edward said e p estilo tardio - alcides vilaça
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MATRIAdeste livro, publicado pos-
tumamente, resulta de uma srie deconferncias e de um curso (ltimasobras e estilo tardio) ministrado no in-cio da dcada de 1990na Universidadede Columbia, em que Edward Said foiprofessor. Estava ele empenhado no livro,
j contratado com uma editora, quandoveio a falecer, em 2003. A verso final de-vemos aos crticos Richard Poirier, quereviu os manuscritos, e a Michael Wood,que organizou o material e escreveu a ti-ma Introduo.
Said desses raros crticos que equili-bram com rigor e delicadeza o talento dainvestigao terica, traduzido na defini-o e sustentao de categorias objetivas,e a paixo pela leitura, entendida nos ter-mos amplos e intensos com que a defendeem vrios momentos de outro belo livroseu, Humanismo e crtica democrtica,sobretudo no captulo O regresso filo-logia. Em Estilo tardio, impressiona-noscomo esse conceito, trazido com forapropulsora do ensaio de Theodor AdornoO estilo tardio de Beethoven, de 1937,expe-se e afirma-se ao longo da anlisede produes artsticas muito diferentes,sem que a consistncia do conceito me-canize a aproximao crtica das obras,e sem que o interesse crtico-afetivo deSaid por cada uma delas deixe esquecero que h de incisivo e instigante no con-ceito. Para que logo nos demos conta da
variao e da abrangncia das obras emque se corporifica o estilo tardio, adiante-mos alguns dos artistas de que o crtico seaproxima: Mozart, Beethoven, Richard
Strauss, Jean Genet, Lampedusa, Luchi-no Visconti, Glenn Gould, Konstanti-
nos Kavfis, sem falar na onipresena de
Adorno, permanentemente reconhecidocomo mestre problemtico da dialticanegativa, como encarnao mesma do es-tiloem questo e como inspirador, aindaque revelia do mestre, de desdobramen-tos positivos, j que Said no renuncia aoimpulso objetiva para aberturas crticas eao prazer possvel da subjetividade.
Que estilo tardio? Melhor que a
aventura de defini-lo de modo peremp-trio e ficar na contramo de seu desg-nio crtico, mais identificado com a ins-tabilidade que com a harmonizao reconhec-lo em suas propriedades e in-
junes, que Said vai postulando medi-da que costura reflexes e anlises. Numadas formulaes, o crtico identifica o es-tilo tardio como uma forma de senes-cncia e sobrevivncia concomitantes(p.155). Na dialtica dessa concomitn-cia, exercida por alguns artistas no fim desuas vidas, no se consente que as ltimasobras sejam um coroamento previsvel damaturidade, recompondo em definitivoum legado j familiar, pelo contrrio: ha emergncia inquieta de um novo idio-ma, caracterizado por intransigncia,dificuldade e contradio em aberto.O exemplo de Beethoven (que servira a
Adorno para a fundao do conceito) muito esclarecedor: mesmo aos ouvidosde um leigo em msica, o limiar sbito daestridncia agnica das cordas, no quar-teto Rasumovsky, ou os to desnorteadoscomo sublimes tateios meldicos da so-nata Hammerklavier, obras da fase finaldo compositor, j no falam de um dra-
mtico equilbrio da arquitetura musical.So formas exiladas no tempo, obras em
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que o domnio tcnico recusa a serenida-de madura ou alguma totalizao para seabrir a inquietaes e perplexidades deuma esttica rarefeita, extempornea, emque o artista em pleno controle de seumeio esttico abandona a comunicao
com a ordem social estabelecida de queele parte para chegar a uma relao alie-nada e contraditria com ela. [...]Nadada essncia do Beethoven tardio redu-tvel noo de arte como documento(p.28-29). Ao tratar de Beethoven, Saidtrata tambm de Adorno, estabelecendouma sugestiva ponte entre ambos, umaafinidade entre modelos crticos rigo-
rosos que no abrigam nenhum tipo deconciliao.
Adorno se vale do modelo do Beetho-
ven tardio para suportar o fim em sua
forma tardia e em si mesmo, em seus
prprios termos, no como preparao
para algo ou obliterao seja l do que
for [...]; Adorno, como Beethoven, se
torna uma figura tardia por excelncia,
um comentador inoportuno, escanda-loso e mesmo catastrfico do presente.
(p.34)
Talvez no seja ilegtimo deduzir que,nessa aproximao relevada por Said, asrenncias de Beethoven e de Adorno coroao fraudulenta do absoluto tmuma raiz comum, ainda na intuio ou
j na interpretao da modernidade frag-
mentria. A insatisfao esttica e a refle-xiva se espelhariam como convices deum passado que, embora vencido, retor-na e concorre para dar nova referncia aimpossibilidades do presente.
Said no parece comungar com osduros impasses de Adorno: para o autorde Estilo tardio, o prazer e a privacida-de persistem, lembra o amigo e crtico
Wood (p.15). Outro admirador seu, Sta-this Gourgouris, adverte que, para Said,
toda crtica postulada e praticada na su-posio de que ter algum futuro (p.16).De fato, na obra do discpulo as radicali-dades do mestre so a um tempo reco-
nhecidas, homenageadas e relativizadasnuma perspectiva crtica que se interessapela tenso entre o que se representa eo que no se representa, entre o articu-lado e o silenciado (p.19), sem conferira essa tenso um sentido de impasse cul-tural e poltico. Ao estender o conceitode estilo tardio para obras to variadas,Said nunca deixa de anotar a significao
de algum tipo de ganho, uma comoosingular, uma especfica vivacidade que sealoja no centro de uma linguagem to al-tiva como ameaada pela impropriedade,anacronismo ou estranheza, em seu lugarde exlio.
Em Richard Strauss, obras tardias co-mo o Capriccio, as Metamorfoses ou asQuatro ltimas canesdeixam no crtico
uma impresso marcante, por sua forapersistente associada ao teor estranha-
SAID, Edward. Estilo tardio.
Trad. Samuel Titan Jr.
So Paulo: Cia. das Letras, 2009. 192p.
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mente recapitulativo e mesmo passadis-ta (p.45). No que considera um retornode Strauss disciplina formal setecentista,
v tambm reaes melodia infinita de
Wagner, com seu mpeto arrebatador esua impresso esmagadora de indistinoe turbulncia emocional (p.56). Tal re-torno , de fato, elemento constitutivode um estilo que, recuperado do passado,reinterpreta-o luz do presente ao mes-mo tempo em que age sobre a contem-poraneidade com o critrio de um antigoe respeitado ethos.
Do Mozart autor da pera Cosi fantutte, Said revela a capacidade de conju-gar uma fbula to leviana e inconseqen-te a uma partitura to soberba, reconhe-cendo, nessa forma de descompasso, osinal de uma instabilidade libertina cujodestino se projeta para a morte. Em Mo-zart e Strauss, portanto, por razes e mo-dos to distintos, a produo tardia acusa
em si mesma a negao de uma harmonianatural, um descompasso a ser exposto,
uma relao crtica, em suma, entre umaforma e uma (ou mais de uma) poca.
Jean Genet, sobretudo o da pea Umcativo apaixonado, outro artista em que
Said reconhece, tanto na obra como naconduta pessoal privada ou pblica, umaespcie de presena militante do provis-rio, da conjugao de um lirismo espan-toso e de humor obsceno, voltada paraa dissoluo de identidades ao mesmotempo que empenhada em manifesta-es polticas. Ele pe tanto empenhoem negar que algo de bom possa provir
da permanncia ou da estabilidade bur-guesa (e heterossexual), que mesmo essasimagens positivas da morte se dissolvemna turbulncia social e na agitao revo-lucionria que so o centro de seus in-teresses (p.108-9). Adorno mais uma
vez lembrado, para dividir com Genet apercepo de que no h traduo segu-ra ou equivalente para nenhum pensa-
mento, razo pela qual, acrescenta Said,uma obra como a Mnima moralia,com
O intelectual palestino Edward Said (1935-2003), autor de Estilo tardio.
FotoMohamedAzakir/AgnciaReuters
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seu refinamento e energia antinarrativa[...] pode muito bem servir de perfeitoacompanhamento metafsico para a pom-pa funerria e a rouquido escabrosa de
Genet (p.106).Uma das operaes mais sugestivas do
livro a aproximao entre o romance Oleopardo, de Lampedusa, e o filme hom-nimo de Visconti. Esses dois aristocratas,lanando um ltimo olhar para uma clas-se e uma ordem agonizantes, falam dadesintegrao do sul italiano: o romancede Lampedusa paga seu tributo tradio
de um gnero popular, primeira vista li-geiro, mas conduzido com profundo pes-simismo; o filme de Visconti acrescentaao romance de Lampedusa uma espciede divagao cinematogrfica proustiana,um interessefin-de-siclepela abundncia,pelo cio e pelo prazer excessivo de clas-ses privilegiadas (p.130). Alm da recor-rncia a Proust, artista absorvido por um
painel mundano em dissoluo, Said lem-bra a presena de Gramsci, com sua an-
lise cheia de expectativa sobre a condiomiservel do Sul e a necessidade polticada ligao entre o campesinato sulista eo proletariado nortista. Nesse inesperado
quarteto Lampedusa, Visconti, Prouste Gramsci , Said abre seu compasso deanlise e considera a medida da fora ex-pansiva de obras cujo estilo d forma etestemunho inesperados a contradiesem aberto.
Detenho-me, por fim, no belo captu-lo dedicado a Glenn Gould, O virtuosocomo intelectual, ttulo j de si provo-
cador, pela associao incomum. Emboratenha sido tambm compositor, comointrprete que esse pianista canadense senotabilizou e interessou ao Said msico,ouvinte privilegiado e crtico envolvidocom o estilo tardio. Gould um artistaansioso, dominado por uma profundaagitao que nasce, digamos assim, deobsesses racionalistas. Encontrou na
obra de Bach, em especial nas VariaesGoldberg, das quais certamente o in-
Theodor L. W. Adorno (1903-1969). Jean Genet (1910-1986).
FotoPeterHillebrecht/AssociatedPress
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trprete mais meticuloso (h registro emDVD, do qual constam tambm sugesti-
vas observaes do pianista sobre a peabachiana), uma lio de padres e estru-turas musicais, uma organizao discursi-
va que lhe traz, a par da fruio esttica,o prazer intelectual de quem reconhecea possibilidade uma representao org-nica do mundo. Recupero esta sntese deSaid: A msica de Bach serviu a Gouldcomo arqutipo de um sistema racionalcuja potncia intrnseca consistia em serarticulado resolutamente contra a nega-o e a desordem que nos assediam portodos os lados (p.151). Dotado de tc-nica admirvel, o virtuosismo de Gouldcontorna a inclinao quase irresistvelpara a performance pblica espetacular:concentra-se na linguagem musical como
quem se extasia diante de uma segura erara ordenao do tempo e do espao,
ordem maior, que a nitidez dos toquesdeve sublinhar e desenvolver, sob o co-mando de uma rigorosa articulao inter-na, que a sua significao essencial. Huma espcie de invejvel autismo nesseGould intrprete, que abandonou as salasde concerto e as execues pblicas para,em casa ou nos estdios de gravao,concentrar-se inteiramente na sua inven-tio (no sentido de redescoberta, retorno)da msica de Bach. Said v com clare-za a condio de um Gould ao mesmotempo produto e reao a esse mundocompetitivo dos instrumentistas celebra-dos, dos distribuidores, dos empresriose dos executivos da indstria fonogrfica.O pianista, que no despreza a tecnologiamoderna e leva em conta os efeitos delanas novas gravaes, imerge numa redes-
coberta autntica de formas passadas, noaparente anacronismo de reinventar Bach
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O pianista canadense Glenn Gould (1932-1982)durante apresentao na dcade de 1950.
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diante do gosto dominante de novidadei-ros vazios ou passadistas romnticos. Nainterpretao sempre reflexiva de Gould,Said reconhece a clareza, o didatismo, opropsito sistemtico, que no deixam derevelar as inflexes de uma subjetivida-
de profunda, idiossincrtica e polmica.Essa combinao de extremos j haviasido assinalada em Bach por Adorno:Bach nega obedincia tendncia dostempos (o gaudium, ou style galant deMozart, entre outros) tendncia que elemesmo conformara, para assim conduzi-la sua verdade mais ntima, a emancipa-o do sujeito na objetividade de um todo
coerente que deriva da prpria subjetivida-de (p.145-6). O segmento que sublinheiformula uma emancipao que Adornono mais parece reconhecer como possi-bilidade da nossa moderna vida danifi-cada emancipao que, todavia, noestaria interditada na viso de Said, paraquem o estilo tardio, do modo como ocrtico o localiza e o expande nas obras
analisadas, tambm identificado comouma plataforma para modos de subjeti-
vidade alternativos e irredutveis.Essa plataforma instigante pode dar
ainda muitos frutos. Se h, como j hou-ve, restries possveis aplicao do con-ceito (para quem julga, por exemplo, queSaid no considerou mais verticalmente acircunstncia histrica de cada obra que
interpretou), os desdobramentos propi-ciados pela compreenso do estilo tardiopodem ser estmulos imediatos (sob oeterno risco da mecanizao) para novoslances interpretativos. Aqui no meu cantode leitor brasileiro, algumas fantasmago-rias sorriram para mim, enquanto ia len-do Said: o Machado de Assis maduro, oDrummond dos anos 1950e da mquina
do mundo, o Graciliano de S. Bernardo,a Clarice de A hora da estrelapareciam
algo insatisfeitos com as canonizaes jobtidas. esse, alis, o efeito das gran-des provocaes crticas: colocar-nos emnovas encruzilhadas. de uma delas queme dirijo ao leitor para recomendar comentusiasmo este legado de Edward Said.
Alcides Villaa poeta, crtico e professorde Literatura Brasileira da USP.@ [email protected]