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- 1 - Data: 27/03/19 Professor: Ádino Disciplina: Literatura Turma: Semi O BARROCO A origem da palavra barroco é controvertida. Alguns etimologistas afirmam que está ligada a um processo mnemônico (relativo à memória) que designava um silogismo aristotélico com conclusão falsa. Segundo outros, designaria um tipo de pérola de forma irregular, ou mesmo um terreno desigual, assimétrico. Qualquer que seja a hipótese aceita, é possível perceber que há relações com a estética barroca: jogo de ideias, rebuscamento, assimetria. O Barroco também é chamado de Seiscentismo por ser a estética dominante nos anos de 1600 (século XVII) As várias denominações do Barroco A estética barroca está presente em toda a Europa do século XVII. Em alguns países o estilo barroco, caracterizado por grande afetação e pompa de palavras, recebeu denominações particulares: Gongorismo (Espanha): derivado do nome do poeta Luís de Gôngora y Argote (1561-1627). Marinismo (Itália): pela influência exercida por Gianbattista Marini (1569-1625). Eufuísmo (Inglaterra): derivado do título do romance Euphues, or the anatomy of wit, do escritor John Lyly (1554- 1606). •Preciosismo (França): pelo culto à forma extremamente rebuscada na corte de Luís XIV, o Rei-Sol. Segundo Manuel Bandeira, nos "salões a galanteria degenerou em afetação, afetação de maneiras e linguagem, que passou a chamar-se preciosismo, mais tarde satirizado por Moliére em sua comédia As preciosas ridículas". •Silesianismo (Alemanha): por ter caracterizado os escritores da região da Silésia, que originou a Escola Silesiana. Ao estilo que predominou no século XVII dá-se o nome de Barroco, uma arte dualista que expressa a tentativa de conciliar forças opostas. Muitos conflitos de natureza política, econômica e religiosa como a Contrarreforma, ou Reforma Católica, contribuíram para a temática desenvolvida no período. A Reforma Protestante, promovida por Lutero e Calvino, obrigou a Igreja católica a tomar uma série de medidas mais efetivas para combater a crescente adesão europeia ao Protestantismo - principalmente da burguesia. Criou-se um movimento conhecido como Contrarreforma, centralizado nos redutos do cristianismo e do pensamento medieval: Portugal e Espanha. A Contrarreforma restabeleceu a Inquisição, que havia sido abandonada durante a Renascença, e alcançou o auge durante o Concílio de Trento, na Itália, entre 1535 e 1563. Nele, foi reafirmada a autoridade papal, a adoração dos santos, o celibato clerical; proibiu-se severamente a venda de indulgências; instituiu-se uma rigorosa censura a publicações por meio do chamado "Índice dos livros proibidos", uma lista de títulos que os católicos não poderiam ler, sob pena de serem excomungados. Em 1534, o padre espanhol Inácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus, cujos membros julgavam-se os verdadeiros emissários da verdadeira religião (católica); obtiveram do papa autorização para fazer confissões e ministrar o perdão dos pecados. Eram evangelizadores e se propunham a levar a palavra de Deus aos mais distantes pontos da Terra - os jesuítas pregavam na América, na África e na Ásia. Além disso, detiveram o monopólio da educação em vários países durante séculos, inclusive em Portugal. Dessa forma, os membros dessa ordem tiveram importante participação nos rumos da Contrarreforma. As imposições da Contrarreforma repercutiram na produção intelectual e científica do período, estabelecendo um conflito entre valores medievais que a Igreja tentava resgatar e valores renascentistas dos quais o homem já se beneficiava. Era preciso conciliar fé e razão; espírito e matéria; Céu e Terra; pureza e pecado; Deus e o Diabo. O confronto dessas forças opostas resultou em concepções complexas em todos os aspectos da vida do século XVII, especialmente na produção artística.

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Data: 27/03/19

Professor: Ádino Disciplina: Literatura Turma: Semi

O BARROCO A origem da palavra barroco é controvertida. Alguns etimologistas afirmam que está ligada a um processo mnemônico (relativo à memória) que designava um silogismo aristotélico com conclusão falsa. Segundo outros, designaria um tipo de pérola de forma irregular, ou mesmo um terreno desigual, assimétrico. Qualquer que seja a hipótese aceita, é possível perceber que há relações com a estética barroca: jogo de ideias, rebuscamento, assimetria. O Barroco também é chamado de Seiscentismo por ser a estética dominante nos anos de 1600 (século XVII) As várias denominações do Barroco A estética barroca está presente em toda a Europa do século XVII. Em alguns países o estilo barroco, caracterizado por grande afetação e pompa de palavras, recebeu denominações particulares: •Gongorismo (Espanha): derivado do nome do poeta Luís de Gôngora y Argote (1561-1627). •Marinismo (Itália): pela influência exercida por Gianbattista Marini (1569-1625). •Eufuísmo (Inglaterra): derivado do título do romance Euphues, or the anatomy of wit, do escritor John Lyly (1554-1606). •Preciosismo (França): pelo culto à forma extremamente rebuscada na corte de Luís XIV, o Rei-Sol. Segundo Manuel Bandeira, nos "salões a galanteria degenerou em afetação, afetação de maneiras e linguagem, que passou a chamar-se preciosismo, mais tarde satirizado por Moliére em sua comédia As preciosas ridículas". •Silesianismo (Alemanha): por ter caracterizado os escritores da região da Silésia, que originou a Escola Silesiana. Ao estilo que predominou no século XVII dá-se o nome de Barroco, uma arte dualista que expressa a tentativa de conciliar forças opostas. Muitos conflitos de natureza política, econômica e religiosa como a Contrarreforma, ou Reforma Católica, contribuíram para a temática desenvolvida no período. A Reforma Protestante, promovida por Lutero e Calvino, obrigou a Igreja católica a tomar uma série de medidas mais efetivas para combater a crescente adesão europeia ao Protestantismo - principalmente da burguesia. Criou-se um movimento conhecido como Contrarreforma, centralizado nos redutos do cristianismo e do pensamento medieval: Portugal e Espanha. A Contrarreforma restabeleceu a Inquisição, que havia sido abandonada durante a Renascença, e alcançou o auge durante o Concílio de Trento, na Itália, entre 1535 e 1563. Nele, foi reafirmada a autoridade papal, a adoração dos santos, o celibato clerical; proibiu-se severamente a venda de indulgências; instituiu-se uma rigorosa censura a publicações

por meio do chamado "Índice dos livros proibidos", uma lista de títulos que os católicos não poderiam ler, sob pena de serem excomungados. Em 1534, o padre espanhol Inácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus, cujos membros julgavam-se os verdadeiros emissários da verdadeira religião (católica); obtiveram do papa autorização para fazer confissões e ministrar o perdão dos pecados. Eram evangelizadores e se propunham a levar a palavra de Deus aos mais distantes pontos da Terra - os jesuítas pregavam na América, na África e na Ásia. Além disso, detiveram o monopólio da educação em vários países durante séculos, inclusive em Portugal. Dessa forma, os membros dessa ordem tiveram importante participação nos rumos da Contrarreforma. As imposições da Contrarreforma repercutiram na produção intelectual e científica do período, estabelecendo um conflito entre valores medievais que a Igreja tentava resgatar e valores renascentistas dos quais o homem já se beneficiava. Era preciso conciliar fé e razão; espírito e matéria; Céu e Terra; pureza e pecado; Deus e o Diabo. O confronto dessas forças opostas resultou em concepções complexas em todos os aspectos da vida do século XVII, especialmente na produção artística.

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O ÊXTASE DA SANTA TERESA D’AVILA, DE BERNINI

a declaração da própria Teresa: “Um dia me apareceu um anjo com uma beleza nunca vista antes. “Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser uma ponta de fogo. Ela parecia penetrar várias vezes no meu coração e perfurar minhas entranhas. A dor era tão grande, que me fez gemer, muitas vezes, em alta voz, ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não pude querer livrar-me dela. Nenhuma felicidade terrestre pode dar um prazer assim tão grande. Quando o anjo tirou a sua lança, senti um enorme amor por Deus.”

São Francisco de Assis em Êxtase Caravaggio

Pintura mostra São Francisco de Assis no momento de receber os sinais dos estigmas, as feridas deixadas no corpo de Cristo pela crucificação.

Características do Barroco A arte barroca procura conciliar a concepção teocêntrica medieval com o antropocentrismo e o nacionalismo propostos no Renascimento. No Barroco, predomina, portanto, o contraste. O estilo barroco reflete a instabilidade do mundo pós-renascentista: viver de acordo com os dogmas do catolicismo, em nome de um paraíso do qual não se tinha certeza, ou correr o risco de arder num fogo eterno, em decorrência do materialismo.

A estética dos contrastes encontrou eco principalmente nos países da Europa neolatina, onde os efeitos da Contrarreforma foram mais intensos, manifestando-se em diversas áreas: literatura, escultura, música, pintura, arquitetura. O homem do Seiscentismo vivia um estado de tensão e desequilíbrio, do qual tentou evadir-se pelo culto exagerado da forma, sobrecarregando a poesia de figuras, como a metáfora, a antítese, a hipérbole e a alegoria. Todo o rebuscamento que aflora na arte barroca é reflexo do dilema, do conflito entre o terreno e o celestial, o homem e Deus (antropocentrismo e teocentrismo), o pecado e o perdão, a religiosidade medieval e o paganismo renascentista, o material e o espiritual, que tanto atormenta o homem do século XVII. A arte assume, assim, uma tendência sensualista, caracterizada pela busca do detalhe num exagerado rebuscamento formal. Podemos notar dois estilos no barroco literário: o Cultismo e o Conceptismo. •Cultismo: é caracterizado pela linguagem rebuscada, culta, extravagante; pela valorização do pormenor mediante jogos de palavras, com visível influência do poeta espanhol Luís de Gôngora; daí o estilo ser também conhecido por Gongorismo. Atormentado por vários conflitos, o homem produz textos literários com características bastante nítidas. São elas: 1 Uso de contrastes: as ideias opostas seduzem o barroco; os textos mostram choques entre amor e dor, vida e morte, religiosidade e erotismo, juventude e velhice etc. 2 Pessimismo: conflito entre o eu e o mundo. A vida terrena é vista como triste, cheia de sofrimento, enquanto que a vida celestial é luminosa e tranquila. 3 presenças de impressões sensoriais: usando seus sentidos, o homem busca captar todo o sentido da miséria humana, ressaltando seus aspectos dolorosos e cruéis. 4 Preocupação com a transitoriedade da vida: por ser curta, a vida não permite que o homem a viva intensamente, como seria seu desejo. 5 intensidade: desejo de expressar as emoções fortes do amor, do desejo e da dor em profundidade, na tentativa de encontrar o sentido da existência humana. 6 linguagem complicada, excessivamente trabalhada, através de: Expressões eruditas; Sintaxe rebuscada, com uso frequente da ordem inversa; Repetições; Paralelismo; Uso abusivo de figuras de linguagem, principalmente antíteses, hipérboles, paradoxos e metáforas; Uso frequente de frases interrogativas. 7. tentativa de conciliação entre a religiosidade e o racionalismo: há uma constante oscilação entre os dois opostos. AS METÁFORAS, PERÍFRASES E CROMATISMOS. A literatura barroca não pretende proporcionar um retrato claro e direto da realidade e sim se referir a ela de tal modo indireto e contorcido que mais se realce a maneira de representar do que propriamente o representado. Isso se nota pelo reiterado uso da metáfora (= fuga ao termo próprio

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e adoção de um outro que mantém semelhança imaginária com aquilo que ele designaria) e da perífrase (= torneio ao redor do termo próprio e adoção de muitas palavras para evitá-lo). Assim, a literatura barroca é antes a arte da sugestão do que da nomeação: precursora, por isso, do Romantismo, Simbolismo, Impressionismo e outras correntes contemporâneas. Vendo a Anarda depõe o sentimento A serpe, que adornando várias cores, com passos mais oblíquos, que serenos, entre belos jardins, prados amenos, é maio errante de torcidas flores (Música do Parnaso, Manuel Botelho de Oliveira) No primeiro verso: “serpe" é cultismo, isto é, termo culto em lugar de cobra; “que adornando várias cores, é perífrase para colorida. A serpe -é maio errante de torcidas flores-“.Maio “está por primavera (na Europa) e por” serpe “, que é tão colorida quanto o mês das flores” Torcidas flores “quer dizer cores em espiral, pelo colear da serpente CULTISMO OU GONGORISMO; ALQUIMIA DO VERBO 0 Gongorismo é o abuso artificioso dos aspectos sensoriais da linguagem: exagera no uso das figuras de linguagem. Antônio José Saraiva assim o define: "0 poeta gongórico é comparável ao alquimista: procura extrair do mundo real uma natureza supranatural, imaterial e arbitrária.” Veja; Quando vejo de Anarda o rosto amado Velo ao céu e ao jardim ser parecido Porque no assombro do primor luzido Tem o sol em seus olhos duplicado. M. Botelho O poeta fala do rosto de Anarda, comparando-o ao céu e ao jardim. O rosto é um céu porque tem dois sóis (os olhos brilham tanto quanto o sol). Na continuação do poema, ele afirma que as faces têm mais cores que o jardim. Aqui, no terceiro verso, o poeta, para indicar o brilho dos olhos, diz: “assombro do primor luzido”. É uma perífrase dominada pelo cromatismo (= jogo de cores), A poesia cultista abusa do jogo cromático. Quando se fala que a poesia cultista possui relações com a alquimia, quer-se destacar esse seu pendor para transformar as coisas através das figuras de linguagem: Anarda transformou-se no céu. Esse estilo é marcado pela erudição, pelo rebuscamento, pelo uso de inversões brutais e de numerosas figuras de linguagem. Trata-se de uma espécie de jogo de palavras, exageradamente trabalhado quanto à forma. Texto 01 Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo. Em todo o Sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo, 0 braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste cada parte em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo. (Gregório de Matos) Texto 02 AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS, A QUEM INFIEIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO. Entre as partes do todo a melhor parte Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo Se na parte do peito o quis pôr todo, 0 peito foi do todo a melhor parte. Parta-se pois de Deus o corpo em parte, Que a parte, em que Deus fiou o amor todo Por mais partes, que façam deste todo, De todo fica intacta essa só parte. 0 peito já foi parte entre as do todo, Que tudo mais rasgaram parte a parte; Hoje partem-se as partes deste todo: Sem que do peito todo rasguem parte, Que lá quis dar por partes o amor todo, E agora o quis dar todo nesta parte. CONCEPTISMO: LABAREDA PARA DENTRO A corrente conceptista valoriza mais os materiais da inteligência e do significado. Há um constante esforço dialético orientado no sentido da organização convincente das ideias em que as sutilezas, associações inesperadas e trocadilhos são indispensáveis. Há uma tese por demonstrar e o interlocutor tem de ser convencido: -Reflete o poeta sobre sua pobreza, para se conformar com a vontade divina Meu Deus, meu pai, meu Senhor, lembra-me, quando dizeis que uma ovelha, que perdeis, vos dava a pena maior; eu sou a ovelha pior de quantas vós pastorais, e se os suspiros e ais de uma ovelha tão sentida são sinais de estar perdida, que fazeis que a não cobrais?(Gregório de Matos) Neste fragmento, como no famoso soneto “Pequei, Senhor, mas não por que hei pecado” e em toda poesia conceptista,

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há, internamente, um silogismo (= forma de exposição lógica do pensamento), que pode ser explicado Premissa maior: Lembra-me (ocorre-me) a lição divina de que as ovelhas perdidas despertam maior interesse no Senhor. Premissa menor: Meus suspiros e ais provam que eu sou uma ovelha perdida Conclusão: Logo, devo ser cobrada ( = recebida) pelo Senhor. Desenvolveu-se paralelamente ao cultismo. Definiu-se na primeira metade do século XVII nas obras de grandes escritores: Quevedo, Padre Vieira e Shakespeare. É um estilo fluente, pouco rebuscado, preocupado em expor, através do raciocínio lógico, ideias e conceitos. Num texto com características conceptistas, há o emprego da linguagem figurada: inversões, antíteses; há jogo de palavras e de ideias. “Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? -Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma cousa é o soldado e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeador e outra o que semeia; uma cousa é o pregador e outra o que prega. 0 semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. 0 melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? - É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. (VIEIRA, Pe, Antônio. Sermões. Rio de Janeiro, Agir, 1980. p. 99-100 [Col. Nossos Clássicos].) BARROCO BRASILEIRO (1601-1768)

A publicação da obra Prosopopeia, em 1601, do poeta Bento Teixeira, português radicado no Brasil, inaugura o Barroco literário brasileiro. O estilo estende-se até 1768. Nesse período, tivemos duas grandes academias: a dos Esquecidos e a dos Felizes, importantes grêmios de divulgação literária. ESCRITORES BARROCOS NO BRASIL . PADRE ANTONIO VIEIRA (1608-1697) Filho de família humilde, Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 1608 e veio para o Brasil com seis anos de idade. Estudou em um colégio jesuíta baiano e, aos 15 anos, ouviu um sermão sobre os horrores do inferno que o impressionou tanto que resolveu tornar-se padre. Ingressou na Companhia de Jesus e, aos 19 anos, já ministrava aulas de retórica. Ordenado em 1634, rapidamente torna-se notável pela qualidade dos sermões, nos quais abordava assuntos morais, filosóficos,

sociais e políticos, posicionando-se contra a corrupção, a ganância, a injustiça e a escravidão. Em 1640, ano da independência portuguesa, Vieira partiu para Portugal encarregado de comunicar oficialmente a adesão do Brasil ao novo rei português, D. João IV. 0 rei, impressionado com a retórica do padre, nomeou-o conselheiro e confessor da Corte - Vieira exerceu ainda trabalho diplomático e propôs a criação da Companhia das índias Ocidentais. Para concretizar o empreendimento, o padre utilizou o dinheiro de cristãos-novos (judeus recém-convertidos ao catolicismo), isentando dos confiscos impostos pela Igreja aqueles que fizessem doações. Essa atitude fez Vieira ganhar inimigos, inclusive da Santa Inquisição. Em 1652, retornou ao Brasil, como chefe de uma missão no Maranhão, onde pregou durante nove anos convertendo índios e defendendo-os da crueldade dos colonos que pretendiam escravizá-los. Os indígenas o tinham em grande estima e consideração e o chamavam de payassu, "pai grande". De volta a Portugal, em 1661, Vieira não contava mais com a proteção da corte; D. João IV morrera em 1656 e seus sucessores eram contrários aos jesuítas. A adesão do padre ao sebastianismo rendeu-lhe a cassação do direito de pregar e mais tarde a prisão domiciliar. Julgado, foi condenado pela Santa Inquisição a oito anos de prisão. Suspensa a pena, graças à destituição de D. Afonso IV, desafeto do padre, Vieira partiu para Roma, onde solicitou a anulação de seu processo. 0 Papa Clemente X livrou-o da Santa Inquisição. Vieira pregou em Roma e na Suécia, onde foi confessor da rainha Cristina. Fez uma breve viagem a Portugal e, em 1681, retornou definitivamente para o Brasil, dedicando os últimos anos de vida à compilação de seus sermões. Morreu em 1697, em Salvador. Padre Antônio Vieira foi um mestre da língua portuguesa e da parenética (a eloquência sagrada), o mais notável orador sacro lusitano e um dos maiores da Europa de todos os tem-pos. Escreveu cerca de 200 sermões, 500 cartas e várias profecias. Principais obras Sermões: Sermão da Sexagésima - trata da arte de pregar. Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda - trata da invasão holandesa de 1640. Sermão de Santo Antônio aos peixes - trata da escravidão indígena, praticada pelos colonos europeus. Sermão do Bom Ladrão - compara os pequenos ladrões aos grandes ladrões, incluindo entre estes os poderosos. Sermão da Quarta-Feira de Cinzas - trata da distinção entre os vivos e os mortos. Profecias: História do Futuro e Esperanças de Portugal. OS SERMÕES DE PADRE VIEIRA Os sermões de Vieira levavam multidões às igrejas e são a parte mais fundamental de sua produção. Didáticos e contundentes, apresentam a seguinte estruturação: Tema - passagem na qual se fundamenta o sermão. Introito - antecipação da estrutura e da sequência de ideias.

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Invocação - pedido de inspiração, feito geralmente à Virgem Maria, de quem Vieira era devoto, para executar com propriedade a exposição de ideias. Argumento - parte do sermão em que se procura provar com argumentos, exemplos e alegorias, as ideias fundamentais. Peroração - fechamento do sermão, no qual o ensinamento principal é resgatado e os fiéis conclamados a praticá-lo. A linguagem de Padre Vieira revela a preocupação em desenvolver ideias e ilustrá-las da forma mais clara possível na tentativa de persuadir o ouvinte. Frequentemente, em seus sermões, dirige-se ao público por meio de perguntas, um recurso que visa prender a atenção, pois espera-se a resposta; cita personagens e passagens históricas e bíblicas para fundamentar os argumentos apresentados; utiliza imagens contrastantes para dar maior substância à ideia apresentada. Veja um exemplo no fragmento do Sermão da Sexagésima: Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está branco, da outra há de estar negro; se de uma parte está dia, da outra há de estar noite; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Os textos de Vieira são um exemplo perfeito do estilo conceptista, embora o padre tenha também produzido sermões em que se observam traços do cultismo.

Sermão do Bom Ladrão Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre por andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu por que roubo em uma barca sou ladrão, e vós por que roubais em uma armada sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades, e interpretar as significações, a uns outros, definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem, et piratam, quo regem animum latronis, et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome. O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem S. Basílio Magno: Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes correr a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de

varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos". Ditosa Grécia que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou um ditador por ter roubado uma pro-víncia! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? 1 Qual passagem sintetiza o tema a ser tratado? 2 Padre Vieira cita algumas personalidades históricas. Explique por quê. 3 Segundo o texto, há dois tipos de ladrão. a) Quais são eles? b) Dos dois tipos, quais são os verdadeiros ladrões? Justifique a resposta com argumentos do texto. 4 Procure no texto figuras de linguagem próprias do texto barroco 5 Nesse sermão predomina o estilo cultista ou conceptista? Justifique sua resposta. 6 Por meio desse sermão, pode-se deduzir que Vieira estava mais preocupado em reverenciar as instituições ou em reafirmar uma verdade essencial? Justifique sua resposta com base no texto. GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (1633?-1696) Gregório de Matos nasceu na Bahia, foi o terceiro filho de uma família abastada, detentora de dois engenhos de cana-de-açúcar e de 130 escravos. Recebeu uma educação rigorosa em casa e no colégio jesuíta em que estudou. Em 1652, partiu para Portugal, onde formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Lá exerceu a profissão, chegando a ser durante vários anos juiz de órfãos, casou-se, ficou viúvo. Caiu nas graças do rei D. Pedro II e ganhou fama pela sua inteligência rápida, pelo humor vivo, contundente e pelo implacável espírito crítico, que lhe valeu a alcunha de "0 Boca do Inferno". Em 1681, retornou ao Brasil e aceitou os cargos de vigário-geral e de tesoureiro-mor que lhe foram oferecidos pelo arcebispo da Bahia. Durante o período em que os exerceu, recusou-se a usar a batina e denunciou as injustiças da Ordem em que servia, reforçando o tom de suas sátiras. Foi desligado das funções a mando de um bispo. Estabeleceu-se como advogado, casou-se com Maria dos Povos e, logo depois, abandonou a mulher e a carreira para ser cantor e repentista no Recôncavo baiano, vivendo à custa da simpatia popular. Em uma de suas sátiras ferinas, ofendeu o então governador da Bahia, Antônio Luís da Câmara Coutinho, e após uma série de perseguições foi preso e exilado para Angola. Recebeu autorização para retornar ao Brasil, mas não à Bahia. Foi para o Recife, Pernambuco, onde faleceu em 1696. A vasta obra de Gregório de Matos só foi publicada cerca de 230 anos depois de sua morte, entre 1923 e 1933, pela Academia Brasileira de Letras. Em consequência disso, muitos de seus poemas se perderam e, até hoje, alguns textos a ele atribuídos são de autoria duvidosa, pois, apesar do estilo personalíssimo, consta que Gregório de Matos teve muitos imitadores anônimos.

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Gregório de Matos manifesta influências de Camões e do poeta espanhol Luís de Góngora. Escreveu poesia lírica, satírica, erótica e encomiástica (versos com a finalidade de adular poderosos). O poeta adotou principalmente o soneto como forma de expressão - os versos geralmente são decassílabos e as rimas dispostas no esquema ABBA, ABBA, CDC e DCD. Em seus textos, é comum também a presença de longos títulos explicativos ou de pequenas introduções nas quais se sintetiza o assunto a ser tratado na poesia. A linguagem empregada é extremamente musical e ritmada, valendo-se de recursos como a aliteração (repetição de sons consonantais), a assonância (repetição de sons vocálicos) e a reiteração (repetição de palavras). Gregório de Matos foi um hábil criador de metáforas, antíteses e paradoxos. Enveredou-se, muitas vezes, por um raciocínio labiríntico cheio de nuanças e de volteios. Na poesia satírica, mesclou gírias e palavrões à sintaxe e ao vocabulário castiço português. Produção religiosa. Quando se entrega à religião, principalmente à figura de Cristo, num estilo antes conceptista que cultista. o poeta, arrependido, pede perdão de seus pecados; sofre remorso por suas ações apaixonadas e insensatas; há sempre um conflito entre pecado e perdão. Relações com a visão tridentina humilhação do homem perante Deus. 0 horror do pecado sugerindo as profundezas do inferno. CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRÁVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS. Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te, Te lembra hoje Deus por sua Igreja, De pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te. Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te, E como o teu baixel sempre fraqueja Nos mares da vaidade, onde peleja, Te põe à vista a terra, onde salvar-te. Alerta, alerta pois, que o vento berra, E se assopra a vaidade, e incha o pano, Na proa a terra tens, amaina, e ferra. Todo o lenho mortal, baixel humano Se busca a salvação, tome hoje terra, Que a terra de hoje é porto soberano. Ao mesmo assumpto e na mesma Occasião. Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinquido Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada Glória tal, e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme, e inteiro. Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minh vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor, e meu delito, Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. Produção lírica . É lírico quando fala de amor, cantando a beleza das mulheres da época, num estilo antes cultista que conceptista. Como era de se esperar num coração de tantas contradições barrocas, o amor em Gregório recebe duplo tratamento: contemplação platônica à maneira de Camões e Petrarca e concupiscência terrena voltada às crioulas da Bahia. Prevalece a segunda modalidade. Quiz o poeta embarcar-se para a cidade e antecipando a notícia à sua senhora, lhe vio humas derretidas mostras de sentimento em verdadeyras lagrymas de amor. Ardor em coração firme nascido! Pranto por belos olhos derramado! Incêndio em mares de água disfarçado! Rio de neve em fogo convertido! Tu, que um peito abrasas escondido, Tu, que em um rosto corres desatado, Quando fogo em cristais aprisionado, Quando cristal em chamas derretido. Se és fogo como passas brandamente? Se és neve, como queimas com porfia? Mas ai! que andou Amor em ti prudente. Pois para temperar a tirania, Como quis, que aqui fosse a neve ardente, Permitiu, parecesse a chama fria.

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Produção satírica. Nenhum segmento das sociedades portuguesa e brasileira escapou à pena ferina de Gregório de Matos. Políticos, comerciantes, membros do clero, colonizadores, gente do povo, negros e mulatos são focalizados de maneira implacavelmente crítica na produção satírica. Nessa vertente, o poeta apresenta desde um humor malicioso e sutil até um escancara mento brutal, em que a obscenidade e os palavrões são recursos frequentes. Episódios da vida popular e cotidiana bem como da esfera política são focalizados - é possível reconstituir, por meio da obra satírica, uma boa parte da vida brasileira do período colonial. O domínio carnavalesco de renovar o mundo se faz presente aí. Gregório não destrona apenas o poder, faz o mesmo com o amor, como veremos no poema Definição do Amor. Mandai-me Senhores, hoje que em breves rasgos descreva do Amor a ilustre prosápia, e de Cupido as proezas. Dizem que de clara escuma, dizem que do mar nascera, que pegam debaixo d’água as armas que o amor carrega. O arco talvez de pipa, a seta talvez esteira, despido como um maroto, cego como uma toupeira E isto é o Amor? É um corno.

Isto é o Cupido? Má peça. Aconselho que não comprem Ainda que lhe achem venda O amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias Uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas, quem diz outra coisa é besta. Temos aí o destronamento do Amor-cupido, que grotescamente dessacraliza o Amor, rebaixando-o ao plano material e corporal do sexo. Sua criação erótica, mescla de sensualismo, lirismo. Como a própria natureza e toda a sua expressão de ser morte e nascimento, naturalismo cru e material da vida, pode ser resumida na definição que é dada ao Amor.

Vários são os poemas em que Gregório destrói a cultura oficial. Sua importância acontece por ser ele, provavelmente, o primeiro autor a apresentar a cultura brasileira através da sátira. Por fim, seus poemas desvelam sua época pela arma do riso, pelas palavras profanas, por uma linguagem dos tempos do Carnaval. Nos rebaixamento paródicos, nas injúrias, nos louvores às avessas, a linguagem da praça pública ridiculariza o sistema, desmascarando poderes vigentes.

Teve o poeta noticia, que Sebastião da Rocha Pitta, sendo rapaz, se estragava com Brites . Brás pastor inda donzelo, querendo descabaçar-se, viu Betica a recrear-se vinda ao prado de amarelo: e tendo duro o pinguelo, foi lho metendo já nu, fossando como Tatu: gritou Brites, inda bem, que tudo sofre, quem tem rachadura junto ao cu. Eu com duas damas vim. MOTE A mais formosa, que Deus Eu com duas Damas vim de uma certa romaria, uma feia em demasia, sendo a outra um Serafim: e vendo-as eu ir assim sós, e sem amantes seus, lhes perguntei, Anjos meus, que vos pôs em tal estado? a feia diz, que o pecado, mais formosa, que Deus. DESCREVE O QUE ERA REALMENTE NAQUELLE TEMPO A CIDADE DA BAHIA DE MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA. A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um freqüentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos Mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM. Um soneto começo em vosso gabo; Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo.

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Na quinta torce agora a porca o rabo: A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. ROMPE 0 POETA COM A PRIMEYRA IMPACIENCIA QUERENDO DECLARAR-SE E TEMENDO PERDER POR OUZADO Anjo no nome, Angélica na cara, Isso é ser flor, e Anjo juntamente, Ser Angélica flor, e Anjo florente, Em quem, senão em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que a não cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus, o não idolatrara? Se como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu custódio, e minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que tão bela, e tão galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. 1º SONETO A MARIA DOS POVOS Discreta e formosíssima Maria, Enquanto estamos vendo a qualquer hora Em tuas faces a rosada Aurora, Em teus olhos e boca o Sol e o dia, Enquanto com gentil descortesia O ar, que fresco Adônis te namora, Te espalha a rica trança voadora Quando vem passear-te pela fria, Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh não aguardes, que a madura idade, Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. Exercícios No fragmento abaixo, Vieira procura persuadir seus ouvintes a não se envolverem com ideias de reforma religiosa (o protestantismo). Para isso toma como exemplo a persistência religiosa dos mártires da Igreja Católica.

"A uns mártires penduravam pelos cabelos, ou por um pé, ou por ambos, ou pelos dedos, polegares, e assim no ar, despidos, batiam e martelavam com tal força e continuação, os cruéis e robustos algozes, que ao princípio açoitavam os corpos depois desfiavam as mesmas chagas, ou uma só chaga até que não tinha já que açoitar nem ferir. A outros estirados e desconjurados no ecúleo (instrumento de tortura), ou estendidos na catasta aravam ou cardavam os membros com pentes e garfos de ferro, a que propriamente chamavam escorpiões, ou metidos debaixo de grandes pedras de moinho, lhes espremiam como em lagar o sangue, e lhes mofam e imprensavam os ossos, até ficarem uma pasta confusa, sem figura, nem semelhança do que dantes eram. A outros cobriam todos de pez (piche), resina e enxofre, e ateando-lhe fogo os faziam arder em pé como tochas ou luminárias, nas festas dos ídolos, esforçando-os para este suplicio como lhes dar a beber chumbo derretido." Indique uma temática do texto, que traduz uma preocupação tipicamente barroca. Caracterize a postura do cristão no texto. Barroco apresenta certa atração pelo mórbido como forma de exprimir a fragilidade, a miséria e o grotesco da condição humana. Explique de que forma essa atitude barroca se manifesta no texto. Transmitindo normalmente estados de conflito espiritual, a linguagem barroca faz uso constante de certas figuras de linguagem, tais como a hipérbole, a antítese, as inversões, as metáforas e as alegorias, além de imagens violentas e de sugestões de som e cor que traduzem o sentido trágico da vida. Destaque do texto exemplos de sugestões sonoras e de imagens violentas. Não vira em minha vida a formosura Ouvia falar nela cada dia, E ouvida me incitava, e me movia A querer ver tão bela arquitetura Ontem a vi para a minha desventura Na cara, no bom ar, na galhardia De uma mulher, que em anjo se mentia De um sol, que se trajava em criatura Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me, Se esta cousa não é, que encarecer-me Sabia o mundo, e tanto exagerar-me! Olhos meus, disse então por defender-me, Se a beleza heis de ver matar-me, Antes olhos cegueis, do que eu perder-me, O que pretende o eu lírico na primeira estrofe? A palavra desventura, na segunda estrofe, nega ou confirma o que se pretende na primeira? Que significado o autor emprestou ao verbo perder no último verso? O homem barroco vive o conflito: carne x espírito; sensualidade x espiritualismo; amor erótico x amor platônico. Explique, então, o conflito presente nesses versos:

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Ontem vi por minha desventura De uma mulher, que em anjo se mentia De um sol, que se trajava em criatura Matem-me- disse eu, vendo abrasar-me Se a beleza heis de ver para matar-me Antes olhos cegueis do que eu perder-me Compare o soneto com o texto bíblico. Evangelho de S. Mateus, capítulo 18, versículo 9: "E se o teu olho te escandaliza, tira-o, e lança-o fora de ti: melhor te é entrar na vida com um só olho, do que tendo dois, ser lançado no fogo do inferno". Destaque do texto versos de conteúdo exagerado. Destaque o gosto pelo trágico. Destaque a antítese de mulher,sol, heis de ver. Identifique a característica barroca predominante nos trechos abaixo:

a) Fermoso tejo meu, quão diferente Te vejo e te vi, me vês agora e me viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste Claro te vi eu já, tu a mim contente.

b) Ardor em firme coração nascido; Pranto por belos olhos derramado; Incêndio em mares de água disfarçado; Rio de neve em fogo convertido.

c) Agora que se cala o surdo vento E o rio enternecido com meu pranto Detém seu vagaroso movimento.

d) Se tão apartada do corpo a doce vida, Domina em seu lugar a dura morte, De que nasce tardar-me tanto a morte Se ausente da alma estou, que me dá a vida?

e) 0 prazer com a pena se embaraça; Porém quando um com outro mais porfia, 0 gosto corre, a dor apenas passa .

f) Foi ser Lia, sem ser feia, que me enlia e que me enleia a liberdade e o juízo...

g) Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos.

A instabilidade das cousas do mundo.

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em continuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a Luz, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto, da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz falta a firmeza, Na formosura não se dá constância, E na alegria, sinta-se tristeza. Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstância. GREGÓRIO DE MATOS GUERRA Qual a ideia central do poema? Por que posso afirmar que esse tema é uma recorrência temática comum dentro da estética do barroco? Identifique no texto a presença de anáfora, antítese, paradoxo e zeugma.