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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DO ESCONDIDO Santo Agostinho e os limites da estética Ana Rita de Almeida Araújo Francisco Ferreira DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE 2012

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    DO ESCONDIDO

    Santo Agostinho e os limites da esttica

    Ana Rita de Almeida Arajo Francisco Ferreira

    DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

    ESTTICA E FILOSOFIA DA ARTE

    2012

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    DO ESCONDIDO

    Santo Agostinho e os limites da esttica

    Tese orientada pela Professora Doutora Maria Leonor Lamas Xavier

    e pelo Professor Doutor Carlos Joo Correia

    Ana Rita de Almeida Arajo Francisco Ferreira

    DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

    ESTTICA E FILOSOFIA DA ARTE

    2012

  • Esta tese foi realizada com o apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia e da Fundao Calouste Gulbenkian

  • Resumo

    O tema desta dissertao a esttica agostiniana e a abordagem que proponho

    parte do problema da secundarizao deste autor na rea da esttica, com base nas

    crticas ausncia de sistema, ao carcter esparso das consideraes sobre a beleza e ao

    no desenvolvimento de uma filosofia da arte. Essa marginalizao, a meu ver,

    sintomtica no de uma limitao do pensamento esttico de Santo Agostinho, mas de

    uma viso aprisionada no tempo da esttica enquanto disciplina, enquanto ramo

    autnomo da filosofia, institucionalmente reconhecido. Nesta senda, procedo a uma

    anlise dos eixos tericos que no pensamento agostiniano estruturam a sua

    mundividncia esttica e que no apenas se enquadram numa perspectiva alargada deste

    ramo disciplinar como contribuem para clarificar as suas valncias. A viso tradicional

    do universo da anlise conceptual esttica assim problematizada atravs de uma

    revisitao esttica agostiniana, para l das consideraes acerca da arte e da mera

    teofania atravs do belo.

    Pelo conceito de numerus, Santo Agostinho demonstra subscrever uma

    concepo racional da apreciao esttica que todavia no lhe predetermina um carcter

    objectivo. O seu neoplatonismo cristo permite-lhe perspectivar a relao sensvel como

    uma propedutica para o reconhecimento da inteligibilidade divina que ordena o criado

    e, portanto, para o alcance contemplativo do Criador - Beleza to antiga e to nova. O

    aperfeioamento da sensibilidade, enquanto modo de relao e de valorao,

    traduzvel na justeza do ordo amoris, cujo carcter criterioso ancora a liberdade

    individual s leis da verdade eterna, revelando quer um paralelismo entre as esteses e o

    conhecimento intelectual, quer um enlace entre a esfera da aco humana e os juzos das

    percepes sensveis; ou por outras palavras, entre a tica e a esttica.

    No seio do pensamento agostiniano, a transversalidade da esttica e o tipo de

    estamento a que a experincia sensvel deve predispor parecem tornar mais prximo das

    actuais correntes estticas o filsofo africano do que os filsofos iluministas aos quais

    devemos o desenvolvimento da rea disciplinar em questo.

    Palavras-chave

    Belo, Esttica, Filosofia, Numerus, Santo Agostinho.

  • Rsum

    Le thme de la prsente dissertation est lesthtique augustinienne et langle

    dapproche que je propose a pour point de dpart le problme de la mise au second plan de

    cet auteur dans le domaine de lesthtique, en prenant appui sur les critiques de labsence de

    systme et du non dveloppement dune philosophie de lart. Cette marginalisation est,

    selon moi, symptomatique non pas dune limitation de la pense esthtique de Saint

    Augustin, mais dune vision prisonnire de lhistoire de lesthtique en tant que

    discipline, en tant que branche autonome de la philosophie, institutionnellement

    reconnue. En empruntant cette voie, je procde une analyse des axes thoriques qui

    dans la pense augustinienne structurent sa vision esthtique du monde et qui nentrent

    pas seulement dans le cadre dune perspective largie de cette branche disciplinaire,

    mais qui contribuent galement clarifier leurs validits. La vision traditionnelle de

    lunivers de lanalyse conceptuelle esthtique est ainsi problmatise en revisitant

    lesthtique augustinienne, par-del les considrations autour de lart et dune simple

    thophanie travers le beau.

    Par le concept de numerus, Saint Augustin rvle son adhsion une conception

    rationnelle de lapprciation esthtique qui ne lui confre pas, toutefois, un caractre

    objectif. Son noplatonisme chrtien lui permet denvisager la relation sensible comme

    propdeutique pour la reconnaissance de lintelligibilit divine qui ordonne le cr et, par

    consquent, pour aboutir la contemplation du Crateur Beaut si ancienne et si nouvelle.

    Le perfectionnement de la sensibilit, en tant que mode de relation et de valorisation, se

    traduit par la justesse de lordo amoris, dont le caractre pertinent ancre la libert

    individuelle dans les lois de la vrit intrieure, rvlant tantt un paralllisme entre les

    esthtismes et le savoir intellectuel, tantt un lien entre la sphre de laction humaine et les

    jugements des perceptions sensibles ; ou, en dautres mots, entre lthique et lesthtique.

    Au sein de la pense augustinienne, la transversalit de lesthtique et le mode

    existentiel auquel lexprience sensible doit prdisposer semblent rapprocher davantage

    des actuels courants esthtiques le philosophe africain que les philosophes des Lumires

    auxquels nous devons le dveloppement du champ disciplinaire dont il est ici question.

    Mots-cls

    Beau, Esthtique, Philosophie, Numerus, Saint Augustin

  • NDICE GERAL

    Agradecimentos ..................................................................................................................................... 15

    Abreviaturas ........................................................................................................................................... 19

    Introduo ............................................................................................................................................... 23

    Parte I

    A esttica de Santo Agostinho

    1. Os corpos e os sentidos

    1.1 Materia/ moles e forma/ species ....................................................................................... 37

    1.2 Os fundamentos antropolgicos da esttica agostiniana ............................................... 51

    1.3 A alma e os sentidos corpreos ........................................................................................ 62

    1.4 O sentido interior e a memria ......................................................................................... 77

    2. O potencial cognoscitivo da experincia esttica

    2.1 Os fundamentos gnosiolgicos da atitude esttica ........................................................ 97

    2.1.1 O papel da razo na percepo sensvel ................................................................. 97

    2.1.2 A propedutica do olhar e a aprendizagem da razo com vista beata vita ... 113

    2.2 Uma esttica expressa em termos matemticos ........................................................... 126

    2. 2. 1 Numerus, pondus e mensura ................................................................................ 126

    2. 2. 2 Unidade, multiplicidade e ordem ....................................................................... 145

    3. Gradaes de ser, de beleza e dos efeitos da percepo do belo

    3.1 Do pulchrum/ aptum ao par conceptual uti/ frui .......................................................... 157

    3.2 Na raia do erotismo da philocalia philosophia ...................................................... 169

    3.3 Atitude esttica como processo relacional, introspectivo e intencional ................... 180

    4. A relao entre beleza e verdade

    4.1 Aco perceptiva e juzo racional .................................................................................. 193

    4.2 A verdade como critrio do juzo esttico .................................................................... 204

    4.3 Imagem, signo e alegoria ................................................................................................. 215

    Parte II

    O lugar da esttica agostiniana na esttica contempornea

    1. Ter Santo Agostinho uma filosofia da arte?

    1.1 As trs acepes da palavra arte: artes, ars e ars ............................................ 235

    1.2 Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos ................................................ 247

    2. Um sistema esttico agostiniano?

    2.1 Por que razo se deve falar, sem medo, numa esttica agostiniana? ......................... 263

    2.2 Sistematicidade e esttica agostiniana ........................................................................... 273

  • 3. De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esttica?

    3.1 O que foi e o que a esttica? ........................................................................................ 285

    3.2 Repensando a esttica a partir de Santo Agostinho ...................................................... 303

    3.2.1 O potencial cognoscitivo da experincia esttica................................................ 309

    3.2.2 Emoes estticas .................................................................................................... 314

    3.2.3 A questo do valor e a afinidade entre os domnios esttico e tico ................ 320

    Concluso .............................................................................................................................................. 325

    Bibliografia

    I. Obras de Santo Agostinho ..................................................................................................... 339

    II. Textos antigos referidos ....................................................................................................... 343

    III. Bibliografia especfica ........................................................................................................ 345

    IV. Outros estudos sobre Santo Agostinho ............................................................................. 353

    V. Bibliografia geral .................................................................................................................. 361

    ndices

    ndice onomstico ...................................................................................................................... 371

    ndice temtico ........................................................................................................................... 375

    ndice de obras de Santo Agostinho ........................................................................................ 381

  • 15

    AGRADECIMENTOS

    A originalidade pressuposta numa tese de doutoramento no significa que seja

    fruto de um trabalho autnomo e isolado do seu autor. A aparente auto-suficincia por

    detrs do meu projecto de investigao doutoral nutriu-se do acompanhamento que

    ambos os meus orientadores foram dedicando ao que escrevi, das conversas informais

    que mantive com outros Professores, das opinies e incentivos dos colegas e da

    compreenso e suporte que a estrutura familiar sempre me proporcionou. Seria

    indelicado e mesmo injusto no agradecer a todas as pessoas que fizeram parte desta

    fase do meu percurso acadmico e que, a seu modo, contriburam para os contedos da

    minha tese. A responsabilidade pelas incorreces e incompletude cabe-me

    exclusivamente, mas o mrito por aquilo que de novo e de interessante esta tese trouxer

    ultrapassa-me, havendo que reconhecer o papel de cada amigo ou mentor.

    Desde logo, tenho de expressar a mais profunda gratido Professora Doutora

    Maria Leonor Xavier, que meticulosamente seguiu o desenvolvimento de cada

    subcaptulo da dissertao, sugerindo novas abordagens, apontando incongruncias ou

    imprecises, norteando leituras e sempre evidenciando um justo equilbrio entre as

    palavras de estmulo e as de crtica. A preocupao que teve em integrar a minha

    contribuio acadmica para l do mbito da tese foi de grande importncia e permitiu-

    -me crescer como investigadora. sobretudo o seu exemplo de seriedade, competncia

    e dedicao profissional que reterei como meta a atingir.

    Ao Professor Doutor Carlos Joo Correia agradeo a preocupao e o interesse

    com que sempre segue o percurso dos seus orientandos. A constante disponibilidade e

    generosidade demonstradas ao longo destes anos de trabalho ultrapassaram o tradicional

    acompanhamento de um orientador, permitindo-me beneficiar de uma rara combinao

    entre a exigncia em termos cientficos e a rectitude em termos humanos. O bom-

    -humor, a pacincia e a confiana com que foi respondendo s minhas solicitaes,

    tornaram bastante mais fcil o meu percurso.

    No posso deixar de referir o quanto beneficiei da erudio do Professor Doutor

    Costa Macedo, da viso alargada da esttica que as aulas da Professora Doutora Adriana

    Verssimo Serro me proporcionaram e da elegncia filosfica com que a Professora

    Doutora Maria Lusa Ribeiro Ferreira sempre estrutura as suas apresentaes. Ao

  • 16

    Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, Filipa Seabra, Carla Simes e D.

    Filomena da Piedade agradeo o caloroso acolhimento com que brindam todos os

    alunos e investigadores de Filosofia, atendendo s nossas necessidades e facilitando ao

    mximo o nosso trabalho, pela agilizao de processos paralelos que sempre influem na

    pesquisa, pela logstica e pela disponibilizao de materiais e espaos que criam o

    ambiente propcio investigao.

    O aspecto mais positivo destes anos que dediquei ao projecto de doutoramento,

    foi a amizade que estabeleci com vrios dos meus colegas investigadores. Pude sempre

    partilhar com eles as minhas dvidas, beneficiei sempre do seu interesse pelo meu

    trabalho, pude contar com as suas palavras de incentivo, com a sugesto de livros e

    artigos, com a disponibilidade para resolverem os meus problemas burocrticos na

    secretaria da FLUL e pude contar com a companhia deles em momentos de lazer, que s

    vieram beneficiar a escrita da tese. Assim, no posso deixar de agradecer Teresa

    Quirino, ao Tiago Mesquita Carvalho, Ana Nolasco, Ana Cravo, Filipa Afonso,

    Ins Bolinhas, ao Francisco Ribeiro Soares e sua esposa Isabel.

    Para alm destes amigos feitos no mbito do doutoramento, outros houve, de

    longa data, que tambm contriburam directamente para que pudesse levar a bom porto

    o meu projecto de investigao. Qualquer agradecimento ser sempre insuficiente face

    ao apoio e boa vontade da Ilda e da Ana Salom, que tantas vezes me acolheram nas

    deslocaes a Lisboa, ou s atenes da Cristina de Melo, sempre a par das novidades

    editoriais acerca de Santo Agostinho e cujo entusiasmo e confiana face ao meu

    trabalho frequentemente suplantavam o meu prprio empenho. Sandra Loureno, o

    meu bem-haja pela constncia da sua amizade e pelos afagos ao ego que tantas vezes

    me proporcionou.

    O facto de deixar a famlia para o fim em nada reflecte um decrscimo na ordem

    de importncia que atribuo ao seu papel no meu percurso. Aos meus pais e irmo

    agradeo a fora, o carinho e a estabilidade necessrios para suplantar os momentos de

    dificuldade que surgiram durante a redaco da tese. minha cadela Fidlia, agradeo a

    companhia que fez durante as muitas horas que passou debaixo da minha secretria e os

    passeios que me obrigou a dar, juntamente com o Castanho e com o Rufias, propiciando

    um saudvel distanciamento do computador. Por ltimo, agradeo ao meu companheiro,

    Paulo, pela compreenso e pacincia que sempre demonstrou todas as vezes que roubei

    o tempo que lhe deveria ser dedicado, a favor desta dissertao.

  • 19

    ABREVIATURAS

    Conf. Confessionum

    Contra Acad. Contra Academicos

    Contra ep. fund. Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti

    Contra Faust. Contra Faustum

    Contra Jul. Contra Julianum

    Contra Jul. op. imp. Contra Julianum opus imperfectum

    De an. et orig. De anima et ejus origine

    De bono con. De bono conjugali

    De civ. Dei De civitate Dei

    De corr. grat. De correptione et gratia

    De div. quaest. 83 De diversis quaestionibus octoginta tribus

    De doct. christ. De doctrina christiana

    De fide et op. De fide et operibus

    De grat. et lib. arb. De gratia et libero arbitrio

    De Gen. ad litt. De Genesi ad litteram

    De Gen. ad litt. imp. De Genesi ad litteram imperfectus liber

    De Gen. cont. Man. De Genesi contra Manichaeos

    De Imm. An. De immortalitate animae

    De lib. arb. De libero arbitrio

    De Mag. De Magistro

    De mus. De musica

    De nat. boni De natura boni

    De quant. an. De quantitate animae

    De ord. De ordine

    De Trin. De Trinitate

  • 20

    De vera relig. De vera religione

    En. Psa. Enarrationes in Psalmos

    Ep. Epistulae

    In Iohan. ep. Parthos In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus

    In Iohan. Evang. tract. In Iohannis evangelium tractatus

    Quaest. Hept. Quaestionum in Heptateuchum

    Retr. Retractationum

    Sol. Soliloquiorum

    Plotino

    En. Enadas

    Outra

    REAug. Revue d' Etudes Augustiniennes et Patristiques

  • INTRODUO

  • 25

    A abordagem esttica agostiniana implica, ao nvel dos conceitos, um triplo

    transporte: em primeiro lugar entre lnguas, j que os textos a analisar esto em Latim;

    em segundo lugar, entre tempos, visto terem sido escritos h dezassete sculos e, por

    fim, entre ramos filosficos, uma vez que, no tempo de Santo Agostinho, a esttica no

    constitua ainda um ramo autnomo da filosofia e aquilo que podemos considerar como

    sendo o seu pensamento esttico encontra-se disseminado entre as outras problemticas

    filosficas que desenvolve. Este triplo transporte torna necessria uma perspectivao

    filolgica prvia sobre a relao da linguagem com o tempo e com os contextos, de

    forma a justificar a pertinncia da leitura contempornea sobre a esttica agostiniana

    que propomos.

    Para alm de ser uma disciplina, a esttica tambm um conceito, e um conceito

    , em primeiro lugar, um nome que usamos para designar os fenmenos e os objectos

    que integram as nossas vivncias. Um conceito pois uma delimitao, uma fronteira

    que estabelecemos face a um determinado ncleo de representaes mentais.

    importante salientar que essa delimitao sinuosa, no estvel nem definitiva.

    Inevitavelmente, as fronteiras entre conceitos interpenetram-se, partilhando espaos

    proxmicos alargados por vezes, no sabemos mesmo onde situar essas fronteiras,

    reconhecendo apenas a dinmica que estabelecem com outros conceitos circunjacentes.

    Este o caso da esttica. S no sculo XVIII, com Baumgarten se deu nome ao ncleo

    constitudo pelas consideraes acerca do sentimento do belo e ao qual foi feito um

    casamento imediato com outro ncleo o da arte. Esse casamento, ainda que tenha

    ampliado de forma bastante legtima o territrio da esttica, tem constitudo, a nosso

    ver, uma priso para a disciplina, tamanha tem sido a confuso entre a abrangncia dos

    limites da esttica e os da filosofia da arte.

    Na verdade, a histria da esttica, tem sido dominada pela questo das fronteiras

    que delimitam o seu campo de estudo. Sendo uma disciplina recente e em maturao,

    muitos dos universos que no passado no eram abarcados pelo domnio da esttica

    vem-se hoje no seu fulcro. No futuro, essa abrangncia ser ainda maior. Associar o

  • 26

    reformular das fronteiras da esttica ao constante reformular das fronteiras da arte uma

    viso simplista e redutora do fenmeno. A esttica tem vindo a ganhar terrenos que

    fazem parte da tica, da ontologia, da epistemologia com a diferena, relativamente a

    estes ramos filosficos, de no ter ainda o seu objecto claramente definido. Mas no

    por se desconhecer a linha de demarcao do campo e do objecto de estudo da esttica

    que se torna impossvel reflectir sobre os fenmenos estticos e sobre as possibilidades

    e limites de um discurso que os descreva (e que tambm a constitui como disciplina).

    Para abordar a esttica agostiniana no nos podemos reportar a um quadro

    conceptual esttico do sculo IV, porque tal quadro inexistente h portanto que

    delimitar, dentro das temticas de base do pensamento agostiniano, os ncleos de

    abordagem que podero encontrar lugar num quadro conceptual esttico

    contemporneo. Nas diferentes obras de Santo Agostinho, possvel encontrar

    passagens esparsas sobre a relao entre a philosophia e a philocalia, passagens sobre as

    faculdades sensitivas, sobre os critrios daquilo que, por outras palavras, o juzo

    esttico, sobre a sua intencionalidade, sobre o valor cognoscitivo do belo e mesmo sobre

    as implicaes ticas da fruio. Nos escritos agostinianos tambm possvel encontrar

    pistas quanto subjectividade da experincia esttica e sobre o seu carcter relacional.

    Claro que a transposio dos conceitos agostinianos para um quadro conceptual esttico

    contemporneo no pode ser feita arbitrariamente. Tal questo impe voltar aos

    transportes referidos no incio deste texto impe, portanto, a questo da traduo,

    enquanto exerccio de deslocao do pensamento.

    Para a filosofia, a questo da traduo no poder ser um assunto perifrico e h

    que assumir a necessidade de problematizar as tradies de recepo de textos antigos.

    O caso agostiniano flagrante. Actualmente, face maioria das tradues e dos estudos

    que dispomos sobre os textos de Santo Agostinho, tendemos a consider-los

    conservadores, quando, na verdade, no seu contexto de origem, tais escritos eram quase

    subversivos. A sobriedade da linguagem que hoje parece revestir as suas obras

    corresponde pouco ao tom crepuscular e violento do latim agostiniano um latim que j

    no obedece aos cnones gramaticais dos clssicos pelos quais Santo Agostinho foi

    influenciado (Ccero, Virglio) e que tornava os seus escritos semanticamente

    inovadores e estilisticamente muito complexos. O idiolecto agostiniano irnico,

    angustiado, por vezes sensual e por vezes ofensivo. Os muitos sculos de recepo dos

    seus textos foram polindo tais asperezas e o seu carcter audacioso perdeu-se. O que

    est em causa no apenas o estilo literrio, pois do mesmo modo que no existem

  • 27

    contedos transmissveis sem expresso que os veicule, tambm no existe expresso

    que no veicule contedos. Havendo perda de expresso, h perda de contedos.

    Os conceitos abordados nos textos antigos chegam aos nossos dias com perdas

    nem sempre bvias relativamente ao contexto de origem. Os conceitos evoluem por

    heterogenia e o seu percurso histrico vai implicando diferentes circunscries e

    interseces de valor, significao e inteno. O ideal seria que os conceitos dos textos

    antigos chegassem at ns acompanhados pela respectiva estrutura diacrnica

    acompanhados por todas as especificidades do percurso histrico do seu emprego. As

    alteraes que os conceitos vo sofrendo coincidem, muitas vezes, com as mudanas de

    episteme. As associaes conceptuais numa cultura, ou numa lngua, rumam em

    diferentes direces noutra. A grande questo que a recepo dos textos antigos

    sempre indirecta, requerendo a mediao de um lance hermenutico. O que recebemos

    tem que fazer sentido no nosso contexto de recepo, sem perder o sentido intencionado

    pelo contexto de origem.

    O prprio Santo Agostinho deixou algumas coordenadas em relao a estas

    questes pois, pela exegese, tambm ele se confrontou com a necessidade de interpretar

    textos que no lhe eram coevos e que no podiam, ou no deviam, ser interpretados

    literalmente. Em De Doctrina Christiana, tal como j havia enunciado em De Magistro,

    afirma que a linguagem um sistema de sinais. Muitos dos sinais presentes nos textos

    tm sentidos ambguos ou desconhecidos (ignotis aut ambiguis signis),1 porque so

    metafricos (signa translata),2 mas todos so significantes. Ao abordar a interpretao

    dos sinais metafricos, Santo Agostinho no s admite a possibilidade de significados

    mltiplos, como sugere que pode ser impossvel determinar a inteno original que os

    determinou e admite a possibilidade de futuras exegeses poderem extrair significados

    legtimos para alm das intenes originais. No De doctrina christiana, Santo

    Agostinho reconhece ainda o carcter convencional das palavras e antecipa as

    comunidades sociolingusticas, ao referir que a diferenciao das diversas lnguas

    humanas resulta de diferentes convenes (instituta hominum).3

    1 De doct. christ. II, 10, 15.

    2 Ibid.

    3 De doct. christ. II, 24, 37 - II, 25, 40.

  • 28

    A abordagem esttica agostiniana, que se prope nesta dissertao parte de um

    problema: a secundarizao deste autor na rea da esttica, com base em trs crticas

    principais: a) a ausncia de sistema; b) o no confinamento das suas consideraes

    estticas e c) a ausncia de uma filosofia da arte. Essa marginalizao, a nosso ver,

    sintomtica no de uma limitao do pensamento esttico de Santo Agostinho, mas de

    uma viso aprisionada no tempo da esttica enquanto disciplina, enquanto ramo

    autnomo da filosofia, institucionalmente reconhecido. Assim, esta proposta tem um

    carcter bfido: por um lado, intenta a reabilitao de um pensamento esttico medieval

    e, por outro lado, problematiza o universo contemporneo da anlise conceptual

    esttica.

    A reabilitao da esttica agostiniana no passa pela tentativa de lhe reconstituir

    o tal sistema esttico, pelo menos no na acepo tradicional dos termos, mas passa sim

    por reequacionar as valncias do campo de estudos delimitado pela esttica e pela

    demonstrao, atravs de uma leitura contempornea do pensamento esttico

    agostiniano, de que a marginalidade imputada no corresponde adequao das

    especificidades de tal pensamento disciplina em questo.

    O estudo da esttica medieval sobretudo dominado pela figura de S. Toms de

    Aquino, muito graas ao contributo de Umberto Eco que, na dcada de 50 do sculo

    passado, lhe consagrou a sua tese de doutoramento.4 Nessa obra seminal, Eco afirmava

    ser seu intento explorar cada conceito luz das respectivas circunstncias histricas,

    situando os textos no seu tempo original, pois s assim poderia aceder sua verdade.

    A nossa preocupao em reconhecer um ncleo terico, perfeitamente delimitvel

    apesar do seu carcter esparso, no seio da obra agostiniana em tudo paralela ao

    propsito de Eco, relativamente a S. Toms, porm, em termos metodolgicos, no

    poderamos ser mais discordantes. Obviamente no descartamos o enquadramento

    histrico dos conceitos, ou daquilo que encerrado pelos conceitos, mesmo antes destes

    serem formados coisa alis frequente quando se lida com a esttica , mas assumimos

    especificamente o Presente como contexto de ancoragem desse trabalho de

    interpretao.

    4 Umberto Eco, Il Problema Esttico in Tommaso dAquino, 2 ed., Milano, Bompiani, 1998.

  • 29

    Hannah Arendt entende por interpretar o acto de tornar explcito aquilo que

    Santo Agostinho apenas diz implicitamente.5 precisamente assim que nos lanamos

    sem medo numa estruturao de ncleos de anlise que congregam vrias temticas

    desenvolvidas por Santo Agostinho a propsito de questes que mesmo estando no

    contexto original directamente associadas a outros modos de abordagem filosfica ,

    definem pela forma como se articulam um mbito de indubitvel pertinncia esttica.

    a acepo contempornea e alargada da esttica que temos em mente nessa anlise e

    estruturao do pensamento agostiniano. O respeito pelo contexto de origem, ao qual

    no deixmos de atender, salvaguarda-nos das sobre-interpretaes, mas poder tambm

    frustrar as expectativas de uma leitura radicalmente inovadora acerca da esttica

    agostiniana. Para um investigador familiarizado com o pensamento do filsofo africano

    no haver primeira vista uma originalidade to evidente nos contedos, ainda que a

    nossa anlise siga trilhos menos convencionais e d relevncia inusual a tpicos que

    qualquer outro enquadramento filosfico relegaria para segundo plano ou a um total

    esquecimento. sobretudo no modo como feita a articulao desses tpicos que reside

    a originalidade do nosso contributo.

    Ao propormos os diversos ncleos de abordagem que constituem a primeira

    parte desta tese, tnhamos j presentes as bases nas quais assenta a nossa perspectiva

    esttica e que apontam para um alargamento do mbito tradicionalmente associado a

    este ramo disciplinar filosfico. A intuio de que o pensamento esttico agostiniano

    mereceria um maior reconhecimento e uma anlise mais alargada do que aquela que lhe

    tem sido consagrada pelos poucos investigadores que se dedicam a este mbito do seu

    pensamento conduziu, por um lado, percepo das possibilidades dessa ampliao das

    valncias do ramo disciplinar esttico; por outro lado, a prpria anteviso de uma nova

    abrangncia relativamente esttica fautorizou o modo como reunimos e interpretmos

    as consideraes agostinianas acerca dos assuntos que consideramos poderem filiar-se

    no mbito esttico.

    A interdependncia da perspectiva acerca do alargamento da esttica enquanto

    rea disciplinar e da perspectiva acerca da esttica de Santo Agostinho fez com que

    hesitssemos entre iniciar esta tese com a problematizao relativa ao universo

    contemporneo da anlise conceptual esttica e entre inici-la directamente com a

    abordagem daquilo que entendemos ser o pensamento esttico agostiniano. A escolha

    5 Hannah Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, Alberto Pereira Dinis (trad.), Lisboa, Instituto

    Piaget, 1997, p. 9.

  • 30

    recaiu sobre esta segunda opo, no apenas porque consideramos ser a que reside o

    verdadeiro fulcro deste projecto doutoral, mas tambm por entendermos que a trama de

    questes e temticas implicadas no universo da esttica de Santo Agostinho poderia

    propiciar novas pistas para o sobrepujar da acepo tradicionalmente atribuda

    esttica. De uma anlise mais convencional em torno da beleza e da sensibilidade vimos

    derivar uma constelao de outros assuntos directamente implicados em tal ncleo de

    abordagem, cuja relevncia destoava da mera subsuno teoria do belo, indiciando

    antes um estatuto paralelo ao papel da beleza, mas ainda pertinente no mbito esttico.

    A complexidade e riqueza da esttica agostiniana aponta direces e contribui para

    justificar a actual tendncia de alargamento da esfera contempornea da esttica.

    Assim, a primeira parte deste estudo concerne integralmente estruturao das

    principais linhas do pensamento esttico de Santo Agostinho. No primeiro captulo so

    abordadas as temticas da criao e da relao sensvel face ao criado. A teoria do belo

    marca aqui presena incontornvel, no apenas no que toca sua formulao como

    transcendental, mas igualmente no que respeita s implicaes de um formalismo de

    origem estica que, aparentemente, contrasta com a matriz neoplatnica subjacente

    reflexo agostiniana. Partindo da anlise de conceitos centrais como forma e species, a

    teoria do belo acaba por se ver enleada a temticas como o nihil ou como o mal, das

    quais ressalta a distncia entre Criador e criatura. A esttica agostiniana parece ir no

    sentido de contrariar tal distncia, revelando pontos de contacto entre finitude e infinitude.

    A relao corpo/ alma e a forma como se processa a percepo sensvel so

    desenvolvidas neste primeiro captulo j que se constituem como alicerces de qualquer

    experincia esttica. O papel do sentido interior e da memria estabelecem a

    transio entre tal dimenso e a esfera racional que, contrariamente quilo que

    comummente se assume, no constitui um plo oposto da sensibilidade, mas uma

    condio sine qua non da experincia esttica. Tal complementaridade pode ser

    compreendida na esttica agostiniana atravs de dicotomias como a de homem

    exterior/ homem interior ou ratio superior/ ratio inferior, bem como atravs da

    articulao entre os diferentes tipos de viso (corporal, espiritual e intelectual) ou

    entre os diversos tipos de luz (luz fsica, luz da alma e luz da inteligncia), que se

    constituem como condio da visualidade e que introduzem a teoria agostiniana da

    iluminao divina. O segundo captulo desenvolve, portanto, tais temticas

    explorando tambm a relevncia do conceito de numerus para a esttica de Santo

    Agostinho e as trades que permitem relacionar as caractersticas das criaturas com

  • 31

    as perfeies do Criador. As relaes entre as pessoas divinas na essncia una de

    Deus abrem caminho s dinmicas que a multiplicidade pode configurar,

    determinando qualidades estticas exprimidas em conceitos como modulatio,

    proportio, coaptatio, congruentia, convenientia, consonantia, rythmus, integritas,

    aequalitas e ordo.

    O terceiro captulo clarifica os dois pontos de vista agostinianos a partir dos

    quais as categorias estticas podem ser consideradas: a) um ponto de vista autnomo,

    que concerne convenincia do todo, graas adaptao das partes (e que do domnio

    do pulchrum) e b) um ponto de vista relativo o da convenincia das partes em relao

    ao todo (do domnio do aptum). O pulchrum e o aptum no so redundantes, eles

    marcam uma gradao na suposio das categorias estticas que se reflecte na

    qualificao do real e que torna indissocivel o mbito esttico do mbito tico. Assim,

    vrias hierarquias se delineiam na filosofia agostiniana de ser, de beleza, de elevao

    da alma, de actividades humanas hierarquias estas cuja descrio converge para a

    ideia da indissociabilidade entre o belo e o bem.

    A legitimidade dos liames afectivos que o homem estabelece com aquilo que o

    rodeia problematizada luz do ordo amoris, tambm ele uma estrutura de natureza

    gradativa, qual no alheia a questo uti/ frui. A relao entre a beleza e o amor

    equacionada por Santo Agostinho segundo o prisma do conhecimento, levando-o a

    constatar a equivalncia entre philosophia e philocalia. O questionamento da beleza

    conduz percepo da inteligibilidade e, em ltima instncia, ao reconhecimento de

    Deus, pela via da interioridade, na qual a f no Mediador se assume como caracterstica

    central e distintiva do neoplatonismo agostiniano.

    No quarto captulo, a inseparabilidade da esttica em relao tica na

    perspectiva do Bispo de Hipona reiterada atravs da anlise do processo de judicao.

    O juzo esttico com efeito uma avaliao acerca da adequao de uma resposta

    natural da sensibilidade em relao ao contexto e sua determinao final. A utilizao

    do conceito desinteresse no sentido kantiano parece no encontrar adequao na

    perspectiva agostiniana, j que o juzo implica uma reflexo acerca da lex numerorum e

    o prazer inscreve-se nas especificidades do ordo amoris.

    O acto judicativo esttico no apenas indissocivel do critrio do bem como do

    da verdade, pelo que a moldura propiciada por Cristo, quer como Mestre interior, quer

    como Verbo incarnado permite reconhecer na experincia esttica uma dimenso

    reveladora e at mesmo salvfica. A prpria beatitudo pode ser considerada de um

  • 32

    ponto de vista esttico e o seu alcance est dependente de uma estratgia de

    conformao da imagem de Deus existente no homem ao seu modelo. A abordagem

    que Santo Agostinho consagra ao tema da imagem e das implicaes da igualdade, da

    semelhana e da especularidade traduz um modo de pensar a relao de equidade entre

    Deus Pai e Deus Filho e a relao de proximidade entre Deus e o homem. Tal

    abordagem no deixa de ser formulada em termos estticos, j que a uma matriz de

    beleza que a imagem se refere e j que a converso pressupe simultaneamente a

    reconverso do olhar e a reformulao da beleza da alma luz de tal matriz, atravs da

    mediao de Cristo, que o modelo ao qual o homem tem de atender pela

    exemplaridade da beleza divina que ele incarna. O prprio modo especular a que a

    viso humana est limitada predispe a uma leitura caracterstica da semiologia acerca

    da relao entre o universo criado e a esfera divina.

    Com a segunda parte da dissertao pretende-se demonstrar e consolidar a ideia

    de que h, efectivamente, uma esttica agostiniana contrariamente ao que afirmam

    muitos dos filsofos historiadores desta rea, como Raymond Bayer6 e desmistificar o

    receio que os prprios investigadores que se debruam sobre o pensamento esttico de

    Santo Agostinho tm demonstrado pela relutncia em usar a palavra esttica

    relativamente ao Bispo de Hipona, preferindo a segurana da expresso teoria do

    belo. Mesmo sem sistema esttico e sem filosofia da arte, a esttica agostiniana no se

    resume a uma teoria do belo.

    No primeiro captulo desta segunda parte enfrenta-se a questo da ausncia de

    uma filosofia da arte no pensamento agostiniano, clarificando as diversas acepes que

    o filsofo africano consagra palavra arte e analisando a considerao que dedica s

    actividades que contemporaneamente se considera pertencerem ao universo da criao

    artstica. Anumos quanto inexistncia de uma filosofia da arte mas discordamos

    daqueles que vem em tal ausncia um impedimento a que se possa legitimamente falar

    de uma esttica agostiniana. A ateno que o filsofo d s especificidades da

    experincia temporal humana e a permeabilidade que reconhece existir entre o homem

    interior e o homem exterior revelam uma rara valorizao da dimenso sensvel, a ponto

    de Santo Agostinho descrever at mesmo para o homem ressurrecto um possvel uso

    dos sentidos corpreos, j desnecessrios quanto sua funo utilitria; um uso

    destinado ao deleite, como prmio por uma vida virtuosa.

    6 Cf. Raymond Bayer, Histria da Esttica, Lisboa, Estampa, 1995, p. 87.

  • 33

    O segundo captulo visa responder crtica da ausncia de sistema no

    pensamento agostiniano, uma vez mais anuindo quanto veracidade da constatao de

    assistematicidade, mas recusando tal argumento como um factor de menoscabo e de

    recusa de uma reflexo estruturada enquadrvel no mbito da esttica. Para tal,

    problematiza-se o prprio conceito de sistema enquanto forma filosfica superior e

    prope-se uma leitura da expresso terica agostiniana luz do conceito de

    dispositivo, na acepo que Deleuze lhe consagra atravs da descrio que faz deste

    filosofema em Foucault.

    O ltimo captulo desta tese consiste numa exposio acerca do que a esttica,

    de certo modo justificando os ncleos de abordagem propostos como eixos do

    pensamento esttico agostiniano. Parte-se de uma perspectiva histrica sumria que

    revisita alguns dos autores mais representativos do momento fundacional da disciplina

    filosfica em questo. Tarefa ingrata pelas omisses a que no nos podemos furtar.

    Todavia, assumimos com tal escolha de autores Baumgarten, Kant, Schiller, Schelling

    e Hegel o propsito de descrever as linhas tericas de base que alicerariam os

    posteriores desenvolvimentos na rea da esttica e que viriam a culminar na actual

    tendncia de alargamento do mbito disciplinar. Tendncia esta que contrasta com o

    momento fundacional da esttica durante o perodo iluminista alemo, no qual se

    procurou lindar e circunscrever o mbito da disciplina, para assim o legitimar

    filosoficamente. A transversalidade da esttica agostiniana revela uma salutar

    abrangncia, alis comum a tantos outros autores medievos, que poder servir como

    exemplo ou como reforo terico para a esttica contempornea face s dificuldades

    com que esta se tem deparado nesse seu movimento de expanso. Alm da perspectiva

    histrica, o perfil que se pretende traar da esttica exige tambm a explorao de

    alguns conceitos fulcrais como o de experincia esttica, emoes estticas e valor

    esttico. A tese finda precisamente com tal anlise que se por um lado revela uma

    concepo da esttica capaz de abranger as linhas do pensamento agostiniano em funo

    dela previamente traadas, por outro lado tambm foi dessas linhas que se nutriu tal

    concepo e nelas encontrou contributo para melhor se perspectivar.

  • Nota: Salvo indicao contrria, as tradues so da nossa responsabilidade.

  • Parte I

  • 37

    1. Os corpos e os sentidos

    1.1 Materia / moles e forma / species

    A esttica agostiniana , no raras vezes, tida como menos interessante do que a

    esttica neoplatnica que tanto a influenciou. Com efeito, as Enadas de Plotino

    parecem evidenciar uma abordagem relativa ao belo e arte mais autnoma ou

    especfica do que aquela que desenvolvida em qualquer uma das obras de Santo

    Agostinho que chegaram at ns a excepo estaria certamente em De pulchro et

    apto. Alm de Plotino dedicar dois tratados especificamente ao tema do belo,7 h nas

    Enadas uma perspectivao inovadora da arte que Santo Agostinho de certo modo

    adoptar expressa em termos bastante positivos e que contrastam com o aparente

    menosprezo com que o Bispo de Hipona se refere a todas as formas de expresso

    artstica, que no a msica. A perspectivao inovadora da arte que Plotino desenvolve

    e que Santo Agostinho segue, sem no entanto lhe tecer encmios, marca uma inflexo

    quanto esttica platnica, que avessa quilo que hoje podemos designar de beleza

    artstica. Para Plotino, a arte (), porque provm da ideia do artista, mais do que da

    sua habilidade manual, faculta o conhecimento da beleza superior e , nesse sentido,

    valorizada como afirmao do divino ora, isto contrrio ao pensamento de Plato,

    para quem a arte estava trs graus afastada da verdade e para quem a obra de um

    sapateiro tinha maior valor do que a de um escultor. Apesar de toda a sensibilidade

    artstica presente nos termos que Plotino usa para distinguir a beleza do bloco de pedra

    7 O sexto tratado da Primeira Enada, tido como o primeiro na cronologia plotiniana conhecido pelo

    ttulo Acerca do Belo e o oitavo tratado da Quinta Enada, o trigsimo primeiro em termos

    cronolgicos e intitulado por Porfrio de Acerca da Beleza Inteligvel. Cf. Plotin, Ennades I-VI/2,

    mile Brhier (ed./ trad.), Paris, Belles-Lettres, 1924-1938.

  • 38

    esculpido, da do bloco de pedra tosco8 e para se referir ao processo de purificao da

    alma, em analogia com o gesto escultrico,9 a verdade que, para alm dessa estratgia

    retrica, no h propriamente diferena entre a considerao da arte plotiniana e

    agostiniana. Para ambos os filsofos, a arte est subjugada a um quadro finalstico que

    tem no seu fulcro a purificao da alma e a contemplao da esfera divina para ambos,

    a arte tem um valor heurstico e a beleza que se lhe associa no mais do que um plido

    trao da beleza superior da esfera divina.

    Sendo o prprio Santo Agostinho um filsofo de tradio neoplatnica, o

    pensamento esttico que desenvolve mantm o pressuposto de que toda a beleza,

    inclusivamente a corprea, advm da comunho com uma forma ideal, mas Santo

    Agostinho vai mais longe do que Plotino ao estabelecer que a natureza inteligvel do

    belo no obsta a que este possa ser concebido de um modo formalista, material. Assim,

    quando em Acerca do Belo, Plotino comea por negar a ideia de que a beleza consiste

    na simetria, apresentando cinco argumentos para refutar tal tese estica,10

    o Bispo de

    Hipona, por seu turno, habituado a conciliar teorias antagnicas, coloca lado a lado a

    perspectiva plotiniana que enfatiza a existncia de belezas no compostas no mundo

    sensvel e a ideia de que a fonte ltima do belo una, simples com a tese rival estica,

    segundo a qual a beleza requer uma multiplicidade de partes em harmoniosa relao. Ao

    faz-lo, Santo Agostinho parece ignorar voluntariamente a mtua inconsistncia destas

    perspectivas. Na verdade, o Bispo de Hipona apenas reduz o alcance da objeco

    plotiniana, j que mantm a pertinncia do critrio da simetria, interpretando-o no

    8 Cf. En. V, 8, 1.

    9 Cf. En. I, 6, 9.

    10 A tradicional definio de beleza, que se supe de origem estica, sintetizava-se nos seguintes termos:

    . Os argumentos plotinianos para a recusa da ideia de que a beleza resulta da

    simetria desenvolvem-se do seguinte modo: a) tal ideia pressuporia que s um ser composto seria belo e,

    por exemplo, um ser simples como uma cor, um som ou a luz do sol, no poderiam ser belos; b)

    equivaleria tambm a afirmar que cada parte em si no possui beleza, mas apenas sua combinao tal

    atributo poderia ser imputado; ora, segundo Plotino, para um conjunto ser belo, as partes tambm tm de

    o ser. Um conjunto belo no pode constituir-se por partes feias; c) h tambm exemplos como o de um

    rosto proporcionado, que no poder tirar a sua beleza das propores (simetria), uma vez que estas se

    mantm mesmo quando, por vezes, esse rosto se mostra feio; d) tambm porque h beleza, por exemplo,

    nos conhecimentos, nas cincias, nas leis, nos discursos e nas nobres condutas de vida, para os quais

    impossvel determinar um padro de medida passvel de aferir a relao entre as partes da alma e todos

    estes exemplos so j uma beleza da alma; e) acrescenta-se o facto de poder haver, por exemplo, simetria

    em teorias ms e f) porque a beleza da inteligncia, que livre em si mesma, no poderia colocar-se em

    termos de simetria/ propores. Cf. En. I, 6, 1.

  • 39

    como um critrio falso, mas como um critrio insuficiente. Quando Santo Agostinho

    articula elementos da esttica plotiniana com elementos esticos, a ambivalncia em que

    cai a perspectivao da beleza corprea pode no ser necessariamente entendida como

    paradoxal, no sentido de mutuamente invalidante, se tomarmos a beleza corprea como

    um elemento teofnico proclamador da beleza divina, e prescritor de uma via para se lhe

    aceder, que tanto implica a desvalorizao desta beleza que imagem, como insiste no

    reconhecimento do seu encanto, enquanto promessa da maior beleza constituda pela

    esfera divina. Estas duas atitudes divergentes em relao ao mundo sensvel, so

    conciliveis porque so paralelas duplicidade do movimento a partir do qual a

    multiplicidade advm da unidade e a ela tende novamente. A unidade afim do desejo

    criador de beleza e a partir dessa unidade que nasce uma harmonia numerosa

    (coaptatio), divergindo e desdobrando-se numa multiplicidade de partes e convergindo

    novamente ao tender para o todo. A duplicidade deste movimento marca qualquer

    beleza criada e marcar o modo de relao que o homem deve manter face a este gnero

    de beleza. Deste modo, embora Santo Agostinho insista, na esteira de Plotino, no

    carcter imaterial da beleza sempre dependente do princpio de racionalidade que est

    na sua origem e no da massa que constitui os corpos tidos por belos, a verdade que,

    por exemplo em De civitate Dei, o Bispo de Hipona define a beleza fsica como sendo

    a harmonia das partes com uma certa suavidade da cor11

    , evidenciando que no

    descarta a tradicional esttica das propores, reformulando-a no mais em termos de

    simetria, como os esticos, mas em termos de harmonia de partes (congruentia partium

    ou congruentia numerosa)12

    e da mtua adaptao (coaptatio) que entre elas se

    observa.13

    No h, portanto, o abandono completo da concepo formal da beleza, como

    pressuporia naturalmente o legado neoplatnico, mas, de modo a reiterar a pertinncia

    de tal legado, a esttica agostiniana assenta em pressupostos que acentuam a

    subordinao formal das diversas belezas existentes ao princpio que as informa.

    Curiosamente, esses pressupostos em que assenta a esttica agostiniana e que lhe

    permitem enfatizar o carcter hbrido e derivado as belezas sensveis por oposio sua

    fonte simples e una, para a qual remetem pelo acordo entre o nmero e a sua figura

    11

    Omnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum quandam coloris suavitate De civ. Dei

    XXII, 19 (CCL 48, p. 838).

    12 Cf. Ibid..

    13 Cf. De civ. Dei XXII, 24.

  • 40

    visvel,14

    ao mesmo tempo que permitem reiterar os assertos em que assenta a

    concepo plotiniana do belo, constituem-se como elementos de dissenso entre o

    pensamento do filsofo africano e o do filsofo egpcio. Esses pressupostos so a

    criao ex nihilo e a recusa da teoria plotiniana da emanao. O primeiro, opondo-se s

    teorias da preexistncia da matria e ideia de um criador demirgico que lhe d forma,

    far com que a categoria ontolgica da forma, nos seus variados graus de igualdade e

    no apenas como padro inteligvel, assuma um papel crucial na concepo da beleza do

    universo. O segundo amplia a ideia de participao das belezas inferiores na beleza

    superior e contribuir decisivamente para a percepo e para o exerccio da beleza

    orientada para Deus. Se a criao tivesse emanado de Deus, tal implicaria que, nas

    criaturas, essa prpria substncia divina, por natureza infinita e imutvel em si mesma,

    seria sujeita a mutaes e mesmo a degradao o que se constitui como uma ideia

    sacrlega aos olhos de Santo Agostinho. A criatura no deriva da prpria substncia do

    criador, mas do nada.

    Santo Agostinho descreve Deus como forma infabricata atque omnium

    formosissima 15

    que cria a matria informe ex nihilo, com o potencial para receber

    forma16

    pela converso a si. A beleza da criao intrnseca sua existncia e sua

    equivalente desde o momento da criao.

    A explorao do conceito agostiniano de forma fulcral para qualquer

    abordagem esttica deste autor, pois traduz o carcter intermedirio da atitude esttica

    um carcter que no deixa de ser religioso17

    ao preservar num nico lexema dois

    significados semanticamente distintos. A este nvel, o latim agostiniano quase parece

    permitir uma cintilao da harmoniosa indiscernibilidade dos opostos, que o carcter

    delimitador da linguagem verbal inevitavelmente gorou. O conceito forma no s se

    refere aos arqutipos transcendentes da realidade, como s configuraes dos corpos

    14

    Cf. De civ. Dei XX, 30, 10-19.

    15 De vera relig. 11, 21.

    16 Cf. De vera relig. 18, 36.

    17 Na acepo prstina de religiosidade, enquanto esfera emprica propcia ao re-ligare transdimensional.

  • 41

    materiais. Significa isto que contingncia e transcendncia so expressas do mesmo

    modo, em termos estticos.18

    O conceito forma congrega, portanto, as acepes que os gregos cindiram pelos

    termos ou e . A natureza ambivalente da forma agostiniana torna

    incontornvel ancorar a sua abordagem temtica da criao que, por seu turno, articula

    a questo da ordem, a questo do exemplarismo implcita nas rationes seminales e,

    obviamente, as questes do nihil e do mal.

    A doutrina da creatio ex nihilo era j vigente na ortodoxia crist,19

    quando Santo

    Agostinho desenvolve a sua perspectiva sobre a criao do mundo, adequando-se muito

    eficazmente necessidade de refutar o dualismo maniqueu, cujos argumentos tanto

    incomodavam o Bispo de Hipona, apesar de com eles ter comungado inicialmente. No

    portanto de estranhar que o tema da criao seja, sobretudo, tratado por Santo

    Agostinho nos seus escritos de maior pendor antimaniquesta, como De ordine (386),

    De Genesi contra Manichaeos (388), De Genesi ad litteram liber imperfectus (393),

    Contra Adimantum (393), De Genesi ad litteram (393-415), Contra adversarium Legis

    et Prophetarum (420) e, naturalmente, tambm em passagens presentes em

    Confessionum XI-XIII (397-398) e em De civitate Dei XI (413-426).

    Todas as coisas foram criadas por Deus a partir do nada e atravs de um acto

    livre de amor. A matria da criao no preexistente ou co-eterna com Deus; Ele criou

    a prpria matria da criao e, por isso, o acto criador concerne no apenas a tudo o que

    existe, como tambm a tudo que poder ainda vir a existir. Ora, a matria da criao

    uma matria informe, tal como se lhe refere o Livro da Sabedoria,20

    qual Santo

    18

    Carol Harrison expe singularmente esta ideia, ao escrever que As configuraes concretas e as

    formas vagamente discernveis so nomeadas com os nomes da transcendncia, do belo. Assim, o latim

    agostiniano permite-lhe conservar lado a lado o imediato e a ultimidade, fazendo-o [por intermdio da

    beleza], pensando-os como o belo. The actual shapes and forms dimly discerned are named with the

    names of the ultimate, of the beautiful. Thus Augustines Latin helps him to hold together the immediate

    and the ultimate, and to do this by thinking of them as the beautiful. Harrison, Beauty and Revelation in

    the Thought of Saint Augustine, Oxford, Clarendon Press, 1992, p. 2.

    19 Tefilo de Antioquia (~120 180) tido como o primeiro autor cristo a defender a creatio ex nihilo,

    argumentando que se a matria fosse, tal como Deus, incriada como postulavam os platnicos , ento

    no faria sentido considerar a transcendncia de Deus, j que tal pressuporia que a matria fosse igual a

    Deus e que Ele no poderia ser o criador de todas as coisas. A preexistncia da matria gorava o carcter

    extraordinrio da criao e da actividade do criador divino, at porque os homens tambm conseguem

    produzir coisas novas a partir da matria existente.

    20 []Vossa mo omnipotente que formou o mundo de matria informe [] Sab. 11:17.

  • 42

    Agostinho faz equivaler os cus e a terra do princpio do acto criador descrito no

    Gnesis.21

    A interpretao agostiniana da criao bblica v-se a braos com a

    necessidade de no incompatibilizar entre si estas passagens do Antigo Testamento,

    bem como com a necessidade de dar resposta s crticas sarcsticas em que resultava a

    interpretao maniquesta das mesmas.22

    A criao da matria informe corresponde a

    um primeiro momento do acto criador, que no dever ser entendido como primeiro

    num sentido cronolgico ou diacrnico, mas em termos meramente lgicos ou

    ontolgicos, e que permitem uma compreenso tridica da gnese.

    Assim, a creatio prima contempla a criao dos cus e da terra ex nihilo, ainda

    sem forma, mas com capacidade para receber, nos momentos seguintes, as formas das

    coisas.23

    Pela creatio secunda, Deus informa o informe, dando forma aos seres

    particulares a partir da matria informe da creatio prima. neste segundo momento que

    surge a determinao temporal e que se estabelecem os seis dias da criao e o stimo

    dia de descanso, que no corresponde a um cessar da actividade divina relativamente s

    criaturas, mas ao acto criativo constitudo por estes dois primeiros momentos. Como,

    porm, a criao se processa ao longo da histria, h um terceiro momento, ainda em

    curso sob a divina providncia, pelo qual os seres j criados crescem e multiplicam-se

    (agora em termos geracionais) e no qual, graas s razes seminais (rationes seminales),24

    21

    No princpio, Deus criou os cus e a terra. A terra era informe e vazia. Gn. 1: 1-2.

    22 Os maniqueus questionavam ironicamente o que andara Deus a fazer antes de criar os cus e a terra;

    por que razes resolvera cri-los; e ridicularizavam uma suposta antropomorfizao de Deus presente no

    Antigo Testamento. Cf. De Gen. cont. Man. I, 2, 3 e Conf. XI, 10, 12.

    23 Cf. De Gen. cont. Man. I, 5, 9 e I, 7, 11 onde Santo Agostinho diz que, no princpio, Deus fez os cus e

    a terra, como se fizesse o grmen do cu e da terra, estando ainda confusa e sem forma (confusa et

    informis) a matria do cu e da terra e ainda invisveis (Cf. De Gen. cont. Man. I, 3, 5), pois so

    anteriores ao fiat lux , mas j assim designados dado que deles procederiam os cus e a terra agora

    visveis aos nossos olhos. Esta matria informe encontra correspondncia no grego, conforme aponta

    o prprio Bispo de Hipona. Dada a sua informidade ela est muito prxima do nada (prope nihil erat) e

    quase nada (paene nihilo). Cf. Conf. XII, 6, 6 - 8, 8.

    24 Para um estudo mais aprofundado sobre o conceito de razes seminais na obra do Bispo de Hipona, cf.

    Charles Boyer, La thorie augustinienne des raisons sminales, in Essais sur la doctrine de saint

    Augustin, Paris, Gabriel Beauchesne et ses fils, 1932, pp. 97-137; J. Brady, The Function of the Seminal

    Reasons in St. Augustines Theory of Reality, Ph.D. Dissertation, St. Louis University, 1949; Michael

    John McKeough, The Meaning of the Rationes Seminales in St. Augustine, Washington, Catholic

    University of America Press, 1926.

  • 43

    as coisas que existem no mundo apenas em potncia,25

    podem actualizar-se dando origem a

    novos seres.

    A explicao tridica da criao no obsta ideia de que Deus tenha criado tudo

    a partir do nada, num nico instante criador. O segundo e o terceiro momentos da

    criao esto, desde logo, contemplados na creatio prima, onde a matria informe

    criada do nada contm em si todas as coisas nas suas particularidades ainda em

    potncia.26

    Nada mais ou nada realmente novo foi criado aps o primeiro acto de

    criao; tudo foi criado no princpio, antes de aparecer na terra e no tempo; mas esse

    acto criativo actualiza-se progressivamente atravs dos tempos, pelo trabalho contnuo

    da divina providncia.

    A teoria das rationes seminales permite estabelecer uma distino entre o acto

    original da criao e o operar providencial de Deus, ou, por outras palavras, entre o

    modo atravs do qual Deus se constitui como causa nica, livre, de tudo o que e de

    tudo o que no sendo poder ainda vir a ser e o modo de causalidade necessrio das

    leis naturais que presidem ao curso da natureza. Tambm este modo , em ltima

    instncia, resultante da causa primeira e superior de todas as coisas27

    e que, portanto,

    no inviabiliza a capacidade causal passiva, ou potencial, relativa aos acontecimentos

    que no tomamos por habituais como os milagres mas que nem por isso devero

    ser considerados como uma quebra na cadeia causal natural. Os milagres resultam

    tambm da capacidade intrnseca s razes seminais, que tm a sua origem em Deus.28

    As causas naturais no passam, porm, de instrumentos da actividade providencial de

    25

    Apesar de no conhecer as noes aristotlicas de acto e potncia, a verdade que Santo Agostinho

    envereda por uma via que no completamente distinta da do estagirita e que facilitar a

    conceptualizao do ser em So Toms de Aquino, nove sculos depois.

    26 Cf. De Gen. cont. Man. I, 6, 10.

    27 Cf. De Trin. III, 4, 9.

    28 Ocorre, porm, que se os acontecimentos vulgares so operados espontaneamente pela providncia

    natural, j os milagres e os prodgios so operados pela providncia voluntria, atravs da

    instrumentalizao dos homens e dos seres anglicos, o que significa que, para ocorrerem, os milagres

    tm de ser operados pelos homens ou pelos anjos. Providncia natural e providncia voluntria so ambas

    modalidades da providncia divina, ainda que Deus no intervenha directamente em nenhum dos casos. A

    terminologia providncia natural e providncia voluntria embora no seja muito comum nas obras

    agostinianas, empregue pelo Bispo de Hipona em De Genesi ad litteram VIII, 9, 17: [] operatio

    providentiae reperitur, partim naturalis, partim voluntaria.

  • 44

    Deus, pelo que h diferena entre a criao das razes seminais e a sua sequente

    manifestao no tempo.

    A ideia das razes seminais remonta a Anaxgoras (sc. V a. C.), quando este

    substitui a tradicional concepo dos quatro elementos, pela noo de um nmero

    infinito de causas primeiras, inertes os grmenes () que seriam activadas

    pela essncia intelectual (), explicando assim a possibilidade de surgirem coisas

    aparentemente novas. Para Anaxgoras, os confirmavam a sua ideia de que

    nada de novo poderia ser criado, nem nada do que existia poderia ser totalmente

    destrudo tudo se transformava. Demcrito foi bastante influenciado por esta ideia

    de grmenes a partir dos quais todas as coisas se desenvolvem, apondo-lhe outro

    conceito o de substncias elementares () controladas por um poder externo

    que, ao dot-las de movimento, dava origem a todas as coisas. Estava assim firmada a

    base da ideia das rationes seminales, que conheceria ainda desenvolvimentos e

    variaes com os contributos de Aristteles, dos Esticos e de Flon. Este ltimo

    introduz a ideia na exegese bblica.

    Santo Agostinho simpatizava com os pressupostos desenvolvidos por

    Anaxgoras e pela variante estica,29

    adoptando o que diziam sobre os

    . Para o Bispo de Hipona, as formas ou ideias platnicas tinham existncia

    eterna na mente de Deus que, ao contempl-las, criou ex nihilo as razes seminais

    semelhana das ideias ou formas.30

    Assim, ideias eternas e razes seminais distinguem-se

    pois as ltimas tm existncia fsica na matria ainda que no primeiro acto criativo

    no sejam originadas logo com uma forma definida31

    , e esto ligadas por participao

    s primeiras (s ideias eternas) e, por dependncia, vontade de Deus.32

    29

    Que consistia numa viso conciliadora entre a perspectiva aristotlica e a perspectiva platnica,

    postulando uma distino entre matria passiva e matria activa. Os Esticos defendiam uma alma do

    mundo de natureza gnea, existente na matria passiva e contendo todas as razes () de todas as

    mudanas, bem como os grmenes () das formas futuras. O fogo era o princpio activo que

    informava e movia a matria (princpio passivo).

    30 Com efeito, as ideias eternas correspondem no lxico agostiniano Sabedoria divina, ou Verbo.

    31 Cf. Conf. XI, 4, 6 onde Santo Agostinho afirma que mesmo o que no foi criado e todavia existe, nada

    tem em si que no existisse.

    32 Cf. Chris Gousmett, Creation order and miracle according to Augustine, In Evangelical Quaterly 60,

    3, 1988, p. 222.

  • 45

    As rationes seminales actualizam-se fisicamente ao longo da criao que

    continua a ocorrer no decurso da histria e sob a divina providncia. Na creatio prima

    descrita no primeiro versculo do Gnesis, elas contm como potncia todas as espcies

    possveis de coisas particulares. Este substrato potencial mantido e materializado pela

    vontade e pelo poder causal de Deus nele imposto. Sem esta perene dependncia

    relativamente a Deus, as razes seminais no existiriam. A interveno divina nas

    razes seminais, pela providncia, constitui-se como a derradeira causa uma causa

    interna , todas as outras causas operam externamente sobre as razes seminais.

    As rationes seminales obedecem moo divina e s assim desenvolvem no

    tempo as formas nelas existentes, pelo que mesmo os novos seres no escapam aos

    desgnios de Deus.33

    A criao ex nihilo coloca a Santo Agostinho o problema da responsabilizao

    de Deus pelo mal, pois se criou tudo a partir do nada, ento tambm ter criado o mal. A

    soluo passa por negar a existncia do mal enquanto substncia. Se tudo o que existe

    foi criado por Deus e se o que Deus cria s pode ser tido como bom,34

    conclui-se,

    portanto, que o mal meramente uma privao de bem. Neste seguimento, sendo a

    existncia boa por natureza e sendo a suprema existncia o sumo bem,35

    no ser

    descabido reportar o mal ao nada (nihil). A doutrina da creatio ex nihilo postulada por

    Santo Agostinho evidencia que o filsofo distingue claramente o nada da matria

    informe, contrariamente a Plotino que fazia equivaler os dois conceitos. A matria

    informe est, no entanto, prxima do nada e pode considerar-se como um estdio

    intermdio entre a forma e o no-ser.36

    Alguns autores consideram que, mesmo no

    havendo equivalncia entre a matria informe e o nihil, plausvel que o nihil

    33

    Foram vrios os investigadores a argumentar sobre se o posicionamento agostiniano a este nvel

    assumiria um carcter determinista ou evolucionista. Para um resumo esquemtico de tal debate cf.

    Marcos Roberto Nunes Costa, Defesa agostiniana da criao ex nihilo, contra os Maniqueus, in

    Scintilla, Curitiba, vol. 5, n. 1, Jan/ Jun. 2008, p. 51, n. 20. Concordando com Copleston, cremos que a

    pertinncia de tal debate questionvel, j que este problema, para Santo Agostinho, equacionado

    relativamente interpretao bblica e no lhe consagrado um tratamento cientfico. Cf. Frederick

    Copleston, Histria de la Filosofia: De San Agustn a Escoto, vol. II, Barcelona, Ariel, 1983, p.83.

    34 Alis, como muito bom, como est expresso em Gn.1: 31 Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a

    muito boa. Cf. De Gen. ad litt. imp. I, 3.

    35 Cf. De vera relig. 17, 34 18, 36.

    36 Cf. Conf. XII, 6, 6, onde Santo Agostinho afirma que a matria informe no era ainda nada e, no

    entanto, era j algo.

  • 46

    agostiniano no seja um nada absoluto ou ontolgico, constituindo-se j como alguma

    forma de substncia, semelhana da maniqueia ou da quase-existncia implcita

    no plotiniano.37

    Se as rationes seminales pareciam ser uma figura da

    estabilidade pois, apesar de serem o veculo capaz de dar origem a novos seres, esse

    movimento configura-se como mais uma das evidncias da estabilidade divina que

    havia assegurado, desde o incio, a tal possibilidade de novas espcies, criando-as ainda

    que em potncia e, assim, relativizando o seu carcter de novidade o nihil sugere, ao

    invs, uma ausncia de estabilidade, porque o que sempre se dispersa, constantemente

    se torna dissoluto e eternamente perece.38

    Em termos morais, o nada a fonte do

    movimento defectivo da vontade. Pela corrupo, tende-se ao lapso do ser ao nada.

    Assim, alm de ausncia de estabilidade, tambm ausncia de ser, configurando-se

    efectivamente como um nada absoluto, ontolgico.39

    Apesar de no possuir qualquer referente ontolgico, o nada agostiniano tambm

    no esttico da que se constitua como uma ameaa e mantenha um elo com a

    corrupo (nequitia),40

    com o pecado (iniquitas)41

    e com o mal. A criao ex nihilo, in

    principio, e a Deo, o que significa que Deus no emana de si o mundo e que o mundo

    no lhe igual.42

    As criaturas so um outro, inferior, de Deus; ao cri-las, o inexistente

    comeou tambm a fazer sentido enquanto inexistente (negao do criado) o que no

    37

    Cf. Gavin Hyman, Augustine on the Nihil: An Interrogation, Journal for Cultural and Religious

    Theory, vol. 9, n. 1, 2008, p. 40.

    38 Cf. De beata vita 2, 8, onde Santo Agostinho descreve a eterna dissolvncia do nihil.

    39 Cf. De Gen. ad litt. VII, 5, 7; De nat. boni 25 ou In Iohan. Evang. tract. I, 13, onde o Bispo de Hipona

    adverte para o erro em que alguns incorrem ao tomar o nada por alguma coisa (putare aliquid esse nihil).

    Os Maniqueus estariam certamente entre essas pessoas.

    40 Cf. De beata vita, 2, 8.

    41 Cf. Conf. VII, 12, 18 e VII, 16, 22.

    42 Gerado a partir de Si e igual a Si, s mesmo o Filho unignito que participa da sua essncia; tudo o

    demais no partilha a substncia divina porque advm do nada. Cf. De Gen. ad litt. VI, 2, 2, onde Santo

    Agostinho diz que o criado no da mesma essncia ou substncia do criador; De Gen. cont. Man. I, 2, 4,

    onde explicita que a bondade das coisas no a mesma bondade com que Deus bom e Conf. VII, 10, 16,

    onde, referindo-se luz imutvel, escreve: [] superior, quia ipsa fecit me, et ego inferior, quia factus

    ab ea.. Alm da criao ser ex nihilo, in principio, e abs Deo, poderemos ainda acrescentar que, quanto

    ao seu modo, ela in Verbo, pois resulta da Palavra criadora. Como princpio, o Verbo divino identifica-

    se com o Filho, com a Sabedoria a Palavra de Deus enleia conhecimento e amor e faz equivaler o dizer

    ao fazer: in hoc principio, deus, fecisti caelum et terram in verbo tuo, in filio tuo, in virtute tua, in

    sapientia tua, in veritate tua, miro modo dicens et miro modo faciens. Conf. XI, 9, 11.

  • 47

    significa que exista pois, ao criar algo que no igual a si, Deus instaura a distncia

    entre si e o que cria.43

    Essa distncia absolutamente vazia ope-se, no entanto,

    estabilidade que caracteriza Deus. O nada flui perenemente, mas no pode ser

    equacionado em termos temporais, j que mesmo o tempo ex nihilo.44

    O acto de criao ex nihilo tambm um acto de domesticao ou de

    subordinao do nihil, pois ao mesmo tempo que se instaura a distncia entre o criador e

    a criatura, o facto de a criao resultar de um acto livre, de amor, significa que h

    uma proximidade ntima entre Deus e a sua obra. Deus quis livremente o mundo e

    por t-lo desejado h proximidade entre ambos, mesmo que ao faz-lo do nada o

    tenha distanciado de si. A inigualvel bondade de Deus e o seu amor incondicional

    fazem da criatura um ser livre, cujo sentido de si da sua vida lhe entregue. Essa

    entrega a abertura do ser ao ser e ao nada; trata-se de uma questo de sentido e de

    existncia, pois ao tender naturalmente ao ser, o homem tende completude da

    existncia e, a este nvel, no tende naturalmente ao no-ser, ao nada; porm, tendo

    sido criado por Deus a partir do nada, a distncia que tem de percorrer at Deus

    sempre ameaada pela possibilidade de deslizar para o nada no pela ausncia de

    Deus, que omnipresente, mas pela deficincia de ser na criatura enfatizada ao

    distanciar-se de Deus por um acto defectivo da vontade.

    Indubitavelmente, o nada possui uma conotao negativa, que o torna

    indissocivel do mal mesmo que, como este, carea de estatuto ontolgico e no possa

    ser tido como um princpio rival de Deus, nem ser considerado co-eterno com Deus,

    como postulavam os Maniqueus. Contra qualquer dualismo, Santo Agostinho defende

    que nunca algo existiu que no fosse criado por Deus, nem que se opusesse a Deus,

    sendo diferente dele.45

    S faz sentido equacionar o sentido do mal e do nada em relao

    ao criado, ou melhor, a partir do momento em que o gesto criador instaura uma

    distncia entre Deus e o demais. O nada no uma realidade positiva, baseia-se na

    defeco e na ausncia de ser e permite que o mal seja experienciado no mundo, como

    privao de bem. O mal nada tem de substancial: ele no , porm afecta o ser.

    43

    Em Conf. XII, 7, 7, Santo Agostinho refere que essa distncia do Criador ao criado no um

    afastamento em termos espaciais, permitindo a concluso bvia de que se trata de uma distncia

    ontolgica, em termos de ser e no de espao.

    44 Tal no significa que o nada seja co-eterno com Deus, pois o nada no , apenas faz sentido com o

    gesto criador da que o nada seja considerado tambm como um movimento.

    45 Cf. Conf. XII, 7, 7.

  • 48

    S quando o amorfismo da matria ultrapassado pela creatio secunda, que o

    cu e a terra saem das trevas o fiat lux marca a possibilidade da perspectivao

    esttica do criado, no s porque o surgimento da luz vem a par da configurao

    material em termos de existncia e visibilidade, mas tambm porque essa luz tida

    como boa.46

    H uma trplice articulao implcita no conceito de forma que irmana

    existncia, bondade e beleza; assim o evidencia Santo Agostinho em De vera religione:

    Pois tudo o que , necessariamente possui beleza por mais nfima que

    seja, portanto, ainda que seja um bem nfimo, ser todavia um bem e proceder de Deus.

    Pois que se a suma beleza um sumo bem, tambm a mais nfima beleza ser um

    nfimo bem. Assim, todo o bem ou Deus, ou procede de Deus. Logo, at mesmo a

    beleza mais nfima provm de Deus. Sem dvida, o que se diz a respeito da beleza pode

    tambm ser dito quanto forma.47

    a forma que vivifica a matria e que a retira do limbo entre o ser e o no ser.

    Tudo o que , tendo sido criado por Deus, bom, qualquer que seja o seu modo (bonum

    est, quidquid aliquo modo est).48

    A existncia implica um certo modo, ou uma certa

    forma de ser; nos conceitos species e forma radicam os qualificativos speciosus e

    formosus. Plotino j havia enunciado a articulao entre ser e beleza, ao defender que

    no h belo privado de ser, nem essncia privada de ser belo. Para o licopolitano, na

    falta de belo, falta tambm a essncia; o ser tanto mais ser, na medida em que belo.49

    Santo Agostinho no poderia estar mais de acordo, quando, em De immortalitate

    animae, conclui que se no a massa material (moles), mas a species que d ao corpo o

    seu ser, ento a sua plenitude tanto maior, quanto mais speciosus e pulchrius for. Pela

    46

    Deus disse: Faa a luz. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas Gn.

    1:3-4.

    47 Quoniam quidquid est, quantulacumque specie sit necesse est; ita etsi minimum bonum, tamen bonum

    erit, et ex Deo erit. Nam quoniam summa species summum bonum est, minima species minimum bonum

    est. Omne autem bonum, aut Deus, aut ex Deo. Ergo ex Deo est etiam minima species. Sane quod de

    specie, hoc etiam de forma dici potest. De ver. relig. XVIII, 35 (CCL 32, p. 208). A traduo de species

    por beleza, pretende evitar uma transliterao que limitaria, a nosso ver, a verdadeira acepo do trecho e

    segue a estratgia utilizada por Boyer na edio francesa de Confessionum, onde este conceito tambm

    traduzido por beaut. Cf. Saint Augustin, Les aveux, trad. Frdric Boyer, Paris, P.O.L., 2008.

    48 Cf. Conf. XIII, 31, 46.

    49 Cf. En. V, 8, 9.

  • 49

    mesma lgica, substituindo os qualificativos speciosus e pulchrius por deformis, o

    inverso verdadeiro.50

    Por outras palavras, um corpo tem tanto mais ser quanto mais

    speciosus atque pulchrius for e tem menos ser, quo mais feio ou disforme for. O ser

    proporcional species, o que ser o mesmo que dizer que o ser de um corpo

    proporcional sua beleza.

    Tal como moles e materia surgem lado a lado nos textos agostinianos e na

    maioria das vezes com valor intermutvel , tambm com os substantivos forma e

    species ocorre o mesmo. Tal sinonmia no significa, porm, que o Bispo de Hipona os

    empregue indistintamente. Em relao ao binmio materia/ moles, evidencia-se que o

    ltimo termo utilizado, sobretudo, para expressar a ideia de extenso material,51

    embora, muitas vezes, surja tambm empregue no sentido de substncia.52

    No que

    toca ao par forma/ species, h que salientar que a ambivalncia anteriormente apontada

    para o conceito de forma se aplica tambm species, pelo que no raras vezes Santo

    Agostinho emprega ambos os termos ligando-os pela conjuno que (atque), ou at por

    vel.53

    Quando species se articula com pulcher, geralmente este ltimo qualificativo tem

    uma funo de reforo do primeiro, j que, como nota Monteil, a pulchritudo evoca um

    estado optimizado do corpo.54

    Se species e forma se podem reportar causa da

    perfeio ou plenitude do ser e do corpo, o mesmo j no parece verificar-se

    relativamente a pulcher, ainda que seja empregue conjuntamente com species. A

    sinonmia apontada entre forma e species, no sucede entre forma e pulcher. A

    pulchritudo est mais para consequncia, do que para causa mais para uma

    conformidade exterior, do que para o princpio que a configura.

    Fontanier sugere que, em relao forma, species cobre um registo mais extenso

    e que, etimologicamente, ser a transposio mais correcta do grego .55

    Segundo

    este autor, species designa toda a beleza desde a epifania de Deus at atraco dos

    50

    Cf. De imm. an. 8, 13.

    51 Cf. Conf. VII, 1, 2; XII, 20, 29; XII, 21, 30; XIII, 32, 47.

    52 Cf. Conf. V, 10, 20; V, 11, 21; X, 6, 10; X, 43, 70; XII, 15, 19.

    53 Cf. Jean Michel Fontanier, La beaut selon Saint Augustin, Presses Universitaires de Rennes, 2008, p. 29.

    54 Cf. P. Monteil, Beau et Laid en Latin. tude de vocabulaire, Paris, Klincksieck, 1964, p. 91.

    55 Cf. Fontanier, op. cit., pp. 31-38.

  • 50

    corpos. Forma evoca mais a correco do desenho e corresponde mais a uma geometria

    da beleza.56

    S em parte concordamos com tais suposies, pois se a palavra species

    sugere mais enfaticamente o mbito esttico do contexto em que referida, parece-nos

    que tal ocorre, precisamente, em virtude de uma crescente especificidade que,

    esteticamente, se comea a definir com o conceito de forma e que se vai concentrando

    em termos de acepo e de particularizao no conceito species, at perda de valncias

    pelo qualificativo pulcher, anteriormente referida. Quase incorrendo numa redundncia,

    podemos considerar a species uma especificao da forma, que a centraliza com maior

    margem no seio do mbito esttico. o prprio Fontanier quem refere que a

    diferenciao da matria, capax specierum, em mltiplas species, significa

    indissociavelmente, a especificao dos seres nas formas prprias, e a sua acesso

    visibilidade, ou melhor, perceptibilidade a criao de substncias discretas e

    discernveis.57

    Efectivamente, o termo forma quase parece insuficiente, porque menos

    especfico, para exprimir em concreto a ideia de beleza, mas no corresponder mais a

    uma geometria da beleza ou a uma correco do desenho do que o termo species, j que

    se ambas forem perspectivadas em relao ordem que prefiguram, percebe-se que

    efectivamente h uma real sinonmia entre os dois conceitos e que as diferenas no

    emprego de cada um so fruto do cuidado do Bispo de Hipona em exprimir a

    possibilidade emprica da compreenso esttica dos diferentes modos do ser, por vezes

    fazendo deles objectos directos dessa perspectivao sensvel.

    56

    Ibid., p. 35.

    57 Ibid., p. 31. Cf. tambm p. 32, onde Fontanier afirma que Santo Agostinho utiliza o termo species para

    designar a forma imprimida (o ) na matria informe.

  • 51

    1.2 Os fundamentos antropolgicos da esttica agostiniana

    A doutrina da criao ex nihilo no s permitiu a Santo Agostinho refutar o

    dualismo maniquesta, como lhe facultou um enquadramento propcio diminuio do

    fosso ontolgico entre a esfera divina e a esfera sensvel, que o dualismo platnico lhe

    legara. A forma inovadora como o Bispo de Hipona perspectiva a relao corpo/ alma

    pode ser interpretada como paradigmtica da relao esfera sensvel/ esfera inteligvel,58

    assumindo especial relevncia no entendimento do papel que a beleza dos corpos tem

    no percurso ascensional a empreender pela alma at sua origem.

    Para Santo Agostinho, tambm a alma uma criatura mutvel e, ainda que nas

    primeiras obras seja possvel encontrar expresses como alma divina,59

    o Bispo de

    Hipona no a perspectiva enquanto tal, contrariamente aos maniqueus para quem as

    almas eram partculas da natureza divina enclausuradas em corpos temporais na

    sequncia do conflito primordial entre o bem e o mal. O ponto de vista maniqueu que

    Santo Agostinho partilhou durante cerca de nove anos culminava, de certo modo, numa

    desresponsabilizao face ao pecado, uma vez que no era verdadeiramente o homem

    quem pecava, mas a natureza maligna que o enclausurava.60

    Santo Agostinho rejeita

    tambm a hiptese plotiniana da alma como hipstase que abarca a multiplicidade de

    almas individuais.

    58

    Na mesma senda, Peter Brown afirma que a relao alma/ corpo uma sindoque para designar a

    humanidade vulnervel face a Deus. Cf. P. Brown, Le Renoncement la chair. Virginit, clibat et

    continence dans le christianisme primitif, Paris, Gallimard, 1995, p.76.

    59 Por exemplo, em Contra Acad. I, 1, 1. Cnscios de que a expresso divinum animum assume um

    sentido figurativo, os tradutores agostinianos evitam traduzi-la literalmente, optando por acepes como

    alma sublime.

    60 Cf. Conf. V, 10, 18.

  • 52

    No sendo aquilo que Deus , a alma foi criada por Ele a partir do nada. A

    questo da origem da alma permanecer, no entanto, sempre em aberto para o filsofo

    africano que no aventa muito mais sobre o assunto para alm da sua convico de a

    alma ter sido criada por Deus e de no ser um corpo.61

    A convico de a alma ter sido

    criada por Deus a partir do nada e no de si62

    pressupe desde logo que a alma seja

    naturalmente boa, embora sujeita degradao e corrupo. A alma no pode, dada a

    sua natureza, ser m. Ela um bem corruptvel que ocupa uma posio intermdia entre

    Deus e os corpos. Nada est mais prximo de Deus do que a alma.63

    A posio intermdia da alma no lhe outorga porm o papel de intermediria

    entre a esfera divina e a esfera sensvel, como sucedia na perspectiva neoplatnica. Para

    Santo Agostinho, esse papel mediador cabe exclusivamente a Cristo. A convico da

    incorporalidade da alma preconiza que esta se constitui como uma substncia imaterial,

    inextensa e indivisvel caractersticas que o Bispo de Hipona retira do neoplatonismo.

    No discurso epistolar que dirige a Jernimo,64

    Santo Agostinho argumenta a favor da

    incorporalidade da alma ao notar que esta se apercebe das ocorrncias em diversas

    partes do corpo, o que implica que a totalidade da alma deva estar presente em cada

    parte do corpo. Ora, se a alma est inteiramente em cada parte do corpo, no pode ela

    prpria ser um corpo.65

    Sendo uma criatura, a alma, tal como o corpo, est sujeita

    mudana a aprendizagem, os afectos, a deteriorao ou o progresso moral podem

    mudar a alma porm, diferenciando-se do corpo que mutvel no espao e no tempo,

    a alma apenas est sujeita mudana no plano da temporalidade e, ainda assim, a

    mutabilidade da alma no lhe pressupe quaisquer mudanas substanciais. As mudanas

    61

    Cf. De Gen. ad litt. VII, 28, 43, onde Santo Agostinho elenca o que seguramente pode afirmar acerca

    da alma. Em relao questo da origem da alma, esta obra iniciada em 393 e concluda em 415 no

    difere da posio evidenciada por Santo Agostinho em Epistola ad Hieronymum de Origine Animae (Ep.

    166 a Jernimo acerca da origem da alma) tambm redigida em 415, nem dos quatro textos que compem

    De Anima et ejus Origine escritos em 419, como reaco aos dois livros que um jovem filsofo africano

    chamado Vicente Victor escrevera criticando a indefinio da abordagem agostiniana sobre a origem da

    alma e apresentando as suas ingnuas concluses.

    62 Cf. De an. et orig. I, 4.

    63 Cf. De quant. an. 34, 77.

    64 Mais concretamente em Ep. 166, 2, 4. Esta epstola tambm conhecida pelo ttulo De origine animae

    hominis.

    65 Cf. De imm. an. 17, 26.

  • 53

    qualitativas que a existncia temporal imprime na alma so alteraes acidentais e no

    determinam uma perda ou alterao de identidade. Alis, mais do que em mudana, ao

    nvel da alma dever-se- falar em moo, uma vez que a sua substancialidade a torna

    afim do movimento. A substncia anmica uma substncia viva, pois sem vida no

    poderia ser o motor do corpo e, enquanto motor, ela imutvel no sentido em que no

    se altera a sua substncia. A alma mantida na sua existncia pela vontade de Deus e a

    natureza imutvel de certo tipo de conhecimentos implica necessariamente a identidade

    substancial da mente na qual tal conhecimento est presente. Aqui reside tambm uma

    das provas da imortalidade da alma, ainda que ela no partilhe a eternidade de Deus.66

    Santo Agostinho permanecer irresoluto quanto questo da origem da alma,

    especialmente no que concerne ao momento em que a alma e o corpo se unem para

    constituir o homem. Em De beata vita, escrito em Cassicaco no ano 386, o filsofo

    exprime as suas reticncias quanto possibilidade de algum dia poder encontrar uma

    soluo para a anima quaestio.67

    Mais de uma trintena de anos depois, em De anima et

    ejus origine, as dvidas mantm-se. Durante este perodo, vrias foram as obras nas

    quais a questo abordada e nas quais o Bispo de Hipona vai elencando hipteses, sem

    no entanto tomar partido por alguma delas. Se em De beata vita as razes sobre a

    presena do homem no mundo e, consequentemente, sobre a ligao das almas

    individuais aos corpos variam entre seis hipteses,68

    j em De libero arbitrio, escrito

    dois anos depois, Santo Agostinho apresenta um conjunto de possveis razes mais

    reduzido, mas tambm mais estruturado, sobre a origem das almas, com vista defesa

    da justia divina: a) as almas surgem por propagao ou descendncia, tendo sido

    criadas a partir da alma pecadora de Ado (hiptese traducianista);69

    b) as almas so

    individualmente criadas em cada criana que nasce (hiptese criacionista);70

    c) as almas

    preexistem algures e so enviadas por Deus para os corpos dos que nascem, obliterando

    66

    Sobre a distino entre imortalidade e eternidade cf. De div. quaest. 83, 19.

    67 Cf. De beata vita 5, 5. Na ltima obra que escreveu, em 430, Santo Agostinho confessa sem pejo que

    continua na ignorncia em relao a esta questo. Cf. Con