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  • Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares DossiDossiDossiDossi N 6, Vol. 1, Ago-Dez/2014 ISSN 2316-1655 94

    MUITO A SEU CONTENTO, TANTO EM PREO COMO EM QUALIDADE: o mercado de crdito na cidade de Belm em fins do XVIII e incio do XIX

    MUCH TO HIS SATISFACTION, BOTH IN PRICE AND QUALITY": the credit market in the city of Belm in the late eighteenth and early nineteenth centuries

    Simia de Nazar Lopes

    RESUMO

    Objetiva-se analisar as redes de endividamento na capitania do Par entre 1790 e 1830. Como base documental, fez-se uso de Escrituras de Obrigao de Dvida, processos de Juramento ou Ao de Alma e Autos de Assinao de Dez Dias. Esses documentos permitem identificar outras prticas mercantis presentes entre os negociantes de Belm com os comerciantes das vilas do interior da Capitania. Palavras-chave: Mercado de Crdito, Juramento de Alma e Comrcio.

    ABSTRACT The objective is to analyze the debt networks in the Par captaincy between 1790 and 1830. As evidence base, made use of Debt Obligation of Scripture, Oath processes or Alma action and signing notices of Ten Days. These documents identifying other commercial practices found among the merchants of Bethlehem with the merchants of the interior villages of the Province. Keywords: Credit market, Oath of Soul and Trade

    So recentes os estudos que basearam suas anlises na utilizao de escrituras pblicas,

    principalmente para compreender as atividades econmicas desenvolvidas nas sociedades

    coloniais. Estes trabalhos apresentam especificidades tanto pela diversidade das informaes

    contidas nesse tipo de fonte, como pelas questes que levantaram em suas anlises.

    Nesse sentido, as escrituras lanadas nos livros de notas apresentam algumas das

    atividades comerciais e sociais acordadas na prpria capital, como tambm entre os

    moradores das demais vilas da capitania, que se deslocavam para a cidade com o objetivo de

    formalizar as suas transaes. No perodo de 1790 a 1834, para a capitania do Par, possvel

    encontrar nos livros do Tabelio Perdigo1 diversos registros de escrituras, entre os mais

    encontrados esto as de: alforria e liberdade, de venda, procurao bastante e geral, obrigao

    e ajuste de dvida, de doao, de dote; contrato e destrato de sociedade mercantil, de

    1 Os livros de escrituras pblicas so todos pertencentes ao mesmo cartrio de ofcio de notas, localizado na cidade de Belm, onde o tabelio Perdigo lanava esses instrumentos.

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    arrendamento, de composio de partilha, de patrimnio, registros de atestao e de

    declarao, legitimao, de filiao e reconhecimento de paternidade.

    Embora essas escrituras apresentem os mais diferentes aspectos da sociedade, elas

    obviamente no trazem a totalidade dessas relaes que eram tecidas pelos seus sujeitos.

    Apesar de no ser um retrato fiel das relaes socioeconmicas ao longo do seu tempo, as

    escrituras marcam as representaes desses sujeitos. Entretanto, nem todas essas escrituras

    descritas acima compem o corpus documental coletado para essa anlise. Para o objetivo aqui

    proposto, foram selecionadas apenas as escrituras que traziam informaes sobre as

    transaes comerciais que se pretende analisar nesse artigo, a saber: os registros de ajuste e de

    emprstimos. Alm das escrituras de obrigao de dvida nos livros de notas do Perdigo,

    soma-se a essa anlise outros dois tipos de fontes que tambm se referem ao mercado de

    crdito: o auto de ao/juramento de alma e o auto de assinao de dez dias. Em ambas as

    fontes citadas, a referncia ao crdito ser apresentada de forma qualitativa, tendo em vista

    que no foi possvel coletar uma quantidade maior dessa documentao pertinente ao perodo

    pesquisado.

    Muitas cobranas foram realizadas por meio de aes judiciais, como o juramento ou

    ao de alma, e a ao de assinao de dez dias. Em ambas as situaes, o credor levado a

    acionar outras formar legais para conseguir uma confirmao do pagamento e garantia da sua

    quitao ou mesmo reaver a quantia emprestada. Essas relaes de crdito remetem a

    pesquisa para alguns questionamentos: os padres de investimento da sociedade, que no

    esto limitados apenas ao mercado. Essas questes foram anotadas nas vendas de

    propriedades urbanos e rurais, mas como se comportavam os investimentos no mercado de

    crdito? No presente artigo, discutir-se-o essas relaes de endividamento presentes na

    cidade de Belm e em outras vilas da capitania do Par. Deve-se indicar aqui, o carter

    limitado de algumas observaes realizadas, tendo em vista que muitas dessas relaes no

    foram formalizadas e havia outras referncias ao crdito, as quais aparecem em situaes

    posteriores ao ato das escrituras.2

    As dvidas descritas nos testamentos muitas vezes no foram formalizadas em

    escrituras de obrigao de dvida, pois geralmente eram acordadas pela palavra e um aperto

    de mo. Essa informalidade das relaes de crdito resultou na ausncia de registros sobre o

    2 Havia escrituras em que a ocupao do credor e do devedor no constava como de reconhecimento do tabelio, entretanto algumas lacunas foram preenchidas com referncia a outras escrituras lanadas nos livros. Em funo disso, a apresentao dos credores e os valores negociados no podem ser tomados como uma referncia exata de sua atuao no mercado de crdito.

  • Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares DossiDossiDossiDossi N 6, Vol. 1, Ago-Dez/2014 ISSN 2316-1655 96

    crdito em muitas regies.3 Em documentos como os testamentos e inventrios, podem-se

    encontrar as declaraes de dbitos e de crditos, as quais apresentavam que alm das

    relaes de emprstimos em moeda corrente, letras ou em fazendas, havia tambm as

    descries de escambo, em que os valores em moeda se misturavam com as indicaes de

    troca e pagamentos com objetos ou mesmo com animais.4 A coexistncia dessas duas formas

    de atribuir valores s mercadorias acompanham as relaes comerciais da capitania desde a

    sua ocupao, quando foi necessrio encontrar equivalentes para mediar o uso da moeda

    natural com o uso da moeda metlica. Segundo Alam Jos da Silva, a introduo e a circulao

    de moeda metlica na capitania foram permeadas de debates e de resistncias por parte dos

    mercadores e moradores. A resistncia ocorria muito em funo da diversidade de gneros

    utilizados como equivalentes (os quais variavam para cada regio), como pelos critrios

    utilizados para aceitao da moeda natural ou dinheiro da terra que acabavam por causar a

    desvalorizao dos produtos e perdas na aquisio dos mesmos.5 O uso da moeda natural

    acompanhou no somente as atividades relacionadas compra e venda de mercadorias

    (fazendas, alimentos e mo de obra) como tambm a quitao de servios prestados ou fretes

    de mercadorias.

    Em certa ocasio, Joaquim Jos se dirigiu loja de Silvestre Antonio Antunes, mercador

    em Belm, com o objeto de realizar um grande negcio. O mercador aviou a Joaquim Jos

    diversas fazendas de sua loja para equipar a canoa deste e poder seguir para o Serto deste

    estado a negociar. As fazendas seriam utilizadas para a negociao usual nos sertes:

    mercadorias manufaturadas por produtos e drogas do serto. As fazendas foram tomadas por

    emprstimo e seriam pagas to logo regressasse dos sertes para onde Joaquim Jos passou a

    se aventurar.6 Era para os sertes do Estado do Gro-Par que os comerciantes se lanavam

    em busca das diversas produes que tinham mercado certo e garantido nos portos da cidade

    de Belm.

    Em 1795, decorridos alguns anos desde o primeiro emprstimo das fazendas, a empresa

    pelo serto no lhe rendeu o lucro esperado e o resultado foi encontrar mais uma vez com o

    mercador de Belm. Porm, dessa vez, Joaquim Jos se apresentaria para celebrar uma

    3 PFISTER, Ulrich. Le petit crdit rural em Suisse aux XVIe-XVIIIe sicles. In: Annales: Histoire, Sciences Sociales. 49e anne, n. 6. 1994, pp. 1339-1357. http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahess_0395-2649_1994_num_49_6_279332 4 No inventrio de Fidelis Carvalho dos Passos Almeida Salazar foi feita a relao das dvidas e entre elas afirmava ser credor do tenente Jos Correa de Faria, o qual lhe devia duas vacas que tambm me deve de duas armas de espoletas que lhe vendi. CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1843. 5 SILVA, Alam Jos da. Do dinheiro da terras ao bom dinheiro: moeda natural e moeda metlica na Amaznia colonial (1700-1750). Belm: UFPA/Histria Social da Amaznia, 2006 (Dissertao de mestrado). 6 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 958, Livro 1181, 1975.

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    Escritura de Obrigao de Dvida, no valor de 344$115 ris, referente s fazendas que Silvestre

    Antonio Antunes aviou ao devedor, o qual as recebeu muito a seu contento tanto em preo

    como em qualidade. A paga da dvida contrada ficaria em aberto por mais sete meses,

    quando Joaquim Jos deveria quit-la.7

    A descrio acima apresenta o motivo que levou Joaquim Jos a fazer um emprstimo.

    Ele, como outros indivduos que fizeram escrituras de obrigao de dvida, vislumbrava o

    comrcio no serto como um grande negcio a ser empreendido, porm essa escritura indica

    que nem todas as pessoas que se lanavam nesse comrcio alcanavam o objetivo desejado e,

    depois, conseguiam afianar as suas dvidas no tempo estipulado. Geralmente, as dvidas eram

    feitas com intuito de comprar alguma coisa, ou iniciar um negcio. Nas declaraes de dvidas

    que foram seguidas de justificativas para adquirir a quantia ou objeto, foi possvel perceber

    como a questo mercantil estava presente nessas relaes. As justificativas permitiram tornar

    conhecido com que objetivo ou qual a finalidade do emprstimo realizado. Nos testamentos

    havia a declarao de emprstimos efetuados para a aquisio de escravos, aberturas de

    sociedades,8 pagamentos de dzimos ou compras de propriedades, mas nas escrituras tambm

    constavam o objetivo de abastecer lojas e botequins, armar canoas para o comrcio no serto.

    Segundo Sampaio, o mercado de crdito era fomentado pelo carter agrrio da

    economia colonial, o que gerava um descompasso entre o ciclo agrcola, anual, e as

    necessidades quase dirias de insumos e alimentos para as unidades produtivas.9 Para o

    autor, o equilbrio para essa situao era amenizado pelas compras a crdito que se

    realizavam entre os comerciantes e produtores. Entretanto, para a cidade de Belm esse

    desequilbrio pouco foi abordado, tendo em vista que as pequenas roas espalhadas pelas

    reas cultivveis abasteciam a cidade com as suas produes (farinha, peixe seco ou fresco).

    Geralmente, as referncias s dvidas que foram adquiridas perpassavam pela aquisio de

    produtos (fazendas e demais artigos) para serem negociados na prpria cidade ou nas vilas da

    capitania.

    Na tabela abaixo, pode ser observado como estavam distribudas as escrituras pblicas

    de obrigao de dvida para o perodo deste estudo. Foram coletadas 81 escrituras, sendo esse

    7 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 958, Livro 1181, 1795. 8 As dvidas declaradas nos testamentos apresentam a relao de emprstimos entre grandes negociantes da cidade de Belm, mas tambm o emprstimo entre familiares. Tanto no caso de Maria da Purificao, como no caso de Francisco Lopes Maia (negociantes) que emprestaram dinheiros aos seus filhos, esse valor foi declarado nas dvidas para serem quitados em seus respectivos quinhes. Nesse ltimo caso, Luis Lopes Maia pagaria a quantia de 400$000 com o abatimento que seria feito de seu quinho. CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, (1819; 1833). 9 SAMPAIO, Antonio Carlos Juc de. Na encruzilhada do imprio: hierarquias sociais e conjunturas econmicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 188.

  • Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares DossiDossiDossiDossi N 6, Vol. 1, Ago-Dez/2014 ISSN 2316-1655 98

    nmero os registros em que era possvel anotar todas as informaes atinentes ao que se

    pretendia discutir.

    Tabela 1: Participao total e percentual das Obrigaes de Dividas por perodo (1793-1834)

    Perodo Obrigao de dvida N.E. Valor

    1793-1799 %

    8 4:361$641 100% 19.2%

    1800-1810 %

    10 14:458$743 100 118.9%

    1813-1820 %

    23 44:079$061 100% 41.9%

    1821-1824 %

    13 26:378$295 100% 72.3%

    1828-1834 27 33:767$876 Total 81 123:045$616

    N.E: Nmero de Escrituras. Fonte: Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP (1793-1834).

    Entre as 81 escrituras de obrigao de dvida tm-se 16 escrituras em que os devedores

    so moradores das vilas do interior e fizeram emprstimo com negociantes da cidade de

    Belm. Entre esse grupo, duas escrituras chamaram ateno nessa anlise, ambas pelos valores

    que foram registrados. O maior valor empenhado nesse tipo de transao foi de 5:779$983 ris,

    que o negociante Fernando Jos da Silva creditou ao comerciante da vila de Camet, Joaquim

    Ferreira de Souza Flores. No consta a finalidade do emprstimo, porm o devedor como

    garantia de pagamento apresentava todas as fazendas que existiam em sua loja, as dvidas que

    possua por receber, seus escravos (no especificou a quantidade) e a casa de morada em que

    residia na vila de Camet. A quitao da dvida deveria ocorrer no prazo de um ano, caso

    contrrio o credor faria o arresto dos bens hipotecados.10 Como j comentado, o emprstimo

    em espcie ou em mercadorias para sortir loja era comum entre os devedores que tinham

    pequenos estabelecimentos na cidade, mas geralmente esse tipo de justificativa era

    apresentado pelos andarilhos dos sertes. O que representativo dessa escritura a incluso

    de outras dvidas, em que o devedor era credor, como bem hipotecado para afianar o

    pagamento da quantia emprestada.

    A outra situao de obrigao de dvida foi a de menor valor registrado. Em 1795, Joo

    Fernandes Ribeiro era negociante da Ilha Grande de Joanes (Ilha do Maraj) e assinou uma

    escritura em que era devedor a Jose de Almeida Lobo, negociante de Lisboa. O valor da

    escritura constava em 150$000 ris, pois a obrigao se referia a um ajuste de contas de uma

    10 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 302, Livro 1190, 1820.

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    Sociedade que os dois desmancharam e que tinham feito uma escritura, a qual fora lanada

    pelo tabelio Antonio Soares Correa na cidade de Lisboa, onde ficava devendo ao dito credor

    a quantia de 150$000 ris. O pagamento ficou para ser quitado em um ano, como garantia

    obrigava-se a ela (dvida) por todos os seus bens mveis, submoventes e de raiz presentes e

    futuros e que para execuo desta se obrigava a responder perante as justias.11

    Os registros desses emprstimos compreendem um aspecto relevante presente no

    mercado creditcio: o fato de no concentrar essa atividade apenas aos negociantes da cidade

    de Belm, mas estend-lo tambm para os sujeitos que andavam a negcio pelas vilas do

    Serto. O que tornava a cadeia de endividamento uma relao muito ampla e estendida por

    toda a capitania do Par. A relao inversa, negociantes do interior da capitania emprestando

    dinheiro aos da capital, dificilmente se encontrava. Mesmo nas escrituras de obrigao de

    dvida da vila de bidos os registros de emprstimo se voltavam apenas para as transaes

    locais, o mesmo se verificou para as outras formas de registro de dvidas.

    Nas escrituras de obrigao h apenas dois credores declarados que moravam fora da

    cidade de Belm, mas esse nmero pode ser maior, pois nos testamentos havia declaraes de

    dvidas com credores que moravam nas vilas do interior. Em 1819, no testamento de Alberto

    da Cruz Pires, alfaiate, foi declarado que ele devia aos herdeiros de Manoel Duarte Gomes,

    morador para as partes da Vigia a quantia de vinte e sete mil ris e pedia para que a quantia

    fosse quitada aps a sua morte.12 Nas escrituras de obrigao, um credor que fez esse registro

    era negociante da vila de Santarm e emprestou a quantia de 900$000 ris a Manuel da Silva,

    morador da vila de bidos, mas que andava pelos sertes a negcio. O emprstimo foi

    realizado para a compra de um barco com todos os seus utenslios, no valor de 800$000 ris

    e a quantia de 100$000 foi gasta na aquisio de diferentes gneros que se havia comprado.

    Manoel da Silva se obrigava a pagar o emprstimo no prazo de 1 ano, quitando o valor em duas

    parcelas no espao de seis meses cada uma, como hipoteca para o pagamento empenhou o

    barco e as mercadorias que possua.13

    Em todas as 81 escrituras registradas, apenas 46 apresentaram bens hipotecados, sendo

    que somente duas faziam referncia compra de embarcaes e as colocavam como hipoteca.

    A ausncia de maiores transaes envolvendo a hipoteca de embarcaes podem ser

    significativas nessa atividade, tendo em vista que esse bem era essencial para empreender o

    comrcio nas vilas do interior e arrisc-lo como paga de uma dvida inviabilizaria qualquer

    negcio que pudesse entreter para essas reas.

    11 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 945, Livro 1181, 1795. 12 CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1819. 13 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 291, Livro 1190, 1821.

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    Tabela 2. Bens hipotecados nas Escrituras de Obrigao de Dvida

    Tipo de Bem Nmero

    Moradas de casas 30

    Lojas, fazendas e mercadorias 3

    Propriedades completas14 3

    Bens presentes e futuros15 2

    Bem no declarado 3

    Escravos 3 Embarcao 2

    Total 46 Fonte: Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP (1793-1834).

    Entre os outros bens hipotecados, as moradas de casas foram as que mais se utilizaram

    como garantia, incluindo nesse item os quartos de casas, as casas e os sobrados localizados na

    cidade de Belm. Essa quantidade de bens refora o carter urbano dos emprstimos, mas

    tambm possvel notar o empenho de residncias urbanas em transaes assinadas entre

    devedores das vilas do interior, bem como asseguravam os seus prprios negcios e

    mercadorias em hipoteca ao valor adquirido. Nesse caso, as propriedades urbanas tambm

    revelam o carter urbano da elite credora. Logo, para um credor que morasse em Belm era

    mais vantajoso adquirir uma propriedade na cidade do que outra no interior. A apresentao

    de escravos na penhora do crdito apareceu apenas em trs escrituras, mas nos testamentos

    esse tipo de garantia para quitao da dvida aparece com mais frequncia. Sem entrar nos

    questionamentos sobre a quantidade da mo de obra escrava na capitania do Par, h de se

    ressaltar que na maioria dos registros sobre o comrcio nos sertes o tipo de trabalhador

    empregado nessas atividades era a mo de obra indgena. Com exceo vila de Gurup, para

    todas as outras vilas da capitania, os comerciantes que se deslocavam at a cidade de Belm

    com as suas mercadorias contavam com a mo de obra indgena para guiar e conduzir as suas

    embarcaes.

    Dos trs devedores que hipotecaram suas lojas e fazendas, o negociante Joaquim Ribeiro

    da Silva Pacheco fez um emprstimo no qual hipotecava todos os seus bens, descritos da

    seguinte forma: todas as fazendas da loja de molhados e do dito armazm tanto os

    comprados como ao que se forem comprando para sortimento da mesma. Em 1818, as

    14 As propriedades completas podiam ser descritas com ou sem escravos, com casas de vivenda e suas benfeitorias, utenslios e rvores frutferas. 15 Essa expressa era genrica, no se referindo a um tipo especfico de bem que o devedor fosse possuidor.

  • Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares DossiDossiDossiDossi N 6, Vol. 1, Ago-Dez/2014 ISSN 2316-1655 101

    fazendas foram compradas a crdito na loja de Casemiro Jos Rodrigues, localizada na Rua

    de Santo Antonio fazendo canto para a Travessa da Misericrdia, tambm foi feita a compra

    de molhados que existiam em seu armazm na dita travessa. O credor afirmava que todos os

    produtos adquiridos na sua loja foram a satisfao [do devedor] tanto em preo como em

    qualidade, importando a fazenda da dita loja em 7:947$747 ris e molhados do dito armazm a

    3:959$221 ris, somando a quantia de 11:906$968 ris.16 Esse valor foi a maior quantia

    emprestada, a qual deveria ser quitada em quatro parcelas semestrais, a contar da data de

    assinatura da escritura, por isso os bens hipotecados eram os mais elevados tambm.

    Tabela 3.: Participao (%) de credores por ttulo no acesso ao crdito (1793-1834)

    Ttulo de credor Perodo

    1793-1799 1800-1810 1813-1820 1821-1824 1828-1834 Juiz dos rfos - 19.2 0.7 - 11.0 Militar 11.5 - 1.8 13.8 4.2 Negociante 68.5 71.8 81.2 72.8 53.2 Outros 20.0 8.9 16.3 13.4 31.6 Fonte: Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. (1793-1834).

    Foram poucas as referncias de comerciantes que recorreram s instituies de crdito

    na cidade, aparecendo apenas o Juzo dos rfos. No total das escrituras coletadas constam

    apenas 12 registros com esse tipo de transao realizada com as heranas dos rfos, por isso

    que alm da indicao dos credores e devedores, havia a referncia a quem eram os

    possuidores daquela importncia.17 Sendo que o perodo de 1800 a 1810 foi o mais

    representativo, contando com 19,2% dos emprstimos, voltando a aparecer de novo no ltimo

    perodo dessa pesquisa, de 1828 a 1834, com 11%. Ao contrrio do que os estudos voltados para

    o sculo XVII e incio do XVIII afirmam sobre essa instituio e a sua representatividade no

    mercado de crdito,18 para a cidade de Belm foram poucas as referncias para esse tipo de

    crdito, o que pode significar o aumento da participao de credores privados nesse comrcio.

    As instituies de crdito pouco so referidas nessas transaes, apesar de existirem

    ordens religiosas na cidade de Belm possuidoras de imveis e que tambm poderiam atuar

    16 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 80, Livro 1182, 1818. 17 Entre as 12 escrituras, quatro emprstimos eram pertencentes aos rfos do negociante Antonio Teixeira, que no ano de 1803 emprestou a quantia de 2:777$973 ris aos negociantes de Belm. Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 152, 17, 158, 148, Livro s/n, 1803. Segundo Sampaio, esses valores eram arrematados em praa pblica, ficando o dinheiro sob a administrao desse juzo. O fundo pertencente Santa Casa era proveniente de esmolas, doaes que os testadores costumavam deixar para a realizao de missas pela sua alma e de quem mais dispusesse. Em ambas as situaes, o capital que ficaria fora do mercado era posto em circulao por meio dessas instituies. SAMPAIO, Antonio Carlos de Juc. Op. Cit., p. 196. 18 SAMPAIO, Antonio Carlos de Juc. Op. Cit., p. 193.

  • Revista Ultramares Revista Ultramares Revista Ultramares DossiDossiDossiDossi N 6, Vol. 1, Ago-Dez/2014 ISSN 2316-1655 102

    nesse outro tipo de mercado.19 Como se abordou acima, sabe-se que a Santa Casa de

    Misericrdia era possuidora de vrios imveis na cidade de Belm e nas vilas, os quais ela

    disponibilizava ao mercado rentista. possvel que a Santa Casa atuasse tambm no mercado

    de crdito, entretanto no se encontrou referncias para sustentar essa ideia em todo o

    perodo pesquisado.20

    A participao dos negociantes de Belm estava presente entre os principais credores

    para todo o perodo pesquisado. Desde 1793 que a participao deles segue em direo

    ascendente, entretanto o perodo de 1821 a 1834 esse percentual s tendeu a diminuir. Essa

    tendncia vlida para as outras escrituras de venda e de obrigao de dvida. Alm de nesse

    perodo se concentrarem as principais revoltas populares da capitania, pode ser influenciado

    tambm pelos processos de sequestros dos bens de portugueses estabelecidos no Brasil, sendo

    os negociantes do Par, Maranho, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro os que mais

    reclamaram por reaverem os seus bens.21 Situao que ainda carece de pesquisas para

    reafirmar essa hiptese, no s para os negociantes que atuavam no mercado de crdito, como

    tambm para os demais tipos de credores.

    19 Para o sculo XVIII, Ribeiro apresenta a participao dessas ordens religiosas no mercado de crdito na cidade de Salvador, em percentagens que oscilavam de 3,6% a 1,6% no total dos emprstimos. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econmica, comrcio de escravos, grupo mercantil (c. 1750- c. 1800). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. (Tese de Doutorado), p. 135. 20 Em 1790, vrios negociantes de Belm recorreram ao governador da capitania com o objetivo de prover de recursos a Mesa da Santa Casa de Misericrdia. No requerimento, para garantir a manuteno da Confraria da Misericrdia, solicitavam que o rei concedesse a exclusividade nos sepultamentos, igual ao que concedeu para a Bahia. Segue outro documento com um termo de acordo feito em Mesa geral sobre o regulamento das esmolas anuais com que devem entrar as 3 classes de irmos desta Santa Casa de Misericrdia. (irmos oficiais da mesa, irmos nobres e irmos oficiais) em 2 parcelas em julho e outra em janeiro, essa esmola compensaria as esmola que costumavam dar os irmos quando eram admitidos a esta Santa Casa. Assinaram esse requerimento vrios negociantes da praa de Belm, entre eles Ambrosio Henriquez, Francisco Pedro Ardasse, Feliciano Jose Gonalves e Pedro Rodrigues Henriques. AN, Negcios de Portugal (cdice 99); Cdigo do Fundo 59, Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte, cartas e anexos (1790), Par, 20/07/1790. Dessa Confraria fazia parte os homens de negcio de Belm, os quais estavam tambm presentes no mercado de venda de propriedades urbanas e rurais. No estudo que realizou para a Bahia, Rae Flory discutiu a importncia que a Santa Casa de Misericrdia tinha no mercado creditcio e como forma de ascenso social, devendo essa instituio ser reconhecida pela sociedade mercantil a ponto de ser utilizada como referncia para implantao de uma confraria na cidade de Belm. Sampaio tambm observou que na praa fluminense a Santa Casa de Misericrdia tambm no tinha a mesma representatividade que a da Bahia, embora tenha encontrado referncias de emprstimos que compreendiam 3,37% dos valores negociados. Entretanto, o autor refora que essa percentagem no demonstra a importncia que essa instituio tinha, pois dela participavam homens de negcio, senhores de engenho, em funo do seu prestgio na sociedade colonial. SAMPAIO, Antonio Carlos de Juc. Op. Cit., p. 195; RIBEIRO, Alexandre Vieira. Op. Cit., p. 132; FLORY, Rae & SMITH, David Grant. Bahia merchants and the planters in the seventeenth and early eighteenth centuries. In: Hispanic American Historical Review, 58 (4). Duke University Press, 1978, pp. 571-594. 21 RIBEIRO, Gladys Sabina. O Tratado de 1825 e a construo de uma determinada identidade nacional: os sequestros de bens e a Comisso Mista Brasil Portugal. In: CARVALHO, Jos Murilo de. (Org.). Nao e Cidadania no Imprio: Novos Horizontes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, v. , p. 395-420.

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    Em outras situaes, a apresentao de fiadores era uma forma segura de pagamento da

    dvida. Entre as 81 escrituras de obrigao de dvida, apenas em 15 escrituras os devedores

    apresentaram fiadores como garantia de pagamento. No entanto, os valores no so de

    quantias elevadas, somente em quatro registros o emprstimo era superior a um conto de ris,

    e nesses casos os negociantes reconhecidos da praa de Belm se apresentavam como garantia

    para a quitao da dvida.

    Nas situaes de crditos elevados para sortir a loja em mercadorias secas e molhadas,

    ficava a inquietao de como esses valores seriam quitados ou que garantias o credor recebia

    de que o crdito seria liquidado. Isso porque, como afirmou Baena, todo o comrcio do Serto

    erradio22. Sendo assim, o emprstimo de mercadorias alcanando elevadas quantias haveria

    de se apresentar muitas garantias de que a dvida seria liquidada. As escrituras apresentam o

    encadeamento desse mercado de crdito, onde os comerciantes de outras praas comerciais

    acabavam se subordinando aos negociantes estabelecidos em Belm. A acumulao desses

    capitais podia ser originria tanto do comrcio dos gneros dos sertes, como de outros

    produtos.

    Embora a documentao de que dispunha no garantisse essa afirmativa, Faria escreve

    que as relaes pessoais e familiares influam, e muito como forma de garantia para pedir os

    emprstimos, pelo interesse desses negociantes em ampliar a sua cadeia de relaes e de

    endividamento.23 O que se percebeu, com base nas procuraes, que os sujeitos que faziam

    emprstimos tinham alguma relao com os credores, podendo ser scios ou procuradores de

    negociantes estabelecidos da praa de Belm.24 A relao de crdito apresentava uma

    conotao moral associada honestidade individual, presteza e confiana,25 quesitos

    fundamentais para participar desse tipo de prtica. Somando-se ao abordado por Faria,

    Santos acrescenta que a honestidade tambm era um fator que atribua garantia ao mercado

    creditcio. Nesse sentido, fatores como relaes pessoais e honestidade fizeram parte do

    mercado creditcio nas sociedades coloniais. Essa relao no impedia de solicitar garantias

    22 BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corogrfico sobre a Provncia do Par. Par: Typographia de Santos & Menor, 1839, p. 170. 23 FARIA, Sheila de Castro. A colnia em movimento: fortuna e famlia no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 24 Essa situao foi encontrada, entre outros registros, na relao existente entre os negociantes Fernando Jos da Silva e Christovo Jorge da Costa Guimares. Os dois possuem uma escritura de obrigao de dvida, onde o segundo deve 8:121$000 ris, como tambm uma procurao bastante em que o primeiro procurador de Christovo Jorge. Escritura de Obrigao de Dvida e Procurao Bastante e Geral. APEP, DN, LNTP, Livro 1190/1152, doc. 506/500, 1821. 25 SANTOS, Raphael Freitas. Juramentos de Alma: indcios da importncia da palavra no universo colonial mineiro. In: VI Jornada Setecentista, 2005, Curitiba. VI Jornada Setecentista. Curitiba: Casa Editorial Tetravento, 2005, p. 494.

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    de quitao do emprstimo, como a hipoteca de bens e indicao de juros, caso ocorressem

    atrasos, o que leva a pensar no grau de subordinao presente nesse mercado creditcio.

    Sheila Faria encontrou trs tipos de mercadores para a vila de Campos dos Goitacazes.

    Ela caracteriza o primeiro tipo como fazendo parte do grupo dos pequenos comerciantes

    (sendo a maioria), o segundo dos negociantes de fazendas/usurrios e, por fim, os usurrios

    exclusivos, sendo esses os mais ricos, o que o diferenciava dos outros dois primeiros.26 Para a

    capitania do Par, o primeiro grupo pode ser o constitudo pelos pequenos mercadores e

    donos de lojas na cidade, mas tambm os mercadores que andavam a negcio no Serto.

    Esses andarilhos dos sertes gozavam de crdito certo entre os negociantes da cidade, como

    tambm possuam bens na mesma, os quais dispunham muitas vezes como garantia de

    pagamento das dvidas que contraam.

    O segundo tipo de mercador, os negociantes de fazendas/usurrios, acredita-se que

    esses conseguiam atender demanda de emprstimos para as vilas do interior, vendendo

    mercadorias para as carregaes das canoas que seguiam para essas reas. Nota-se que esses

    negociantes faziam emprstimos frequentes aos que solicitavam mercadorias para negociar

    pelo serto ou ampliar a oferta de mercadorias em suas pequenas lojas localizadas na cidade.

    Geralmente, quando esse tipo de situao ocorria, eles declaravam os emprstimos anteriores

    ao assinar as escrituras de obrigaes de dvida.27

    Com base nos registros das escrituras, havia um grupo de comerciantes que podem ser

    considerados usurrios exclusivos. Esses atuavam no comrcio de longa distncia e no

    mercado de crdito para atender tanto os mercadores da cidade como os das vilas do

    interior.28 Em Belm, essa elite de negociantes subordinava os demais comerciantes de Belm

    e dos sertes, seja na venda de fazendas e produtos para comercializarem nas reas afastadas,

    26 FARIA, Sheila de Castro. Op. Cit., p. 178. 27 Dentro dessa situao pode-se citar a obrigao de dvida de Paulo Jos Vicente Pereira, que negociava pelos sertes e residia na vila de Santarm. Em 1794, ele aviou a crdito mercadorias do negociante de Belm, Jos Mendes Leite, no valor de 2:643$540 ris, aos juros da lei (5%). Esse valor era referente s fazendas e aos gneros diversos pertencentes ao credor que ele havia comprado. Entretanto, dentro dessa quantia estava includo um dbito anterior de 352$370 ris, procedidos de [outras] 3 obrigaes [de dvida] que ele [credor], Alferes Jos Mendes Leite, havia assinado com Paulo Jos Pereira. Nessa nova escritura somando dbitos anteriores, o atraso do pagamento recorreria em juros de 5% e para segurana das ditas quantias, [o valor] principal e de seus juros, obrigava ele devedor sua [pessoa] e bens presentes e futuros mveis, semoventes e de raiz. Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. doc. 776, Livro 1181, 1794. 28 No se encontrou referncia de dvidas (ativas ou passivas) entre os negociantes da cidade de Belm e as outras capitanias ou com a praa de Lisboa. Nos testamentos havia declaraes de testadores com determinadas quantias de dinheiro em mo de scios ou negociantes em Lisboa. Na declarao que o testador Jos Antonio de Carvalho fez, ele informou ter em Lisboa, na mo de Domingos Leite Craveiro 2:700$000 ris em moeda forte, na de Feliciano Jos Colares, 900$000 ris e na de Joo Bento de Oliveira (com quem tinha uma sociedade) 214$000 ris, todas essas quantias so moedas portuguesas de prata. CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1840.

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    seja no mercado de venda de escravos.29 Dois negociantes se destacaram nos registros dos

    credores pela quantidade de emprstimo que fizeram. As cinco vezes em que Fernando Jos

    da Silva apareceu, no intervalo de dois anos (1820 e 1821), as quantias movimentadas

    chegaram a um total de 25:689$215 ris.30 Outro negociante que apareceu trs vezes como

    credor foi Vicente Antonio de Miranda,31 porm os registros seguiam para os anos de 1819,

    1824 e 1834, sendo o valor emprestado de 9:021$758 ris.32 Entretanto, esse valor creditado

    no excede ao valor que, em uma nica escritura, o negociante Casemiro Jos Rodrigues fez a

    Joaquim Ribeiro Pacheco, no valor de 11:906$968 ris, citado acima.

    A concentrao desses investimentos pode ser notada na tabela abaixo, que pelo pouco

    nmero de escrituras, privilegiou-se por adotar a anlise entre os 50% maiores (em valores e

    em percentagem).33 O grau de concentrao desses emprstimos notado pela percentagem

    dos valores apresentados, que para todo o perodo analisado sempre superior a 80%, sendo

    que para o perodo de 1813, esse nmero vai para 92%. Em 1821, foi indicado como um perodo

    de queda nos investimentos do mercado imobilirio, mas em relao ao crdito, a queda no

    foi acentuada como nos outros quadros. As sete maiores escrituras de emprstimos

    apresentaram 86,2% dos valores transacionados, em que o negociante Fernando Jos da Silva,

    citado anteriormente, confiou a Cristvo Jorge Guimares a quantia de 13:349$784 ris.34

    Entre os 50% menores havia valores que variavam entre 50$000 a 900$000 ris. O que pode

    justificar a participao ainda elevada do mercado de crdito seriam as transaes comerciais

    voltadas para as vilas do interior, tendo em vista que os valores registrados nas escrituras se

    destinavam ao sortimento de lojas e de canoas dos sertes.

    29 Nesse comrcio de escravos no se encontrou escrituras para esse tipo de venda. As referncias para esse comrcio esto em ofcio e correspondncias oficiais informando a importncia da entrada de escravos africanos nos portos da cidade. Para Belm, dois negociantes se destacam nesse comrcio, Ambrosio Henriques e Feliciano Jos Gonalves, os quais sempre encabeavam representaes para garantir o seu negcio para abastecer toda a capitania do Par e parte da capitania do Mato Grosso. Arquivo Nacional 30 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. (1820-1821). 31 Alm do mercado de crdito, Vicente Antonio de Miranda possua outras atividades econmicas. Ele era lavrador e negociante na cidade de Belm e atuava no mercado imobilirio. Em 1795, ele vendeu um sobrado na rua da Atalaia para Jos Ferreira Ribeiro no valor de 2:800$000. Nesse mesmo ano, o Sr. Miranda efetuou uma compra de 17 escravos do negociante de Lisboa, Jos Antonio Pereira, pagou em dinheiro o valor de 811$145 ris, comprometendo-se a pagar em 18 meses a quantia de 1:198$855 ris. Sendo que, no perodo de 1808 a 1834, ele assinou 13 escrituras de compra de imveis entre rurais (stios e terras de produo) todos no Rio Capim e de bens urbanos (casas e terrenos) nas ruas do Esprito Santo e na rua dos Cavaleiros, o valor movimentado nessa compra foi de 5:017$000 ris. AN, Negcios de Portugal (cdice 99); Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte, cartas e anexos (1795). Par, 05/03/1795; APEP, DN, LNTP, Escrituras Pblicas (1808 a 1834). 32 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. (1819, 1824 e 1834). 33 Comumente, os estudos buscam a anlise dos 10% maiores e dos 50% menores para entender como se apresentam essas transaes, em que a concentrao dos investimentos est no grupo dos 10% maiores. Cf.: SAMPAIO, Antonio Carlos Juc de. Op. Cit.; PESAVENTO, Fbio. Op. Cit.; RIBEIRO, Alexandre Vieira. Op. Cit. 34 Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP, Livro 1190, doc. 506/510, 1821.

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    Tabela 4.: Concentrao do valor total dos emprstimos nos 50% maiores (1793-1834)

    Perodo N.E. Venda %

    1793-1799 4 3:840$557 88.1

    1800-1810 5 12:234$316 84.6

    1813-1820 12 40:571$407 92.0

    1821-1824 7 22:738$295 86.2

    1828-1834 14 28:629$645 84.8 N.E.: Nmero de Escrituras.

    Fonte: Escritura de Obrigao de Dvida. APEP, DN, LNTP. (1793-1834).

    A concentrao desses investimentos pela elite mercantil tambm foi notada para outras reas

    no Amrica portuguesa, pois os negociantes, ao aviarem as suas mercadorias a crdito, conseguiam

    estimular a circulao e a troca dos produtos, bem como contornavam a falta de moeda em algumas

    reas. Isso fica mais evidente nos recibos de conta corrente assinados pelos comerciantes de bidos e

    da cidade de Belm, nos quais as fazendas ou a compra dos escravos e demais artigos eram quitados

    com remessas de cacau, arroz, cravo, tartaruga, farinha e outros gneros. O problema maior nesse tipo

    de comrcio eram os atrasos na quitao da dvida, em que nem sempre a garantia de um bem

    hipotecado, um fiador ou parte do pagamento realizado, cobririam toda a quantia empenhada, por isso

    a incluso dos juros para ampliar a sua margem de segurana.

    O valor dos juros podia variar, notou-se nos testamentos que os juros cobrados para os

    emprstimos eram menores que os da lei (geralmente 5%). Em 1845, um codicilo de Jacinto Jos

    Monteiro reafirmava a dvida que ele tinha com o seu filho, Raimundo de Melo Monteiro, no valor de

    1:066$766 ris.35 Aos poucos, alm dos testamentos apresentarem a preocupao com a alma e de ter

    uma boa morte, eles passaram a assentar a existncia de dvidas para serem cobradas ou quitadas

    aps a morte do testador. Sheila Faria analisa as mudanas que foram acontecendo na redao dos

    testamentos em relao aos assuntos religiosos (expressos na abertura do documento) e a incluso das

    atividades comerciais que passaram a ser frequentes, principalmente em relao s dvidas em que o

    testador era devedor. As atitudes coletivas expressas nos testamentos mostram como as prticas

    mercantis dos negociantes passaram a ser significativas tambm no momento de encomendar a alma.

    Segundo a autora, o reconhecimento da dvida tornava-se mais importante do que estabelecer o

    sufrgio pela alma,36 o que tambm caracterizava a subordinao que o devedor tinha diante do seu

    credor.37

    35 CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1845. 36 FARIA, Sheila de Castro. Op. Cit., p. 265. 37 SANTOS, Raphael Freitas. Op. Cit., p. 496.

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    No incio do XIX, essa prtica passou a fazer parte dos registros de testamentos, e mesmo as

    pessoas que no tinham atividades comerciais na praa de Belm ou nas outras vilas acabavam

    declarando que no eram devedores de nada a pessoa alguma nem pessoa alguma me deve, ou ento

    quando aparea alguma dvida mostrando crdito passado por meu punho podem pagar.38 Essa

    ressalva sobre a apresentao de crdito assinado pelo prprio punho do testador era uma forma de

    se resguardar contra possveis credores fictcios, que por ventura pudessem se manifestar diante

    dessas situaes.39 Em 1813, Joo Nepomuceno de Carvalho se preveniu para que situaes desse tipo

    no acontecessem aps a sua morte. Em seu testamento, declarou que aparecendo alguma pessoa que

    procure alguma dvida que eu deva [contendo] esta de algum dos meus livros, se pague isto logo sem

    esperar requerimento, ou diligncia alguma [ilegvel] mais que o peditrio do meu credor.40 Ao

    contrrio do que observou Santos para o incio do sculo XVIII, quando as pessoas deixavam sob a

    responsabilidade do credor e do testamenteiro indicarem o valor da dvida que tinha por receber.41

    Embora o testamento de Joo Nepomuceno demonstre o incio de uma mudana na forma de tratar o

    crdito, o qual devia ter registrado (nome e valor) para ser quitado, ainda foi possvel encontrar

    registros de testamentos em que o valor ficava em aberto, pois o testador no lembrava a quantia que

    devia ou tinha por receber.

    Em determinadas situaes, as dvidas declaradas nos testamentos, tanto nas que o testador era

    credor, como nas que ele era devedor havia indicaes de pendncias sobre a quitao das dvidas. Isso

    porque era comum os herdeiros suscitarem dificuldades para afianarem os valores devidos aos seus

    credores, fazendo com que a quitao da dvida se arrastasse por longos anos.42

    Em casos de morte, diante essas pendncias para o credor reaver a quantia emprestada, cabia

    aos herdeiros e testamenteiros fazer a quitao da dvida. Entretanto, na relao entre pessoas vivas,

    quando havia se esgotado todas as formas amigveis de confirmar a dvida e estipular um novo prazo

    para o seu pagamento, restava ao credor acionar judicialmente o devedor para ele assinar uma ao de

    juramento de alma ou uma assinao de dez dias.43 Recurso estes muito presentes no mercado de

    38 CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1817. Testamento de Anselmo Espindola Rosa. 39 FARIA, Sheila de Castro. Op. Cit., p. 271. 40 CMA. ATJP. CFL. Ofcio de Notas, 11. Vara-cvel, 1813. 41 SANTOS, Raphael Freitas. Op. Cit., p. 495. 42 FARIA, Sheila de Castro. Op. Cit., p. 271. 43 Alm desses dois tipos de processos, o auto de libelo era um processo em que se fazia citar ao testamenteiro ou administrador dos bens do falecido para faz-lo pagar a dvida. Tal como nos processos de ao de dez dias ou de juramento de alma, o credor devia comprovar que a dvida existia e solicitar ao juiz da Provedoria dos Defuntos e Ausentes da Cidade para fazer citar o responsvel para a quitao da dvida. Em 1805, Bento Pereira Chaves era negociante de grosso trato com loja aberta de negociao em a qual costumava vender ao pblico por seus caixeiros, tanto com dinheiro a vista, como a credito. Ele vendeu a crdito a Narcizo Antonio (negociante nos sertes) a quantia de 478$532 ris procedido de vrias fazendas (tecidos, linhas lenos e aguardente) que seriam pagas em seu devido tempo. Entretanto, Narcizo Antonio teve a infelicidade de falecer da vida presente na vila de bidos, quando teve incio o processo de Bento Pereira Chaves para requerer as fazendas dele e de outros dois negociantes (Luis Antonio Branco da Silva e o tenente-coronel, Francisco Jose de Faria) que tambm haviam vendido a crdito ao falecido Narcizo. Por ser um negociante sincero, de boas contas e verdadeiro em seus negcios e bem acreditado tanto nesta praa, como na cidade de Lisboa e nas mais em que tem

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    crdito da sociedade colonial, que alm de aes voltadas para o mercado creditcio, tinham uma

    representatividade social na sociedade colonial em anlise.

    Os processos de ao ou juramento de alma e de assinao de dez dias:

    Num contexto em que a circulao monetria no chegava a atender a demanda das

    atividades comerciais, outras mercadorias passaram a ser usadas como substituio da moeda.

    Segundo Baena, os soldos pagos aos soldados da capitania do Par eram feitos em produtos.

    Ao Pesqueiro Real de Joanes ficava a responsabilidade de entregar diariamente duas tainhas a

    cada soldado, e os demais funcionrios recebiam seus soldos em arrobas de cacau, cravo,

    acar, alqueires de farinha.44 Nas atividades comerciais, as trocas de mercadoria por

    mercadoria tambm ocorriam para facilitar a circulao e aquisio de produtos, em outras

    situaes se combinavam o pagamento de algum objeto: parte em moeda corrente, parte em

    gneros (cacau, farinha, peixe seco, arroz). Em 1795, os moradores do Par aparecem em uma

    relao constando a conta de venda de escravos, entre a quantidade de escravos comprados

    e o sexo de cada um, havia a forma de pagamento para quitao da venda. Roceiros, lavradores

    e negociantes associavam parte do pagamento em moeda, em gneros e em obrigao de

    dvida. Como o negociante Manoel Joaquim Bentes, que adquiriu seis escravos pelo valor total

    de 614$263 ris. Ele pagou logo por conta em arroz e dinheiro a quantia de 225$737 ris e o

    resto se obrigou a pagar em um ano.45 Outros negociantes e lavradores utilizaram a mesma

    forma de pagamento para adquirir os escravos provenientes da carregao de Jos Antonio

    Pereira, negociante de Lisboa. Como tambm foi citado nos testamentos, as dvidas e os

    crditos eram combinados com essa forma de pagamento: moeda, produto e obrigao de

    dvida, o que reforava continuamente a cadeia de endividamento na capitania do Par.

    Entretanto, outro recurso tambm utilizado como moeda nas trocas dirias era o uso da

    palavra, escrita ou falada, como garantia de pagamento. Raphael Freitas Santos afirma que

    a confiana foi o principal pilar que sustentou uma estrutura to frgil quanto as cadeias de

    correspondncia no haveria de iniciar um auto de cobrana desses sem ser verdade. Pereira Chaves havia pagado a dvida dos outros dois negociantes e apresentava as notas de crdito ao juiz para deliberar em seu favor a quitao da dvida. Torre do Tombo Feitos Findos Juzo de ndia e Mina-CX17-LETRAB-MC17; Autos Cveis de Libelo remetidos da Provedoria dos Defuntos e Ausentes da Cidade do Par em que autor Bento Pereira Chaves, 1806. 44 BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Op. Cit., p. 132; CRUZ, Ernesto. Histria do Par. Belm: Governo do Estado do Par, 1973, p. 68. 45 AN, Negcios de Portugal (cdice 99); Correspondncia original dos governadores do Par com a Corte, cartas e anexos (1795). Par, 06/06/1795.

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    dvidas ativas e passivas, visto que a no quitao de seus dbitos, poderia inviabilizar suas

    transaes futuras com outros negociantes, bem como outros transtornos judiciais.46

    A atividade mercantil palavrada entre dois negociantes se constitua em uma prtica

    comercial comum no perodo em estudo. Alm da garantia de pagamento que as boas relaes

    asseveravam no momento de solicitar um crdito a algum e a existncia de fiadores nos

    registros de obrigao de dvida, ainda assim havia situaes em que o devedor faltava com o

    estipulado e no quitava a sua dvida. Nessa situao, aps passar pelos registros de

    confirmao de dvida assinando uma escritura de obrigao, somente restava ao credor fazer

    citar o devedor para que a sua alma fosse posta como garantia de penhora da sua dvida.

    Como foi indicado nos testamentos, os testadores tinham uma preocupao muito

    grande com o destino de sua alma, e por isso, alm das missas, velas, doaes e esmolas que

    deixavam para aps a sua morte, a quitao de seus dbitos tambm era uma forma de

    garantia de uma boa morte. Diante dessa situao, a forma mais forosa de reaver uma

    quantia emprestada era a ao de juramento de alma, aspecto do mercado creditcio

    presente na capitania do Par.

    Antes de comentar sobre os autos de juramento de alma, cabe fazer uma diferenciao

    entre a escritura de obrigao de dvida e a assinao de dez dias. Na escritura de obrigao de

    dvida o devedor reconhecia o seu dbito, o motivo dele e hipotecava seus bens para garantir a

    sua quitao. No juramento de alma e na assinao de dez dias47 o devedor se esquivava em

    confirmar a existncia da dvida e o juiz entrava nessa relao para forar o devedor a se

    comprometer em pagar a dvida num determinado prazo. Caso a assinao no garantisse o

    pagamento, o juramento de alma era o ltimo trmite para o credor recorrer e conseguir que o

    devedor jurasse pela alma que a quitao da dvida seria feita. Santos ressalta que havia um

    fato curioso no juramento de alma, pois a falta de compromisso com a palavra de um

    devedor era resolvida tambm por meio da palavra.48

    Foram encontrados apenas 17 autos com o registro dos rus e os valores negociados.

    Esses autos se constituam em aes cveis em que o credor fazia citar o devedor, depois de

    tentar amigavelmente a confirmao e pagamento da dvida. Como exemplo de um processo

    desses, pode-se citar a ao de Bento Vieira Coelho iniciada em 1812. Geralmente o credor 46 SANTOS, Raphael Freitas. Op. Cit. 47 Em seu dicionrio, Raphael Bluteau, definiu assinao de dez dias como um termo forense para pagar dentro deles, ou alegar a dvida que tem sobre a existncia da mesma. Acredita-se que por isso, os credores acrescentavam aos autos, os recibos da dvida ou qual a origem das mesmas. BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio Portugus & Latino. Coimbra: Colgio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. Acessado em http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1%2C2%2C3%2C4/assina%C3%A7a%C3%B5 48 SANTOS, Raphael Freitas. Op. Cit., p. 495.

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    enviava uma petio ao juiz alegando o motivo da citao, nela informava que o devedor faltou

    com o pagamento de determinada quantia e que pretendia fazer citar para a primeira de VM

    a jurar em sua alma se devedor ou no da pedida quantia.49 A primeira audincia servia para

    apresentar o teor do processo, para fazer constar publicamente o motivo da ao. Na abertura

    dos autos contava, por exemplo, que o credor Bento Vieira Coelho, como autor e por ele foi

    dito, pedido e requerido ao dito juiz que para a presente audincia vinha citando o ru Elias

    Jos Coelho para jurar em sua alma se lhe ou no devedor da quantia do que consta a petio

    porque foi citado ele ru. Essa citao era encaminhada ao devedor, que deveria comparecer

    em juzo ou enviar quem o representasse50 para se pronunciar, caso no comparecesse, era

    julgado a revelia a pagar o dbito com o credor e as custas do processo.

    Analisando outros autos de assinao de dez dias, foi visto que Elias Jos Coelho era ru

    na citao que Jos Francisco de Castro movia para receber a quantia de 19$740 ris em

    crdito de fazendas que lhe havia comprado. Apesar de no ter aparecido na audincia de

    1810, o autor entregou um reconhecimento da dvida assinado em 1808, quando a venda foi

    realizada. Nesse documento, havia a garantia do devedor que ele entregaria gneros em

    cacau na cidade de Belm para quitar a sua dvida.51 A situao de Elias Coelho permite

    considerar dois aspectos sobre o cotidiano desse comrcio no serto, primeiramente no h

    como confirmar que essa dvida tenha sido quitada, pois o processo se encerra na citao e na

    condenao ao pagamento. Entretanto, o ru buscou um novo fornecedor de fazendas para o

    seu negcio, o que pode ser um indcio de que a relao que tinha com Jos Francisco de

    Castro ficou estremecida, a ponto de no aviar mais fazendas a crdito, a confiana foi

    quebrada. O segundo aspecto a forma como enviou os pagamentos em cacau para a cidade

    de Belm, nos recibos52 que o autor apresentou havia o registro de duas remessas de cacau:

    uma de oito arrobas na canoa de Manoel Jos Viana e outra de seis arrobas no barco do

    Trindade, tudo no valor de 14$160 ris. Acredita-se que em funo das distncias entre as

    vilas e a cidade de Belm a confiana e a reciprocidade fossem elos fundamentais nesse

    49 APEP, Caixa do Juzo Ordinrio da Comarca de bidos Autos de Ao dAlma de Bento Vieira Coelho (1811-1812). 50 Nesses autos, possvel notar a importncia que a procurao bastante e geral tinha dentro das prticas mercantis, pois entre as vrias atribuies que o procurador recebia, o juramento de alma era uma delas. 51 APEP, Caixa do Juzo Ordinrio da Comarca de bidos Cartas de Sentena (1810-1814), Ao de Assinao de dez dias em que ru Elias Jos Coelho, 1811. 52 Nos autos de assinao de dez dias, os credores acrescentavam recibos escritos pelo prprio punho do devedor, nas situaes em que o devedor no sabia ler e escrever, este recibo era redigido por algum de sua confiana. Isso seria uma forma de confirmar uma dvida acordada com os que andavam a negcio pelo Serto. A informalidade dessas relaes passa a incluir prticas formais de acesso ao crdito.

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    universo, pois em ambos os aspectos, a cofiana que se despender em entregar uma

    mercadoria a crdito era uma garantia para essas relaes.

    Havia autos de juramento em que o autor/credor solicitava tambm o auto de assinao

    de dez dias, o qual tambm se utilizava para pressionar ainda mais o devedor para quitar o seu

    dbito. No caso, esse auto de assinao de dez dias era outra forma de cobrana, na qual o

    devedor era citado para que no prazo de dez dias confirmasse a existncia da dvida e a sua

    quitao. O que se buscava nesse tipo de auto cvel era fazer condenar o devedor a reconhecer

    e a pagar a dvida que existia e se estendia sem uma definio de sua quitao. Diante disso, o

    auto de ao de assinao de dez dias tambm comeava com uma notificao do devedor. Na

    vila de bidos, o juiz citou Jos da Silva Cunha, que se pronunciou em uma certido de

    notificao, na qual afirmava que devia mesmo ao senhor Bento Vieira Coelho e que pagaria a

    quantia de 43$480 ris, procedidos de fazendas que lhe comprei muito a meu contento por

    cuja satisfao obrigo a minha pessoa e bens presentes e futuros declaro que esta dvida foi

    contrada em maio de 1807 e por ser verdade lhe passei o presente por mim feito e assinado.53

    possvel que Bento Vieira Coelho atuasse como mercador e usurrio, pois este era o segundo

    auto em que ele era credor, os dois foram encontrados para a vila de bidos.

    O que se notou ao analisar os autos de juramento de alma e de assinao de dez dias

    abertos na vila de bidos que essas dvidas cobradas pelos autores dos autos so referentes

    a compra de fazendas para serem negociadas naquelas reas. Nota-se tambm que o crdito

    nas reas dos sertes, apesar da impossibilidade de quantificar essa documentao, est

    concentrado entre os grandes comerciantes da vila de bidos e que geralmente tm algum

    tipo de relao comercial com os negociantes de Belm. Em abril de 1811, Joo Manoel Lopes

    Guimares, negociante de Belm, viajou para a vila de bidos para fazer citar ao capito,

    Bernardo Marinho de Vasconcelos, para jurar pela sua alma se era ou no devedor da

    quantia de 56$960 ris. Esse processo foi um dos poucos que apresentaram a conta corrente

    da dvida. Nela foi possvel perceber que o capito costumava viajar para Belm, onde fazia

    compras a crdito com Joo Manoel, na extensa lista de produtos constava: 2 alqueires de sal;

    5 frascos de cana, bolachas, acar, cabeas de cachimbo, bispote, contas prestas, cvados de

    diversos tecidos e linhas, anzis, chapus, unguento, remdios de botica (que vendeu para a

    filha dele) etc. Essas compras foram registradas desde 1809, sendo que o valor total das

    compras realizadas era de 61$220 ris, mas o capito Bernardo havia entregue ao negociante

    53 APEP, Caixa do Juzo Ordinrio da Comarca de bidos Cartas de Sentena (1811-1814), Ao de Assinao de dez dias em que ru Jos da Silva Cunha, 1811.

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    em Belm dez arrobas de cacau abatendo 8$500 ris de seu dbito total.54 Esses produtos

    seriam para abastecer a loja que Bernardo de Vasconcelos possua em bidos, que em troca

    pagava com cacau ou outro produto daquela regio, mas o que pode ser significativo desse

    auto o registro das atividades comerciais que esses sujeitos teceram. As transaes

    comerciais entre eles eram realizadas com certa frequncia, mas passados trs anos sem a sua

    quitao completa, foi necessrio usar outras regras para receber o que lhe era devido.55

    Todo o processo de juramento iniciava com a palavra do credor que o ru era devedor

    e terminada com a palavra do devedor confirmando a sua dvida e o possvel pagamento.56

    H de se ressaltar que o no comparecimento do devedor implicava a confirmao da dvida,

    mas o credor, por sua vez, tambm deveria proferir de f sob os Santos Evangelhos que a

    ao e a cobrana que movia tambm eram verdadeiras. Com isso, as normatizaes religiosas

    sobre as prticas comerciais do perodo buscavam assegurar que as trocas e outras transaes

    comerciais seriam quitadas, independente de haver um recibo de compra ou no. A prpria

    preocupao em registrar as dvidas em testamento para garantir a quitao de suas

    pendncias pode ser reflexo disso.

    Sendo que o mercado de crdito alm das relaes que se estabeleceram na cidade de

    Belm, tem os seus desdobramentos nas vilas do interior da capitania. Embora os valores

    destacados nos processos de juramento de alma ou de ao de dez dias sejam de quantias,

    muitas vezes, inferiores s encontradas para Belm, esse mercado de crdito impulsionava as

    trocas mercantis existentes nas vilas dos sertes, articulando para alm da capital essa teia de

    endividamento. Descortinando as relaes de dominao e de subordinao existente nas

    prticas mercantis da capitania.

    As escrituras de obrigao apresentam esse grau de endividamento de Belm e como os

    negociantes dessa praa atuavam tanto na cidade como nas vilas do interior. A documentao

    54 APEP, Caixa do Juzo Ordinrio da Comarca de bidos Autos de Ao dAlma de Joo Manoel Lopes Guimares (1811-1812). Havia outra ao de Joo Manoel contra Vicente Marinho de Vasconcelos, irmo de Bernardo e tambm comerciante em bidos, no valor de 567$120. Pelas referncias feitas nos autos, a relao de Joo Manoel se estendia aos outros comerciantes daquela vila, o que pode indicar que essa teia de endividamento se direcionava para outras vilas daquela regio. 55 Em outra ao de juramento de alma entre negociantes de bidos, foi includa uma conta corrente de produtos comercializados desde 1806. Em 1812, Manuel Luis Esteves fez citar a Librio Ribeiro pela quitao total da dvida que tinha no valor de 28$880. O negociante vendeu chapus, frascos de vinho tinto, corda de viola, cvados de tecidos, frascos de cana, uma montaria e outras coisas, tudo por 65$510 ris. Como parte do pagamento Librio Ribeiro realizou vrias remessas de cacau e tartaruga no valor de 36$630 ris, restando a quantia de 28$880 que era cobrada pela ao. A existncia da montaria entre os objetos da compra indica que Librio comprava as mercadorias de Manoel Luiz e seguia para as reas mais afastadas da vila para negociar esses produtos e trocar por cacau, tartaruga e outros produtos dos sertes. APEP, Caixa do Juzo Ordinrio da Comarca de bidos Autos de Ao dAlma de Manuel Luis Esteves (1811-1812). 56 SANTOS, Raphael Freitas. Op. Cit.

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    usada nessa discusso permitiu visualizar a complexidade desse mercado de crdito, em que

    as escrituras apresentaram os sujeitos envolvidos nesse comrcio em Belm e o controle que

    tinham sob os demais comerciantes. Numa situao mais cotidiana, os autos de juramento de

    alma e de assinao de dez dias respondem a alguns aspectos desse comrcio nos sertes,

    onde a subordinao se estende aos comerciantes que andavam a negcio pelas reas mais

    afastadas das vilas, onde o elo de equilbrio entre essas relaes desiguais eram a confiana e a

    reciprocidade.

    O comrcio realizado nos sertes se articulava com os negociantes da cidade de Belm

    por meio das mercadorias que seguiam para serem comercializadas e os produtos que eram

    coletados e enviados para as casas comerciais. A subordinao presente nessas relaes era

    mantida por meio de outras formas institucionais como as escrituras de contrato de sociedade

    mercantil e da procurao geral e bastante, instrumentos jurdicos que acabavam asseverando

    as trocas comerciais tanto na cidade de Belm como nas vilas do interior da capitania do Par.

    Fontes e Referncias Bibliogrficas

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