diversos usos da paisagem
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PaisagemTRANSCRIPT
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ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. P. 62-86 www.geouerj.uerj.br/ojs
A HISTORICIDADE DE UM CONCEITO: OS DIVERSOS USOS DA
PAISAGEM AO LONGO DO TEMPO NA CINCIA GEOGRFICA
THE HISTORICAL CHARACTER OF A CONCEPT: THE VARIOUS USES OF
LANDSCAPE THROUGH DECADES IN GEOGRAPHICAL SCIENCE
Letcia Giannella Mestranda em Geografia PUC-Rio
Resumo
O artigo pretende trazer discusso uma pequena abordagem sobre as
diversas conceituaes de paisagem ao longo do tempo. A paisagem um
conceito ainda indefinido e assim continuar o sendo, j que os conceitos
passam continuamente por sucessivas transformaes e devemos, em vez de
buscar uma definio pronta, estar abertos para identificar aproximaes que
tenham maior relao com nosso objeto de estudo. Assim, o artigo passa pela
idia da paisagem em momentos histricos marcantes: o paradigma holstico
da pr-modernidade; a fragmentao dos saberes da Modernidade; e o
paradigma complexo da ps-modernidade, que talvez signifique uma espcie
de retorno ao holismo medieval, medida em que trs tona a ntima relao
da paisagem com a natureza e a cultura.
Palavras-chave : paisagem, histria dos conceitos, relao homem-meio,
paradigmas da cincia, Modernidade.
Abstract
The article aims to bring a small approach to the discussion about the various
conceptualizations of landscape through decades. The landscape is a concept
still undefined and will continue to be, because the concepts are continuously
suffering successive transformations, and we must, instead of look for a ready
definition, be open to identify approaches that have greater relationship with our
object of study. Thus, the article goes through the idea of the landscape in
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historical landmark: the holistic paradigm of pre-modernity, the fragmentation of
knowledge of Modernity, and the paradigm of complex of post-modernity, which
may mean some sort of return to the medieval holism, as it brings back to the
surface the intimate relationship of the landscape with nature and culture.
Key-words : landscape, history of concepts, relation man-environment, science
paradigms, Modernity.
Introduo
O mundo em que vivemos vem continuamente passando por sucessivas
transformaes das mais diversas naturezas. Estas, por sua vez, esto
permanentemente desconstruindo antigos saberes e construindo novos
paradigmas. O movimento da cincia ao longo do espao-tempo
profundamente influenciado por essas transformaes.
Deste modo, os conceitos, que so a base do pensamento cientfico,
possuem histrias marcadas pelos contextos sociais criados por cada uma
dessas transformaes. Com o pensamento geogrfico no diferente. Os
principais conceitos que o embasam podem ser definidos de acordo com
variados autores que realizaram e/ou tm realizado suas pesquisas e estudos
em diversos momentos histrico-espaciais, com caractersticas prprias.
Um desses conceitos a paisagem. Este artigo trata dos diversos
papis representados pela paisagem na construo do pensamento geogrfico,
a partir de diferentes contextos. O que se procura com esta abordagem
analisar a relao entre paisagem e geografia, de modo que possamos
compreender melhor os diferentes cenrios que levaram a diferentes
concepes da prpria cincia geogrfica.
Cabe a cada um de ns analisarmos essas concepes e construirmos
nossos prprios pensamentos luz dos autores revisitados, de acordo com os
objetivos que pretendemos alcanar na utilizao da idia de paisagem.
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atravs principalmente da transio da Idade Mdia para a
modernidade, e da modernidade para a chamada ps ou hipermodernidade,
que podemos entender a paisagem para alm da histria do conceito, como
afirma Edir Augusto Dias Pereira em sua resenha sobre a obra do filsofo
Jean-marc Bess (2006). Pereira ainda destaca que:
a paisagem descentra, desloca-nos do centro que
ocupamos no espao, porque na paisagem no se sabe
propriamente onde se situar, no se sabe onde se
colocar, no se sabe onde se est. Para ele1 a paisagem
simplesmente e essencialmente invisvel, o
inobjetivvel e o irrepresentvel, no pode ser conhecida
nem habitada (PEREIRA, 2006, p. 147).
Alm disso, ressaltamos que nem sempre h apenas um caminho a ser
seguido, ou seja, no devemos nos preocupar em escolher uma das idias
apresentadas e segui-la at o fim como base conceitual de qualquer trabalho
que venha a ser desenvolvido. Devemos sim estar abertos para procurar
entender profundamente cada uma delas, a fim de que possamos identificar
aquelas com as quais nosso objeto de estudo tenha maiores afinidades,
imbricando-as em uma nova abordagem sobre o assunto.
Neste artigo, abordaremos desde as primeiras conceituaes
conhecidas do termo paisagem at as tendncias mais atuais, passando pelas
transies entre os perodos medieval e moderno, e moderno e ps-moderno.
A paisagem pr-moderna
A representao e a conceituao das paisagens foram alteradas
sucessivamente na histria. Melo (2001, p. 29) afirma que o conceito de
paisagem um dos mais antigos da geografia, a ponto de, nas abordagens
1 Aqui o autor refere-se ao fenomenlogo Erwin Strauss.
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mais remotas, os gegrafos afirmarem ser a geografia a cincia das
paisagens.
A Antiguidade Clssica considerava a geografia como o estudo das
relaes sistemticas que descrevem a paisagem, e que, orientadas por esta
(a paisagem), se localizam e se sintetizam para formar o fenmeno regional, de
Estrabo (63 a.C.-63 d.C.). Ainda da Antiguidade vem o discurso de um todo
planetrio que se expressa como uma construo matemtica e pronta para
versar-se em linguagem cartogrfica, de Ptolomeu (MOREIRA, 2006, p. 14).
J no Ocidente medieval, a viso de mundo predominante na Europa era
orgnica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e
vivenciavam a natureza em termos de relaes orgnicas, caracterizadas pela
interdependncia dos fenmenos espirituais e materiais e pela subordinao
das necessidades individuais s da comunidade. A natureza da cincia
medieval baseava-se, portanto, na razo e na f, e sua principal finalidade era
compreender o significado das coisas e no exercer a predio ou o controle
da histria. Deste modo, o carter mais racional e matemtico da tradio
aristotlica deu lugar a um carter mais baseado na espiritualidade. Contudo,
no foram encontradas referncias utilizao especfica do termo paisagem
neste perodo.
Paisagem e Modernidade
Primeiramente, devemos entender o que a modernidade. Giddens
(1991), como uma primeira aproximao, afirma que a modernidade refere-se
a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a
partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais
em sua influncia. Ainda segundo o autor:
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos
desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem
social, de uma maneira que no tem precedentes. Tanto
em sua extensionalidade quanto em sua
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intencionalidade, as transformaes envolvidas na
modernidade so mais profundas que a maioria dos tipos
de mudana caractersticos dos perodos precedentes
(GIDDENS, 1991, p. 14).
De acordo com Paul Claval (2004, p. 14), a origem do termo paisagem
remonta ao sculo XV crise do perodo medieval nos Pases Baixos, sob a
forma de landskip. Neste caso, a paisagem aplicava-se aos quadros que
apresentam um pedao da natureza, onde os personagens tm um papel
apenas secundrio (idia de janela). Claval afirma que o alemo forjaria a
partir de ento o termo landschaft, e o ingls, landscape, para traduzir o termo
holands. O italiano transcreveria a idia de extenso de pays (regio, ptria,
lugar de nascena), que vem da raiz land, criando paesaggio, de onde deriva o
termo francs.
Holzer (1999, p. 152) diz que a palavra alem mais antiga, medieval e
seu contedo mais abrangente e complexo que o das lnguas latinas, onde o
termo renascentista, limitado, em sua origem, s artes plsticas. Contudo,
logo a geografia francesa apropriou-se da palavra paysage, destituindo-a de
seu sentido renascentista e restituindo-a o sentido mais amplo de seu correlato
alemo.
Bess (2006) refora essa idia afirmando que antes de adquirir uma
significao puramente esttica, ligada ao desenvolvimento especfico de um
gnero de pintura a partir dos sculos XVII e XVIII, a palavra paisagem possui
uma significao que se pode dizer territorial e geogrfica, o que condiz com a
idia de paysage.
Neste sentido, desaparece a idia de enquadramento, ou seja, o
destaque se transfere da perspectiva e do enquadramento observados para a
parte do pays do qual se discerne a fisionomia (CLAVAL, 2004, p. 15).
A partir do sculo XVII, o termo paisagem passou a adquirir uma
significao puramente esttica, ligada a um gnero especfico de pintura.
Todavia, para o autor, a pintura busca reproduzir objetivamente um fragmento
da natureza, mas o ponto de observao, o ngulo e o enquadramento da vista
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resultam de uma escolha (p. 15). Existiria assim tambm uma dimenso
subjetiva da paisagem.
Luchiari (2001, p. 14) declara que at o sculo XVIII o termo paisagem
era sinnimo de pintura, ou seja, foi na mediao com a arte que o stio o
lugar adquiriu o estatuto de paisagem.
Para Bess (2006, p. 62), a paisagem como noo esttica assume a
desarticulao moderna das diferentes funes da razo (conhecimento,
julgamento moral, julgamento esttico). Assim, toda tentativa de reconciliar a
esttica com os outros setores do pensamento humano denunciada como
arcaica, ou mesmo reacionria, pois estar-se-ia retornando ao perodo
medieval. No entanto, o mesmo autor afirma que, desde o sculo XVII, esta
ruptura (esttica versus outros setores do pensamento) tem sido contestada e
nunca se imps sem dificuldade. A origem dessa resistncia est justamente
na relao da geografia com a pintura, que existiu desde antes do sculo XVI.
Na frmula clssica da paisagem esttica a partir do sculo XVII na
histria da pintura, a paisagem definida como a extenso de um territrio que
se descortina num s olhar de um ponto de vista elevado. Assim, a paisagem
passou a ser tida como um espao objetivo da existncia, mais do que como
vista abarcada por um sujeito (Bess, 2006, p. 21).
No que diz respeito ao surgimento da geografia moderna, Tatham,
citado por Moreira (2006, p. 13), afirma que este se deu na segunda metade do
sculo XVIII, alimentado na filosofia do Iluminismo e do Romantismo Alemo. O
desenvolvimento do sistema newtoniano para o qual a funo da cincia era
descobrir leis universais e enunci-las de forma precisa e racional tambm foi
um dos grandes responsveis por essa modernizao da geografia. Becker e
Gomes (1993, p. 150) afirmam que em relao concepo dominante no
pensamento medieval de uma natureza oculta e insondvel, o sistema
newtoniano foi o grande modelo de ruptura. A natureza se transforma em um
sistema de leis matemticas estabelecidas por um Deus racional.
Moreira (2006, p. 13) separa a geografia moderna em trs fases
diferenciadas por seus respectivos paradigmas: o paradigma holista da baixa
modernidade; o paradigma fragmentrio da modernidade industrial e o
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paradigma holista da hipermodernidade. Neste artigo, trabalharemos com a
diviso entre a modernidade considerando os perodos da baixa
modernidade e da modernidade industrial e a hipermodernidade como
tendncia atual.
Luchiari (2001, p. 14) diz que a paisagem, na chamada baixa
modernidade, no possua um sentido de unidade. Entende-se por baixa
modernidade (para a geografia moderna) o perodo do Iluminismo e do
Romantismo Alemo de acordo com Moreira (2006, p. 13) ambos
marcados pela presena do idealismo filosfico. Havia na baixa modernidade
uma aproximao do homem com o mundo natural que tornava cada vez mais
evidente o carter ornamental da natureza e sua valorizao esttica como
smbolo distintivo de posio social (LUCHIARI, op. cit.).
O gegrafo J. R. Forster e o filosofo Immanuel Kant so considerados
por Moreira (2006, p. 14) como os pontos de convergncia do Iluminismo na
geografia, antecedidos pelos gegrafos da primeira metade do sculo XVIII.
Para Forster, a descrio das paisagens tem a tarefa de evidenciar as
relaes atuantes entre os fenmenos e esclarecer sua natureza. A descrio
culmina na explicao das relaes, com ateno particular s relaes do
homem com o meio (MOREIRA, 2006, p. 16). Forster toma por abordagem o
estudo da superfcie terrestre atravs do recorte das paisagens, enfatizando a
cincia geogrfica como uma cincia corogrfica.
O filsofo Immanuel Kant (1724-1804) estabelecer as bases
epistemolgicas da geografia moderna que ficaram faltando ao trabalho
empirista de sistematizao terico-metodolgica desenvolvido por Forster.
Para Kant, a geografia est relacionada percepo espacial dos fenmenos,
e por isso o filsofo a classifica como uma cincia da natureza. Contudo,
entende-se por natureza, nos tempos de Kant, todo o mundo da percepo
sensvel, o mundo objetivo das coisas que nos rodeiam (Moreira, 2006, p. 17).
Segundo Gandy (2004, p. 81), na tradio romntica que surge a partir
do final do sculo XVIII, a apreenso visual da natureza est estreitamente
ligada ao sentimento esttico do sublime.
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Karl Ritter (1779-1858) forma com Alexander von Humboldt (1769-1859)
o perodo cientfico para o qual o perodo de Forster e Kant lana os primeiros
alicerces. Ritter reafirma a corologia e aperfeioa o mtodo comparativo.
Humboldt parte do mesmo princpio e mtodo de Ritter, porm:
Se para Ritter o objeto de estudo da geografia a
superfcie terrestre vista a partir das individualidades
regionais, para Humboldt a globalidade do planeta,
vista a partir da interao entre a esfera inorgnica,
orgnica e humana holisticamente realizada pela ao
intermediadora da esfera orgnica (MOREIRA, 2006, p.
21).
Podemos notar que tanto Ritter quanto Humboldt so holistas em suas
concepes sobre a geografia. Ritter vai do todo s partes e Humboldt vai do
recorte ao todo, ambos utilizando o mtodo comparativo e o princpio da
corologia. O fundo holista comum que ambos captam do pensamento
iluminista a idia da natureza como uma essncia interior de todas as coisas,
que vem de Kant (MOREIRA, 2006, p. 22). Todavia, ao mesmo tempo em que
os dois fundadores da geografia moderna se aproximam, tambm h um
distanciamento. Para Ritter, de acordo com Tatham, citado por Moreira (op.
cit), a geografia centralizava-se no homem; seu objetivo era o estudo da terra,
do ponto de vista antropocntrico; procurar relacionar o homem com a
natureza, e ver a conexo entre o homem e a sua histria e o solo onde viveu.
J para Humboldt, a geografia centra-se tambm no homem, mas este se
compreende no interacionismo das esferas com primado no papel mediador do
orgnico (MOREIRA, 2006, p. 23).
A partir da segunda metade do sculo XVIII, estabelece-se a
preocupao descritiva entre os gegrafos. Seria preciso traduzir a fisionomia.
De acordo com Claval (2004, p. 16), Humboldt afirmava que existe uma
fisionomia natural que pertence exclusivamente a cada uma das regies da
Terra.
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No sculo XIX, os gegrafos esto atentos diversidade das paisagens.
A obra A face da Terra, do gelogo Eduard Suess, causou impacto
considervel na utilizao da paisagem: [...] ao explicar a superfcie da Terra
falando de face, e no de superfcie, ele faz da Terra uma entidade da qual
possvel perceber a fisionomia (CLAVAL, 2004, p. 20). Ainda, a paisagem
deixa de ser um quadro sem vida, sendo feita de ambientes, concebida em
termos de interface.
Ainda segundo Claval (2004, p. 21), idia da paisagem como interface,
suporte da biosfera, logo se acrescenta uma outra: por que no ver na
paisagem a interface entre os homens e a natureza?
Com base nisto, podemos concluir que a idia de que Humboldt seria
um gegrafo fsico e Ritter um gegrafo humano equivocada, pois ambos se
utilizam do holismo prevalecente no Iluminismo e no Romantismo. Para
ambos, no se pensa em homem e natureza em dissociado (MOREIRA, 2006,
p. 24). Gandy (2004, p. 75) reitera esta compreenso, afirmando que
gegrafos como Humboldt e Ritter concebiam a paisagem como a interao da
natureza (fsica) e da cultura.
Para Becker e Gomes (1993, p. 148), a geografia chamada universitria,
seja com Humboldt, Ritter, Buffon ou Kant, institucionalizou-se atravs de um
discurso que tinha como referncia central a questo da relao homem-meio.
Holzer (1999, p. 157) afirma que estes gegrafos pioneiros associaram
a paisagem a pores do espao relativamente amplas, que se destacavam
visualmente por possurem caractersticas fsicas e culturais suficientemente
homogneas para assumirem uma individualidade.
Ruy Moreira considera a modernidade industrial como o perodo
dominado pela filosofia positivista:
A essncia do pensamento positivista a reduo dos
fenmenos a um contedo fsico e a um encadeamento,
que faz as cincias interagirem ao redor desse contedo
fsico ao passo que as fragmenta por seus
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conhecimentos em diferentes campos de objetos e
mtodos especficos (MOREIRA, 2006, p. 13).
Na segunda metade do sculo XIX, aps a morte de Humboldt e Ritter,
inicia-se uma nova fase de referncias filosficas no mundo da cincia,
indicativas da emergncia do positivismo, inaugurando, em todos os campos
da cincia, uma extrema fragmentao do conhecimento (MOREIRA, 2006, p.
24). Esta ruptura faz parte, para o autor, da transio entre a baixa
modernidade e a chamada modernidade industrial.
Quando a Providncia, no perodo moderno, deixou de significar, no
plano cientfico, a cauo da finalidade explicativa, foi preciso substitu-la por
uma causalidade intrnseca natureza que, atravs de um procedimento
estritamente racional, deveria indicar a cadeia explicativa necessria aos
fenmenos (BECKER E GOMES, 1993, p. 150). Este o princpio da cincia
positivista.
Segundo Moreira (2006), primeiramente criam-se as chamadas
geografias sistemticas, a partir da quebra do real em diferentes pedaos. O
primeiro passo , assim, a definio da esfera de estudo. Nesta repartio, a
geografia toma por seu campo a esfera das coisas inorgnicas. O segundo
passo fragmentar esta esfera em diversos setores de geografia
especializada. O autor afirma:
Em verdade, estamos em presena de uma radical
mudana no conceito da natureza. A natureza holista
dos iluministas e romnticos v seu contedo reduzido
ao de uma natureza inorgnica, tornando-se uma coisa
fsica. [...] e a esfera humana simplesmente
abandonada. Uma mudana no conceito de homem
ento se d em paralelo, excludo da natureza. [...]
Depois, abandona-se o carter espacial da geografia
estabelecido desde Kant. E, por fim, o mtodo
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comparativo formulado por Ritter (MOREIRA, 2006, p.
25).
No entanto, logo cedo se manifesta uma reao contra essa
naturalizao mecanicista e fragmentria da viso de mundo positivista. Na
geografia, de um lado, a reao manifestar-se- na continuidade do processo
fragmentador, com base na emergncia da biologia de corte darwinista, porm
inspirado num naturalismo no mais mecanicista e sim organicista, e cujo
resultado ser o nascimento das geografias setorial-sistemticas agora no
campo dos estudos do homem; por outro lado, na frente neokantiana, a reao
manifestar-se- num movimento de retorno a Ritter, trazendo de volta
geografia seu carter de cunho unitrio e corolgico, expresso no nascimento
da geografia fsica e da geografia humana e, sobretudo, da geografia regional
como campos unitrios das respectivas abordagens (MOREIRA, 2006, p. 28).
O autor apresenta Ratzel, La Blache e Hetner, alm de Reclus, como os
pensadores mais emblemticos desse momento paradigmtico da geografia
(p. 30). Paul Claval (2004, p. 21) afirma que Ratzel delimita o campo da
antropogeografia, ou geografia humana, na qual se estudariam as relaes
entre os homens e os ambientes onde eles vivem. Os gegrafos desta linha se
interrogam sobre a influncia que o meio exerce sobre os indivduos e grupos,
e procuram medir as transformaes que a atividade humana desencadeia no
meio ambiente. A geografia humana assim concebida se colocaria na
interface entre natureza e fatos sociais, o que situa como ameaa a distino
entre um domnio fsico e um domnio humano no estudo das distribuies
terrestres.
Com Vidal de La Blache, altamente influenciado pela filosofia do
positivismo, tem incio a fase da geografia que ir difundir-se no sculo XX.
Segundo Moreira (2006, p. 36), pode-se falar em trs La Blaches,
principalmente dois. O primeiro consolida a geografia regional e nele que se
materializa o conceito lablacheano de regio. O segundo considerado o
fundador da geografia da civilizao. Neste h um ponto comum com Ratzel,
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uma vez que ambos falam da mesma coisa: o destino do homem numa
civilizao industrial:
a geografia da civilizao [...] o ltimo rebento da
reao anti-fragmentria dentro do prprio paradigma da
cincia fragmentria. Uma alternativa que ento se
oferece a aglutinaes do tipo geografia fsica, geografia
humana e geografia regional, que seguiam sendo uma
reiterao ao conhecimento fragmentrio e fracionrio da
realidade (MOREIRA, 2006, p. 36).
Para La Blache, a paisagem um produto objetivo do qual a percepo
humana s capta, de incio, o aspecto exterior. A paisagem o efeito e a
expresso evolutiva de um sistema de causas tambm evolutivas: Trata-se de
levar em conta toda vez a caracterstica do territrio considerado. Fisionomia e
caracterstica no so representaes subjetivas, mas sim realidades
objetivas(MOREIRA, 2006, p. 34). sobre o plano das aparncias que
preciso se situar para apreender toda a densidade epistemolgica e ontolgica
da paisagem. Jean Brunhes, colega e discpulo de Vidal de La Blache, afirmava
que em todos os lugares o homem inscreve sua passagem por impresses
que so objetos de nossos prprios estudos. Assim, o fato geogrfico
considerado como uma inscrio e os objetos do olhar geogrfico seriam os
traos e impresses.
De acordo com Bess, as conseqncias epistemolgicas
desencadeadas pelo conceito de fisionomia so considerveis:
Falar da paisagem em termos de fisionomia significa que
se atribui paisagem uma densidade ontolgica prpria.
Se ela possui uma fisionomia preciso compreend-la
como uma totalidade expressiva, animada por um
esprito interno, do qual se pode extrair o sentido. Tudo
se passa como se houvesse um esprito do lugar, do
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qual a aparncia exterior do territrio visado seria a
expresso. [...]. Nesta perspectiva, a geografia parece se
definir inicialmente como uma arte da percepo visual
(BESS, 2006, p. 72).
Porm, o autor nos diz que a paisagem uma construo cultural, ou
seja, uma imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela ou realizada sobre o
territrio. Em cada caso, segundo o autor, o territrio afetado por qualidades
paisagsticas particulares, prprias ao interesse daquele que o considera (p.
61).
Ainda assim, essa extrema fragmentao das cincias, o dualismo
homem/matria e a estetizao das paisagens predominaram praticamente
todo o debate intelectual sobre o tema desde a emergncia do positivismo at
o fim da chamada modernidade industrial.
A ps-Modernidade ou Ultramodernidade: o paradi gma da
complexidade
O chamado paradigma da complexidade, que vem se desenhando nos
ltimos 30 anos, promove uma verdadeira revoluo cientfica e tem como
concorrente o paradigma da simplificao (SOUZA, 1997, p. 46). Este, de
acordo com Edgar Morin, citado por Souza (op. cit.), compreende a cincia
clssica e opera por reduo (do complexo ao simples, do molar ao
elementar), rejeio (da eventualidade, da desordem, do singular, do individual)
e disjuno (entre os objetos e o seu ambiente, entre sujeito e objeto).
Segundo Souza:
O paradigma da complexidade romperia com os
raciocnios lineares e reducionistas, incorporando um
enfoque que busca interaes complexas [...], alm de
admitir que no apenas a necessidade (determinidade),
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mas igualmente o acaso (a contingncia, o inesperado)
so definidores do mundo real (SOUZA, 1997, p. 47).
Moreira (2006, p. 39) afirma que a crise do paradigma fragmentrio se
evidencia no correr dos anos 1960-70.
As maneiras de ler as paisagens colocadas em pauta pelos gegrafos
entre o final do sculo XIX e o incio da dcada de 1970 revelaram-se muito
fecundas. Fizeram com que se tomasse conscincia das relaes ntimas que
unem os aspectos fsicos, os componentes biolgicos e as realidades nos
ambientes sociais que os homens constituram. As atitudes se modificaram a
partir da dcada de 70. O impacto das filosofias fenomenolgicas influenciou-
as significativamente: o mundo que o indivduo percebe jamais objetivamente
dado. O registro geogrfico deixa de considerar que os homens so
independentes do meio onde se encontram: eles s podem existir nos meios
geogrficos com os quais mantm relaes mais complexas do que at ento
se pensava. O que a mudana filosfica e epistemolgica acarreta no Ocidente
uma rejeio do dualismo homem/matria. A nova concepo que os
gegrafos tm da paisagem os leva a se interessarem pelas motivaes
daqueles que as desenharam ou organizaram (CLAVAL, 2004, p. 51).
A fenomenologia definida, segundo Moreira (2006, p. 41), como a
filosofia das essncias, e sua origem Edmund Husserl. Preocupa Husserl
recuperar os fenmenos da cincia rigorosa, deturpada pelo positivismo e pela
sua concepo de rigor matemtico. A fenomenologia de Husserl chega
geografia atravs da percepo ambiental (geografia da percepo), da
geografia humanista e da geografia cultural. Entre os anos 1980 e 1990, estas
formas da geografia tm um crescimento em todo o mundo (MOREIRA, 2006,
p. 42).
Por fim, o pensamento quntico funda no mundo da cincia um olhar
no-fragmentrio do todo um holismo ambiental, segundo Moreira (2006, p.
43) e, assim, tende a ser um novo paradigma. Ainda de acordo com o autor,
sua chegada geografia tem sido lenta, talvez dado impregnao ainda
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fortemente positivista e kantiana da noo de natureza a natureza como
coisa fsica , que predomina na geografia como um todo:
Aos poucos vai surgindo aqui e ali um sentido de resgate
da viso holista, abandonada pela emergncia da
fragmentaridade positivista, mas sob uma forma plural e
diferenciada de entendimento, numa situao distinta
daquela da geografia dos sculos XVIII-XIX.
A resignificao da paisagem: o retorno ao holismo?
No quadro atual de transformaes vividas pelas cincias e pela
geografia em particular, a anlise da organizao espacial tem se dado, cada
vez mais, por meio de uma prtica interdisciplinar, despertando novo interesse
no estudo das relaes entre natureza, cultura, sociedade e meio ambiente
(FREITAS, 2005). Este tema encontra, segundo a autora, dois novos caminhos
que interessam de perto geografia. O primeiro a histria ambiental,
disciplina recente que considera a natureza um agente na histria do homem; e
o segundo caminho o proposto pela geografia cultural, apoiado na cultura
vista como a resposta humana ao que a natureza nos oferece como base
fsica.
Natureza e Paisagem
A natureza, antes do perodo da tcnica, era uma natureza mgica,
mtica, das trevas. Sobreviver era sobreviver natureza e suas intempries.
Aps vrios sculos, a tecnificao do planeta possibilitou o controle de muitos
processos que, antes, eram somente naturais, mas no eliminou a
preocupao com a problemtica da base territorial da sociedade. Em cada
poca, o imaginrio coletivo define a concepo social de natureza e a traduz,
transformando-a em cultura (LUCHIARI, 2001, p. 10).
Um dos principais tericos da histria ambiental, David Worster, em sua
obra Para fazer histria ambiental, de 1991, inclui a natureza como objeto, mas
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tambm como resultante de processos engendrados pelo homem e pela
evoluo natural da rea, a paisagem (FREITAS, 2005). Shama (1996), citado
por Freitas, afirma: antes de poder ser um repouso para os sentidos, a
paisagem obra da mente [...]. Compe-se tanto de camadas de lembranas
quanto de extratos de rocha.
O modo como hoje concebemos a natureza tem sua origem mais remota
na revoluo introduzida por Coprnico (1473-1543), no entendimento do
sistema solar via teoria heliocntrica. O mundo dicotomicamente diferenciado
(esfera de Deus, de um lado, e esfera humana, de outro), vai se tornando um
s do ponto de vista da estrutura e do funcionamento em escala universal.
Descartes (1596-1650) funda ento a compreenso do comportamento dos
fenmenos na geometrizao do mundo. A natureza deixa de ser a morada de
Deus para ser tudo que se expresse por um contedo fsico-matemtico
(MOREIRA, 2006, p. 56).
Este mundo, todavia, ainda dicotmico. Descartes distingue res
extensa (mundo das coisas) e res cogitans (mundo das idias). Galileu Galilei
distingue a natureza, mundo daquilo que mensurvel e quantitativo, da no-
natureza, daquilo que no tem existncia objetiva (MOREIRA, op. cit.). A
natureza ainda est ligada a Deus, j que funciona com regularidade mecnica.
Com o advento da cincia moderna positivista, a natureza passa a ser
um campo de foras racionais e lgicas, separando-se rigidamente o natural do
no-natural. O mundo natural da concepo medieval d lugar a uma natureza
fechada em si mesma, externalizada a tudo que no fsico-matemtico e
preditivo. Nasce a base da dicotomia homem-meio caracterstica do
pensamento moderno.
Se o cartesianismo reduzira a natureza s leis invariveis da fsica e da
matemtica, o positivismo mantm a referncia nesse paradigma, mas a fim de
incluir o homem na sua abrangncia por meio da fsica social (sociologia).
Provando em seu livro de 1859, A origem das espcies, que o homem se
origina da evoluo natural, Darwim fere o paradigma fsico da natureza e
lana as bases de uma nova forma de entender a natureza e o homem.
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Luchiari (2001, p. 16) apresenta a idia de que, no perodo
contemporneo, vem-se debatendo o conceito da morte da paisagem, o que
poderia se referir pintura do final do sculo XX e tambm transformao
das paisagens naturais, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial. A
primeira idia que nos viria mente no que diz respeito morte da paisagem
estaria, segundo a autora, relacionada destruio das paisagens tradicionais
pela sociedade contempornea. O lado mais visvel das transformaes da
superfcie da Terra induzidas pela ao do homem ocorre na apreenso das
paisagens. Deste modo, a morte da paisagem seria um erro:
A paisagem ao mesmo tempo ancorada no solo,
modelada pelas transformaes naturais e pelo trabalho
do homem e, acima de tudo, objeto de um sistema de
valores construdo historicamente e apreendido
diferentemente no tempo e no espao, pela percepo
humana.
Ainda segundo Luchiari (2001, p. 19), a preocupao com o fim das
paisagens um pressuposto do discurso ambientalista, que toma a paisagem
como um ambiente natural, dando-lhe certa autonomia em relao s prticas
sociais com as quais se relacionaria. Por outro lado, esta valorizao esttica
da natureza acaba por desmistificar esse discurso naturalizante, ou seja, o
novo olhar que transformou a natureza em meio ambiente vem produzindo
tambm uma nova organizao territorial e simblica. A autora declara: a
paisagem contempornea uma concepo hbrida, carregada de natureza e
cultura, de processos naturais e sociais; a paisagem no se esgota, no
morre.
Moreira (2006, p. 73) afirma que o novo paradigma da natureza a
considera como ao mesmo tempo o orgnico e o inorgnico, o fragmentrio e
o unitrio, o mecnico e o vivo. a unidade da diversidade e a diversidade da
unidade; numa relao cclica de reproduo em espiral. Ainda segundo o
autor:
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Cabe geografia mostrar que a diversidade da natureza
se ressintetiza nos lugares da superfcie da terra,
adquirindo em funo do recorte de espao o seu modo
concreto de organizao (um detalhe de localizao
interfere no todo do circuito da produo/reproduo da
vida). E que a superfcie terrestre ser-estar do homem,
uma teoria percebida de longa data pelos clssicos e
reafirmada no sculo XIX por Humboldt e Ritter (p. 44).
Para reforar essas abordagens, podemos estudar o caso das
populaes tradicionais em Unidades de Conservao. Diegues (1993, p. 219)
afirma que o aumento do nmero das unidades de conservao (UCs) tem
sido devido rpida devastao / perda da biodiversidade; ao surgimento dos
fundos internacionais para a conservao da natureza; e possibilidade de
gerao de renda atravs do turismo. Para algumas pessoas, as UCs so
apenas um fim em si mesmas, ou seja, existe a dicotomia natureza/
humanidade, fazendo que um s possa existir em seu estado pleno sem a
presena do outro. J para outros, o mundo natural j no existe, e h a
necessidade urgente de se redefinir as relaes homem-natureza, porm sem
exclu-las.
A viso ecocentrista no se d conta de que existem formas sociais
distintas das sociedades urbano-industriais e que podem ser denominadas pr-
capitalistas. Estudos recentes, de acordo com Diegues (1993, p. 221), revelam
que a manuteno e mesmo o aumento da diversidade biolgica nas florestas
tropicais est relacionada intimamente com as prticas tradicionais da
agricultura itinerante dos povos primitivos, o que torna necessrio o repensar
do conceito de florestas naturais e sua modalidade de preservao que
probe a agricultura itinerante. necessrio, portanto, partir de uma estratgia
de soluo e conflitos para uma mais positiva: aquela que v nas populaes
tradicionais suas aliadas na conservao da natureza.
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A superespecializao da cincia ocidental fez com que os aspectos
scioambientais das relaes entre amerndios e ecossistemas amaznicos,
por exemplo, fossem obscurecidos. A ponte entre as cincias naturais e sociais
requer o surgimento de categorias cognitivas dos indgenas usando mtodos
que privilegiam os conceitos nativos. Os cientistas resistem perda de controle
do paradigma questionado e tm receio de perder a linha de base da
realidade que controla significados (POSEY, 1998).
As caractersticas antropognicas das paisagens esto se tornando
evidentes, se perdendo a idia de que as sociedades humanas podem
somente destruir a natureza, e que recursos tradicionais so selvagens
(POSEY, op. cit.).
Segundo Harvey (1996), citado por Oliveira (2007, p. 12), as sociedades
humanas no so simples objetos das leis da natureza, so sujeitos que a
transformam e a incorporam nas suas relaes.
A representao muitas vezes ofusca a viso profunda que est por trs.
A prpria representao da natureza uma apropriao dela. Toda paisagem
humanizada.
Cultura e Paisagem
Berque (1998, p. 84), entende a geografia cultural como o estudo do
sentido (global e unitrio) que uma sociedade d sua relao com o espao e
com a natureza, relao que a paisagem exprime concretamente. A paisagem
para o autor uma marca, j que expressa uma civilizao, mas tambm
matriz, j que participa dos esquemas de percepo, concepo e ao que
canalizam a relao de uma sociedade com o espao e a natureza e, portanto,
a paisagem.
Como marca, o ponto de partida continua sendo a descrio da
paisagem, mas a explicao ultrapassa o campo do percebido, seja por
abstrao, seja por mudana de escala no espao ou no tempo. A
conseqncia o distanciamento do objeto inicial da proposta: a paisagem
como dado sensvel (BERQUE, 1998, p. 85).
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Milton Santos (1997, p. 83), em sua conhecida definio de paisagem, a
toma como o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as
heranas que representam as sucessivas relaes entre homem e natureza.
Contudo, essa definio, para muitos autores, limitada, j que do ponto de
vista da geografia cultural, no suficiente explicar o que produziu a paisagem
enquanto objeto. Por um lado, a paisagem vista por um olhar, apreendida por
uma conscincia, valorizada por uma experincia, julgada por uma esttica e
uma moral, gerada por uma poltica, etc. e, por outro lado, ela matriz, ou seja,
determina esse olhar, essa conscincia, essa experincia, essa esttica e essa
moral, essa poltica, etc. (BERQUE, 1998, p. 86).
No incio do sculo XX, a paisagem foi um dos primeiros temas a ser em
abordados numa perspectiva cultural pelos gegrafos alemes, sendo
posteriormente incorporado pela geografia cultural, nos anos 20, por meio do
gegrafo norte-americano Carl Sauer (MELO, 2001, p. 30). A obra de Sauer
originou uma escola de geografia da paisagem, focalizando o papel do homem
transformando a face da Terra. A geografia cultural nesta tradio, segundo
Cosgrove (1998, p. 100), concentrou-se nas formas visveis da paisagem, onde
a cultura parecia funcionar atravs das pessoas para alcanar fins dos quais
elas estavam vagamente cientes. Os crticos chamaram isto de determinismo
cultural.
Holzer (1999, p. 153) diz que, para Sauer, a paisagem seria a unio das
qualidades fsicas da rea significativas para o homem e das formas como esta
rea utilizada. Deste modo, a individualidade da paisagem s seria conhecida
quando comparada com outras paisagens.
O autor em uma anlise crtica do determinismo cultural cita Dardel,
para quem a paisagem no se referia, em essncia, ao que era visto. Ela
representava a [...] insero do homem no mundo [...], a manifestao de seu
ser para com os outros, base de seu ser social (p. 159).
Cosgrove (1998, p. 98) considera a paisagem como uma maneira de
ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma cena,
em uma unidade visual. Ainda segundo o autor:
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A paisagem est intimamente ligada a uma nova
maneira de ver o mundo como uma criao
racionalmente ordenada, designada e harmoniosa, cuja
estrutura e mecanismo so acessveis mente humana,
assim como ao olho, e agem como guias para os seres
humanos em suas aes de alterar e aperfeioar o meio
ambiente.
O autor considera que a cultura no algo que funciona atravs dos
seres humanos; pelo contrrio, tem que ser constantemente reproduzida por
eles em suas aes. Para Cosgrove, todas as paisagens so simblicas e
revelar os significados na paisagem cultural exige a habilidade imaginativa de
entrar no mundo dos outros de maneira auto-consciente e, ento, re-presentar
essa paisagem num nvel no qual seus significados possam ser expostos e
refletidos.
Paul Claval (2004, p. 40) afirma que os gegrafos so sensveis
dimenso cultural das paisagens, observando os marcos e os sinais visveis
sobre os terrenos. Contudo, o autor ressalta que a presena de marcos conduz
muitas vezes a interpretaes simplistas. As abordagens funcionais vo mais
longe e permitem entrar mais profundamente na intimidade dos fatos sociais e
na sua traduo espacial.
Holzer (1999, p. 161), no que diz respeito sua idia de uma geografia
cultural, revisita Raffestin e Reymond (1980):
Para os autores, a paisagem um depsito de histria,
um produto da prtica entre indivduos e da realidade
material com a qual nos confrontamos. Para se fazer uma
geografia da paisagem seria preciso situar-se o nvel
perceptivo a ser abordado, constitudo da experincia
cognitiva da paisagem a ser estudada a partir da
intencionalidade; e de nossos constructos, j que o real
objetivo no existe para alm deles.
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Um requisito para a significao das paisagens simblicas a leitura
detalhada do texto, para os gegrafos a prpria paisagem em todas as suas
expresses. Os dois principais caminhos para isto, segundo Cosgrove (1998, p.
109), so o trabalho de campo e a elaborao e interpretao de mapas. Ao
mesmo tempo, os gegrafos devem buscar uma distncia crtica, ou seja,
uma busca desinteressada de evidncia. Estas evidncias podem ser
materiais, no campo e outras fontes documentais e cartogrficas, orais, de
arquivo e outras. Podemos encontrar a evidncia nos prprios produtos
culturais. A linguagem tambm crucial.
O autor tambm ressalta que preciso prestar ateno s paisagens
dominantes e s paisagens alternativas. Em termos de paisagens existentes,
naturalmente somos inclinados a ver a expresso mais clara da cultura
dominante no centro geogrfico do poder (1998, p. 113). O poder da
hegemonia mantido e reproduzido por sua capacidade de projetar e
comunicar, por quaisquer meios disponveis e atravs de todos os outros nveis
e divises sociais, uma imagem do mundo consoante com sua prpria
experincia e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da realidade de
qualquer um. Por sua vez, as culturas alternativas so menos visveis na
paisagem do que as dominantes, apesar de que, com uma mudana na escala
de observao, pode parecer dominante uma cultura subordinada ou
alternativa. Cosgrove divide as culturas alternativas em residuais, emergentes
e excludas.
Ainda segundo o autor, as paisagens tomadas como verdadeiras de
nossas vidas cotidianas esto cheias de significados e grande parte da
geografia est em decodific-las.
Claval (2004, p. 71) conclui:
O que se procura compreender so as relaes
complexas que se estabelecem entre os indivduos e os
grupos, o ambiente que eles transformam, as identidades
que ali nascem ou se desenvolvem. Este um dos
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caminhos reais para compreender o mundo. O perigo,
talvez, esperar muito dele.
Consideraes finais
Atravs desta breve passagem podemos entender que os conceitos so
sempre dinmicos e esto em constante mutao. Contudo, devemos
compreender que esse dinamismo est diretamente relacionado idia de
movimento, e este movimento deve ser sempre lembrado como uma espiral, e
no como ciclos que se fecham sobre seu prprio ponto inicial de partida.
No contexto atual onde a incerteza predomina e onde no podemos
buscar respostas prontas, o que entendemos por paisagem deve considerar as
relaes entre os indivduos, os grupos e o ambiente que eles transformam,
como j disse Paul Claval na passagem acima. Contudo, devemos entender
tambm o ambiente em uma relao dialtica capaz de transformar
continuamente nossas intencionalidades.
A paisagem deve ser tomada de modo holstico, o que nos mostra a
espiral retornando aos acadmicos do sculo XIX. Porm, a espiral tambm
retrata que os ciclos nunca se fecham e nem retornam exatamente ao mesmo
ponto. Nos caminhos que vo continuamente delineando os conceitos, h o
ganho de bagagens que nunca so completamente apagadas, e estas
influenciam o modo com o qual nos apropriamos de antigas idias e
concepes de mundo.
Ressaltamos que so diversas as concepes de paisagem nos
diversos momentos da histria apesar das tendncias gerais e inclusive nos
tempos atuais, os pensamentos dos diversos intelectuais que a estudam
podem divergir. Esta divergncia no deve ser tomada como um empecilho ou
um elemento de confuso, mas sim deve ser considerada como parte do
processo de construo que est se realizando no presente.
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Artigo encaminhado para publicao em outubro de 2008. Artigo aceito para publicao em dezembro de 2008. ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. WWW.geouerj.uerj.br/ojs