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7/25/2019 Dafne e Cloe http://slidepdf.com/reader/full/dafne-e-cloe 1/150 L ongus DAFNE E CLOÉ  OU AS PASTORAIS Ilustrações de C arlos  F urtado

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L o n g u s

DAFNE E CLOÉ 

OU

AS PASTORAIS

Ilu s t r a ç õ e s d e

C a r l o s  F u r t a d o

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Título:DAFNE E CLOÉ

Tradução de:D u d a   M a c h a d o

a partir da tradução francesa de  Jacques Am yot  

revista, corrigida e completada

 por Paul-Louis Courier  

(1810)

Capa:Carlos Furtado

Produção Gráfica:Vauledir Ribeiro Santos

Editoração Eletrônica:Método Editoração Eletrônica Ltda.

Fone/fax: (011) 607-4567

© D a Tradução:

PRINCÍPIO EDITORA

Edi

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ÍNDICE

Apresentação

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Prólogo

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Livro Primeiro

19

Livro Segundo

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Livro Terceiro

85

Livro Quarto

117 

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APRESENTAÇÃO

Entre os séculos I e II de nossa era, um gregodo qual só conhecemos o nome, Longus (um nomelatino, pois nessa época o mundo mediterrâneoestava sob o domínio de Roma), dedica-se a escreverum romance muito singular, que mais pela sua formado que pelo tema, constitui uma verdadeira depuração, uma miniatura do romance: em  Dafne e Cloé  (ao contrário do que se pode ler em alguns romancesde seu tempo que chegaram até nós1), não encontramos nem efeitos de surpresa, nem múltiplas

 peripécias, nem longos périplos; é o primeiro romance breve, sem ser no entanto nem novela nem conto;o primeiro romance de amor em que as aventuras

se confinam à descoberta do amor. No limite, eis aquium romance sem ação, um romance já “introspectivo”,como dirá Proust. Mas de um modo bem diferentedos romances psicológicos modernos, pois o mundoantigo não concebe a descrição dos movimentos daalma e as “intermitências do coração” a não ser nointerior de um sistema mitológico universal: o Amorque governa o mundo, o deus Eros, é um princípiocósmico, mas não ainda uma pulsão do corpo. Paraos antigos, o corpo físico ainda não possui existênciaindividual, ele materializa o ser da natureza, pois anatureza, physis  em grego, é animada, viva, eterna:

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cada árvore é habitada por uma divindade, cada planta associada a um deus, cada gruta naturalconsagrada a algumas ninfas. Aprender a amar, no

universo mítico de Longus, significa aprender aexperimentar a harmonia do mundo para se adequara ela. Eis aqui o tema de seu romance: duas criançasna flor da inocência, que não sabem nada sobre oamor nem sobre o mundo, educados longe dacivilização urbana, aprendem a conhecer o Amor, do

qual ignoram tanto o nome quanto os efeitos. Aodescobrir seus próprios corpos, é o poder universalde Eros enquanto princípio de concórdia e de união, portanto de paz, que eles aprendem a conhecer. Emcontrapartida, eles irão conhecer também algo sobrea discórdia, mas esta não podendo penetrar o uni

verso protegido da pastoral, permanecerá à margeme se extinguirá por si mesma.

O que a pastoral descreve, é o aprendizado dasanalogias que governam a relação entre o homeme o mundo; tudo aqui existe na escala humana, não

saímos jamais do domínio da sensação, e no entantoos deuses estão aqui, no plano de fundo, invisíveismas representados na pedra, encarnados nos animaisou nas flores, regendo o destino dos homens eenviando-lhes sonhos e outros sinais que estesdevem aprender a interpretar. Para Dafne e Cloé, o

aprendizado do amor se confunde portanto com aaprendizado da vida, e sua educação só se completaráquando eles souberem reconhecer um deus em cadafenômeno natural, tal como acontece com o eco cujaorigem mítica Dafne revela a Cloé ainda ignorante,uma vez completada sua própria iniciação (Livro III;

XXIII).

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A progressão da narrativa joga simbolicamentecom o ritmo das estações; o primeiro livro se colocasob o signo da primavera e do verão, pois narra a

descoberta milagrosa de duas crianças abandonadase o nascimento do amor entre elas. O segundo livro,sob o signo do outono e das vindimas, relata asameaças que pesam sobre esse amor: o ritmo se tomamais vivo, agitado por perturbações e conflitos, poisDioniso, o Baco dos Gregos, o deus das vindimas

e das loucuras coletivas, é antes de tudo um deus perturbador. O terceiro livro, num movimento maisamplo, percorre três estações (inverno, primavera,verão) para descrever as diversas etapas da iniciaçãoamorosa, que é para Dafne uma educação tanto doespírito quanto do corpo. É com a chegada de um

novo outono e de uma nova festa do vinho quecomeça o quarto livro, em que o mesmo Baco revelasua função de deus civilizador presidindo aos reencontros dos dois adolescentes com seus pais naturaise à celebração de suas núpcias legítimas. Junto comele, todos os deuses que presidem à geração, todosos poderes fecundantes da terra se unem ao Amor

 para “fazer de Cloé uma lenda” (Livro II; XXVII).

 No entanto jamais saberemos quais eram asverdadeiras intenções de Longus, pois ele teve ocuidado, como muitos escritores de seu tempo (pelomenos aqueles que conhecemos hoje) de “avançar

mascarado”. É improvável que Longus tenha pretendido fazer obra de devoção aos deuses, se bem queele se divirta em fazer crer, no seu Prólogo, que suahistória é apenas a descrição um pouco romanceadade um quadro de devoção (o equivalente para nósa um ex-voto) ofertado no templo das Ninfas. Nem

também que queira em primeiro lugar celebrar a

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fidelidade conjugal, ou as virtudes de uma sociedadearistocrática culta, que gosta de se divertir no campo,como o último livro poderia nos levar a crer. Será

que ele quer celebrar a paz das solidões campestres,como acreditavam os românticos? Sem dúvida essesonho pastoral, da maneira em que o concebemoshoje em dia, é anacrônico. Longus pertence a umaépoca em que se refletia muito sobre a teoria da artee sobre os princípios de produção das obras, como

testemunha seu Prológo em que encontramos formulada a primeira teoria do romance. A prática romanesca já é nele uma operação de segundo grau, maiscrítica que espontânea e sua obra se inscreve antesde tudo numa tradição literária. Seu propósito étambém, e talvez principalmente, fazer de algummodo a anatomia desse gênero novo, que ainda nãose chama romance  e que o próprio Longus em seuPrólogo  definiu como história de amor.  Em  Dafne e Cloé , os estereótipos da intriga romanesca (o heróisemi-divinizado, caracterizado pela realeza do nascimento e por um abandono, gemineidade do casalamoroso, separação dos amantes pelo rapto, ataquede piratas, virgindade ameaçada e sempre preservada por milagre, cena do reconhecimento final seguida por núpcias em apoteose) são sutilmente parodiadose reduzidos ao estado embrionário, cada uma das peripécias se encerrando logo sem poder se desenvolver, e o movimento que caracteriza o romance

de aventuras sendo como que congelado, à maneirado barco dos metimianos que não chega a se afastardo litoral (Livro II; X X I); segundo a mesma lógica,a própria separação quer seja quando provocada porcausas naturais, como o inverno, quer seja pelo rapto,tem uma duração breve, sem exílio nem afastamento.

A imagem do jardim de Dionisofano, cuja descrição

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Longus inseriu no começo do último livro como achave de sua obra, trata-se de um jardim simbólicomas equívoco em que “as produções da arte parecem

obras da natureza” (Livro IV; II), a arte de Longusimita a natureza querendo fazer crer a seu leitor quea ingenuidade e a inocência dos personagens serefletem na simplicidade da narrativa. Por certo os

 personagens estão cheios de um encanto ingênuo(um pouco ingênuo demais talvez) e a simplicidade

do assunto reflete a dos personagens (não há quase perversos nesta história sem histórias, e perdoamosrapidamente aquele que o são) mas nem o estilo nemo pensamento são simples, apesar da limpidez e da

 brevidade da narrativa. Os jogos de palavras, acuidadosa elaboração dos nomes próprios e as

ambiguidades do estilo atestam uma procura que nãoé apenas formal, mas que se reflete na própriaconcepção da narrativa. Ao escolher o ponto de vistainterno, que leva o leitor a passear num espaço visto

 pelos heróis e que está dentro de sua escala, àmaneira do cineasta que filma o mundo ao nível do

chão para melhor mostrar os erros de perspectivascaracterísticos da infância, Longus nos obriga a umaleitura ativa, pois nos incumbe de restabelecer emcada plano a perspectiva “normal”, a dos adultos. Oexcesso de ingenuidade dos adolescentes é aqui nãosomente encenado (à maneira da comédia), mastambém é mantido através da maneira pela qual seus“educadores” se dirigem a elas — como Filetasfingindo ignorar tudo, ele próprio, sobre o deusAmor (Livro III; IV, V)- sem jamais perturbar suaconcepção do mundo, mas fazendo com que descu

 bram progressivamente outras realidades além deseus sonhos.

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O espaço da pastoral é portanto, segundo a própria imagem do romance, miniaturizado: a pontade uma ilha enclavada entre a instabilidade do mar

e uma sociedade urbana abstrata, onde as distânciassão curtas, onde os únicos acontecimentos são produzidos pelo ciclo natural das estações e pelamovimentação dos rebanhos. O domínio ideal dos

 pastores que Dafne e Cloé, uma vez saídos dainfância, se recusarão a abandonar é um mundo

utópico: aí tudo é prazer e harmonia, não se conhecea doença e a guerra está milagrosamente afastada;se o mal se faz presente, é sob formas atenuadas eanódinas, quando não provém do exterior, da cidadeou do mar. Mas esse espaço não é real, é literário:é claro que Lesbos existe de fato, mas para aimaginação de um escritor essa ilha é em princípioa pátria da poesia lírica, que canta o amor e os deuses,

 pois é em Mitilene que outrora viveram os dois primeiros grandes líricos da Grécia, o poeta Alceue a poetiza Safo (século VII A.C.). Os próprios

 personagens pertencem menos à realidade cotidianado que à tradição literária: eles não vêm de rudes

campos incultos, mas sim da sábia poesia bucólica2,outro núcleo original da literatura. A maior parte dosnomes escolhidos por Longus vêm de Teócrito oude Virgílio, as situações já foram cantadas por eles:concursos poéticos entre pastores rivais, pastorenamorado celebrando sua pastora, queixas por

causa de uma separação forçada, armadilhas engendradas pelo ciúme, e até mesmo a rejeição da vidacitadina. Estamos em pleno imaginário poético e, no

 próprio centro da poesia, na qual tudo se repete ese responde, em que cada imagem reflete as narrativas anteriores multiplicando-as numa ilusão de

espaço como as vozes dos marinheiros que Cloé não

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entende que vêm de uma fonte única (Livro III;XXII); mas como Dafne, Longus prefere contar uma

 bela história em vez de explicar o fenômeno físicodo eco, e como Cloé o leitor será sempre maissensível a música e a suas harmonias de mudançasmisteriosas do que à lição de história natural que seesconde atrás dos mitos.

Assim opera o encanto da utopia pastoral, poisela não tem época. Desde o século XVI, quando toda

a Europa descobriu Dafne e Cloé graças à traduçãofrancesa de Jacques Amyot (publicada em 1559,antes de qualquer edição do texto grego), até o novoalento trazido pela reatualização dessa tradução porPaul-Louis Courier em 1810; várias gerações deleitores encontraram aí a medida de seus sonhos de

inocência. Não que Longus esteja na origem da voga pastoral, que se alimentava de fontes mais antigas.Mas sem dúvida este romance contribuiu para fixarcertas imagens da infância em liberdade, de jardinsem que a natureza rivaliza com a arte, da fidelidadena simplicidade que reecontramos tanto nos deva

neios de Rousseau quanto nas paisagens de Corot,no “verde paraíso dos amores infantis” de Baudelaireassim como nos romances campestres de aparênciarealista de Georges Sand. A obra de Paul-LouisCourier, admirável trabalho de amador ( a expressãodeve ser entendida no sentido forte daquele que, semser um “profissional”, faz aquilo de que gosta),

substituiu a de Amyot em numerosas reedições doséculo XIX, e foi preciso esperar os meados doséculo XX para que aparecessem novas traduções.Em vez de tentar uma nova tradução, Courier preferiu revisar a tradução de Amyot mas, ao invésde modemizá-la para tomá-la mais legível, como

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faríamos hoje, ele se empenhou ao contrário em preservar o encanto antigo multiplicando os arcaísmos em suas intervenções, quer se trate de correções

ou de adições (pois a tradução de Amyot não eracompleta). É que para ele, só o estilo ao gosto doRenascimento poderia representar de “modo natural”o maneirismo antigo de Longus. O trabalho deantiquário  (como se dizia no Renascimento) deCourier exerce sobre nós uma dupla atração: restitui

um Longus cheio de frescor e de encanto, próximaao mesmo tempo do espírito e da letra do original,e nos faz experimentar também a sensibilidaderomântica nos colocando na perspectiva de um leitordo começo do século XIX. Esse texto, que despertouo entusiasmo- do velho Goethe ao ser publicado, é

o mesmo que numerosos artistas, romancistas emúsicos do século XX leram, deixando-se inspirar

 pelos sortilégios da flauta de Pã e pela dança das Ninfas, desde Maurice Ravel, cujo balé Dafne e Cloé  (1912) se tornou célebre, até Jean-Claude Gallotta( Dafne e Cloé , Avignon, 1984). E não é dos menores

encantos desse “velho romance” o fato de ter sidocapaz de fecundar todas as Musas, fazendo dialogaratravés dos séculos a pintura e a poesia, a escultura,a música e a dança, em mútliplos ecos harmônicosque seu autor talvez tenha pressentido.

Françoise Graziani

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 Notas

1. Além do romance de Longus, só existem quatro

romances gregos que datam da época do Império Romano (entre

os séculos I e IV D.C.):  As Etiópicas   de Helíodoro,  A s  Aven turas de Cheréia e Callirthoé   de Chariton, As  Aventuras 

de Leucipo e Clitofon  de Aquiles Tatius e Os Efesos  de

Xenofonte de Éfeso. Mas é certo que a produção romanesca

dessa época foi muito mais importante . (N.E.)

2. A poesia bucólica  (“canto dos boiadeiros” segundo a

etimologia grega) também chamada  pastora l  porque dá a

 palavra aos pastores, é considerada como uma das formas maisarcaicas da poesia lírica. Mas ela se desenvolveu sobretudo noséculo III A.C. com o poeta Teócrito, cujos  Idílios são célebres

em toda a Antiguidade e serviram de modelo para as  Bucólicas  

do grande poeta latino Virgílio (século I A.C.). O idílio,convertido em gênero poético, trata geralmente de temas

amorosos, mas também celebra a natureza e os deuses. (N.E.)

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PRÓLOGO

 Na ilha de Lesbos, caçando num bosque consagrado às Ninfas, eu vi a mais bela coisa que jamaishavia visto em minha vida, uma imagem pintada1,uma história de amor. O parque, em si mesmo, era belo; flores é que não faltavam, árvores espessas,fonte fresca que alimentava as árvores e as flores;

mas a pintura, mais agradável ainda que todo o resto, possuía um tema amoroso e um artifício maravilhoso; tanto era assim que muitos, entre os quais estrangeiros, que tinham ouvido falar dele, todos devotosdas Ninfas, iam até lá curiosos para ver esta pintura.Viam-se mulheres que iam parir, outras desdobrandofraldas com crianças, bebês expostos a mercê dasorte, animais que os alimentavam, pastores que oslevavam, jovens unidos pelo amor, piratas no mar,inimigos em terra que percorriam a região, além demuitas outras coisas, e todas amorosas, para as quaiseu olhava com tão grande prazer e as achava tão belas, que me deu vontade de também pintá-las por

escrito. Assim eu procurava alguém que me fizessecompreendê-las em seus pormenores; e tendo com preendido o todo, compus estes quatro livros, quededico como uma oferenda ao Amor, às Ninfas e àPã2, esperando que o conto agrade de vários modosa toda gente3; para que possa servir para curar o

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doente, consolar o aflito, fazer recordar os amoresdaqueles que já estiveram enamorados, e instruiraquele que nunca esteve. Pois jamais existiu nem há

de existir quem possa se defender de amar, enquantohouver beleza no mundo e o poder de vê-la; queirao deus 4que isento de paixões, descrevamos as dosoutros!

 Notas

1. Isto é, um quadro destinado à devoção, aí exposto paracomemorar os acontecimentos que irão constituir o assunto do

romance. A tradução de Courier, mais literal que a de Amyot,se esforça, neste preâmbulo, para respeitar a sintaxe e a ordemdas palavras a fim de registrar a insistência de Longus em

identificar o romance (enquanto história de amor ) com oquadro. O texto grego traz um jogo de palavras, pois a línguagrega designa a ação de escrever   e de  pin tar   com o mesmoverbo, graphein. Como numa abertura musical, o autor anunciaaqui os motivos (em poucas palavras, todos os episódios doromance são resumidos) e a tonalidade (devoção às Ninfas eao Amor). (N.E.)

2. São as três divindades que governam toda a intriga:Amor enquanto motor principal da ação, as Ninfas enquanto protetoras dos amantes e Pã enquanto deus dos pastores e dosamores pastorais. (N.E.)

3. As várias categorias de leitores virtuais são enumeradasna frase seguinte, que define a utilidade dos rom ances com suas

quatro funções complementares: terapêutica, comemorativa,educativa e iniciática. (N.E.)

4. O deus Amor. Era costume entre os poetas antigos jamaiscomeçar uma obra sem invocar a proteção da divindade quecorrespondia ao tema tratado. Aqui, a invocação é irônica jáque o autor pede para ser subtraído à influência do deus

invocado. (N.E.)

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LIVRO PRIMEIRO

[I] Mitilene é uma cidade de Lesbos, bela egrande, cortada por canais, pela água do mar quecorre dentro deles, ornada de pontes de pedra branca e polida; ao vê-la, dir-se-ia não uma cidade,mas uma reunião de pequenas ilhas. Umas oito ounove léguas distante desta cidade de Mitilene, umhomem rico possuía terras; propriedade mais belanão havia em toda a região; bosques cheios deanimais de caça, encostas revestidas de vinhas,campos de trigo, pastos para o gado, e tudo ao longodo mar, onde as ondas lavavam uma praia de areiafina.

[II] Nesta terra um guardador de cabras chamado Lamo, enquanto cuidava de seu rebanho, encontrou uma criança que uma de suas cabras aleitava,e eis aqui como isto se deu. Havia uma sarça muitoespessa de arbustos e de espinhos, coberta no alto

 por heras, e em baixo, a terra atapetada de ervasmiúdas e delicadas, sobre a qual a criança estavadeitada. Era para lá que essa cabra corria comfrequência, fazendo que ninguém pudesse saberaonde estava, já que abandonando o rebanho, ia para

 junto da criança. Piedade era o que sentia Lamo por

essa cabra desgarrada. Um dia ficou a observar para

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onde ela ia, e seguindo seu rastro no calor do meio-dia, descobriu que ela entrara na sarça e passavasuavemente suas patas sobre uma criança, com medode lhe fazer mal; e a criança pegava com mãosdelicadas a sua teta como se fosse o seio nutriz.Surpreso, como se pode adivinhar, ele se aproxima,e vê que se trata de um menino, bonito, bem feito,e envolvido por ricos panos que não pareciamcombinar com tal abandono; pois estava coberto poruma capa de cor púrpura com uma fivela de ouro,e perto dele havia um pequena faca com cabo demarfim.

[III] Ele se perguntou se não devia levar consigoestes sinais de identificação1, sem se preocupar assimcom a criança; depois envergonhado de não semostrar pelo menos tão humano quanto sua cabra,assim que a noite chegou ele pegou tudo, as jóias,a criança, e a cabra e levou para sua mulher Mirtal,que, admirada, indagou se agora as cabras andavama parir meninos; e Lamo lhe contou tudo, como eletinha achado o menino com uma cabra que oamamentava, e como ficara com vergonha de deixá-lo perecer. Ela foi de opinião que ele não deviamesmo tê-lo deixado ali; os dois tomaram a resolução de educá-lo; em seguida, guardaram tudo quehavia sido encontrado com ele, espalhando por todaa parte que o filho era deles, e a fim de que seu nome

 parecesse mesmo com o de um pastor, eles ochamaram Dafne.2

[IV] Uns dois anos depois, um pastor daquelasredondezas, cujo nome era Drias3, viu algo semelhante e teve uma aventura parecida. Havia um antro

nessa região, que se chamava o antro das Ninfas, uma

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rocha grande e espessa, vazia por dentro, todaarrendondada por fora, e dentro dela existiam estátuas das Ninfas, talhadas em pedras, com os pés

descalços, os braços nus até os ombros, cabeloscaindo em volta do pescoço, cintas nos quadris, todascom um rosto risonho e sua pose mostrava que todasestavam dançando juntas.4 Do meio da rocha e domais vazio do antro jorrava uma fonte, cuja água seespalhava em forma de bacia, alimentava mais

adiante a erva fresca e espessa, e corria através do belo prado verdejante. Depositados sobre a rocha podia ver-se muitos cântaros para apanhar o leite,muitas flautas e charamelas, oferendas de antigos

 pastores.

[V] A essa cavema uma ovelha, que há poucotempo tinha parido, ia com tanta frequência, quemais de uma vez o pastor achara que a tinha perdido.Desejando castigá-la, para que ela ficasse no meiodo rebanho como antes, pastando junto com asoutras, ele cortou uma verga de vime dócil, com o

qual fez um laço com nó corredio, e se aproximou para laçá-la junto à fenda da rocha. Mas quando iase aproximando, deu com algo muito diferente: viuentão a ovelha dar suas tetas para uma criança, comtal amor e doçura que uma mãe não faria diferente;e a criança, com sua pequena boca bonita e limpa,

 pois a òvelha limpava-lhe o rosto depois que estavasaciada de mamar, agarrava sem um só grito umateta e depois a outra, com grande apetite. A criançaera uma menina, e junto com ela, como sinais paraque um dia pudesse ser reconhecida, tinham deixadotambém uma touca de fios de ouro, um tamanco

dourado e meias bordadas com ouro.

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[VI] Drias pensou que esse achado podia virdiretamente dos deuses, e instruído piedosamente peloexemplo de sua ovelha, tomou a criança em seus

 braços, colocou as jóias em seu alforge, não sem fazeruma oração às Ninfas para que ele pudesse educaraquela pobre e suplicante pequena. Depois de terlevado de volta seu rebanho para o estábulo, de regresso à sua morada de camponês, contou à sua mulher oque havia visto, mostrando-lhe o que havia encontra

do, afirmando que ela procederia muito bem se daquele dia em diante quisesse tomar aquela criança comosua filha, e alimentá-la como se fosse sua, sem nadacontar daquela aventura; Napé, pois esse era o nome da

 pastora, tomou-se a partir desse momento uma mãe para essa pequena criatura e tanto a amou que pareciasentir ciúmes a esse respeito, querendo superar em

zelo a sua ovelha, que continuava a amamentar a pequena com suas tetas: e para fazer com que melhoracreditassem que ela era mesmo a mãe, deu- lhetambém um nome pastoril, chamando-a C loé.5

[VII] Estas duas crianças logo cresceram, e

 possuíam tal beleza que nem pareciam rústicos. Eno momento em que uma alcançou a idade de quinzeanos, tendo a outra dois anos a menos, Lamo e Driasnuma mesma noite sonharam todos os dois ummesmo sonho. Por ele foram avisados que as Ninfas,aquelas mesmas do antro onde ficava a fonte, e onde

Drias encontrara a menina, entregavam Daphne eCloé nas mãos de um meninote bastante vivo emaravilhosamente belo, que tinha asas nos ombros,carregava um pequeno arco e pequenas flechas, eatingira os dois com uma mesma flecha, pedindo aum que dali em diante pastoreasse as cabras e aooutro, as ovelhas.

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[VIII] Para estes pastores, essa visão era um presságio da sorte futura de suas crianças comotambém destinados a tomar conta dos animais, e isto

os deixou aborrecidos. Pois até aqui haviam acreditado que os sinais encontrados prometiam umasorte bem melhor para elas, e por esse motivo é queeles as tinham alimentado com maior cuidado do queé costume entre filhos dos pastores, e lhes tinhamensinado as letras, e todas as boas coisas que se pode

aprender no campo; todavia decidiram obedecer osdeuses quanto ao destino daqueles dois que, graçasà sua providência, haviam sido salvas. Depois deterem comunicado seus sonhos, e de fazerem umsacrifício na caverna para o meninote que tinha asasnos ombros (pois não costumavam dizer seu nome)6,

enviaram-nas para o campo, ensinando-lhes todas ascoisas que os pastores devem saber; como levar osanimais para pastar antes do meio-dia, e tambémdepois que passasse o calor; a que hora convém levá-los para beber, a que hora guardá-los no estábulo;quando há necessidade de usar o cajado, quando

 basta apenas a voz. Eles se apegaram a essas tarefascom tanta alegria que parecia até se tratar de algonobre, e passaram a amar suas cabras e ovelhas muitomais afetuosamente do que é costume entre os

 pastores; ela porque sentia que devia sua vida a umaovelha, e ele porque se lembrava que uma cabra o

havia amamentado.

[IX] O começo da primavera já se aproximava,quando todas as flores ficam viçosas, as dos bosques,a dos prados, e as das montanhas. De modo que já secomeçava a ouvir pelos campos o zumbido das

abelhas, o gorjeio dos pássaros, o balido das ovelhasrecém-nascidas. Os rebanhos saltavam nas colinas, as

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abelhas murmuravam pelos prados, os pássaros faziam ressoar as moitas com seu canto. Assim comotodas as coisas cumpriam o seu dever de se alegrar nanova estação, eles também, temos, jovens, se puserama imitar o que ouviam e viam. Pois ouvindo cantar os

 pássaros, cantavam; vendo as ovelhas saltarem, saltavam por imitação; e, como as abelhas, iam colhendoflores, colocando umas sobre o peito, enquanto comas outras teciam uma coroa para as Ninfas;

[X] E ficavam sempre juntos, cumpriam todasas tarefas em comum, pastoreando seus rebanhos umao lado do outro. Muitas vezes Dafne trazia de voltaas ovelhas de Cloé, quando elas se afastavam paralonge do rebanho; muitas vezes Cloé detinha ascabras afoitas demais que queriam subir nas falésias;

às vezes apenas um deles ficava a guardar os doisrebanhos, enquanto o outro se distraía com alguma brincadeira. Eram brincadeiras de pastores e decrianças. Ela, de manhã bem cedo, ia colher emalguma parte junco fino para fazer uma gaiola paraa cigarra, sem se descuidar de maneira alguma de

seu rebanho; ele por sua vez cortava os caniços,furava as junções, depois as colava com cera mole,e ficava a tocar muitas vezes até a noite.7Dividiamtambém muitas vezes entre si o leite ou o vinho,assim como todos os víveres que tinham trazido decasa. Em suma, era mais fácil ver as ovelhas

afastadas umas das outras do que Dafne e Cloéseparados.

[XI] Ora, em meio a essas brincadeiras infantis,Amor quis lhes dar uma preocupação. Nessas redondezas havia uma loba, que depois de parir lobinhos, passou a devastar os outros rebanhos, com o que

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alimentava os seus lobinhos; por causa disso, as pessoas das aldeias vizinhas se reuniram para cavardurante a noite fossos com dois braços de largura

e quatro de comprimento, e a terra que tinhamcavado, não toda, mas a maior parte, era atirada paralonge ;em seguida estendiam varas longas e finassobre os buracos, e as cobriam jogando por cimadelas o resto da terra que haviam cavado para queo lugar parecesse plano e contínuo como antes; de

maneira que se por cima delas passasse uma lebrecorrendo, as varas se quebrariam, pois por assimdizer, eram mais frágeis do que a palha, e só aí éque se poderia perceber então que não se tratava deterra firme, mas sim de uma simulação. Emboratenham cavado vários fossos desse tipo na montanha

e na planície, não conseguiram pegar a loba, poisela percebeu a armadilha; mas isso acabou sendo acausa da morte de várias cabras e ovelhas, e a mesmacoisa quase aconteceu a Dafne.

[XII] Dois bodes começaram por ciúme a brigar

um com outro, e se enfrentaram tão rudemente queo chifre de um deles se quebrou; com a grande dorque sentia aquele que perdera o chifre, se pôs a correr berrando, e o vitorioso saiu a persegui-lo, sem quererdeixá-lo em paz . Dafne ficou com pena de ver o

 bode com seu chifre mutilado; e, se enfurecendo com

o outro, que não se contentara em tê-lo ferido demaneira tão horrível, pegou seu cajado e correu atrásdo perseguidor. Assim o bode escapando dos golpes,e ele o perseguindo, não reparavam no que estavana frente deles; e os dois caíram numa dessasarmadilhas; primeiro, o bode e depois, Dafne, o que

evitou que ele se machucasse, pois o bode aparousua queda. Assim, caído no fundo desse fosso, ele

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ficou esperando que alguém viesse tirá-lo e chorava.Cloé vendo de longe o acidente, correu até lá e

 percebendo que ele estava com vida, foi rapidamente

 pedir socorro a um pastor bem perto dali. O pastorveio: ele queria estender uma corda, mas nãoencontraram nada. Mas Cloé desamarrou o cordãoque segurava seus cabelos, e o deu ao pastor, que

 jogou uma das pontas para Dafne, enquanto seguravaa outra com Cloé, e tanto puxaram de cima da beirado fosso, enquanto ele ajudava alçando-se da melhor

maneira que podia conseguir, que finalmente os doiso tiraram da armadilha. Depois8 retiraram o bode damesma maneira, mas seus dois chifres se quebraram(assim o vencido foi bem e rapidamente vingado),e o deram de presente ao pastor como recompensa,e combinaram entre si dizer em casa, caso pergun

tassem, que o lobo conseguira apanhá-lo.

Depois voltaram para seus rebanhos, e encontrando a pastar tranquilamente e em boa ordem ascabras e as ovelhas, se sentaram ao pé de um grandecarvalho, e foram ver se com a queda ele não se ferira

em algum lugar. Seu corpo não trazia qualquer marcade sangue nem de ferida, mas estava cheio de lamaaté os cabelos. Por isso resolveu lavar-se para queLamom e Mirtal nada percebessem.

[Χ ΙΠ ] Assim foi com Cloé até a caverna das Ninfas, onde lhe deu seu surrão e sua camisa para

que ela os guardasse, e caminhou até a fonte paralavar os cabelos e o corpo.

Seus cabelos eram negros como o ébano, caindosobre seus ombros queimados pelo sol; dir-se-ia queera sua sombra que escurecia sua tez. Cloé olhava-

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o e via o quanto Dafne era belo; e como até entãoela não percebera que ele era belo, imaginou que erao banho que lhe dava essa beleza. Ela lavou as costas

e os ombros dele, e quando o banhava sua pele lhe parecia tão fina e tão doce, que mais de uma vez,sem que ele se desse conta, ela tocava em si mesma,

 perguntando-se qual dos dois tinha o corpo maisdelicado. Como já era tarde, e o sol já descera muito,eles levaram seus animais até os estábulos, e a partir

desse instante, Cloé não pensou em outra coisa senãoem rever Dafne se banhar. Quando voltaram no diaseguinte até o pasto, Dafne, sentado sob o carvalhocomo sempre, tocava a flauta e olhava suas cabrasdeitadas, que pareciam tirar prazer de tão docemelodia. Cloé também sentada ao lado dele, via suas

ovelhas pastando; mas na maior parte do tempo tinhaos olhos fixos em Dafne que tocava a flauta e denovo, mais uma vez ela o achou belo, e pensandoque fosse a música que o fizesse ficar assim, elatomou a flauta para se tomar tão bela quanto ele.Por fim, ela quis que ele se banhasse de novo, e

enquanto ele se banhava ela o via completamente nu,e ao vê-lo não podia se impedir de tocá-lo; depoisà noite, voltando para casa, ela pensava em Dafnenu, e esse pensamento era o começo do amor. Em

 pouco tempo ela só pensava e se lembrava de Dafne,e não havia nada que não lhe falasse dele. Mas não

conseguia saber o que era aquilo que sentia, poiscomo moça simples educada no campo, jamaisouvira em toda sua vida uma vez sequer o nome doamor. Sua alma se sentia oprimida; contra suavontade, a todo instante seus olhos se enchiam delágrimas. Passava os dias sem se alimentar, as noitessem dormir; ela ria e depois chorava; adormecia elogo despertava em sobressalto; empalidecia e no

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mesmo instante seu rosto se incendiava. A novilha picada pelo moscardo não se agita tão loucamenteassim. De vez em quando caía numa espécie dedevaneio, e sozinha discorria dessa maneira:

[XIV] “Neste momento estou doente, e não seiqual é o meu mal. Eu sofro, e não tenho nenhumaferida. Eu me aflijo e no entanto não perdi nenhumadas minhas ovelhas. Eu queimo, sentada sob umasombra tão espessa. Quantas vezes os espinhos mearranharam! e eu não chorava. Quantas vezes asabelhas não me picaram com seu ferrão! e logo eume curava. E preciso convir que o que me atingeo coração dessa vez é mais ferino que tudo isso.

 Na verdade Dafne é belo, mas ele não é o único.Suas bochechas são vermelhas, mas as flores

também são; ele canta, mas os pássaros também;no entanto quando vejo as flores e ouço os pássaros,não penso nisso depois. Ah! porque não sou umaflauta para tocar seus lábios! por que não sou o seucabrito para ele me tomar em seus braços! O fontemalvada que o tomas tão belo, não podes me

embelezar também? O Ninfas! que me vistes nascere viver aqui entre vós, deixai-me morrer! Quemdepois de mim vos fará guirlandas e buquês, e quemirá cuidar de minhas pobres ovelhas, e também deti, minha bela cigarra, que tive tanta pena ao

 prender? Ai de mim! de que me serve agora que

cantes sob o calor do meio-dia? Tua voz não podemais me adormecer sob as abóbadas deste antro;Dafne me tirou o sono.”

[XV] Assim falava e suspirava a dolente mocinha, procurando em si mesma o que era o amor, doqual sentia as chamas, e não podia dar com o nome.

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Mas Dorcon, o pastor que tinha tirado Dafne eo bode do fosso, um rapaz em que já começavama nascer os primeiros pelos, ficara ferido desde esse

encontro pelo amor de Cloé, e ia se tomando a cadadia cada vez mais apaixonado por ela, e sem levarem conta Dafne que lhe parecia uma criança, fazia

 planos de tudo tentar, ou por presentes, ou porastúcia, ou pelo emprego da força, para obtercontentamento, instruído como era sobre o nome e

as obras do amor. Seus primeiros presentes foramuma bela flauta com as canas unidas por lata em vezde cera para Dafne, e uma pele de corça9 todamarchetada de manchas brancas para cobrir osombros da mocinha. Depois certo de que por taisofertas se tomara amigo tanto de um quanto do outro,logo deixou de lado Dafne; mas todo dia levavaalguma coisa para Cloé. Ora eram queijos gordos,ora frutos maduros, ora coroas de flores novas, ouentão pássaros que ele pegava no ninho: uma vezele lhe deu uma taça dourada nas beiras, e de umaoutra vez um pequeno veado que trouxera damontanha. Ela, simples e sem malícia, ignorando quetodos esses presentes fossem uma isca amorosa,aceitava-os de bom grado, mostrando grande prazer,mas todo esse prazer estava em ter o que dar paraDaftie.

E um dia Dafne (pois se tomava necessário queele também conhecesse a aflição do amor) teve umaquerela com Dorcon. Tiveram então uma disputasobre qual dos dois era mais belo diante de Cloé,que iria julgá-los e o prêmio destinado ao vencedor

seria um beijo de Cloé; foi Dorcon quem falou primeiro:

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[XVI] “Eu, começou dizendo, sou maior queele. Tomo conta dos bois, ele das cabras; ora os boisvalem mais do que as cabra, por conseguinte o

 boiadeiro vale mais do que o cabreiro10. Eu sou branco como o leite, louro como o feixe de trigo nacolheita, fresco como a folhagem na primavera.Também minha mãe é assim, e não foi um animalqualquer que me nutriu quando criança. Ele é pequeno, fraco, não tem barba tal qual uma mulher,

e tem o corpo negro como pele de lobo. Vive comos bodes, não cheira bem. E depois, cabreiro, pobrehera, ele não é mais valente do que um cão. Diz-se que ele mamou numa cabra; eu acredito, porminha fé, e não é de admirar se, cria de uma cabra,ele tem o aspecto de um cabritinho.”

Assim falou Dorcon, e em seguida Dafne: “Sim,uma cabra me amamentou assim como a Júpiter11,e guardo cabras, e as tomo melhores do que jamaisserão as vacas deste aí. Eu levo os bodes para pastar,e no entanto nada tenho com o cheiro deles, não maisdo que Pã, que todavia tem mais de bode em si

mesmo do que de qualquer outra natureza.12 Paraviver eu me contento com o leite, o queijo, o pãode rala13, e o vinho clarete, a comida e a bebidadaqueles que são pastores como nós, dividindo-oscontigo, Cloé; não me preocupo com o que comemos ricos. Não tenho barba, nem Baco também14; eu

sou moreno, o jacinto é negro; e no entanto Bacovale mais que os Sátiros, e se prefere o jacinto aolírio. Este aí é ruivo como uma raposa, branco comouma moça da cidade, e barbudo como um bode. Seé a mim que beijas, Cloé, beijarás minha boca; sefor a ele, beijarás esses pelos que lhe caem pelos

lábios. Que ele se lembre, pastorinha, que a ti

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também uma ovelha deu seu leite, e no entanto tués bela.”

[XVII] Ao ouvir essas palavras Cloé não odeixou acabar: pois, em parte pelo prazer que ela teveao ouvir seu elogio, e em parte porque há muito tinhavontade de beijá-lo, ela se levantou de um salto, ede maneira bem delicada e ingênua, deu-lhe o prêmio. Foi um beijo inocente e sem arte; todavia

foi o bastante para inflamar um coração em plenamocidade.

Dorcon ao se ver vencido, fugiu para o bosque para esconder sua vergonha e seu desgosto, e desdeentão passou a procurar um outro meio para desfrutarde seus amores. Para Dafne, foi não como se tivesserecebido um beijo de Cloé, mas sim uma picadaenvenenada. Sentia-se triste de repente, suspirava,agitava-se, o coração batia, empalidecia quando olhava para Cloé, e logo em seguida o rubor cobria seurosto. Pela primeira vez então ele admirou a cor lourados cabelos dela, a doçura de seus olhos e o frescor

de uma tez mais branca do que o leite coalhado de suasovelhas. Diz-se que desse momento em diante, elecomeçou a ver e que tinha sido cego até então.Limitava-se apenas a provar os alimentos, a molharos lábios com a bebida. Ficava pensativo, mudo, ele,antes, tão tagarela quanto as cigarras; ficava sentado,

imóvel, ele que costumava saltar mais do que suascabras. Esquecia-se de seu rebanho; deixava a flautaabandonada no chão; baixava a cabeça como uma florque se debruça sobre o caule; consumia-se, secavacomo as ervas na época do calor, não tinha maisalegria, nem voz, a não ser para falar com ela ou sobre

ela. Quando ficava só, dizia a si mesmo15:

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[XVIII] “Ora, o que me fez o beijo de Cloé?Seus lábios são mais macios do que as rosas, sua

 boca mais doce do que um favo de mel, e seu beijoé mais amargo do que a picada de uma abelha. Eu

 já tinha beijado minhas cabras; já tinha beijado asovelhas dela ao nascerem; e também o pequenoveado que Dorcon tinha lhe dado; mais este beijofoi diferente. Meu pulso dispara; o coração salta;minha alma enlanguesce, e no entanto eu desejo

 beijá-la de novo. O amarga vitória ! O estranho mal

cujo nome não sei dizer! Cloé tinha provado algumveneno antes de me beijar? Mas como pode ser, seela não está morta? Oh! como cantam as andorinhas,mas minha flauta não diz nada! Como as cabrassaltam, e eu me deixo ficar aqui sentado! Como todasas flores desabrocham, e não faço nem buquês nem

coroas! A violeta e o lírio do vale florescem, masDafne murcha. Dorcon no fim parecerá mais belodo que eu.”

[XIX] Vê-se por aí quanto o pobre Dafne estavaapaixonado, e as palavras que dizia, eram as de quemexperimenta pela primeira vez as chamas do amor.

Mas Dorcon, aquele outro pastor também enamorado de Cloé, aproveitando um momento em queDrias plantava uma árvore para apoiar uma vinha,e como já o conhecesse desde a época em que Drias

 pastoreava os animais no campo, foi a seu encontro

com belos queijos gordos para lhe dar de presente;depois começou a entrar no assunto de sua velhaamizade, prosseguindo de tal modo até chegar a

 pedir Cloé em casamento, dizendo que queria desposá-la, prometendo belos presentes, pois como vaqueiro

 bem que o podia. Queria dar-lhe, ele disse, um casal

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de bois para o trabalho, quatro colméias de abelhas,cinqüenta pés de batatas, um couro de boi para fazersapatos, e a cada ano um veado já desmamado; etudo isto de tal maneira que tocado por sua amizade,

seduzido por suas promessas, Drias quase concordacom o casamento. Mas como sonhava que sua filhanascera para um partido bem maior, e temendo queuma dia ela pudesse reconhecida, e seus pais sou bessem que devido à sua cobiça por tais presentesele a tivesse feito casar em condição tão baixa,

acabassem por se tomar seus inimigos mortais,recusou todas as suas ofertas, e despediu-se rogandoque ele o perdoasse.

[XX] Foi assim que Dorcon se vendo pelasegunda vez frustado em sua esperança, e que dera

em troca de nada seus belos queijos gordos, decidiu, já que de outra maneira nada obteria, que a primeiravez que a encontrasse sozinha, poria a mão em Cloé.Como sabia que eles levavam um depois do outroseus animais para beber, Cloé um dia, e Dafne nooutro, recorreu a sua astúcia de jovem pastor. Ele

 pegou a pele de um grande lobo de um touro quelhe pertencia, lutando em defesa das vacas, haviamatado com seus chifres, e a colocou de tal modoque as pernas dianteiras cobriam seus braços e mãos,as pernas traseiras caíam sobre as coxas até ocalcanhar, e a cabeça o cobria como se fosse ocapacete de um soldado. Disfarçando-se de lobo damelhor maneira que podia, foi direto até a fonte, ondeas cabras e as ovelhas bebiam depois de terem

 pastado. Ora essa fonte ficava num vale deserto, etodo os lugares ao seu redor estavam cheios de sarçase de espinheiros, de cardos e de zimbros, de tal modoque um lobo verdadeiro poderia se esconder ali

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facilmente. E foi aí mesmo que se escondeu, atrásdos espinheiros, esperando a hora que os animaisviessem beber; e com esperança de poder assustarCloé com esse disfarce de lobo, e se apoderar de seu

corpo para o prazer.

[XXI] Ela chegou logo depois. Trazia os doisrebanhos para beber, deixando Dafne entregue àtarefa de cortar os mais tenros ramos verdes para suascabras depois do pasto. Os cães que a ajudavam na

guarda dos animais a seguiam; e como naturalmenteeles caçam metendo as narinas em toda parte,

 perceberam os movimentos de Dorcon que queriaatacar a mocinha: então começaram a latir, lançando-se sobre ele como se fosse um lobo, e cercando-ode tal modo que ele não ousava, tão grande era seu

medo, se levantar, enquanto os cães mordiam furiosamente a pele do lobo, procurando arrancá-la comseus dentes fortes. Ele, a princípio com vergonha deser reconhecido, e protegido durante algum tempo

 pela pele que o cobria, ficou deitado no chão debaixoda moita, sem dizer palavra; mas quando Cloé, percebendo através das folhagens a orelha direita e

a pele do animal, pediu assustada socorro a Dafne,e quando os cães lhe arrancaram por fim a pele,começando a mordê-lo com conhecimento de causa,ele começou a gritar tão alto quanto pôde, pedindoa Cloé e a Dafne que já se aproximava, que oajudassem, o que eles fizeram, e com seu assovio

costumeiro, apaziguaram imediatamente os cães;depois levaram o infeliz Dorcon até a fonte, pois eletinha sido mordido nas coxas e nos ombros. Lavaramsuas feridas onde tinha sido atingido pelas dentadas,e depois o cobriram com casca de olmo amassada,uma vez que os dois eram tão pouco maliciosos, tão

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 pouco experimentados nas iniciativas atrevidas doamor que pensaram que essa emboscada de Dorconcom pele de lobo não passava de uma brincadeira

infantil de pastor16; motivo pelo qual eles não seenfureceram com ele, mas o reconfortaram e oconduziram durante parte do caminho, levando-o pela mão;

[XXII] E ele que passara por tão grande perigo

e que tinha sido salvo da goela, não do lobo comose diz comumente, mas dos cães foi curar as feridasque tinha pelo corpo inteiro.

Enquanto isso, antes que a noite chegasse, Dafnee Cloé procuravam suas cabras e ovelhas, que

assustadas com a pele de lobo e apavoradas com olatido forte dos cães, haviam se desgarrado. Umastinham subido até o alto dos rochedos, outras descidoaté a beira do mar, todas tinham sido ensinadas paraatender o chamado de seus pastores, a ficar emordem ao som da flauta, e a se reunirem tão logoouvissem o som de suas palmas; mas o medo fezcom que esquecessem tudo isso; e só depois de terseguido seus rastros como se faz com as lebres, éconseguiram com muito trabalho encontrá-las ereuni-las no estábulo; por fim, foram repousar;naquela noite dormiram a sono solto. Pois o trabalhoque tiveram fora um remédio para seu mal-estar de

amor; mas com a chegada do dia, foram de novo possuídos pela mesma paixão de antes, pela alegriade se reverem, pela dor de se deixarem; eles sofriam,queriam alguma coisa e não sabiam o que queriam.Pois o que sabiam era somente que, para um todoo seu mal vinha de beijo, enquanto para o outro vinha

de um banho.

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[XXIII] No entanto a estação os abrasava maisainda. A primavera aproximava-se do fim e o verão

 já dava seus primeiros sinais, todas as coisas estavam

em flor; as árvores já mostravam seus frutos, o trigosua espiga; e também a voz das cigarras era agradável de se ouvir, gracioso o balido das ovelhas, ariqueza dos campos admirável de se ver, o ar todo

 perfurmado suave de se respirar; os rios pareciamadormecidos através dos ramos dos pinheiros. Dir-

se- ia que até as maçãs se deixavam cair enamoradas,que o sol amante da beleza fazia cada um se despojar.Dafne abrasado, se jogava nos rios, ora se banhando,ora se debatendo na tentativa de pegar os peixes, quedeslizando na onda fugiam de sua mão; e a toda hora bebia, como se com a água pudesse extinguir o fogoque o queimava. Cloé depois de ter guardado todas

as suas ovelhas, e também a maior parte das cabrasde Dafne, ficava muito tempo ocupada em tirar oleite e em espantar as moscas, que a incomodavammuito e a picavam; feito isso, e coroada com as maistenras folhas do pinheiro, cingida com a pele decorça, ela enchia uma vasilha com vinho misturado

ao leite l7, para beber com Dafne.

[XXIV] Quando chegava o meio-dia, eles jáestavam mais perdidamente envolvidos do que nunca,

 pois Cloé vendo em Dafne completamente nu uma beleza perfeita em todos os aspectos, se desmancha

va e morria de amor, considerando que não haviaem toda a sua pessoa nada que faltasse; e ele, aovê-la, com a pele de corça e a coroa de pinho, dando-lhe de beber na vasilha, pensava estar diante de umadas Ninfas que ficava na caverna; corria imediatamente e tirando-lhe a coroa que logo beijava,colocava-a sobre a cabeça, e ela, enquanto ele se

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 banhava nu, pegava sua roupa e a vestia, beijando-a antes também. Ora jogavam maçãs um para ooutro18, ora ornamentavam suas cabeças e um pen

teava os cabelos do outro, Cloé dizendo que oscabelos de Dafne pareciam grãos de mirto, porqueeram negros, e Dafne comparando o rosto de Cloéa uma bela maçã, porque era vermelho e branco. Asvezes ele lhe ensinava a tocar flauta, e quando elacomeçava a soprá-la, ele a tirava dela; depois

 percorriam com seus lábios todos os tubos da flautade uma ponta à outra, fingindo mostrar onde ela tinhaerrado, a fim de beijá-la elusivamente, beijando aflauta nos lugares tocados por sua boca.

[XXV] Como ele tocasse alegremente sob o

calor do meio-dia enquanto seus rebanhos ficavamà sombra, Cloé adormeceu sem perceber; Dafne ao percebê-lo, depôs sua flauta para olhá-la à vontade,sem precisar ficar envergonhado, e dizia para simesmo bem baixo essas palavras: “Oh! como dormem seus olhos! Como sua boca respira! Nem maçãs

nem os espinheiros floridos exalam um ar tão doce. Não ouso no entanto beijá-la; seu beijo fere ocoração, e me deixa louco, como o mel novo. Alémdisso, tenho medo de acordá-la. Ó cigarras importunas! não irão deixar que ela durma, tão alto gritam.E por outro lado esses cabritos não vão parar de bater

os chifres uns contra os outros. O lobos maiscovardes que raposas, onde vocês estão a esta hora,que não vêm atacá-los?”

[XXVI] Enquanto ele falava assim, uma cigarra perseguida por uma andorinha acabou caindo por

acaso dentro do seio de Cloé; assim a andorinha não pôde pegá-la, nem pôde suspender seu vôo, descendo

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até tocar com sua asa o rosto de Cloé, que acordousobressaltada, e não sabendo o que se passava, soltouum grito alto: mas quando viu a andorinha esvoa-

çando à sua volta, se tranquilizou, esfregando osolhos que ainda tinham vontade de dormir; e quandoa cigarra se pôs a cantar entre os seios da gentil

 pastorinha, como se nesse abrigo quisesse lhe agradecer por sua salvação, então Cloé novamentesurpreendida, gritou ainda mais alto, e Dafne riu; e

aproveitando essa ocasião, pôs a mão em seu seio,de onde retirou a tema cigarra, que não se calava,embora ele a segurasse em sua mão. Cloé ficousatisfeita ao vê-la, e beijando-a, tomou a colocá-lacantando sobre seus seios.

[XXVII] De uma outra vez eles ouviram no bosque uma pomba cujo arrulho dava prazer a Cloé,então ela perguntou a Dafne o que era que ela estavadizendo, e Dafne contou-lhe a história que eracostume contar. “Minha amiga, ele disse, antigamente existia uma moça bonita e encantadora, na florda idade como tu. Ela tomava conta das vacas ecantava muito bem; as vacas gostavam tanto de seucanto que ela as comandava só com sua voz; jamaislhes castigava com o cajado nem com o aguilhão;sentada à sombra de algum belo pinheiro, com acabeça coroada de folhas, ela cantava para Pã e Pítis19; as vacas ficavam tão extasiadas que não seafastavam dela. Ora não longe dali havia um belo

 jovem que cuidava dos bois, que também-sabiacantar, que se esforçava para rivalizar com o cantodela, com um canto mais forte, porque era homem,mas também doce, porque era jovem; de tal modoque as conseguiu atrair através do arvoredo e trouxe

 para perto de si seis das mais belas vacas do rebanho

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dela. A pobrezinha sentindo-se perturbada tanto porver seu rebanho diminuir quanto por ter sido vencidano canto, pediu aos deuses para ser transformada em

 pássaro a fim de não retomar à sua casa naquelasituação. Os deuses realizaram seu desejo, e atransformaram num pássaro da montanha, que gostade cantar sem parar como ela quando era moça, eassim até hoje se queixa de seu infortúnio, e diz quecontinua a procurar suas vacas perdidas.”

[XXVIII] Estes eram os prazeres que o verãolhes dava. Mas ao chegar a estação do outono, notempo em que os cachos estão carregados, certoscorsários de Tiro embarcados numa nau da regiãode Icária, para que não se pensasse que eram

 bárbaros, aportaram nessa costa, e desembarcaram.Protegidos por couraças e armados com espadas, pilharam tudo que puderam achar, como o vinho,muitos grãos, favos de mel, e chegaram mesmo aapanhar alguns bois e vacas de Dorcon. Em seuvaivém, eles acabaram, por um infeliz acaso, encontrando Dafne que se divertia à beira-mar, sozinho;

 pois Cloé, devido à sua condição de moça, nuncasaía de manhã muito cedo, por temor de encontraroutros pastores, que pudessem lhe causar algum mal;só mais tarde é que levava as ovelhas de Drias para

 pastar. Eles, ao verem este jovem forte e belo, e commais valor do que aquilo que pudessem roubar nos

campos, não quiseram mais perseguir as cabras, nem pilhar qualquer outra coisa, e então o levaram parasua nau, enquanto ele chorava e sem saber o quefazer, a não ser gritar por Cloé o mais alto que podia.

[XXIX] Ora quando estavam de Volta à sua nau

e iam pôr as mãos nos remos, Cloé chegou trazendo

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uma flauta nova para Dafne. Mas vendo aqui e alias cabras dispersadas, e ouvindo sua voz, pois elea chamava cada vez mais forte, ela jogou fora a

flauta, deixou o seu rebanho e correu atrás deDorcon, para pedir socorro. Ela o encontrou no chão,ferido pelos golpes de espada dos bandidos, malconseguindo respirar, de tanto sangue que perdera;mas quando ele reconheceu Cloé, a lembrança de seuamor o reanimou um pouco: “Cloé, minha amiga,

ele disse, eu vou morrer. Quis defender meus bois,mas os piratas, esses bandidos perversos, me feriramcomo podes ver. Mas Cloé salva Dafne; vinga-me;faz com que eles morram. Acostumei minhas vacasa seguir o som de minha flauta, e por mais longeque elas estejam, vêm para meu lado quando ouvem

o chamado. Toma-a, vai até a beira-mar, toca a áriaque ensinei a Dafne e que ele te mostrou. Faz soarminha flauta para chamar meus bois na nau. Essaflauta que ganhei como prêmio contra tantos pastorese vaqueiros, eu te dou; e em troca, eu te peçosomente, que me beijes antes que eu morra, chora-

me quando estiver morto, e pelo menos, quando foresvaquejar guardando teus animais nos campos, lem bra-te de mim. “

[XXX] Dorcon ao dizer essas palavras e receberdela um último beijo, deixou sobre seus lábios, com

o beijo, a voz e a vida ao mesmo tempo. Cloé tomoua flauta, colocou-a na boca, e tocou o mais alto que pôde, as vacas a ouviram e logo reconheceram o somda flauta e as notas da canção, e todas num sóimpulso se lançaram mugindo ao mar; e como todasse arremessaram ao mesmo tempo, com sua queda

o mar se entreabriu, virando a nau, fechando aságuas, submergindo tudo. As pessoas que mergulha-

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rara no mar logo voltaram à tona, mas nem todascom a mesma esperança de salvação. Pois os bandidos ainda estavam com suas, couraças, suas botas

longas, enquanto Dafne estava descalço, como quemconduz suas cabras pela planície, e quase nu, poisainda fazia muito calor. Deste modo, depois de nadaralgum tempo, eles foram puxados para o fundo porcausa do peso de suas armas; mas Dafne tirou as

 poucas roupas que vestia, e ainda assim tinha que

fazer muita força, pois só estava acostumado a nadarnos rios. A necessidade no entanto mostrou-lhe o quedevia fazer. Colocou-se entre duas vacas, e segurando-se nos chifres delas com as duas mãos, foicarregado sem esforço por elas, tão à vontade comose estivesse conduzindo uma carroça. Pois o boi nadamuito melhor e durante mais tempo do que o homem;e não há animal nenhum que os supere nisso, a nãoser os passáros aquáticos ou então os peixes; tantoé assim que qualquer boi ou vaca jamais se afogaria,se suas patas não amolecessem na água, do que dãotestemunhos vários detritos no mar, que até hoje sãochamados de Bósforo, isto é o trajeto ou passagem

dos bois.20

[XXXI] Eis como Dafne se salvou, escapandocontra toda esperança de dois grandes perigos, poisnem foi feito prisioneiro nem se afogou. Ao chegarà praia onde Cloé o esperava, chorando e rindo ao

mesmo tempo, ele se lançou em seus braços, perguntando porque ela tocava a flauta daquela maneira;e Cloé lhe contou tudo; que ela fora chamar Dorcon,que suas vacas tinham sido ensinadas a atender aosom de sua flauta como ele lhe instruíra, e que elehavia morrido. Ela só esqueceu ou talvez não tenha

querido lhe dizer que ela o tinha beijado.

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Foi assim que os dois tomaram a decisão decultuar a memória daquele que lhes tinha feito tanto

 bem, e foram juntos com seus pais e amigos sepultar

o corpo do infeliz Dorcon, sobre o qual jogaramterra, plantando à sua volta árvores esteréis, pendurando nelas algumas coisas que ele havia recolhidono campo, derramando leite sobre seu túmulo, aídeitando feixes de ramos, e quebrando flautas. Asvacas rugiam piedosamente enquanto corriam de um

lado para o outro como animais perdidos; coisa queos pastores e vaqueiros afirmavam ser o luto dosanimais pelo trespasse de seu dono.

[XXXII] Encerradas as exéquias de Dorcon,Cloé conduziu Dafne até a caverna das Ninfas onde

ela se banhou, e quando ela pela primeira vez em presença de Dafne banhou também seu belo corpoe liso, que ficava tão belo ao ser banhado; depoiscolheram juntos as flores da estação, fizeram ascoroas para as estátuas das Ninfas, e depositaramcomo oferenda a flauta de Dorcon sobre a rocha.Feito isto retomaram para suas cabras e ovelhas, queestavam todas deitadas no chão, sem pastar nem

 balir, cheias de tristeza e temor, como podemos crer,de não tomarem a ver mais nem Dafne nem Cloé.Mas logo que os viram, e que eles começaram achamá-las, levantaram-se imediatamente, e as ovelhas começaram a pastar, e as cabras a saltar balindo,como para festejar o retomo de seu pastor.

Mas por algum motivo, Dafne não conseguia sesentir contente, por ter visto Cloé nua, e descobertotoda sua beleza, que ele jamais vira antes. Antessentia o coração doente como se um veneno o

consumisse em segredo. Às vezes sua respiração era

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forte e ofegante, como se algum inimigo o tivesse perseguindo e prestes a alcançá-lo, outras vezes fracae desmaiada, como a quem falta de repente a força

e o fôlego; e o banho de Cloé lhe parecia maistemível que o mar do qual escapara. Em suma, preferia que sua alma continuasse prisioneira dos piratas, tal era a sua dor, pois como um rapazeducado nos campos não sabia ainda o que era a

 pirataria do amor.

 Notas

1. A criança fora abandonada, e os objetos depositados a

seu lado eram destinados a permitir mais tarde sua identificação pelos pais. Essa prática, assim como a adoção da qual é

indissociável, era corrente na Antiguidade; e é um tema

tradicional no romance e na tragédia, anunciando um destinoheróico ou mítico (ver Édipo). (N.E.)

2. O nome de cada um dos personagens (Longus toma o

cuidado de dar nome a todos eles) corresponde à sua função

romanesca ou à sua posição social. Dafne é um pastor lendáriode origem siciliana, considerado pela tradição folclórica como

um semi-deus; poeta e músico comparável a Orfeu, ele é àsvezes identificado ao deus Pã na condição de inventor da flautae da poesia bucólica; é por isso que os poetas bucólicos gregos

e latinos (Teócrito e Virgílio) lhe concedem um lugar essencialem suas obras; sua história (infeliz) é pouco conhecida, mas

o tema essencial é sempre a fidelidade no amor. O Dafne de

Longus tem como pai adotivo Lamo, o Cupido,  cujo nome

 pertence à comédia, de acordo com as características principais

do personagem; o nome de sua mãe adotiva, Mirtal, evoca

claramente o mirto,  planta consagrada à Vênus, e atesta por

conseguinte que o destino de Dafne está consagrado ao Amor.

(N.E.)

3. Este nome significa o Carvalho : os carvalhos com efeitodesempenham nessa história um papel protetor inteiramente

análogo ao do personagem; além disso são árvores sagradas,

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dedicadas a Júpiter ou a Baco. Mas existe uma categoria de

 Ninfas associadas às árvores que são chamadas Dríades: devido

ao papel das Ninfas nesta história, trata-se de uma relação que

não pode ser negligenciada. (N.E.)

4. A dança das ninfas, embora seu número não seja

indicado aqui (mais adiante será dito que elas são três), nos

convida a identificá-las como sendo as Graças, ou as Horas,

divindades que simbolizam a harmonia do mundo; por esse

motivo, o antro tem uma forma circular, como o mundo. A

associação destas Ninfas com o deus Amor possui o mesmo

sentido, já que o Amor é considerado o princípio universal daconcórdia. Mas a Ninfas simbolizam sobretudo a fecundidade

da terra, e dessa maneira são naturalmente associadas ao

nascimento, ao noivado e ao casamento. (N.E.)

5. Cloé, a Verdejante, é um dos nomes rituais de Deméter

(Ceres em latim), deusa da Agricultura e protetora das ativi

dades rurais, cuja filha Cora foi alimentada também pelas Ninfas numa gruta; este nome confere simbolicamente portanto

um estatuto semi-divino à jovem protegida dos deuses. O nome

de sua mãe adotiva, Napé, é geralmente interpretado como

significando Pequeno vale com bosques (existe uma região com

este nome em Lesbos). Mas os mitógrafos conhecem também,

entre as diversas categorias de Ninfas, as  Napéias  que teriam

como função velar pelos pastos e os pomares; assim é que onome dos dois pais adotivos de Cloé está de acordo com seu

 papel de ajudantes das Ninfas. (N.E.)

6. Esse meninote, claro, é o Amor, em grego Eros, o deus

mais conhecido e o mais fácil de identificar da mitologia pagã

(as asas, o arco e a aljava são seus principais atributos). (N.E.)

7. Dafne fabricava assim a flauta tradicional dos pastores,

a siringe ou a flauta de Pã, cuja invenção mítica será contada

mais adiante na segunda parte (livro II, XXXIV). (N.E.)

8. O fragmento que começa aqui (toda a cena do banho

e o que se segue até o trecho XXIII dessa primeira parte) faltava

em todos os manuscritos conhecidos, e só foi reencontrado em

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1810 por Courier. Amyot não pôde traduzir esse trecho, o que

temos portanto é um pastiche desse trecho na linguagem e estilo

da Renascença: pode-se dizer que a imitação é perfeita. (N.E.)

9. Esta vestimenta é identificada no texto grego comosendo uma nébrida báquica,  isto é a roupa das fiéis de Baco;

mais tarde esse deus intervirá diretamente na narrativa, mas até

aqui só aparece através de alusões como essa, perfeitamente

clara para os contemporâneos de Longus. (N.E.)

10. Este julgamento corresponde à hierarquia pastoral, tal

como é definida pelos poetas bucólicos: o boiadeiro, mais rico,ocupa o nível mais elevado na ordem social, e o guardador decabras é mais pobre do que o guardador de ovelhas. Mas nessa

disputa entre Dafne e Dorcon, Longus inverte de fato ahierarquia, pois esse vaqueiro é um persongem ridículo: o

 próprio nome de Dorcon, que significa o cabrito montês, sugereao mesmo tempo essa reversão de valores e a inferioridade do

cabrito montês em relação ao cabreiro  Dafne (que além disso,na lenda, era um vaqueiro). A justa poética entre os dois

 pastores é aliás um dos temas obrigatórios na poesia pastoral.

(N.E.)

11. Júpiter foi amamentado pela cabra Amaltéia, que lhedeu o famoso Corno da Abundância. (N.E.)

12. Pã, deus da Natureza e dos pastores, é representado

como um sátiro, a parte de cima de seu corpo é a de um homem,

mas com chifres, e a parte de baixo é de bode. (N.E.)

13. Pão feito com as camadas exteriores e mais glutinosas

do miolo do grão de trigo. (N.T.)

14. Na época de Longus, Baco era representado de maneira

geral como um adolescente imberbe. A dupla identificação

simbólica de Dafne com Pã e com Baco esboçada aqui serádesenvolvida na continuação de suas aventuras. (N.E.)

15. Aqui termina a lacuna restaurada por Courier. O

lamento que se segue é uma paródia da elegia amorosa,

verdadeira proeza do gênero pastoral. (N.E.)

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16. Literalmente, em grego: infantilidade de pastor. Estaobservação terá um eco na última Frase do romance (ver nota

1, do livro IV). (N.E.)

17. A mistura de leite com vinho, assim como os atributosque Cloé leva consigo, marcam a associação de Pã e de Baco(um aspecto tradicional pois o deus pastoral faz normalmente

 parte do séquito de Pã com outros sátiros); o pinheiro é a árvoreconsagrada a Pã, e a pele de corça ou nébrida é a roupa das

Bacantes. No começo do Livro II, uma cena da colheita de uvacomeçará a explicitar o papel conjunto de Pã e Baco no

romance: mas é a intervenção direta de Pã no episódio doseqüestro de Cloé (Livro II, XXVI) que irá confirmar a relaçãoestreita entre as duas divindades. (N.E.)

18. As maçãs simbolizavam as preliminares amorosas eeram em geral associadas na pintura antiga aos jogos dos

 pequenos Amores. A maçã é com efeito um dos principais

atributos de Vênus. (N.E.)

19. A Ninfa Pítis, cujo nome significa o pinheiro,  era

amada por Pã, mas tal como Siringe, transformada em caniço,

ela foi transformada na árvore que traz o seu nome por terdesprezado o deus. Por isso o pinheiro é, junto com a flautaque ele inventou a partir do caniço, o principal atributo de Pã.

A história de Siringe será contada no livro II (capítulo XXXIV)e uma terceira lenda (a de Eco) apresentando Pã na mesmafunção de amante rejeitado será relatada no livro III (capítulo

XXIII). No entanto a história da pomba aqui contada por Dafnenão é um mito, mas uma simples “história de amor”, pois nelasó intervém heróis humanos, como na própria história de Cloé,

enquanto as outras relatam os amores dos deuses; trata-se da

 primeira fase de um a iniciação que irá prosseguir através dos

contos. (N.E.)

20. A etimologia é correta, mas a explicação fantasiosa.

A origem do nome Bósforo é atribuída em geral à lenda deEuropa raptada por Júpiter que, disfarçado de touro, transpõe

com um salto o estreito que separa a Europa da Ásia. (N.E.)

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LIVRO SEGUNDO

[I] O outono já estava em sua plenitude e otempo das colheitas chegara, todos no campoestavam ocupados com suas tarefas; uns reparavam os lagares, outros limpavam as jarras; essesamolavam suas podadeiras, aqueles teciam seuscestos; uns ajustavam a mó para triturar as uvas

esmagadas, outros preparavam a verga de vime doqual se tinha tirado a casca de tanto bater, coma qual se faziam archotes para extrair o sumodurante a noite; e por esse motivo Dafne e Cloé,deixando de levar seus animais aos campos poruns dias, dedicavam-se a ajudar com o esforço de

suas mãos esse trabalho. Ele carregava os cachoscolhidos dentro de uma alcofa e os pisava nadoma, depois ajudava a encher as jarras; ela porsua vez preparava a comida para os vindimadores,e lhes dava o vinho do ano anterior; depois iatambém colher os cachos mais baixos da vinha

que ficavam ao alcance de suas mãos. Pois a maior parte das vinhas de Lesbos são baixas, ou pelomenos não são cultivadas perto das árvores maisaltas; e os ramos descem até o chão, estendendo-se aqui e ali como heras, de modo que uma criançaainda nos cueiros, por assim dizer, pode alcançaras uvas.

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[II] E como é hábito nas festas desse tipoconsagradas a Baco, pelo nascimento do vinho, um

 bom número de mulheres dos campos vizinhos

foram chamadas para ajudar, as quais não tiravamos olhos de Dafne, e o elogiavam dizendo que eratão belo quanto Baco; uma delas, mais atirada queas outras, beijava-o de vez em quando, o quedeixava-o bem satisfeito, mas não a Cloé que sentiaciúmes. Os homens, por sua vez, nas dornas dos

lagares, dirigiam muitas vezes a palavra a Cloé, eao vê-la se agitavam como os sátiros diante doaparecimento de uma bacante1, dizendo que comtodo gosto se deixariam transformar em carneiros

 para serem guardados por uma pastora como ela;com o que Cloé tinha prazer, mas Dafne se zangava.

Por causa disso, tanto um quanto o outro ficavama desejar que as colheitas terminassem, para poderretomar aos campos como de costume, e para ouvirem lugar do barulho e dos gritos dos vindimadores,o som da flauta ou o balido dos rebanhos.

Em poucos dias tudo estava encerrado, a uvacolhida, a vindima consumada, o vinho nas jarras,sem mais necessidade de utilizar tantas pessoas;então eles recomeçaram a conduzir seus animais paraos campos como antes, levando para as Ninfascachos de uva ainda pendentes dos galhos como

 primícias da colheita, iam saudá-las e celebrá-lascom grande alegria, pois jamais tinham sido preguiçosos. De manhã cedo quando seus rebanhos começavam a pastar, eles iam em primeiro lugar saudá-las, e no fim do dia quando voltavam do pasto, iamimediatamente adorá-las; e jamais deixavam de levar

alguma oferenda, quer fossem flores, frutos, às vezesramos verdes e de outras, uma libação de leite;

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motivo pelo qual iriam receber das deusas granderecompensa. Enquanto isso divertiam-se como dois

 jovens galgos, saltavam, tocavam flautas juntos,

cantavam, lutavam um com o outro, imitando seuscarneiros e seus bodes.

[III] Quando estavam assim a se divertir, apareceu um velho vestindo um grosso casaco de pelede cabra, tamanco nos pés, uma bolsa de viagem

também muita velha, que se sentou perto delesdizendo: “Meninos, eu sou o lendário Filetas2, queoutrora cantei muitas canções para as Ninfas, muitasvezes toquei flauta para o deus Pã, conduzi manadasde bois só com a música, e venho até vós agora, paradizer o que eu vi e anunciar o que ouvi.”

[IV] “Eu tenho um belo jardim que plantei,cavei, semeei, ornei com minhas próprias mãos3,agora na época de minha velhice quando deixei de pastorear os animais nos campos. Há neste jardimtudo que se pode esperar de acordo com a estação;na primavera, papoulas, rosas, lírios, violetas simplese as de flores dobradas; no verão, peras, maçãs detodos os tipos; agora na época do outono, uvas, figos,romãs, mirtos verdes; e a cada manhã em grandes

 bandos todos os tipos de pássaros, uns para sealimentar, outros para cantar; pois o pomar protegido

 pela sombra e irrigado por três fontes, está tão cheio

de árvores plantadas, que se o muro que o cerca fosseretirado, iria parecer um bosque.4

“Hoje por volta do meio-dia, eu vi um meninotesob meus mirtos e romãzeiras, que segurava em suasmãos romãs e grãos de mirto, branco como leite,

vermelho5 como fogo, asseado e limpo como se

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tivesse acabado de se banhar. Estava nu, só, e sedivertia em colher meus frutos como se o pomarfosse dele.6 Corri para pegá-lo, com medo que

quebrasse algum arbusto, de tanto que ele se agitavae se mexia; mas ele escapou rapidamente de minhasmãos, ora se encostando nas roseiras, ora se escondendo sob as papoulas, como uma perdiz. Eu já corriatrás de cabritos de leito, e trabalhei pegando osveados novos que saltavam em volta de sua mãe;

mas isto era completamente diferente, e não havia possibilidade alguma de agarrá-lo. Assim logo mesenti cansado, velho como sou, e apoiado em meu

 bastão, fiquei a vigiar para que ele não fugisse, emseguida perguntei se era um de meus vizinhos, e porque vinha colher os frutos do jardim de outro. Elenão me respondeu nada; mas se aproximando demim, se pôs a sorrir delicadamente, jogando sobremim grãos de mirto o que, não sei como, amoleceue enterneceu meu coração, de maneira que não maiso persegui. Por fim pedi para que viessse até mimsem nada temer, jurando por meus mirtos que odeixaria ir quando ele quisesse, com as maçãs e

romãs que eu mesmo lhe daria, permitindo que pegasse os frutos de minhas árvores e colhesse asminhas flores tanto quanto quisesse, desde que medesse apenas um beijo.

[Y] Então se pondo a rir com um jeito alegre,

com tanta graça e delicadeza, me dirigiu uma voztão amável e doce, que nem a cotovia, nem orouxinol, nem o cisne, ainda que fosse tão velhoquanto eu7, jamais poderiam igualar, dizendo: “Quantoa mim, Filetas, não pretendo te beijar; pois tenhomais vontade de ser beijado do que tu tens vontade

de voltar à tua juventude: mas toma cuidado para

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que o que me pedes não seja nocivo e poucoconveniente à tua idade, porque tua velhice não iráte isentar de querer me perseguir, quando me beijares; e não há águia, nem falcão, nem qualqueroutro pássaro de rapina, com asa tão rápida que possame alcançar. Não sou nenhuma criança, apesar deminha aparência; sou mais antigo que Saturno, maisantigo do que o tempo.8Eu te conheço desde quandoainda estavas na flor da idade, quando guardavas no prado perto daqui um rebanho de vacas bonitas erobustas, e eu ficava perto de ti quando tocavas aflauta sob essas sebes, amorosas de Amarílis.9 Masnão me vias, embora eu estivesse com tua amiga,que por fim te dei, e com quem tiveste belos filhos,que agora são bons lavradores e vaqueiros; e nomomento eu governo Dafne e Cloé; e depois de tê-

los juntado hoje de manhã, vim até o teu pomar, parater com tuas árvores e flores, e me banhar em tuasfontes; que é a causa de que todas as plantas e floresde teu jardim sejam tão belas de ser ve, pois é meu

 banho que as irriga.10Olha para ver se achas um sógalho de árvore quebrado, um fruto sequer caído ou

estragado, algum pé de erva ou de flor desfolhada,ou alguma fonte perturbada; e te regozija de ser feliz, pois daqui apenas tu entre os homens já na velhice,ainda és amado por esta criança.”

[VI] “Isto dito, ele se alçou acima dos mirtos

como faria um pequeno rouxinol, e saltando de galhoem galho por entre as folhas, subiu até o alto. Visuas pequenas asas, seu pequeno arco e suas flechasna aljava às suas costas, e fiquei tão admirado quelogo em seguida não consegui mais vê-lo nem àssuas flechas. Ora, se não vivi em vão tantos anos,

e se não perdi o juízo11 com o avançar da idade, eu

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lhes asseguro, meus filhos, que estais consagradosao Amor, e que o Amor cuida de vós.”

[VII] Eles se sentiam tão à vontade ao ouviresse discurso como se estivessem ouvindo algumafábula bela e agradável. Em seguida, perguntaram-lhe o que era o Amor; se era um pássaro ou umacriança, e qual era seu poder. Filetas respondeu-lhes imediatamente: “Amor é um deus, minhas

crianças. Ele é jovem, belo, tem asas; por essemotivo gosta da juventude, procura a beleza eencanta as almas, tendo mais poder que o próprioJúpiter. Reina sobre os astros, os elementos, governa o mundo, e conduz os outros deuses como vós,com o cajado, conduzis vossas cabras e ovelhas.As flores são obra do Amor; as plantas e as árvoressão de sua lavra; é por ele que os rios correm, eos ventos sopram. Já vi touros enamorados; elesmugiam como se tivessem sido picados pelomoscardo; vi o bode amar sua cabra, a segui-la portoda parte. Eu mesmo já fui jovem e amei Amarílis;mas então eu não me lembrava nem de comer nem

de beber, não conseguia repousar; minha almasofria; meu coração palpitava; meu corpo tremia;eu chorava, como se tivesse apanhado; nada falavacomo se estivesse morto; lançava-me aos rios comose um fogo me queimasse; invocava Pã, quetambém foi ferido pelo amor de Pítis; agradecia ao

Eco, que chamava Amarílis depois de mim, e dedespeito quebrava minha flauta pois ela sabiaconduzir minhas vacas, mas não podia chamarminha Amarílis. Pois não há remédio, nem poção,nem sortilégio, nem canto, nem palavras que curemo mal do amor, a não ser beijar, abraçar, deitar

 juntos nus.”

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[VIII] Filetas, depois de lhes ter ensinado, tudoisso, foi embora, levando como pagamento dado

 por eles alguns queijos e um cabrito novo. Mas

assim que ele se foi, os dois ficando a sós pela primeira vez depois de ter ouvido o nome de amor,acharam-se em aflição ainda maior que antes e devolta à suas casas, passaram a noite a comparar oque sentiam dentro de si mesmos com as palavras

 pronunciadas pelo velho: “Os amantes sofrem, nós

sofremos; eles não se importam em beber nemcomer, nós também não; eles não podem dormir,nem nós podemos fechar as pálpebras; eles pensamque queimam,nós sentimos o fogo a queimar dentrode nós; a única coisa que desejam é ver um aooutro; ai! não pedimos senão que a manhã chegue

logo. Não há dúvida que se isto é o que chamamde amor, nós dois estamos enamorados e no entantonão o sabíamos. Mas se é amor o que sentimos,eu sou amado; o que me falta então? E porqueficamos assim tão perturbados? Filetas nos disse averdade; esse meninote que ele viu em seu jardim,

foi ele mesmo que apareceu outrora a nossos paise lhes disse em sonho que nos mandassem cuidardos animais nos campos. Como podemos apanhá-lo? Ele é pequeno e fugirá; escapar dele não é

 possivel, pois tem asas e nos alcançará. Será precisorecorrer às Ninfas? Pã não ajudou Filetas quando

ele se apaixonou por Amarílis. Vamos tentar osremédios de que ele falou, beijar, abraçar-nos,deitarmos juntos nus. E verdade que está frio; masnós o suportaremos.”

[IX] Assim a noite foi para eles uma segundaescola na qual rememoraram os ensinamentos deFiletas.

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 Na manhã seguinte ao romper do dia eleslevaram seus animais para os campos, se.beijaramassim que se viram, o que não tinham feito até agora,

e passando os braços um em volta do outro, seabraçaram; mas não ousavam o último remédio, sedesnudar e deitar juntos. Era ousado demais, não só

 para a jovem pastora que era Cloé, como para ele,um guardador de cabras. Assim não conseguiramdescansar na noite seguinte mais do que na anterior,

e foram levados a relembrar o que tinham feito, ea lamentar o que tinham deixado de fazer, dizendo para si mesmos: “Nós nos beijamos, e de nada nosserviu; nós nos abraçamos e não conseguimos nada.E preciso admitir portanto que deitar juntos é overdadeiro remédio do amor; é preciso tentar. Poiscertamente há algo mais do que no beijo.”

Depois de tais pensamentos, seus sonhos foramde amores e de beijos, como somos levados aacreditar, e o que não tinham feito durante o dia, eleso faziam sonhando que se deitavam nus juntos. Logoao amanhecer, levantavam-se mais arrebatados do

que nunca, e enquanto procuravam seus animais noscampos com assovios, tudo parecia retardar seuencontro para repetir os beijos, e quando se viramde longe, correram sorrindo um para o outro, depoisse beijaram e se abraçaram; mas o terceiro ponto nãochegava nunca; pois Dafne não ousava falar, nem

Cloé queria começar, até que a ocasião os conduziua fazer assim.

[X] Estavam sentados sob o carvalho um aolado do outro, e tendo desfrutado do prazer de beijar, não podiam se saciar da volúpia. O abraço

acompanhava o beijo ao mesmo tempo e quando

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num beijo aindà mais firme, Dafne a abraçou maisforte, Cloé sem pensar no que fazia se deitou delado, e Dafne seguindo a boca de Cloé para não

 perder o beijo, também se deixou cair de lado, osdois reconheceram nessa pose a forma de seussonhos, ficaram durante muito tempo deitadosdessa maneira, abraçando-se estreitamente como seestivesem ligados, sem nada mais buscar: mas

 pensando que este fosse o último ponto do prazer

amoroso, consumiram-se em vãos enlaçamentos amaior parte do dia, e o anoitecer veio encontrá-losassim; e então amaldiçoando a noite, eles seseparam e levaram de volta os rebanhos ao está

 bulo. E talvez fossem levados a fazer alguma coisacom conhecimento de causa, se não tivesse sobre

vindo um tumulto que iremos contar.

[XI] Os jovens ricos de Metimo querendo desfrutar alegremente da época da vindima e se divertirum pouco, lançaram um barco ao mar, colocaramseus criados para remar e chegar às paragens doterritório de Mitilene, onde há abrigos por toda a parte para que os navios ancorem, uma bela praia para se banhar, cercada por belos edifícios, com jardins, parques e bosques, uns criados pela natureza,outros produzidos pela mão do homem. Passeandoao longo da costa, descendo aqui e ali, conformequisessem, eles não causavam mal nem perturbavam

ninguém, mas se divertiam juntos com vários passatempos. Ora com anzóis feitos com um fio na pontade um caniço comprido, pescavam, do alto de umrecife de frente para o mar, peixes que em geralcirculam ao longo dos rochedos; ora seguiam comseus cães e suas redes as lebres que fugiam das

vinhas com o barulho dos vindimadores; às vezes

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 procuravam as aves, quando o lugar e a ocasião eramfavoráveis, e com laços de nós corredios pegavamos patos selvagens, gansos, abetardas e uma ou outra

caça da planície, com as quais, além do prazer, proviam sua comida. Quando precisavam de maisalguma coisa, iam ao povoado mais próximo, pagando o preço e até mais. Só precisavam de pão e vinho,e de hospedagem também; pois não achavam seguro,sendo a época do outono, deitar-se perto do mar e,

 por isso levavam o barco para a terra, com medode alguma tormenta enquanto dormiam.

[XII] Mas algum camponês das redondezasque estava trabalhando com uma corda com a qualse suspende a mó para moer a vindima, vendo que

ela ficara gasta ou se rompera, veio de noite atéa beira do mar e achando o barco sem vigia,desamarrou a corda que o prendia, e levou-a parasua casa para usá-la de acordo com sua necessidade. De manhã estes jovens procuraram a corda por toda a parte; mas ninguém confessava tê-la pegado; motivo pelo qual, depois de discutiremum pouco com seus hóspedes, continuaram seucaminho, e tendo andado cerca de duas léguas,chegaram a esses campos onde estavam Dafne eCloé, já que aí, como lhes pareceu, havia uma bela planície para dar caça às lebres. Ora eles nãotinham mais corda para prender o barco, e por isso

eles pegaram a mais longa tira de verga de vimeque puderam encontrar, torceram-na e fizeramuma corda, com a qual amarraram o barco em terrafirme, e depois com seus cães saíram para caçar,colocando suas armadilhas nas passagens que

 julgaram as mais apropriadas. Esses cães correndo

 para lá e para cá, e latindo, assustaram as cabras

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de Dafne, as quais abandoram imediatamente asmargens e fugiram para perto do mar, onde nãoencontrando nada para pastar na areia, as mais

ousadas se aproximaram do barco e roeram acorda na qual estava amarrado.

[XIII] O mar estava um pouco agitado por causado vento; o barco uma vez desamarrado, foi levado

 pelas ondas que o afastaram da beira e o levaram para o mar; quando o perceberam os caçadorescorreram, uns para a beira da praia, os outros parachamar seus cães, e todos juntos fizeram tal ruídoque as pessoas das redondezas, pastores, vindima-dores, trabalhadores, ao ouvi-los, vieram de todas as

 partes; mas não havia mais o que fazer. Pois o ventosoprando cada vez mais forte, levava o barco ao

sabor da ondas para tão longe, que logo ele se perdeude vista.

Com o que os jovens irritados além da conta, porterem perdido seu barco, os bens e tudo, procuraramo cabreiro que devia guardar suas cabras, e encon

trando Dafne entre aqueles que estavam presentes,cheios de cólera começaram a bater nele e a quererdespi-lo; um deles que levava um cão, tirou o laçoque o prendia e pegou as duas mãos de Dafne para

 prendê-las atrás das costas. Ele, ao se ver agredido por eles, gritava, implorava a ajuda de alguém,

chamando sobretudo por Lamo e Drias, os quais alichegando, dois velhos rijos com as mãos rudes,calejadas pelo trabalho dos campos, tomaram suadefesa contra os jovens metimianos com sucesso,mostrando-lhes que era preciso primeiro ouvir orapaz, para ver se ele tinha culpa, e que cada umdeclarasse suas razões.

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[XIV] Os de Metimo concordaram, e de comumacordo o vaqueiro Filetas foi eleito como árbitro,

 porque era o mais antigo entre os presentes e entreos da aldeia, e tinha a fama de ser homem deconfiança e leal. Assim os jovens tomaram a palavra,fazendo em poucas e boas palavras sua queixa diantedo juiz vaqueiro da seguinte maneira:

“Nós desembarcamos nestes campos para caçar,e havíamos amarrado nosso barco na margem comuma corda de verga, depois saímos para caçar comnossos cães, e eis que as cabras dele vieram,comeram a corda que prendia nosso barco, deixan-do-o solto. Vós mesmos pudestes vê-lo sendolevado pelo mar. E o que havia dentro dele paranós, quanto pensais que valha? Quantas roupas e

equipamentos ! Quantos aprestos para nossos cães!e muito mais dinheiro do que é suficiente paracomprar todos esses campos ! Para compensar tudoisso, queremos levar esse malvado cabreiro, que faztão mal a sua obrigação que vem dar com suascabras nas praias, como se fosse um marinheiro.”

[XV] Eis o que disseram os metimianos. Dafneestava todo moído pelos golpes que recebera; masao ver Cloé, ele não se intimidou e lhes respondeucom ousadia. “Eu guardo bem as minhas cabras, enão há ninguém em toda a aldeia que alguma vez

tenha se queixado que uma delas tenha pastado emseu jardim, nem quebrado ou estragado um broto emsua vinha. Mas estes aí são maus caçadores, e têmcães mal adestrados, que só sabem correr para lá e para cá, latindo tanto e tão forte, que assustaram asminhas cabras, e as afugentaram da planície e da

montanha para o mar, como se fossem lobos. Ora

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elas comeram a corda de vime; será que elas podiamcomer o tomilho ou o serpilho? O barco delesafundou no mar; mas foi por  causa da  tormenta;minhas cabras não foram a causa. Será que dentro

dele havia assim tantos bens, tantas roupas, tantodinheiro? E quem seria tolo bastante para acreditarque um barco carregando tudo isso, estivesse amarrado apenas por uma corda de vime?”

[XVI] Ao dizer essas palavras, começou a cho

rar e provocou piedade em todos os espectadores;de tal modo que Filetas, que devia dar sua sentença

 jurou pelo deus Pã e pelas Ninfas que Dafne nãocometera mal algum, nem suas cabras, e que a culpa,se culpa havia, era dos ventos e do mar, sobre osquais não tinha domínio para fazê-los reparar. No

entanto o bom Filetas não conseguiu contentar comsuas palavras os metimianos; furiosos eles agarraramimediatamente Dafne, e queria amarrá-lo para levá-lo, mas os camponeses revoltados com essa atitudelançaram-se, aos gritos, contra ele, como um bandode estorninhos, e tiraram Dafne de suas mãos, que

se defendia muito bem e também contra-atacava.

[XVII] Foi assim que com pedradas e bastonadas,eles expulsaram os metimianos e só deixaram de

 persegui-los, depois que os levaram para fora de seuterritório. Dafne e Cloé ficaram sós, ela ficou à

vontade para levá-lo até a caverna das Ninfas ondelavou o rosto dele todo manchado pelo sangue queescorrera do nariz; depois tirando de sua bolsa um

 pouco de queijo e de doce de queijo, deu-lhe paracomer, e para consolá-lo lhe deu com sua boca suaveum beijo mais doce que o mel.

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[XVIII] Eis como Dafne escapou desse perigo:mas a coisa não parou por aí. Pois os jovens deMetimo, voltaram para casa a pé, em vez deretomarem em seu belo barco; feridos e aborrecidos,

quando tinham partido alegres e bem dispostos,reuniram o conselho da cidade, ao qual solicitaramcom roupa e ar de suplicantes, vingança pelo ultrajeque tinham sofrido, não dizendo uma só palavra quefosse verdade, com medo de que se contassem o fatocomo tinha acontecido, todos fossem zombar deles

 por terem apanhado de camponeses, mas sim acusando gravemente os mitilinianos de tê-los pilhado,e roubado o seu barco sem qualquer acordo, comose fosse numa guerra.

Os de Metimo acreditaram imediatamente no que

eles diziam, já que viram como estavam feridos; eao mesmo tempo julgando como coisa justa erazoável vingar um tal ultraje feito aos filhos dasmais nobres casas da cidade, deliberaram imediatamente uma guerra contra os mitilianos, sem lhesenviar nem arauto nem proclamação, e ordenaramque seu capitão colocasse imediatamente no mar dezgaleras para destruir tudo quanto encontrassem emsua costa. Consideraram que não seria seguro nemsábio aventurar uma frota maior devido à aproximação do invemo.

[XIX] No dia seguinte o capitão já reunira toda

sua tripulação, e usando para evitar demora ossoldados como remadores, partiu para saquear todasas terras dos mitillianos próximas do mar, tomandoà força o gado, o grão, vinho em quantidade, poisa vindima acabara de ser realizada, e fazendo entreas pessoas que trabalhavam no campo grande núme

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ro de prisioneiros; e desembarcando também ali ondeDafne e Cloé guardavam seus rebanhos, correu aregião, destruindo e pilhando tudo que encontrava.

Dafne naquele momento não estava com seu rebanho; estava no bosque colhendo ramos verdes paradar no inverno a seus cabritos, e vendo do alto dasárvores os inimigos na planície, escondeu-se no' ocode um velho carvalho. Cloé, que permanecera como rebanho, correu para salvar-se e procurou abrigono antro das Ninfas, mas perseguida até aí, rogouem nome das Ninfas que os soldados não fizessemmal nem a ela nem às suas cabras; mas tudo em vão.Pois os metimianos, depois de ofenderem e zombarem das estátuas das Ninfas, levaram a ela e àscabras, espancando-a com vara de azevinho, comose fosse uma cabra ou uma ovelha.

[XX] E vendo que sua galera já estava cheia comtodo tipo de saque, decidiram não ir mais adiante,retomando o caminho de suas casas, temendo oinverno e os inimigos.

Os metimianos partiram com a força de seusremos, mas lentamente, pois o tempo estava tãocalmo, que não havia vento algum; e Dafne saindode seu esconderijo, depois que passara todo o

 barulho, foi até à planície onde seus animais pastavam como de costume, mas· não vendo nem suas

cabras, nem as ovelhas, nem Cloé, mas só os camposvazios, e a flauta com que Cloé se distraía, ali jogada,

 pôs-se a gritar e chorar, e suspirando amargamente,corria ora sob uma sebe12 à sombra da qual; elescostumavam se sentar, ora à beira-mar, parà ver sea encontrava, e ora no antro das Ninfas- para onde

a vira fugir, e aí, se jogando por terra diante de suas

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estátuas, queixava-se a elas, dizendo que o tinhamabandonado à sorte.

[XXI] “Cloé, ele dizia, acaba de ser seqüestradadiante de vossos altares, e vós a tudo assististes e peijnitistes, ela gue fazia para vós belas guirlandasde flores, ela que vos oferecia sempre o primeiroleite, ela q^e vos deu esse flajolé13 que vejo pendurado bem aqui! Jamais lobo algum me roubou umasó cabra, e os inimigos agora me roubaram todo o

rebanho e também minha companheira pastora.Minhas cabras, eles vão matá-las e esfolá-las imediatamente; as ovelhas, eles vão sacrificá-las aosdeuses; e Cloé ficará em alguma aldeia longe demim. Como hei de ousar me apresentar agora diantede meu pai e de minha mãe, sem minhas cabras, sem

Cloé, nesse estado miserável; pois não há maisanimais que eu possa guardar. Não, não sairei daqui,.espejando morte ou outros inimigos que me levemtambém. Ai de mim! Cloé, sofres como eu? Lem

 bras-te desses campos? Não sentes falta das Ninfase de mim? Ou será que nossas ovelhas e cabras,

 prisioneiras como tu, te reconfortam?

[XXII] Mal terminara de dizer essas palavras, ocoração cheio de tristeza, de lágrimas, caiu num sono profundo e as três Ninfas lhe apareceram14, sob aforma de mulheres grandes e belas, semi-nuas, os

 pés descalços, os cabelos soltos, em tudo semelhantes às estátuas. Ele compreendeu logo que elastinham se apiedado dele; depois a mais velha delasJhe disse reconfortando-o: “Não te queixes de nós,Dafne; temos por Dafne o mesmo cuidado que tumostras. Mostramos piedade por ela desde que avimos nascer, e abandonada nesÇe antro, cuidamos

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dela e a alimentamos. Pois é preciso que saibas, nãohá nada de comum entre Cloé e Drias e seu rebanhotassim como nada tens em comum com Lamo.Quanto a ela, já providenciamos tudo. Ela não se

tomará prisioneira desses soldados de Metimo, nemserá parte de seu saque. Pã, que está ali sob o

 pinheiro, e que vós só honrais com algumas florzi-nhas, foi a ele que pedimos para socorrer Cloé,

 porque é ele que freqüenta esses guerreiros, deixandoo repouso dos campos.15A esta hóra, ele já marcha,

como inimigo perigoso, contra os homens de Mêtimo.Portanto não te aflijas, mas levanta-te e vai consolarLamo e Mirtal, que se lançaram ao chão como tu,crendo que tinhas sido seqüestrado e levado nasgaleras. Amanhã tua Cloé voltará com vossas ovelhas e cabras; e assim poderás guardá-las de novo

e tocarás tua flauta. Enquanto isso Amor tofnaráconta de vós.”

[XXIII] Dafne ao ouvir e ver tais coisas, levàn-tou-se de repente em sobressalto, e chorando tantode alegria quanto de tristeza, adorou as Ninfas,

 prostemado diante de suas estátuas, e lhes prometeu,assim que Cloé voltasse sã e salva, sacrificar-lhesa mais gorda de suas cabras; e correndo para o

 pinheiro sob o qual èstava o deus Pã representadocom os pés de um bode, dóis comos na cabeça,segurando com uma das mão uma flauta, e com a

outra um bode, tambéín o adorou, e lhe rogou φ βfizesse com que Cloé voltasse logo, promètendo-lheda mesma maneira sacrificar um bode, e só aoentardecer já com o sol poente, é que ele cessou suaslágrimas e seus votos para o regresso de Cloé. Porfim apanhando os ramos que colhera, regressou para

casa, onde aliviou a aflição de Lamo e Mirtal, e os

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encheu de júbilo; depois comeu um pouco e foidormir; mas não deixou de chorar, nem de fazer suaoração às Ninfas para que elas lhe aparecessem de

novo, e para que o dia chegasse logo, e com o dia,segundo a promessa delas, Cloé. Jamais uma noitefoi tão longa para ele. Agora vejamos como ela se

 passou.

[XXIV] O capitão de Metimo depois navegar por quase três milhas, quis dar uma trégua a seushomens cansados depois de haver percorrido toda aregião, e achando um promontório que entrava pelomar adentro, cuja extremidade oferecia duas pontasà maneira de um crescente, um abrigo tão seguroquanto um porto, lançou sua âncora sobre um a rochaalta e reta, sem contudo atracar, a fim de se proteger

de qualquer incursão vinda da margem, e assim permitiu que seus homens restaurassem suas forçase se divertissem em paz. Tendo a bordo grandeabundância de víveres que haviam pilhado, eles se

 puseram a comer, beber e festejar, como se faz depoisde uma vitória. Mas quando o dia já ia terminando

e a noite pôs fim à sua celebração, perceberam derepente que havia um incêndio em terra, e ouviramna direção do alto mar um ruído longínquo, comose fossem os remos de uma grande frota que viessecontra eles. Uns gritavam pelas armas, outros chamavam seus companheiros: uns pensavam que já

tinham sido feridos, outros acreditavam ver umhomem morto estendido diante deles. Em suma,havia um grande tumulto como num combate noturno; e no entanto, não havia um só inimigo.

[XXV] Depois de uma noite tão terrível, a

chegada do dia os atemorizou mais ainda. Pois

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viram os bodes e as eabras de Dafne, com ramosde heras com cachos enrolados em seus chifres16;ouviram as ovelhas e os carneiros de Cloé que

uivavam como lobos; e a ela própria viram coroada por ramos de pinheiro.17E no mar também ocorriamcoisas muitas estranhas de se contar. Pois quando

 pensaram em levantar as âncoras; elas ficaram presas no fundo; quando tentavam usar seus ramos para navegar, eles se quebravam. Os delfins18

saltavam em volta das galeras, e batendo com suascaudas nela, iam provocando rachaduras. E ouvia-se do alto da rocha um som de flauta de sete canascomo a dos pastores; mas esse som não era nadaagradável aos ouvidos como o som de uma flautacomum, mas ao contrário assustava aqueles que oouviam como o clamor de uma trombeta de guerra:com o que ficaram possuídos por um terror maravilhoso19, e correram a pegar as armas, dizendo queeram os inimigos que vinham atacá-los, e não sesabia por onde; e então desejaram que a noitevoltasse, como se fosse melhor haver trevas quandoeles chegassem.

Ora não deixava de haver entre eles quemconservando ainda o juízo, reconhecesse com clarezaque todos esses prodígios vinham do deus Pã quese irritara com eles por causa de algum delito, mascuja causa não podiam adivinhar, já que nada haviam

tocado que julgassem pertencer a Pã; até que porvolta do meio-dia o capitão, não sem expressa ordemdivina, adormecesse e Pã lhe aparecesse dizendoestas palavras:

[XXVI] “Ó sacrílegos perversos! como pudestes

ser tão insensatos a ponto de encher de alarme os

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campos que eu amo acima de todas as coisas, roubaros rebanhos que estão sob minha proteção, arrancarà força de um lugar sagrado uma jovem com a qual

Amor quer compor um conto20; e não tendes nemtemor nem reverência pelas Ninfas, nem por mimque sou o deus Pã! Jamais chegareis a Metimo, se

 pretendeis levar tal saque, nem jamais escapareis dosom da minha flauta, que já vos apavorou. Eu vosfarei mergulhar até o fundo do mar e servir decomida aos peixes, se não devolveres, e logo, Cloéàs Ninfas das quais a arrebatastes, e também suasovelhas e todo o rebanho de cabras. Portanto levanta-te sem mais demora, e devolve-a à terra junto comtudo que te disse, e assim eu vos conduzirei até

vossas casas, a ela por terra e a ti por mar.”

[XXVII] Perturbado por essas palavras, o capitão Bryaxis (pois este era seu nome21) despertousobressaltado, e chamou os chefes das galeras,ordenando que procurassem a jovem pastora Cloé

entre os prisioneiros; e assim foi feito; pois nãotiveram dificuldade em encontrá-la, já que ela estavasentada com a cabeça coroada com as folhas do

 pinheiro. Levaram-na até o capitão; e ele vendo-aassim, logo soube que era por causa dela que a visãotinha lhe aparecido enquanto dormia, conduzindo-a

então até a terra na nau principal. Ela ainda não haviasaído, quando do alto da rocha ouve-se um novo somde flauta, não mais assustador como um alarme, mascomo o dos pastores quando levam seus animais paraos campos; e as ovelhas logo saíram do navio

correndo pela ponte sem tropeçar, e as cabras aindafizeram melhor, pois estavam acostumadas a subire descer de lugares escarpados.

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[XXVIII] Em seguida as cabras e as ovelhascercaram Cloé, saltando, pulando e balindo, e pareciam se regozijar com ela por sua libertação comum.

Mas os rebanhos dos outros pastores e cabrei-ros permaneceram onde tinham sido colocados, enão se mexeram do convés das galeras, como seo som da flauta nada tivesse com eles; com o quetodos se espantaram enormemente, e louvaram o

 poder e a bondade de Pã. E viram-se maravilhasainda mais estranhas na terra e no mar. Pois asgaleras do metimianos se desatracaram por simesmas, antes que as âncoras fossem levantadas,e um delfim os conduziu saltando acima das águasdiante da nau principal; e em terra um som deflauta doce e agradável conduzia os dois rebanhos,

sem que se pudesse ver quem tocava; de maneiraque as ovelhas e as cabras andavam e pastavamao mesmo tempo, com grande prazer por ouvir essamelodia.

[XXIX] Já estava chegando a hora, depois do

meio-dia, em que se leva os animais para os campos.Dafne percebendo de longe, de um ponto elevadode observação, Cloé com os dois rebanhos, exclamou: “Ó Ninfas! O Pã!”; e descendo para a planície,corre para ela, lança-se em seus braços, tomado portanta alegria que caiu desmaiado. Só os beijos de

Cloé, que o apertava contra seu seio, puderamreanimá-lo. Depois de voltar a si, ele foi com elaaté debaixo da sebe, e quando os dois se sentaram,ele perguntou como ela conseguira escapar das mãosde tantos inimigos; e Cloé lhe contou tudo, seu raptona grota, sua partida nas galeras, e a hera enrolada

nos chifres de suas cabras, e a coroa de folhas de

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 pinheiro sobre sua cabeça; suas ovelhas que tinhamuivado, o incêndio em terra, o barulho no mar, osdois tipos de som de flauta, um de paz, outro de

guerra22, a noite cheia de horror, e como uma certamelodia a tinha conduzido durante todo o caminhosem que ela percebesse.

Dafne reconheceu a ajuda manifesta de Pã e oefeito do que as Ninfas haviam lhe prometido,contou por sua vez a Cloé tudo que ele tinha ouvido,e tudo que tinha visto, e como, morrendo de amor-e de tristeza, ele fora devolvido à vida pelas Ninfas.Depois ele a mandou perguntar a Drias e Lamo, tudoquanto era necessário para um sacrifício23, e ele

 próprio pegou a cabra mais gorda de seu rebanho,enfeitando seus chifres com heras, da mesma ma

neira que os inimigos tinham visto, e depois de terderramado leite entre os chifres, sacrificou-a às Ninfas, pendurou-a e esfolou-a, e lhes consagrou a pele que foi depositada na rocha.

[XXX] Depois quando Cloé já tinha voltado,

trazendo Drias e Lamo e suas mulheres, ele assouum pedaço da carne e cozinhou o restante; mas antesde tudo ele separou as primícias para as Ninfas, ederramou da bilha cheia uma libação de vinho doce,e arranjou pequenos leitos de folhagem24 e de ramosverdes para todos os convivas, e se pôs com eles a

comer do bom e do melhor, enquanto não tirava oolho dos rebanhos, com medo que os lobos fizessemum ataque de surpresa. Depois quando todos estavamsaciados, começaram a cantar hinos às Ninfas com

 postos por antigos pastores. Quando a noite veio, elesse deitaram ali mesmo nos campos, e na manhã

seguinte se lembraram de Pã. Pegaram o bode que

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era chefe do rebanho, e o trouxeram coroado deramos, levando-o até o pinheiro sob o qual estavaa estátua do deus, e louvando e agradecendo a

 bondade de Pã, o ofereceram em sacrifício, pendurando-o e esfolando-o, depois cozinharam uma parteda carne e assaram a outra parte, estendendo tudono belo prado sobre a verde folhagem. A pele comos chifres foi amarrada na árvore junto à estátua dePã, uma oferenda pastoral a um deus pastoral; e não

se esqueceram também de separar as primícias, efizeram em seu louvor as libações costumeiras. Cloécantou, Dafne tocou flauta, e cada um tomou seulugar à mesa.

[XXXI] Enquanto se regalavam, apareceu por

acaso o bom Filetas, levando para Pã guirlandas deflores e ramos de vinha carregados de uvas e parrasainda na vara da cepa ; trazendo consigo seu filhomais jovem, Títiro25, um rapazinho de cabelos lourose bem corado, um ar tão vivo e esperto, que ao corrersaltava tanto quanto um cabrito. Quando avistaramFiletas, todos se levantaram e foram com ele coroara estátua de Pã e suspenderam os ramos de videiracom os cachos ainda pendentes nos galhos do

 pinheiro; depois, oferecendo-lhes um lugar junto aeles, os convidaram para a refeição. Ora quando osvelhos beberam um pouco, logo começaram a contarsobre seus jovens anos, como tomavam conta de seusanimais nos campos, como tinham escapado devários perigos e investidas dos piratas e dos ladrões.Um se gabava de ter matado certa vez um lobo, ooutro de que depois de Pã não havia homem quetocasse tão bem a flauta quanto ele. Foi Filetas quemse gabou assim26.

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[XXXII] Dafne e Cloé pediram que ele mostrasse um pouco de sua arte, e que nesse sacrifício feito

 para Pã, ele louvasse com sua flauta o deus amante

de tais sons. Filetas consentiu,e ainda que se queixasse de que devido à sua velhice não tivesse maisfôlego, pegou a flauta de Dafne. Mas ela era muito

 pequena para mostrar o muito de seu conhecimentoe de sua arte, servindo apenas para um menino; assimele mandou Títiro até sua casa, distante dali meia-

légua, para trazer a sua. O menino tirou seu casacoe correu como uma corça; nesse ínterim, Lamocomeçou a contar a fábula da Siringe, que aprenderade um cabreiro da Sicília27 que sabia a canção, emtroca de um bode e de uma flauta.

[XXXIII] “Esta Siringe, ele lhes disse, hoje émdia flauta pastoral, outrora fora uma bela jovem comuma voz melodiosa. Ela guardava as cabras, cantavae brincava com as Ninfas. Pã que a via nos campostomar conta dos animais, brincar, cantar, um dia vaiaté ela e confessa seu desejo por ela, prometendo

fazer com que suas cabras dessem duas crias a cada parto. Ela zombou de seu amor e disse que jamaisteria um amigo, sobretudo ele que mais parecia um

 bode, nem qualquer outro fosse quem fosse. Pã quisagarrá-la à força; ela fugiu; ele perseguiu-a; enquantoseus pés puderam aguentar, ela correu; mas, no fim,cansada de correr, ela se joga no pântano e aí se perdeentre os caniços. Pã corta os caniços, mas nãoencontrando a donzela, compreendeu sua infelicidade28, e então unindo com cera os caniços cortadosde forma desigual, como signo de um amor nãocorrespondido, fez este instrumento. De maneira queela que fora uma jovem tão bela, se tomou desdeentão um agradável instrumento de música.”

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[XXXIV] Lamo vinha de acabar seu conto, e o bom Filetas estava a louvá-lo, dizendo não terescutado em toda sua vida uma canção tão bela como

a dessa fábula, quando Títiro chegou trazendo aflauta de seu pai, grande e magnífica, composta pelasmaiores canas que se pode encontrar, revestida delatão sob a cera. Dir-se-ia que era igual à primeiraque Pã fez. Filetas ergue-se e sentado sobre seu leitede folhas, e ensaiou todos os registros para ver se

nada impedia o sopro, e vendo que cada registro davao som adequado, soprou à vontade. Parecia mais umaária de várias flautas tocando juntas, tal era o seusom: depois pouco a pouco diminuindo a força dosopro, passou a tocar em som doce e pastoral, emostrando-lhes toda a arte da música pastoral, paraconduzir e fazer pastar os animais nos campos, lhesfez ver como era preciso tocar para um rebanho de bois, qual o melhor som para um cabreiro, qual otoque que as ovelhas e os carneiros amam; o dasovelhas era gracioso, forte e grave o dos bois, o dascabras claro e agudo; e uma só flauta imitava todasas flautas variadas do pastor, do vaqueiro e do

cabreiro.

[XXXV] O grupo à mesa escutava sem dizer palavra, deitado sob a folhagem, ouvindo Filetascom grande prazer, até que Drias se levantando pediu-lhe para tocar uma canção alegre em louvor

a Baco, enquanto ele dançava para eles uma dançada vindima, fazendo gestos como se estivesse, oracolhendo a uva no cepo, ora levando as uvas naalcofa, depois a mímica de alguém que está pisandoa vindima, que derrama o vinho nas jarras, e de quemsorve à vontade o licor novo. Todas estas coisas ele

fez com tanta adequação29 e com tanto gosto, tão

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 próximas dos gestos naturais, que eles pensavam verali diante de seus olhos a vinha, o lagar, e as jarras,e Drias bebendo o vinho doce.

[XXXVI] Tendo assim o terceiro velho tão beme suavemente cumprido a sua tarefa de dançar, foi

 beijar no fim Dafne e Cloé, os quais imediatamentese levantaram para dançar o conto de Lamo. Dafnerepresentava o deus Pã, Cloé a bela Siringe; ele lhe

fazia a corte, e ela ria; ela fugia, ele a perseguiacorrendo na ponta dos pés para imitar melhor os pésdo bode; ela fingia estar cansada, sem mais podercorrer, e em vez de caniços foi se esconder no

 bosque.

E Dafne tomando então a grande flauta deFiletas, tirou a princípio um som doloroso, como Pãa se queixar da moça; depois um som apaixonadocomo suplicando seu amor; depois um toque dechamada, como se estivesse procurando por toda a

 parte por ela. Filetas maravilhado correu para beijá-lo, e depois de tê-lo beijado, lhe deu de presente suaflauta, pedindo aos deuses que Dafne a deixasse umdia para um sucessor igual a ele30.

[XXXVII] Dafne ofertou a sua flauta pequena aPã, e beijando Cloé como se ela tivesse voltado deuma fuga verdadeira, conduziu tocando seus animais

aos estábulos, porque já era bem tarde; e o mesmofez Cloé com os seus ao som da mesma flauta. Ascabras seguiam ao lado das ovelhas, e Cloé bem

 junto a Dafne, de maneira que se beijavam a cada passo, e ficaram assim até a noite fechada, e ao sedeixarem, combinaram de levar juntos seus rebanhos

 para pastar no dia seguinte de manhã cedo, o que

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fizeram. Assim que o dia começou a nascer, elesvoltaram para o pasto, e depois de saudar em primeiro lugar as Ninfas, e logo depois Pã, foram

sentar-se; sob o carvalho, tocaram flautas juntos, se beijaram, se abraçaram, deitaram-se ao lado um dooutro, e sem nada fazer, se levantaram depois. Emseguida pensaram em comer; e beberam na taçavinho misturado com leite.

[XXXVni] Ora assim esquentados e mais ousados depois de todas essas coisas, eles reafirmaramseu amor, e chegaram a firmá-lo através de juras deum para o outro. Dafne sob o pinheiro, jurou pelodeus Pã que ele não viveria nem um só o dia semCloé; e Cloé no antro das Ninfas, jurou diante desuas estátuas viver e morrer com Dafne. Mas ela,como uma jovem e inocente mocinha, foi ingênuaa ponto de querer que Dafne ao sair do antro lhefizesse uma outra jura. Ela lhe disse: “Este deus Pã,Dafne, é um deus volúvel em quem não se podeconfiar; ele amou Pítis, ele amou Siringe; ele não pára de perseguir as Ninfas Epimélides, e o vemos

sempre atrás das Dríades31. Se faltas com a palavrasque me juraste, ele só irá rir-se, mesmo que tenhasmais amantes do que tubos em tua flauta. E comoele iria te punir, ele que cada dia tem um novo amor?Jura-me por teu rebanho, e pela cabra que teamamentou, que jamais abandonarás Cloé enquanto

ela te for fiel; e se ela te enganar e às Ninfas a quem jurou, abandona-a e odeia-a ou mata-a, como tufarias com um lobo.”

Dafne tirou prazer dessa dúvida, e em pé no meiode seu rebanho, segurando com uma mão um bode

e com outra uma cabra, jurou que amaria Cloé

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enquanto fosse amado por ela, e que se ela amasseum outro, ele se mataria em vez de matá-la; como que ela ficou contente, e se tranquilizou mais do

que com as outras juras, acreditando que as ovelhase as cabras eram deuses 32 adequados aos pastorese cabreiros.

 Notas

1. Os sátiros (meio-homens, meio-bodes) e as bacantes 

(mulheres dançando e urrando de maneira impudica sob o efeito  

de possessão divina) fazem parte do cortejo de Baco. (N.E.)

2. Filetas, com o Dafne, é um lendário pastor-poeta siciliano, 

celebrado por Teócrito como um dos inventores da poesia  

bucólica e às vezes considerado como seu mestre. O persona

gem que aparece aqui tem a condição de profeta e de iniciador: 

é enviado pelos deuses. Daí a maneira enfática com que se 

apresentada, pois ele não diz simplesmente “eu sou Filetas”, 

mas “eu sou o lendário Filetas.” Neste personagem como em  

toda em sua obra, Longus mistura sutilmente o maravilhoso  

mitológico e o realismo trivial, lirismo e comédia, simplicidade 

e erudição. (N.E.)

3.  Plantei, cavei, semeei, ornei   (amplificação típica' do 

estilo maneirista de Amyot, pois o texto grego diz apenas: 

 cultivei com minhas mãos).  (N.E.)

4. O texto grego é mais preciso, e fala de um  bosque 

 sagrado:  o que se adapta melhor à tonalidade religiosa do 

romance, e à própria função de Filetas. (N.E.)

5. Em grego  xanthos:  este adjetivo se aplica com maior  

verossimilança aos cabelos louros do menino do que às cores  

de seu rosto. A comparação com o fogo é menos física (como  

a tradução vermelho como fog o   sugere) do que simbólica, pois 

o deus Amor era sempre representado munido de tochas, a 

chama simbolizando seu poder incontrolávèl. (N.E.)

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6. Neste jardim, o deus Amor está em casa, pois o mirto 

e a romã são, junto com a rosa, os atributos de sua mãe Vênus.  

A romã é um símbolo de fidelidade. (N.E.)

7. Alusão à lenda segundo a qual os cisnes cantam melhor 

no momento em que vão morrer. (N.E.)

8. Saturno, pai de Júpiter, é o mais antigo dos deuses. 

Longus faz um jogo de palavras, pois o nom e grego de Saturno, 

Cronos, é quase idêntico, com uma letra a menos, à palavra que 

designa o tempo,  chronos. Este jogo de palavras era tão comum  

que Cronos é geralmente considerado (em particular na época  romana) como sendo uma personificação do Tempo. (N.E.)

9. Nome tradicional de pastora (os pastores de Teócrito e  

de Virgílio a celebram com frequência). (N.E.)

10. O poder universal do Amor como princípio de harmo

nia natural está simbolizado aqui por seu efeito sobre o jardim,  

que é em si mesmo, como Filetas irá explicá-lo mais adiante, 

uma imagem reduzida da harmonia do mundo. (N.E.)

11. As asas, o arco e a aljava cheia de flechas são os  

atributos que confirmam, depois de outros sinais, que esse  

meninote só pode ser o deus Amor. Filetas finge não tê-lo 

reconhecido antes, assim como os dois pais adotivos quando  

ele lhes aparece em sonho: a técnica narrativa de Longus repousa sobre uma cumplicidade com seu leitor (que já  

reconheceu há muito tempo o deus-menino) e consiste em se  

colocar do ponto de vista de Dafne e Cloé. A ignorância de  

Filetas não é real, é pedagógica pois ela imita a dos personagens 

principais para levá-los a compreender melhor e a aceditar a 

revelação que ele lhes traz. (N.E.)

12. O texto grego menciona um carvalho, árvore sagrada 

associada em geral aos oráculos e às juras. A confusão provém 

do fato de que há duas palavras em grego para designar o 

carvalho,  drys e  phêgos, e Longus utiliza as duas. Mas nos três  

outros livros, a árvore sob a qual os amantes se encontram está  

claramente identificada como um carvalho e não uma sebe. (N.E.)

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13. Pequeno instrumento de sopro parecido com uma 

flauta. (N.T.)

14. É a primeira vez que está indicado (mas não em todos 

os manuscritos) o número de Ninfas, que permite identificar 

o grupo como um avatar das três Graças, auxiliares de Vênus.  

É a mais velha que fala, com o nos coro trágico em que o porta- 

voz é sempre a (o) deã (o). (N.E.)

15. Este paradoxo está de acordo com a tradição mítica: 

na conquista da índia por Baco, Pã desempenha com efeito o 

papel de comandante da guerra e chefia as tropas das bacantes 

e dos sátiros. (N.E.)

16. A hera (da qual certas variedades se parecem com a 

vinha virgem) se encontra tradicionalmente associada à vinha 

ou é confundida com ela, enquanto atributo de Baco. Os animais 

sacrificados ao deus eram coroados, assim como os convivas 

dos banquetes. (N.E.)

17. O pinheiro sendo o atributo de Baco constitui o sinal  

de que Cloé é a protegida do ministro de Baco. As duas 

divindades aqui são indisssociáveis, como veremos na conti

nuação da história. (N.E.)

18. Esta aventura é uma transposição romanesca de um  episódio do mito de Baco, raptado pelos piratas tirrenianos  

que ignoram sua identidade e que ele transforma em delfins  

depois de ter provocado milagres análogos aos que são 

mostrados aqui. A presença dos delfins confirma a relação 

entre as duas aventuras, se bem que aqui o deus em ação 

não seja Baco mas Pã, seu ministro. E interessante observar 

que este episódio mítico serviu de modelo às duas aventuras simétricas vividas por nossos heróis: é Dafne que, com o B aco, 

é raptada pelos piratas, mas é o rapto de Cloé que provoca  

a intervenção divina. Esse desdobramento, assim como a 

progressão dramática entre os dois episódios (a aventura de  

Dafne é bem mais simples e não tem caráter “maravilhoso”) 

confirma o estatuto privilegiado da heroína no romance. 

(N.E.)

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19. O adjetivo maravilhoso não está no texto grego, mas 

foi acrescentado por Amyot para assinalar o caráter sobrenatural 

da música, tocada pelo deus Pã. Esta cena é com efeito um  

caso típico do medo  pânico,  este fenômeno de terror coletivo 

atribuído pela superstição popular aos sortilégios de Pã. (N.E.)

20. O texto grego diz: do qual o Amor quer fazer um mito 

( m yth os).  A história de Cloé não é um mito, pois não narra 

nem o rapto de uma divindade, nem os amores de um deus  

e de uma mortal, nem uma metamorfose como os mitos 

inseridos mais adiante no romance como o de Siringe no livro

II, XXXIV, e o de Eco, no livro III, XXIII. Amyot traduziu a palavra  mythos  por  his to ire sin gulier  (“história singular”). Com efeito, a palavra grega pode também designar uma simples 

“história” ou um conto (é como Amyot vai traduzi-la na maior  

parte das vezes).  [Foi assim que preferim os traduzi-la . 

 N.T.\   Longus quis dizer talvez que o deus Amor deseja fazer 

de Cloé o tema de um romance destinado a se tornar tão célebre 

quanto uma lenda. (N.E.)

21. Para os leitores gregos contemporâneos de Longus, este 

nome é irônico e paradoxal, pois é formado com a raiz da 

palavra volúpia   e está muito próximo do adjetivo  Bryaktès que 

qualifica o deus Pã em sua função erótica, enquanto  deus do  

 prazer. A aventura de Cloé toma assim uma dimensão alegórica 

(parodiada): o navio dos metimianos se torna uma alegoria da 

luxúria opondo-se à virtude conjugal que governa o destino da 

heroína que, por sua vez, se encontra protegida pelo deus mais  

volúvel que possa existir (Ver no livro II, XXXIX, as restrições 

de Cloé). (N.E.)

22. A oposição entre guerra e paz é um dos temas essenciais 

da pastoral, domínio ideal da paz. (N.E.)

23. Era costume na Antiguidade oferecer um sacrifício 

público para agradecer a proteção dos deuses por ocasião de 

um perigo. Sacrificava-se um animal que devia ser de uma  

espécie consagrada ao deus cultuado (um animal do rebanho  

para as Ninfas pastorais, e para Pã um bode), mas também um 

animal de qualidade. Os ossos eram queimados e alguns  

pedaços da carne eram oferecidos ao deus, assim como a pele

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também, e consumia-se o resto. O rito aqui descrito corresponde  

ao que era normalmente praticado nestas circunstâncias. (N.E.)

24. Os antigos estendiam-se em leitos dispostos em volta  

das mesas para o banquete. (N.E.)

25. Este nome que designa um  bode, é também uma alusão 

à poesia bucólica, pois designa os mais célebres pastores de 

Teócrito e de Virgílio. Comparando-o a uma corça, a descrição 

que irá se seguir o assimila simbolicamente a um sátiro, ou ao  

próprio Pã. (N.E.)

26. Elogio justificado pela lenda que apresenta Filetas 

com o o mestre de Teócrito e de certo modo o inventor da poesia 

pastoral (no que Títiro é seu filho e seguidor). Ver também  

mais adiante no capítulo XXXV a comparação que eleva a 

flauta de Filetas ao mesmo plano da que pertence ao deus Pã. 

(N.E.)

27. É da Sicília, com efeito, que a poesia pastoral teria se  

originado e se atribue a Teócrito, igualmente originário da 

Sicília (século III A.C.) um célebre caligrama sobre a Siringe  

(poemas cujos versos estão dispostos na forma da flauta de Pã). 

Ao colocar a história da invenção da siringe no meio de seu  

romance, Longus ao mesmo tempo homenageia o inventor  

mítico da pastoral, o deus protetor dos pastores, e os primeiros poetas bucólicos. Ao fazer com que seja contada por Lamo e 

não por Filetas (que parece ignorá-la), ele deseja sem dúvida 

evocar a origem popular e rústica desta poesia que se tomou  

culta com Teócrito. (N.E.)

28. A história é contada de maneira um pouco diferente 

por Ovídio,  Metamorfoses,  I, 689-712. (N.E.)

29. Esta evocação da associação de Baco e Pã serve de 

transição entre as duas partes do romance, como um eco das 

vindimas que abrem o livro II. O papel de Baco, com efeito,  

vai se definir cada vez mais, mas de uma maneira nova (pois  

é menos o deus do vinho que o deus civilizador e protetor do  

casamento que preside ao desenlace. (N.E.)

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30. O dom da flauta simboliza a transmissão da tradição 

pastoral, o Dafne da lenda compartilha com Filetas a invenção  

da poesia bucólica. Toda esta cena, com a dança que a precede, 

funciona como um rito de iniciação: Dafne obtém uma verda

deira flauta de Pã em troca de sua flauta de menino, doravante  será capaz de imitar os adultos (ver adiante no livro IV, capítulo 

XV, onde ele se mostrará um mestre da arte da flauta) e está 

prestes a se tornar um adulto quando for iniciado no amor. 

(N.E.)

31. Aí  Epim élides  são as Ninfas protetoras dos rebanhos. 

As  D ría des   são Ninfas também, mas elas vivem nos carvalhos  

dos quais carregam o nome (como o pai de Cloé) e são as  protetorâs das árvores. As Ninfas dividem-se com efeito em 

várias categorias, como Dafne irá explicar no livro III, capítulo 

XXIII. (N.E.)

32. Na Antiguidade as juras só tinham valor quando se  

tomava um deus como testemunha do compromisso, menos por 

garantia moral do que porque o deus tinha o poder de coagir e castigar o perjuro. E por isso que o pedido de C loé é ingênuo, 

pois ela empresta aos animais que lhe são familiares o mesmo  

poder, concendendo-lhes a confiança e a piedade reservada aos 

deuses. (N.E.).

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LIVRO TERCEIRO

[I] Mas os mitilianos ao saber que os de Metimetinham enviado dez galeras para atacá-los, e sendotambém informados pelas pessoas que vinham docampo, como eles tinham invadido suas terras e pilhado seus bens, julgaram que seria covardiasuportar um tal ultraje dos metimianos, e delibera

ram prontamente pegar em armas contra eles. Reuniram imediatamente três mil homens de infantariae quinhentos de cavalaria, e enviaram por terra ogeneral Hipase1, com temor de mandá-los por marnuma época em que o inverno se aproximava.

[II] O capitão partiu logo com seus homens, nãodevastou a terra dos metimianos, nem roubou o gadodos trabalhadores e camponeses, porque julgava queera uma ação de ladrões e não de um capitão; foiassim que rumou diretamente para a cidade, esperando surpreendê-la com seus portões abertos e sem

guarda. Mas quando ele já estava a cerca de seismilhas, um arauto surgiu, pedindo trégua em nomedos metimianos. Pois depois de saber por seus

 prisioneiros que os de Mitilene nada sabiam do quetinha acontecido, pois fora uma disputa entre cam poneses e jovens, em que estes brigaram por alguma

insolência feita a eles, lamentavam muito ter ofen

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dido tão levianamente seus vizinhos, e desejavamdevolver e restituir o que fora tomado, para podercomerciar e freqüentar uns aos outros como antes,

sem temor nem perigo. Hipase enviou o arauto paralevar essas palavras ao senado dos mitilianos, em

 bora tivesse poder e autoridade absoluta, e foiacampar a meia-légua de Metime, esperando asordens de sua cidade. Dois dias depois chegaram asordens para receber as restituições e voltar sem

atacá-los. Pois entre a guerra e a paz, acreditavamque a paz era melhor.

[III] Assim terminou a gerra entre Metime eMitilene, acabando como começara rápida e subitamente.2

E logo veio o inverno aborrecido mais do que,a guerra para Dafne e Cloé. Pois a neve, caindo emgrande abundância, cobriu os caminhos e encerrouos trabalhadores em suas casas; as torrentes impetuosas despencavam do alto das montanhas; a água

congelava, as árvores pareciam mortas, não se viamais a terra, a não ser em volta das fontes e de algunsriachos; deste modo eles não podiam conduzir seusanimais para o campo, nem as pessoas ousavam

 botar o nariz fora da porta; todos permaneciam emcasa, faziam uma grande lareira, em tomo da qual,

desde que os galos cantavam de manhã, cada umfazia sua tarefa. Uns retorciam fios, outros teciama pele da cabra, ou faziam armadilhas para prenderos pássaros. O cuidado para quem tinha bois, era dar-lhes palha para comer no curral, folhas para as cabrase as ovelhas no aprisco, o fruto da faia e glande3para

os porcos na pocilga.

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[IV] Como todos se viam obrigados a ficar emcasa por causa do rigor do tempo, os trabalhadoresassim como pastores, estavam à vontade, pois tinham

um pouco de descanso de seus trabalhos, faziam boasrefeições e dormiam muito, de tal modo que oinverno lhes parecia mais doce do que o verão, ooutono e a primavera. Mas Dafne e Cloé lembrando-se dos prazeres passados, de como se beijavam, seabraçavam, e de seus alegres passatempos entre os

campos e os prados, toda noite suspiravam comgrande tristeza sem poder dormir, esperando a novaestação como se fosse nada mais nada menos do queuma segunda vida após a morte4. Cada vez quetocavam o surrão de onde tiravam seu alimento, seuscorações se enlutavam: ao perceber a taça em que

tinham se habituado a beber um depois do outro, ouentão que a flauta, que era um dom de seusnamoricos, estava jogada no chão em alguma partesem que ninguém lhe desse atenção, e suas penasse renovavam. Se oravam às Ninfas e a Pã para queos libertassem desses males e reenviassem para elese seus animais o sol bonito e claro, ao fazerem essasorações aos deuses, procuravam inventar algo através de que pudessem se encontrar. Cloé não sabiao que fazer, e não tinha como; pois aquela a quemconsiderava sua mãe estava o dia inteiro perto dela,lhe mostrando como desenredar a lã e girar o fuso,e falando em casá-la; mas Dafne, como tinha maislazer e mais astúcia, achou um meio de vê-la bemhábil.

[V] Diante da casa de Drias, contra o muro do pátio, havia dois grandes mirtos e uma hera5, osmirtos um ao lado do outro, os pés quase juntos, detal modo que a hera abraçava os dois, e se estendia

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como uma vinha sobre um e sobre o outro, resultandonuma espécie de choça bem coberta, tanto suasfolhas eram espessas e, por assim dizer, entrelaçadasumas às outras como os fios de um tecido; dentro pendiam alguns cachos bem negros, como uvas na parreira; motivo pelo qual havia ali, mesmo noinverno, um grande número de pássaros, muitosmelros, tordos, pombos, estorninhos e muitos outros,que quando não encontravam mais nada, gostavamde comer os grãos da hera. Dafne saiu de casa sob

o pretexto de fazer uma armadilha para esses pássaros, levando seu alforge cheio de bolo de fogaçae de doces de mel, e levando também, para queacreditassem nele, visgos e laços armados. A distância entre as duas casas era de cerca de meia-légua,e a neve, ainda não endurecida pelo frio, poderia ser

um obstáculo, não fosse o Amor que atravessa tudoe transpõe o fogo, a água, a neve, até mesmo a daCítia.6

[VI] Dafne fez o caminho correndo, e chegoudiante da casa de Drias, sacudiu a neve que tinha

nos pés, estendeu seus laços, passou visgo nas vergascompridas, depois ficou à espreita ali por perto,espiando para ver quando os pássaros apareciam etambém por sorte Cloé.

Bem, os pássaros vieram em grande número, e

ele apanhou tantos que teve bastante trabalho em juntá-los, matá-los e depená-los, mas da casa nãovinha ninguém, nem homem nem mulher, nem galonem galinha; todos se mantinham trancados e aninhados perto da lareira; fazendo com que o pobreDafne se sentisse muito perturbado por ter vindo paranada e em hora tão desfavorável7. Então começou

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a pensar num pretexto para entrar na casa, discutindoconsigo mesmo qual seria o melhor pretexto: “Euvim buscar fogo. — Como? não tens vizinhos mais

 próximos? — Eu queria pão. — Teu alforge estácheio de comida. — Vinho. — Mas há três dias atrásestavas nas vindimas. — O lobo me perseguiu. —E onde está o rastro? — Eu vim caçar passáros. —Mas não te bastam os que já pegaste? — Eu querover Cloé. “Mas uma coisa dessas não se podeconfessar sem mais nem menos a um pai e a umamãe. De modo que nenhum desses recursos deixariade provocar suspeitas. “É melhor, ele se dizia, queeu vá me embora. Eu a reverei na primavera: nãoneste inverno, pois os deuses, eu creio, não o querem.“Depois de convencer-se dessa maneira, e guardandono seu alforge os tordos e outros pássaros que tinha

apanhado, arrumou-se para partir. Mas como Amorteve pena dele, eis o que lhe aconteceu.

[VII] Drias e sua família estavam à mesa, o pãoe a carne já prontos, todos bebiam e comiam, e eisquando um dos cães do pastoreio vendo que não se

lembravam dele, abocanha um pedaço de carne efoge para fora da casa; com o que Drias aborrecido,mesmo por que se tratava da sua parte, pega umcajado e corre atrás. Na perseguição, passou pertoda hera onde Dafne estendera seus visgos, e viu queele carregava sua presa sobre os ombros, já se

afastando; e logo que o avistou, esquecendo suacarne e o cão, exclamou: “Deus te tenha, meu filho”;depois abraçou-o e beijou-o, levando-o pela mão atésua casa.

Quando os dois se viram, quase caíram de tanta

alegria que sentiram. Eles se esforçaram para se

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manter em pé, se saudaram, deram os bons-dias, ese beijaram, o que foi para eles como um esteio eum apoio para que não caíssem.

[VIII] Assim foi que, tendo contra toda esperança, visto e até beijado sua Cloé, Dafne sentou-se perto da lareira e despejou sobre a mesa seus tordose pombos, contando a todos como se aborrecendo por ter que ficar tanto tempo dentro de casa,resolvera caçar os pássaros, e como prendera várioscom os laços, outros com o visgo, quando vinhamem busca dos grãos de hera e de mirto. A famíliaelogiou a sua disposição, e lhe disseram para comerà vontade o que tinha ficado da manhã, dizendo aCloé que lhe desse de beber, o que ela fez de boavontade, oferecendo primeiro aos outros e depois aDafne; pois ela fingia estar zangada com ele, por tervindo por ali tão perto, e ir-se embora sem vê-la nemfalar com ela; e no entanto antes de lhe dar o que beber, ela bebeu e depois lhe deu a taça com o resto,e ele, ainda que tivesse muita sêde, bebeudemoradamente e com todo gosto, para ter ainda

mais prazer.

[IX] Assim que a mesa se esvaziou de pão e decarne, e quando ainda sentados, eles lhe pediramnotícias de Mirtal e Lamo, dizendo que eles eramfelizes por ter um tal apoio em sua velhice; esses

elogios não deixavam Dafne descontente, já que eramfeitos em presença de sua Cloé. Mas quando eles lhedisseram que ele poderia ficar com eles essa noite atéo outro dia, pois na manhã seguinte deviam fazer

 juntos um sacrifício para Baco, por pouco ele não osadorou em lugar de Baco. Então tirou de seu alforge

muitos doces e pássaros que eles aprontaram para a

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ceia. Em seguida acenderam a lareira, o vinho foi preparado, a mesa posta, e logo que a noite chegouforam comer, depois do que passaram o tempo, em

 parte contando histórias agradáveis, e em parte cantando, até que o sono chegou; e quando foram sedeitar, Cloé com sua mãe, Dafne com Drias, Cloé

 passou a noite pensando em seu Dafne, que ela veriano dia seguinte de manhã, enquanto ele se apaziguavacom uma volúpia sadia, considerando uma grandefelicidade poder se deitar ao lado do pai de sua Cloé;

de maneira que mais de uma vez ele o abraçou e beijou, crendo em sonho abraçar e beijar Cloé.

[X] A manhã estava muita fria, e soprava umvento seco tão rijo que queimava e feria tudo.Quando se levantaram, Drias sacrificou um cabrito

de apenas um ano, acendeu a lareira e preparou oalmoço. Assim, enquanto Napé cozinhava o pão, eDrias cozinhava o cabrito, Cloé e Dafne ficaramlivres, saíram de casa e foram até a hera ondecolocaram os laços, deitaram visgo e pegarammuitos pássaro, beijando-se continuamente e sedizendo frases amorosas: “ Eu vim por tua causa,Cloé. — Eu sabia, Dafne. — Por tua casa, minhalinda, eu mato esses pobres pássaros. E o nossoamor? Não te esqueceste de mim? — Não, pelas

 Ninfas a quem jurei na grota onde nos reveremos,quando a neve se derreter. — Ah! Cloé, como estáalta a neve! será que não irei derreter antes dela?

 — Não te aflijas, Dafne; o sol voltará, quando a primavera chegar. — Ah, que ele seja como o fogoque incendeia meu coração! — Brincalhão, nãozombes de mim, pois me enganáras um dia desses

 — Não, eu não o farei, foi o que jurei por minhascabras.”

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[XI] Enquanto Cloé respondia desta maneira aseu Dafne exatamente igual o eco, Napé os chamou;eles foram correndo, levando com eles uma presa

ainda maior que a da véspera, e depois de fazerlibações para Baco, começaram a comer, tendo nascabeças coroas de hera8; e depois de terem sesaciado e cantado o hino de Baco, despediram-sede Dafne dando-lhe uma boa provisão de pão ecarne, e lhe devolveram seus tordos e pombos,

dizendo que eles poderiam pegá-los quando quisessem, enquanto o inverno durasse e não faltassemcachos à hera. Assim Dafne partiu, beijando-osantes de Cloé, a fim de guardar o beijo dela. Depoisdisso ele voltou várias vezes usando outras artimanhas, de maneira que o inverno não passou para

eles sem algum prazer amoroso.

[XII] E no começo da primavera, quando aneve se derretia, a terra ressurgia e a erva despontava, os pastores puderam então sair e levar seusanimais aos campos, mas os primeiros foram Dafne

e Cloé, já que obedeciam a um pastor ainda maior;e logo correram até as Ninfas na caverna, depoisaté Pã sob o pinheiro, depois até o carvalho, sobo qual se sentaram vendo seus rebanhos pastareme se beijando ao mesmo tempo; em seguida foramcolher flores para fazer coroas para os deuses. As

flores começavam justamente a brotar, graças àdoçura da abençoada brisa do zéfiro que as reani-mava e graças ao calor do sol que as entreabria.Assim encontraram violetas, narcisos, lírios dovale, junto com outras que são as primeiras floresque a estação nova produz, com as quais fizeram

guirlandas e coroaram a cabeça das estátuas, ofe-recendo-lhes leite fresco de suas ovelhas e cabras;

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depois começaram a tocar suas charumelas, comose quisessem incitar os rouxinóis a cantar, os quaislhes respondiam de dentro das moitas, começando

 pouco a pouco a lamentar mais uma vez Itys9 e arecordar seus cantos, que um longo silêncio os tinhafeito esquecer.

[XIII] E então também suas ovelhas baliram, oscordeiros se erguiam e voltavam a se deitar, os

carneiros perseguiam as ovelhas que ainda nãotinham parido, e ao pegá-las, cobriam uma apósoutra; o mesmo faziam os bodes atrás das cabras,saltando em volta, combatendo e lutando firmemente

 pelo amor delas. Cada um tinha as suas preferidas,e cuidava para que nenhum outro se apossasse delas.

Todas as coisas cuja visão reacendia nos velhos ofogo de Vênus, esquentava ainda mais esses dois jovens, que há muito tempo inquietos, procuravamo fim último do contentamento amoroso10, ardiame se consumiam por tudo quanto ouviam e viam, procurando alguma coisa que não conseguiam en

contrar além do beijo e do abraço. Também Dafneque crescera e engordara, por não ter se mexido, jáque passara o inverno em casa sem nada fazer,agitava-se a cada beijo, e estava sequioso, como sediz, para se agarrar, fazendo tudo com mais curiosidade e mais ousadia do que antes.

[XTV] Acossando Cloé para lhe dar tudo quantoqueria, e para se deitar nu com ela por mais tempodo que estavam acostumados. “Pois não há, ele dizia,senão um único ponto que nos falta dos ensinamentosde Filetas, para o último e único remédio que

apazigua o amor.”

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E Cloé lhe perguntava o que podia haver alémde se beijar, de se abraçar e de deitar vestidos, e oque é que ele pensava fazer quando se deitassem nus?“ O mesmo, respondeu, que os carneiros fazem comas ovelhas e os bodes com as cabras. Não vês comodepois disso as ovelhas não fogem mais, nem oscarneiros se dão mais ao trabalho de correr atrásdelas; mas todos pastam amistosamente juntos,estando tanto um quanto o outro satisfeitos e con

tentes; e deve ser algo mais doce do que o quefazemos, e cuja doçura supera o amargor do amor. — Mas, ela respondeu, não vês que os carneiros eas ovelhas, os bodes e as cabras ao fazer o que tudizes, ficam em pé; os machos montam por cima,as mulheres sustentam os machos em suas costas.E tu queres que eu me deite contigo na terra, e nua.Elas não estão vestidas com sua lã ou com seu pêlocomo eu com o que me cobre?”

Ele aceitou, e como ela queria, deitou-se ao ladodela, onde ficou durante muito tempo, não sabendo

como fazer para chegar ao fim que desejava. Ele alevantou, abraçando-a por trás imitando os bodes;mas ficou tão insatisfeito quanto antes. Assim sen-tou-se de novo no chão e se pôs a chorar porque sabiamenos que as ovelhas para consumar a obra do amor.

[XV] Ora havia não longe dali alguém quecultivava sua própria herdade e se chamava Chromis,um homem cuja juventude e força já passara e queia envelhecendo. Ele vivia com uma mulher dacidade, jovem e bela, e mais faceira do que asmulheres do campo, cujo nome era Lycenion11; a

qual vendo passar todas as manhãs Dafne, que levava

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seus animais para o pasto e à noite os trazia de volta para o estábulo, teve vontade de se deitar com ele para fazer amor, e tanto o espiou, que uma vez o

encontrou sozinho, lhe deu uma flauta, e um alforgede pele de corça; mas não ousou lhe dizer nada, pensando que ele amava Cloé, porque estava semprecom ela; mas só sabia que os havia visto sorrindoum para o outro a se fazerem sinais. Assim ela deua entender a Chromis, uma manhã, que ia visitar umavizinha que ia fazer trabalho de parto, seguiu os

 jovens de perto, e se escondendo entre os arbustos para não ser vista, viu tudo que eles faziam, ouviutudo que diziam, e entendeu perfeitamente porquemotivo o pobre Dafne chorava. Ela se apiedou deseu sofrimento e considerando que ao mesmo tempoapresentava-se para ela a dupla oportunidade de agiracertadamente, uma de instrui-los para o bem deles,a outra de realizar seu desejo, recorreu a umestratagema.

[XVI] Na manhã seguinte fingindo que ia versua vizinha que ia parir, ela foi direto até o carvalho

sob o qual Dafne estava com Cloé, e simulando estar perturbada e infeliz disse: “Ah, Dafne, meu amigo,eu te peço, ajuda-me. Dos meus vinte patos, a águiaroubou o mais belo. Mas como ele é muito pesado,a águia não conseguiu levá-lo até aquela rocha lá noalto, onde ela mora, mas o deixou cair no fundo do

vale, dentro desse bosque: e por isto eu te peço, meuDafne, vem comigo, pois sozinha eu tenho medo,e me ajuda a recuperá-lo. Quem sabe até podes matara águia, que assim não atacará mais teus carneirose tuas cabras; e enquanto isso Cloé tomará conta dosrebanhos. Tuas cabras a conhecem tão bem quanto

tu; pois estais sempre juntos.”

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[XVII] Dafne de nada desconfiou, levantou-seimediatamente, pegou seu cajado na mão e seguiucom Lycenion. Ela o levou para longe de Cloé, para

o mais espesso dos bosques, perto de uma fonte, ondeo fez sentar-se: “Dafne, tu amas, disse ela, tu amasCloé. As Ninfas me disseram esta noite. Elas meapareceram, as Ninfas, para me contar enquanto eudormia sobre as lágrimas que choraste ontem, e meordenaram que te libertasse dessa dor, ensinando-teo ato do amor, que não é apenas beijar e abraçar,nem fazer como os carneiros e os bodes; é uma coisadiferente, e bem mais agradável. Para que te libertesda insatisfação que sentes e encontrar a paz que

 procuras, basta que te entregues a mim comoaprendiz feliz e galante, e eu, por amor às Ninfas,irei te mostrar do que se trata.”

[XVIII] Dafne perdeu todo controle, tal era seudesejo, como um pobre rapaz de aldeia, jovem eapaixonado. Ele se pôs de joelhos diante deLycenion, pedindo a ela de mãos juntas para lhemostrar logo esse doce ofício, a fim de que pudesse

fazer com Cloé o que tanto desejava; e como sefosse algum grande e maravilhoso segredo, prome-teu-lhe um cabrito novo, queijos frescos, creme, eaté a própria cabra. Assim Lycenion vendo-o maisingênuo e mais simples do que imaginara, pôs-sea instrui-lo da seguinte maneira. Ela pediu para que

ele se sentasse ao lado dela, e depois para beijá-la como eles tinham o hábito de fazer entre eles,e de abraçá-la ao beijar, e por fim para se deitarno chão ao lado dela. Assim depois de ter sentado,de tê-la beijado, ele se deitou e ela, achou umamaneira, de erguê-lo um pouco e deslizar paradebaixo dele, em seguida encaminhou-o para o que

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até então ele procurara, onde não fez senão aquiloa que já estava acostumada, a própria natureza seencarregando do resto da instrução.12

[XIX] Encerrada a lição amorosa, Dafne tãoinocente quanto antes, quis correr até Cloé parafazer-lhe também o que acabara de aprender, comose tivesse medo de esquecer. Mas Lycenion o reteve,dizendo: “É preciso que saibas ainda mais o seguinte,Dafne: como eu já era mulher, não me causastenenhum mal; pois um outro homem, há algum tempoatrás, me ensinou o que eu acabo de te ensinar e teveminha virgindade como prêmio. Mas Cloé, quandoela lutar contigo essa mesma luta que tiveste comigo,irá gritar, chorar e sangrará na primeira vez, comose estivesse sendo assassinada; mas não tenhasmedo, e quando ela resolver, trá-la até aqui, pois casoela grite, ninguém irá ouvir, e se chorar, ninguéma verá, e se sangrar, ela poderá se lavar nesta fonte.E lembra-te também que eu te fiz homem antes deCloé.”

[XX] Depois de lhe ter dado esse conselho,Lycenion foi para o outro lado do bosque, fingindo

 procurar ainda o seu pato, e Dafne pensando no queela lhe tinha dito, não sabia se ousaria exigir de Cloéalgo além do beijo e do abraço. Ele não queria fazê-la gritar, pois lhe parecia o ato de um inimigo; nem

fazê-la chorar, pois isto era sinal de que ela se sentiamal; ou de fazê-la sangrar, pois sendo inocente, eletemia este sangue e achava impossível que o sanguenão saísse senão de uma ferida. Assim voltou do

 bosque com a resolução de ter com ela apenas os prazeres costumeiros, e chegando ao lugar onde ela

estava sentada fazendo uma guirlanda de violetas,

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inventou para ela que ele tinha salvo das garras daáguia o pato de Lycenion; depois abraçou-a e beijou-a como Lycenion havia feito durante o prazer; pois

era a única coisa, segundo pensava, que podia fazersem perigo; e Cloé pôs sobre a cabeça dele aguirlanda que fizera, enquanto beijava seus cabelos,que cheiravam melhor do que as violetas; depois lhedeu seu alforge com um doce de figos secos13 ealguns pães, e muitas vezes ela, enquanto ele comia,

tirava um pedaço de sua boca um pedaço quetambém comia, como os pássaros recém-nascidos pegam o alimento no bico de sua mãe.

[XXI] Assim enquanto comiam juntos, menosempenhados em comer do que em beijar, surgiu um barco de pescadores que navegava ao longo da costa. Não havia nenhum vento, e o mar estava muitocalmo, motivo pelo qual eles iam remando com todaa diligência de que eram capazes, para levar a algumacasa rica da cidade seu peixe recém-pescado e aindafresco; e o que todos os marinheiros faziam paraaliviar seu trabalho, eles também faziam: um deles

cantava uma canção do mar, cuja cadência regulavaos movimentos dos remos, e os outros, igual a umcoro de música, uniam a intervalos suas vozes à docantor. Ora, enquanto navegavam pelo mar, o somse perdia naquela extensão e a voz se desvanecia noar; mas quando eles ultrapassaram um recife e

entraram numa baía profunda em forma de crescente,ouvia-se claramente o barulho dos ramos, e commaior nitidez o refrão da canção; porque o fundo da baía terminava num vale vazio, o qual ao recebero som, como o vento que se entoa dentro de umaflauta, devolvia uma ressonância que representava o

 barulho dos ramos e a voz dos cantores de forma

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separada, coisa agradável de se ouvir. Pois comouma voz vinha primeiro do mar, aquela que respondia da terra ressoava um pouco depois, que a outratinha começado.

[XXII] Dafne que sabia o que era a ressonância, olhava para o mar, e extraía um prazer singularem ver o barco navegar tão rápido quanto o vôode um pássaro, procurando reter algo da canção

 para que depois pudesse tocá-la em sua flauta. Mas

Cloé que jamais tinha ouvido essa ressonância davoz a que chamamos eco, virava a cabeça, ora parao lado do mar, quando os pescadores cantavam, ora

 para os bosques, procurando aquilo que lhe respondia. Quando eles passaram, tudo se calou no mare no vale; e Cloé perguntou a Dafne se por trás

do recife havia um outro mar, um outro barco eos outros remadores que cantavam. Ele sorriu comdoçura, e a beijou com mais doçura ainda, depoiscolocando sobre a cabeça dela a guirlanda devioletas, começou a lhe contar a fábula de Eco14,

 pedindo como paga dessa belo conto, dez outros

 beijos. Então falou para ela:

[XXIII] “Minha amiga, existem vários tipos de Ninfas; umas são Ninfas dos bosques, as outras dos prados ou das águas, todas belas, todas excelentesna arte de cantar15; e outrora Eco era a filha de umadelas, mortal porque nascera de pai mortal; bela, porque filha de uma bela mãe. Foi criada pelas Ninfas e ensinada pelas Ninfas, que lhe mostraramcomo tocar flauta, formar os sons com a lira e coma citara, e lhe ensinaram todo tipo de canto; tantoassim que já na flor da idade ela dançava com as

 Ninfas e cantava com as Musas; mas ela fugia dos

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machos, tanto dos deuses quanto dos homens, amandoa virgindade. Pã se irritou com ela, invejoso porqueela cantava tão bem, e despeitado por não poderdesfrutar de sua beleza. Ele enlouqueceu os pastorese os cabreiros da região que, como lobos ou cãesraivosos se lançaram sobre a pobre moça, despeda-çando-a enquanto cantava, e dispersaram seus mem

 bros cheios de harmonia16. A Terra os recebeu comoum favor às Ninfas, conservou seu canto, reteve suamúsica, e desde então, por causa da vontade dasMusas, imita as vozes e os sons, e representa, comofazia a donzela quando viva, homens, deuses, animais, instrumentos e Pã, quando toca flauta, o qualao ouvir seu toque imitado, salta e corre pelasmontanhas, não por nova inveja, mas procurandoonde está o aluno que imita o seu toque, sem que

 possa vê-lo nem conhecê-lo.”

Quando Dafne terminou esse conto, Cloé beijou-o não só dez vezes, como ele havia pedido, masmuito mais. Pois Eco repetiu, tudo quanto ele haviadito, para testemunhar que não havia mentido.

[XXIV] O calor se tomava maior a cada dia, porque a primavera ia chegando ao fim e o verão já se insinuava; e eles também se entregavam a novos passatempos, condizentes com o verão. Dafne nadava nos rios, Cloé se banhava nas fontes; ele tocava

flauta rivalizando com a música dos pinheiros queos ventos faziam ressoar; ela cantava em harmoniacom os rouxinóis. Juntos caçavam as cigarras,

 pegavam rãs, subiam nas árvores, comiam frutos; e por fim se deitavam sob a mesma pele de cabra, nus;e Cloé se tomaria facilmente mulher, se Dafne não

tivesse medo de fazê-la sangrar; e tinha tanto medo

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disso, que muitas vezes impedia que Cloé se despissetoda, para espanto dela própria; mas ela tinhavergonha de perguntar-lhe a causa.

[XXV] Neste verão acorreram muitos pretendentes para casar com Cloé e eles vinham de todosos lados fazer o pedido a Drias. Alguns lhe traziam

 presentes e todos faziam grandes promessas; de talmodo que Napé, tomada de avareza, aconselhava-

a se casar logo para não ficar uma moça crescidaainda dentro de casa; que se ela não se apressassea encontrar marido, ela podia por acaso talvez, aoguardar os animais no campo, perder sua virgindadee se casar apenas em troca de maçãs ou rosas17comalgum pastor; e, por isso era melhor, dizia Napé,

fazê-la senhora da casa de um bom trabalhador etomar o que lhe ofereciam para dar a seu verdadeirofilho. Além disso, também nascera o filho deles. Eo próprio Drias às vezes concordava com essesargumentos; ainda mais que as ofertas feitas estavam

 bem acima do que uma simples pastora merecia; mas

considerando em seguida que a moça não nascera para esposar um camponês, e que se algum dia elareencontrasse sua família, ela poderia fazê-los felizes, sempre adiava a resposta e fazia os pretendentesesperarem até a próxima estação, com o que ficavacheia de presentes.

Ao saber de tudo isso Cloé se entristeceu, e ficoumuito tempo sem conseguir dizer a Dafne a causade seu dissabor. Mas vendo que ele a abordava eimportunava, e se aborrecia por não lhe dizer, elalhe contou tudo: como eram muitos os pretendentes

que a pediam; como eram ricos, as coisas que Napélhe dizia para que ela aceitasse o casamento, e como

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Drias, sem contradizê-la, ia adiando tudo até à próxima colheita.

[XXVI] Dafne ao saber dessas notícias, quase perdeu o juízo e o controle, sentou-se no chão ecomeçou a chorar, dizendo que ele morreria se Cloédeixasse de andar nos campos, guardar os animaiscom ele, e não só ele, mas as ovelhas e os carneirosmorreriam de desgosto, se perdessem uma pastora

como ela. Depois refletiu um pouco, retomou acoragem e se convenceu de que ele próprio podiatê-la, se a pedisse a seu pai, esperando prevalecerfacilmente sobre os outros e ser o escolhido. Umacoisa no entanto o perturbava: Lamo não era rico;este era o único ponto que fazia com que suasesperanças diminuíssem. No entanto decidiu, acontecesse o que acontecesse, pedi-la como mulher, como que Cloé também concordou. No entanto ele nãoousou dizer nada a Lamo, mas revelou com ousadiao seu amor para Mirtal, e lhe contou como desejavaesposar Cloé.

Mirtal contou tudo para o marido à noite. MasLamo se aborreceu, e chamou sua mulher de estú

 pida, por querer casá-lo com uma filha de simples pastores, um rapaz que como ela sabia muito bem pelos sinais de identificação deixados com ele,estava destinado a uma outra fortuna e que mais dia

menos dia seria reconhecido pelos seus, permitindoque eles fossem libertados da servidão18 para setomarem senhores e donos de uma terra maior doque aquela de que tomavam conta como servos.Mirtal no entanto, temendo que o rapaz tomado pela paixão, ao perder toda esperança diante do que tanto

desejava, fosse capaz de alguma resolução funesta,

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alegou outros motivos e pretextos de recusa: “Meufilho, ela lhe disse, somos pobres, e precisamos deuma moça que possa nos dar em vez de sermos nós

que tenhamos que dar; eles, ao contrário, são ricos,mas também querem um marido que lhes acrescente.Mas vai, faz o que puderes junto a Cloé, e ela juntoao pai, para que ele não nos peça muita coisa e quete dê em casamento. Sem dúvida ela também te ama,e ela prefere dormir contigo pobre e belo do que com

os outros, que são ricos e feios como macacoscobertos de ouro.”

[XXVII] Mirtal acreditou que desse modo poderia suavemente dissuadir Dafne. Pois ela tinhacomo certo que Drias não consentiria, tendo à suadisposição tantos partidos ricos que lhe ofereciamtantos bens. Quanto a Dafne, ele não podia sequeixar da resposta, mas vendo a esperança tãoremota, fez o que trodos os amantes que são pobrescostumam fazer; pôs-se a chorar e invocou as Ninfasque, na noite seguinte, apareceram enquanto eledormia, da mesma forma e do mesmo modo que da

 primeira vez; e a mais velha lhe disse: “A um outrodeus cabe cuidar do casamento de Cloé: nós faremoscom que ganhes Drias. O barco dos metimianos,aquele que as cabras roeram as amarras, foi levado

 pelos ventos nesse dia para bem longe daqui: masoutros ventos durante a noite o lançaram de volta

à costa, onde naufragou junto com tudo que haviadentro dele, assim as ondas jogaram, com seusdestroços, uma bolsa de trezentos escudos na praia,e ela está lá coberta de algas, perto de um delfimmorto, motivo pelo qual ninguém se aproximouainda, já que todos fogem do fedor da podridão. Vaiaté lá, pega a bolsa e dá para ele. Será o bastante

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 por enquanto para mostrar que não és pobre: tempovirá em que serás rico.”

[XXVIII] Mal acabaram de proferir essas palavras, elas desapareceram com a noite, e o diacomeçou a despontar. Dafne se levantou feliz, levouseus animais para os campos com os sons habituais,e depois de beijar Cloé, saudar as Ninfas, correu atéa beira-mar, fingindo que ia se molhar com a água

do mar. Passeando pela praia, examinava tudo à procura dos trezentos escudos, o que não lhe custoumuito; pois o mau cheiro do delfim apodrecidochegou rapidamente a seu nariz, e lhe serviu de guiaaté o lugar, onde depois de separar as algas, encontrou embaixo delas a bolsa cheia que logo apanhoue guardou no alforge. Mas não foi embora dali antesde adorar e agradecer às Ninfas, e até mesmo ao mar; pois como era pastor, amava o mar, que lhe pareciadoce e bom mais ainda do que a terra, porque eraele que o ajudava a casar com sua amiga.

[XXIX] Depois de pegar o dinheiro, não esperounem mais um pouco; achando que era o mais rico,não só de todos os camponeses da redondeza, mastambém de todos os viventes, foi até Cloé, contou-lhe o sonho que tivera, mostrou-lhe a bolsa que tinhaencontrado, e lhe disse para guardar os animais atéque estivesse de volta; depois correu ao encontro de

Drias, que estava batendo o trigo com sua mulher Napé. Dirigiu-lhe então uma corajosa fala, dizendo-lhe estas palavras:

“Dá-me Cloé em casamento. Sei tocar bem aflauta; sei cuidar bem das vinhas e das árvores,

trabalhar a terra, joeirar o trigo; e sei como governar 

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os animais, a própria Cloé pode testemunhar. Noinício confiaram-me cinqüenta cabras; eu as multi

 pliquei por dez; e transformei em dez bodes grandes

e bonitos os dois que me deram; além disso, sou jovem e teu vizinho, de quem ninguém pode sequeixar. Uma cabra me amamentou, assim comouma ovelha a Cloé; e ainda que por tantos motivos,eu mereça ser preferido aos outros que a pedem,ainda assim eu te darei mais do que eles. Eles te

darão, algumas cabras, alguns carneiros, um casal de bois cheios de sarna, trigo para alimentar trêsgalinhas; mas eu, como vês, tenho trezentos escudos

 para te dar. Peço-te apenas que ninguém· saiba denada, nem mesmo meu pai Lamo.” Enquanto diziaestas palavras, entregou-lhe o dinheiro, e o beijou.

[XXX] Drias e Napé, vendo uma tão grandesoma de dinheiro, como jamais tinham visto, prometeram-lhe logo que ele teria Cloé como mulher,e disseram que fariam com que Lamo aprovasse essecasamento. Dafne e Napé continuaram a trabalharna eira, separando com a grade de esterroar o trigo

do joio, enquanto Drias, foi primeiro guardar a bolsae o dinheiro, para depois ir até Lamo e Mirtal, pedir-lhes, ao contrário do que é costume, seu jovem filhoem casamento.

Encontrou-os a medir a cevada depois de tê-la

 joeirado, e queixando-se de terem colhido apenas amesma quantidade que haviam semeado19. Ele osreconfortou, dizendo que tinha sido assim em toda

 parte; depois pediu-lhes Dafne como marido paraCloé, e lhes disse que embora outros tivesem lheoferecido e dado muito, ele não queria nada deles,

antes estava disposto a dar-lhes do seu. Pois eles,

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afirmava, cresceram juntos, e guardando juntos osanimais no campo, se tomaram de tal amizade um

 pelo outro, que seria desastroso separá-los agora; e

também já tinham idade para dormir juntos. Ele deuessas razoões e muitas outras, já que havia recebidotrezentos escudos para convencê-los.

Lamo não podendo dar sua pobreza como pretexto, pois eram os próprios pais da moça que

 pediam, nem podendo alegar a idade de Dafne, poisele já tinha alcançado a adolescência há algumtempo, não ousava também dizer por que nãoconsentia e porque tal aliança não convinha a Dafne;assim depois de ter pensado durante algum tempo,respondeu desta maneira:

[XXXI] “É digno de vossa parte preferir vossovizinho a qualquer estrangeiro, e preferir a pobrezahonrada à riqueza. Que Pã e as Ninfas vos recom

 pensem! Quanto a mim, devo dizer que tenho tantavontade quanto vós que esse casamento se faça; poisde modo contrário eu seria insensato, vendo-me já

 perto da velhice e tendo necessidade de ajuda maisdo que nunca, se não considerasse uma grande honraaliar-me à vossa casa; e Cloé como todos sabem, éuma boa e bela moça, não há mais o que dizer. Massendo servo como eu sou, não tenho nada de que

 possa dispor, é preciso que meu senhor saiba e

consinta também. Ora, eu vos peço, adiemos, asnúpcias até as vindimas, pois ele deve, pelo quedizem os que vêm da cidade, vir por aqui; e entãoserão marido e mulher, enquanto esperam se amarãocomo irmão e irmã. Mas aquele que quereis comogenro, é alguém que vale mais que nós.” Isto dito,

 beijou-o e lhe deu de beber; pois já era quase meio-

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dia; e o acompanhou na volta até um trecho docaminho, fazendo-lhe mimos infinitos.

[XXXII] Mas Drias, que não ficara surdo àsúltimas palavras de Lamo, se foi a pensar quemDafne podia ser: “Uma cabra foi sua ama, os deusescuidaram dele. Ele é belo e não tem nada deste velhoconfuso nem de sua mulher miserável. Ele achouquando teve necessidade esses trezentos escudos; um

cabreiro mal poderia encontrar tantas avelãs. Seráque ele foi encontrado como Cloé? Lamo não o teriaachado, como eu a essa menina, com suas marcase insígnias como no caso dela? O Pã, e vós Ninfas!fazei com que seja verdade sobre ele! Quem sabeum dia Dafne, reconhecido por seus pais, poderá

também fazer com que possamos conhecer os deCloé.”

Drias caminhava falando e sonhando assim, atéque chegou à sua eiraaonde encontrou o rapaztomado pelo desejo de ouvir quais as notícias que

trazia. Ele o consolou, chamando-o de seu genro;deu-lhe a certeza das núpcias para as próximasvindimas, dando-lhe sua palavra de lavrador queCloé não seria de nenhum outro a não ser dele.

[XXXIII] Em seguida, Dafne sem querer nem

 beber nem comer, correu até ela, e ao encontrá-laa ordenhar as ovelhas para fazer os queijos, anuncioua boa nova do faturo casamento, e daí em diantenunca mais hesitou em abraçá-la diante de todo omundo, como sua noiva, em ajudá-la em todas astarefas, e até ordenhava as ovelhas na vasilha; tirava

o leito para fazer queijos, levava os cordeiros parasua mãe, fazendo o mesmo com seus cabritos; depois

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que tudo estava pronto, eles se banhavam, comiam, bebiam; depois saíam à procura de frutos maduros,que existiam em grande abundância, porque já eraagosto, na plenitude do outono; muitas peras do

 bosque, muitas nêsperas e acerolas, muitas cidras,umas caídas no chão, outras nos galhos das árvores. No chão elas tinham um cheiro melhor, nos galhosestavam mais frescas; umas cheiravam comomalvasia20, outras reluziam como ouro.

Entre as macieiras, havia uma de que já se tinhacolhido tudo, sem mais folha nem fruto. Os galhosestavam nus, e só restara uma só maçã no cimo dogalho mais alto. A maçã, bela e extraordinariamentegrande, cheirava tão bem ou melhor que as outras;mas aquele que colhera as outras não ousara subir

tão alto, ou se esquecera de tirá-la; ou talvez fosseo caso de que a maçã tivesse sido reservada para um

 pastor enamorado.

[XXXIV] Logo que a avistou, Dafne se sentiuna obrigação de colhê-la. Cloé quis impedi-lo; mas

ele não deixou: mas ela medrosa e despeitada porque ele não a escutara, foi para junto do rebanho,e Dafne, subindo no alto da árvore, alcançou a maçãque colheu e levou para ela, e vendo-a descontente,lhe disse estas palavras: “ Esta maçã, Cloé minha,amiga, foi feita pelos belos dias do verão, uma belaárvore a alimentou; depois amadurecida pelo sol, asorte a conservou. Eu seria um cego se não a visse,e tolo se ao vê-la a deixasse por lá, para que caísseno chão, e fosse pisada pelos animais; ou envenenada

 por alguma serpente que por ali passasse; ou entãoa deixasse lá no alto, olhada, admirada, invejada, atéapodrecer com o tempo. Uma maçã foi dada a Vênus

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 por ser a mais bela; tu também mereces o prêmio.Tendo uma e outras a mesma beleza, tendes juizes

 parecidos. Ele era pastor; eu sou um guardador de

cabras.21”

Ao dizer essas palavras, ele colocou a maçã nocolo de Cloé, e ela, quando ele se aproximou, beijou-o tão suavemente, que ele ficou contente por tersubido tão alto por um beijo que valia mais do que

as maçãs de ouro.

 Notas

1. Este nome, que significa  o Cavaleiro,   pertence à 

epopéia: é com efeito o nome de um dos filhos de Príamo na  

llíada.  (N.E.)

2. A pastoral é o domínio ideal da paz e da concórdia, 

dedicada ao Amor e não à guerra; por isto não há lugar para 

este episódio militar (próprio do gênero épico) e ele termina 

antes mesmo de ter começado. (N.E.)

3. Bolota, o fruto do carvalho ou da azinheira, por exemplo.(N.T.)

4. O grego designa esta ressureição com uma palavra de  

conotação mística, palingenesia. O valor simbólico da renova

ção primaveril aplicado a uma concepção cíclica da vida é uma 

das constantes da literatura e da mitologia gregas. (N.E.)

5. A presença conjunta em Drias desses dois atributos 

divinos mostra.a associação entre Vênus (o mirto) e Baco (a 

hera) no destino de Cloé. A hera é tradiconalmente associada 

ao Amor por causa da maneira pela qual esta planta enlaça seu 

ponto de apoio, como se fosse um abraço amoroso. (N.E.)

6. A Ucrânia atual (isto é o Grande Norte para os gregos 

de Lesbos). (N.E.)

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7. Há em grego um jo go de palavras difícil de traduzir sobre 

o caráter nefasto do empreendimento. O texto diz com os  

 pássaros desfavoráveis, numa alusão ao fato de que os antigos  

não realizavam nenhum empreendimento de alguma importân

cia sem consultar os auspícios, isto é sem observar o vôo dos  

pássaros para ler os presságios favoráveis ou desfavoráveis.  

Dafne atribui por irrisão aos pássaros que ele acaba de pegar 

a mesma função profética: eles lhe dizem que seu empreen

dimento só pode fracassar. (N.E.)

8. Nos banquetes festivos, os antigos gregos tinham o 

hábito de se coroar de heras, planta consagrada a Baco, e de  

invocar o deus antes e depois da refeição. (N.E.)

9. A infeliz Procné metamorfoseada em rouxinol lamenta 

a morte de seu filho Itys, que ela própria sacrificou (esta célebre 

fábula é narrada por Ovídio,  Metaformoses,  VI, 124). (N.E.)

10. A tradução de Amyot desenvolve e parafraseia a 

expressão grega: em busca do amor. Courier sublinha em suas 

notas que a fórmula grega é de origem filosófica e mística.  

(N.E.)

1 1 . 0 nome de Lycenion, a Loba,  designa metaforicamente 

uma prostituta: corresponde portanto à função iniciática da 

personagem, que pertence ao pequeno mundo da comédia tal 

como seu esposo. Com efeito, ainda que o nome de Chromis, 

que designa um peixe, já possa ser encontrado na poesia 

bucólica, o marido corresponde exatamente ao tipo do velho 

tolo da comédia, enganado por sua jovem esposa leviana; do 

mesmo modo o casal formado por uma citadina astuta e um 

agricultor idoso é uma situação típica da comédia. (N.E.)

12. Amyot, embora tivesse à sua disposição o texto grego,  

não ousou traduzir a lição de educação sexual. A partir de “Ela 

pediu”, temos pois um novo exemplo de reconstituição feito 

por Courier no estilo da Renascença. (N.E.)

13. O texto grego menciona um doce de figos secos: trata- 

se de um detalhe significativo, pois os figos simbolizam no

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código amoroso o estágio físico, em oposição às maçãs que  

são associadas à declaração de amor e às preliminares amo

rosas. (N.E.)

14. Esta versão da fábula de Eco é muito diferente daquela  contada por Ovídio nas  Metamorfoses  (III, 356-401). Nós só 

a conhecemos através de Longus. A narrativa de Dafne forma 

par com a fábula da Siringe (II, XXXIV) e as duas histórias  

são simétricas: sacrificadas por ter desprezado o amor de Pã, 

Eco e Siringe sofrem uma metamorfose sublimadora e se  

transformam em música. (N.E.)

15. O texto grego nomeia aqui as três categorias de Ninfas: 

as Melíades, as Dríades (cujos nomes designam dois tipos de  

árvores) e as Heleádes ou Ninfas dos pântanos (para outras 

categorias de Ninfas, ver cap. II, XX XIX). Am yot transpôs suas 

respectivas atribuições, acrescentando as Ninfas dos prados que 

não figuram no texto (mas que seriam as Napéias). Se todas 

são musicistas, é porque as Ninfas, na época de Longus, eram  em geral assimiladas às Musas, como mostra mais adiante a 

dupla educação recebida por Eco. (N.E.)

16. Jogo de palavras intraduzível com a palavra  mêlé,  que 

em grego significa tanto  membros  quanto  melodia',  o corpo 

material de Eco é dessa maneira, graças à linguagem, um corpo 

totalmente musical. Não é impossível que essa versão do mito  de Eco tenha sido inventada por Longus a partir desse jogo  

de palavras. Além disso, o castigo de Eco, que corresponde a 

um rito dionisíaco, parece com o desmembramento de Orfeu, 

despedaçado pelas bacantes, cujos membros foram depositados 

à margem de Metime (Ovídio,  Metamorfoses,  XI, 1-55). 

Reencontramos aí portanto a influência subjacente de Baco em  

associação com Pã, como na aventura de Cloé (II, XXV-  

XXVIII). (N.E.)

17. Isto é, para o prazer de Vênus (designada através da 

metonínia “maçãs e rosas”) e por conseguinte sem trazer 

benefício para os pais. Napé se comporta aqui como um 

personagem de comédia, e assim emprega a linguagem gros

seira da mãe cúpida. (N.E.)

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18. Na Antiguidade, os pastores em geral não eram  

cidadãos livres, mas escravos. A lei concedia no entanto aos  

senhores o direito de libertarem seus escravos com o recompen

sa por seus bons serviços. Drias e Lamo são dois escravos.  

(N.T.)

19. Os cereais produzem em média cinco a dez vezes mais 

do que a quantidade de grão semeado. (N.E.)

20. Uva doce e cheirosa. (N.E.)

21. Alusão ao julgamento de Páris que, como Dafne, era filho de rei, abandonado na infância e adotado por pastores. Três deusas o escolheram, enquanto ele guardava seus carnei

ros, para ser juiz de um concurso de beleza cujo prêmio deveria 

ser uma maçã de ouro: Páris deu a maçã a Vênus, que lhe  

prometeu em recompensa Helena. Oferecer uma maçã é, no 

código da relação amorosa, o equivalente a uma primeira 

declaração: ainda que se possa ver aí um retomo paradoxal, 

esta cena se justifica pelo noivado, renovação solene da  

primeira declaração. (N.E.)

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LIVRO QUARTO

[I] Foi quando um dos criados do senhor deLamo, vindo da cidade, deu-lhe a notícia de que seusenhor em comum viria um pouco antes das vindimas, para ver se a guerra não teria causado estragosem suas terras; Lamo aproveitou a oportunidade, jáque a estação estava chegando ao fim e a época do

calor já passara, para preparar com cuidado ahabitação e os jardins, para que seu senhor não vissenada que não fosse agradável. Cuidou das fontes paraque a água ficasse mais limpa e mais clara; tirou oadubo de estrume com medo que o mau cheiro

 pudesse incomodá-lo; pôs em ordem o pomar paraque ele o achasse ainda mais formoso.

[II] A verdade é que o pomar por si mesmo jáera uma coisa bela e agradável, e tinha umamagnificência à altura dos reis. Seu cumprimento erade cerca de meio-quarto de légua, e ficava num sítio bastante elevado, tendo quinhentos passos1 de largura, da maneira que parecia ao olho um quadradoalongado. Nele se encontravam todos os tipos deárvores, macieiras, mirtos, amoreiras, pereiras, assimcomo romãzeiras, figueiras, oliveiras, e em várioslugares a vinha trepava nas macieiras e nas pereiras,onde uvas e frutos amadureciam juntos, com a árvore

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e a vinha parecendo disputar entre si a fecundidade.Também se encontravam aí as plantas cultivadas;mas havia também árvores sem frutos a crescer por

conta própria, como os plátanos, loureiros, ciprestes, pinheiros; e nesses, em vez da vinha, as heras seespalhavam, com seus grandes e já enegrecidoscachos a imitar a uva.2As árvores frutíferas ficavamna parte mais interior na direção do centro do jardim para que fossem melhor guardadas, as esteréis nas

margens, em volta por toda a parte como umafortificação, e todas cercadas e protegidas por um pequeno muro sem cimento. Tudo estava bemordenado e distribuído, os pés de árvores guardandodistância um dos outros; enquanto seus galhos seentrelaçavam no alto de tal maneira, que a natureza parecia uma obra de arte3. Depois vinham os canteiros de flores, uns produzidos pela natureza eoutros pela arte dos homens; as rosas, os lírios,tinham surgido por obra do homem; as violetas, osnarcisos, as margaridas, brotaram apenas graças ànatureza. Por fim, havia sombra no verão, flores na

 primavera, frutas no outono, e em qualquer época

todas as delícias.

[III] Dali se avistava uma grande extensão da planície, e se podia ver os pastores guardando seusrebanhos e os animais no meio dos campos; dali sevia o mar com os barcos indo e vindo ao longo da

costa, prazer contínuo que se unia às outras ameni-dades desse lugar. E bem no meio do pomar, nocruzamento de duas aléias que o cortavam, havia umtemplo dedicado a Baco com um altar todo revestidode hera e com o templo coberto pela vinha. Dentroestavam pintadas as histórias de Baco: Sêmele que

 paria, Ariane que dormia, Licurgo amarrado, Penteu

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dilacerado, os indianos vencidos, os tirrenianostransformados em delfins, sátiros por toda a partealegremente ocupados com os lagares e com a

vindima, por toda parte bacantes que dançavam. Odeus Pã não fora esquecido, permanecendo sentadosobre uma rocha tocando sua flauta, e de tal modoque parecia estar tocando a mesma música para as

 bacantes que dançavam e para os sátiros que pisavama colheita4.

[IV] Este era o jardim de que Lamo cuidava,aperfeiçoando-o cada vez mais de acordo com suanatureza, limpando o que estava seco e morto nasárvores, e levantando as vinhas que caíam. Todosos dias ele colocava sobre a cabeça de Baco umacoroa de flores; e também regava os canteiros; pois

havia neste pomar uma fonte viva que Dafne haviaencontrado, que por isso se chamava a fonte deDafne, com cuja água regava as flores. E a quemLamo recomendava que engordasse o mais que pudesse suas cabras, porque o senhor não tardariaa vê-las assim como a todo o resto, já que há muito

tempo não visitava suas terras e seu gado.

Mas Dafne não tinha medo de deixar de serelogiado por seu rebanho,pois ele o duplicara, nãodeixara que o lobo as atacasse, e agora tinha duasvezes mais cabras do que a quantidade que haviarecebido, e todas estavam em melhor forma e maisgordas do que as ovelhas. No entanto para que seusenhor aceitasse de boa vontade casá-lo com aquelaque desejava, ele empregava todo o esforço, cuidadoe diligência de que era capaz para tomá-las aindamais belas, levando-as para o campo desde manhãcedo e só trazendo-as de volta quando já era bem

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tarde. Levava-as para beber duas vezes por dia, e procurava os melhores lugares para o pasto; lem brou-se também de providenciar batedeiras novas,

 bastante vasilhas para a ordenha e grades de vimemaiores5; enfim, dedicou-lhes o máximo de amor ecuidado. Aparava seus chifres, pintava seus pelos;e aquele que visse suas cabras, poderia jurar que erao rebanho sagrado do deus Pã. Cloé ocupava-se demetade dessa tarefa, e esquecendo suas ovelhas,

 passava a maior parte de seu tempo ocupada comas cabras; e Dafne acreditava que elas pareciam belas por causa da mão de Cloé.

[V] Estavam ocupados nessas tarefas, quandoveio um segundo mensageiro dizer que a vindimadevia ser iniciada o mais cedo possível, e que o vinhoficasse logo pronto, tendo em seguida voltado paraa cidade a fim de avisar o seu senhor para que sóviesse na época de colher os últimos frutos, lá pelofim do outono. Este mensageiro se chama Eudromo,que quer dizer bom corredor6, e seu ofício era ir paraqualquer lugar para onde fosse enviado. Todos se

esforçaram para lhe dar a melhor acolhida possível.E foi assim que passaram a se dedicar à colheita,e, em poucos dias, a vinha tinha sido toda colhida,a uva prensada, o vinho colocado nos jarros, deixando-se no entanto uma parte das uvas mais belas nosgalhos para aqueles que viessem da cidade pudessem

ter uma imagem dos prazeres da colheita, e pensassem estar assistindo a ela.

[VI] Quando já estava chegando a hora da partida de Eudromo, Dafne deu-lhe vários presentes,em especial aquelas coisas que um cabreiro pode dar,

como belos queijos, um pequeno cabrito, uma pele

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de cabra branca com o pêlo bem comprido, para quese cobrisse durante o inverno quando estivessecorrendo; ele agradeceu, beijou Dafne prometendo-lhe que iria elogiá-lo para seu senhor. Afinal ocorredor voltou para a cidade cheio de bons sentimentos em relação a todos eles, e Dafne ficou nocampo, preocupado com Cloé. Ela também tinhamedo por ele, pensando que ele era um jovem quenada conhecia, a não ser suas cabras, a montanha,os camponês e Cloé, e cedo iria ver seu senhor, dequem mal ouvira falar o nome antes daquele instante.Ela se inquietava também a respeito de como é queele iria falar com seu senhor, e estava muito agitada

 por causa de seu casamento, temendo que ele sedissipasse como fumaça; e de tal modo que, porcausa desses pensamentos, seus beijos costumeiros

estavam impregnados de medo e seus abraços deaflição. Assim é que permaneciam muito tempoabraçados; e tinham a impressão de que o seu senhor

 já havia chegado e que ele os tinha visto de algumlugar. Estavam em meio a toda essa aflição, quandosurgiu um novo problema.

[VII] Perto dali vivia um boiadeiro chamadoLampis7, por natureza perverso e ousado, que tam

 bém pretendia casar-se com Cloé, motivo pelo qual já dera muitos presentes a Lamo, o qual ao pressentirque Dafne iria esposá-la, uma vez que conseguisse

deixar seu senhor bem satisfeito, procurou os meios para fazer com que o senhor se voltasse contra ele;e sabendo que seu maior prazer estava no jardim,resolveu estragá-lo e prejudicar tudo aquilo queestivesse a seu alcance. Ora se fosse cortar asárvores, poderia ser visto e apanhado; então pensou

que o melhor era estragar as flores. Dessa maneira

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resolveu esperar a chegada da noite, e pulando a pequena muralha, pôs-se a arrancá-las, cortá-las,esmagá-las, pisá-las como um javali, em seguida foiembora sem fazer qualquer barulho; ninguém o viu.

Lamo, ao amanhecer o dia, ao entrar no jardimcomo de costume para regar as flores com a águada fonte, deparou-se com o lugar tão perversamentedevastado como se fosse obra de um inimigo emguerra aberta que viera pilhar tudo. Então, sem sabero que que fazer, rasgou sua jaqueta, e se pôs a gritar“ó deuses” tão alto que Mirtal abandonando o quefazia, correu até ele, e Dafne que já conduzia seusanimais para os campos, voltou correndo para casa,e todos contemplando aquela grande destruição,começaram a gritar e a chorar; mas todas suas

lamentações eram em vão.

[VIII] Não é de admirar que aqueles que temiama ira do seu senhor, chorassem; pois até um estrangeiro a quem o fato não dissesse respeito tambémteria chorado ao ver um lugar tão belo devastado

daquela maneira, a terra toda em desordem coberta por restos de flores, onde somente uma escapara àmaldade do invejoso, guardando suas cores vivas, emesmo ali caída no chão, ainda era bela. As abelhasvoavam em volta murmurando continuamente, comose lamentassem esse estrago, e Lamo proferia estas

 palavras: “Ah! minhas belas roseiras, como todasforam derrubaradas! Ah! minhas violetas, comotodas foram pisadas! Meus jacintos e meus narcisostodos arrancados! Foi algum homem malvado-eimpiedoso que as estragou assim. A primaveravoltará, e nada irá florescer; o verão voltará, e este

lugar irá permanecer sem adorno; o outono virá, e

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não haverá aqui nada com que se possa sequer fazerum buquê. E vós, senhor Baco, não tivestes piedadedessas pobres flores que, na tua presença e diante

de teus olhos, foram assim destruídas, elas com queteci tantas coroas para te ornar! Como é que podereimostrar agora a meu senhor o seu jardim? o que medirá ele quando o vir assim tão impiedosamentedevastado? não irá enforcar a esse velho infeliz,como Mársias8 num desses pinheiros? E o que ele

irá fazer, e também enforcará Dafne, pois irá julgarque foram as suas cabras que destruiram as flores.”

[IX] Estas lamentações e lágrimas de Lamoduplicavam as dores de todos, porque já não deploravam mais o estrago feito às flores, mas sim o

 perigo que todos corriam. Cloé lamentava seu pobreDafne, ameaçado de ser enforcado, e rezava aosdeuses para que este senhor tão esperado não viessemais; e os dias eram longos e difíceis de suportar,

 pois já antevia como o pobre Dafne seria açoitado.

Ao anoitecer Eudromo veio lhes anunciar que

dentro de três dias seu velho senhor chegaria, masque o jovem, que era seu filho, viria já no diaseguinte. Eles se consultaram sobre o que deviamfazer em relação a essa desgraça, e pediram conselhoa Eudromo, que tendo amizade por Dafne, foi deopinião que eles deviam contar a seu jovem senhor

a coisa tal como acontecera, prometendo ajudá-los,o que podia fazer, já que tinha a confiança de seusenhor de quem era irmão de leite; e no dia marcadofizeram o que ele lhes dissera.

[X] Astilo9 chegou no dia seguinte a cavalo, e

com ele um de seus bufões, também a cavalo, que

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ele trazia para seu passatempo; ele, um jovem emque a barba começava a despontar, o outro já com barba há muito tempo. A chegada de seu jovem

senhor, Lamo lançou-se a seus pés, com Mirtal eDafne, suplicando que tivesse piedade de um pobrevelho e salvasse seu pai da desgraça, pois aqueledesastre não era de sua responsabilidade, e lhecontou o que acontecera. Astilo teve piedade, entrouno jardim, e vendo o estrago, prometeu desculpá-lo,

e assumir o erro, dizendo que tinham sido os seuscavalos que se soltaram e tinham derrubado, pisado,esmagado, e arrancado tudo quanto ali havia de mais

 belo.

Por causa dessa resposta benevolente, Lamo eMirtal fizeram orações aos deuses por ter-lhesconcedido a realização de seus desejo. Por sua vez,Dafne deu-lhes belos presentes, como cabritos,queijos, pássaros com seus filhotes, uvas ainda nasvides e maçãs nos galhos; deu-lhes também aquelefamoso vinho cheiroso que Lesbos produz, o melhorde todos os vinhos para se beber.

[XI] Astilo agradeceu os presentes e ficou contente, esperando seu pai, divertindo-se com a caçaàs lebres como um jovem de casa nobre, que buscavanovas diversões e viera para respirar o ar doscampos.

Mas Gnaton era um glutão10, que só fazia comere bebia até se embebedar, e depois de beber, iasatisfazer seus desejos baixos; numa palavra, eratodo goela e ventre, e tudo... que está abaixo doventre; o qual ao ver Dafne quando ele trouxe os

 presentes, não deixou de notá-lo; pois além de gostar 

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naturalmente dos rapazes, tinha encontrado nele umatal beleza como não havia igual na cidade. Pensoulogo em abordá-lo, pensando em como seria fácil

ligar-se a um jovem pastor como ele. Com esse propósito em mente, não quis ir à caça com Astilo,descendo para a praia, lá onde Dafne guardava seusanimais, fingindo que era para ver as cabras, masna verdade era para ver o cabreiro. E a fim deconquistá-lo, começou a elogiar suas cabras; pediu

 para que ele tocasse em sua flauta alguma canção pastoril, e lhe prometeu que em breve poderialibertá-lo, possuindo, como afirmava, poder e crédito

 junto a seu senhor.

[XII] E quando acreditou que tinha dobrado esse jovem obediente, ficou à espera da chegada da noite,hora em que ele levava seu rebanho para o estábulo,e correndo até ele, começou a beijá-lo, pedindo-lheem seguida que se entregasse a ele da mesmamaneira que as cabras aos bodes. Dafne ficou durantealgum tempo sem entender o que ele queria dizer,e por fim lhe deu essa resposta: que era coisa muito

natural que o bode montassse na cabra, mas que ele jamais vira um bode montando outro bode, nem pastores montando o outro, nem os galos também,em vez de cobrirem as galinhas.

Apesar disso Gnaton tentou tocar seu corpo,

querendo forçá-lo. Mas Dafne repeliu-o rudemente,e como ele estava tão bêbado que mal se mantinhaem pé, jogou-o no chão, e partiu como um galgo,deixando-o estendido ali mesmo pois seria necessário um homem e não um adolescente para levantá-lo. Daí em diante Dafne não se aproximou mais dele,

levando suas cabras para pastar ora num lugar, ora

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noutro, fugindo dele com a mesma intensidade que procurava Cloé. O próprio Gnaton não o perseguiamais depois que vira que ele não era apenas belo,

mas um jovem forte e rijo; esperava uma ocasião para falar disso a Astilo, e acreditava que seu jovemsenhor lhe daria este presente, já que tinha o hábitode não lhe recusar nada.

[XIII] Todavia resolveu não fazer nada naquele

momento, já que Dionisofano e sua mulher Cleariste11tinham acabado de chegar, e havia pela casa umgrande tumulto de cavalos, criados, homens e mulheres; mas contando com a ocasião de se encontrara sós com Astilo, preparava uma bela arenga sobreseu amor.

Ora Dionisofano, aliás um homem bonito e forte, já tinha cabelos que começavam a ficar grisalhos,mas sua disposição era ainda a de um jovem: eraum dos mais ricos cidadãos da cidade e tinha umcoração melhor do que todos os outros. No primeirodia de sua chegada fez um sacrifício para as divin

dades campestres, para Ceres12, Baco, Pã, para as Ninfas, e ofereceu um banquete para toda sua família. Nos dias seguintes visitou os campos de que Lamocuidava, e vendo por toda parte terras bem lavradas,vinhas bem tratadas, e até a beleza do pomar nãoobstante o que acontecera, pois Astilo se responsa

 bilizara pela devastação das flores è do jardim, ficoumuito satisfeito em encontrar tudo em tão boa ordem,e elogiando Lamo por sua diligência, prometeu-lhea liberdade

Depois disto, foi ver as cabras e o cabreiro queas guardava.

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[XIV] Cloé sentindo vergonha e medo ao mesmo tempo por estar em tão alta companhia, fugiu

 para se esconder no bosque. Dafne ficou onde estavae se apresentou com os ombros cobertos por uma pele de cabra de pelos longos, um surrão novo atiracolo, segurando com uma das mãos um de seus belos queijos frescos, e com a outra dois cabritos deleite. Se alguma vez, como se diz, Apoio guardouos bois de Laomendonte13, ele devia ser exatamentecomo Dafne naquele momento, que sem nada dizer,mas com o rosto todo ruborizado e os olhos abaixados, inclinando-se diante de seu senhor, ofereceu-lhe seus presentes, e então Lamo tomando a palavra,disse: “É ele, meu senhor, que guarda as tuas cabras.O senhor me confiou cinqüenta ovelhas e mais dois

 bodes, e ele transformou-as em cem, e os bodes emdez. Vê como elas estão gordas e bem cuidades,como seus chifres estão inteiros e bonitos! Ele asensinou, e todas aprenderam a ouvir música, e fazemtudo que ele quer quando ouvem o som de suaflauta.”

[XV] Cleariste, que estava presente, teve vontade de fazer essa experiência. Ordenou então aDafne que tocasse a flauta como ele costumavafazer quando queria que suas cabras fizessemalguma coisa, e lhe prometeu que se tocasse bem,

lhe daria uma túnica nova, uma camisa e sapatos.Então Dafne de pé sob o carvalho, com o grupotodo à sua volta, tirou sua flauta do surrão, e

 primeiro soprou um pouco dentro dela; súbito ascabras pararam e todas levantaram a cabeça; depoisele tocou para fazê-las pastar; e todas logo enfiaram

o nariz na terra, e se puseram a pastar; depois fezsoar um canto meigo e doce, e imediatamente elas

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se deitaram no chão; a um outro som claro e agudo,elas correram para o bosque como se um loboestivesse se aproximando; em seguida, deu um

toque de chamada, e todas saíram do bosque, e se puseram a seus pés. Nem mesmo os servos podiamser tão obedientes a um chamado de seu senhorquanto elas ao som de sua flauta; foi algo quedeixou todos os espectadores maravilhados, especialmente Cleariste, que jurou que daria o que

 prometera ao gentil cabreiro, um jovem tão beloe que sabia tocar tão bem a sua flauta. Depois todosse foram e se recolheram à habitação para cear eenviaram para Dafne o mesmo que lhes tinha sidoservido, ele por sua vez dividiu tudo com Dafne,satisfeito em provar refeições feitas à moda dacidade. Além disso alimentava uma grande espe

rança em obter o consentimento de seus senhores para casar-se com sua amiga.

[XVI] Mas Gnaton, a quem a beleza de Dafne,desde que o vira com seu rebanho, arrebatava cadavez mais, não lhe deixando ter sossego nem paz,

aproveitou-se de um momento em que Astilo passeava sozinho pelo jardim, e levou-o até otempo de Baco. Aí se pôs a beijar suas mãos e seus

 pés: “Vêde o que aconteceu, senhor, ele disse, o pobre Gnaton. Ele que até agora nunca se enamorara a não ser de bons pratos, que pensava não haver

nada mais adorável do que uma jarra cheia de vinhovelho, para quem os cozinheiros pareciam ser a finaflor das belezas de Mitilene, agora não via nomundo nada tão adorável quanto Dafne. Sim, eu'queria ser uma de suas cabras, e deixaria de bomgrado tudo que pode haver de melhor à mesa, carne,

 peixe, frutas, doces, para pastar a erva ao som de

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sua flauta e sob seu cajado, comer a folhagem. Masvós, meu senhor, vós podeis salvar a vida de vossoGnaton, e ao lembrar que o Amor não tem lei, ter

 pena de seu amor: senão, eu juro, ó grandes deuses,

que após encher a pança, pego minha faca, vou atéa porta de Dafne, e aí me matarei, e vós não podereis dizer nunca mais, ah meu pequeno Gnaton,Gnaton meu amigo.”

[XVII] O jovem, dotado de boa índole, não

 podia ver Gnaton sofrer assim, chorando e beijandosuas mãos e pés, experimentando os sofrimentos doamor. Prometeu que pediria Dafne a seu pai, e olevaria como se ele fosse servir como seu criado nacidade, onde Gnaton poderia fazer o que bementendesse; depois, para confortá-lo um pouco, lhe

 perguntou rindo se ele não iria ficar envergonhadode beijar um pastorzinho como era esse filho deLamo, e que prazer haveria em ficar deitado ao ladode um guardador de cabras; e ao dizer isto, fez umacareta de desprezo, como se tivesse sentindo o maucheiro do bode. Mas Gnaton, que aprendera na mesa

dos voluptuosos tudo que se pode dizer e contarsobre o amor, certo de poder justificar sua paixão,lhe respondeu cheio de bom senso: “Aquele que ama,ó meu caro senhor, não se preocupa com nada disto;quando se encontra a beleza, não há nada no mundo

 pela qual não se possa ficar apaixonado. Assim é que

 já houve quem amasse uma planta, um rio, e atémesmo um animal feroz. Assim pois que condiçãomais triste para o amor do que ter medo daquilo quese ama? Quanto a mim, aquele que amo, é servo porsua sorte, mas nobre por sua beleza. Vêde comç> seuscabelos parecem a flor do jacinto, como sob seuscílios os seus olhos resplandecem tanto quanto uma

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 pedra preciosa lapidada como jóia, como as maçãsde seu rosto são coloridas por um encarnado cheiode vida! e essa boca vermelha omada de dentes

 brancos como o marfim, quem é tão insensível e tãoavesso ao Amor, que não deseje logo um beijo?Dediquei meu amor a um pastor; mas nisto eu imitoos deuses. Anquises guardava os bois, Vênus foiencontrá-los nos campos; Branchus apascentava ascabras, e Apoio o amou; Ganimedes era pastor, eJúpiter o raptou para obter prazer14. Não desprezemos um adolescente a quem os próprios animaisobedecem; mas antes agradeçamos às águias deJúpiter que sofrem por tão grande beleza ainda permanecer em terra.” 15

[XVIII] Ao ouvir estas palavras, Astilo pôs-sea rir, dizendo que Amor, pelo que via, engendravagrandes oradores, e depois procurou uma ocasião

 para falar desse assunto a seu pai. Mas Eudromoescutara escondido toda essa conversa, e indignadocom o fato de que tal beleza fosse entregue a um

 bêbado, além de que por inclinação queria muito bem

a Dafne, foi logo contar tudo para ele e para Lamo.Dafne ficou completamente atordoado no início,deliberando que talvez fosse melhor fugir com Cloéou então morrerem juntos. No entanto Lamo chamando Mirtal para fora do pátio, disse-lhe: “Estamos

 perdidos, minha mulher. Eis que tudo que escondí

amos deve ser revelado. Aconteça o que aconteceràs cabras e todo o resto; mas pelas Ninfas e por Pã,não vou ficar com um boi posto à mesa e não fazernada16, não irei me calar sobre a fortuna de Dafne,e irei dizer como eu o encontrei abandonado, comoeu o vi ser amamentado e mostrarei tudo quanto

encontrei com ele, a fim de que esse patife veja a

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quem seu amor se dirige. Dá-me os sinais deidentificação.”

[XIX] Dito isso, os dois voltaram para casa.

 No entanto Astilo encontrando seu pai, lhe pediu permissão para levar Dafne para Mitilene, dizendoque era um rapaz gentil demais para ser deixado nocampo, e que Gnaton o instruiria para que pudesse

servir numa casa da cidade. O pai consentiu de boavontade, e mandando chamar Lamo e Mirtal, lhesdeu a notícia de que Dafne em vez de guardar osanimais, serviria daqui em diante a seu filho Astilona cidade, e prometeu que lhe daria dois outros

 pastores para o lugar dele. Todos os escravos já

tinham se dirigido para o lugar, felizes por ter umtal companheiro; então Lamo pediu para falar, o quelhe foi concedido, e ele falou desta maneira: “Eu vos

 peço, meu senhor, que escuteis uma história verdadeira deste pobre velho; juro pelas Ninfas e pelo deusPã que não direi uma só palavra mentirosa. Não sou

o pai de Dafne, nem sua mãe é minha mulher Mirtal por mais feliz que ela fosse em ter um filho assim.Ele foi abandonado quando ainda era uma criança por seus pais que talvez tivessem outros maiores. Euo encontrei abandonado por seu pai e por sua mãe,amamentado por uma de minhas cabras, a qualenterrei no jardim, depois que ela morreu de mortenatural, pois eu a amava porque tinha agido comomãe para essa criança. Encontrei com ele jóias quetinham sido deixadas a seu lado, para que um dia pudesse ser reconhecido. Confesso que as guardei; pois são os sinais através dos quais se pode ver queveio de condição mais alta que a nossa. Ora eu não

estou descontente com o fato de que ele sirva teu

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filho Astilo, e seja para tão bom senhor um bomservidor; mas não posso deixar que seja entregue aGnaton, para se servir dele como mulher.”

[XX] Lamo após dizer essas palavras, se caloue derramou muitas lágrimas.Gnaton zangou-seameaçando bater nele; mas Dionisofano, impressionado com o que Lamo havia dito, olhou Gnatonde esguelha e lhe ordenou que se calasse, depois

interrogou diretamente o velho, conclamando-o adizer a verdade sem recorrer a mentiras com o fimde conservar seu filho. Lamo persistiu em suasafirmações, invocou os deuses, e se dispôs a sofrero que fosse, caso estivesse mentindo. Dionisofanoexaminava suas palavras, tendo Cleariste sentada aseu lado: “Com que fim Lamo iria inventar essahistória, visto que em lugar de um cabreiro receberiadois? Como poderia um camponês rude ter inventadotudo isso? Além disso, não estava claro que ummenino tão belo assim não poderia ter nascido detais pessoas?”

[XXI] Assim foi que os dois pensaram de comum acordo, sem nada combinar com antecedência,que era preciso ver os sinais de identificação, parater certeza se eles pertenciam, tal como Lamoafirmava, a alguém com uma condição mais alta quea dele. Mirtal saiu imediatamente para ir buscá-los

dentro de um velho saco onde eles os tinhamguardado. O primeiro a vê-los foi Dionisofano; eassim que percebeu a pequena capa escarlate comuma fivela de ouro e a faca com cabo de marfim,gritou em voz alta: “Ó Júpiter!” e chamou sua mulher

 para vê-los também; esta ao vê-los, gritou também:

“Ó Deusas fatais17, não é que são as jóias com que

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omamos nosso filho, quando nós o enviamos paraser abandonado por nossa serva Soprosine18? Não

 pode haver dúvida nenhuma, são os mesmos. Meu

marido, o menino é nosso filho. Dafne é teu filhoe guarda as cabras de seu pai.”

[XXII] Enquanto ela ainda falava e Dionisofano,derramando lágrimas em abundância, beijava ossinais de identificação, Astilo que compreendera que

Dafne era seu irmão, vestiu rapidamente sua roupae correu para o jardim, para ser o primeiro a beijá-lo. Dafne ao vê-lo correr em sua direção junto comtanta gente, e gritando “Dafne, Dafne”, pensou queele queria pegá-lo, livrou-se de sua flauta e de seusurrão, e se pôs a fugir na direção do mar para se

 jogar do alto do rochedo; e assim era possível, porum estranho acidente, que Dafne ao ser encontradose perdesse, se Astilo adivinhando o motivo de suafuga, não lhe tivesse gritado de longe: “Pára Dafne,não tenhas medo; sou teu irmão; teus senhores sãoteus pais; Lamo nos contou tudo, nos mostrou tudo,

vê como todos estamos rindo. Mas antes de tudo beija-me. Pelas Ninfas, eu não minto.”

[XXIII] Ao ouvir essa declaração, Dafne logo parou, e esperou Astilo, que com os braços abertoscorria para ele e ao alcançá-lo, o abraçou. Depoistoda a casa, servos, servas, pai, mãe, um por um,o abraçavam e beijavam. Ele por sua vez tambémfestejava-os, mas acima de tudo a seu pai e a suamãe, e parecia que os conhecia há muito tempo, detanto que os apertava contra o peito e mal conseguiase afastar dos braços deles. A natureza se fazreconhecer logo. Por um momento ele esqueceuCloé. Levaram-no para a casa, e lhe deram uma

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roupa rica e nova; depois de vestir-se, foi até seu pai que lhe dirigiu o seguinte discurso:

[XXIV] “Meus filhos, eu me casei muito jovem, e depois de algum tempo me tomei um paimuito feliz, como me parecia até aquele momento;

 pois a primeira criança que minha mulher teve foium filho, a segunda uma filha, e o terceiro foiAstilo. Eu achava que três já formavam para mim

uma linhagem suficiente, e como este aqui veio bem depois, eu o enviei para ser abandonado comestas jóias, que para mim eram seus ornamentosfunerários, mais do que sinais destinados a fazercom que um dia fosse reconhecido. Mas Fortuna19dispusera tudo de outra maneira. Pois meu filho

mais velho e minha filha morreram do mesmo malno mesmo dia; e tu, Dafne, pela providência dosdeuses, nos foste conservado, a fim de que tivéssemos mais um apoio em nossa velhice. Portantonão me odeies, meu filho, por ter te abandonado;os deuses assim o queriam. E quanto a ti, Astilo,que ele não te aborreça, por partilhar tua herança;

 pois não há riqueza que valha um bom irmão.Amai-vos, meus filhos, um ao outro, pois quantoaos bens, não tereis motivo para invejar sequer osreis. Eu vos deixarei muitas terras, muitas pessoashábeis para vos servir, ouro, dinheiro, e todas ascoisas que os homens ricos e felizes possuem. Masquero que meu filho Dafne fique com este lugarcomo parte de sua herança, e lhe dou Lamo eMirtal, junto com as cabras que guardou.”

[XXV] Ele ainda estava falando, quando Dafnedeu um pulo de repente: “Vós me fizestes lembrar,

meu pai; eu tenho que dar de beber às minhas

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cabras, ele disse. A esta hora já estão todas comsede, e esperando para ir beber ao som de minhaflauta, e estou aqui sentado sem fazer nada. “ Todos

começaram a rir ao ver Dafne, que transformadoem senhor, ainda queria ser cabreiro. Mandaramum outro em seu lugar tomar conta das cabras, edepois fizeram um sacrifício a Júpiter Salvador20e deram um grande banquete. Gnaton nem ousouir, mas ficou o dia e a noite inteira no templo deBaco, como um suplicante21, por causa do medo queagora tinha de Dafne.

Logo espalhou-se a notícia de que Dionisofanotinha reencontrado seu filho, e que aquele Dafne quelevava as cabras para os campos, se tomara o senhordas cabras e dos campos; então de todas as partes

vieram pastores para festejar com ele e dar presentesa seu pai, e o primeiro deles foi Drias, que haviacriado Cloé.

[XXVI] Dionisofano reteve a todos para a festa,mandando preparar logo muito pão, muito vinho,

caça de todo o tipo, doces de mel à vontade, veadose porquinhos de leite, e animais para serem imoladasao deus protetor da região.

E então Dafne reuniu todos os seus utensílios decabreiro para dá-los como oferenda aos deuses,

consagrando seu surrão e sua pele de cabra a Baco,sua flauta a Pã, seu cajado às Ninfas junto com suasvasilhas para a ordenha que ele próprio fizera. Mas,tão mais doce que a riqueza é um primeiro hábitoque ele não podia deixar sem chorar nenhuma destascoisas. Ele só deu suas vasilhas depois de ter

ordenhado suas cabras, só deu sua flauta a Pã depois

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de ter tocado mais uma vez, só entregou sua pelede cabra a Baco, depois de ter se vestido com ela,e cada coisa que dava, ele antes tinha que beijá-la.Disse adeus às suas cabras; bebeu na fonte onde

tantas vezes bebera com Cloé; mas ainda não ousavafalar de seus amores.

[XXVII] Ora enquanto ele se ocupava com asoferendas e sacrifícios, eis o que o aconteceu a Cloé.Sozinha nos campos, sentada, guardando suas ove

lhas, ela dizia para si mesma, como uma pobreabandonada: Dafne me esqueceu; ele agora deveestar sonhando com algum casamento rico. Por queeu o fiz jurar por suas cabras, em lugar das Ninfas?Ele já as esqueceu também, e embora faça sacrifíciosdedicados às Ninfas e a Pã, não quis sequer ver Cloé.

 Na casa de sua mãe ele encontrará as mais belascriadas. Adeus pois Dafne. Sê feliz; mas eu, eu não poderei mais viver.”

[XXVIII] Ela divagava assim, quando o boiadeiroLampis, ajudado por alguns outros camponeses, veio

raptá-la, achando que se Dafne não podia maisesposá-la. Drias, quando soubesse que ela estava emseu poder, consentiria que ele ficasse com ela. A

 pobrezinha, ao ser raptada, gritava o mais alto que podia, e alguém que assistira a esta violência, correu para avisar Napé, e ela a Drias, e Drias a Dafne, oqual só faltou enlouquecer, pois não ousava recorrera seu pai, e ao mesmo tempo não podia deixar Cloésem ajuda. Ele foi até o jardim e aí começou alamentar-se sozinho: “Ah como sou infeliz por terreencontrado meus pais! Como teria sido melhor para mim continuar a guardar para sempre osanimais nos campos! Como eu era mais feliz quando

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era um servo ao lado de Cloé! Pois então eu a via; beijava-a e agora, Lampis raptou-a e fugiu com ela;e quando a noite tiver chegado, se deitará com ela,enquanto eu ficarei por aqui a beber e comer. Assimfoi em vão que jurei por minhas cabras, pelo deusPã e pelas Ninfas.”

[XXIX] Ora Gnaton, que se escondera dentro dotem plo22 do pomar, ouviu c laram ente essaslamentações de Dafne, e vendo que aí estava uma

 boa ocasião para fazer as pazes com ele, reuniualguns jovens criados de Astilo e se dirigiu até Drias,dizendo-lhe que eles o iam conduzir até a casa deLampis, o que fez em seguida; e foram com tantarapidez, que surpreenderam Lampis bem no momento em que entrava em sua casa com Cloé. Gnaton

arrancou-a de suas suas mãos à força e aplicou golpes bem fortes com o cajado nas costas de todos aquelesgrosseirões que o haviam ajudado a consumar orapto; depois quis prender e amarrar Lampis paralevá-lo como prisioneiro; mas ele conseguiu escapar.

Quando Gnaton voltou dessa investida, era noitefechada e encontrou Dionisofano já deitado em seuleito a dormir. Mas o pobre Dafne velava, e aindaestava no pomar completamente desolado, a chorar:Dafne foi levada até ele, e Gnaton entregou-a emsuas mãos, contou o que havia feito, pedindo para

que perdoasse o que acontecera no passado, paraconsiderá-lo como um bom servo e que não oexpulsasse de sua mesa, caso contrário iria morrerde fome. Ao ver que Gnaton lhe devolvia Cloé,Dafne reconciliou-se de boa vontade com ele, e pediu

 perdão a ela por ter deixado parecer que ele a tinha

esquecido.

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[XXX] E de comum acordo, resolveram nadaavisar sobre seu casamento; pois Dafne continuariaa ver Cloé em segredo, e só revelaria seu amor asua mãe. Mas Drias não concordou, decidindo dizertudo ao pai de Dafne, certo de que obteria seuconsentimento. No dia seguinte, mal amanhecera, ele

 pegou os sinais de identificação que encontrara comCloé, e foi até Dionisofano, a quem encontrou no pomar, sentado com Cleariste e seus dois filhos,Astilo e Dafne. Dirigindo-se a eles, disse: “A mesma

necessidade me obriga a vos comunicar um segredoigual ao de Lamo; é que não engendrei nem fui o

 primeiro a cuidar desta moça, Cloé; outro a engendrou; uma ovelha a amamentou na caverna das

 Ninfas, onde ela havia sido abandonada. Eu a vi;cheio de espanto a tomei nos braços, levei-a e a partir

daí alimentei-a e eduquei-a. Sua própria beleza étestemunha, pois em nada se parece conosco. E oque também testemunham os sinais e as marcas queencontrei com ela, mais ricas do que possa alcançara condição de um pobre pastor. Ei-los, podeis vere depois ir à procura de seus verdadeiros pais, e

qüeira o acaso que ela seja uma esposa conveniente23 para Dafne.”

[XXXI] Drias não disse essa frase sem intenção,nem Dionisofano a recolheu em vão; antes, prestando atenção à fisionomia de Dafne e vendo-o mudar

de cor e se afastar para chorar, compreendeu imediatamente que havia um namoro entre aqueles dois;e, mais preocupado com seu filho do que com a filhade outros, pesou com o maior cuidado possível adeclaração de Drias. Então viu os sinais de identificação que foram deixados junto com ela, ou seja,os tamancos dourados, meias bordadas com ouro e

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uma touca dourada, chamou Cloé, e disse para queela se alegrasse, porque já havia encontrado ummarido, e logo iria encontrar seu verdadeiro pai esua verdadeira mãe.

Cleariste tomou-a sob seus cuidados, vestiu-a etratou-a como mulher de seu filho. Mas Dionisofanochamou Dafne à parte, e lhe perguntou se ela aindaera donzela. Dafne contou que chegara mais pertodela do que o necessário para um beijo, e também

 jura que haviam feito de se casarem um com o outro.Dionisofano riu desse juramento, e os levou para cearcom ele.

[XXII] Então foi que se pôde ver o que ocuidado acrescenta à beleza natural; pois Cloé

vestida e penteada, mas sem adorno a não ser os seuscabelos, e tendo lavado seu rosto, pareceu a todosainda mais bela do que antes, de tal modo que Dafnemal a reconhecia; e quem a vira em tal estado, podia

 jurar sem qualquer hesitação que ela não era filhade Drias, o qual por sua vez estava à mesa com sua

mulher Napé assim como Lamo e Mirtal, todos osquatro sobre o mesmo leito de folhas.

Alguns dias depois foram feitos sacrifícios aosdeuses por amor a Cloé, assim como já tinham sidofeitos em favor de Dafne, e do mesmo modo houve

um banquete de agradecimento; e ela por sua vezdistribuiu seus instrumentos de pastora aos deuses,seu surrão, sua flauta, e as vasilhas onde ela orde-nhava suas ovelhas24, e derramou vinho dentro dafonte que ficava na cavema das Ninfas, porque aíé que ela fora encontrada e alimentada; e semeou

coroas e buquês de flores na sepultura da ovelha que

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Drias lhe mostrou25, e tocou mais uma vez a suaflauta para alegrar as ovelhas, fazendo orações paraas Ninfas pedindo que seus pais naturais fossemdignos de se unirem a Dafne.

[XXXIII] Depois de fazerem muitas festas e banquetes no campo, decidiram voltar para a cidade,a fim de procurar os pais de Cloé, para não adiarmais as núpcias. De manhã cedo reuniram toda a bagagem e deram a Drias mais trezentos escudos,

e a Lamo a metade dos frutos de todas as terras evinhas de que ele cuidava, as cabras com seuscabreiros, oito bois, roupas forradas para o inverno,e acima de tudo a liberdade para ele e para suamulher Mirtal; por fim, puseram-se a caminho deMitilene, com grande número de cavalos e carroças.

Ora como nesse dia só chegaram já bem tardeda noite, os outros cidadãos da cidade de nadasouberam; mas na manhã seguinte, o rumor correu

 por toda a parte, uma grande multidão de homense de mulheres se reuniu na casa de Dionisofano;os

homens para congratular-se com o pai porque haviareencontrado seu filho, sobretudo depois que viramcomo ele era belo e gentil; e as mulheres para secongratularem com Cleariste não só porque ela haviareencontrado seu filho, mas porque encontrara tam bém uma moça digna de ser sua mulher; pois Cloé

surpreendeu a todas por sua beleza perfeita, já quenão era possível haver uma mais bela. Em suma, todaa cidade não falava de outra coisa a não ser desterapaz e desta moça, e todos diziam que não se podiaachar casal mais belo: todos pediam aos deuses quea família da moça pudesse corresponder à sua beleza.Muitas mulheres de casas muito ricas chegaram a

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dizer: “ Ah se os deuses quisessem que ela fosseminha filha!”

[XXXIV] Mas Dionisofano, depois de pensar bastante nesse assunto, adormeceu profundamente àchegada do amanhecer; dormindo, teve um sonho:recebeu o aviso de que as Ninfas rogavam que Amorrealizasse o casamento que lhes havia prometido; etambém que Amor, detendo seu pequeno arco, e o

guardando em sua aljava, ordenava a ele, Dionisofanoque no dia seguinte convidasse todas as principais pessoas da cidade para virem cear em sua casa; eque no momento em que se fosse beber o últimocopo, levasse para a mesa os sinais de identificaçãoe que os mostrasse a todos seus convidados; e queem seguida, todos cantassem a canção nupcial deHimeneu26.

Dionisofano teve essa visão quando dormia e aose levantar nessa mesma manhã, ordenou a seuscriados que preparassem um belo banquete, com asmais delicadas carnes que se pudesse encontrar, tantona terra quanto no mar, nos lagos e nos rios, enviandoao mesmo tempo vários servos para convidar todosos notáveis da cidade para cear em sua casa.

Quando a noite chegou, e veio o momento doúltimo copo cheio para as libações em louvor a

Mercúrio27, um servidor da casa trouxe dentro deuma bacia de prata os sinais de identificação e foimostrá-los a cada um dos convidados.

[XXV] Ninguém os reconhecia, até que umdeles chamado Megacles28 que, por causa de sua

velhice, estava na cabeceira da mesa, ao avistá-los,

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reconheceu-os imediatamente, e exclamou gritando bem alto: “Ó deuses! o que vejo? Minha pobre filha,o que te sucedeu? estás viva? ou terá algum pastor

guardado esses sinais que encontrou por acaso emseu caminho? Eu te peço, Dionisofano, que me digasonde os achaste; não fiques enciumado se eu reencontrar minha filha assim como tu reencontrasteDafne.”

Dionisofano quis que em primeiro lugar elecontasse diante do grupo como havia abandonadosua filha. Megacles então falou com voz emocionada: “Há muito tempo atrás eu havia perdidoquase tudo que possuía, porque havia empregadotodos os meus bens para pagar os jogos públicos29,e para equipar os navios de guerra; e, quando estava

nessa situação, nasceu minha filha, que eu nãoconseguiria educar na probreza em que estava, eassim eu a abandonei com esses sinais de identificação, sabendo que há muitas pessoas que, não

 podendo ser pais naturais, desejam ser pais pelomenos de filhos achados. A menina foi levada até

a caverna das Ninfas, e deixada ali sob a proteçãodelas. Depois, fui adquirindo bens com abundânciacada vez maior, mas já não tinha mais herdeiro paraquem deixá-los; pois não tive mais a felicidade deter uma outra filha; porém os deuses, como sequisessem zombar de mim, sempre a enviam em

sonhos para mim, nos quais me prometem que umaovelha me fará pai.”

[XXXVI] Dionisofano ao ouvir isto deu umgrito ainda mais alto do que o de Megacles, elevantando-se da mesa, foi buscar Cloé, que trouxevestida e ornada com muita elegância; ao entregá-

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Ia para Megacles, disse-lhe: “Eis aqui a filha que vósabandonastes, Megacles; uma ovelha a amamentou,graças à providência dos deuses, assim como umacabra amamentou Dafne. Toma-a junto com esses

sinais e ao tomá-la, entrega-a em casamento a Dafne. Nós abandonamos os dois e os reencontramos: elesforam criados juntos, e preservados da mesmamaneira pelas Ninfas, pelo deus Pã e pelo Amor.”

Megacles concordou imediatamente, e sempre

abraçado a sua filha Cloé, mandou que fossem buscar sua mulher, cujo nome era Rhodé; e os doisficaram na casa de Dionisofano para dormir lá, poisDafne tinha jurado que não iria mais deixar queninguém levasse mais Cloé, mesmo que fosse seu próprio pai.

[XXXVII] No dia seguinte de manhã, os dois pediram a seus pais e mães que os deixassem voltar para o campo, já que não conseguiam se acostumaràs maneiras da cidade, e também porque queriamcelebrar núpcias pastorais, para o que logo obtiveram

 permissão. Foram até a casa de Lamo e apresentaramDrias e sua mulher Napé, que haviam educado Cloé,ao bom Megacles e à sua mulher Rhodé.

O banquete nupcial foi suntuosamente preparado, e Megacles consagrou sua filha Cloé às Ninfas;

e, além de várias outras oferendas, deu-lhe os sinaisgraças aos quais ela fora reconhecida, presenteandotambém Drias com uma boa soma de dinheiro.

[XXXVIII] Dionisofano, como o dia estava bonito e tranqüilo, ordenou que fossem levadas até

a caverna das Ninfas mesas com leitos de ramos

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verdes, onde tomaram lugar todos os camponesesdas redondezas. Lamo e Mirtal estavam presentes,assim como Drias e Napé, os pais de Dorcon, os

filhos de Filetas, Cromis e Licenion. Até o próprioLampis veio, pois fora perdoado; e aí, comoacontece entre aldeões, tudo se fazia e dizia àmaneira das aldeias; um cantava as canções dosceifadores na época da ceifa, o outro dizia gracejosque se costuma dizer na época da vindiama. Filetas

tocou sua flauta, Lampis o flajolé, enquanto Dafnee Cloé se beijavam.

Até as cabras pastavam bem perto dali como se participassem também da festança das núpcias, o quenão era lá muito agradável para as pessoas da cidade;e Dafne, chamando algumas delas por seus nomes,lhes dava folhagem verde para pastar, e pegando-as pelo chifre, beijava-as.

[XXXIX] E não somente nessa ocasião, masdurante todo o resto de suas vidas, eles viveram amaior parte do tempo e a melhor parte de seus dias

na condição de pastores; pois adquiriram muitosrebanhos de cabras e ovelhas, tiveram sempre a proteção especial das Ninfas e do deus Pã, e paraeles não havia comida mais saborosa do que as frutase o leite; além disso, fizeram com que seu primeirofilho, um menino, fosse amamentado por uma cabra;

e que o segundo, uma menina, tomasse o leite deuma ovelha, e ao menino chamaram Filopomen, eà menina, Agele 30, e dessa maneira viveram muitosanos no campo em plena felicidade. Tiveram íám-

 bém o cuidado de ornamentar ricamente a cavernadás Ninfas, dedicando-lhes belas imagens, e

edificaram aí um altar do Amor pastoral; e para Pã,

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sob o pinheiro, fizeram um templo a que chamaramo templo de Pã.

[XL] Tudo isto só veio acontecer muito tempodepois; mas agora voltemos àquele momento. Quando a noite chegou, todo mundo os acompanhou atéo quarto nupcial, uns tocando flauta, outros o flajolé,e outros levando tochas e archotes para iluminar ocaminho; depois, quando entraram no quarto, todos

começaram a cantar o Himeneu com uma voz rudee áspera, como se quisessem abrir a terra com umaenxada ou uma picareta.

Dafne e Cloé se deitaram nus no leito, onde se beijaram e se abraçaram sem fechar o olho a noite

inteira, como gatos miando; e foi então que Dafnefez o que Licenion lhe havia ensinado: assim Cloéficou sabendo que o que eles faziam antes dentrodos boques e no meio dos campos eram apenas

 brincadeiras de crianças.31

 Notas

1. O passo eqüivale aproximadamente a um metro. Mas  

a dedução de que se trata de um quadrado foi acrescentada por 

Amyot. (N.E.)

2. A hera e a vinha são em geral utilizadas em louvor de  Baco. (N.E.)

3. Literalmente:  a natureza parecia obra de arte. Paradoxo 

poético muito comum, cuja função é assinalar que o jardim de 

Lamo (que de fato pertencia a Dionisofano, seu senhor) é  

certamente um desses lugares encantados que a tradição póetica 

chama de “jardim das delícias”; locus amoenus  em latim e em 

grego  paraíso.  (N.E.)

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4. Este templo é uma das claves do simbolismo místico  

do romance: assim como seu templo domina a paisagem, Baco  

supervisiona toda ação, e logo irá se revelar com o o verdadeiro 

iniciador do “mito” de Cloé. O nom e do verdadeiro proprietário 

do lugar, que irá aparecer no momento das vindimas, explicará  a importância inesperada concedida a esse tempo; com efeito,  

seu nome é Dionisofano, que significa  aquele que revela 

 Dioniso  e, por extensão,  aquele que revela Baco.  As pinturas 

do templo recapitulam as etapas da gesta de Baco, desde seu 

nascimento milagroso (filho de Júpiter e da mortal Sêmele) até 

a conquista da índia e o episódio dos piratas tirrenianos  

transformados em delfins, cujo papel já vimos no livro II, XXXVI. Ariadne, abandonada numa ilha, foi salva por Baco  

que a esposou; Licurgo e Penteu foram cruelmente castigados  

por ele quando quiseram se opor a seu culto, ministrado pelas  

bacantes e pelos sátiros, guiados por Pã. (N.E.)

5. As  batedeiras servem para bater a manteiga, as vasilhas  

para recolher o leite, e as grades de vime servem para fazer 

escorrer o queijo. (N.E.)

6. Este nome significa exatamente  Bom-Corredor.  ele se 

adapta inteiramente à função do mensageiro. A o comentar esse  

nome transparente, Longus parece convidar seu leitor a prestar 

atenção a todos os outros nomes próprios que ele deixa de  

comentar, mas que também são significativos. (N.E.)

7. Ao contário de Eudromo, este nome é enigmático: o 

radical é o da palavra lâmpada, ou tocha. Será que podemos 

ver nesse personagem uma espécie de duplo do deus Amor, 

que inflama os corações e é em geral representado com uma 

tocha na mão? Ou tem esse nome porque ele próprio é uma  

vítima das chamas do ciúme? (N.E.)

8. Mársias é um sátiro que a tradição mitológ ica considera 

como um dos inventores da flauta (a flauta de dois tubos);  

arvorando-se a ser melhor músico do que Apoio, ele foi  

castigado: pendurado pelos pés num pinheiro, acabou sendo  

esfolado vivo. Esse mito, evocado constantemente na poesia  

e na pintura, recebeu algumas vezes uma interpretação de 

sentido místico. Aqui, só o castigo justifica aparentemente a

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comparação, que é burlesco porque excessivo: o ser pendurado 

aqui evocado como enforcamento não deve ser compreendido 

com efeito como uma condenação à morte, mas como um 

simples castigo corporal, como se depreende mais adiante 

através da indicação dada a propósito dos temores de Cloé; com  efeito, os servos eram pendurados pelos pés para serem  

açoitados. (N.E.)

9. Este nome significa  o Citadino  (o grego dispõe de duas 

palavras para dizer cidade:  polis designa a organização política 

da cidade; asty designa a cidade por oposição ao campo). (N.E.)

10. Com o indica seu próprio nome —  o Glutão  trata- 

se de um personagem de comédia. É o bufão de Astilo que 

no texto grego é nomeado no momento em que entra em cena, ao mesmo tempo que seu senhor. (N.E.)

11. Dionisofano é, como já vimos, “aquele que revela 

Dioniso” (ver nota 4). O nome de Cleariste significa  a toda  gloriosa.  Desta maneira, esses dois personagens são caracte

rizados imediatamente não só pela nobreza de seu estado, mas  

também pelos sinais de um destino excepcional: o nome de 

Cleariste é composto pelo substantivo “glória” e pelo super

lativo “a melhor”; quanto a Dionisofano ele se apresenta, se  

relacionarmos o seu nome à descrição de seu jardim e ao fato 

de que intervém no momento das vindimas, como um duplo  

de Baco. Assim é que se pode explicar, em particular, o papel do outono e das vindimas na ação, já que o outrono se vê  

asssociado à apoteose dos amantes e não (como seria de se  

esperar) à primavera ou ao verão. (N.E.)

12. Ceres ou Demeter, divindade protetora do mundo rural, 

dos lavradores e dos pastores, é também simbolicamente a 

patrona de Cloé. Mas na religião dionisíaca, honrava-se con juntamente Ceres e Baco como inventores das principais 

produções da terra; o trigo e a vinha, o leito e o vinho; além  

disso, as grutas habitadas pelas Ninfas eram consagradas a 

Ceres e a Baco, pois os mitos contam que Baco quando menino  

também fora criado pelas Ninfas numa gruta. As quatro 

divindades aqui nomeadas formam portanto uma harmonia 

perfeita, enquanto divindades protetoras da família de

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Dionisofano, cujas ligações com nosso herói já começamos a 

adivinhar. (N.E.)

13. Apoio, o deus da poesia, fecha a lista dos deuses 

pastorais. Com efeito, os mitos contam que antes de ser  reconhecido e celebrado como um deus, ele foi obrigado a 

servir como vaqueiro ao rei Laomedonte. Ao identificá-lo aqui com Dafne, Longus mostra-se fiel à tradição; o D afn e da lenda, 

que também foi vaqueiro, era confundido com o deus da 

poesia, sendo às vezes considerado seu filho; o nome Dafne, que significa  Loureiro,  corresponde ao principal atributo de 

Apoio. (N.E.)

14. Anquises é o pai de Enéias, fruto de sua união com  

a deusa Vênus quando ele era vaqueiro. Brancus era um pastor 

amado por Apoio (como Jacinto, ao qual' se faz alusão antes 

a propósito da cor dos cabelos de Dafne). O jov em Ganimedes 

foi raptado por Júpiter disfarçado em águia e se tornou no céu  

o copeiro dos deuses (ele serve as bebidas no banquete dos 

deuses). (N.E.)

15. Isto é que não tenham sido arrebatados com o Ganimedes. (N.E)

16. Uma expressão proverbial que significa “não fazer  

nada” (com diz em seguida a paráfrase). (N.E.)

17. O texto se refere às  Moiras  ou às  Destinadas  (que 

conhecemos em geral sob o nome de  Parcas),  deusas que 

presidem à vida humana; elas são representadas sob a forma  

de três fiadeiras, em que a primeira tece o fio da vida, a segunda 

o enrola em volta do fuso, a terceira o corta. Por sua vez, elas 

obedecem às ordens de Júpiter, o rei dos deuses, invocado por  

Dionisofano. As duas invocações se mostram adequadas e se  

completam, pois se dirigem às várias personificações da Providência divina. (N.E.)

18. A serva se chama Sabedoria',  entregue a seus cuidados, Dafne estava predestinado à virtude, à felicidade e à paz. (N.E.)

19. A Fortuna, para os antigos, é uma divindade poderosa 

assimilada aos deuses. (N.E.)

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20. Este ato de piedade é um sacrifício de agradecimento, e se dirige especialmente ao deus que cuida da preservação em  

situações de perigo e dos achados milagrosos. (N.E.)

21. Os templos eram lugares sagrados para o asilo, e um  suplicante que se co locasse sob a proteção de um deus não podia 

ser retirado sem que se com etesse sacrilégio: Gnaton reagiu aqui 

da mesma maneira que Cloé, ao ser ameaçada pelos metinianos  

(capítulo II, XX); mas aqui o perigo é imaginário e a atitude 

grotesca. Por sua vez, v imos como os metinianos são castigados 

pelos deuses (capítulo II, XXV-XXVII) por ter cometido a 

impiedade de raptar Cloé no santuário das Ninfas. (N.E.)

22. O templo de Baco (ver antes neste capítulo, parte 

XXV). Na tradução de Amyot está o anacronismo  capela, mantido por Courier. Fizemos a correção com base numa 

observação de Françoise Graziani. (N.T.)

23. Conveniente, isto é de igual condição social. (N.E.)

24. Esta cena é exatamente simétrica, como o tradutor 

indica (mas não o texto grego) à cena da parte XXVI deste  

mesmo capítulo em que Dafne consagra seus próprio utensílios.  (N.E.)

25. O vinho derramado na fonte das Ninfas atesta mais uma  

vez que é Baco quem governa o destino dos amantes, e que as Ninfas e o Amor são apenas seus ministros, como Pã. (N.E.)

26. O canto de Himeneu é indissociável da celebração das  

núpcias antigas. Ele é cantado na soleira do quarto nupcial e 

serve às vezes para designar metonimicamente o casamento  

(aqui ele o anuncia um pouco como no final de uma ópera, 

mas será repetido no momento das núpcias propriamente ditas). (N.E.)

27. No fim dos banquetes, havia o ritual de oferecer o 

último copo ao deus do convívio e das trocas sociais, Mercúrio 

(que também preside o sono). (N.E.)

28. O nome de Megacles,  o Muito Glorioso,  parece-se 

muito com o da verdadeira mãe de Dafne, Cleariste (há nos

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dois nomes a raiz da palavra  glória).  O nome de sua esposa, 

Rhodé {Rosa), nomeado mais adiante, se situa no mesmo plano 

do nome da mãe adotiva de Dafne, Mirtal ( Mirto): as duas 

plantas são atributos de Vênus. (N.E.)

29. A organização dos jog os públicos e o equipamento dos 

exércitos estavam, tanto na Grécia quanto em Roma, a cargo 

de cidadãos ricos que tinham que pagar esse imposto, revezan

do-se no pagamento. (N.E.)

30. Filopomen quer dizer  Amigo dos Rebanhos,  e Agele, 

 o Rebanho,  (a primeira palavra designa um rebanho de gado pequeno, como os de Dafne e Cloé; a segunda refere-se ao gado 

de grande porte, como o dos nobres boiadeiros da tradição 

bucólica). (N.E.)

3 1 . 0 texto grego diz “brincadeira de pastores” (poimênôn  paignia):  a narrativa se fecha com um jogo de ecos que  

condensa com um efeito sonoro a tonalidade geral da narrativa. 

Encontramos com efeito as mesmas palavras do título  (poimênikôn) e de dois episódios simétricos do livro I, o que 

descreve as brincadeiras de Dafne e Cloé antes da descoberta  

do amor (I, XI); suas brincadeiras eram brincadeiras de crianças 

e de pastores (poimênika kai paidika);  e o da tentativa de 

agressão sexual de Dorcon, que os jovens não chegam a 

compreender naquele momento (I, XXI); eles pensaram que essa emboscada de Dorcon com pele de lobo não passasse 

 apenas de uma brincadeira infantil de pasto r (poimenikên 

 paidian).   A tradução de Amyot, mantida por Courier, quer ser  

mais poética, e busca um sentido mais verossímil para a 

sensibilidade moderna; ela reside no fato de em grego  brin cadeira (paignia)  é implicitamente  brincadeira de crianças, pois esta palavra é construída sobre o radical  pais   (criança). 

Mas o original grego deve ser compreendido mais ou menos  

da seguinte maneira: “Cloé compreendeu que as brincadeiras de pastores tinham terminado”, ou então simbolicamente “que  

a infância terminara”, e ainda, através do jogo de palavras, “que 

a pastoral terminara”. (N.E.)

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V o l u m e s   P u b l i c a d o s :

S e r m ã o   d o   B o m   L a d r ã o  

P d e . A n t ô n i o   V i e i r a

P o e m a s   d a   B o c a   d o   I n f e r n o

G r e g ó r i o s   d e   M a t o s

A C o n f i s s ã o   d e   L ú c i o  M á r i o   d e   SA- C a r n e ir o

O G u a r d a d o r    d e   R e b a n h o s   s e g u i d o   d e  

O P a s t o r    A m o r o s o

F e r n a n d o   P e s s o a

S o n e t o s   d e   A m o r 

Luís d e   C a m õ e s

O A l i e n i s t a

M a c h a d o   d e   A s s i s

D a s   O r i g e n s   e   E s s ê n c i a   d a   M a ç o n a r i a  

e   d o   S e u   C o n t r i b u t o   J u d a i c o

F e r n a n d o   P e s s o a

M e n s a g e m

F e r n a n d o   P e s s o a

C o n t o s

L i m a   B a r r e t o

 N o v a   A t l â n t i d a

F r a n c i s   B a c o n

O B a n q u e ir o   A n a r q u i s t a

F e r n a n d o   P e s s o a

 N o i t e   n a   T a v e r n a

Á l v a r e s   d e   A z e v e d o

S o n e t o s

B o c a g e

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 N o v e l a s   d o   D e f u n t o

I v a n   B e l k i n e   P e t r o v i c h

A l e x a n d r e   P u s h k i n e

A n t e s   e   D e p o i s   d e   S ó c r a t e s  F .M . M a c d o n a l d

C o n t o s   P o p u l a r e s   d e   A n g o l a  

O r g . d e   J. V i a l e   M o u t i n h o

L i r a   d o s   V in t e   A n o s

Á l v a r e s   d e   A z e v e d o

A m o r    d e   P e r d i ç ã o

C a m i l o   C a s t e l o   B r a n c o

A C i d a d e   e   a s   Se r r a s

E ç a   d e   Q u e ir o z

A s P u p i l a s   d o   S e n h o r    R e i t o r   J ú l i o   D i n i s

O T o c a d o r    d a   F l a u t a   C e l e s t i a l  

C o n t o s   P o p u l a r e s   C h i n e s e s

D e   P r o f u n d i s  O s c a r    W i l d e

M i s s a   d o   G a l o   e   O u t r o s   C o n t o s

M a c h a d o   d e   A s s i s

C o m   A m o r    e   R a i v a

A n t o n i o   D a n i e l   A b r e u

 N o v a   d o   A c h a m e n t o

C a r t a   d e   P e r o   V a z   d e   C a m i n h a   So b r e   o  

D e s c o b r im e n t o   d o   B r a s il

D a f n e   e   C l o é

L o n g u s , com i lus t r ações de Car los Fur tado

B r e v iá r io  d e   C i t a ç õ e s   [F r a g m e n t o s  e  A f o r is m o s ] F r ie d r ic h   N ie t z s c h e

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D a f n e   e   c l o é