPECTIVA SOBRE A JUSTIÇA

Em Paris, cerca de dois meses e meio antes da invasão da Bastilha,ponto que foi, de facto, o início da Revolução Francesa, o filósofopolítico e orador Edmund Burke, declarava o seguinte no parlamentode Londres: «Deu-se um facto sobre o qual é difícil falar e impossí-vel ficar calado.» Estávamos a 5 de Maio de 1789. O discurso deBurke não tinha nada que ver com a tempestade que ia crescendo emFrança. Nessa ocasião, tratava-se sobretudo da acusação formal deWarren Hastings, que então estava à frente da Companhia Britânicadas Índias Orientais. A companhia tinha a função de estabelecer odomínio britânico na Índia, tarefa a que deu início com a vitória daBatalha de Plassey (a 23 de Junho de 1757).

Ao fazer a acusação de Warren Hastings, Burke invocou as «leiseternas da justiça», que, assim o dizia Burke, Hastings teria «viola-do». A impossibilidade de permanecer calado sobre certo assunto éalgo que pode ser declarado a propósito de muitos casos de injustiçamanifesta, quando esta nos move até ao ponto de nos incitar a umtipo de raiva que a nossa linguagem tem dificuldade em retratar, poisé aquele tipo de raiva que não se deixa aprisionar em palavras. E noentanto, qualquer análise que se faça da injustiça (ou de uma injusti-ça) sempre reclamará uma sua clara articulação e um escrutínio quepasse pela razão.

Porém, Burke até nem deu mostras de que lhe faltassem aspalavras: foi com eloquência que ele veio falar, não apenas sobre umerro de Hastings, mas sobre uma pilha deles, e, partindo daí, passoua apresentar em simultâneo várias razões separadas e perfeitamentedistintas que justificavam a necessidade de proceder à acusação sejade Warren Hastings seja da natureza do emergente domínio britânicosobre a Índia:

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3 8 A IDEIA DE JUSTIÇA

«Acuso Warren Hastings, Esquire, de gravíssimos crimes e contra-venções.

Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, reunidos em assem-bleia no Parlamento, cuja confiança parlamentar ele traiu.

Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, cujo carácter nacio-nal ele desonrou.

Acuso-o em nome do povo da Índia, cujas leis, direitos e liberdadesele subverteu, cujas propriedades ele destruiu, em cujo país ele lançou adevastação e a desolação.

Acuso-o em nome e pela virtude das leis eternas da justiça que eleviolou.

Acuso-o em nome da própria natureza humana, que ele cruelmenteultrajou, injuriou e oprimiu, em ambos os seus sexos, em todas as suasidades, posições, situações e condições de vida.»1

Nenhum destes argumentos é identificado à parte como sendo arazão da acusação de Warren Hastings – à maneira de soco que põeo adversário knock-out. Em vez disso, o que vemos é Burke queexpõe uma colecção de razões distintas para que ele seja acusado*.Mais adiante, nesta obra, vou ter a oportunidade de examinar umprocedimento que se pode apelidar de “fundamentação plural”, istoé, o uso de diferentes linhas de condenação, sem que se procure umacordo acerca dos méritos relativos de cada uma delas. A questãoque está aqui subjacente é a de saber se devemos concordar comuma particular linha de censura para que se chegue a um consensoargumentado acerca do diagnóstico de uma injustiça que reclameuma urgente rectificação. O que aqui importa notar, enquanto aspecto

1 Não tratarei aqui da veracidade das afirmações de Burke, mas apenas do modocomo ele, por princípio, apresenta uma fundamentação plural para a acusação. Na verdade,esta tese de Burke acerca da perfídia pessoal de Hastings é bastante injusta. Por maisestranho que possa parecer, tempos antes, Burke chegara a defender o manhoso RobertClive, que teve responsabilidades bem maiores na ilícita pilhagem da Índia, estando esta sobo controlo da Companhia – algo que Hastings tentou deter apelando fortemente para anecessidade de respeitar a ordem e a legalidade (mas também introduzindo uma dose dehumanidade na administração exercida pela Companhia, coisa de que tinha sido muito falhaaté então). Tive ocasião de discutir estes factos históricos num discurso comemorativoproferido na Câmara Municipal de Londres, por altura do 250.º aniversário da Batalha dePlassey (“The Significance of Plassey”), em Junho de 2007. A conferência foi publicada,numa versão ampliada, sob o título Imperial Illusions: India, Britain and the WrongLessons, The New Republic, Dezembro, 2007.

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3 9UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

central da ideia de justiça, é que pode acontecer ficarmos com umaforte sensação de injustiça com base em fundamentos múltiplos ediferentes, e, apesar disso, poderemos não dar o nosso acordo àeleição de um particular fundamento como a razão dominante dessediagnóstico de injustiça.

Considerando um acontecimento recente, talvez possamos ofe-recer uma ilustração mais imediata, e mais contemporânea, destaquestão geral que trata da existência de implicações congruentes: osfactos relativos à decisão do governo dos Estados Unidos que levouà invasão militar do Iraque em 2003. Há várias maneiras de julgardecisões deste tipo, mas o que aqui se deverá ter em conta é o factode ser possível que argumentos distintos e divergentes poderem, aindaassim, conduzir à mesma conclusão – neste caso, a de que o curso deacção política escolhido pela coligação liderada pelos Estados Unidos,e que levou a iniciar uma guerra no Iraque em 2003, estava errado.

Repare-se nos diferentes argumentos que foram sendo apresen-tados, todos bastante plausíveis, como críticas contra a decisão deentrar em guerra no Iraque*. Em primeiro lugar, a conclusão de que ainvasão era um erro pode basear-se na necessidade de obter maisvozes concordantes a nível global, especialmente através da NaçõesUnidas, para que um país possa desembarcar as suas tropas noutropaís. Um segundo argumento já se poderá centrar sobre a importân-cia de se estar bem informado – por exemplo, quanto aos factosrelativos à existência ou inexistência de armas de destruição maciçaantes da invasão do Iraque –, antes de se tomar decisões militaresdeste tipo, decisões que inevitavelmente iriam pôr muitíssimas pessoasem risco de serem chacinadas, mutiladas ou desalojadas. Um terceiroargumento já seria atinente à noção de democracia como “governopela discussão” (para usarmos uma antiga expressão associada fre-quentemente a John Stuart Mill, mas que já antes fora empregue porWalter Bagehot), e gira em torno do significado político que podemosatribuir à distorção informacional operada sobre aquilo que venha a

* Claro está que também se apresentaram argumentos em favor da intervenção. Umconsistia na crença de que Saddam Hussein era responsável pelo acto terrorista de 11 deSetembro; outro, que ele era unha com carne com a al-Qaeda. Provou-se que nenhumadestas acusações era exacta. É verdade que Hussein era um ditador brutal, mas, afinal,também havia – e há – muitos outros por todo o mundo a quem coubesse o mesmo epíteto.

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4 0 A IDEIA DE JUSTIÇA

ser apresentado ao povo de um certo país, no que se inclui um certotipo de ficção culta (tal o caso das ligações imaginárias de SaddamHussein aos acontecimentos de 11 de Setembro ou à al-Qaeda); comtudo isso, dificulta-se aos cidadãos americanos o acesso à decisãoexecutiva de abrir guerra. Um quarto argumento poderia achar quenenhuma das precedentes seria a questão principal, identificando-aantes nas consequências da intervenção militar: seria ela capaz detrazer a paz e a ordem ao país invadido, ao Médio Oriente ou aomundo, e teria sido de esperar que ela viesse reduzir o perigo daviolência e do terrorismo mundiais, ao invés de os vir intensificar?

Todas elas são considerações sérias e envolvem implicaçõesvalorativas muito diferentes, nenhuma das quais poderia ser excluídaà partida por ser irrelevante, ou sem importância, para uma avaliaçãode acções deste tipo. Mais: em geral, elas podem nem levar à mesmaconclusão. Todavia, se se mostrar, como sucede neste exemplo espe-cífico, que todos os critérios sustentáveis conduzem a um mesmodiagnóstico, apontando para um erro crasso, então uma tal conclusãonão precisará de esperar por uma determinação das prioridades relati-vas que se poderiam associar a cada uma desses critérios. Com efeito,a redução arbitrária de princípios múltiplos e potencialmente confli-tuantes a um único e solitário sobrevivente, com o guilhotinar detodos os demais critérios valorativos, não é um pré-requisito para quese obtenham conclusões úteis e robustas acerca do curso de acção aseguir. Isto tanto se aplica à teoria da justiça como a qualquer outraparte da disciplina que tem por objecto a razão prática.

RACIONALIDADE E JUSTIÇA

A necessidade de termos uma teoria da justiça surge quando nosdetemos a elaborar uma disciplina para este particular exercício darazão que tem por objecto um tema sobre o qual, como bem diziaBurke, é muito difícil falar. Tem sido sustentado que a justiça não éde todo uma questão de raciocínio, mas simplesmente uma questãode se ser apropriadamente sensível e de se ter faro para a injustiça.É muito fácil deixarmo-nos tentar a pensar desta maneira. Por exem-plo, quando deparamos com o grassar de uma carestia assoladora, oque nos parece natural é que protestemos, e não que nos ponhamos a

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4 1UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

raciocinar elaboradamente acerca da justiça e da injustiça. E no en-tanto, uma calamidade só será um caso de injustiça se pudesse tersido evitada, e, em especial, se quem pudesse ter adoptado acçõespreventivas tivesse deixado de tentar fazê-lo. Há sempre uma qual-quer forma de exercício da razão quando partimos da observação deuma tragédia e passamos para um diagnóstico que identifica umainjustiça. A mais disso, os casos de injustiça podem ser bem maiscomplexos e subtis do que a mera verificação de uma calamidadeobservável. Pode acontecer que haja diferentes argumentos passíveisde sugerir conclusões díspares, e então, as valorações relativas àjustiça serão tudo menos óbvias.

Amiúde, a evitar oferecer uma justificação raciocinada não sãotanto os manifestantes que protestam indignados, mas sim os pláci-dos guardiães da ordem e da justiça. Ao longo de toda a história,atraídos por uma tal reticência, foram aqueles que tinham funções degoverno, os que estavam investidos em autoridade pública e que nãoestavam certos de quais fossem os fundamentos que pudessem justi-ficar um certo curso de acção, ou que não estavam dispostos a fazero exame dos motivos em que assentavam as suas políticas. LordMansfield, o poderoso juiz inglês do século XVIII, deu este famosoconselho a um recém-nomeado governador colonial: «Tome em con-sideração o que acha que a justiça pede e aja em conformidade. Masnunca diga quais são as suas razões, pois o seu juízo provavelmenteestará certo, mas as suas razões certamente estarão erradas2». Esteserá, com certeza, um bom conselho para governar com tacto, masde nenhuma maneira há-de ser um modo de garantir que as medidascertas sejam tomadas, como também não ajudará a ter a certeza deque as pessoas afectadas estarão a dar-se conta de que se estará afazer justiça (aspecto que é, como veremos mais à frente, uma parteda disciplina que deve regular uma tomada de decisões sustentáveisem matéria de justiça).

Os requisitos que uma teoria da justiça deve preencher incluemchamar à cena a razão para que desempenhe o seu papel no diagnós-tico acerca da justiça e da injustiça. Ao longo de centenas de anos, osautores que, em diferentes partes do mundo, foram escrevendo sobrea justiça têm tentado providenciar a base intelectual que permitapassar de um sentido geral de injustiça para um seu diagnósticoparticular e raciocinado, e, a partir daí, para a análise dos meios para

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4 2 A IDEIA DE JUSTIÇA

se fazer progredir a justiça. As tradições da argumentação acerca dajustiça e da injustiça têm uma longa – e espantosa – história em todoo mundo, e dela podemos retirar sugestões iluminantes sobre as ra-zões da justiça, a fim de sobre elas reflectirmos (o que passaremos afazer já de seguida).

O ILUMINISMO E UMA DIVERGÊNCIA DE BASE

Sendo embora certo que o tema da justiça social tem sido discutidoao longo dos tempos, esta matéria recebeu um impulso particular-mente forte durante o período do Iluminismo europeu, nos séculosXVIII e XIX, com o encorajamento que provinha de um clima políticode mudança e com a transformação económica e social que entãoocorria na Europa e na América. Entre os principais filósofos associa-dos ao pensamento mais radical desse período, encontramos funda-mentalmente duas linhas de pensamento acerca da justiça, que sobreela discorrem de modo divergente. Segundo creio, a distinção entreestas duas perspectivas tem recebido muito menos atenção do queaquela que, sem dúvida, merece. Começarei por referir esta dicoto-mia, porque isso ajudará a localizar a concepção da teoria da justiçaque tento apresentar ao longo deste livro.

Uma das perspectivas, liderada por Thomas Hobbes no séculoXVII, e seguida de maneiras diferentes por pensadores tão notáveiscomo o era Jean-Jacques Rousseau, concentrava-se na identificaçãodas combinações ou arranjos institucionais que mostrassem ser justospara uma sociedade. Esta perspectiva, que pode ser chamada de“institucionalismo transcendental”, apresenta dois traços distintos.Primeiro: ela concentra a sua atenção naquilo que pode caracterizar ajustiça perfeita, mais do que em comparações relativas entre justiça einjustiça. Assim, ela tenta apenas identificar as características sociaisque, em termos de justiça, não são passíveis de ser transcendidas;deste modo, o seu foco de atenção não consiste em comparar socie-dades que existam na realidade, que sempre poderão ficar aquém dosideais da perfeição. A sua investigação aponta para a identificação danatureza do que é “o justo”, ao invés de tentar encontrar critériospara uma alternativa que fosse “menos injusta” do que uma outra.

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4 3UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

Segundo: ao tentar encontrar a perfeição, o institucionalismotranscendental aposta, a título primário, em tentar que as instituiçõessejam as certas, não se ocupando directamente das sociedades efecti-vas que, em última análise, possam acabar por emergir. É claro,todavia, que a natureza da sociedade que resultasse de um dadoconjunto institucional dependerá outrossim de aspectos não institu-cionais, tais como os comportamentos efectivos adoptados pelas pes-soas no curso das suas interacções sociais. Assim, ao discorrer sobreas consequências prováveis que adviriam das instituições – isto é,acaso um institucionalista transcendental opte por comentá-las ouquando o decida fazer –, abraçam-se certas suposições comporta-mentais que hão-de ser uma ajuda para o funcionamento das institui-ções que venham a ser escolhidas.

Ambos os aspectos têm a ver com a maneira de pensar “contra-tualista” (“contractarian”) que Thomas Hobbes encetara e que viriaa ser continuada por John Locke, Jean-Jacques Rousseau e ImmanuelKant3. Muito claramente, um hipotético “contrato social”, que sepresume ter sido objecto de escolha, terá que ver com uma certaalternativa ideal que se prefere a esse caos que, de outra maneira,haveria de caracterizar a sociedade; ora os contratos que, de modoproeminente, vemos serem configurados por estes autores tratam pri-mariamente da questão relativa à escolha das instituições. E o resulta-do global haveria de ser a elaboração de teorias da justiça que secentravam numa identificação ou caracterização transcendental deinstituições ideais*.

Chegados aqui, é no entanto importante fazer notar que osinstitucionalistas transcendentais, esses mesmos que estavam em busca

* Iniciada por Hobbes, é certo que esta perspectiva da justiça que parte do contratosocial combina transcendentalismo e institucionalismo, contudo, vale a pena notar que estesdois traços não têm de andar juntos necessariamente. Podemos ter, por exemplo, uma teoriatranscendental que esteja centrada não tanto sobre as instituições e mais sobre as realizaçõesconseguidas no âmbito das actividades sociais (a busca do mundo perfeitamente utilitáriopovoado de pessoas radiantes e felizes, eis aí um exemplo de uma perspectiva que apenaspersegue uma “transcendência assente na realização”). Ou então, podemos centrar-nos numaavaliação das instituições partindo de perspectivas comparativas, em vez de enveredarmospor uma mera investigação transcendental do pacote perfeito de instituições sociais (umailustração de um institucionalismo comparativo poderia ser a preferência dada a um maior –ou até mesmo um menor – papel do mercado).

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4 4 A IDEIA DE JUSTIÇA

das instituições perfeitamente justas, por vezes, deixaram-nos tam-bém análises profundamente iluminadoras dos imperativos morais oupolíticos que rodeiam os comportamentos tidos por socialmenteapropriados. Isto é válido, em particular, no caso de Immanuel Kante de John Rawls. Ambos participaram desta investigação transcen-dental das instituições, mas também nos deram análises de longoalcance sobre as características das normas de comportamento. Con-quanto se tenham dedicado ao estudo das escolhas institucionais, assuas análises assumem o semblante mais amplo de perspectivas dajustiça “centradas em combinações” de factores, onde a par das insti-tuições acertadas se incluem também os comportamentos acertados*.Obviamente, há um contraste radical entre uma concepção da justiça“centrada em arranjos”nt (“arrangement-focused”) e uma perspectiva“centrada em realizações” (“realization-focused”): esta última deveráatender, por exemplo, ao efectivo comportamento que as pessoasadoptam, ao invés de partir do princípio de que todos seguirão ocomportamento conforme o ideal.

Contrastando com o institucionalismo transcendental, houve outrosteóricos do Iluminismo que assumiram uma variedade de perspecti-vas comparativas preocupadas com as realizações sociais (aquelasque resultam de instituições reais, de comportamentos reais e deoutras influências mais). Podemos encontrar diferentes versões destetipo de pensamento comparativo, por exemplo, nas obras de AdamSmith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, de MaryWollstonecraft e de John Stuart Mill, entre vários outros líderes decorrentes de pensamento inovadoras, ao longo dos séculos XVIII eXIX. Se bem que estes autores, com as suas diferentes ideias acercadas exigências da justiça, tenham proposto maneiras também muitodiferentes de proceder a comparações sociais, ainda assim e correndoo risco de exagerarmos, sim, mas apenas um pouco, podemos dizer

* Eis a explicação de Rawls: «A outra limitação das nossas discussões é o facto deque, na sua maior parte, estou ocupado a examinar os princípios da justiça que regulariamuma sociedade bem ordenada. É suposto que todos ajam segundo a justiça e que façam asua parte com vista à preservação das instituições justas» (A Theory of Justice, Cambridge,MA, Harvard University Press, 1971, pp. 7-8).

nt Para esta expressão, poderíamos alternar entre “arranjo” (de elementos/factores) e “com-binação” (de elementos/factores), mas optaremos pelo vocábulo português de idêntico étimo.

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4 5UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

que eles se envolvem em comparações de sociedades que já existiamou, então, que tinham toda a viabilidade de virem a existir na realidade,não confinando por isso a sua análise a indagações transcendentaisem busca da sociedade perfeitamente justa. O mais das vezes, aque-les que tinham por escopo comparações centradas em realizaçõessociais estariam primariamente interessados em remover as injustiçaspatentes do mundo que viam à sua frente.

A distância que separa estas duas perspectivas, o institucionalis-mo transcendental e a comparação centrada em realizações, édigníssima de nota. Como podemos observar, é precisamente a pri-meira destas tradições de pensamento – a do institucionalismo trans-cendental – que, em grande medida, serve de inspiração para a correntedominante da actual filosofia política, no que respeita à investigaçãoda teoria da justiça. A exposição mais marcante e mais poderosadesta perspectiva, encontramo-la na obra do principal filósofo políti-co do nosso tempo, John Rawls (cujas ideias e cujos contributos,com as suas implicações de longo alcance, serão estudados no Capí-tulo 2, “Rawls e Para Lá de Rawls”)*. De facto, os “princípios dajustiça” de Rawls, como aparecem na sua Teoria da Justiça, sãointeiramente definidos a partir da sua relação com instituições perfei-tamente justas, embora ele também trate de investigar – e com parti-cular luminosidade – as normas que hão-de reger os comportamentosacertados em contextos políticos e morais†.

Nos dias de hoje, há ainda vários outros proeminentes estudio-sos da teoria da justiça que, pelo menos em traços largos, optarampor enveredar pela rota do institucionalismo transcendental – estou a

* Veja-se a explicação que dava em A Theory of Justice (1971): «O meu escopo éapresentar uma concepção da justiça que generalize e leve para um plano superior deabstracção a já familiar teoria dos contratos sociais, tal como se pode encontrar, por exem-plo, em Locke, Rousseau ou Kant» (p.10). Vide também o seu Political Liberalism, NovaIorque, Columbia University Press, 1993. As rotas “contratualistas” (“contractarian”)trilhadas pela teoria da justiça de Rawls já tinham sido por ele enfatizadas num ensaioanterior – e pioneiro –, “Justice as Fairness”, Philosophical Review, 67 (1958).

† Ao sugerir a necessidade daquilo a que chama “equilíbrio reflexivo” (“reflectiveequilibrium”), Rawls enxerta na sua análise social a necessidade de que cada um submeta osseus valores e prioridades a um escrutínio crítico. Além disso, como já se mencionou antes,na análise rawlsiana, as “instituições justas” aparecem identificadas com a presunção de umaefectiva conformidade da conduta com as regras de comportamento mais apropriadas.

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4 6 A IDEIA DE JUSTIÇA

pensar em Ronald Dworkin, David Gauthier e Robert Nozick, alémde outros. As suas teorias, tendo-nos fornecido diferentes – mas, emtodos os casos, importantes – reflexões que perscrutam as exigênciasapresentadas pela “sociedade justa”, têm em comum o objectivo deidentificar as regras e instituições justas, ainda que a caracterizaçãodestes arranjos apareça com feitios muitos diferentes. Pode, pois,dizer-se que a caracterização das instituições perfeitamente justas setornou a tarefa central das modernas teorias da justiça.

O PONTO DE PARTIDA

Contrastando com a maioria das modernas teorias da justiça, quegiram em torno da “sociedade justa”, este livro tentará levar a cabouma investigação de comparações que partirão das realizações sociaise que se manterão centradas na observação dos avanços e recuos dajustiça. Deste ponto de vista, este livro não se mostra alinhado comessa tradição mais forte e filosoficamente mais aclamada que é a doinstitucionalismo transcendental, a mesma que vimos emergir duran-te o Iluminismo e que, sendo chefiada por Hobbes, foi desenvolvidapor Locke, Rousseau e Kant, entre outros; antes alinhará ao lado da“outra” tradição, que ganhou forma pela mesma altura ou um poucomais tarde (e que, embora de maneiras de diferentes, foi seguida porAdam Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, Mill e ou-tros). Como é bom de ver, o facto de partilhar o mesmo ponto departida com estes diferentes pensadores não quer dizer que dê o meuacordo às suas teorias substantivas (coisa que, aliás, deveria seróbvia, ou não se desse o caso de eles próprios diferirem tanto entresi); mas, uma vez que passemos além desse ponto de partida partilha-do, será mister dar também atenção a alguns pontos de chegadaeventuais*. O resto do livro tratará precisamente de explorar essaviagem.

* Para além disso, estes autores empregam a palavra “justiça” de muitas maneirasdiferentes. Como fazia notar Adam Smith, o termo “justiça” tem vários significados diferen-tes (The Theory of Moral Sentiments, 6.ª ed., Londres, T. Cadell, 1790, VII. ii. 1. 10, naedição da Clarendon Press, 1976, p. 269). Iremos examinar as ideias de Smith sobre ajustiça no seu sentido mais amplo.

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4 7UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

A importância do ponto de partida não pode ser negada, emespecial, no que toca à selecção de certas questões que devem serrespondidas (por exemplo: “Como se pode obter o progresso dajustiça?”) em detrimento de outras (por exemplo: “O que seriaminstituições perfeitamente justas?”). Este ponto de partida provocaum duplo efeito: primeiro, o de se enveredar por uma rota comparati-va e não por uma de tipo transcendental; segundo, o de ter por fococentral de atenção as realizações efectivas das sociedades implicadase não meramente regras e instituições. Considerado o actual equilí-brio de ênfases na filosofia política contemporânea, tudo isso exigiráuma mudança radical no modo de formular da teoria da justiça.

Mas para esta viagem, por que motivo precisamos nós de umatal partida dupla? Começo pelo transcendentalismo. Logo aqui, vejojá dois problemas. Primeiro: mesmo sob condições estritas de impar-cialidade e de um escrutínio feito com abertura de espírito (porexemplo, tal este aparece caracterizado por Rawls na sua “posiçãooriginal”), pode não chegar a haver um acordo argumentado acercada natureza da “sociedade justa”, e eis-nos assim diante da questãoda viabilidade de se conseguir uma solução transcendental com aqual todos estejam de acordo. Segundo: um exercício da razão práticaque implique uma escolha efectiva exigirá uma moldura para essascomparações relativas à situação da justiça, a fim de que se possaescolher entre as alternativas viáveis, não bastando a identificação ea caracterização de uma situação perfeita que não pudesse ser trans-cendida, mas possivelmente inacessível, e, desta feita, temos a questãoda redundância de uma busca da solução transcendental. Passarei deimediato a discutir estes problemas levantados pelo ponto de vistatranscendental (tanto a sua viabilidade como a sua redundância),mas, antes disso, seja-me permitido comentar brevemente o acentoposto no aspecto institucional que vai implicado na perspectiva doinstitucionalismo transcendental.

Esta segunda vertente do ponto de partida trata da necessidadede pôr o foco de atenção sobre realizações e resultados efectivos, emvez de tão-só o apontar para o estabelecimento das instituições e dasregras que venham a ser identificadas como apropriadas. Como jáantes se mencionou, aqui, o contraste prende-se com uma dicotomiageral – e muito mais ampla – entre uma visão da justiça “centrada emarranjos” e um seu entendimento “centrado em realizações”. A primeira

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4 8 A IDEIA DE JUSTIÇA

linha de pensamento vem propor que se construa uma concepção dajustiça em termos de arranjos ou combinações organizacionais – cer-tas instituições com certas regulamentações e certas regras de com-portamento –, pelo que uma presença activa das mesmas seria oindicador de que se estaria a cumprir a justiça. Neste contexto, im-põe-se uma pergunta, a de saber se a análise da justiça deverá ficarlimitada ao esforço de se conseguir acertar ao indicar as instituiçõesfundamentais e as regras gerais mais apropriadas. Não deveríamostambém examinar o que se passa na sociedade, incluindo aí os dife-rentes tipos de vida que, na realidade, as pessoas conseguem levarperante determinadas regras e instituições, mas ainda outras influên-cias que inelutavelmente acabariam por afectar as vidas humanas,entre as quais os efectivos comportamentos que se possam observar?

Irei, pois, considerar à vez os argumentos a favor de cada umdos pontos de partida. Começarei pelos problemas levantados pelacaracterização de tipo transcendental, tratando à cabeça da questãoda viabilidade, para lidar depois com o problema da redundância.

VIABILIDADE DE UM ACORDO TRANSCENDENTAL ÚNICO

Pode acontecer que haja sérias divergências entre princípios de justi-ça concorrentes que acabem por resistir a um escrutínio crítico, semque isso afecte as pretensões de imparcialidade. Isto causa um pro-blema de não pouca monta, desde logo em relação à tese de JohnRawls, segundo a qual deveria ocorrer uma escolha unânime de umúnico conjunto de «dois princípios de justiça» numa hipotética situa-ção de igualdade primordial (que ele apelida de «a posição original»)em que os interesses próprios ou de parte não seriam conhecidospelos próprios interessados. Isto leva a presumir que, basicamente,há apenas uma espécie de argumento imparcial livre de interesses departe e capaz de satisfazer as exigências da equidade ou da justeza.Quer me parecer, contudo, que isto é um erro, e é isso que meproponho mostrar.

Por exemplo, de uma banda, pode haver diferenças de posiçãoquanto aos exactos pesos a dar comparativamente em matéria deigualdade distributiva, e, ao mesmo tempo, pode aquiescer-se numacréscimo global ou por agregação. Na sua caracterização transcen-

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4 9UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

dental, John Rawls individualiza uma fórmula deste tipo (a regralexicográfica maximin, de que se tratará no Capítulo 2), por entrevárias que estão à nossa disposição; aí, não existem argumentosconvincentes que pudessem eliminar todas as demais alternativas quese mostrassem capazes de competir com a fórmula especialíssima deRawls para a garantia de uma atenção ou consideração imparciais*.Pode ainda haver muitas outras divergências argumentadas relativa-mente a fórmulas particulares sobre as quais Rawls se debruça aotratar dos seus dois princípios de justiça, sem que isso nos expliquepor que motivo não seria possível que outras alternativas pudessemcontinuar a captar a nossa atenção na atmosfera imparcial da suaposição original.

Se um diagnóstico sobre arranjos sociais perfeitamente justos semostrar irremediavelmente problemático, então toda a estratégia doinstitucionalismo transcendental ficará seriamente comprometida,ainda que todas as alternativas possíveis e imaginárias estejam ànossa disposição e fossem acessíveis. Assim, por exemplo, os doisprincípios da justiça presentes no estudo clássico de John Rawlsdedicado à “justiça como equidade” (e que merecerá uma discussãomais exaustiva no Capítulo 2) versam precisamente sobre instituiçõesperfeitamente justas num mundo em que todas as alternativas estão ànossa disposição. No entanto, o que nos falta saber é se a pluralidadede razões que podem fundar a justiça iria permitir que, na posiçãooriginal, emergisse um único conjunto de princípios de justiça. Porisso, esta elaborada investigação da justiça social de Rawls, que vaiprogredindo de degrau em degrau a partir da caracterização e daconstituição de instituições justas, ver-se-ia encravada logo na sua base.

Nos seus escritos posteriores, Rawls faz algumas concessõesno sentido de reconhecer que «é claro que os cidadãos irão divergiracerca de quais as concepções de justiça política que têm por maisrazoáveis». Aliás, no The Law of Peoples (1999) chega mesmo adizer:

* Diferentes tipos de regras imparciais de distribuição são discutidas no meu OnEconomic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, e a edição ampliada com um novoApêndice, elaborado em parceria com James Foster, 1997. Vide também Alan Ryan(coord.), Justice, Oxford, Clarendon Press, 1993, e David Miller, Principles of SocialJustice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999.

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5 0 A IDEIA DE JUSTIÇA

«O conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepçõespolíticas sobre a justiça, não apenas por uma. Há muitos liberalismos evisões correlatas, e, por isso, haverá muitas formas de razão pública, aserem especificadas por uma família de concepções políticas razoáveis. Deentre estas, a justiça como equidade, quaisquer que sejam os seus méritos,não é mais do que uma delas.»4

No entanto, não fica ainda claro como é que Rawls iria lidarcom as amplas implicações de uma tal concessão. As instituiçõesespecífica e firmemente escolhidas para integrarem a estrutura básicada sociedade iriam exigir uma resolução também específica quantoaos princípios da justiça, tal como foi delineado pelo próprio Rawlsnas suas obras anteriores, e, entre elas, em Uma Teoria da Justiça(1971)*. Uma vez que se deixasse cair a pretensão de unicidadereclamada pelos princípios de justiça rawlsianos (e os argumentosnesse sentido aparecem delineados nas obras mais tardias de Rawls),então, o programa institucional passaria a sofrer de uma sériaindeterminação; e Rawls não nos adianta muito sobre como um parti-cular conjunto de instituições poderia vir a ser escolhido com basenum conjunto de princípios de justiça concorrentes que viriam exigirdiferentes combinações institucionais para tecer a estrutura básica deuma sociedade. Claro está que Rawls sempre poderia resolver esteproblema abandonando simplesmente o institucionalismo transcen-dental das suas primeiras obras (em particular, Uma Teoria da Justi-ça); ora, uma tal opção teria sido a que mais teria agradado a quemvos escreve†. Temo, no entanto, não poder asseverar que fosse essa a

* As dificuldades encontradas ao se tentar chegar a um conjunto único de princípiosque sejam capazes de guiarem a escolha institucional no âmbito da posição original sãodiscutidas no seu livro posterior, Justice as Fairness: A Restatement, a cargo de Erin Kelly,Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001, pp. 132-134. Estou muito reconhecido aErin Kelly por ter aceite discutir comigo as relações entre os primeiros escritos de Rawls eas suas formulações mais tardias acerca da teoria da justiça como equidade.

† O cepticismo de John Garay acerca da teoria rawlsiana da justiça é muito maisradical do que o meu, mas ambos concordamos em rejeitar a crença de que as questõesvalorativas só admitem uma única resposta correcta. Concordo também que «a diversidadedos estilos de vida e de regimes é uma marca característica da liberdade humana, e não deum erro» (Two Faces of Liberalism, Cambridge, Polity Press, 2000, p. 139. A minhainvestigação prende-se com acordos argumentados que se possam no entanto alcançar sobrecomo reduzir a injustiça, não obstante as nossas diferentes visões acerca do regime “ideal”.

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5 1UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

direcção que, em última análise, Rawls estava a seguir, muito emboraos seus trabalhos posteriores nos levem necessariamente a levantaressa questão.

TRÊS CRIANÇAS E UMA FLAUTA: UMA ILUSTRAÇÃO

No âmago do particular problema relativo à hipótese de uma soluçãoimparcial única que nos indique a sociedade perfeitamente justa,encontramos a possível sustentabilidade de razões de justiça plurais econcorrentes, tendo todas elas bons títulos de imparcialidade, semembargo de divergirem entre elas – e de entre si rivalizarem. Permi-tam-me ilustrar este problema com um exemplo. Nele, o leitor terá dedecidir qual de entre três crianças – Ana, Bernardo e Carla – deveráficar com essa flauta sobre a qual os vemos a discutir. Ana reivindicaa flauta com fundamento no facto de ser ela a única dos três que asabe tocar (os outros não o negam), e de que seria muito injusto quese negasse a flauta à única pessoa que, de facto, consegue tocarflauta. Se tudo o que o leitor sabe se resumisse a isto, então a tesefavorável a que se desse a flauta à primeira criança seria muito forte.

Num cenário alternativo, já seria Bernardo a não se deixar ficar.Agora é a sua vez de falar, e para fazer valer a sua pretensão sobre aflauta, lembra que, dos três, ele é único a ser tão pobre que não temquaisquer brinquedos. A flauta seria, pois, algo com que pudessebrincar (os outros dois concedem que são mais ricos e mais bemfornecidos no que toca a amenas diversões). Acaso o leitor se limi-tasse a ouvir o Bernardo e não tivesse ouvido nenhum dos outros, atese favorável a que se lhe desse a flauta seria realmente forte.

Seja ainda outro cenário alternativo. Desta feita, é a vez de falarda Carla, e ela lembra-nos que esteve a trabalhar com grande afincodurante vários meses para conseguir construir a flauta com o trabalhodas suas próprias mãos (coisa que é confirmada pelos outros); e nopreciso momento em que ela tinha conseguido acabar o seu trabalho,«nesse preciso instante», queixa-se ela, «vêm estes expropriadores etentam arrancar-me a flauta das mãos». Como a declaração de Carlafosse a única que o leitor tivesse tido a ocasião de ouvir, então bempoderia estar inclinado a dar-lhe a flauta, assentindo na sua pretensãomuito compreensível de vir reivindicar algo que ela própria fez.

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5 2 A IDEIA DE JUSTIÇA

Depois de ter ouvido os três e os seus diferentes raciocínios, oleitor tem agora entre mãos uma difícil decisão. Teóricos de correntesvárias, tais como os utilitaristas ou os igualitaristas económicos, ouainda os libertários puros e duros, cada um deles poderá seguir aperspectiva de que há uma solução justa que, de tão óbvia, salta aosolhos, pelo que encontrá-la não levantará qualquer dificuldade. Po-rém, é quase certo que todos eles, cada um por seu turno, haveriamde chegar a uma solução diferente, e em todos os casos, a título desolução obviamente correcta.

Bernardo, o mais pobre dos três, conseguiria facilmente o apoiodeclarado do igualitarista económico, estando este apostado em redu-zir o fosso entre os recursos económicos das pessoas. Já por outrolado, Carla, a que fabricou a flauta, receberia imediatamente a simpa-tia do libertário. O utilitarista hedonista poderia ver-se confrontadocom o desafio mais espinhoso, mas decerto que se inclinaria, mais doque o libertário ou o igualitarista económico, a dar peso ao facto deque, provavelmente, o prazer de Ana seria o mais forte, visto ser elaa única que sabe tocar flauta (e há ainda a máxima geral “quemguarda tem”). Todavia, o utilitarista também deveria reconhecer quea relativa privação de Bernardo poderia tornar muito maior o seuganho acrescido de felicidade ao conseguir a flauta. O “direito” deCarla a obter o que ela própria construiu pode não comover imedia-tamente o utilitarista, mas, ainda assim, uma mais aturada reflexãoutilitarista acabaria por aconselhar a dar alguma atenção às exigên-cias dos incentivos laborais para a construção de uma sociedade,pelo menos, se se quiser que, nela, a criação de utilidade venha a sersustentada e encorajada pelo facto de se permitir que as pessoasconservem aquilo que produzem com o seu próprio esforço*.

No entanto, o apoio do libertário a que se dê a flauta à Carla nãoserá condicionado como acontece necessariamente no caso doutilitarista, que o faz depender dos efeitos gerados pelo funciona-mento dos incentivos, pois que para um libertário, o direito de cada

* Naturalmente, aqui, apenas estamos a observar um mero caso em que se podeidentificar de imediato quem produziu o quê. Uma tal tarefa pode até ser bastante fácil numcaso como este, de uma flauta que a Carla construiu sozinha. Contudo, esse tipo de diagnós-tico pode levantar problemas sérios quando estão envolvidos vários factores de produção,incluindo recursos não laborais.

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5 3UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

um a obter tudo aquilo que produzir por si próprio seria tomado emconsideração a título imediato. A noção de direito aos frutos dopróprio trabalho é sempre capaz de unir libertários de direita e mar-xistas de esquerda (por muito grande que seja o desconforto quepossam sentir ao se verem assim na companhia uns dos outros)*.

O ponto central em tudo isto consiste em ver que não é fácilatirar para um canto, por desprovidas de fundamento, qualquer umadestas pretensões, assentes respectivamente na busca da realizaçãopessoal, na eliminação da pobreza ou na faculdade de fruir do produtodo próprio trabalho. As diferentes soluções têm todas elas argumen-tos sérios a seu favor, tanto assim que poderemos não ser capazes deescolher sem arbitrariedade um dos argumentos alternativos, dizendoser esse aquele que há de prevalecer necessariamente em todos oscasos†.

Quero ainda chamar a atenção para um facto algo óbvio, o deque as diferenças entre os argumentos que as crianças apresentam atítulo de justificação não representam divergências sobre o que gerauma vantagem individual (conseguir a flauta é tido por vantajoso portodos eles e é secundado por cada um dos respectivos argumentos),mas antes acerca dos princípios que, em geral, devem disciplinar aafectação dos recursos. São eles princípios que indicam como sedeverão organizar as combinações sociais, que instituições escolher eque realizações sociais acabarão por se conseguir graças a umas e aoutras. Não se trata apenas de ver que os interesses próprios dascrianças diferem entre si (embora isto também aconteça), mas também

* Dá-se o caso, aliás, de o próprio Karl Marx se ter tornado bastante céptico emrelação ao “direito sobre o trabalho próprio”, que ele acabaria por ver como um “direitoburguês” a ser rejeitado, em última análise, em favor de uma “distribuição segundo asnecessidades”, ponto de vista que ele desenvolveu com alguma ênfase na sua última obra defôlego, A Crítica do Programa de Gotha (1875). A importância desta dicotomia é discutidano meu livro On Economic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, Capítulo 4. Videtambém G. A. Cohen, History, Labour and Freedom: Themes from Marx, Oxford,Clarendon Press, 1988.

† Como aventava Bernard Williams: «Nem sempre é necessário ultrapassar o desacor-do». De facto, ele «pode ser um traço importante e constitutivo das nossas relações com osoutros, e pode também ser visto meramente como algo com que se há-de contar, atendendoàs melhores explicações de que dispomos acerca do modo em que surge um tal desacordo»(Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, p.133).

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5 4 A IDEIA DE JUSTIÇA

que cada um dos três argumentos aponta para um diferente tipo derazão imparcial e não arbitrária.

Ora, isto não se aplica apenas à disciplina da equidade na posi-ção original rawlsiana, mas também a outras exigências de imparcia-lidade, como será o caso do requisito de Thomas Scanlon segundo oqual os nossos princípios deverão satisfazer «aquilo que os demaisnão poderiam razoavelmente rejeitar»5. Como já foi referido, podemuito bem acontecer que pensadores de diferentes filiações, sejameles utilitaristas, igualitaristas económicos, teóricos dos direitos dostrabalhadores ou libertários puros e duros, venham defender, cadaum por si, que há uma só solução justa óbvia e que a mesma éfacilmente detectável, no entanto cada um deles iria argumentar emfavor de uma solução diferente como sendo obviamente correcta. Defacto, poderá não existir um qualquer arranjo social perfeitamentejusto e identificável, em torno do qual pudesse emergir um acordoimparcialmente obtido.

UMA MOLDURA COMPARATIVA OU TRANSCENDENTAL?

O problema da perspectiva transcendental não deriva apenas da pos-sível existência de uma pluralidade de factores concorrentes que pre-tendem afirmar a respectiva relevância para a avaliação da justiça.É verdade que a inexistência de uma combinação de factores perfei-tamente justa que seja identificável é um problema importante, aindaassim, importa reconhecer que a inviabilidade da teoria transcenden-tal não é o único argumento com importância crítica que depõe afavor de uma abordagem comparativa da razão prática da justiça, é-otambém a sua redundância. Se é suposto que uma teoria da justiçadeve guiar a escolha raciocinada das instituições, estratégias e políti-cas a seguir, então a individualização de combinações sociais inteira-mente justas não será necessária nem suficiente.

Exemplifiquemos: se estivermos a tentar escolher entre umPicasso e um Dalí, não nos serve de ajuda invocar um diagnóstico(admitindo que um tal diagnóstico transcendental fosse possível) se-gundo o qual, de entre todos, no mundo inteiro, o quadro ideal é aMona Lisa. Pode ser um discurso interessante, mas não aquece nemarrefece no que toca à escolha entre um Dalí e um Picasso6. Com

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5 5UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

efeito, não é de todo necessário desatar a falar sobre qual possa ser omaior e o mais perfeito dos quadros em todo o mundo, se o quequeremos é escolher entre as duas alternativas com que estamosconfrontados. Mas também não é suficiente, nem sequer tem especialserventia, virmos a saber que a Mona Lisa é a pintura mais perfeitado mundo, se, na realidade, a escolha é entre um Dalí e um Picasso.

Este ponto pode até parecer enganadoramente simples. Umateoria que caracterize uma alternativa transcendental, por esse mesmoprocesso, não nos dirá também o que queiramos saber acerca dajustiça comparativa? E a resposta é não, não diz. É claro que pode-mos ser tentados pela ideia de graduar as alternativas de acordo coma respectiva proximidade em relação à escolha perfeita, de modo queuma tal caracterização transcendental também acabaria por gerar in-directamente uma graduação (ranking) de alternativas. Mas uma talabordagem não nos levará muito longe, em parte, porque os objectospodem diferir entre si em dimensões de apreciação diferentes (peloque surge o problema acrescido de avaliar a importância relativa dadistância em distintas dimensões), mas também porque a proximidadedescritiva não é necessariamente um guia da proximidade valorativa(uma pessoa que prefere o vinho tinto ao branco pode também prefe-rir qualquer dos dois a uma mistura de ambos, apesar de, num senti-do descritivo óbvio, a mistura ser mais próxima do vinho tinto, opreferido, do que o seria um vinho branco puro).

Claro está que é possível termos uma teoria que faz ambas ascoisas: uma avaliação entre pares de alternativas e uma identificaçãoou caracterização transcendental (sempre que isso não se torne im-possível pela sobrevivência de uma pluralidade de razões imparciaisque tenham um título para reivindicar a nossa atenção). Tal seria ocaso de uma teoria “conglomerada”, mas os dois tipos de juízo nãodecorrem um do outro. Mais imediatamente, as teorias da justiça quenormalmente andam associadas a uma identificação transcendental(por exemplo, as de Hobbes, Rousseau e Kant, ou, no nosso tempo,Rawls e Nozick) não são, de facto, teorias conglomeradas. É verdade,todavia, que no processo de desenvolvimento das respectivas teoriastranscendentais, alguns destes autores chegaram a propor certos argu-mentos que se bandeiam para o lado de uma operação de tipo com-parativo. Contudo, em geral, a individualização de uma alternativa

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5 6 A IDEIA DE JUSTIÇA

transcendental não oferece uma solução para o problema relativo acomparações entre duas alternativas não transcendentais.

A teoria transcendental limita-se, pura e simplesmente, a tratarde uma questão que, em si, é diferente da avaliação comparativa –questão aquela que poderá ser de grande interesse intelectual, masque não tem relevância directa para o problema da escolha com quenos venhamos a confrontar. Em vez disso, precisaremos, isso sim, deum acordo que, baseando-se numa argumentação pública, cure dagraduação das alternativas realizáveis. A distância que separa o que étranscendental do que é comparativo é ampla e pluricompreensiva,como se mostrará com mais pormenor no Capítulo 4 (“Voz e EscolhaSocial”). Aliás, a perspectiva comparativa é um elemento central nadisciplina analítica da “teoria da escolha social”, que foi iniciada peloMarquês de Condorcet e por outros matemáticos franceses do séculoXVIII, a maior parte dos quais trabalhava em Paris7. Por longo tempo,a escolha social, enquanto disciplina formal, não foi muito usada,não obstante se continuasse a trabalhar na subárea da teoria do voto.Aquela disciplina viria a ser reanimada e organizada na sua formaactual por Kenneth Arrow, em meados do século XX8. Nas últimasdécadas, esta abordagem tornou-se uma área muito activa da investi-gação analítica, dedicando-se a explorar os meios e as modalidadesque permitam basear as avaliações de alternativas sociais nos valorese prioridades das pessoas nelas envolvidas*. Ainda assim, a aborda-gem central proposta pela teoria da escolha social tem vindo a colheruma atenção relativamente diminuta, especialmente da parte dos filó-sofos, o que se deve ao facto de as sua obras terem geralmente umteor bastante técnico e, em grande medida, matemático; aliás, e é esteum motivo acrescido, muitos dos resultados a que se chegou nestecampo, de facto, não podem ser confirmados a não ser por meio deextensos raciocínios matemáticos†. E no entanto, esta perspectiva e o

* Acerca das características gerais desta perspectiva da escolha social, que permitefundar e motivar os resultados analíticos, veja-se a minha Conferência “Alfred Nobel”, emEstocolmo, em Dezembro de 1998, que mais tarde viria a ser publicada com o título “ThePossibility of Social Choice”, American Economic Review, vol. 89 (1999), e in Les PrixNobel 1998, Estocolmo, The Nobel Foundation, 1999.

† No entanto, as formulações matemáticas revestem-se de alguma importância no quetoca ao conteúdo dos argumentos apresentados por meio de teoremas e axiomas. Para a

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5 7UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

raciocínio que lhe subjaz são até muito próximos do entendimento desenso comum sobre o que sejam decisões sociais apropriadas. Certoé que, na perspectiva construtiva que tento apresentar nesta obra, asconclusões a que chegou a teoria da escolha social vão ter um impor-tante papel*.

REALIZAÇÕES, VIDAS E CAPACIDADES

Agora, é chegada a altura de me voltar para a segunda parte da duplapartida a que aludi, para poder, então, excogitar a necessidade deuma teoria que não esteja confinada a uma escolha das instituições,nem à mera identificação e caracterização de arranjos sociais ideais.A necessidade de um entendimento da justiça assente nas realizaçõesconseguidas liga-se ao argumento de que a justiça não pode serindiferente às vidas que as pessoas podem efectivamente viver.A importância das vidas dos homens, das experiências e realizaçõesnão podem ser suplantadas pela informação que nos chega sobreinstituições existentes e regras que funcionam. As instituições e asregras, são, com certeza, de grande importância pela influência queexercem sobre tudo o que acontece, e também elas são parte insepa-rável do mundo real, todavia essa que é a realidade vigente e realizadavai muito além do quadro puramente organizacional, e inclui em sias próprias vidas que as pessoas conseguem – ou não conseguem –viver.

Ao observarmos a natureza e o teor das vidas humanas, temosboas razões para nos interessarmos, não apenas pelas variadas coisasque conseguimos fazer com sucesso, mas também pelas liberdadesque efectivamente temos quando se trata de escolher entre tipos de

discussão de algumas das conexões entre argumentos formais e informais, veja-se o meuCollective Choice and Social Welfare, São Francisco, CA, Holden-Day, e reedição, Ames-terdão, North-Holland, 1979, onde os capítulos matemáticos e informais se vão alternando.Veja-se ainda a minha pesquisa crítica à literatura da área, “Social Choice Theory”, inKenneth Arrow e Michael Intriligator (coord.), Handbook of Mathematical Economics,Amesterdão, North-Holland, 1986.

* As interconexões entre a teoria da escolha social e a teoria da justiça serão explora-das de modo particular no Capítulo 4, “Voz e Escolha Social”.

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5 8 A IDEIA DE JUSTIÇA

vidas diferentes. A liberdade de escolher a vida que queremos podeser algo que contribui significativamente para o nosso bem-estar;mais do que isso, e indo para além da perspectiva do bem-estar, aprópria liberdade, considerada em si mesma, também pode ser vistacomo algo já de si importante. Ser capaz de raciocinar e escolher éuma faceta significativa da vida humana. De facto, não acontece queestejamos sujeitos à obrigação de apenas procurarmos o nosso bem--estar: cabe-nos a nós decidir quais são as coisas em relação às quaisachamos ter boas razões para tentar alcançar (esta questão será alvode maior discussão nos Capítulos 8 e 9). Não é preciso ser Gandhi,Martin Luther King Jr., Nelson Mandela ou Desmond Tutu, parareconhecer que temos objectivos e prioridades para além da merabusca individualista do nosso bem-estar próprio*. As liberdades ecapacidades de que dispomos, em si mesmas, também podem seralgo que nos é valioso, e, em última análise, é a nós que cabe decidirque uso a dar a essa liberdade que é nossa.

Mesmo nesta breve resenha (uma mais aturada investigação serádesenvolvida mais adiante, particularmente nos Capítulos 11-13), éimportante sublinhar que as realizações sociais, a serem avaliadastendo em conta as capacidades efectivas das pessoas e já não segundoa sua felicidade ou as utilidades obtidas (como Jeremy Bentham eoutros utilitaristas nos recomendam), darão lugar a que se abramdissídios de grande monta. Primeiro, e estando assim as coisas, asvidas humanas passam a ser vistas de modo inclusivo, isto é, toman-do devida nota das liberdades substantivas de que as pessoas gozam,ao invés de se ignorar tudo aquilo que não sejam prazeres ou utilida-des que possamos acabar por conseguir. E depois, há ainda umsegundo aspecto da liberdade que é significativo: ela torna-nos res-ponsáveis por aquilo que fazemos.

A liberdade de escolha dá-nos a oportunidade de decidirmos oque havemos de fazer, mas com essa oportunidade vem também aresponsabilidade por tudo o que façamos – isto, na medida em que

* Adam Smith defendia que até no caso de um egoísta «há evidentemente algunsprincípios presentes na sua natureza que o levam a interessar-se pelo destino dos outros»; eaventava o seguinte: «O maior dos rufiões, o mais empedernido dos infractores das leis dasociedade, não estará inteiramente desprovido disso» (The Theory of Moral Sentiments,1.i.1.1., segundo a edição de 1976, p. 9).

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as nossas acções forem, de facto, acções escolhidas. Considerandoque uma capacidade é o poder de fazer algo, a responsabilização queemana dessa aptidão – desse poder – também passa a fazer parte daperspectiva das capacidades, e isto pode dar lugar a que se fale deum dever – aquilo que, em termos amplos, podemos apelidarde exigências deontológicas. Deparamos aqui com uma sobreposiçãode preocupações centradas na agência e de implicações resultantesda abordagem baseada nas capacidades; já na perspectiva utilitaristanada há que seja imediatamente comparável a isto (perspectivautilitarista que, no fundo, consiste em vir atar a responsabilidade decada um à felicidade de cada qual)*. A perspectiva das realizaçõessociais, onde se incluem as efectivas capacidades de que as pessoasestão dotadas, conduz-nos inelutavelmente a uma ampla variedadede questões ulteriores que acabam por se revelar centrais na análiseda justiça sobre a terra, e são estas as questões que teremos deexaminar e escrutinar.

UMA DISTINÇÃO CLÁSSICA DA JURISPRUDÊNCIAINDIANA

Ao tentarmos aperceber-nos do contraste entre a visão da justiça quese centra nos arranjos sociais e aquela que se centra nas realizações,será útil invocar uma antiga distinção, vinda da literatura sânscrita,sobre ética e jurisprudência. Tomemos dois vocábulos, niti e nyaya,ambos significando justiça no sânscrito clássico. Entre os principaiscasos em que se emprega o termo niti, contamos a propriedadeenquanto característica organizacional e a correcção dos comporta-mentos. Contrastando com niti, o termo nyaya corresponde aum conceito compreensivo que aponta para a justiça realizada. Nasua linha, se bem que instituições, regras e organização sejam impor-tantes, o seu papel há-de ser avaliado segundo a perspectiva maisabrangente que é a própria do nyaya, estando este inevitavelmenteligado ao mundo que realmente emerge e se produz perante nós, e,

* Esta questão será mais amplamente tratada nos Capítulos 9, “A Pluralidade dasRazões Imparciais”, e 13, “Felicidade, Bem-Estar e Capacidades”.

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6 0 A IDEIA DE JUSTIÇA

portanto, não apenas às instituições ou às regras que acaso existamentrem nós*.

Seja agora uma aplicação particular disto que acabou de se di-zer: os antigos pensadores jurídicos da Índia tinham o hábito de falardo que, de modo pouco abonador, designavam de matsyanyaya,“justiça no mundo dos peixes”, onde o peixe maior pode livrementedevorar o mais pequeno. E avisam-nos de que evitar a matsyanyayahá-de ser uma parte essencial da justiça, pelo que é crucial que nosasseguremos de que à “justiça dos peixes” não se permita que invadao mundo dos seres humanos. A conclusão central que vemos decorrerdaqui é a de que a realização da justiça, no seu sentido de nyaya, nãoé apenas uma questão de emitir um juízo sobre instituições e regras,mas antes um juízo sobre as sociedades como elas são em si mesmas.De nada adiantará que as organizações estabelecidas sejam as maispróprias, se, mesmo assim, um peixe grande puder devorar o maispequeno a seu talante, pois isto, a acontecer, sempre haverá de seruma patente violação da justiça humana entendida como nyaya.

Permitam-me tomar um exemplo para ilustrar melhor a distinçãoentre niti e nyaya. Ficou famosa esta afirmação, no século XVI, deFerdinando I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico:«Fiat justitia, et pereat mundus» – que poderá ser traduzida por«Que se faça a justiça, ainda que o mundo deva perecer». Esta duramáxima poderia corresponder ao niti – um niti bem austero – que éadvogado por alguns (e que era, aliás, o caso do Imperador Ferdi-nando), mas o facto é que será bem difícil imaginar que uma catás-

* O mais famoso dos antigos pensadores jurídicos indianos, Manu, nutria, de facto,um grande interesse pelo nitis, e, aliás, na mais severa das suas modalidades (nas discussõesindianas contemporâneas, tenho ouvido descrever Manu como um “legislador fascista”, oque tem o seu quê de verdadeiro). Mas até mesmo Manu não conseguiria resistir a serconfrontado com as realizações próprias do nyaya, sempre que quisesse justificar a correcçãode um tipo particular de nitis. Assim por exemplo, é-nos dado conta do seguinte: mais valeser desdenhado do que desdenhar, «pois aquele que é desdenhado dorme tranquilo, acordatranquilo e anda tranquilo pelo mundo; já o homem que desdenha perece» (Capítulo 2,instrução 163). E na mesma linha: «onde as mulheres não são reverenciadas, todos osrituais são infrutíferos», pois «onde as mulheres de família andam infelizes, não tardarámuito para que a família seja destruída, mas já é sempre pujante onde as mulheres nãoandam infelizes» (Capítulo 3, instruções 56 e 57). As traduções são tiradas da excelentetradução de Wendy Doniger, The Laws of Manu, Londres, Penguin, 1991.

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trofe geral possa passar por um exemplo de um mundo justo, seentendermos a justiça de acordo com a categoria mais ampla donyaya. Se o mundo realmente viesse a perecer, não haveria muitopara celebrar nesse feito, ainda que se pudesse conceber os maissofisticados e variados argumentos para sair em defesa desse ásperoe severo niti que conduzira a tão extremado resultado.

Uma perspectiva centrada nas realizações também permite com-preender mais facilmente a importância de, neste mundo, nos aplicar-mos a tentar impedir os casos de injustiça manifesta, ao invés desairmos em busca do que é perfeitamente justo. Como fica claro noexemplo do matsyanyaya, o objecto da justiça não consiste apenasem tentar conseguir – ou em sonhar com isso – uma qualquer socie-dade perfeitamente justa ou arranjos sociais também perfeitamentejustas, mas consistirá outrossim em afastar a severidade das injustiçasmanifestas (tal seria o caso de se tentar evitar esse lastimável estadode coisas que é próprio do matsyanyaya). Por exemplo, quando, nosséculo XVIII e XIX, vieram as agitações que pretendiam a aboliçãoda escravatura, as pessoas que delas participavam não o faziam porterem a ilusão de que a abolição da escravatura iria transformar omundo dando lugar a um mundo perfeitamente justo; o que simpretendiam defender era que uma sociedade com escravos era umasociedade totalmente injusta (por entre os autores já mencionados,Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft estavam muito apos-tados em mostrar o bem fundado desta perspectiva).

Na escravatura, foi o diagnóstico de uma intolerável injustiça afazer com que a abolição se tornasse numa prioridade avassaladora,e para isso não foi preciso que se tentasse obter um consenso acercade qual deveria ser o semblante da sociedade perfeitamente justa.Aqueles que pensam – e com boas razões – que a Guerra Civilamericana, que acabou por conduzir à abolição da escravatura, foi umagrande conquista para a justiça na América, teriam de conceder que,a seguirmos a perspectiva do institucionalismo transcendental (para aqual o único contraste é o que existe entre aquilo que é perfeitamentejusto e o resto), não haveria muito para dizer acerca de uma possívelvantagem da abolição da escravatura para o reforço da justiça*.

* É interessante notar que o diagnóstico feito por Karl Marx sobre «o único grandeacontecimento da história contemporânea» levou-o a atribuir esta distinção à Guerra Civil

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A IMPORTÂNCIA DOS PROCESSOSE AS RESPONSABILIDADES

Os que se inclinam para ver a justiça em termos de niti e não emtermos de nyaya – independentemente do nome que dêem a taldicotomia – poderão ser influenciados pelo medo de que uma aten-ção centrada sobre as realizações efectivas possa levar a ignorar osignificado dos processos sociais, nos quais teremos de incluir oexercício dos deveres e das responsabilidades individuais. Podemosfazer o que é certo e ainda assim podemos não ser bem sucedidos;ou então, pode acontecer que se obtenha um bom resultado, nãoporque o tivéssemos em vista, mas por qualquer outra razão, talvezaté acidental, e, ainda assim, poderemos iludir-nos continuando apensar que foi feita justiça. Todavia, seria possível argumentar deoutra maneira, lembrando que não seria de todo conveniente que nosconcentrássemos tão-só naquilo que realmente acontece, ignorandopor completo tudo o que tenha a ver com processos, esforços oucondutas. Quanto aos filósofos que acentuam o papel do dever e deoutros aspectos daquilo que dá pelo nome de abordagem deontoló-gica, esses serão assaltados pela especial suspeita de que a distinçãoentre arranjos e realizações faz lembrar muito vivamente o antigocontraste entre outras duas perspectivas da justiça, a deontológica e aconsequencial.

Sendo embora importante não desconsiderar esta particular in-quietação, sempre poderíamos contrapor que ela parece estar aquideslocada. Uma caracterização das realizações que se queira exaustivadeverá incluir sempre o exacto processo pelo qual um eventual esta-do de coisas acaba por emergir. Num artigo dedicado a econometria(Econometrica), umas décadas atrás, chamei a isto o “resultado com-

americana, que haveria de conduzir à abolição da escravatura (Capital, vol. I, Londres,Sonnenschein, 1887, Capítulo X, Secção 3, p. 240). Se bem que Marx sustentasse que osarranjos capitalistas do trabalho eram exploradores, nem por isso deixava de insistir emcomo era um melhoramento enorme passar de um sistema de trabalho escravo para um detrabalho assalariado – sobre este tema, veja-se também a obra de Marx, Grundrisse,Harmondsworth, Penguin Books, 1973. A análise que Marx fez da justiça foi muito alémdessa sua fascinação, que os críticos tanto discutem, em torno do «último estádio do comu-nismo».

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6 3UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

preensivo” (“comprehensive outcome”); nele vão incluídos todos osprocessos que ocorram e devemos distingui-lo do “resultado deculminação” (“culmination outcome”)9; por exemplo: uma detençãoarbitrária é mais do que a mera captura e detenção de alguém, éprecisamente o que a expressão nos diz, uma detenção arbitrária. Demaneira semelhante, também o papel da agência humana não poderáser obliterado só porque se decide centrar a atenção exclusivamentesobre o que vem a suceder no ponto de culminação; por exemplo:existe uma diferença real entre o facto de algumas pessoas morreremà fome devido a circunstâncias que estão para lá do controlo dequem quer que seja e o facto de as mesmas pessoas serem mortas àfome devido a um projecto desenhado por alguém que quisesse pro-vocar esse resultado (é claro que estamos diante de uma tragédia emambos os casos, mas o tipo de conexão que cada uma dessas duastragédias apresenta com a justiça não poderá ser o mesmo). Ou, paravermos outro tipo de casos, se um candidato às eleições presidenciaisvier afirmar que, para si, o que é realmente importante não é apenasvencer as eleições que se avizinham, mas «vencer com lisura e equi-dade», teremos nesse caso que o resultado procurado vai ser algoque certamente andará na linha de um resultado compreensivo.

Seja ainda um exemplo de outra espécie. No épico indiano,Mahabharata, mais especificamente, naquela sua parte que se intitulaBhagavadgita (ou, abrevidamente, Gita), na véspera da batalha, queé o episódio central deste épico, o guerreiro invencível, Arjuna, mani-festa as suas profundas dúvidas acerca da oportunidade de chefiarum combate que, por certo, irá redundar numa enorme mortandade.Diz-lhe o seu conselheiro, Krishna, que ele, Arjuna, deve dar a prio-ridade ao seu dever, que é o de combater, sejam quais forem asconsequências. Essa famosa conversa costuma ser interpretada comoum debate que contrapõe deontologia a consequencialismo, e noqual Krishna, o deontologista, urge Arjuna a cumprir o seu dever, aopasso que Arjuna, o suposto consequencialista, se preocupa com asterríveis consequências da guerra.

Neste debate, conta-se que a levar a melhor seja a canonizaçãodas exigências proclamadas por Krishna, pelo menos do ponto devista religioso. Na verdade, o Bhagavadgita tornou-se um tratado degrande importância teológica para a filosofia hindu, centrando-se eleespecialmente na “remoção” das dúvidas de Arjuna. A posição moral

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de Krishna também foi perfilhada eloquentemente por muitos co-mentadores filosóficos e literários em todo o mundo. Nos QuatroQuartetos, T. S. Eliot resume o ponto de vista de Krishna sob aforma de advertência: «E não penseis no fruto da acção. / Seguiavante.» E Eliot passa a explicar, não se desse o caso de não perce-bermos a questão: «Não: segui bem; / Mas: segui avante, viajantes»10.Já disse noutro sítio (em O Indiano Argumentativo ) que como passe-mos além dos estreitos confins do final do debate que aparece nesteparticular ponto do Mahabharata e que se intitula Bhagavadgita,reparando no modo como Arjuna apresenta o seu argumento nasprimeiras secções da Gita, ou como olhemos para o Mahabharatacomo um todo, logo veremos também como se tornam evidentes aslimitações da perspectiva de Krishna11. De facto, após a completadevastação do país que se seguiu ao epílogo bem sucedido daquela“guerra justa”, já perto do final do Mahabharata, enquanto as pirasfunerárias ardiam em uníssono e as mulheres carpiam as mortes dosseus familiares, seria difícil convencermo-nos de que a perspectivamais ampla de Arjuna tivesse saído derrotada por Krishna de umavez por todas. Mais parece, aliás, que ainda poderão restar poderososargumentos a favor de “seguir bem” e não só “avante”.

Muito embora aquele contraste possa ser retratado adequada-mente pela diferenciação entre as perspectivas consequencialista edeontológica, o que aqui se afigura particularmente relevante é quepossamos ir além do simples contraste, para passarmos então a analisarquais eram, na sua globalidade, as preocupações de Arjuna acerca doseu “não seguir bem”. Arjuna não se preocupa apenas com o factode que, a haver guerra, com ele a chefiar a carga ao lado da justiça eda propriedade de uma certa situação, muitas pessoas encontrarão asua morte. É certo que também isso o preocupa, mas, no início daGita, Arjuna manifesta, além disso, a preocupação de que seria elepróprio a executar uma grande parte dessas mortes, e, em muitoscasos, de pessoas por quem tinha estima e com as quais mantinharelações pessoais, pois a batalha era entre dois ramos da mesmafamília, aos quais se tinham vindo juntar outras pessoas que erambem conhecidas dos dois lados. Assim sendo, o facto que preocupaArjuna, nos seus contornos exactos, vai muito para além de umaperspectiva independente do processo que só mira às consequências.

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6 5UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

Um entendimento adequado do que seja uma realização social – eque é central para a justiça como nyaya – requer aquele tipo deconsideração compreensiva que é capaz de incluir o processo12. Nãoseria pois curial que se quisesse desqualificar a perspectiva das reali-zações sociais só com o fundamento de que ela se mostra estreita-mente consequencialista ignorando as preocupações deontológicassubjacentes.

INSTITUCIONALISMO TRANSCENDENTALE FALTA DE CUIDADOS À ESCALA GLOBAL

Este arrazoado introdutório terminará com uma observação final rela-tiva a um particular aspecto restritivo que detectamos nas actuaiscorrentes dominantes da filosofia política, isto é, a sua excessivaconcentração em redor do institucionalismo transcendental. Pense-mos ao acaso numa das inúmeras mudanças que se podem proporcom vista a reformar a estrutura institucional do mundo actual, paraassim o tornar menos injusto e iníquo (de acordo com os critériosgeralmente aceites). Atente-se, por exemplo, no caso da reforma dalegislação das patentes com o fito de tornar os remédios de grandecirculação e de produção barata mais acessíveis a doentes deles ne-cessitados, mas pobres (como será o caso dos doentes de SIDA) – enão pode haver dúvida de que este é um tema com alguma importân-cia para a justiça mundial. Eis então a pergunta que temos de nosfazer: quais as reformas internacionais de que necessitamos para tor-nar o mundo um pouco menos injusto?

Contudo, este tipo de discussão acerca do reforço da justiça emgeral, e sobre a extensão da justiça mundial em particular, poderáparecer mera “conversa fiada” aos que tenham ficado convencidospela pretensão de Hobbes – e de Rawls – de que precisamos de umestado soberano que trate de aplicar os princípios da justiça atravésda escolha de um conjunto perfeito de instituições: esta mais não édo que uma directa implicação de se enquadrar as questões da justiçana moldura do institucionalismo transcendental. Uma justiça a nívelglobal, conseguida por meio de um conjunto de instituições impeca-velmente justo – mesmo admitindo que se poderia chegar a definiruma tal coisa –, certamente iria requerer a existência de um estado

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soberano global; ora, não existindo um tal estado, aos olhos dostranscendentalistas, as questões de justiça global parecerão impossí-veis de dirimir ou sequer de discutir.

Considere-se a firme rejeição de uma qualquer relevância da«ideia de justiça global» por parte de um dos filósofos contemporâ-neos mais originais, poderosos e humanos, o meu amigo ThomasNagel, graças a cujo trabalho tanto tenho aprendido. Num interessan-tíssimo artigo publicado na Philosophy and Public Affairs de 2005,vemo-lo a inspirar-se precisamente na concepção transcendental dejustiça, a fim de concluir que a justiça global não é tema passível deser discutido, pois que, no momento presente, os elaborados requisi-tos institucionais que cabe cumprir para obter um mundo justo sãoimpossíveis de satisfazer a nível mundial. Nas palavras dele: «Pare-ce-me muito difícil resistir ao argumento de Hobbes acerca da rela-ção entre justiça e soberania», e «se Hobbes estiver certo, a ideia deuma justiça global sem um governo mundial é uma quimera»13.

Por conseguinte, diante de um contexto mundial, Nagel concen-tra os seus esforços na clarificação de outro tipo de requisitos, dife-rentes das exigências que seriam próprias da justiça – tais como uma«moralidade humanitária mínima» (a qual «governa a nossa relaçãocom todas as outras pessoas») –, dedicando-se também ao estudo deestratégias a longo prazo com vista a uma alteração radical das com-binações institucionais («creio que o caminho mais viável para alcan-çar uma certa versão da justiça global passa pela criação de estrutu-ras de poder global manifestamente injustas e ilegítimas que sejamtoleráveis à luz dos interesses dos estados-nações actualmente maispoderosos»)14. O contraste com que podemos deparar neste caso seráentre uma visão das reformas institucionais que atende ao papel des-tas para nos conduzirem à justiça transcendental (tal como ela édelineada por Nagel) e uma avaliação que atenda ao melhoramentoque as ditas reformas realmente trarão, especialmente através da eli-minação de todas as situações que sejam vistas como casos de injus-tiça manifesta (o que é parte integrante da perspectiva que se apre-senta neste livro).

Também na abordagem rawlsiana se pode dizer que a aplicaçãode uma teoria da justiça requer uma extensa panóplia de instituições,sendo ela a determinar a estrutura básica de uma sociedade comple-tamente justa. Não espanta, pois, que Rawls chegue mesmo a aban-

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6 7UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

donar os seus próprios princípios de justiça, quando se trata de pro-ceder à avaliação da maneira de pensar a justiça a nível mundial, e,por isso, que não enverede pela opção fantasiosa de vir reclamar umestado global. Num trabalho posterior, A Lei dos Povos, Rawls veminvocar uma sorte de “suplemento” a acrescer à prossecução nacional(ou interna a um país) das exigências da “justiça como equidade”.No entanto, este suplemento aparece sob uma forma muito suaviza-da, isto é, como uma espécie de negociação entre representantes dediferentes países sobre questões muito elementares de civilidade ehumanidade – coisas que, afinal, poderão ser vistas como aspectosmuito limitados da justiça e nada mais. De facto, Rawls não tentafazer derivar “princípios de justiça” que pudessem vir a emanar des-tas negociações (mais: daí não derivaria coisa alguma a que se pu-desse dar esse nome), concentrando-se, em vez disso, sobre algunsprincípios gerais de comportamento humanitário15.

Na verdade, a teoria da justiça, tal como nos aparece formuladapelo institucionalismo transcendental presentemente dominante, re-duz muitas das questões mais relevantes da justiça a uma retóricavazia – ainda que reconhecidamente “bem intencionada”. Quando,por todo o mundo, vemos que as pessoas se mobilizam para conseguirmais justiça mundial – e quero aqui enfatizar a palavra comparativa“mais” –, não pensemos que elas estão a bradar por uma qualquerespécie de “humanitarismo mínimo”. Mas também não se estão amobilizar para obter uma sociedade mundial “perfeitamente justa”.Mobilizam-se tão-somente para que se chegue à eliminação de algu-mas combinações injustas e ultrajantes, e para que se venha a refor-çar a justiça mundial, precisamente da mesma maneira que, a seutempo, o fizeram Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft – esobre isto há acordos que podem ser gerados por meio da discussãopública, mesmo persistindo a divergência de pontos de vista acercade outras questões.

A não ser assim, as pessoas que hoje se sentem vilipendiadassempre poderão encontrar uma boa expressão da sua voz neste enér-gico poema de Seamus Heaney:

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«Diz a história: Não tenhais esperançaDo lado de cá da campa,Mas eis que na vida uma vez verão,A ansiada onda gigante da justiça,Que enfim poderá erguer-se imensa,E aí esperança e história rimarão.»16

Por mais apelativo que possa ser este fundo desejo de que, umdia, história e esperança possam vir a rimar, a verdade é que a justiçado institucionalismo transcendental mostra grande relutância em aco-lher tal apelo. Uma tal limitação é apenas uma ilustração de como asteorias da justiça hoje dominantes estão precisadas de uma grandeviragem substancial. E é esse, precisamente, o objecto deste livro.

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PARTE I

AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA

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1. RAZÃO E OBJECTIVIDADE

Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do nosso tempo, es-creveu o seguinte no Prefácio à sua primeira grande obra filosófica, oTractatus Logico-Philosophicus, publicado em 1921: «O que, de al-guma maneira, pode ser dito, pode ser dito claramente; e sobre o quenão se pode falar, deve-se calar»*. Wittgenstein viria a reexaminar assuas posições sobre o discurso e sobre a clareza do mesmo, na suainvestigação posterior, mas é um alívio verificar que, mesmo en-quanto escrevia o seu Tractatus, este grande filósofo nem sempreseguiu aquele seu peremptório mandamento. Numa carta dirigida aPaul Engelmann, escrita em 1917, Wittgenstein faria esta admirável eenigmática observação: «Estou a trabalhar com grande afinco e sóqueria ser melhor e mais inteligente. E estas duas são uma e a mesmacoisa»1. A sério? São uma e a mesma coisa, ser-se um ser humanomais inteligente e ser-se uma pessoa melhor?

Naturalmente, estou bem ciente de que o moderno uso transa-tlântico da língua veio afogar a distinção entre “ser-se bom” (“beinggood”), enquanto qualidade moral, e “estar bem” (“being well”),enquanto comentário acerca do estado geral de saúde (nada de doresou maleitas, boa pressão arterial e por aí fora), e já há muito quedeixei de me preocupar com a manifesta imodéstia de alguns dosmeus amigos que, quando se lhes pergunta como estão, respondemem tom de aparente auto-elogio: «Eu sou muito bom» («I am very

* É interessante notar que também Edmund Burke aludia à dificuldade de se falar emcertas circunstâncias (veja-se a Introdução, onde citei Burke a este propósito), todavia, eainda assim, Burke continuou a falar sobre o tema, pois que era, obtemperava ele, «impossí-vel ficar calado» sobre um assunto de tal gravidade como aquele de que estava a tratar (acausa de acusação de Warren Hastings). Por muitos motivos, a posição de Wittgentein, quenos aconselha a calar quando não podemos falar com suficiente clareza, poderá parecer ooposto da perspectiva de Burke.

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good»)nt. Sucede, porém, que Wittgenstein não era americano e, em1917, estávamos ainda muito longe da conquista do mundo pelosfogosos usos linguísticos americanos. Quando Wittgenstein disse queser-se “melhor” (being “better”) e ser-se mais inteligente (being“smarter”) eram “uma e a mesma coisa”, decerto que estava a enun-ciar uma asserção de tipo substancial.

Subjacente a isto, poderemos encontrar uma certa forma de re-conhecimento de que muitos actos de malvadez são cometidos porpessoas que, de alguma maneira, estão iludidas acerca do objecto.A falta de inteligência pode certamente constituir uma fonte de falhasmorais que hão-de afectar um bom comportamento. Por vezes, re-flectir detidamente sobre qual seria o passo inteligente a dar poderáajudar-nos a agir melhor em relação aos outros. Que tal pode ser ocaso em muitas circunstâncias foi mostrado muito claramente pelamoderna teoria dos jogos2. Entre as razões prudenciais que levam aobom comportamento poderá, com certeza, contar-se o ganho que,para si próprio, se retirará de um tal comportamento. De facto, pode-rá gerar-se um grande ganho para todos os membros de um grupo,quando se opta por seguir as regras daquele bom comportamentoque poderá trazer ajuda para todos. Nem seria especialmente inteli-gente que um grupo de pessoas agisse de uma maneira que causassea ruína de todas elas3.

Mas quem sabe se não era outra coisa o que Wittgenstein queriadizer. Ser mais inteligente pode também dar-nos a aptidão para pen-sar com mais clareza acerca dos nossos objectivos, finalidades evalores. Se o interesse próprio é, em última análise, um pensamentoprimitivo (sem embargo de todas as complexidades acabadas demencionar), já a clareza acerca de prioridades e obrigações maissofisticadas que queiramos acarinhar e cumprir haverá de dependerdo nosso poder de raciocínio. Uma pessoa pode ter razões para agirde maneira socialmente decente que foram alvo de aturada reflexão eque não consistem na mera promoção de ganhos pessoais.

nt Como é bom de ver, esta comparação é eficaz em inglês, pois nessa língua o mesmoverbo, to be, pode ter o significado de “ser” ou “estar”, pelo que a mesma expressão inglesavaleria para traduzir a correspondente portuguesa “eu estou muito bom”, expressão esta, noentanto, que não ressaltaria a chicana linguística que o Autor pretende sublinhar.

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Ser-se mais inteligente é algo que pode ajudar a perceber nãoapenas os próprios interesses, mas igualmente o facto de que as vidasdas outras pessoas podem ser fortemente afectadas pelas nossasacções. Os corifeus da designada “Teoria da Escolha Racional” (quefoi proposta pela primeira vez no campo económico, vindo então aser entusiasticamente perfilhada por vários pensadores políticos ejurídicos) esforçaram-se com denodo para nos fazer aceitar a peculiarconcepção de que a escolha racional consiste tão-só numa hábil einteligente promoção do interesse próprio (e, por mais estranho quepareça, é isto que corresponde à definição proposta para “escolharacional” pelos defensores desta corrente que tem como nome demarca “teoria da escolha racional”). Contudo, deve dizer-se que nemtodas as cabeças se deixaram colonizar por esta crença tão profunda-mente alienante; ainda se vai notando uma considerável resistência àideia de que não pode deixar de ser manifestamente irracional – eestúpido – que se tente fazer alguma coisa pelos demais, excepto namedida em que fazer o bem aos outros possa vir aumentar o nossopróprio bem-estar4.

“Aquilo que devemos uns aos outros” é um importante temapara uma reflexão inteligente5. Uma tal reflexão pode levar-nos paraalém da prossecução de uma visão do interesse próprio demasiadoestreita, e até poderemos acabar por descobrir que esses nossosobjectivos, que tão bem ponderámos exigem que atravessemos porcompleto as estreitas fronteiras da busca exclusiva do interesse indi-vidual. Pode ainda haver casos em que teremos razões para refrear aexclusiva prossecução dos nossos objectivos (sejam eles ou não, emsi mesmos, exclusivamente votados à busca do próprio interesse),para podermos seguir regras de comportamento decente que permi-tam contemporaneamente a prossecução de objectivos (ligados ounão ao interesse próprio) por parte de outras pessoas que comparti-lham o mundo connosco*.

* A alguns comentadores causa perplexidade que se entenda ser razoável admitirmosuma cedência na busca individualista e exclusiva dos objectivos próprios, para deixar espa-ço aos outros, a fim de que possam também prosseguir os seus objectivos (alguns chegam aver nisto uma espécie de “prova” de que aquilo que achávamos serem os nossos objectivosnão eram, afinal, os nossos objectivos reais), mas já não haverá nisto qualquer perplexidade,sempre que façamos uma correcta apreciação do alcance da razão prática. Estes temas serãotratados nos Capítulo 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, “Pluralidade e Razões Imparciais”.

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Considerando que, mesmo ao tempo de Wittgenstein, já haviaprecursores da “teoria da escolha racional”, talvez ele quisesse dizer,afinal, que ser mais inteligente nos ajuda a pensar mais claramenteacerca dos nossos empenhos e responsabilidades sociais. Tem sidosugerido que certas crianças cometem actos de brutalidade sobreoutras crianças ou sobre animais, precisamente por causa da suainaptidão para perceberem de modo adequado a natureza e a intensi-dade da dor sofrida pelos outros, e que, geralmente, esta percepçãoacompanha o desenvolvimento intelectual que leva à maturidade.

Como é óbvio não podemos ter a certeza sobre qual o sentidodas palavras de Wittgenstein*. Ainda assim, temos sobejas provas deque dedicava uma considerável parte do seu tempo e do seu intelectoa pensar sobre as suas próprias responsabilidades e compromissos.E contudo, nem sempre o resultado foi muito inteligente ou sensato.É assim que vemos Wittgenstein firmemente decidido a ir para Vienaem 1938, no preciso momento em que Hitler fazia um cortejo triun-fante através da cidade, apesar da sua linhagem judia e da sua inca-pacidade para ser diplomático e ficar em silêncio; tiveram de ser oscolegas de universidade, em Cambridge, a segurá-lo e a impedi-lo deir†. Nas conversas mantidas por Wittgenstein temos, contudo, bastantesindicações de que ele pensava que, decididamente, a sua capacidadeintelectual deveria ser usada para se conseguir um mundo melhor‡.

* Esta questão interpretativa é tratada de maneira iluminante por Tibor Machan emA Better and Smarter Person: A Wittgenstein Idea of Human Excellence”, apresentado no5.º Simpósio Internacional sobre Wittgenstein, 1980.

† Piero Sraffa – o economista que teve uma grande influência sobre LudwigWittgenstein, contribuindo para que este revisse a posição filosófica que defendera anterior-mente no Tratactus Logico-Philosophicus (ajudando assim a preparar o terreno para as obrasposteriores de Wittgenstein, entre as quais se incluem as Philosohical Investigations, Oxford,Blackwell, 1953) – desempenhou um papel preponderante em dissuadir Wittgenstein de ir aViena para apresentar um severo discurso diante de um Hitler triunfante. A sua relaçãointelectual e pessoal é revisitada no meu ensaio “Sraffa, Wittgenstein e Gramsci”, Journal ofEconomic Literature, 41 (Dezembro, 2003). Sraffa e Wittgenstein foram amigos muito próxi-mos e chegaram ainda a ser colegas como professores no Trinity College, em Cambridge.Veja-se o Capítulo 5, “Imparcialidade e Objectividade”, para uma discussão da ligação intelec-tual de Sraffa, primeiro com Antonio Gramsci, e depois com Wittgenstein, e da relevância dosconteúdos deste intercâmbio tripartido para alguns dos temas deste livro.

‡ Este seu empenho está em correlação com aquilo que o seu biógrafo, Ray Monk, chamade “dever do génio” (Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, Londres, Vintage, 1991).

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CRÍTICA DA TRADIÇÃO ILUMINISTA

Se era isso realmente que Wittgenstein queria dizer, então, ele estavafortemente alinhado com a poderosa tradição do Iluminismo euro-peu, que via no raciocínio límpido um grande aliado do desejo demelhorar as sociedades humanas. O melhoramento social por meiode um raciocínio sistemático era um filão proeminente dos argumen-tos correntes durante a animação intelectual que se associou aoIluminismo europeu, especialmente no século XVIII.

No entanto, é difícil fazer generalizações acerca de um qualqueravassalador predomínio da razão no pensamento prevalente do perí-odo dito do Iluminismo. Como demonstrou Isaiah Berlin, durante a“Era do Iluminismo” houve também uma gama de diferentes espéci-es de correntes que eram contra-racionais6. Mas decerto que foi aprofunda – e algo deliberada – confiança na razão um dos principaispontos de viragem que distanciou o pensamento iluminista das tradi-ções que haviam prevalecido até então. Aliás, nas discussões políti-cas contemporâneas tornou-se bastante comum vir defender que oIluminismo encareceu demasiado o alcance da razão. De facto, tam-bém já se aventou que a excessiva confiança na razão, que a tradiçãoiluminista ajudou a instilar no pensamento moderno, influiu na pro-pensão para cometer atrocidades que vimos acontecer no mundosaído do Iluminismo. Juntando a sua voz a este remoque que se lhefaz e engrossando esta particular linha de pensamento crítico, temostambém o conhecido filósofo Jonathan Glover, o qual, na vibrantearguição que nos oferece em The Moral History of the TwentiethCenturynt, nos vem afirmar que «a visão iluminista da psicologiahumana» se foi tornando cada vez mais «estreita e mecânica», eainda que «as esperanças iluministas de progresso social pela expan-são do humanitarismo e da atitude científica» parecem-nos agorabastante «ingénuas»7; e de seguida, vemo-lo a ligar as modernastiranias a essa mesma visão (como o fizeram outros críticos doIluminismo), sustentando que não só «Estaline e os seus herdeiros»estavam em completa «servidão diante do Iluminismo», mas tambémPol Pot «foi indirectamente influenciado por ele»8. Porém, dado que

nt “A História Moral do Século XX”.

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Glover não pretende encontrar uma solução através da autoridade dareligião ou da tradição (a este respeito, ele faz notar que «não pode-mos escapar ao Iluminismo»), o que ele faz é dirigir a sua chamacontra convicções veementes que nos vejamos compelidos a aceitar,para as quais também contribui substancialmente o uso excessiva-mente confiante da razão. «A crueza do estalinismo», afirma ele,«teve a sua origem nas convicções»9.

Seria difícil disputar a apreciação de Glover relativamente aopoder exercido por crenças fortes e por persuasões terríveis, como oseria desafiar a sua tese acerca do «papel da ideologia no estalinis-mo». A questão que aqui temos de colocar não tem tanto a ver com otemível poder das más ideias como com o diagnóstico de que esta é,de alguma maneira, uma crítica acerca do alcance e das potencialida-des da razão em geral, e da perspectiva iluminista em particular10.Será realmente ajustado que se atire para cima da tradição iluministaa culpa pela propensão para ter certezas prematuras e pelas crençasacríticas e irreflectidas de sombrios líderes políticos, especialmente sese considerar a importância preeminente que tantos autores iluminis-tas assacaram ao papel do uso da razão sempre que se tratasse defazer escolhas, em particular para obstar a uma mera confiança emcrenças cegas? E seguramente, «a crueza do estalinismo» podia sercontrastada, como de facto o foi por dissidentes que se serviram deuma demonstração argumentada do enorme fosso existente entrepromessa e prática, e que, além disso, vieram expor como um facto abrutalidade desse regime, mau grado as pretensões por ele próprioassumidas – uma brutalidade que as autoridades tiveram de esconderatravés da censura e da expurgação, subtraindo-a assim a qualquerescrutínio.

Decerto que um dos principais pontos a favor da razão é o factode ela nos ajudar a submeter a escrutínio a ideologia e a crençacega*. E de facto, por certo que não foi a razão a principal aliada de

6 É com certeza verdade que há muitas crenças cruas e rudes que têm a sua origemnalguma espécie de razão – possivelmente espécies de razão de tipo bem primitivo (porexemplo, muitas vezes, os preconceitos racistas e sexistas conseguem sobreviver assentesno facto de se conceber uma “razão” segundo a qual os que não são brancos e as mulheressão biológica ou intelectualmente inferiores). Advogar a tese da confiança na razão nãoimplica uma negação desse facto facilmente verificável de que as pessoas, de facto, oferecem

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Pol Pot. Esse papel coube a uma convicção frenética e não argumen-tada, sem qualquer espaço para um escrutínio racional. É inegável ointeresse e a importância destes pontos da muito persuasiva Na apre-ciação crítica que Glover faz da tradição iluminista, estes pontos,cujo interesse e importância são inegáveis, são-nos apresentados demodo particularmente persuasivo e contêm em si a seguinte questão:onde se há-de encontrar o remédio para um mau uso da razão? Hátambém esta outra questão que se relaciona com a anterior: qual é arelação entre a razão e as emoções, nomeadamente com a compaixãoe a simpatia? E, para além disso, deve-se também perguntar o se-guinte: qual a justificação última para que se confie na razão? Seráque a razão é acarinhada por ser um bom instrumento, e se assim for,um instrumento para conseguir o quê? Ou será que a razão se justifi-ca por si mesma, e se assim for, em que é que difere de uma crençacega e irreflectida? Estes pontos têm sido matéria de discussão aolongo de todas as eras, mas aqui temos uma necessidade especial denos defrontarmos com eles, tendo conta que este livro se centra sobreo papel da razão na investigação da ideia de justiça.

AKBAR E A NECESSIDADE DA RAZÃO

Na margem da sua cópia de A Genealogia da Moral, de Nietzsche,W.B. Yeats escreveu o seguinte: «Mas porque pensa Nietzsche que anoite não tem estrelas e que nada mais há que não sejam morcegos,corujas e uma lua demente?»11 O cepticismo de Nietzsche acerca dahumanidade, a sua arrepiante visão do futuro faziam a sua entradaem cena quando estava para começar o século XX (ele morre em1900). Os acontecimentos do século que se lhe seguiu, incluindo asguerras mundiais, dão-nos razões suficientes para nos inquietarmos epara nos interrogarmos sobre se este cepticismo de Nietzsche em

razões de alguma espécie para defender as suas crenças (por mais cruas ou rudes que estassejam). O objectivo de fazer do uso da razão uma disciplina é o de submeter as crenças ouconvicções dominantes e as suas alegadas razões a um exame crítico. Estas questões serãotratadas mais de espaço nos Capítulos 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, Pluralidade eRazões Imparciais”.

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relação à humanidade não estaria, afinal, absolutamente certo*. Defacto, quando, no fim do século XX, Jonahthan Glover se dedicou aestudar as preocupações de Nietzsche, concluiu que «temos de olharmuito atentamente e com clareza para os monstros que habitam den-tro de nós», e pensar em maneiras de os «enjaular e domar»12.

O fim de um século é uma dessas ocasiões que muitos achamserem momentos oportunos para proceder a um exame crítico sobreas coisas que estão a acontecer e sobre o que se deve fazer no futuro.É certo que nem sempre tais reflexões atingem o grau de pessimismoe cepticismo de Nietzsche (ou Glover) acerca da natureza humana eda possibilidade de mudar as coisas com o uso da razão. Em temposbem mais remotos, na Índia, pode-se encontrar um interessante con-traste nas deliberações do imperador mogol, Akbar, e também aíestávamos diante de um ponto de viragem, mas desta feita milenar, enão apenas secular. Como se aproximasse o fim do primeiro miléniodo calendário muçulmano hijri, em 1591-1592 (tinham passado milanos lunares desde a épica viagem de Maomé, de Meca para Medina,em 622)†, Akbar entregou-se a um aturado escrutínio dos valoressociais e políticos, da prática legal e da vida cultural. Em especial,dedicou atenção aos desafios postos pelas relações entre comunida-des diferentes e à perene necessidade de uma paz comum e de umacolaboração frutuosa nessa Índia do século XVI, já entãomulticultural. Não podemos deixar de reconhecer como as políticasde Akbar eram fora do comum para a época. A Inquisição estava emgrande actividade e Giordano Bruno era queimado por heresia em1600, em Roma, ao mesmo tempo que Akbar proferia palavras detolerância religiosa na Índia. Akbar não se limitou a insistir que eradever do Estado assegurar-se de que «nenhum homem devia serincomodado por causa da sua religião, e a todos se deve permitir quesigam a religião que lhes aprouver»13; além disso, também promoveuna capital, Agra, diálogos regulares entre hindus, muçulmanos,

* Para usar as palavras em ghazal do poeta urdu Javed Akhtar: «Religião e guerra,castas e raças, destas coisas nada sabe/ Diante da nossa selvajaria como podemos julgar abesta selvagem» (Javed Akhtar, Quiver: Poems and Ghazals, trad. David Matthews, NovaDéli, Harper Collins, 2001, p. 47.

† Um ano lunar tem a duração média de 354 dias, 8 horas e 48 minutos, pelo quecorre bem mais depressa do que o ano solar.

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cristãos, jainas, persas, judeus e outros, chegando a incluir nelesagnósticos e ateus.

Tomando em boa conta a diversidade religiosa do seu povo,Akbar estabeleceu por diversos meios os fundamentos do secularis-mo e da neutralidade religiosa do estado; a constituição secular que aÍndia adoptou em 1949, depois de obter a independência do domíniobritânico, apresenta muitos traços que já eram propugnados porAkbar nos anos 90 do século XVI. Os elementos comuns incluem ainterpretação do secularismo como requisito para que o estado man-tenha a equidistância em relação às diferentes religiões e para quenão venha a dar um tratamento de favor a nenhuma delas.

Subjacente à perspectiva geral de Akbar quanto à avaliação dosusos e das políticas seguidas, estava a sua tese – e chave de volta doseu pensamento – de que «a demanda em busca da razão» (em vezdaquilo a que ele chamava «a terra pantanosa da tradição») é o meioapropriado para tratar dos problemas difíceis do bom comportamentoe dos desafios postos pela construção de uma sociedade justa14.A questão do secularismo é apenas um dos muitos casos em quevemos Akbar a insistir que deveríamos ser livres para examinar seum uso tem ou não o suporte da razão, ou se ela nos fornece justifi-cação para uma política já em curso; por exemplo: ele decidiu abolirtodos os impostos especiais sobre os não muçulmanos com o funda-mento de que eram discriminatórios, pois não tratavam todos oscidadãos como iguais, e, em 1582, resolveu libertar «todos os escra-vos imperiais», pois «é alheio ao reino da justiça e da conduta boa»tirar dividendos do uso da «força»15.

É fácil encontrarmos ilustrações das críticas de Akbar às práticassociais dominantes nos argumentos que ele próprio apresentou. Porexemplo: ele opunha-se ao casamento de crianças, que ao tempo eraprática comum (e que infelizmente ainda não está completamenteerradicado deste subcontinente), uma vez que, argumentava ele, «oobjecto pretendido» no casamento «está ainda longínquo e há umapossibilidade imediata de dano». Além disso, também criticava aprática hindu de não permitir às viúvas que se casassem em segundasnúpcias (uso que só iria ser reformado vários séculos mais tarde), ejuntava que «numa religião que proíbe o novo casamento à viúva»,«é muito maior» a provação que advém de permitir o casamento decrianças. No que toca à sucessão hereditária, Akbar atalhava que «na

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religião muçulmana, confere-se à filha uma parte menor da herança,ainda que, devido à sua debilidade, ela merecesse receber uma partemaior». E um tipo de raciocínio bem diferente é o que podemosdetectar na sua decisão de permitir os rituais religiosos, ainda quesobre eles nutrisse uma visão muito céptica. Quando o seu segundofilho, Murad, tomou conhecimento de que Akbar se opunha a todosos rituais religiosos, foi perguntar-lhe se tais rituais deveriam serbanidos, ao que Akbar imediatamente obtemperou que «impedi-lo aum homem simples e sem sensibilidade que considera que o exercí-cio físico é culto divino equivaleria a impedi-lo [por completo] de selembrar de Deus».

Apesar de se ter mantido um muçulmano praticante, Akbarpropugnava a necessidade de que todos submetessem as crenças eprioridades que houvessem herdado a um escrutínio crítico. Aliás, omais importante argumento que usou a favor da sua defesa de umasociedade multicultural secular e tolerante talvez tivesse a ver com opapel que, no meio de tudo isto, conferia ao uso da razão. ParaAkbar, a razão era suprema, pois, mesmo quando a quiséssemos pôrem questão, sempre teríamos de dar razões para a questionar. Quando,no seio da sua própria religião, se viu atacado por férreos tradiciona-listas que defendiam uma fé inquestionável e instintiva na tradiçãoislâmica, Akbar disse ao seu amigo e fiel lugar-tenente, Abul Fazl(um notabilíssimo académico estudioso de sânscrito, árabe e persa):«A demanda em busca da razão e a rejeição do tradicionalismo sãotão brilhantemente manifestos que estão acima da necessidade deargumentos»16. E concluía dizendo que o «caminho da razão» ou o«império do intelecto» (rahi aql) têm de ser o determinante funda-mental do comportamento bom e justo, sendo também uma molduraaceitável para os deveres e títulos legais*.

* Akbar teria alinhado ao lado do diagnóstico de Thomas Scanlon (no seu esclarece-dor estudo acerca do papel da razão quando se trata de determinar «o que devemos uns aosoutros»), segundo o qual não deveríamos «considerar a ideia da razão como algo de miste-rioso, ou como ideia que carece de, ou à qual se pode fornecer, uma explicação filosóficaque assente numa qualquer outra noção mais básica» (What We Owe Each Other,Cambridge, MA, Harvard University Press, 1998, p. 3).

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OBJECTIVIDADE ÉTICA E ESCRUTÍNIO ARGUMENTADO

Akbar tinha razão quando salientava que a razão é indispensável.Como passaremos agora a mostrar, até mesmo a importância dasemoções é passível de ser apreciada no âmbito da operação da razão.Na realidade, o lugar significativo que as emoções ocupam nas nossasdeliberações pode ser explicado através das várias razões que nosfazem levá-las a sério (ainda que não de modo acrítico). Se somosmovidos por uma emoção particularmente forte, temos toda a razãoem perguntar que conclusão podemos tirar daí. Razão e emoçãodesempenham papéis complementares na reflexão humana, e maisadiante, neste capítulo, iremos analisar mais demoradamente a com-plexa relação que se estabelece entre elas.

Não é difícil observar que os juízos éticos requerem sempre orahi aql – o uso da razão. Porém, fica ainda uma questão por respon-der: porque é que temos de aceitar que a razão deve ser a últimainstância a funcionar como árbitro das convicções éticas? Haveráalgum especial papel que o uso da razão deva desempenhar – talvezuma racionalidade de tipo particular – e que deva ser visto comocrucial para os juízos éticos, como se fora a chave de volta dosmesmos? Pois que a simples existência de um fundamento dado pelaargumentação, em si mesma, não há-de ser necessariamente umaqualidade atributiva de valor, teremos então de nos perguntar oseguinte: porque será tão crítico que exista um fundamento argumen-tado? Poder-se-á propugnar que o escrutínio racional é capaz defornecer uma qualquer espécie de garantia quanto à possibilidade dealcançar a verdade? Uma tal tese seria difícil de manter, não sóporque a natureza da verdade em matéria de convicções morais epolíticas é um objecto cheio de dificuldades, mas sobretudo porque,em ética como em qualquer outra disciplina, no fim mesmo as maisrigorosas investigações podem falhar.

Mais, pode acontecer às vezes que um procedimento mais dú-bio, acidentalmente, acabe por produzir uma resposta mais acertadado que uma argumentação extremamente rigorosa. Em epistemo-logia, isto é até bem óbvio: muito embora um procedimento científicotenha uma maior probabilidade de sucesso, quando comparado comprocedimentos alternativos, pode sempre acontecer que um procedi-mento aloucado venha fornecer a resposta certa para um caso parti-

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cular (neste caso, uma que fosse mais acertada do que a obtida pormeio de procedimentos mais profusamente argumentativos). Seja umexemplo: uma pessoa que depõe a sua confiança num relógio paradopara saber as horas, terá sempre a hora certa duas vezes ao dia, e sese desse o caso de querer saber as horas num desses momentos, esteseu relógio, conquanto imobilizado, bem poderia levar a melhor sobretodos os relógios mobilizados a que pudesse deitar a mão. Contudo,quando toca a escolher um procedimento, preferir confiar num reló-gio inerte e não num relógio com movimento e que anda próximo dahora certa não é coisa digna de particular louvor, pese embora ofacto de que o relógio mobilizado sempre seria vencido duas vezespor dia pelo relógio estacionário*.

Faz sentido pensar que existe um argumento semelhante quandotoca a escolher o melhor de entre os procedimentos de argumenta-ção, conquanto continue a não haver garantia de que ele venha aestar invariavelmente certo, como não haverá garantias de que elevenha a estar mais certo do que um outro que seja menos argumenta-tivo (e isto ainda que fôssemos capazes de ajuizar com segurança dacorrecção dos próprios juízos). A defesa do recurso a um escrutínioargumentado assenta, não numa noção de que disporemos de ummeio à prova de fogo que nos permita obter conclusões absoluta-mente certas (pois isso é coisa que não poderá nem existir), mas napossibilidade de se ser tão objectivo quanto se possa razoavelmenteser†. Diria, pois, que o que subjaz a esta defesa do uso da razão naaltura de proceder a juízos éticos são também as exigências da objec-tividade, as quais nos pedem uma particular disciplina do (e no) usoda razão. O importante papel que neste livro se atribui ao uso da

* Numa história para crianças, Leela Majumdar, a escritora bengali (e tia do granderealizador de cinema Satyajit Ray), recorda que, nos tempos em era uma estudante universi-tária rebelde em Calcutá, certo dia parara na rua para perguntar o seguinte a um desconhecidoque passava – apenas para o amofinar ou confundir: «Ó, olá, quando é que voltou deChittagong?» E o homem, sem perceber, respondeu espantado: «Ontem, como é que sabia?»

† Veja-se a poderosa análise de Bernard Williams acerca da possibilidade de encararuma convicção argumentada como «tendo em mira» a verdade (“Deciding to Believe”, inProblems of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1973). Vide também PeterRailton, Facts, Values and Norms: Essays towards a Morality of Consequence,Cambridge, Cambridge University Press, 2003.

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razão relaciona-se com a necessidade de uma argumentação objectivaquando se trata de reflectir sobre questões de justiça e injustiça.

Tendo em conta que a objectividade é já em si mesma umaquestão de grande dificuldade para a filosofia moral e política, estetema vai exigir-nos uma discussão mais demorada. Será que a buscada objectividade se faz sob a forma de uma busca de objectos éticos?Sendo embora certo que uma boa parte da discussão acerca da objecti-vidade da ética se inclinou para um tratamento da questão em termosontológicos (em especial, a questão metafísica acerca de “quais osobjectos éticos existentes”), é-nos difícil perceber qual poderia ser oaspecto destes objectos éticos. Em vez disso, inclinar-me-ia para se-guir o argumento de Hilary Putnam, segundo o qual esta linha deinvestigação é por de mais inútil e, em larga medida, mostra-se malorientada*. Quando nos pomos a debater as exigências da objectivi-dade, não se trata de nos pormos a desembainhar a espada por causada natureza e do conteúdo de tais ou tais alegados “objectos” éticos.

Há, com certeza, algumas declarações éticas que pressupõem aexistência de certos objectos identificáveis e que podem ser observa-dos (tal aconteceria, por exemplo, no caso de um exercício em setentasse encontrar provas observáveis para decidir se uma pessoa écorajosa ou compassiva), mas a matéria sobre que incidem outrasdeclarações éticas já poderá não permitir este tipo de associação (porexemplo, um juízo pelo qual se diga que uma pessoa é totalmenteimoral ou injusta). Contudo, apesar de uma certa sobreposição entredescrição e valoração, a ética não poderá ser meramente uma ques-tão de descrição verdadeira de objectos específicos. Em vez disso,como defende Putnam, «as autênticas questões éticas são uma espéciedas questões práticas, e as questões práticas não envolvem apenas

* Hilary Putnam, Ethics without Ontology, Cambridge, MA, Harvard UniversityPress, 2004. Putnam não trata apenas da inutilidade da perspectiva ontológica para a objecti-vidade em ética, mas também do erro que tal perspectiva comete ao tentar fixar o olhar emalgo que está muito distanciado da natureza da matéria em questão. «Na tentativa de forneceruma explicação ontológica da objectividade da matemática, vejo, na realidade, uma tentativade fornecer razões que não são parte da matemática a respeito da verdade de declaraçõesmatemáticas, e, na tentativa de fornecer uma explicação ontológica da objectividade da ética,vejo uma tentativa similar de fornecer razões que não são parte da ética a respeito daverdade de declarações éticas; ambas as tentativas estão profundamente enganadas.»

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valoração, envolvem também uma mistura complexa de convicções,juntamente, filosóficas, religiosas e factuais»17. Os processos que sãoefectivamente empregues para procurar a objectividade podem nãoser sempre claros, nem inteiramente explicitados nos seus vários passos,mas, como propõe Putnam, tudo isto pode ser feito com clareza se asquestões subjacentes forem adequadamente escrutinadas*.

O raciocínio que se deseja para a análise dos requisitos da justiçadeverá incorporar algumas exigências básicas de imparcialidade, quesão partes integrantes da ideia de justiça e injustiça. Chegados a esteponto, ser-nos-á de valia convocar agora as ideias de John Rawls e asua análise da objectividade moral e política, a mesma que ele expôsao apresentar a sua defesa da objectividade enquanto traço da «justi-ça como equidade» (tema a que se dedicará o próximo capítulo)†.Eis o que afirma Rawls: «O primeiro requisito essencial é o de queuma concepção de objectividade tem de estabelecer uma moldurapública de pensamento que se mostre suficiente para que se lheaplique o conceito de juízo e para que, depois de uma discussão e dadevida reflexão, se chegue a conclusões com base em razões e pro-vas.» E continua: «Dizer que uma convicção política é objectiva édizer que há razões suficientes, especificadas por uma concepção

* No meu livro Development as Freedom (Nova Iorque, Knopf, 1999), abstive-me deencetar uma discussão séria sobre metodologia ética, limitando-me a basear a pretensão deaceitabilidade de algumas prioridades de desenvolvimento em fundamentos que tinhammuito de senso comum. Hilary Putnam analisou de modo límpido e definitivo a aplicação dametodologia subjacente àquele livro à área da economia de desenvolvimento, mostrandocomo essa particular metodologia se ajusta (em boa hora, para mim) à sua perspectiva geralem matéria de objectividade – veja-se o seu The Collapse of the Fact/Value Dicotomy andOther Essays, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002. Veja-se também VivianWalsh, “Sen after Putnam”, Review of Political Economy, 15 (2003).

† Neste ponto, cumpre sublinhar que existem diferenças substanciais entre, por umlado, a maneira em que Putnam olha para o problema da objectividade, deixando espaçopara o seu cepticismo quanto a «princípios universais» (Ethics without Ontology: «poucosproblemas reais podem ser resolvidos tratando-os como meras instâncias de uma generaliza-ção universal», p. 4), e, por outro lado, a maneira em que Rawls encara o problema, com oseu recurso a princípios universais ao mesmo tempo que procede à investigação dasespecificidades dos problemas éticos particulares (Political Liberalism, p. 110-118). Noentanto, nenhum dos dois se mostra tentado a ver a objectividade da ética em termos deontologia, ou em termos de uma busca de objectos reais. Nesta obra, inspiro-me tanto naanálise de Putnam como naquela de Rawls, mas não progredirei na exploração dos pontosespecíficos em que assentam as suas diferenças.

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política razoável e mutuamente reconhecível (que preencha aquelesrequisitos essenciais), para que se convença todas as pessoas razoá-veis de que ela é razoável»18.

Poder-se-ia gerar uma interessante discussão para saber se estecritério de objectividade – que contém alguns elementos claramentenormativos (especialmente no que tange à caracterização e identifica-ção de «pessoas razoáveis») – tenderia ou não a coincidir com ocritério que exige a circunstância de que algo tenha boas probabilida-des para resistir a uma discussão pública e informada. Assim, emcontraste com Rawls, Jürgen Habermas veio centrar-se nesta últimarota de índole fortemente procedimental, ao invés de se fundar numacaracterização independente do procedimento com vista à identificaçãodaquilo que estivesse em condições de convencer todas as pessoasque são «razoáveis» e que, por isso, haveriam de tomar por igual-mente «razoável» uma certa convicção política19. Não me é difícilver a força do argumento de Habermas e a correcção da distinçãocategorial a que ele procede, sem embargo de não estar completa-mente persuadido de que as perspectivas de Rawls e Habermas sejam,de facto, radicalmente diferentes do ponto de vista das respectivasestratégias de raciocínio.

A fim de conseguir aquele tipo de sociedade política que usual-mente é o foco da sua atenção, Habermas vem também ditar umnúmero considerável de exigências estritas para a deliberação públi-ca. Se as pessoas são capazes de ser razoáveis ao tomar nota dospontos de vista dos demais e ao agradecer toda essa informação,coisa que se deve contar entre as requisitos essenciais de um diálogopúblico e de espírito aberto, então o hiato entre as duas perspectivastenderá a não ser necessariamente abissal*.

* Habermas defende também que o tipo de acordo que acabaria por emergir nosistema por ele proposto seria substancialmente diferente do conjunto de regras e prioridadesmais “liberais” propostas por Rawls (“Reconciliation through the Public Use of Reason:Remarks on John Rawls’s Polital Liberalism”, The Journal of Philosophy, 1995). O quecabe determinar é se tais diferenças entre as conclusões de Habermas e as de Rawls quantoaos resultados substantivos serão realmente o resultado de dois diferentes procedimentos,usados respectivamente pelos dois autores, e que não resultam, em vez disso, das suasrespectivas convicções acerca de quão abertas e interactivas poderão ser as deliberações porque se pode esperar no âmbito de intercâmbios livres e democráticos. Vide também JürgenHabermas, Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics, trad. CiaranCronin, Cambridge, MA, MIT Press, 1993.

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Não me deterei a fazer uma grande distinção entre aqueles queRawls subsume à categoria de «pessoas razoáveis» e todos os outrosseres humanos, mau grado as frequentes alusões que ele faz à – e asua evidente mobilização da – categoria de «pessoas razoáveis». Jánoutro sítio tentei demonstrar que, grosso modo, todos nós somoscapazes de razoabilidade, bastando para isso que mantenhamos umamente aberta, estando por isso dispostos a receber informação debom grado e a reflectir sobre os argumentos que nos chegam dediferentes direcções, e, a par disso, que aceitemos proceder a delibera-ções e debates interactivos acerca de como encarar as questões subja-centes20. Não vejo em que é que esta presunção difere da ideia dopróprio Rawls sobre «pessoas livres e iguais», todas com «poderesmorais»*. De facto, a análise de Rawls parece concentrar-se mais nacaracterização dos seres humanos deliberantes do que na categori-zação de algumas «pessoas razoáveis» com a consequente exclusãode outras†. Vemos, pois, que o papel do uso público e irrestrito darazão é um ponto verdadeiramente central para a vida política demo-crática, em geral, e para a demanda de justiça social, em particular‡.

ADAM SMITH E O ESPECTADOR IMPARCIAL

O uso público da razão é claramente um traço essencial da objectivi-dade em matéria de convicções políticas e éticas, e se Rawls propõeuma certa maneira de pensar sobre a objectividade quando se trata deavaliar a justiça, logo aparece Adam Smith invocando o espectadorimparcial para nos fornecer outra. Esta “antiga” abordagem (no mo-

* Rawls refere-se em particular a «dois poderes morais», a saber, «a capacidade paraum sentido de justiça» e «a capacidade para uma concepção do bem» (Justice as Fairness:A Restatement, coord. por Erin Kelly, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001,pp. 18-19.

† De facto, da boca de Rawls não ouvimos dizer muito sobre a maneira em queaqueles que poderiam ser vistos como “pessoas irrazoáveis” conseguiriam, por fim, formaruma ideia acerca da justiça, nem sobre como viriam a ser integradas na ordem social.

‡ Vide Joshua Cohen, “Deliberation and Democratic Legitimacy”, in Alan Hamlin ePhilip Pettit (coord.), The Good Polity: Normative Analysis of the State, Oxford, Blackwell,1989, e Politics, Power and Public Relations, Tanner Lectures at the University of California,Berkeley, 2007. Vide também Seyla Benhabib (coord.), Democracy and Difference:Contesting the Boundaries of the Political, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1996.

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mento em que escrevo estas linhas, passaram-se quase 250 anosdesde a primeira edição da obra de Adam Smith, Teoria dos Senti-mentos Morais, em 1759) tem um larguíssimo alcance; mas não só,ela também se mostra particularmente dotada de conteúdos procedi-mentais e substantivos. Quando se tenta uma resolução por meio deuma argumentação pública, há fortes motivos para não deixar de foraquaisquer perspectivas ou raciocínios que sejam apresentados poralguém cujas avaliações se mostrem relevantes, seja porque os seusinteresses estão envolvidos no caso, seja porque a sua maneira depensar sobre os temas em causa pode trazer alguma luz para osparticulares juízos que devam ser formulados – luz que poderia esca-par à nossa atenção caso não se desse a essas perspectivas umaoportunidade para serem ventiladas.

Enquanto que Rawls parece dirigir a sua atenção para as varia-ções dos interesses e das prioridades pessoais, já Adam Smith vaialém disso, preocupando-se com a necessidade de alargar a discussãoa fim de evitar o apego acrítico a valores de tipo local (“paroquialismolocal” dos valores, local parochialism), pois este poderia levar aignorar certos argumentos pertinentes que fossem pouco familiaresno âmbito de uma cultura particular. Dado que a discussão públicapode assumir uma forma contrafactual (“o que diria sobre isso umespectador imparcial que olhasse para as coisas com uma certa dis-tância?”), uma das principais preocupações metodológicas de AdamSmith consiste na necessidade de convocar uma ampla variedade depontos de vista e modos de ver, baseados em experiências diferentes,próximas ou longínquas que sejam, em vez de nos contentarmos emter confrontos – actuais ou contrafactuais – apenas com aqueles outrosque vivem no mesmo meio sociocultural e que têm o mesmo tipo deexperiências, preconceitos e convicções acerca do que é razoável eirrazoável, ou com o mesmo tipo de convencimentos sobre o que éviável e inviável. A insistência de Adam Smith em que, entre outrascoisas, olhemos para os nossos sentimentos “a uma certa distância(de nós próprios)” encontra o seu motivo na necessidade de submetera escrutínio não só os interesses próprios, mas também o impactoexercido por usos e tradições já estavelmente entrincheiradas*.

* Vide também a análise de Simon Blackburn acerca do papel desempenhado pelo«ponto de vista comum» e, em particular, as contribuições de Adam Smith e David Hume

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Sem menoscabo das diferenças entre os diferentes tipos de argu-mentos apresentados por Adam Smith, Habermas e Rawls, encontra-mos porém uma semelhança essencial nas suas perspectivas sobre aobjectividade, na medida em que, em todos eles, a objectividadeaparece ligada, directa ou indirectamente, à aptidão para resistir esobreviver aos desafios que sejam postos por escrutínios informadosprovindos de áreas diversas ou de diferentes direcções. E tambémnesta obra, irei tomar o escrutínio racional, operado a partir de dife-rentes pontos de vista, como uma das exigências essenciais da objec-tividade em matéria de convicções éticas e políticas.

No entanto, chegado a este ponto, devo juntar – trata-se, aliás,de uma verdadeira asserção – que os princípios que sobrevivam aum tal escrutínio não têm de fazer parte de um conjunto único (pelasrazões já apresentadas na Introdução). Na verdade, isto representaum maior distanciamento em relação a Rawls do que em relação aPutnam*. De facto, qualquer perspectiva da justiça, como a de Rawls,que proponha dever seguir-se uma escolha dos princípios da justiçaassente na rigidez de uma estrutura institucional global única (o queé parte do institucionalismo transcendental de que se tratou na Intro-dução) e que se entregue a contar-nos, passo por passo, a história doemergir da justiça em chave de “como se”, não poderá condescenderfacilmente em aceitar a co-sobrevivência de princípios concorrentesque não falem a sua língua. Como já se disse na Introdução, o quepretendo é defender a possibilidade de que haja posições que sãocontrárias e que, ao mesmo tempo, conseguem sobreviver; posiçõesque não podem ser submetidas a uma cirurgia radical que as reduza atodas até que formem uma caixa bem arrumada de exigências entre siperfeitamente articuladas – é para satisfazer este requisito que, na teoriade Rawls, somos levados a ter de enveredar por uma particular rotainstitucional única (que deverá ser cumprida por um estado soberano).

Conquanto se notem diferenças entre as distintas perspectivassobre a objectividade que aqui considerámos, há entre elas um ponto

para o desenvolvimento dessa perspectiva, Ruling Passions: A Theory of PracticalReasoning, Oxford, Clarendon Press, 1998, maxime, Capítulo 7.

* E decerto não se trata de qualquer distanciamento em relação a Bernard Williams;vide Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, Capítulo 8, e tambémJohn Gray, Two Faces of Liberalism, Londres, Polity Press, 2000.

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semelhante sobrepujante que em todas é fundamental e que assentano comum reconhecimento da necessidade de um confronto argu-mentado que parta de uma base imparcial (estas perspectivas diferemsobretudo na definição da imparcialidade requerida, como se verácom mais pormenor no Capítulo 6). Claro está que a razão podeassumir formas distintas com usos muito variados*, todavia, na medi-da em que estejamos à procura de uma objectividade ética, a raciona-lidade que nos é necessária terá de satisfazer aqueles que são vistoscomo os requisitos de imparcialidade. As razões da justiça podemdiferir das razões do «amor próprio» – para usar uma expressão deAdam Smith – e também das razões da prudência, mas continuarão,ainda assim, a ocupar um vasto domínio. Muito do que a seguir sedirá terá a finalidade de explorar esse imenso território.

O ALCANCE DA RAZÃO

O uso da razão é uma fonte robusta de esperança e de confiança nummundo ensombrado por feitos lúgubres – passados e presentes.E nem é difícil que se perceba porquê? Mesmo quando achamos deimediato que uma coisa é preocupante, sempre podemos pôr isto emquestão perguntando se é essa a reacção apropriada e se nos devere-mos deixar guiar por ela. O uso da razão pode servir para reflectir-mos sobre a maneira certa de ver e tratar as outras pessoas, as outrasculturas e as pretensões alheias, mas também sobre os diferentesfundamentos que levam ao respeito e à tolerância. Podemos aindadiscorrer racionalmente sobre os nossos próprios erros e tentar apren-der para que não os repitamos, da mesma maneira que KenzaburoOe, o grande escritor japonês, espera que a nação japonesa possacontinuar empenhada «na ideia de democracia e na sua determinaçãode não mais entrar em guerra», sendo nisso ajudada pelo conheci-mento da sua própria «história de invasão territorial»†.

* Algumas destas diferenças serão apreciadas nos Capítulos 8, “A Racionalidade e osOutros”, e 9, “A Pluralidade das Razões Imparciais”.

† Kenzaburo Oe, Japan, the Ambiguous, and Myself, Tóquio e Nova Iorque,Kodansha International, 1995, pp. 118-119. Vide também Onuma Yasuaki, “Japanese WarGuilt and Postwar Responsabilities of Japan”, Berkeley Journal of International Law, 20 (2002).

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Não menos importante é a necessidade de uma perscrutaçãointelectual que nos identifique as acções que não tiveram intençãodanosa, ainda que tenham tido esse efeito; por exemplo: horrorescomo as terríveis carestias podem ficar por verificar, por causa dafalsa presunção de que não podem ser evitadas senão aumentando adisponibilidade total de alimentos, coisa que é difícil de organizarcom celeridade. Centenas de milhares, e até de milhões, de pessoaspodem morrer mercê da calamitosa inacção derivada de um fatalismonão raciocinado que vai mascarado sob um disfarce de composturaplena de realismo e senso comum*. Acontece, porém, que as grandescarestias até são fáceis de prevenir; em parte, porque só afectam umaproporção pequena da população (raramente ultrapassará os 5% equase nunca mais de 10%), e pode-se então providenciar a redistri-buição dos alimentos existentes usando instrumentos imediatos,como será o caso da criação de empregos de emergência, para que sepossa dar aos indigentes um rendimento imediato que lhes permitacomprar o que comer. Como é óbvio, em geral, dispor de maisalimentos é algo que sempre viria facilitar as coisas (por um lado,poderá agilizar a distribuição pública de alimentos, e, por outro, maisalimentos disponíveis no mercado pode também significar uma ajudapara que os preços se mantenham mais baixos); contudo, ter maisalimentos à disposição não é uma absoluta necessidade para acorrercom sucesso a uma situação de fome (como frequentemente se dápor adquirido, vendo nisso uma justificação para a inacção, isto é,para a omissão das medidas necessárias para um socorro imediato).A redistribuição do fornecimento de alimentos, necessária para evitar

Algo de semelhante é o que se tem passado na Alemanha do pós-guerra, onde aprender comos erros passados, particularmente os do período nazi, também tem sido um tema importante.

* Tive a ocasião de tratar das causas das situações de fome e dos requisitos para umapolítica de prevenção das mesmas em Poverty and Famines: An Essay on Entitlement andDeprivation, Oxford, Claredon Press, 1981, e também, em parceria com Jean Drèze, emHunger and Public Action, Oxford, Clarendon Press, 1989. É esta uma ilustração doproblema mais geral de como uma teoria errada pode ter consequências fatais. Sobre esteponto, veja-se o meu Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford, ClarendonPress, 1999; e Sabina Alkire, “Development: A Misconceived Theory Can Kill”, inChristopher W. Morris (coord.), Amartya Sen, Cambridge, Cambridge University Press,2010. Veja-se também Cormac Ó Gráda, Famine: A Short History, Princeton, NJ,Princeton University Press, 2009.

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que as pessoas morram à fome é uma operação relativamente peque-na, e mais, pode ser conseguida criando o poder de compra daquelesque estão privados de qualquer tipo de rendimento por causa de umqualquer infortúnio, situação esta que é geralmente a causa primáriada fome*.

Considere-se agora um outro tema que, finalmente, começa agoraa receber a atenção que merece, a saber: o desprezo e a deterioraçãoda natureza. Como se vai percebendo cada vez mais, trata-se de umproblema enorme, que, além disso, anda ligado aos efeitos negativosdo comportamento humano; contudo, o problema não surge de umqualquer desejo da presente geração de lesar os que estão para nas-cer, ou sequer do desejo de ser deliberadamente insensível a respeitodos interesses das futuras gerações. E no entanto, devido à falta deum empenho e de uma acção racionalmente escorados, continuamosa não cuidar adequadamente do meio ambiente e das condições desustentabilidade que poderiam garantir uma vida com qualidade.Para prevenir as catástrofes causadas pela negligência dos homensou pela sua insensível obstinação, temos necessidade de proceder aum escrutínio crítico, isto é, não nos basta a boa-vontade de uns paracom os outros21.

Nisso, a razão é nossa aliada, não uma ameaça que nos venhapôr em risco. Ora, se assim é, porque será que ela é vista de maneiratão diferente por todos aqueles que acham ser profundamente proble-mática esta confiança que assim se deposita no uso da razão? Um

* Mais ainda, uma vez que a maioria das vítimas de fome sofre de doenças conheci-das, das quais frequentemente acabam por morrer (com a agravante da debilitação e doalastramento de infecções que sobrevêm por estarem à míngua), muito há que pode ser feitousando de cuidados médicos vários e recorrendo a centros médicos. Mais de quatro quintosdo número de mortes na Grande Carestia de Bengala de 1943 estiveram directamenterelacionados com doenças que eram comuns naquela região, e as mortes devidas apenas àfome não ultrapassaram um quinto do total. (vide Apêndice D do meu Poverty andFamines, Oxford, Clarendon Press, 1981). Um quadro semelhante pode-se também encon-trar em muitos outros casos de fomes generalizadas. Vide, em particular, Alex de Waal,Famine that Kills: Darfur, Sudan, 1984-1985, Oxford, Clarendon Press, 1989; e ainda oseu Famine Crimes: Politics and the Disaster Relief Industry in Africa, Londres, AfricanRights and the International African Institute, 1997. Este problema é também examinado naentrada “Human Disasters”, in The Oxford Textbook of Medicine, Oxford, OxfordUniversity Press, 2008.

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dos aspectos a ter em consideração é a possibilidade de que oscríticos da confiança na razão sejam influenciados pelo facto de quealgumas pessoas se deixem sobre convencer com facilidade pelo seupróprio raciocínio, passando a ignorar quaisquer contra-argumentosou quaisquer outros fundamentos que possam gerar conclusõesopostas. Talvez seja isto mesmo aquilo que preocupa Glover, e diga--se que pode ser realmente uma preocupação legítima. Porém, é bomde ver que a dificuldade que aqui se apresenta deriva de uma certezaprecipitada, que, por sua vez, é fruto de um mau raciocínio, e não dofacto, em si mesmo, de se fazer uso da razão. Ora, o remédio paraum mau raciocínio é um bom raciocínio, e passar de um para o outroé precisamente a tarefa que cabe a um escrutínio argumentado. Podetambém acontecer que em alguns passos de “autores iluministas” nãose dê o devido relevo à necessidade de se usar de cautelas e de seproceder a reavaliações, mas não seria curial fazer derivar daí umaqualquer acusação generalizada da atitude iluminista no seu todo, ou,mais do que isso, pôr no banco dos réus o papel global que a razãodesempenha na determinação dos comportamentos justos e das boaspolíticas sociais.

RAZÃO, SENTIMENTOS E O ILUMINISMO

Há ainda a considerar, no entanto, um outro tema, o da importânciarelativa dos sentimentos instintivos, por um lado, e do frio cálculo,por outro – e sobre isso muito foi dito por vários autores iluministas.Os argumentos de John Glover em prol da necessidade de uma«nova psicologia humana» tiram a sua inspiração do facto de sereconhecer que política e psicologia estão entrelaçadas, e é difícilimaginar que se nos deixarmos conduzir pela razão, baseados nasprovas de que dispomos acerca do comportamento humano, nãoseremos levados a aceitar esta interconexão. Quando se trata de evitaratrocidades, sem dúvida que um importante papel preventivo caberáà instintiva repugnância causada pela crueldade e por todos os tiposde comportamentos insensíveis; e Glover tem razão quando sublinhaa relevância, entre outras coisas, da «tendência para se relacionarcom as pessoas usando de respeito (de vários tipos)» e «simpatia:preocupando-nos com as misérias e com a felicidade dos demais».

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Todavia, não é forçoso que aqui deva surgir um qualquer confli-to com a razão, que, aliás, também poderá vir endossar essas mesmasprioridades. E foi este, sem dúvida, o papel que desempenhou o bomuso da razão na investigação de Glover acerca dos perigos das con-vicções unilaterais e excessivamente confiantes (em relação a isso, écom certeza relevante a observação de Akbar de que até mesmo paracontestar a razão, será necessário oferecer razões que fundem umatal contestação). Por outro lado, também não se terá de partir doprincípio de que o uso da razão implica suster a concepção – admi-tindo que a mesma se justifica – de que uma confiança plena eexclusiva no frio cálculo pode não ser uma boa maneira – ou umamaneira razoável – de garantir a segurança humana.

De facto, ainda que prestemos homenagem à razão, não temosqualquer fundamento para negar o papel amplo e de longo alcanceque é desempenhado pela psicologia instintiva e pelas reacções espon-tâneas22. Tudo isto pode ser um suplemento para a razão e vice--versa, e, em muitos casos, compreender o papel amplificador elibertador dos nossos sentimentos pode constituir em si mesmo umbom objecto de estudo para a própria razão. Adam Smith, figuraaxial do Iluminismo escocês (mas também muito influente noIluminismo francês) discutiu abundantemente o papel central dasemoções e das reacções psicológicas na sua Teoria dos SentimentosMorais*. Pode ser que Adam Smith não tenha ido tão longe quantoDavid Hume e que não tenha chegado a afirmar que «razão e senti-mento concorrem em quase todas as determinações e conclusõesmorais»23, mas ambos viam o raciocinar e o sentir como actividadesprofundamente inter-relacionadas. Tanto Hume como Smith eramclaramente “autores iluministas” na sua quinta essência, e, enquantotal, em nada ficaram atrás de Diderot ou de Kant.

Contudo, a necessidade de um escrutínio raciocinado das atitu-des psicológicas não desaparece só porque se dê de barato o poderdas emoções e se aclame o real papel que cabe a muitas reacçõesinstintivas (como é o caso do sentimento de repulsa diante da cruel-dade). Coube em especial a Adam Smith – quiçá até mais do que a

* Ver também Martha Nussbaum, Upheavels of Thought: The Intelligence ofEmotions, Cambridge, Cambridge University Press, 2001.

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Hume – dar à razão um importantíssimo papel na avaliação dosnossos sentimentos e das nossas deambulações psicológicas. De facto,para Hume, muitas vezes, a paixão parece ser mais poderosa do quea razão. Sobre isto, eis o que diz Thomas Nagel nessa sua vigorosadefesa da razão que nos aparece no seu livro A Última Palavra:«É notório que Hume acreditava que uma “paixão” imune à avalia-ção racional deve supeditar todo o motivo, e, por isso, nada poderáhaver que se possa chamar especificamente de razão prática, ou tão--pouco especificamente razão moral»*. Adam Smith não seguiu estaposição, muito embora, à semelhança de Hume, considerasse asemoções importantes e influentes, e sustentasse que as nossas «pri-meiras percepções» de certo e errado «não podem ser objecto darazão, mas sim do sentimento e do sentir imediatos». Todavia, AdamSmith sustentava ainda que mesmo estas reacções instintivas às con-dutas particulares não podem deixar de repousar – ainda que tão-sóimplicitamente – na nossa compreensão racional das conexões cau-sais que subsistem entre conduta e consequências, e isto seria assimnuma «vasta variedade de instâncias». Mais ainda, as primeiras per-cepções também podem modificar-se como reacção a um examecrítico; por exemplo, um que assente numa investigação causal empí-rica que venha a revelar, como assinala Adam Smith, que um certo«objecto é o meio para obter um outro»24.

O argumento que levou Adam Smith a reconhecer a extremanecessidade de proceder a um escrutínio racional aparece bem ilus-trado no passo em que ele trata da maneira de avaliar as nossasatitudes em face de práticas comummente seguidas. Este ponto éclaramente importante no âmbito da sua apologia das reformas,como é o caso, por exemplo, da abolição da escravatura, da diminui-ção do fardo provocado pelas restrições burocráticas arbitrárias sobre

* Thomas Nagel, The Last Word, Nova Iorque, Oxford University Press, 1997,p. 102. No entanto, Hume parece tergiversar no que toca à questão da prioridade a dar. Nãoobstante dê à paixão uma posição de alta estatura que parece ser mais dominante do que opapel concedido à razão, Hume não deixa todavia de afirmar que: «No momento em que nosapercebemos da falsidade de qualquer concepção assumida, ou da insuficiência de quaisquermeios, as nossas paixões rendem-se à nossa razão sem oferecer resistência» (David Hume,A Treatise of Human Nature, coord. L. A. Selby-Bigge, Oxford, Clarendon Press, 1988,2.ª ed., 1978, p. 416).

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a actividade comercial entre países diferentes, ou ainda do abranda-mento das restrições punitivas impostas aos indigentes como condiçãopara que pudessem beneficiar do apoio económico providenciadopelas Poor Laws (Leis sobre a Pobreza)*.

Sendo embora certo que as ideologias e as convicções dogmáti-cas podem derivar de fontes que não sejam nem a religião nem ocostume – como, de resto, aconteceu frequentemente –, isso não vemcontradizer o papel da razão no momento de discernir o elemento deracionalidade que se esconde por detrás das atitudes instintivas, papelesse que não é menor do que o que lhe cabe na apreciação dosargumentos que venham a ser expendidos a fim de se justificar políti-cas deliberadas. O que Akbar chamava de «caminho da razão» nãoexclui que se tome em consideração o valor das reacções instintivas,nem implica que se ignore o papel informativo que as nossas reacçõesmentais desempenham frequentemente. E tudo isto é ainda assazcompatível com o facto de não permitirmos que instintos por escru-tinar possam ter uma última palavra incondicional.

* No seu ensaio finamente argumentado, “Why Economics Need Ethical Theory”,John Broome afirma o seguinte: «Os economistas não gostam de impor às pessoas a suaopinião ética, mas não é disso que se trata. Muito poucos economistas estão em posição deimpor a sua opinião a quem quer que seja... A solução é que eles consigam arranjar bonsargumentos, para poderem então construir uma teoria, e não esconderem-se por trás daspreferências de outros, quando essas preferências poderão não estar bem fundadas ouquando esses outros até podem estar à espera de uma ajuda por parte dos economistas, paraassim chegarem a formar preferências melhores» (Arguments for a Better World: Essays inHonor of Amartya Sen, coord. Kaushik Basu e Ravi Kandur, vol. I, Oxford, OxfordUniversity Press, 2009, p. 14). E fica claro que foi precisamente isto o que Adam Smithtentou fazer.