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Reflexos do Sul em Dyonélio Machado
Southern reflections in Dyonélio Machado
Jonas Kunzler Moreira Dornelles1
Não sei pensar a felicidade, o Sul, sem um frêmito de temor
Nietzsche, Ecce Homo (1908) Abstract: Dyonélio Machado, born in Quaraí, on the frontier with Uruguay, never stopped pondering over the
particularities of the southern Brazilian context in which he was born. From the starting point of his
productions, like Política Contemporânea: Três Aspectos (1922), O Estadista (1926) and Um Pobre Homem
(1927), through his intermediary pieces such as Desolação (1946) and Passos Perdidos (1947), to his later
sample, such as Fada (1982), his art reflected upon the conditions and subjectivities of the “pampa” and of
southern cities. In his pages, we will find not only poetic descriptions about the contrasts between the South and
the tropics, but also a subtle analysis of the singularity of the southern psyche, which we will try to reconstruct
from his interviews, his autobiographical works and from the personality of some of his characters. In a way, we
can think of Dyonélio’s works in a comparative dialogue with other southern writers such as Apolinário Porto-
Alegre, Alcides Maya, Cyro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto and Pedro Wayne. The hermeneutic
interpretation of his work is enriched when discussed in a correlation with this strand of authors who criticized
regionalist mythologies, establishing a contrast with mainstream hegemonic narratives. The relation with Cyro
Martins’ work is especially important given that this author, as much as Dyonélio, had a Freudian education,
and would use the psychoanalytic resource as an interpretative key to comprehend regional identities. Also, all
the power and value of Dionélio’s southern figures, the stray aspect of their horizons, would be found in a dialog
with another author, this time a regional anthropologist and historian, Manoelito de Ornellas. A deep character
and also somewhat demeaned by his contemporaries just as Dyonélio, Manoelito will offer a great opportunity
to enlarge our comprehension of southern culture and identities. The aspects of ancestry and limitlessness in
Dyonélio’s propositions will thus gain visibility beyond mere theoretical idealism.
Keywords: Dyonélio Machado, Rio Grande do Sul Literature, Gaucho identity, Brazilian Literature, Gaucho
Literature.
Resumo: Gaúcho nascido na cidade de Quaraí, fronteira com o Uruguai, Dyonélio Machado não deixou de
refletir sobre as particularidades do contexto sulista em que cresceu. Do ponto inicial de sua produção, com
Política Contemporânea: Três Aspectos (1922), O Estadista (1926) e Um Pobre Homem (1927), passando por
suas obras intermediárias, como Desolação (1946) e Passos Perdidos (1947), até as amostragens finais, com Fada
(1982), sua obra refletiu as condições e subjetividades do pampa e das cidades do Sul. Em suas páginas
encontraremos não só descrições poéticas dos contrastes entre o Sul e os trópicos, como também uma sutil
análise da psiquê especificamente sulista, a qual buscaremos reconstituir a partir de suas entrevistas, de sua obra
autobiográfica, e do caráter de algumas de suas personagens. De certa maneira, podemos pensar a obra de
Dyonélio em um diálogo comparatista com outros autores sul-rio-grandenses, como nas representações
regionalistas de Apolinário Porto-Alegre, Alcides Maya, Cyro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto e Pedro
Wayne. A interpretação hermenêutica de sua obra se enriquece quando a pensamos em correlação com essa
vertente de autores, todos críticos às mitologias regionalistas, estabelecendo um contraste com as narrativas
hegemônicas “mainstream”. A relação com a obra de Cyro Martins é especialmente importante, dado que esse
autor, assim como Dyonélio, tinha formação freudiana e utilizaria o recurso psicanalítico como chave
interpretativa para a compreensão das identidades regionais. Ainda, toda a força e o valor da figura sulista
dyoneliana, o desgarrado de seus horizontes, se encontraria num diálogo com outra figura, desta vez autor de
antropologia e historiografia regionais, Manoelito de Ornellas. Personagem profunda, e também algo aviltada
por seus contemporâneos como Dyonélio, Manoelito oferecerá subsídios para ampliar a compreensão da cultura
e das identidades da região Sul. As ancestralidades e os deslimites das proposições de Dyonélio ganharão, assim,
uma visibilidade para além do mero idealismo teórico.
Palavras-chave: Dyonélio Machado, Literatura do Rio Grande do Sul, identidade gaúcha, Literatura Brasileira,
Literatura Gaúcha.
1 Licenciado em Letras pela UFRGS (2014). Mestrando pela mesma universidade na área de Teoria, Crítica e
Comparatismo (2018). Bolsista PROBIC/FAPERGS no grupo de pesquisa Discursos Filosóficos sobre a Arte.
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1 Introdução
Explicar a obra de Dyonélio Machado, formalizar uma análise que parta de
características de seu texto, suas recorrências, não é tarefa conclusiva. Formado na sutil arte
da ironia freudiana, por meio de seus estudos em Psicanálise, Dyonélio aprendeu muito cedo a
multiplicar interpretações, pulverizar explicações, encontrando sentidos múltiplos nos
enunciados ditos, dobrando e redobrando a linguagem. Quando ele mesmo era alvo de análise,
como nas entrevistas ou em sua autobiografia, então costumeiramente derivava em
humorismo e chistes evasivos, que impediam uma explicação unívoca do leitor ou
entrevistador, o que, ironicamente, impediu até hoje explicações redutoras, que o
“enquadrem” numa explicação unívoca.
Este posicionamento irônico de Dyonélio derivava para o plano formal de sua
literatura. Suas obras pareciam sempre transformar, expandir, gêneros e formas já correntes,
na atitude tipicamente paródica do modernismo. Escrevia romances que se passavam nos
primeiros anos de nossa Era Cristã, para atualizar nosso olhar sobre o presente. Reconstruía o
ambiente efervescente da capital carioca de sua época, apenas para mostrar a antiguidade da
corrupção da classe política. E, por fim, não era ele mesmo um “lobo solitário das estepes do
pampa” que, no entanto, modernizava a Província introduzindo entre nós a moderna
psicanálise como método interpretativo?
O presente artigo busca criar um primeiro esboço, a partir de referências e sugestões,
para uma hipótese de compreensão do Sul em Dyonélio. Recorrendo ao comparatismo com
outros autores e obras, gostaria de propor um duplo movimento de Dyonélio: o relevante
aspecto de modernidade, aliado a um movimento de reencontro com (o que seja) o arcaico.
Este movimento poderia ser resgatado em suas representações do Sul, num espaço de
fronteira entre dois contrários, e poderia ser visto como uma contribuição de Dyonélio para se
pensar a cultura e a sociedade sul-rio-grandense.
2 O Sul nas primeiras obras
Em sua primeira obra publicada, Política Contemporânea: Três aspectos (lançado em
1922), flagramos um jovem Dyonélio positivista, movido por um impulso republicano de
intervir nos assuntos políticos de seu tempo. Seus apontamentos começam com uma crítica às
políticas monetárias da República Velha brasileira, que seriam em sua visão mal
administradas pelo presidente Epitácio Pessoa.
Em seguida, o autor reflete sobre o campo do Direito Internacional, buscando pensar
as Políticas Exteriores com a América Latina no pós-guerra, propondo, em seguida, uma
política de desarmamento nacional muito diferente do ameaçador militarismo do presidente
brasileiro à época. Esta proposta visaria a anular uma conspiração que Dyonélio, com uma
impressionante sagacidade juvenil gestada no positivismo do PRR, via surgir em Washington.
Terminada a 1ª Guerra Mundial, os Estados Unidos voltaram-se para o controle das Américas,
e nosso futuro deputado estadual buscava anular a possível justificativa das intervenções
yankees com uma aura pacifista, em que nossa límpida exterioridade desarmada
deslegitimaria os receios norte-americanos. O Sul como latino-americano.
Será na terceira parte da obra que Dyonélio irá abordar diretamente o Rio Grande do
Sul, buscando expor seu papel nas revoluções tenentistas que aconteciam na época. Faz um
testemunho do apoio verbal de Borges de Medeiros àquela, ouvido de um general que viera
lhe convocar. Borges teria apoiado a revolta contra os governos do “café com leite”, mas
reagido à falta de controle do movimento, dizendo que era preciso dominá-lo. O texto encerra
com uma crítica às políticas de Epitácio Pessoa, que pusera o país em crise, e uma análise das
traições que impediram o êxito dos revolucionários.
Escrito às vésperas da “Revolução de 1923”, ainda no calor dos primeiros movimentos
tenentistas que culminarão na “Revolução de 1930”, o texto revela um jovem Dyonélio
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profundamente esclarecido dos potenciais rumos do país, ansioso por participar no processo
republicano de seu tempo. Teremos, portanto, uma visão algo global, de um Sul que se divide
num eixo América do Norte/Sul, e, em seguida, no eixo Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul
(Capital/Província), como partes da Federação, digamos.
A realidade política carioca, que Dyonélio irá conhecer por conta de sua
especialização em psiquiatria nos anos 1930, seria objeto de seu romance O Estadista, escrito
no ano 1926. Neste primeiro momento de sua ficção, publicada apenas postumamente em
1995, o grande cenário é a Capital da República Velha, o Sul surgindo mais como contraste
do que por centralidade. Nesta obra, o oportunismo, o nepotismo e a corrupção dos políticos
brasileiros surgem numa denúncia cheia de ironia e “humour” bem machadiano (bem ao estilo
de um outro Machado, o de Assis).
A vida social, o ambiente, é a modernidade dos anos 1920: boulevards cheios de calor
humano, rumores de megazines nos cafés, chanceleres estrangeiros e a moderna dança do fox-
trot e do charleston, cabarés e champanhes, bungalows, aviões... os políticos da incipiente
república já se reviram para conseguir empréstimos estrangeiros que os permitam lutar pelas
grandes causas que os movem: suas próprias, de suas famílias, de suas amantes, pouco
importando a realização dos projetos nacionais.
Entre retiros em Petrópolis, o mar em Botafogo, o ambiente “tropical” da Capital
Federal aparece em dado momento como um contraste com ambiente do Pampa, por meio da
nostalgia do senador Sampaio, no capítulo O Pampa:
O pampa não se descreve: sente-se. A musa das planuras tárticas recorre a imagens
simples, para pintar a estepe. Quando a erva cresce e as flores, desabrochadas,
flutuam lentamente ao vento, os poetas dessas regiões apartadas comparam, segundo
Le Play, a campina movediça a um “oceano”, que o vento mansamente agita. É um
oceano, também, para Huc: um oceano, um grande oceano, “por um tempo, calmo”.
Será ingênuo, certamente. Mas vivo! [...] Em todos os tempos, a planura, vasta,
ilimitada, muda, penetrante, imóvel, só tem inspirado estados d’alma vazios. Dir-se-
ia que o seu oco suga quanto existe dentro de nós, exaurindo-nos, como uma bomba.
(MACHADO, 1995. p. 159)
O Sul surge numa analogia às estepes tártaras e ao oceano. Logo a seguir no texto,
reflete-se no olhar tristonho de Sampaio, quando este volta de uma visita ao lar, um olhar que
alguém “teria igualmente visto aí, como eu, perpassando como num sonho, essas coxilhas
rasas, eriçadas de um pelo escasso, que o minuano rijamente encrespa” (idem. p. 160), nas
ondulações inconfundíveis das regiões meridionais da América. Da analogia com a estepe
passamos à savana e a uma delicada terra grávida, todas estas em oposição à aspereza
enérgica das “rudes escarpas do norte”. Este primeiro trecho irá se encerrar com uma máxima
que irá se repetir: “[...] o pampa não se descreve: sente-se.” Só sentindo-o é que poderemos
venerá-lo, pois é com o sentimento que suas partículas sobem ao coração.... “Ora, o pampa -
querem saber como é que o pampa vibra em mim? [...] Eis, pois: para mim, o pampa é o
silêncio em paisagem” (idem. p. 160). O pampa seria esta terra que demarca sua geografia nos
rostos e corações sulistas, o silêncio em paisagem, que não se descreve, se sente.
O contraste com o Norte volta logo a seguir, na descrição da noite carioca:
As noites do trópico são abertamente despudoradas. Não tem malícia, porque tem
desejos furiosos, escancarados, sem dissimulação. Como diferem dessas noites frias,
vastas e brancas, do Sul - essas noites que parecem princesas-monjas, feridas,
irremediavelmente e desesperançadamente, do mal do amor! Pensando nas
primeiras, salta-nos logo à mente uma morena travessa, oriental, desenvolta. As
últimas solvem-se num prestígio ancestral, imponderável e intangível, como a dama
doutros tempos do poeta admirável: Hay en ella el mistério de los viejos marfiles.
(idem. p. 163)
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Teremos ainda, na memória da filha de Sampaio, Joaninha, um trecho onde Dyonélio
descreve um “pré-Louco do Cati”, figura algo dostoievskiana de louco da aldeia, que surge de
um remoto passado familiar à menina durante os delírios febris de uma doença, talvez
representando seu medo de morrer naquela condição. A garota relembra a figura que surge de
uma nuvem de poeira durante uma tempestade, quando a família morava numa cidade da
fronteira no Rio Grande do Sul.
O que teremos neste primeiro momento da obra de Dyonélio é este contraste entre
Capital e o mundo do Pampa. Tal concepção irá se desenvolver a partir de sua próxima obra
ficcional, esta sim publicada, Um Pobre Homem (lançado em 1927). Esta obra, um dos
maiores livros “não-lidos” da literatura nacional, censurado e tirado de circulação à época,
permanecendo até o presente com quase nenhuma recepção crítica, no qual teremos aquele
que segundo Érico Veríssimo foi o primeiro livro urbano de contos regionalistas no Estado.
Ali encontraremos outra forma de modernidade em Dyonélio: certos contos em forma
clássica, que guardam assuntos contemporâneos, e formas inovadoras utilizadas para assuntos
históricos (ver BITTENCOURT, 1999). E o duplo movimento, uma ideia de Sul em
Dyonélio, que tenho tentado definir, começa a ganhar corpo.
O grande modelo da delicada modernização do Rio Grande do Sul poderia ser o conto
homônimo, Um Pobre Homem. Ali temos um agricultor que busca modernizar sua terra
comprando maquinário para plantio, mas que, no afã de pagar os empréstimos do maquinário,
acaba deixando a própria filha morrer. Teremos também outro exemplo no conto Melancolia,
onde um maquinista que carinhosamente cuida do estacionamento das locomotivas, acaba
sendo substituído desumanamente, assim como as máquinas mais antigas. “Ele era como uma
máquina!” diz o nome de um dos capítulos do conto.
Em contrapartida, teremos outro conjunto de contos, cruciais para o desenvolvimento
da ideia de arcaico. No conto A Chaga, teremos o relato de um paciente que adoece de uma
ferida incurável. Depois de tentar todos os tratamentos, curandeiros, tentativas de suicídio, o
paciente acaba reencontrando seu médico, já sem a mancha pútrida que lhe atormentava. Ele
narra ao amigo médico o processo de cura que funcionou efetivamente, algo embaraçado:
depois de tudo tentar, ele lambeu a ferida, imitando um cão. E aquilo funcionou.
Em Reunião Familiar, temos novamente um conto que ocorre via relato, nesta
moldura de história dentro da história, tão antiga quanto Sherazade. Desta vez não numa
relação médico-paciente, mas em uma reunião familiar. Em meio aos festejos na casa de um
juiz, um caso complicado surge no debate. Um conhecido fazendeiro foi assassinado por um
peão meio indígena, sem motivo claro. Buscam-se razões, como desejo pela esposa do
estancieiro, inveja de sua riqueza, etc., até que um dos convivas solta sua interpretação: o
assassinato é mera manifestação de um cérebro perfeitamente saudável.
A confissão expressa do assassino fora de que, ao saírem ao campo, seu patrão estava
com penteado numa risca divisória perfeitamente centralizada. Quando o patrão se abaixou
em sua frente para trabalhar, o peão avistou aquela marca perfeita e resolveu testar a pontaria
do machado, para ver se acertava em cheio. Para a personagem que decifra o caso, o
criminoso, não possuindo costumes civilizados, noções de justiça civilizadas, e vivendo deste
sempre em meio natural, não entendia a gravidade de seu ato... como se acertar um machado
na risca do cabelo fosse uma prática semelhante a praticar arremesso em uma árvore, longe de
se definir como o crime que é, para nós, civilizados.
3 Uma nova forma de retratar o gaúcho
Conforme avançamos nas representações sulistas de Dyonélio, este duplo movimento
de modernidade e arcaísmo vai se desenvolvendo com mais clareza. Poderíamos pensar em
sua próxima obra, Os Ratos (data de lançamento original: 1934), como outra indicação desse
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processo. A modernização de Porto Alegre nos bondes, nas repartições burocráticas, as
vitrines com produtos, todo um horizonte de progresso, que incessantemente se afasta da
problemática vital pela qual passa Naziazeno. A própria obra incorpora também a
modernidade da técnica do fluxo de consciência para tratar de um tema tão miseravelmente
antigo como a miséria e a fome.
Mas, se temos por um lado o mundo urbano, no processo de industrialização que
chegava com Getúlio, qual seria o “outro mundo”, o passado, que se encontra mas também
jamais se realiza no centro? A obra dá poucos indícios das origens de Naziazeno, apenas dois
trechos na obra inteira revelam memórias prévias, e um deles é apenas a memória de uma tia
melodramática que gostava de ler um mesmo livro, Paulo e Virgínia, várias e várias vezes
(MACHADO, 1979, p. 140).
Na outra memória (idem. p. 46), Naziazeno lembra um passado bom, onde grupos de
crianças andavam livres pela rua, e havia aconchego, calor humano. Sua mãe o chama e
oferece o perseguido leite, bebida que, naquela época, no entanto, havia abundante. Esta
memória sugere um passado em uma cidade do interior, mas poderia ocorrer também no
próprio subúrbio da capital onde a personagem já habitava; não poderíamos dizer ao certo.
Correlacionando a obra de Dyonélio a de outros escritores gaúchos com quem
simpatizava, talvez possamos desenvolver um indicativo deste problema, onde outras
trajetórias ficcionais regionais se aliariam às vivências periféricas de Naziazeno, e das futuras
personagens de nosso autor. Lembremos, por exemplo, de Miguelito, do Ruínas Vivas
(lançado em 1910) de Alcides Maya, onde o jovem campeiro ao final da obra abandona seu
pampa rumo a um lugar outro, cheio de raiva e desilusão pela constatação do fim das
estruturas rurais nas quais cresceu.
Não teria vagado Naziazeno também Sem Rumo (aproveitando o nome da obra de
Cyro Martins, de 1937), como a personagem Chiru, que, saindo do campo, chega sem destino
certo nos bolsões periféricos de Porto Alegre? Talvez seja deduzir demais, em uma obra que
Dyonélio preferiu não demarcar regionalismo. Ainda que Os Ratos não se beneficie tanto do
comparatismo, a correlação com estes escritores irá ajudar a desenvolver a compreensão de
suas próximas obras.
A obra de Alcides Maya, como Cyro Martins mesmo assume (MARTINS, 1983), foi a
inspiração ficcional para a concepção que gostaria aqui de tratar: o desenvolvimento do tema
do “gaúcho a pé”, como Cyro Martins definia sua trilogia literária. A indicação de certa
vertente de romances regionalistas que enfoca os aspectos menos gloriosos das figuras
campeiras, que poderia incluir também Pedro Wayne e Ivan Pedro Martins, numa comunidade
de escritores com os quais Dyonélio certamente poderia estar em diálogo.
As mitologias atacadas seriam aquelas conservadoras: O mito do gaúcho heroico, da
miscigenação com indígenas, da democracia racial, da produção sem trabalho, todos sem base
histórica alguma, enumerados por Dacanal (2004), em seu texto Origem e função dos CTGs.
Segundo o autor, estas ficções criadas pela elite agrária nos finais do século XIX buscavam
legitimar a elite para o povo, e diferenciar-se da elite do resto do país. Seguiram intactas até
os anos 1970 pelo menos, quando começaram a ser atacadas pela historiografia acadêmica.
Mas, dada a permanência e a reciclagem de seus discursos, poderíamos dizer que, no ideário
do CTG e de certos programas de rádio e jornais, tais invenções ainda circulam por aí como
se fossem fatos de um passado histórico real.
4 Dyonélio em diálogo - 1º Momento
Como poderíamos pensar a obra de Dyonélio dentro desta tradição de obras críticas
das mitologias regionais? A resposta estaria no ciclo de obras que vão de Louco do Cati
(1942) a Nuanças (1981), a “tetralogia da opressão”, no conjunto de obras que Grawunder
(MACHADO, 1995) busca alegorizar no movimento do calhambeque “Borboleta”. Para a
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autora, nestas obras o carro representa o “impulso adiante”, rumo à liberdade, do grupo de
sonhadores retratados no ciclo ficcional. Na figura do carro simpático, humanizado pelo
grupo, que com cuidados mecânicos básicos, peças encontradas em qualquer lugar (como um
fusca ou kombi...), permitem aos viajantes encontrar novos horizontes sem muito dinheiro.
A centralidade do carro no movimento da obra revela um aspecto positivo, para aquilo
que, por muito tempo, era visto como aspecto desagregador da vida no campo. Barbosa Lessa
carinhosamente lembra em seu texto Porteira Aberta (FISCHER, 1998) como a chegada dos
carros mudou o cenário da vida na fronteira, diminuindo a necessidade incontornável dos
cavalos como meio de transporte, a partir do acesso ao automóvel.
Neste sentido, a obra de Dyonélio apresenta a chegada da modernização no Sul por um
viés positivo. Os automóveis são incorporados à vida cotidiana sem oposição, sendo vistos
por um viés humanizador, apegado até, espécie de animal a ser cuidado, não uma mera
tecnologia a ser substituída quando defasada. Mas é importante lembrar que o carro, na
tetralogia de Dyonélio, não é de posse do grupo de mecânicos. Esses “gaúchos motorizados”
incorporam o Borboleta em sua viagem, mas ainda são próximos das figuras empobrecidas de
Cyro Martins. E, em dado momento, o grupo fica sem carro, dependendo de novo de
estratégias alternativas de deslocamento, como caronas ou ônibus.
Ao final de Desolação (1944), o mecânico Maneco acaba ateando fogo ao carro, num
gesto talvez simbólico de seu sufoco, de sua falta de saída. O veremos no início da próxima
obra, Passos Perdidos (1945), caminhando desnorteado, sem horizonte certo, até sua
conclusão em Nuanças. Como indica o “perdido dos passos”, não temos um eco de Sem
Rumo, de Cyro Martins? Para onde vão estes gaúchos, agora que foram destronados monarcas
das coxilhas e não são mais os centauros do pampa, sem cavalo, sem carro, sem nada?
Gostaria de sugerir aqui que este ciclo de obras de Dyonélio poderia ser pensado como
uma espécie de tetralogia do “gaúcho a pé... de novo”. Após adaptar-se à tecnologia do carro,
incorporando-a em seus costumes, o gaúcho acaba inadequando-se novamente, desprestigiado
pela suspeita totalitária. Rumando perdido, gaúcho a pé mais uma vez. Tais obras
testemunham o surgimento da classe operária sul-rio-grandense, e sua coação pelo governo de
Getúlio Vargas. Ainda que tal governo fortaleça o processo de industrialização do país, acaba,
por outro lado, reprimindo focos operários, com medo de que sua organização autônoma
viesse a produzir reações próximas aos movimentos de esquerda, sob os auspícios da
crescente revolução soviética.
Dyonélio com sua obra revelaria talvez aspectos da “modernização periférica”
(CEVASCO, 2014), onde a modernização chega ao país sem sua contrapartida social, por via
da imposição das elites que buscam apenas adaptar-se às mudanças históricas. Este processo
de modernização ocorre desigualmente, sendo Os Ratos um ótimo modelo para as
contradições deste processo. Os gaúchos de Dyonélio não temem a chegada da tecnologia: ela
lhes agrada, eles convivem bem com ela. É o processo econômico desigual que os empurra
para fora, que os inviabiliza como sujeitos, que os enfraquece.
Sua obra acompanha então o movimento de esclarecimento político dos escritores
contra-hegemônicos regionais, na denúncia do que ocorre factualmente nos substratos
populares gaúchos, opondo-se à mitologia regionalista da elite. Dyonélio acrescenta a este
grupo o elemento da modernidade: os automóveis, a maquinaria de colheita (como no conto
Um Pobre Homem), ou a maquinaria de locomotivas (como em Melancolia), muito adaptadas
a suas personagens.
5 Dyonélio em diálogo - 2º Momento
Dyonélio acompanha o movimento de representação do “êxodo rural” gaúcho, que
inicia com Ruínas Vivas de Alcides Maya, e se desenvolve com Cyro Martins. No entanto, há
o aspecto contrário a destacar no caráter dos gaúchos de Dyonélio, e que vai de encontro aos
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de Alcides Maya. A problemática diz respeito ao vitalismo destas figuras, ou seu processo de
degeneração. Para Maya, numa notação ainda meio Naturalista, era quase a própria “etnia
gaúcha” que se enfraquecia em atavismos. Dyonélio, quem sabe, não concordaria em atribuir
essa fraqueza meramente à saúde atávica dos gaúchos?
É aqui que poderíamos começar a introduzir o caminho inverso proposto pela obra de
Dyonélio, o caminho rumo ao arcaico. Poderíamos indicar a genealogia desta problemática
nos primórdios da representação da figura regional, no diálogo entre as representações de José
de Alencar, e Apolinário Porto Alegre. Segundo uma versão hoje algo contestada, Apolinário
teria publicado O Vaqueano em reação à obra O Gaúcho, de José de Alencar. Segundo
ZALLA (2010):
A inadequação de Manuel Canho, protagonista do enredo, ao gaúcho mítico,
centauro da pampa, desenhado pelo próprio Alencar, seria o motivo de maior
insatisfação: excessivamente misantropo, pese a paixão avassaladora por Catita,
avesso ao convívio social e politicamente alheado, dado o envolvimento nos
preâmbulos da Guerra dos Farrapos ser mero fruto de vínculo pessoal com o
padrinho Bento Gonçalves, não condizia com o tipo planejado pelo escritor nem
com “o idealismo com que o professor Apolinário Porto Alegre desejava educar as
novas gerações”. (p. 6)
O gaúcho de José de Alencar, criado em leituras de gabinete, é uma figura vulcânica,
selvagem, cruel, e bastante inapto para convívio social civilizado (como na obra de
Sarmiento, Facundo, “el gaucho malo”), levado sempre pelas paixões pessoais, sem entender
com clareza os movimentos políticos que ocorriam em seu tempo. Apolinário irá criar seu
“vaqueano” inclusive porque “gaúcho” era um termo ofensivo à época, próximo de bandido,
pirata, ladrão de gado (como na vertente platina de seu uso. Ver REVERBEL, 1986).
Apolinário recriara em reação sua personagem sul-rio-grandense, partindo do
testemunho direto, e afinando as descrições com costumes e linguagens autênticos. Alencar
não pusera alguma figura castelhana ou negra, e se equivocara em vários aspectos de sua
descrição, como fazer gaúcho montar em égua. Mas é interessante que a personagem de
Apolinário não deixa de guardar certa melancolia advinda do pampa, seu próprio vaqueano
cometendo suicídio ao final, ainda que por uma causa política.
O que temos aqui é uma dupla problemática: por um lado, a figura do gaúcho é vista
como inculta e bárbara, incapaz do convívio social adequado, e, no entanto, forte, saudável.
Por outro, quando adequadamente anexado na civilização, servilmente funcionando como
vaqueano dos militares, se processa uma degradação de sua vitalidade, que a adaptação
civilizatória lhe proporciona. Não seria este processo de degradação a antecipação daquele
que irá ocorrer em Ruínas Vivas, a raça gaúcha murchando em todo seu vigor?
A contribuição de Dyonélio aponta para uma descrição do processo psicanalítico deste
processo de “domesticação do gaúcho”, ao incorporar o pensamento freudiano como
interpretação destas representações sulistas. A figura do Louco do Cati aqui é representativa
da culminância deste processo, que gostaria de definir com a chegada do “Mal-Estar da
Civilização” nos pampas. A imagem mórbida do Louco circulando pelas ruas e campos do Sul
seria o resultado desta instrumentalização política da figura do gaúcho. Ao simultaneamente
premiar ou punir seus barbarismos, suas degolas, ao calor dos interesses sociais, desculpa-se
que essa domesticação irá incluí-lo no quadro geral da sociedade. Cria-se, assim, seu mal-
estar.
O que dificulta a interpretação da obra sob este aspecto é uma sugestão ainda pouco
explorada pelas análises que se fazem do livro. Remeto a outro trabalho (DORNELLES,
2014), onde desenvolvi mais detidamente a imagem que gostaria de propor novamente aqui:
O Louco do Cati como um ex-combatente. Esta definição faz a passagem das interpretações
que o enxergam como uma vítima, fugindo passivamente de um passado terror, para um
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sujeito que, na verdade, também agiu ativamente, atacando, degolando, também sendo ele o
Cati.
Podemos reconstruir sua trajetória a partir de suas memórias (nos parágrafos que se
destacam por reticências, páginas: 20, 25, 26, 29, 33, 34, 254 em MACHADO, 2008), por sua
postura sempre tensa em cena, algo militar (como nas descrições das páginas 15, 18, 27, 61,
81, 182), além das próprias indicações de Dyonélio a respeito do caráter do protagonista
(“Tudo que se vê nesta figura não é bastante para abominá-la. Certa crítica (...) esquece que
foi menino, que teve pais. Mãe sobretudo. Que viu horrores na infância, a servirem como
elemento para um futuro mentecapto” (MACHADO, 1995. p. 29)). A crítica tem esquecido,
como Dyonélio já havia notado, este aspecto agressivo de sua personagem.
Estabelecida a ideia de que o Louco tenha lutado, possivelmente degolado, em alguma
batalha gaúcha, deduzimos em seguida que provavelmente fora entre as disputas das
chamadas revoluções de 1923 e 1930, já que era um menino em 1893, e às vésperas do Estado
Novo, já se arrastava em seu estresse pós-traumático. O Louco teria sido este sujeito que serve
a uma causa, como um cão serve ao ser humano como ferramenta. Seu desejo inconsciente de
ser como os heróis gaúchos, degoladores, presente em suas memórias infantis no início do
livro, o levariam a tornar-se também ele um combatente.
Sendo degolador, é reprimido e se torna o fragmento de ser humano que surge em cena
no início. A última memória, no final da obra, o mostra como lobisomem atacando mulher.
Teria sido a proibição da degola, sua criminalização, a partir dos anos 1930, o que “castrou”
seu vitalismo? Não podemos saber. Em algum momento, sua imensa agressividade se voltou
contra si mesmo, no processo de autocensura gerador do Princípio de Realidade, que Freud
explica em Além do Princípio do Prazer.
O conflito com o Cati surge do dilema de que, tanto a favor como contra, a única
forma de combater o inimigo era utilizando-se das mesmas técnicas. Sua obsessão por
retornar ao quartel no intuito de destruí-lo representa esse desejo cruel de externalizar uma
agressividade que o Louco tem direcionado apenas para seu interior. O Louco teria tido
incentivo para degolar, depois é censurado, e só liberta quando vê que o Cati já está destruído,
retornando, assim, a sua juventude.
Em sua figura, teremos a etapa final do processo de empobrecimento da vitalidade
gaúcha, iniciado pela “domesticação” de Apolinário, expresso pelo naturalismo de Alcides
Maya, e levado adiante por Cyro Martins (João Guedes reduzido à miséria em Porteira
Fechada). Louco do Cati seria então a ruína viva em pessoa. Mas só retornando a Freud
poderíamos indicar como esse processo ocorreria.
É necessário revisitar Mal-Estar na Civilização, onde este explora a ideia de Cultura
como tentativa de arbitrar relações humanas, criando uma hierarquia do poder que vai da
nação ao poder coletivo, e esta contra o poder individual. Este sentimento de civilização se
põe contra a agressividade inata do homem, contra seu instinto de agressão próprio da
sobrevivência, que haveria no estado de Natureza. No início, o processo civilizatório seria
positivo, pois tem como objetivo unir as pessoas e parte das pulsões de Eros, o princípio
agregador. Mas agressividade contida se volta contra a psique do sujeito (no que Freud chama
de Superego), criando torturas autoinfligidas, voltando à agressão visível contra o exterior
para um interior impalpável, e subjetivo, da própria pessoa. Este processo de subjetivação
traumática é o que gera as neuroses, que, por seu caráter “civilizado”, em geral não
definiríamos como trauma.
Serão então estas feridas invisíveis que, criando a subjetividade neurótica, “civilizam”,
domesticam o selvagem e arcaico. O Louco do Cati seria o último estágio do processo de
instrumentalização do gaúcho por grupos e instituições que o civilizam. Dyonélio, como
médico de formação psicanalista, estaria interessado em expor este processo, para quem sabe
curar estas enfermidades de seu povo? É assim que aparecem dois “pontos de fuga” da
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neurose: a infância e aquilo que chamei de arcaico.
Como diria Dacanal em sua celeuma com o payador Jayme Caetano Braun: “Era uma
figura quase hierática em seu arcaísmo crispado e convicto. Ele não era o passado. Era um
monumento ao passado. E nele acreditava com a fé inabalável dos neófitos” (DACANAL,
2004, p. 88). O polêmico intelectual aqui se bate com o movimento arcaizante do
regionalismo, encarnado na figura do payador gaúcho. Sua vida teria sido erigida como
resistência, torcendo o pescoço ao processo civilizatório, que o afastava do mundo pastoril do
pampa. Jayme Caetano Braum aqui encarna a saúde meio anticivilizada do arcaico (mas no
texto de Dacanal não fica claro que isso seja totalmente positivo).
Recorrendo a outra obra de Freud, Totem e Tabu, podemos desenvolver uma
concepção genealógica do retorno ao arcaico em Dyonélio, da gênese das restrições da moral
e da religião. Freud imagina um cenário onde um violento “pai primevo” domina todo bando
de primatas, possuindo todas as mulheres do bando para si. Os filhos o temiam e o invejavam,
ao mesmo tempo em que tinham seu comportamento agressivo e egoísta como modelo ideal.
Após sofrerem diversas violências e exclusões, estes se reúnem e cometem o assassinato do
pai. Estes filhos/irmãos arcaicos, temendo possuírem o mesmo destino do pai, sentindo-se
culpados por seu destino, acabam renunciando às suas posições de poder e, por via desse
sentimento de culpa filial, irão definir a criação de leis e tabus, como forma de preservar sua
nova sociedade da mesma ameaça enfrentada pelo “pai primevo”.
Assim, poderíamos dizer que o primeiro “Direito”, a primeira “Lei” civilizatória surge
na decorrência de um assassinato (assim como Moisés foge para o deserto por ter assassinado
um soldado romano...), sofrendo uma internalização na renúncia do instinto como forma de
preservação social: “civilização”. No caso do Louco do Cati, somente vencendo o quartel,
conquistando esta ameaça edipiana do “pai primevo de 1893”, que domina a região, é que os
irmãos poderão construir uma Lei (a “Revolução Federalista” seria esta guerra entre irmãos
que não sucedem em construir o Direito):
O Cati era um Subestado. Era um Estado para aquela região. Não raro entrava em
conflito com o verdadeiro Estado, e o vencia. Polvo (Norberto gostava muito da
palavra pejorativa “polvo”), estendia tentáculos, atava, arrastava, triturava. [...] não
respeitavam nem as mulheres. (MACHADO, 2003, p. 30)
Tendo ajudado com sua parte, o Louco do Cati acaba preso à sua própria necessidade
de se adaptar à lógica civilizatória que se utilizou dele (e se utilizou também simbolicamente,
já que estamos falando também de representações literárias), e que, após isso, o rejeita e
expulsa. E é interessante que, ao reencontrar o Cati ao final do livro, Dyonélio descreva seu
processo de retorno à juventude, justamente uma época pouco determinada pela moralidade.
O que sugerimos aqui é que esta obra não está tomando partidos, a não ser da própria
liberdade da subjetividade arcaica do gaúcho. A obra expõe o enfraquecimento da sua força
moral que acontece quando o gaúcho é simultaneamente glorificado por sua vitalidade
desbragada (e, portanto, algo violenta), ao mesmo tempo que sofre coerção para se adaptar à
uma moralidade que o civiliza, que o utiliza para finalidades outras.
Em suas memórias, registrada em Cheiro de Coisa Viva, Dyonélio afirma:
Criança mais Criança cria o Caudilhismo, em que a criança sádica e sabida
(geralmente as crianças maiores) mobiliza no seu interesse a criança propriamente
dita, quer dizer: confiada, sonhadora, idealista. Pois não são esses os atributos da
Infância mais legítima? (MACHADO, 1995, p. 93)
Dyonélio está neste trecho comparando a infância com a Província sulista, onde esta
espécie de encanto e ingenuidade característica o define: “O Rio Grande do Sul se encontrava
no estágio da barbárie: bebia por uma guampa e sentava numa caveira de boi” (MACHADO,
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1995, p. 93). Uma certa beleza vicejante, como a infância ainda sem limitações morais e
sociais, que, no entanto, é por isso facilmente instrumentalizada pela criança mais velha nos
sadismos, caudilhismos, etc.
A ideia que encontramos aqui é a própria tese de doutoramento de Dyonélio,
Definição Biológica de um Crime, onde o que definimos como “crime” é visto como um
fenômeno natural, por vez sobredeterminado pelo social, na chamada dúplice atitude do meio
social: consentindo e punindo sucessivamente as mesmas práticas (BARBOSA, 1995, p. 62).
Dyonélio ali concorda com Freud de Totem e Tabu, dizendo que habitam em todos um
homem primitivo (Id) junto de um civilizado (Superego). Voltamos ao ponto do conto
Reunião Familiar: o tipo indígena que comete um “crime” por não distingui-lo de suas
práticas naturais.
6 As fronteiras
A problemática que estas questões levantam para o plano da moral são inúmeras, mas
aqui resgatamos o ponto inicial de nosso texto. A ironia de Dyonélio não faz questão de uma
interpretação unívoca, reducionista. Ante os clamores que possam surgir, das preocupações
com os futuros de nossas criancinhas em um mundo de criminosos em potencial, poderíamos
apenas apontar para o engajamento real de Dyonélio no plano não ficcional: como médico e
deputado, nunca deixou de “modernizar” nossa sociedade, sendo abundantes os testemunhos
de sua dedicação humanista em todas as áreas a que se dedicou.
No entanto, para quem tenta “psicanalisar” Dyonélio, enquadrando em uma explicação
definitiva, sobra uma risada chistosa e um esgar em meio à noite, do chamado “lobo solitário
da literatura gaúcha”. Os ecos do arcaico, uivos, as degolas, os lobisomens, a loucura, o
mecânico que vira um incendiário... há um horizonte intangível para nossa racionalidade
civilizada, em que se preserva em Dyonélio, no que proponho aqui como retorno ao arcaico.
Se Borges define o “culto da coragem” como representativo da cultura gaúcha, O
Louco do Cati é uma obra que teve a coragem de falar do medo no pampa, a descrição dos
processos de “amedrontamento” campeiro continuando nas próximas obras da Tetralogia da
Opressão. Mas é importante lembrar: se na primeira é o Cati que faz o gaúcho adoecer, nas
próximas será o fascismo getulista. Em outras palavras: é o processo de institucionalização
“civilizatória” que o sacrifica, não um atavismo racial.
Dyonélio teria coragem ainda de abordar as possibilidades de fabulação, e do feminino
mesmo, no Sul. Sua obra Fada (1982) desenvolve explicitamente estas questões por um viés
freudiano, ampliando a discussão sobre os pontos que abordamos. E podemos pensar ainda as
obras da Trilogia da Libertação, que se passam no Império Romano, como um elogio à
influência da cultura oriental no Ocidente (a mística do cristianismo primitivo, visto em sua
relação com o dionisíaco).
Não é outra a proposta de uma ruptura profunda de Velho Sanches: a paixão pela
gnose, e a projeção de aeons uns sobre outros, é a adesão ao sincretismo e suas influências
não ocidentais. Em sua descentralização irônica, Dyonélio estaria bem à vontade entre pós-
modernos e pós-coloniais. E não seria meio neobarroco seu Deuses Econômicos, obra
abundante de latinismos lado a lado com o vocabulário marxista e freudiano? Dyonélio
continuador do sânscrito de Apolinário Porto-Alegre, antecipando, por exemplo, Moacyr
Scliar, Donaldo Schüler ou Sérgio Jacaré, em seu interesse por sincretismos heleno-gaudérios.
7 Considerações finais
Partilhando desse duplo aspecto modernizador/arcaizante, ironicamente impedindo-
nos de “enquadrá-lo” em qualquer movimento, gostaríamos de deixar por fim esta
contribuição de Dyonélio dentro do escopo do que poderíamos chamar de uma “antropologia
do pampa”. Sua proposta para o Sul agrega então diversos pontos de modernidade (fluxos de
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consciência, as locomotivas, o marxismo e a psicanálise), mas carregaria uma crítica radical
dos processos civilizatórios, com sugestões de “rotas de fuga” de sua neurose: a infância, o
arcaico, a gnose do Velho Sanches, o dionisíaco e os orientalismos de Evandro de Deuses
Econômicos. Aqui somente Manoelito de Ornellas seria tão ousado em um projeto de Sul.
Sua proposta em Gaúchos e Beduínos, que aponta para origens não ocidentais do povo
sulista, não poderia ser menos revolucionária. Como vemos em Ieda Gutfreind, no
Historiografia Riograndense, é uma proposta tão radical que acaba sendo tratada num
capítulo à parte, tamanha a dominância da vertente lusitanista em nossa historiografia. Não
seria o gaúcho uma espécie de árabe que foi para a América expulso de Portugal? A sugestão
não poderia ser mais terrível, para muitos do pensamento conservador no Sul.
O gaúcho beduíno de Miguelito reencontra assim a primeira analogia de Dyonélio...
das savanas, das estepes, e dos desertos, com o pampa. Neste Sul meio não ocidental,
poderíamos, enfim, reencontrar as vozes esquecidas pela civilização: indígenas, árabes,
negros, mulheres, gaúchos, a própria voz do minuano, a força dos rios, das tempestades,
reencontrar-nos com a Natureza como uma expressão do Uno Primordial, dizendo assim de
modo nietzschiano. Nossa existência ganhando intensidade como expressão da Vontade de
Potência, num Sul para além do bem e do mal.
É este Sul que resiste em ser domesticado ou enquadrado pelas ideologias, que se
resguarda por trás da ironia de Dyonélio, sempre buscando a saúde como resistência frente às
doenças “da moralidade”, que desde Nietzsche e Freud aprendemos a ver como suspeita perda
da vitalidade. Justamente o tipo de valor doente que parece voltar de maneira quase cíclica em
uma cultura neurótica, como a que hoje testemunhamos, numa doente ideia de que só mais
repressão e mais repressão poderia salvar nossa sociedade.
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