a ideia de história.collingwood

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introdução aos estudos históricos.

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Titulo original THE IDEA OF HISTORY

© Copyright by The Clarendon Press Oxford

EDITORIAL PRESENl;A, LDA.

Rua Augusto Gil, 35-A - L1SBOA

94C711i

1. A Filosofia da Hist6ria .2. Natureza, objecto, metoda e valor da Hist6ria.3. 0 problema das partes I-IV . . . . . . . . .

1. Hist6ria teocratica e Mito . . . . . . . . .2. Cria<;ao da Hist6ria cientifica por Her6doto .3. Tendencia anti-hist6rica do pensamento grego4. Concep<;ao grega da natureza e do valor da natureza.5. 0 metoda hist6rico grego e as suas limita<;oes6. Her6doto e Tuddides7. 0 periodo helenistico8. Polibio. . . . . . .9. Tito Livio e Tacito .

10. Caracter da historiografia Greco-Romana:a) Humanismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

11. Cankter da historiografia Greco-Romana:b) Substancialismo. . . . . . . . . . .

1. 0 Fermento das ideias crisUs. . . .2. Caracteristicas da historiografia crista3. A historiografia medieval. . . . . .

pags.7

1418

4. Os historiadores do Renascimento.5. Descmtes .6. A historiografia cartesiana . . . .7. Anti-cartesianismo: a) Vico ...8. Anti-cartesianismo ; b) Locke, Berkeleye Hume.9. 0 lIuminismo. . . . . . . .

10. A ciencia da natureza humana .

l. 0 Romantismo2. Herder.3. Kant ..4. Schiller.5. Fichte .6. SchelIing7. Hegel .8. Hegel e Marx .9. Positivismo. .

l. Inglaterra:a) Bradley. . . . . . . . . . . . .b) Os sucessores de Bradley. . . . .c) A hist6ria de fins do seculo XIX.d) Bury ...e) Oakeshottf) Toynbee .

2. Alemanha:a) Windelband.b) Rickert.c) Simmel.d) Dilthey.e) Meyer.f) Spengler

3. Franr,;a:a) 0 espiritualismo de Ravaissonb) 0 idealismo de Lachelier. . .c) 0 evolucionismo de Bergson.d) A historiografia francesa moderna

117. 121

126139141147150160165

4. ItAlia:0) 0 ensaio de Croce (1893) . . . . . . . 240b) A segunda posiCao de Croce: a «L6gica» 243c) Hist6ria e Filosofia . . . . . . . . . . 246d) Hist6ria e Natureza . . . . . . . . . . 247e) A concepcao final de Croce: a autonomia da historia 250

1. Natureza humana e historia humana:0) A ciencia da natureza humana . . . . . . 257b) Ambito do pensamento historico . . . . . 262c) A hist6ria como conhecimento do esplrito. 271d) Conclusoes. . . . . . . . 282

2. A imaginacao hist6rica. . . . . 2873. As provas historicas: Introducao 307

a) A historia como inferencia . 310b) Diferentes especies de inferencias 311c) 0 testamento. . . . . . . 314d) A Hist6ria de cola e tesoura . 316e) A Influencia historica . . . . 320f) Os comportimentos estanques 323g) Quem matou 0 John Doe? 32517) As perguntas . . . . . . 328i) Afirmacao e prova . . . 334j) As perguntas e as provas 338

4. A hist6ria como reconstituicao da experiencia passada 3435. 0 assunto da hist6ria . . . . . . . . . . . 3656. Hist6ria e liberdade . . . . . . . . . . . . 3807. 0 Progresso, tal como foi criado pelo pensamento hist6rico. 387

INTRODU<;AO

ESTE livro e urn ensaio sobre a filosofia da historia. A ex-. pressao «filosofia da histor~» foi inventada, no seculo

XVIII, por Voltaire, que entendia por tal nada mais doque a historia critica ou cientifica, urn tipo de pensamento his-torico em que 0 historiador resolvia por si proprio, em vez derepetir quaisquer historias encontradas em alfarnlbios. A mesmaexpressao foi usada por Hegel e outros escritores, em fins do se-culo XVIII, dando-lhes eles, porem, urn sentido diferente, ao con-sidenl-la simplesmente como historia universal. Encontra-se urnterceiro emprego dessa expressao em varios positivistas do seculoXIX, para quem a filosofia da historia era a descoberta das leisgerais que regem 0 curso dos acontecimentos que devem ser re-feridos pela historia.

As tarefas atribuidas por Voltaire e Hegel a filosofia dahistoria so podiam ser realizadas pela propria historia, ao passoque os positivistas tentavam fazer da historia nao uma filosofiamas uma ciencia empirica, como a meteorologia. Em cada urndestes exemplos, ha uma concep((ao filosofica que orienta a con-cep((ao de filosofia da historia: para Voltaire, filosofia signifi-cava urn pensamento critico e independente; para Hegel, significaurn pensamento acerca do mundo, na sua totalidade; para 0

positivismo do seculo XIX, significava a descoberta de leisuniformes.

o uso ue fa 0 da ex ressao «filosofia da hist6ria» diferedc to os estes. Para explicar 0 que entendo por ela, come<;areipor zer al uma coisa sobre 0 meu conceito de filosofia.

Atlosofia e reflexiva 0 espirito filosofante nunca pensasimplesmente acerca de urn objecto, pensa tambem no seu pr6-prio pensamento acerca desse objecto. A filosofia pode ser cha-mada, assim, urn ensamento do se undo grau, pensamento acer-~ 0 ensamento. Por exemplo, descobrir a distancia da terraao sol e uma tarefa para 0 pensamento do primeiro grau, nestecaso para a astronomia; descobrir 0 que e que n6s estamos exac-tamente a fazer, quando descobrimos a distancia da terra ao sol,e uma tarefa para 0 pensamento do segundo grau, neste casopara a 16gica ou para a teoria da ciencia.

Tal nao significa que a filosofia seja a ciencia do espirito oupsicologia. A psicologia e pensamento do primeiro grau; tratao espirito precisamente do mesmo modo que a biologia trataa vida. Nao se ocupa directamente do pensamento como algoperfeitamente separado do seu objecto, algo que acontece sim-plesmente no mundo, como uma especie particular de fen6meno,que pode ser discutido em si mesmo; diz respeito a rela<;aoentrepensamento e objecto, interessando-se tanto pelo objecto comopelo pensamento.

Esta distin<;ao entre filosofia e psicologia pode ser ilustradapelas diferentes atitudes adoptadas por estas disciplinas paracom 0 pensamento hist6rico, que e uma forma especial de pen-samento interessado numa especie particular de objecto, quedefiniremos provisoriamente como 0 passado. 0 psic610go podeinteressar-se pelo pensamento hist6rico; pode analisar os modosespecificos de actividade mental que se operam nos historiadores;pode, por exemplo, argumentar que os historiadores sac pes-soas que constroem um mundo de fantasia, tal como os artistas,porque sac demasiado nevr6ticos para viv rem normalmenteno mundo real, mas que - ao contnlrio dos artistas - projec-tam este mundo de fantasia para 0 passado, pois ligam a ori-gem das suas neuroses a acontecimentos passados da sua inffm-cia e dirigem-se sempre para 0 passado, numa va tentativa dese libertarem dessas neuroses. Esta analise podia ser mais por-menorizada e mostrar como 0 interesse do historiador por umafi ura tao im ortante omo a de Julio Cesar representa a atitudedo historiador, em crianr;:a, para com 0 pai, etc. ao suglroque tal analise seja urn desperdicio de tempo. Limito-me a apon-

tar urn caso tipico, a fim de salientar que ela concentra a suaaten9aO exclusivamente no termo subjectivo da primitiva rela9aOsujeito-objecto. Da aten9aO ao pensamento do historiador enao ao seu objecto - 0 passado. Toda a analise psicologica dopensamento hlstorico sena exac amente a mesma se nao hou-vesse, de facto, uma coisa como 0 passado, se Julio Cesar fosseuma figura imaginaria, e se a hist6ria nao fosse conhecimentoe sim pura fantasia.

Para 0 fil6sofo, 0 facto que exige aten9ao nao e 0 passadoem si mesmo - como e para 0 historiador - nem 0 pensa-mento, em si mesmo, do historiador em rela9aO ao passado- como e para 0 psic610go- mas as duas coisas na sua rela9aOreciproca. 0 pensarnento, na sua rela9aO com 0 objecto, naoe mere pensamento e sim conhecimento. Assirn, 0 que e para apsicologia a teoria do pensamento puro, dos fenomenos mentaisabstraidos de qualquer objecto, e para a filosofia a teoria doconhecimento. Enquanto 0 psic610go pergunta a si proprio:como e que pensam os historiadores? - 0 filosofo pergunta asi mesmo: - como e que os historiadores sabem? como e quedes conseguem apreender 0 passado? Contrariarnente, cabe aohistoriador - e nao ao filosofo - apreender 0 passado comouma coisa em si mesrna, dizer -eor exemplo - que, ha tantosanos, tiveram lugar efectivamente tais e tais acontecirnentos.Ao fil6sofo, interessam estes acontecimentos nao como COlsasem si mas como coisas conhecidas do historiador. Quanto aohistoriador, e interrogando-se acerea do destine a dar aos acon-tecimentos - e nao interrogando-se acerea da sua especie, domomenta e do lugar em que ocorreram - que ele tera a possi-bilidade de conhece-Ios.

Assim, 0 filosofo tern de tomar em considera9aO 0 pensa-mento do historiador, mas ao faze-Io nao esta a duplicar 0 tra-balho do psic6logo, pois, para ele, 0 pensamento do historiadornao e urn complexo de fenomenos mentais mas urn sistema deconhecimento. Tambem ele pensa no passado, mas nao de modoa duplicar 0 trabalho do historiador, porque 0 passado, paraele, nao e uma serie de acontecimentos mas urn sistema de coisasconhecidas. Podia-se afirrnar isto, dizendo que 0 filosofo, na medidaem que pensa no aSRecto subjectivo da hist6ria, e urn episte-m610go, e, na medida em que pensa no aspecto objectivo, e urnmetafisico. Mas essa maneira de par a questao seria perigosaporque sugere que os aspectos epistemologicos e metafisicos------------, ..__ •...- . ~--_.-

do s u lrabalho podem ser tratados separadamente, e isso seriaurn crr . A filosofia nao pode separar 0 estudo do que lill a conhe-'cr d cstudo do que ja e conhecido. Esta impossibiiidade resultadircctamente do conceito de filosofia cnmo pensamento doscgllnd0 grau.

Se e este 0 caracter gentlrico do pens;rmento filosofico, 0

que e que pretendo dizer quando qualifico (, termo «filosofia»acrescentando-Ihe «da historia»? Em que sentido ha uma filo-sofia especificamente da historia diferente da filosofia em geralc da filosofia de qualquer outra coisa?

Concorda-se, geralmente, embora de forma urn tanto pre-dtria, que ha diferencia~5es dentro do corpo da filosofia. Vmaparte das pessoas distingue a logica ou teoria do conhecimentoda etica ou teoria da ac~ao, embora a maioria daqueles quefazem essa distin~ao possa tambem concordar que 0 conheci-mento e, em certo sentido, uma especie de ac~ao, e que essa ac~ao,tal como e estudada pela etica, exprime (ou, pelo menos, implica)certas formas de conhecimento. 0 pensamento que 0 16gicoestuda e urn pensamento que aspira it descoberta da verdade,sendo assim um exemplo de actividade dirigida a urn fim, e estassao concep~5es eticas.~A ac~ao estudada pelo filosofo que seocupa da moral e uma ac~ao baseada no conhecimento ou nacren~a respeitante ao que esta certo ou errado, e 0 conhecimentoou a cren~a sao uma concep~ao epistemologica. Deste modo,a logica e a etica estao ligadas e sao, indubitavelmente, insepara-veis, embora distintas. Se ha uma filosofia da historia, nao podedeixar de estar menos intimamente ligada as outras cienciasfilosoficas do que estas duas estao ligadas uma a outra.

Temos entao de perguntar por que e que a filosofia da his-toria deve ser objecto de urn estudo especial, em lugar de serinclufda numa teoria geral do conhecimento. Atraves da evo-lu ;-0 da civiliza ao europeia, tem-se pensado, em certo grau,historicamente; mas raramente reflectimos nas ac~5es que pra-ticamos com toda a facilidade. Sao apenas as dificuldades quecncontramos que nos for~am a ter consciencia dos nossos esfor-~os para as vencer. Assim 0 objecto da filosofia, tal como 0 desen-volvimento organizado e cientifico da autoconsciencia, depende,1TI1iitasvezes, dos problemas especificos em que, num dadomomcnto, os homens encontram dificuldades especificas. Olharpara os tapicos mais evidentes da filosofia dum determinadorovo em determinado periodo da sua historia, e encontrar urn

indicio dos problemas especificos que exigem a esse povo a apli-ca9ao de todas as energias do seu espirito. Os topicos perife-ricos ou secundarios revelarao as coisas em rela9ao as quaisesse povo nao sente qualquer dificuldade.

Agora, a nossa tradi9ao filosofica dirige-se para 0 passadonuma linha continua ate a Grecia do seculo VI, e nessa epoca 0problema especifico do pensamento era a tarefa de lan9ar asbases da matematica. A filosofia grega, por isso, colocava amatematica no centro do seu quadro mental e quando discutiaa teoria do conhecimento, entendia por tal, em primeiro lugare acima de tudo, a teoria do conhecimento matematico.

Desde entao, e ate ha urn seculo, houve duas grandes epocascriadoras da historia europeia. Na Idade Media, os problemascentrais do pensamento diziam respeito it teologia e os pro-blemas da filosofia derivavam da reflexao teologica estandoligados as rela90es entre Deus e 0 Romem. Do seculo XVI ateao seculo XIX, 0 principal esfon;o do pensamento concentrou-sena cria9ao dos fundamentos da ciencia natural, tendo a filoso-fia por seu tema central a rela9ao do espirito humano, comosujeito, com a natureza que 0 circunda, no espa90, como objecto.Todo este tempo, sem duvida, tambem s~ pensou historica-mente, mas esse pensamento historico foi sempre duma especiemuito simples ou mesmo rudimentar: nao levantou problemasque nao Ihe pareceram faceis de resolver, nao sendo nunca obri-gada a reflectir sobre si mesmo. Mas no seculo XVIII comc90u-sea pensar criticamente acerca da historia, tal como ja se tinhaaprendido a pensar criticamente acerca do mundo exterior,porque a historia come90U a ser considerada como uma formaespecifica de pensamento, nao exactamente como a matematica,a teologia ou a ciencia.

o resultado desta reflexao foi a teoria do conhecimento- mantendo a suposi9aO de que a matematica ou a teologiaou a ciencia, ou as tres em conjunto, podiam esgotar os pro-blemas do conhecimento em geral - ja nao ser satisfat6ria.o pensamento hist6rico tern urn objecto com particularidadespr6prias. 0 passado, consistindo em acontecimentos particularesno espa90 e no tempo que ja nao se verificam, nao pode serapreendido pelo pensamento matematico porque este apreendeobjectos que nao tern situa9ao especifica no espa90 e no tempo,e e precisamente essa falta de situa9l'io espacio-temporal queOil toma cognosciveis. Nem pode ser apreendido 0 passado pelo

pensamento teol6gico porque 0 objecto deste tipo de conheci-mento c urn objecto singular e infinito, e os acontecimentoshist6ricos sao finitos e plurais. Nem pelo conhecimento cienti-fico, porque as verdades que a ciencia descobre sao reconheciveiscomo verdadeiras ao serem atingidas atraves da observar;;aoe daexperimentar;;ao exemplificadas naquilo que realmente perce-bemos, tendo 0 passado desaparecido e nao podendo as nossasideias acerca dele serem nunca verificadas como verificamosas nossas hip6teses cientificas. As teorias do conhecimento des-tinadas a responder pelo conhecimento matematico, teol6gicoe cientifico nao tocam, assim, nos problemas especificos doconhecimento historico; e se elas se apresentam a si propriascomo legitimas representantes do conhecimento pretendem real-mente que 0 conhecimento historico e impossive!.

Isto nao teve importancia enquanto 0 conhecimento histo-rico nao se imp6s it consciencia dos filosofos, enfrentando par-ticulares dificuldades e elaborando uma tecnica especifica paraas vencer. Quando tal aconteceu, porem, como sucedeu, grossomodo, no seculo XIX, as teorias correntes do conhecimentodirigiam-se aos problemas especificos da ciencia, tendo herdadouma tradir;;ao baseada no estudo da matematica e da teologia,visto que esta nova tecnica historica, crescendo por toda a parte,permanecia inaplicave!. Era necessario, portanto, urn inque-rito especial, cujo objectivo devia ser 0 estudo deste novo grupode problemas - os problemas filos6ficos criados pela existenciaduma investigar;;aohistorica organizada e sistematizada. Este novoinquerito podia invocar justamente 0 titulo de filosofia da his-toria, e e para esse inquerito que este livro pretende contribuir.

Sao necessarios dois estadios para a realizar;;ao desse inque-rito. Em primeiro lugar, a filosofia da historia tera de ser tra-tada, sem duvida, nao num compartimento estanque, pois talnao existe em filosofia, mas sim em condir;;oesrelativamente iso-ladas, considerada como urn estudo especifico dum problemaespecifico.

o problema requer urn tratamento especial precisamenteporque os fil6sofos tradicionais nao se ocupam dele, e carecede ser isolado porque, e a regra geral, 0 que uma filosofia naoafirma, ela 0 nega, de modo que as filosofias tradicionais trazemcom elas a implicar;;aode que 0 conhecimento historico e impos-sive!. A filosofia da historia tern, 1'0rtanto, de abandona-la:;,ate poder demonstrar, por si so, como e possivel a Historia.

o segundo estadio consistira em reatizar as conexCSesentre estenovo ramo da filosofia e as velhas doutrinas tradicionais. Qual-quer aditamento ao corpo de ideias filos6ficas altera, razoavel-mente, tudo 0 que nele ja existia, tomando-se necessaria, aoestabelecimento duma nova ciencia filos6fica, uma revisao detodas as velhas ciencias. Por exemplo, a funda9ao, modema-mente, das ciencias naturais e da teoria filos6fica gerada pelarefiexao a seu respeito actuaram sobre a l6gica tradicional, pro-vocando largo descontentamento entre os seus partidarios esubstituindo-a pelas metodologias de Descartes e Bacon. 0 mesmoaconteceu em rela9ao a metafisica teol6gica, que 0 seculo XVIIherdou da Idade Media, surgindo assim as novas concep9CSesde Deus que encontramos, por exemplo, em Descartes e Espinosa.o Deus de Espinosa e 0 Deus da teologia medieval, revisto Iiluz da ciencia do seculo XVII. No tempo de Espinosa, a filo-sofia da ciencia ja nao era urn ramo particular da investiga9aofilos6fica separada do resto; tinha-se infiltrado em tudo, origi-nando uma filosofia completa, totalmente concebida com espi-rito cientifico. No caso presente, isto significa uma revisao geralde todos os problemas filos6ficos, a luz dos resultados atin-gidos pela filosofia da hist6ria, em sentido restrito, produzindo-seassim uma nova filosofia, que sera a filosofia da hist6ria, emsentido lata - isto e, uma filosofia completa, concebida a par-tir dum ponto de vista hist6rico.

Destes dois estadios, se 0 nosso livro revelar 0 primeiro jaficaremos satisfeitos. 0 que pretendo fazer aqui e uma investi-ga9ao filos6fica acerca da natureza da hist6ria, consideradacomo urn tipo ou uma forma especificos de conhecimento, comourn tipo especifico de objecto, deixando de lado, por agora, 0problema ulterior de em que medida esta investiga9ao afectaraoutros sectores do estudo filos6fico.

2. NATUREZA, OBJECTO, METODOE VALOR DA HlST6RIA

O que e a hist6ria, de que trata, como procede, e para queserve - sao questoes a que, ate certo ponto, diversaspessoas poderao dar solw;5es diversas. Mas, apesar das

diferen9as, h:i uma grande dose de acordo entre as solU90eS.E este acordo torna-se maior se as solu90es forem submetidasa urn exame minucioso, para se rejeitarem aquelas que pro-venham de testemunhos incompetentes. A hist6ria, como ateologia ou as ciencias naturais, e uma forma particular de pen-samento. Se assim e, as perguntas acerca da natureza, do objecto,do metodo e do valor desta forma de pensamento devem serrespondidas por pessoas que tenham dois predicados.

Em primeiro lugar, devem ter experiencia dessa forma depensamento. Devem ser historiadores. Em certo sentido, todosn6s somos historiadores, actualmente. Todas as pessoas ins-truidas passaram por urn processo de educa9ao que incluiuuma certa percentagem de pensamento hist6rico. Isso nao asqualifica, porem, para darem uma opiniao sobre a natureza,o objecto, 0 metoda e 0 valor do pensamento hist6rico. Porque,em primeiro lugar, a experiencia de pensamento hist6rico queelas adquiriram desse modo e, prova-velmente, muito superfi-cial; e as opinioes baseadas nela nao sao, portanto, mais fun-damentadas do que a opiniao duma pessoa qualquer acereado povo frances, baseada numa simples visita de fim-de-semanaa Paris. Em segundo lugar, qualquer experiencia obtida atravesdos meios normais de ensino nao s6 e superficial como tambem,invariflVelmente, obsoleta. A experiencia de pensamento hist6-rico assim adquirida e moldada pelos manuais, e os manuaisexpoem sempre nao 0 pensamento de autenticos historiadoresactualmente vivos mas 0 pensamento de autenticos historiadores

que viveram em epocas passadas, quando estava a ser criada amateria-prima, a partir da qual foram elaborados os manuais.E nao sao apenas os resultados do pensamento historico que estaoantiquados, quando sao incluidos nos manuais. Sao tambemos principios do pensamento historico, isto e, as ideias acercada natureza, do objecto, do metodo e do valor do pensamentohist6rieo. Em terceiro lugar, e Iigado a isto, ha uma ilusao carac-teristiea, seeundaria para todo 0 conhecimento obtido atravesdo ensino: a ilusao da finalidade. Quando urn estudante se eneon-tra in statu pupilari I a respeito de qualquer assunto, tem de acre-ditar que tudo esta arrumado, porque os manuais e os profes-sores assim consideram. Quando sai dessa situa~ao e continuaa estudar, por si so, esse assunto, deseobre que nada esta arm-mado. 0 dogmatismo, que e urn sinal eonstante de imaturidade,abandona-o. Olha, para faetos supostos, com outros olhos.Diz para si proprio: «0 meu professor e os meus manuais disse-ram-me que isto assim era verdade; sera mesmo verdade? E essasrazoes eram sufieientes?» Por outro lado, se ele sai da sua situa-~ao de aluno sem eontinuar 0 estudo desse assunto, nunea selibertara da sua atitude dogmatica - 0 que 0 tornara uma pes-soa partieularmente ineapaeitada para responder as questoesque meneionei. Ninguem, provavelmente, respondera a elaspior do que, por exemplo, urn filosofo de Oxford, que - tendo-selieenciado em Letras, na sua juventude - foi estudante de his-toria, julgando que essa experieneia da juventude em rela~aoao pensamento historieo 0 autoriza a dizer 0 ue e a historia,de ue trata, como procede, e para que serve.

o segundo predicado para responder a estas questoes e apessoa ter nao so experiencia de pensamento filosofico mastambem ter refleetido sobre essa experieneia. Tern de ser tantohistoriador como filosofo. 0 seu pensamento filosofico, espe-CIamente, deve dediear particular aten~ao aos problemas dopensamento historieo. Presentemente. e possivel ser-se urn bornhistoriador (ainda que nao urn historiador da mais elevada cate-goria) sem se refleetir sobre 0 ensamento historieo. E mesmomais facil ser m born professQr de historia (ainda que nao 0melhor tipo de professor), sem tal reflexao. Ao mesmo tempo,e importante lembrar que a experiencia vem em primeiro lugar,

scguindo-se a refIexao sobre essa expenencia. Mesmo 0 histo-riador menos dado a refIexao possui 0 primeiro predicado. Terna experiencia em que pode reflectir; quando for solicitado a reflec-tir sobre ela, as suas refIexoes podem ser relevantes. Urn his-toriador que nunca se dedicou muito a filosofia respondeni,provavelmente, as nossas quatro questoes, de modo mais inte-ligente e vaJido do que urn filosofo que nunca se entregou rnuitoa historia.

Vou proper, entao, respostas as minhas quatro questoes,que - segundo creio - serao aceites por qualquer historiadoractual. Para ja, serao respostas rapidas e incornpletas, que ser-virao, contudo, para uma defini~ao provisoria do nosso assunto,e que serao justificadas e desenvolvidas, a medida que a argu-menta~ao tambem 0 for.

a) A definiriio da histaria. Todo 0 historiador concordara,julgo eu, que a historia e uma especie de investiga~ao ou inque-rito. Que especie de investiga~ao - nao fa~o tal pergunta, porenquanto. A questao e que, genericamente, ela pertence aquiloa que charnamos ciencias: isto e, as formas de pensarnento,atraves das quais fazemos perguntas e tentamos responder as mes-mas. A ciencia, em geral - e importante compreender isto--nao consiste em coligir aquilo que ja conhecemos e organiza-Io,segundo este ou aquele padrao. Consiste em fixarmo-nos sobreuma coisa que nao conhecemos, procurando descobri-Ia.

Entretermo-nos, pacientemente, com as coisas que ja conhe-cemos pode ser muito util para este tim, mas nao e 0 propriofim. E, quando muito, apenas urn meio. So e cientlficamentevalido, na rnedida em que a nova organiza~ao dos conhecirnentosnos da a resposta a uma pergunta que ja decidirnos formular.Eis por que toda a ciencia parte do conhecimento da nossa pro-pria ignorancia: nao a nossa ignorancia de tudo, mas a nossaignorancia de alguma coisa definida - a origem do Parlamento,a causa do cancro, a composi~ao quimica do sol, a maneirado por uma bomba a trabalhar sem a ac~ao muscular do homern,ou de urn cavalo, ou de qualquer outro animal domestico. A cien-cia descobre as coisas. Neste sentido, a historia e uma ciencia.

b) 0 objecto da histaria. Urna ciencia difere de uma outraciencia pOl' descobrir as coisas de maneira diversa. Que espe-cic de coisas descobriu a historia? Eu respondo: res gestae-ac«oes humanas praticadas no passado. Embora esta respostaprovoque toda a especie de perguntas ulteriores, muitas das

quais silo controversas mas podem ser respondidas, as respostasnao desacreditam a afirmayilo de que a historia e a ciencia dares gestae, a tentativa de responder a perguntas sobre aCyBeshumanas praticadas no passado.

c) Como e que a historia procede? A historia actua atravesda interpretayao das provas, que sao a expressao colectiva dascoisas que singularmente se chamam documentos. Urn documentoe uma coisa que existe num determinado sitio e em dado momentae uma coisa de tal especie que 0 historiador, ao pensar nele,pode obter respostas para as perguntas que faz acerca de acon-tecimentos passados. Aqui, novamente, ha muitas perguntasdificeis de formular, no que respeita as caracteristicas das pro-vas e ao modo como sac interpretadas. Nao necessitamos, porem,de faze-Ias nesta altura. Como quer que elas sejam respondidas,os historiadores estarao de acordo quanta ao facto de 0 proce-dimento historico, ou metodo, consistir essencialmente na inter-pretayao das provas.

d) Finalmente, para que serve a historia? Esta e talvez umapergunta mais dificil do que as anteriores. Uma pes soa que Iheresponda tera de reflectir bast ante mais amplamente do quealguem que responda as tres perguntas a que ja respondemos.Ted de reflectir nao a enas sobre 0 ensamento historico comotam em sobre outras coisas, porque dizer que alguma cOlsa epara alguma coisa implica uma distinyao entre A e B, sendo Aalguma coisa boa para B, e B alguma coisa para que A e boa.Sugiro, porem, uma resposta, exprimindo a opiniao de que nenhumhistoriador a rejeitara, embora as perguntas ulteriores a que daJugar sejam numerosas e dificeis.

A minha resposta e: a historia e para 0 auto-conhecimentohumano. Julga-se, geralmente, que e importante, para 0 homem,que ele se conheya a si proprio, nao querendo isto dizer que ele<:onheca as suas particularidades meramente pessoais, aquiloque 0 diferencia dos outros homens, mas sim a sua natureza dehomem. Conhecer-se a si mesmo significa saber, primeiramente,o que sera 0 homem; em segundo lugar, saber a especie de homemque se e; em terceiro lugar, saber 0 que sera 0 homem que se e,distinto de qualquer outra pessoa. Conhecer-se a si mesmo sign i-fica saber 0 que se pode fazer. E como ninguem sabe 0 que podefazer antes de tentar, a unica indicaCao para aquilo que 0 homempode fazer e aquilo que ja fez. 0 valor da hist6ria esta entao emcnsinar-nos 0 que 0 homem tern feito e, deste modo, 0 que 0 homem e.

O conceito de hist6ria que acabo de resumir pertence aostempos modernos. Antes de proceder, na Parte V, a expo-sic;ao e ao desenvolvimento mais pormenorizado, deste

conceito, proponho-me lanc;ar Juz sobre ele, investigando a suahist6ria. Actualmente, os historiadores pensam que a hist6riadeve: a) ser uma ciencia, ou uma resposta e perguntas; b) inte-ressar-se pelas acc;5es humanas do passado; c) dedicar-se a inter-pretac;ao das provas; d) ser favofC'tvel ao auto-conhecimentohumano. Nao tern sido assim, porem, que se tern pensado nahist6ria. Urn autor recente 1, por exemplo, escreve 0 seguinte acercados sumerios (terceiro milenio antes da nossa era):

«A historiografia e representada pelas inscric;5es oficiaiscomemorativas da edificac;ao de pabicios e templos. 0 estiloteocnitico dos escribas atribui tudo a acc;ao divina, como podever-se na passagem seguinte, urn exemplo entre muitos:

Surge uma disputa entre os reis de Lagaehe e de Umma acerca dasfronteiras dos respeetivos territorios. A disputa e submetida a arbitragemde Mesilim, rei de Kiehe, e e resolvida pe10s deuses, de quem os reis de Kiehe,Lagaehe e Umma sao meros agentes ou ministros. Por ordem do deus Enlil,rei dos territorios, 0 deus Ningirsu e 0 deus Chara deliberaram. Mesilim,rei de Kiehe, por ordem do seu deus Gu-Silim, ... erigiu, neste lugar, umaeoluna sepulcral. Uehe, isar. de Umma, procedeu de acordo com os seusambieiosos designios. Tirou do lugar a eoluna de Mesilim e foi para a pIa-nieie de Lagaehe. Por ordem justa do deus Ningirsu, guerreiro do deus EnIil,teve lugar urn eombate com Umma. Por ordem do deus Enlil, a grande rededivina abateu os inimigos, tendo sido eoloeadas inserit;5es funenirias, emlugar deles, na planicie.»

1 Charles F. Jean, in «European Civilization», de Edward Eyre (Lon-don 1935) Vol. J, pag. 259.

I 'hurl s F. Jean, deve notar-se, nao afirma que a historio-1'1111II dos sumerios era isto mas que a historiografia dos sume-I II I /'('presentada por isso. Recorro a este autor para mostrar'1"1 Isto nao e realmente historia, mas al ma coisa ue, em., .Iot pontos se p-arece com a historia. A proposlto, farei 0I' II III' coment{uio: uma inscri~ao como aquela exprime umafill till de pensamento a ue nenhum historiador moderno daria 0

11I1111 de histor(a,_~ em rimeiro lu ar, falta-Ihe 0 caracterI. l'l ncia (nao e uma tentativa de responder a uma pergunta,1111 reS-posta 0 escritor, alias, ignora; e apenas urn registo deiI'llll1a coisa que 0 escritor sabe ser urn facto), e porque, emIII1\do lugar, 0 facto registado nao diz respeito a ac~5es pratica-

1111 por seres humanos mas a ac~5es praticadas por deuses.1\ (' 'r[o ue estas ac~5es divinas originaram ac~5es humanas:III I Coram conce 1 as, em pnmelro lugar, nao como ac~5esIllllnanas mas como ac~5es divinas. Nesta medida, 0 pensa-1111'1110 expresso nao e historico quanta ao seu objecto e, con-('qucntemente, nao e historico quanta ao seu metodo, pois

II II M qualquer interpreta~ao de provas, nem qi.ialltO ao seuvlilor, pois nao ha qualquer indica~iio de que a sua finalidade

jll desenvolver 0 auto-conhecimento humano. 0 conhecimentoIIdiantado por um tal registo nao e - ou, de qualquer forma,II 0 0 e fundamentalmente - conhecimento humano do homem,IIIlS conhecimento humano dos deuses.

Portanto, do ponto de vista do escritor, nao e aquilo a queI'IHll\1amosurn texto historico. 0 escritor nao escreveu historia,I'S 'reveu re1igiao'- Do nosso ponto de vista, pode encontrar-se"numa prova historica, se 0 historiador moderno - de olhos

111105 na res gestae humana - puder interpreta-Ia como prova1l,I'crentea acr;5es praticadas por Mesilim, Uche e os respectivos(i1x1itos.Mas so adquire caracter de prova historic;a, por assim

llizer, postumamente, em virtude da nossa posi~ao historica111 relar;ao a ela - do mesmo modo que as pederneiras pre-historicas ou a ceramica romana adquiriram, postumamente,

I) caracter de pro vas historicas, nao porque os homens que asllzeram as considerassem como provas historicas, mas porquefIIl,l' as consideramos como provas historicas.

Os anti os sumerios nao deixaram nada a que possamosl'hllmar historia. Se tinham uma coisa como a conSCICnCIaIStO-I'll, deTanao cteixaram qualquer registo. Podemos dizer que eles

Ilcvcm ter tido tal coisa. Para nos, a consciencia historica e uma

foi~o da vida tao real e universal que nao conseguimos com-preender que alguem a nao tenha tido. No entanto,se tal argu-mcnta~ao esta cecta ou errada IS muito duvidoso. Se nos restrin-girmos aos factos, tal como nos sao revelados pelos documentos,penso que devemos dizer que a consciencia historica dos sume-rios e aquilo a que os cientistas chamam uma entidade oculta,algo que as regras do metodo cientifico nos proibem de afirmar,de acordo com 0 principio da navalha de Occam, que entia nonsunt multiplicanda praeter necessitatem 1.

Ha 4.000 anos, os nossos precursores da civilizayao naopossuiam aquilo a que chamamos conceito de historia. Tantoquanta sabemos, tal acontecia nao porque eles tivessem a coisaem si mesma, embora sem reflectirem sobre ela; acontecia por-que eles nao possuiam a coisa em si mesma. A historia nao existia.Em lugar dela, existia alguma coisa que, em certos pontos, separecia com aquilo a que chamamos historia, mas diferindo noque respeita a cada uma das quatro caracteristicas que identifi-camos na historia, tal como ela existe hoje.

Portanto, a historia, tal como existe actualmente, nasceunos ultimos 4.000 anos, na Asia Ocidental e na Europa.

Como e que isto aconteceu? Por que fases passou a gestaoda hist6ria? Eis uma pergunta, a qual se apresenta uma respostaum tanto despretensiosa e sumaria. nas partes I-IV.

1 Niio devemos multip/icar os seres, aIem do necessario. Esta sentenl;llficou conhecida pela designat;ao de <<anavalha de Occam». Guilherme deOccam (cerea de 1280-1349) foi urn te610go e escolastico ingles, represen-tante saliente do nominalismo. Depois de entrar para os franciseanos, estudouem Oxford. Escreveu numerosas obras (entre as quais, Tractutus de dogma-tiblls lohannis XXII papae, 1335/8; Defensorium contra essores Tohannis XXIIpapae, 1335/9; Octo quaestiones de po/estate papae, 1339/42; e Dialogus, 1343).Algumas destas obras exprimem os seus pontos de vista contrarios ao podertemporal do papa, 0 que the valeu alguns dissabores. Enea~ndo a oposi-~ao ao tomismo, Occam afirma que a existencia de Deus e os outros dogmasTeligiosos nao podem ser demonstrados racionalmente. Segundo Occam,os dogmas 56 podem tel' fundamento na fe. (N. do T.)