ex nihilo nihil fit -lucretius
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EX NIHILO NIHIL FITConsiderações a partir de Lucrécio
O axioma, ou como se lhe queira chamar, ex nihilo nihil fit,é comummente
atribuído a Lucrécio, embora tal formulação não se encontre nessa precisa forma no De
Rerum Natura. Lucrécio diz, mais exactamente Nullam rem e nihilo gigni divinitus
unquam1 ou nil posse creari de nihilo2 ou então nil igitur de nihilo posse fatendum est3.
De qualquer modo, a ideia é exactamente a mesma do axioma referido. Lucrécio,
todavia – e isso é bem sabido –, não é o autor da proposição. Ele limita-se, com alguma
variação que adiante se comentará, a reproduzir uma tese de Epicuro, que deve ter sido
originalmente escrita no De Natura4. Não importa, neste momento, estudar as relações
entre o De Natura de Epicuro e o De Rerum Natura, nem entre aquele e a Carta a
Heródoto, também de Epicuro, de que esta se supõe ser um resumo para uso prático. Em
qualquer caso, basta a referência ao facto de que também na Carta a Heródoto a tese se
encontra, a tese segundo a qual nada pode provir, ser gerado, a partir daquilo que não é,
que não existe5. Mas ainda que a fonte de Lucrécio pareça ser Epicuro, tal não significa
que o axioma tenha sido originalmente formulado por Epicuro. Na verdade, Aristóteles
afirma expressamente a tese6. E Galeno, muito tempo mais tarde, dirá que se trata de
uma proposição admitida por todos os filósofos antigos7. O texto de Galeno é, aliás,
muito interessante. Ele diz que se trata de uma proposição aparente à razão, isto é, uma
proposição manifesta, evidente, que não admite discussão, dada a sua natureza
extraordinariamente óbvia. Trata-se, continua, de uma proposição indemonstrável pela
razão, e possui o mesmo estatuto das proposições lógicas evidentes, como, por exemplo,
o princípio segundo o qual somadas quantidades iguais a quantidades iguais resultam
quantidades iguais. O axioma referido surge no contexto de uma série de outros
1 LUCRÉCIO, De Rerum Natura, I, 151.2 Idem, I, 156-157.3 Idem, I, 206.4 Veja-se a tentativa de reconstrução da estrutura do De Natura de Epicuro em SEDLEY, D., Lucretius and the Transformation of Greek Wisdom, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 94 e ss.5 Cfr. BAILEY, C. (ed.), Epicurus. The Extant Remains, Hildesheim, Georg Olms Verlag, reimp., 1989, p. 20.6 Cfr. ARISTÓTELES, Physica, 190 a 32 e ss. Mas veja-se, todavia, o que se diz, em contrário, na nota 32, bem como a referência aí indicada.7 Cfr. GALENO, De Methodo Medendi, I, 4. 10; cfr. HANKINSON, R. J., (trad., e comentário), Galen. On The Therapeutic Method, Oxford, Clarendon Press, 1991, p. 126-127. Para a lista dos autores que admitem expressamente a tese, e respectivas referências, veja-se SORABJI, R., Time, Creation and the Continuum, Chicago, The University Chicago Press, 1983, p. 246, nota 65.
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igualmente evidentes que são "nada ocorre sem causa", "tudo passa a ser a partir de algo
existente", "nada é aniquilado totalmente", isto é, nada passa para o absoluto não ser, "é
necessário que tudo seja ou afirmado ou negado", por exemplo. Quer dizer, mesmo que
para nós, hoje, não seja claro que o ex nihilo nihil fit seja considerado como um
princípio lógico, o texto de Galeno não deixa lugar a dúvidas: ele possui, pelo menos,
um estatuto semelhante, na medida em que é evidente, indemonstrável, básico e
fundamental. Essa é, aliás, a razão da escassez de provas para o axioma, pois não há
prova do absolutamente evidente e fundamental, a não ser, como se verá na
argumentação que Lucrécio vai buscar, uma vez mais, a Epicuro, mediante a redução ao
absurdo.
Antes de se passar para a análise do significado do axioma, parece ser necessário
primeiro fazer algumas considerações sobre a sua localização e sentido na economia do
De Rerum Natura. Na verdade, o ex nihilo nihil fit não possui, para Lucrécio, nem
também, evidentemente, para Epicuro, um significado meramente ontológico, isto é,
não se trata de uma simples, ainda que fundamental, tese sobre filosofia da natureza,
num sentido muito geral da expressão, como parecerá ser o caso, por exemplo, em
Aristóteles, em que o axioma é discutido exactamente no âmbito da "Física", no estudo
do ente natural. Como é próprio do epicurismo, todo o conhecimento natural tem um
significado terapêutico ou, então, deve ser totalmente posto de lado. Não deve haver
verdades, dizia Epicuro, que não curem alguma doença da alma, pois, se o não fizerem,
serão certamente vãs e insignificantes e, provavelmente, não deverão mesmo ser
tomadas como verdades, mas como proposições inanes. Ora Lucrécio começa a sua
investigação sobre a natureza precisamente com este princípio8, de que diz ser o
primeiro de todos, o começo da investigação não só no sentido empírico, mas sim
lógico ou formal9. Deve, pois, começar-se por saber isto. Ora para um epicurista isso
significa que se está em presença de uma proposição fundadora, não só da fisiologia,
mas também – é a mesma coisa – da terapêutica. Quer dizer, é uma verdade básica para
quem quiser apaziguar e tranquilizar a sua alma, para quem quiser ser feliz, saber que
nada provém de nada. O intuito de Lucrécio – evidente tendo em conta o termo
divinitus, na sua formulação principal do axioma – é a autonomização do mundo de toda
e qualquer eventual influência divina, pois, como se sabe, os homens têm medo dos
8 Assim também na Carta a Heródoto, em que o axioma é a primeira das verdades imperceptíveis para os sentidos. Falando com rigor, é mesmo a primeira verdade apresentada, pois as considerações anteriores de Epicuro dizem respeito ao método e são formais.9 Cfr. De Rerum Natura, I, 150-151: "Principium hinc cujus nobis exordia sumet, Nullam rem...".
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deuses, porque pensam que os deuses controlam ou descontrolam o mundo, o desenrolar
das coisas e dos processos naturais. Neste sentido, a proposição segundo a qual nada foi
feito a partir do nada parece querer dizer que o mundo é, por um lado, eterno, e, por
outro lado, que subsiste e se organiza por si e em virtude de si, da sua estrutura
imanente, e que, por isso, nada tem a ver com os deuses e que eles nada têm que ver
com o mundo e com o que se passa nele. Assim sendo, não se deve procurar nenhum
tipo de intencionalidade no universo, nenhum tipo de sentido, e isso significa que ele
não foi feito, que não é produto de nenhum controle vindo do exterior. Que o mundo
não foi feito do nada significa, assim, em primeiro lugar, que a ele não subjaz uma
lógica que lhe seja estranha, que não seja estritamente natural, quer dizer, o mundo é
simplesmente como é e não se devem procurar intervenções divinas escondidas por
detrás dos fenómenos.
Todavia, a conexão entre o axioma e a natureza radicalmente prosaica do mundo
não é imediatamente óbvia e carece, por isso, de uma certa justificação. É certo, como
se disse, que esta parece ser a intenção primordial de Lucrécio, tanto mais que o termo
divinitus – por influência divina, por causa divina, ou algo assim – não aparece sequer
no texto de Epicuro no qual Lucrécio se terá baseado. A introdução de divinitus é,
assim, significativamente intencional e parece, como se disse, indicar que Lucrécio quer
mesmo indicar que o axioma deve ser entendido como fica dito, isto é, como um
processo de expulsão dos deuses do mundo, pois o que ocorre é totalmente autónomo.
Não sendo os deuses responsáveis pelo mundo, a alma pode então libertar-se de medos
fantasmas, de opressões imaginárias. A intenção de Lucrécio é, pois, clara.
Contudo, do ponto de vista filosófico, a introdução de divinitus, se torna claro o
intuito, destrói, parece, a argumentação. E isso é assim porque, por um lado, se restringe
o alcance do axioma – o que significa que ele deixa de ser uma lei geral das coisas – e,
pior, acaba por constituir uma espécie de petitio principii, pois não se pode concluir que
os deuses nada têm que ver com o mundo a partir de uma premissa que afirma isso
mesmo. É esta, parece, a opinião de alguns comentadores: "In this form, his premiss
loses its universality and can no longer be inferred from the inductive evidence he
adduces; for God is not "nothing", and the fact that particular things are always seen to
come from other particular things, does not prove that there is not a deity (instead of
another particular thing) at the beginning of the chain. Moreover, since his avowed
purpose is to disprove divine creation, the presence of this word in his premiss makes
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the argument circular"10. Deste ponto de vista, a inovação de Lucrécio relativamente a
Epicuro seria claramente infeliz e destruiria o próprio argumento epicurista.
Há, aqui, outro aspecto que deve ser realçado. O criacionismo a que Lucrécio se
opõe parece ser aquele que aparece descrito no Timeu e não aquele a que estamos
habituados a considerar tendo em conta a tradição cristã. Quer dizer, o criacionismo
antigo pressupõe qualquer coisa – tudo ou, pelo menos, alguma coisa, uma matéria a
partir do qual os deuses formariam as coisas11. Assim, tanto o criacionismo com o anti-
criacionismo antigos se enquadram totalmente no âmbito da noção de geração,
produção, passagem ou, talvez mais correctamente, transição. E o que está em causa no
axioma ex nihilo nihil fit é algo que tem que ver com a própria estrutura da transição
para outro. Isto parece ser claramente assim tanto para Lucrécio, como para Epicuro ou
Aristóteles. A noção de criação ex nihilo da tradição cristã está fora, parece, do
horizonte de discussão da Antiguidade. O que não significa, como se verá, que a
discussão da Antiguidade não esteja, de facto, relacionada com a criação ex nihilo,
porque em certo sentido é isso mesmo que ela discute, mas essa discussão ocorre no
âmbito da transição para outro, o que não é obviamente o caso da noção cristã de
criação em que não há qualquer noção de transição (ela corresponde, aliás, à própria
negação de que haja originalmente algo como uma transição para outro). É neste
contexto que o axioma ex nihilo nihil fit ocorre, como, aliás, se verá com a
argumentação imediatamente seguinte do De Rerum Natura, em que se afirma que as
coisas derivam de coisas da mesma espécie. Há, assim, um aspecto que parece claro: o
criacionismo a que Lucrécio se opõe será algo semelhante ao do Timeu ou, talvez, ao
dos estóicos, o que significa que o seu alvo é, como se disse, a intervenção divina na
formação das coisas. Lucrécio, como qualquer epicurista honesto, está preocupado em
despreocupar-se com os deuses. Ora a estratégia de Lucrécio parece, como se disse, ter
estragado o seu propósito. De facto, se se provar que nada pode provir do nada, os
deuses ficarão imediatamente postos de parte na formação das coisas, pois, como se dirá
a seguir com mais pormenor, as coisas pressupõem outras coisas na sua própria
produção e não deuses, que nada têm que ver com o assunto. Mas se se disser, com se
fosse um axioma, que os deuses não intervêm na formação das coisas, perde-se a
10 GOTTSCHALK, H. B., Philosophical Innovation in Lucretius, in ALGRA, K., VAN DER HORST, P., RUNIA, D., Polyhistor: Studies in the History and Historiography of Ancient Philosophy, Leiden, Brill, 1996, p. 234. Gottschalk diz que a introdução de divinitus de Lucrécio é mesmo "a philosophical blunder" (p. 233) e que vicia todo o argumento (p. 234).11 Cfr. SEDLEY, D., Creationism and His Critics in Antiquity, Berkeley, University of California Press, 2007.
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evidência de que isso é mesmo assim, pois tal fica precisamente por provar. É evidente,
para um antigo, que nada vêm do nada. Mas não é evidente que os deuses não tenham
que ver com a produção as coisas, pelo menos não é evidente para Platão, no Timeu.
Parece, pois, que Lucrécio estragou, como se disse atrás, o argumento de Epicuro com a
introdução de divinitus.
No entanto, isso não tem de ser assim nem parece mesmo ser assim. O que
Lucrécio parece querer dizer é que pressupor ou introduzir um influência causal dos
deuses na geração do que quer que seja seria, de facto, admitir expressamente uma
criação ex nihilo, porque introduziria, no processo de transição de uma coisa para outra,
uma potência totalmente estranha ao próprio processo que não explicaria nada. Dito de
outro modo, os deuses não podem intervir na geração das coisas em virtude do axioma,
de tal forma que o divinitus pertence à conclusão do argumento e não à sua premissa12.
É isto que poderia passar desapercebido para um leitor moderno porque, para nós,
parece mais ou menos claro que a criação ex nihilo, a ser possível, só o seria para um
deus. Quer dizer, um leitor que tenha em conta a tradição cristã pode perfeitamente não
perceber como é que é possível uma criação ex nihilo, mas poderia admitir que, a ser
possível, só mesmo Deus poderá fazer tal coisa. Ora esta não é naturalmente a ideia de
Lucrécio. O que ele parece pretender dizer é que não pode haver intervenção divina na
produção as coisas porque isso seria, em última análise, criação ex nihilo, algo de que
ele não duvida ser totalmente impossível. O axioma é, como se disse, evidente para um
antigo: tudo o que provém, na passagem de um para outro, provém de alguma coisa: é,
aliás, dito desta forma, uma redundância. Ora Lucrécio quis dizer que introduzir deuses
no processo de proveniência das coisas é, de facto, negar o axioma. Talvez mais
claramente: a ideia do De Rerum Natura parece ser a de que introduzir uma eventual
intervenção dos deuses no aparecimento do que quer que seja torna o aparecimento
disso totalmente ininteligível e não explica nada, a não ser ilusória e nominalmente,
porque o explica ao modo de uma geração a partir do nada. Dizer que é efeito dos
deuses ou dizer que é efeito de coisa nenhuma é a mesma coisa. A argumentação ficará
talvez mais clara quando se analisar o sentido do axioma. Mas o que, para uma
introdução, interessava vincar é que, na verdade, o surgimento do termo divinitus não
restringe o alcance da argumentação, pois trata-se somente da aplicação a um caso
particular – aos deuses – de uma lei geral que não admite excepção. É claro que
12 Argumentação semelhante em SEDLEY, D., Lucretius and the Transformation of Greek Wisdom, op. cit., p. 199.
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Lucrécio terá de provar que uma hipotética intervenção divina equivaleria à violação do
axioma, o que fará logo depois de formular o dito axioma, sem mesmo ter de voltar a
referir-se, em concreto, aos deuses. Assim sendo, o texto de Lucrécio não corresponde a
nenhum erro ou asneira, mas somente a uma clarificação de uma tese antiga. Insiste-se,
todavia, que a introdução de divinitus só fará sentido se Lucrécio provar que
intervenção divina e criação ex nihilo são a mesma coisa. Se assim for, ele poderá pôr
de parte a primeira em virtude da segunda, porque é, para ele, evidente que não há
criação ex nihilo, no sentido preciso em que a Antiguidade entendeu a proposição.
Feitas estas considerações introdutórias, pode agora passar-se à análise da tese.
Como se disse, o axioma não admite prova directa, por ser evidente. Por isso, Lucrécio
argumenta por redução ao absurdo, mostrando que é que ocorreria se algo pudesse
provir do nada, a que fenómenos é que isso poderia corresponder. O texto diz:
Nam si de nihilo fierent, ex omnibu' rebus
Omne genus nasci posset, nil semine egeret13.
A tese parece, então, clara: nada pode provir do nada, pois, se assim fosse, tudo
poderia provir de tudo. A interpretação mais óbvia do texto, tendo também em conta os
versos seguintes, corresponde à ideia segundo a qual a negação do axioma produziria a
destruição do que chamamos Natureza, quer dizer, o acontecimento do mundo e das
coisas seria absolutamente caótico, incontrolável e arbitrário. Ora isso é certamente
assim, isto é, se tudo vem de tudo, a organização do mundo torna-se indecifrável, como
num sonho absurdo, mas à partida não se vislumbra com total clareza porque é que a
negação da natureza há de ser uma impossibilidade metafísica, que é o que está, na
verdade, em causa no axioma. É, de facto, fácil de argumentar que, no nosso mundo,
nem tudo vem de tudo, mas, muito pelo contrário, há uma certa ordem na geração e
produção das coisas. Mas isso parece ser, na verdade, insignificante se se quiser provar
que tem mesmo de ser assim, de modo absoluto, do ponto de vista metafísico. Quer
dizer, não se trata só de afirmar que, no nosso mundo, nem tudo pode ter origem em
tudo, mas que isso é assim em qualquer caso, que o surgimento das coisas não pode, e
não pode de forma alguma, ser caótico, e percebe-se bem que, neste segundo caso, se
está perante uma tese com um significado e alcance totalmente diferente do mero e
empírico reconhecimento de que as coisas se passam, de facto, com ordem.
Ora é isso mesmo, ainda que possa não parecer, que Lucrécio está a dizer.
Interessa, pois, examinar com cuidado a tese "tudo não pode provir de tudo". Que é que,
13 De Rerum Natura, I, 160-161.
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afinal, está em causa nela? Que é que é evidente e que é que exige que esse axioma
constranja absolutamente o nosso ponto de vista e o defina?
O primeiro aspecto a ter em conta é que o que ocupa Lucrécio não é o
significado indeterminado do ente, a sua posição bruta, por assim dizer, mas o
significado do ente enquanto é o ente que é, necessariamente este ou aquele. Só assim a
proposição "tudo não pode provir de tudo" faz sentido. Na verdade, se se considerasse o
ente no seu acontecimento abstracto ou indeterminado, a pergunta pela origem teria
outro significado, pois não se perguntaria "de que tipo de coisas provém certo tipo de
coisas?". E é isso mesmo que está em causa, como se disse, na noção de Natureza, isto
é, um poder que produz com ordem e concerto umas coisas a partir de outras coisas
determinadas, e não ao calha. Por outras palavras, o problema do surgimento do ente é,
para Lucrécio, e, tanto quanto parece, para toda a tradição antiga, o problema da origem
da determinação. E isso é assim porque ser é ser determinado, e é-o necessariamente.
Perguntar, pois, pela origem do ente é perguntar pela sua origem enquanto isso mesmo
que é, enquanto isto ou aquilo, e não qualquer outra coisa ou algo em geral, e isso
parece ser assim pela simples razão de que ser ente e ser o ente que é é precisamente a
mesma coisa. O ente é isto ou aquilo. Como é óbvio, não se está a pôr de parte a
possibilidade da existência de qualquer coisa como uma compreensão do ente, não
enquanto isto ou aquilo, mas em geral ou, então, precisamente enquanto ente. O que se
pretende dizer é que a questão da origem do ente, do seu surgimento, se identifica com a
questão da origem e surgimento da determinação. Neste sentido, o problema de
Lucrécio está bem localizado e circunscrito: que é, de onde vem, a determinação das
coisas? Foi tendo isto presente que atrás se chamou a atenção para o facto de não haver
total coincidência com a questão da criação ex nihilo da tradição cristã. Não interessa
agora ver a que problemas corresponde esta concepção e em que aspectos específicos
ela difere da de Lucrécio. Pode, talvez, ajudar a focar uma (não a única) das diferenças
se se recordar que o problema da origem radical das coisas recebe na modernidade, em
Leibniz, por exemplo, duas formulações e não somente uma. Há duas perguntas que é
necessário fazer, diz o texto conhecido: a primeira é "porque é que há qualquer coisa em
vez de nada (ou de preferência ao nada)?"; e, respondida esta questão, a segunda
pergunta a fazer é "porque é que elas devem existir assim e não de outra maneira?"14.
Neste caso, a pergunta pelo sentido e origem da determinação é diferente da pergunta
14 Cfr. LEIBNIZ, Principes de la Nature et de la Grace, §7, G.W. Leibniz. Die philosophischen Schriften, GERHARDT (ed.), Hildesheim, Georg Olms Verlag, 1978, reimp., vol. VI, p.602.
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pelo sentido e origem absolutos do ente. Ora é evidente que o contexto é totalmente
diferente do de Lucrécio. Não é claro que na tradição antiga fizesse sentido distinguir as
perguntas15. Sem, como se disse, querer estudar este assunto com cuidado, importa tê-lo
em conta para não confundir a questão moderna da origem radical das coisas com o ex
nihilo nihil fit, de Lucrécio. Há, evidentemente, pontos em comum, porque o problema
de Lucrécio faz parte do da origem radical das coisas, mas os contextos não são
totalmente idênticos, parece. Para Lucrécio, a questão que se coloca é: porque isto?
Como é que isto ocorre? E o enquadramento destas questões no horizonte da tese "tudo
não pode provir de tudo" esclarece que estas perguntas têm como âmbito o problema da
origem da determinação no contexto do acontecimento da geração das coisas.
O segundo aspecto que Lucrécio indica claramente, e que tinha sido igualmente
sublinhado com vigor por Aristóteles, é que o nosso ponto de vista pensa a
determinação a partir de uma origem, quer dizer, pensa o que se passa a partir da
preposição ex. Quando Lucrécio, com toda a tradição, afirma que nem "tudo pode provir
de tudo" – ou, o que é, como se viu a mesma coisa, que do nada nada provém –, o
núcleo do problema é, na verdade, a preposição ex. Na verdade, nós não estamos em
condições, parece, de pensar a posição de uma determinação qualquer sem ser por
referência a uma origem. A determinação, o ente, vem de, deriva ou decorre de, seja
qual for, por agora, a instância ou instâncias de onde vem, deriva ou decorre. Há, pois,
um aspecto neste problema que é completamente estrutural e fundante, e que aqui só
pode receber uma menção breve, que é aquele que corresponde ao reconhecimento de
que os fenómenos carecem de justificação, isto é, por si próprios não são auto-
suficientes, mas são o que são por momentos, por instâncias, causas, requisitos, razões,
etc. E já que se recordou Leibniz, parece que aquilo perante o qual se está aqui é a
noção de razão suficiente das coisas, quer dizer, não de uma razão qualquer, mas de
uma razão que não deixe nada de fora na justificação do ente, que seja suficiente para
dar conta de tudo o que se passa nele. Parece igualmente claro que a exigência de uma
razão suficiente é um princípio do nosso ponto de vista. Conhecer é conhecer por causas
ou razões e isso significa algo que é básico no que diz respeito ao modo como
entendemos as coisas: que elas são posições derivadas e que é a estrutura da derivação,
ou melhor, é na estrutura de derivação que se encontra, para nós, toda a inteligibilidade,
isto é, que o ente passa a descansar em si e a ser transparente e não opaco e
15 E o facto de Leibniz, de facto, as distinguir, também não significa que tenha uma resposta realmente diferente para elas, quer dizer, é possível que, quando analisadas, haja lugar apenas para uma só pergunta. Mas não é possível estudar aqui este problema.
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incompreensível. Dito de outro modo, o que a posição inanulável da preposição ex
significa é que a facticidade, a presença bruta disto ou daquilo, é, em si mesma,
ininteligível.
Como se disse, a análise deste problema estrutural, do princípio de razão e da
sua estrutura, do facto de ele estar constituído em torno da preposição ex, excede
completamente o que se pretende aqui. Fica apenas o apontamento breve de que as
coisas são pensadas a partir de momentos que as justificam, e que só assim se elimina a
perplexidade. De alguma maneira, as coisas passam a ser as próprias coisas que são
quando são vistas como derivando de razões ou causas, não interessando agora
investigar se razão e causa são a mesma determinação. E isso é assim de tal forma que
enquanto não ficar exposto o processo de derivação, as coisas não são o que são, mas
permanecem como que ocultas ou escondidas, dado que escondem de onde são. A isto
corresponde, também, uma das teses de que Galeno dizia serem evidentes, "tudo o que
ocorre tem uma causa". É claro que a tese parece ser problemática, dada a sua
universalidade, devido ao tudo. E, por isso, quem se ocupa de tais coisas tenderá a
retirar à tese a sua validade metafísica universal, o que obrigará a ter de pensar com terá
ou teria de ser algo para que o princípio de razão não se lhe aplique, mesmo que o nosso
ponto de vista não esteja em condições de pensar com clareza a que é que tal poderá
corresponder. De facto, o nosso ponto de vista está de tal modo preso à preposição ex
que tende a pensar o absoluto como uma facticidade infinita, ainda que consiga talvez
reconhecer que esta expressão não tem muito sentido. Mas esta é outra questão. Aqui
interessa somente indicar, de modo sucinto, que no núcleo do problema de Lucrécio está
a preposição ex, com tudo o que isso significa. Todavia, a análise de Lucrécio apenas
pressupõe esse núcleo – ainda que se trate de uma pressuposição fundamental – e a sua
questão mais concreta é a de saber como funciona, por assim dizer, de que modo opera a
preposição ex, que é que provém de quê e como? Dito de outro modo, o que está em
causa no texto em discussão não é a estrutura geral da razão, mas sim o problema como
que visto à lupa, de mais perto, de modo a que se possa reconhecer bem como se dá a
estrutura da justificação, da doação de sentido, da posição da determinação.
Não se trata, evidentemente, de levar a cabo uma investigação de natureza
empírica, que seria completamente insignificante. O problema é geral e pretende
elucidar como pode ser uma determinação qualquer e a que corresponde a sua origem,
na medida em que não pode deixar de a ter.
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A resposta de Lucrécio quanto à estrutura do significado da determinação é, em
primeiro lugar, que tal estrutura tem de ser fixa, quer dizer, estar constituída de modo
ordenado. Todavia, a prova da fixidez da geração parece, uma vez mais, insignificante.
Na verdade, o facto de uma certa coisa provir sempre da mesma coisa não a justifica de
modo nenhum. Mais ainda: não se percebe como é que a mera fixidez da origem da
determinação negaria a proposição "tudo pode provir de tudo", dado que a mera fixidez
é perfeitamente compatível com a proposição "qualquer coisa pode derivar de qualquer
coisa", proposição que, em última análise, é indiscernível daquela. De facto, se x
decorre de y apenas porque x decorre sempre de y, isso por si só não invalida que
pudesse provir – também fixamente – de a, de b, de c, ou do que quer que seja. O facto
de algo derivar estavelmente de uma determinação não tem nada a ver com a origem
dessa determinação, no sentido próprio do termo, isto é, no sentido em que ela é uma
determinação. Algo não é óbvio e inteligível pelo facto de ser fixo e repetível. Repetição
e inteligibilidade são determinações completamente diferentes. Pior, parece: algo pode
ser muito mais ininteligível por ser repetido, pois isso poderá até aumentar a
perplexidade, a perplexidade que consiste em não se perceber como é que uma coisa
que não se percebe de modo nenhum continua, apesar disso, a repetir-se. Há, de facto,
uma tendência – que parece claramente um hábito – para pensar que a estabilidade dos
fenómenos produz inteligibilidade, mas isso só ocorre porque o ponto de vista está
distraído ou adormecido.
Todavia, a ideia de Lucrécio não é a de afirmar, porém, a mera fixidez, mas sim
a de indicar que a produção da determinação está constituída de tal modo que se gera
realmente sentido e inteligibilidade. E, assim, deve ser neste contexto que a fixação da
produção ou geração da coisas deve ser pensada. Dito de outro modo: haver fixidez na
geração não é uma determinação original. O que é, na verdade, o caso. De facto, a
geração é explicada por Lucrécio a partir dos corpora genitalia16 e tais corpos são, na
verdade, geradores de determinação de outros corpos, porque são semina certa:
At nunc, seminibus quia certis quidque creatur,
Inde enascitur, atque oras in luminis exit,
Materies ubi inest cujusque et corpora prima.
Atque hac re nequeunt ex omnibus omnia gigni,
Quod certis in rebus inest secreta facultas.17
16 De Rerum Natura, I, 168.17 Idem, I, 170-174.
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Os semina são certa, são fixos e estáveis relativamente àquilo de que são
sementes, mas são fixos e estáveis porque não são arbitrários quanto ao seu sentido:
cada coisa provém daquilo que lhe corresponde quanto à determinação. O problema
está, todo ele, na noção de semina e no que está em causa nela, e não se trata de um
problema fácil. O modo mais óbvio de pensar seria tomar como semente aquilo a partir
do qual um determinado ente é, de facto, gerado. Tratar-se-ia, uma vez mais, de uma
explicação puramente fáctica, isto é, de explicação nenhuma. A questão deve ser vista
de outro modo: que é, na verdade, ser semente de qualquer coisa? E o primeiro ponto a
ter em conta é, evidentemente, que nem tudo pode ser semente de qualquer coisa, pois
isso seria o mesmo que dizer que tudo poderia provir de tudo. A noção de semente
pretende, precisamente, eliminar a arbitrariedade da facticidade na geração, pois é isso
que é negado no ex nihilo nihil fit. Assim, a noção de semente parece pretender indicar
não somente que algo vem de algo, não somente também que algo vem de algo de modo
fixo e certo, mas sim e mais fundamentalmente que algo vem de algo com o qual tem
qualquer coisa a ver, com o qual está conectado quanto à própria determinação, ao
conteúdo do que está em causa. E este é o ponto decisivo. Que os espargos venham dos
espargos, e seja sempre assim, não é apenas uma ocorrência muito conveniente do ponto
de vista agrícola. É algo metafisicamente necessário, pois se um espargo não proviesse
de um espargo, então não proviria de parte nenhuma e seria uma rigorosa criação ex
nihilo. É precisamente isso o que Lucrécio quer dizer (e Epicuro, porque o argumento
está também na Carta a Heródoto). De facto, o nexo entre os termos da geração tem de
ser determinado e significativo, de tal forma que se o nexo ou conexão não forem
determinados, então não serão nem é nexo nem conexão e não o serão absolutamente.
Este ponto nem sempre é evidente e deve ser vincado com clareza. Se um espargo
proviesse de um ente diferente dele, de uma alface, por exemplo, o seu ser espargo não
teria qualquer origem, porque uma alface não é um espargo e não o é de maneira
nenhuma, o que significa que o espargo viria do nada, porque necessariamente teria de
vir. E isso é assim porque na origem – na pretensa origem; na alface, portanto – não
haveria absolutamente nada que pudesse justificar a qualidade de espargo que o ente em
causa nobremente ostenta; ficaria por justificar precisamente o específico. Ora o
específico é justamente o ente que se pretende justificar. Na verdade, dizer que x tem
origem em y é exactamente a mesma coisa que dizer que não tem origem nenhuma,
porque y poderá eventualmente dar conta de y, mas de absolutamente mais nada, porque
não há em y senão y, não há nem um pequeno resto de x, do que ele não é. Na verdade,
11
relativamente a y, x comporta-se como relativamente a qualquer outra determinação,
quer dizer, não tem nada que ver, é absolutamente indiferente, e não se percebe como
pode y ser origem de x, se y é y e não x. Quer dizer, afirmar que uma coisa pode provir
de uma outra diferente dela é dizer que qualquer coisa pode ter origem em qualquer
coisa, de modo indiferenciado, quer dizer, que tudo pode vir de tudo e fica sem se
perceber a origem do que quer que seja. Algo não pode ter origem em qualquer coisa
precisamente na mesma medida, exactamente na mesma, em que a poderia ter no
contrário dela. Mas, e isto é o mais significativo, isso é assim porque em nenhum dos
casos se daria razão da coisa, pois o seu ser determinado permaneceria todo por
justificar, porque em nada seria anunciado na sua origem. Tratar-se-ia de uma origem
puramente fáctica e facticidade é indeterminação. Uma coisa não pode ter origem noutra
diferente porque as coisas são monotonamente elas mesmas. Se, de repente, aparece o
diferente, ele não pode ter origem nenhuma, precisamente porque o que se tem de
explicar é a diferença e ela não é em nada anunciada pela determinação da qual
supostamente deriva: é radicalmente nova. Esta é a razão pela qual os espargos só
podem provir de espargos e isso não é assim porque este é o melhor dos mundos
possíveis; é assim porque este é um mundo meramente possível: os espargos só podem
derivar de espargos em todos os mundos possíveis (desde, naturalmente, que o mundo
em causa exiba tal tipo de ente). Esta é, pois, a razão da ordem e fixidez dos processos
naturais. A ordem do desenrolar das coisas é fixa porque é determinada e não é
determinada porque é fixa. E com isto Lucrécio pensa também ter provado que o
conceito de Natureza é metafisicamente necessário – não pode haver mundos caóticos,
em virtude do axioma.
A pergunta seguinte que se deve fazer é, então, esta: de onde vem o diferente,
qual a origem do diferente? E a resposta óbvia é: o diferente não vem de parte nenhuma
pela simples razão de que absolutamente não vem. Se o diferente tivesse origem teria de
a ter no nada. Mas isso é impossível, em virtude da estrutura do ex, porque o nada não
pode ser termo de um processo de geração. Tudo deriva de, tudo tem uma razão, tudo
ocorre em virtude de uma instância que o justifica, e isso significa que, como se acabou
de dizer, o mesmo apenas dá origem ao mesmo, e tudo em ordem e concerto. Pode
haver evidentemente diferenças, e elas são patentes, mas não nos termos da geração.
Dito de outro modo: é preciso conciliar a tese segundo a qual "tudo vem de", isto
é, a presidência total da preposição ex, com o facto de que tal presidência ter de ser
determinada, pois de outro modo anular-se-ia a própria presidência do ex. Se o termo a
12
quo não possui a mesma determinação do termo ad quem numa transição qualquer,
então aquele não pode ser ter a quo deste. Não pode sê-lo de forma nenhuma, porque
isso implica, não apenas indeterminação mas, o que é afinal a mesma coisa, a própria
exclusão do significado da preposição ex, isto é, a abolição da criação ex nihilo. Assim,
o que Lucrécio está a fazer com a exposição do ex nihilo nihil fit é simplesmente a
eliminar a geração do diferente, eliminar a própria possibilidade de tal coisa, e isso em
virtude de leis fundamentais e estruturais do nosso modo de nos encararmos com o
mundo: a necessidade de uma justificação do que se passa.
Desta forma, o que em última análise se está a sugerir é que toda a
descontinuidade na transição de uma determinação para outra é radicalmente
ininteligível: só o contínuo, só o mesmo é inteligível; o descontínuo, o diferente, é
sempre ex nihilo, quer dizer, não é, é impensável. A geração é, assim, a perpetuação do
sempre idêntico, a repetição da monotonia.
Tendo isto em conta fica imediatamente clara a irrelevância completa de uma
eventual intervenção divina. De facto, dado que toda a explicação só pode ser feita pelos
semina certa, a intervenção divina seria uma forma escondida e desonesta de
inexplicável criação ex nihilo. Dito de modo mais simples, falar de deuses é
precisamente a mesma coisa que não falar de nada, pois os deuses podem tanto explicar
a geração disto como qualquer outra coisa que não tenha nada a ver com isto. A
explicação deve, pois, ser estritamente natural e não aplicar, como se disse, instâncias
estranhas ao processo de transição de uma coisa para outra, pois toda a estranheza é
nada. E Lucrécio, a ser bem-sucedido na análise, teria feito o que queria com os
deuses18.
Ora é evidente que esta argumentação levanta inúmeros problemas e choca com
vários obstáculos. Assim, em primeiro lugar, seria necessário explicar a razão da
existência de diferenças, o que Lucrécio fará recorrendo às formas de construção das
coisas por composição de átomos, como se sabe. Mas, para além disso, há outros
problemas fundamentais, alguns específicos de Lucrécio – e que, por isso, apenas terão
direito a uma ligeira referência –, enquanto outros são mais estruturais.
18 É claro que se poderia pensar que os deuses teriam moldado originalmente o mundo a partir de formas pré-dadas, como que por meio de protótipos ideais. Mas os deuses epicuristas são fortemente empiristas, não têm formas a priori, mas apenas as reconhecem quando dadas: cfr. De Rerum Natura, V, 181-186. Lucrécio tem, ainda, outros argumentos contra a intervenção divina na formação do mundo. Assim, por exemplo, o mundo não pode ter sido feito pelos deuses, porque está muito mal feito: cfr. Idem, II, 180-181.
13
Os problemas específicos de Lucrécio dizem respeito à compatibilidade do
axioma com a tese da liberdade ou da não total determinação das acções humanas ou, de
um modo mais geral, com a compatibilidade do axioma com as acções realmente
espontâneas. Lucrécio afirma várias vezes que há acções que têm início no próprio
sujeito, acções que são, diz, sponte sua19 e afirma igualmente – no caso de se tratar de
uma tese diferente, o que não se examinará – que os actos humanos são não totalmente
determinados. Ora tanto a acção espontânea como a acção humana, se de facto é
espontânea e não decorre do estádio anterior tal como o mesmo deriva do mesmo, são
acções que parecem surgir do nada, ter origem no nada. Se assim não for, não são
espontâneas nem livres, mas recebem justificação e são totalmente derivadas de
determinações já dadas anteriores, que as produzem20. É sabido que Lucrécio tem
perfeita consciência do problema, e uma consciência tão aguda que, para o resolver,
recorreu a um misteriosíssimo fenómeno que tornaria possível a produção do novo, do
diferente – o clinamen21.
O clinamem é, como se sabe, o desvio imperceptível dos átomos que permite e
produz a não uniformidade dos seus movimentos. Não é possível analisar as teses de
Lucrécio sobre o clinamen nem no caso de tal ser possível, que relação há entre o
fenómeno e a espontaneidade e/ou a acção livre22. O desacordo dos comentadores é,
pelo menos, um sinal claro da dificuldade do empreendimento. Algo parece, no entanto,
ser claro para Lucrécio: sem clinamen não há espontaneidade. Ora se o clinamen fosse
tão determinado como tudo o que é determinado, ele não teria qualquer efeito ou
validade explicativa. Quer dizer, se o clinamen se introduz para quebrar a monotonia do
mesmo, ele deve ter alguma familiaridade com a noção de indeterminação. O clinamen
parece ser um acontecimento original que tem por função abrir a possibilidade do
surgimento do diferente e do novo, passe a redundância. Logo, não pode deixar
logicamente de corresponder à introdução de um momento original de indeterminação.
Os átomos alteram-se em virtude de uma lei (!) que gera indeterminação ou que a torna
19 Cfr., por exemplo, De Rerum Natura, I, 214, 1064; II, 193, 1059, 1092; III, 33, 1041; IV, 47, 131, 736; V, 79, 212, etc.20 O problema deveria ser examinado com mais cuidado. É possível que Lucrécio tome acção espontânea como o oposto de acção violenta, isto é, como acção que tem origem no interior. Se assim fosse, seria perfeitamente possível pensar acção espontânea e, ao mesmo tempo, completa e total determinação da acção a partir do estado anterior. Situação diferente parece ser a das acções realmente livres, que Lucrécio parece aceitar. Neste caso, o problema do surgimento do novo é realmente muito mais grave.21 Cfr., por exemplo, De Rerum Natura, II, 216 e ss.22 O fenómeno, uma vez mais, tem como se sabe origem em Epicuro. Para um bibliografia sobre o problema, cfr. BOBZIEN, S., Did Epicurus Discover the Free Will Problem?, Oxford Studies in Ancient Philosophy, 19 (2000), p. 287-337.
14
possível. Ora, se o que se disse atrás sobre a geração e transição fez algum sentido, isso
implica que o clinamen é uma excepção ao ex nihilo nihil fit, ainda que uma excepção
peculiar: trata-se de uma estrutura que justifica que algo não seja absoluta e
completamente justificado pelo estado de que deriva, isto é, pelo estado anterior de onde
surge. Ora isso é, como é fácil de perceber, uma explicação totalmente ilusória, porque é
a explicação que explica que há certas coisas verdadeiramente inexplicáveis. A
explicação é, por isso, meramente nominal.
Mas para além as curiosidades do epicurismo e do De Rerum Natura, como é o
caso do clinamen, há um problema metafísico bem mais grave, que é o seguinte. Dizer
que o mesmo só pode ser origem do mesmo é fazer vista grossa do essencial, e o
essencial é que há, em toda a geração ou produção de qualquer coisa, uma transição de
um para outro e isso implica sempre, por mínima que possa parecer, pôr uma diferença.
Na verdade, afirmar que o mesmo se encontra tanto no termo a quo como no termo ad
quem é manifestamente um absurdo, pois o termo a quo não pode ser o ad quem, não
podem ser o mesmo, a não ser que se elimine precisamente aquilo que está em causa,
uma transição para outro. Se se tratasse realmente do mesmo termo a transição seria
uma espécie de juízo analítico ou, no melhor dos casos, uma dedução, mas não parece
que a transição para outro seja uma forma de juízo analítico. De facto, há transição
porque os seus termos são, na verdade, diferentes, opostos. Assim, parece haver uma
forte ilusão em tomar como explicada uma transição ou geração de algo quando se diz
que, nela, o mesmo gera o mesmo, pois ainda que a identidade especifica dos termos
seja total, tal identidade não dá conta e é obviamente insuficiente para justificar tanto a
própria geração como tal – isto é, o facto de passar a haver algo que, de todo, não havia
–, como para justificar as inúmeras diferenças de determinação que sempre há entre os
termos da geração. A diferença não é meramente numérica, mas bastaria ser numérica
para que se tratasse de uma diferença de determinação, porque surgiu algo de novo.
Quer dizer, a tese dos semina certa é insuficiente para justificar o princípio ex nihilo
nihil fit e isso é assim porque transição não é análise; é, aliás, precisamente o contrário:
há um momento sintético em toda a transição, sem o qual deixa pura e simplesmente de
haver transição. O que significa que a transição parece mesmo ser ex nihilo, pois o
momento a quo não tem condições suficientes para dar conta do ad quem, daquilo que
há de próprio neste, de modo que a determinação própria deste não vem daquele, o que
significa que aquele não é, como deveria ser, a quo, não é termo do processo de
transição, como parecia. Ora se o aparente termo a quo não é, afinal a quo, porque é
15
insuficiente para dar conta do termo final da geração, o termo ad quem tem origem no
nada, visto que todo e qualquer termo que se apresente como candidato para ser a sua
origem é sempre necessariamente insuficiente para cumprir tal função. Isso é assim em
virtude da própria definição de transição para outro.
Ora a verificação deste facto arrasta consigo um enorme problema metafísico.
Na verdade, o termo ex requer tanto a identidade específica dos termos do processo de
transição como a sua diferença: os termos têm de ser idênticos na exacta medida em que
devem ser diferentes, pois a identidade deve ser a instância responsável pelo sentido do
termo realmente novo. Ora isto não é facilmente pensável, não conseguimos perceber
muito bem, diga-se assim, como é que a preposição ex pode reunir em si mesma a
exigência de teses contraditórias. E, todavia, parece ser esse o caso. Sem identidade não
se entende a origem de uma determinação e com identidade também não, pois fica tudo
por explicar quanto à origem, isto é, quanto ao facto de ter havido algo que não era e
passou a ser. Dito de modo mais breve, aquilo que, parece, não entendemos é como é
que algo se faz, em geral, como é que se efectua o processo de constituição de qualquer
coisa, como se dá o passar a ser. Ou seja, aquilo que não conseguimos pensar é como
pode haver sequer origem e isso é tanto mais curioso quanto não conseguimos também
pensar sem ser a partir de uma origem: a origem é tão impensável como indispensável
ao pensamento. Levando a análise de Lucrécio ao extremo, parece que se chega à
conclusão de que o axioma ex nihilo nihil fit significa, afinal, que realmente nada se
pode fazer, em absoluto. Que era, como se sabe, a velha tese de Parménides.
A situação parece, pois, paradoxal, pois a análise das exigências do axioma teve
como resultado a negação de qualquer tipo de geração. Por isso, e ainda que
corresponda a um recuo significativo no tempo, para fora do helenismo, parece razoável
recorrer a Aristóteles, pois foi precisamente com este problema que Aristóteles se
enfrentou. Seguir-se-á apenas, e somente por alto, as indicações que ele expõe na Física.
Aristóteles dá por pressuposto que há, de facto, geração e corrupção na natureza. Não se
pretende, diz, refutar tudo – concretamente, esta evidência empírica –, mas somente as
demonstrações que dependem de princípios falsos23. Há algo patente: a geração de umas
coisas e a destruição de outras coisas. Aristóteles admite também que nem tudo vem de
tudo, tal como admite que nem tudo se destrói ou corrompe em tudo, quer dizer, há,
como se disse, uma Natureza24. Aristóteles aceita ainda, como algo óbvio, o axioma ex
23 Cfr. Physica, I, 185a14.24 Cfr. Idem, I, 188a30.
16
nihilo nil fit, ainda que não com esta formulação, pois, diz, é evidente que a geração se
produz a partir de um sujeito, tanto no caso das substâncias como no dos acidentes, isto
é, em todos os casos em que há passagem para o ser25. Pode haver, como depois
especifica, várias formas de geração, de transição para o ser, mas em qualquer delas é
preciso pressupor um termo a quo, um sujeito a partir do qual algo se faz. Todas estas
teses são comuns e, por assim dizer, não constituem problema, mas não resolvem o
problema: são preliminares necessários, mas não suficientes para desembrulhar a
questão complicada da origem da determinação. A situação é, pois, como se disse, esta:
em toda a geração há dois termos, os seus limites, por assim dizer, que são diferentes,
seja qual for o tipo de diferença.
Aristóteles começa a encarar o problema de frente estabelecendo diferenças e
precisando as coisas, como costuma fazer, precisões e diferenças que são, de facto,
necessárias. Assim, diz que, se é certo que o ser não pode passar a ser, isto é, que o ser
não pode gerar, porque já é, deve, todavia, ter-se em conta que toda a geração é feita a
partir de um ente, pois é evidente que na sua origem há um ser. Do mesmo modo, se é
certo que a geração não pode provir do não ser absoluto – pelo axioma –, é igualmente
certo que ela provém, na verdade, de um não ser, na medida em que algo passa a ser e
não era. O que passa a ser provém, portanto, de uma privação, que é um não ser, ainda
que não absoluto, mas sim acidental; mas o termo a quo é, todavia, claramente um não
ser pois é a partir do que não é que algo passará a ser; de outra forma não poderia passar
a ser, porque já seria. Assim, o primeiro momento da análise aristotélica é já de si
problemático, ainda que pareça apenas descritivo: a geração procede do ser e do não ser,
mas em ambos os casos por acidente. Não pode provir absolutamente nem do ser nem
do não ser, pois o ser é e o não ser não é. Mas deve provir de um ser privado de uma
determinada forma, quer dizer, de um certo ser que possui, passe a expressão, um certo
não ser, e de um não ser que é um certo ser, passe novamente a expressão. As
formulações não são, de facto, felizes, mas parece ser isso mesmo que acontece, pois o
termo inicial da geração é um não ser relativamente ao termo final, mas é um ser para
poder ser termo inicial. O termo a quo é e não é. E Aristóteles tem consciência de que se
está diante de um fenómeno difícil, pois afirma que nada do que disse nega que algo ou
seja ou não seja, numa disjunção exclusiva26. Assim, Aristóteles aceitando que nem tudo
provém do que quer que seja, argumenta também que o ser procede do não ser, mesmo
25 Cfr., Idem, I, 190b1 e ss.26 Cfr. Idem, I, 191b26.
17
que por acidente, o que, não negando o axioma, equivale a reconhecer a geração do
diferente, do realmente novo, do ainda não dado efectivamente. Como se disse atrás,
Aristóteles não duvida da existência de uma verdadeira geração das coisas e apenas
acrescentou, até agora, algumas determinações mais precisas.
Posto isto, Aristóteles enfrenta directamente o problema da origem da
determinação quando investiga o número de princípio que estão envolvidos na
geração27. Trata-se de saber se há dois princípios ou se há mais do que dois. Que há dois
princípios na geração é claro, como se viu, pois são os seus termos. Ora, e este é o ponto
crucial, Aristóteles indica claramente que estes dois princípios são contrários e, por isso,
não se podem afectar mutuamente, não podem ser actuados um pelo outro, quer dizer,
cada um deles, devido à sua diferença, é inalcançável pelo outro, a partir do outro. Este
era precisamente o problema a que conduziu a análise do texto de Lucrécio: os
contrários, na transição, são incomunicáveis, são diferentes, e, sendo-o, não estão em
condições de dar conta da passagem, necessariamente contínua, de um para o outro. A
passagem é necessariamente contínua, porque passagem descontínua é justamente não
passagem, geração ex nihilo. Quer dizer, Aristóteles reconhece com clareza que a
presença de apenas dois princípios na geração deixa tudo por explicar – isto é, torna a
geração inexplicável – e isso é assim porque eles são contrários. O que significa que o
problema está exactamente na sua contrariedade, como já se sabia. Ora Aristóteles
declara que a dificuldade pode ser removida pela introdução de um terceiro termo, um
substrato no qual a transição de um para outro se dá, ocorre. Dito de um modo talvez
mais correcto, Aristóteles indica que o único modo de resolver o problema é pensar,
pôr, um substrato que tem por estrutura ser intermediário, ser termo médio da
contrariedade, e que, por isso, diz, não é ele próprio um contrário28. Tem de haver,
assim, três princípios na geração: os contrários e um terceiro, que é o sujeito onde a
oposição se dá, melhor, onde a transição ocorre, e que sustenta, desta forma, a passagem
de um termo para o seu contrário. Por isso, como se disse, o termo médio não pode ser
contrário, pois deixaria imediatamente de ser médio, de ser intermediário e constituir-se-
ia uma nova contrariedade, repetindo-se a situação problemática da existência de apenas
dois princípios. O termo médio é pensado, pois, como mediação. O problema de
Aristóteles passará, agora, a ser o de determinar a natureza do termo médio e, tanto
quanto parece, ele será diferente consoante os tipos de geração: se a contrariedade entre
27 Para tudo o que segue, cfr., Idem, I, de 188a19 até ao fim do livro I.28 Cfr. Idem, I, 190b29 e ss.
18
os termos não for absoluta – isto é, se não se tratar da geração de uma substância –, o
termo médio será a própria substância, tal como acontece, por exemplo, não passagem
do não sábio para sábio, em que a transição ocorre e é dada no termo homem, que não é
contrário de nenhum dos opostos. Se, pelo contrário, a transição for absoluta, se for de
uma substância para outra – por exemplo de homem para não homem –, o termo médio
terá de ser a matéria, pois, por razões evidentes, não poderá ser a substância dado que a
substância é um dos contrários. A matéria pode, por sua vez, ser termo médio, porque
não é contrário de nenhum dos termos. Em qualquer dos casos, há sempre uma
mediação, um intermediário, e Aristóteles tem aquilo de que precisava.
A análise da Física é naturalmente mais complexa e sobredeterminada, e seria
necessário recorrer ainda aos outros textos onde estuda o problema, mas não é
necessário acompanhá-la em pormenor. Basta apenas reconhecer a tese geral e a tese
geral é: para que a transição não seja uma creatio ex nihilo é preciso introduzir um
terceiro termo, um sujeito, uma mediação entre os contrários, que os una na sua
diferença e esse termo médio, insiste-se, não pode ser um contrário. E é isso o que
parece ocorrer, de facto. O exemplo mais óbvio é o da geração acidental, mas deve
acontecer algo semelhante na geração de uma substância, ainda que aqui o caso não seja
tão evidente, porque o intermediário reconhece-se com dificuldade. Em resumo: algo
procede do não ser por acidente e passa para um ser num termo médio que não é
contrário de nenhum dos limites da transição. Aristóteles introduz, assim, a noção de
mediação, de que os filósofos gostam tanto, pois parece que encontram nela a salvação
da inteligibilidade29.
Mediação é, como se sabe, um termo mágico, porque explica tudo: entre duas
diferenças coloca-se um terceiro termo que não é contrário de nenhum deles, para poder
ser mediação, pelas razões que acabaram de se indicar – se fosse contrário, não poderia
ser médio. Ora este é exactamente o problema. O termo mágico é, sem dúvida mágico,
um abracadabra metafísico, mas é igualmente muito pouco claro e é pouco claro porque
se permanece sem se perceber com facilidade a mediação entre diferentes. Aristóteles
parece ter toda a razão ao dizer que a geração pressupõe um sujeito, pois, como se disse,
é isso mesmo que acontece: a passagem do não sábio para o sábio não se dá no ar, mas
no homem. Parece claro. O que não é nada claro é o significado disso para o problema
que está em discussão, porque o termo homem não tem nada que ver com a oposição
29 Aristóteles indica, depois, que tem outra solução (cfr. Physica, I, 191b27-29, que é a da relação entre acto e potência. este tipo de solução parece querer dizer que, afinal, o termo a quo já possui o termo ad quem, e em vez de explicar a transição pelo intermediário, tentará reduzir a diferença entre os opostos.
19
não sábio-sábio, que se mantém totalmente. É perfeitamente possível que toda a
transição ocorra num sujeito. O que não se percebe é como é que o substrato é,
efectivamente, mediação, quer dizer, não se percebe que é que significa ser, aqui,
mediação. Dito de outro modo, não se entende com clareza como é que o terceiro termo
é mais do que um x indeterminado em relação à contrariedade, isto é, relativamente aos
opostos. É, aliás, por ser indeterminado na relação de oposição que ele não é contrário
de nenhum dos termos dela. E se é indeterminado, não se vislumbra que relevância pode
ter como mediação entre opostos. O x em causa pode muito bem ser o substrato da
transição, mas a transição permanece tão por explicar como quando não se falava em
substrato nenhum, porque o x é indiferente aos termos em oposição. Se aquilo que se
pretende explicar é como é que o diferente surge, de nada serve introduzir um termo
médio, porque a diferença continua a surgir do mesmo modo inexplicado, dado que o
termo médio não tem nada que ver com a determinação nova e diferente que surge.
Quer dizer, não é claro como é que a posição do substrato por si só reduz a distância
entre contrários (que era a sua missão, afinal), a distância entre duas determinações
diferentes. A sua hipotética mediação é puramente fáctica – há um terceiro termo que é
substrato –, mas nada disso habilita tal termo a efectivamente mediar, porque os termos
permanecem tão contrários como eram sem ele. De facto, a mediação entre contrários
será efectivamente mediação se ela for realmente um não contrário e, ao mesmo tempo,
se unir os contrários realizando a transição. Mas isso implicaria que ela, a mediação,
não pode ser, por relação aos contrários, totalmente indeterminada, quer dizer, ele terá
de possuir a determinação dos contrários na sua contrariedade. Não basta não ser
contrário. Se for apenas isso, permanecerá tudo na situação de inexplicabilidade, porque
não se percebe que é que um não contrário tem que ver com os contrários, a fim de
poder ser mediação entre eles. A mediação deve unir os opostos na sua oposição e não
de um modo puramente fáctico, repete-se, porque o que está em causa é a origem da
determinação. Ora é isso que parece ser difícil de pensar, porque não se percebe bem
como é que um termo singular possui determinações opostas. Se não as possui, não as
une; se não as une, a transição é descontínua; e se a transição é descontínua, trata-se de
uma creatio ex nihilo. Mediação é, com se disse, uma palavra mágica e opera
verdadeiros milagres metafísicos: transforma contrários na base de um terceiro que é
indeterminado relativamente a eles.
Ou seja, Aristóteles pode muito bem ter razão ao indicar que toda a transição se
dá num substrato, mas isso em nada contribui para resolver o problema, a não ser de
20
modo ilusório, pois não se entende como é que esse substrato reúne os contrários e
reduz a distância da diferença sem a eliminar. A contrariedade, com se disse, permanece
tão contrariedade como antes e continua por explicar de onde decorre a noção
determinação, pois não é nem da oposta, nem evidentemente da não oposta, do
intermediário. Assim, o substrato não faz aquilo para que foi designado, mediar, e o
conflito entre as partes mantem-se. E parece que alguma razão terá Kierkegaard quando
afirmar, algum tempo depois, que o "tipo de consequência do qual, de facto, de uma
coisa se produz a oposta" tem "por costume, em geral, ser chamado um salto"30.
Há, pois, parece, uma descontinuidade, um salto, em toda a transição. É, por
isso, aliás, que há mesmo transição. É certo que antigos e modernos repetem que natura
non facit saltus, o que significa, como se disse, que há qualquer coisa como uma
natureza e que deve haver alguma inteligibilidade. A tese é praticamente uma
redundância, pois, com já se disse, contínuo, mesmo e inteligível são idênticos. Mas
parece que, curiosamente, a tese da inteligibilidade é pouco inteligível, não se percebe.
Leibniz dirá que "tout va per degrés dans la nature, et rien par saut, et cette regle à
l'égard des changemens est une partie de ma loy de la continuité"31, mas continua a não
ficar claro como é que se dá a passagem de grau para grau, isto é, de algo para o que é,
necessariamente, o seu contrário, diferente dele. Qualquer diferença, mesmo
aparentemente insignificante, infinitesimal, corresponde a uma passagem do mesmo
para o outro, quer dizer, toda a transição é infinita e é uma ilusão, pelo menos assim
parece, pensar que "pequenas" transições são mais inteligíveis do que as "grandes",
como se nas primeiras o salto fosse pequeno e nas segundas grande. O problema não
está no "tamanho" do salto, mas no simples facto de haver salto e, sempre que há salto,
ele é enorme; é, como se disse, infinito, porque o termo a quo do salto é absolutamente
nada relativamente ao termo ad quem, com substrato ou sem substrato, que é indiferente
para o que está em questão. Falar em grau pode fazer crer que os termos da diferença
são menos acentuados, mas, na verdade, o facto de os contrários diferirem em grau não
elimina a contrariedade. Ou então não há transição, o que parece difícil de aceitar. Se há
transição, o ex nihilo permanece sempre como uma ameaça.
Em resumo: a tentativa de Aristóteles apenas disfarçou a dificuldade da questão,
que fica ainda por resolver.32
30 KIERKEGAARD, S., de Omnibus Dubitandum Est, HEIBERG, P.A., KUHR, V., TORSTING, E., (eds.), Søren Kierkegaards Papirer. København, Gyldendal, 1968-1978, IV B 1, 121.31 Nouveaux Essais sur l'Entendement, Gerhardt (ed), V, 455.32 Em relação a Aristóteles deve ter-se em conta, para além da explicação alternativa através da relação acto-potência, o facto de ser possível interpretar certas passagens da Física como uma admissão da
21
A conclusão a que se chegou parece ser, então, a de que é inevitável admitir a
creatio ex nihilo, o que é verdadeiramente paradoxal, porque o axioma é evidente. Quer
dizer, o paradoxo consiste em que a creatio ex nihilo permanece também
incompreensível para nós. Ou seja, tudo leva a crer que não estejamos em condições de
perceber a origem da determinação. Mas também não estamos em condições de deixar
de a pensar. Dito de modo mais breve: é incompreensível que algo derive do nada e é
também incompreensível que algo derive do que quer que seja. A creatio ex nihilo não
se torna óbvia por não se perceber como é que se origina a nova determinação. A única
coisa que aconteceu foi que passou a não se perceber também a alternativa que se
julgava perceber. Há duas opções e qualquer delas gera perplexidade e beco sem saída.
Não se percebe nem o ex nihilo nem o contrário e não se vislumbram mais soluções.
Tanto quanto parece, isso deve-se a algo que já se indicou atrás, à peculiaridade da
preposição ex, que requer tanto que algo provenha do mesmo como que aquilo que
surge seja diferente, requer tanto a origem quanto a determinação, o que parece ser
incompatível. O que significa que, se é certo que nós pensamos sempre na regência da
preposição ex, não conseguimos também pensar como é que ela opera. Parece que, pura
e simplesmente, não percebemos.
Resta apenas, e ainda, examinar muito brevemente uma última questão. O
problema da origem foi até agora apenas analisado no âmbito do enorme horizonte das
diferenças que surgem no mundo. Ora sem querer entrar em questões complexas sobre o
conceito de totalidade, parece, no entanto, que a questão da origem se pode colocar
também a propósito do todo, do que Lucrécio, para retomar o De Rerum Natura, chama
summarum summa33, o conjunto de todas as coisas. Acerca disso, o primeiro ponto claro
é que a Antiguidade parece não ter colocado o problema da origem radical, da criação
ex nihilo: há sempre, em toda a transfornmação, algo pré-existente. O que, no entanto,
chama a atenção é que a antiguidade tenha tomado a eternidade do mundo como uma
forma de resolução do problema da sua origem, quer dizer, tenha tomado a eternidade
do mundo como uma evidência pacificadora da perplexidade, por assim dizer. O mundo
é terno, isto é, não tem nenhum tipo de origem, e o ex nihilo nihil fit não se lhe aplica
porque é eterno. Não vale a pena examinar agora as teses em defesa da eternidade do
mundo e do tempo, que são várias e que se encontram também em Lucrécio, pelo menos
possibilidade da criação ex nihilo. Ou seja: Aristóteles pode, afinal, ter reconhecido que o ex nihilo nihil fit não é um axioma universal. Para a discussão das teses e passagens relacionadas da Física, cfr. SORABJI, op. cit., p. 246-249.33 De Rerum Natura, V, 362.
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algumas. O que apenas interessa indicar é o seguinte: tanto quanto parece, a antiguidade
tomou a eternidade do mundo como uma justificação suficiente da sua origem e é em
virtude da eternidade que o axioma não vigora a respeito da totalidade enquanto tal. Ora
isso parece querer dizer que, em última análise, a eternidade do mundo torna não
necessária a tarefa de justificação ulterior. O mundo seria, assim, necessário porque
eterno. De facto, ele só não carece de justificação se for necessário e a eternidade ou é
prova disso, da sua necessidade, ou é a própria necessidade do mundo. O que parece
implicar ainda uma outra tese, a de que o mundo é inteligível porque eterno, pois se não
fosse inteligível requereria justificação. Ora dado que a eternidade do mundo anula a
necessidade de justificação, a eternidade do mundo corresponde à sua inteligibilidade.
Parece ser isto o que está, então, em causa na tese da eternidade do mundo.
Ora tudo isto é certamente surpreendente, pelo menos para nós, ainda que tal se
deva talvez à intervenção da tradição cristã, com o seu acréscimo de exigência na
questão da justificação do que se passa. E é surpreendente porque, por um lado, não se
vislumbra à primeira vista nenhum nexo necessário entre eternidade e necessidade. Se,
por necessário, se considerar, como parece correcto, aquilo cujo contrário implica
contradição, não se reconhece nenhuma necessidade no mundo, porque não se
reconhece nenhuma contradição no nada. O nada não é contraditório. É perfeitamente
possível que não se consiga pensar o nada, mas de aí não se segue com evidência que
haja alguma contradição nele34 ou na sua noção, se é que há noção. E, por outro lado, o
que não é senão uma consequência, eternidade e inteligibilidade são determinações
completamente diferentes. Um mundo eterno pode perfeitamente ser pensado como uma
perpétua facticidade e o facto de ser eterno não lhe confere inteligibilidade nenhuma. É
claro que também não o torna menos inteligível, porque a inteligibilidade decorre da
remoção da facticidade e nem a eternidade nem a não eternidade são significativas a
esse respeito. Pode criar-se a ilusão de pensar que, porque sempre esteve, é lógico e
óbvio que esteja. Mas isso é uma ilusão, mais uma, que deriva do hábito do mundo, do
seu aspecto imóvel e total, pesado. De facto, tanto quanto parece, um dos mais fortes
argumentos a favor da eternidade do mundo decorre do facto de, a ser criado no tempo,
não haver nenhuma razão para que não fosse criado mais cedo, quer dizer, é impossível
apresentar uma razão da sua limitação temporal35. Mas trata-se, como é fácil de ver, de
uma ilusão, pois nada disso altera o facto de que o acontecimento do todo – tal como o
34 Não é naturalmente possível examinar o que está em causa na noção de nada, que é um problema difícil.35 Cfr. SORABJI, R., op. cit.,cap. XV, pag. 232 e ss.
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dos particulares – ser, por si só, ininteligível. Era exactamente isto o que Tomás de
Aquino tinha em mente quando dizia que é perfeitamente possível pensar um mundo
que seja, ao mesmo tempo, eterno e criado: "ergo patet quod in hoc quod dicitur, aliquid
esse factum et nunquam non fuisse, non est intellectus aliqua repugnantia36. E isto é de
tal forma assim que, ainda segundo Tomás de Aquino, nós estaríamos em condições de
descobrir que o mundo é criado ex nihilo, mas é-nos totalmente inacessível, do ponto de
vista racional, saber se é eterno ou não. A necessidade da justificação decorre da
contingência radical das coisas que é compatível com o facto de terem uma origem
eterna, que seria criadora, porque conferiria ao mundo a totalidade do seu ser.
A eternidade do mundo não parece, assim, escapar às exigências do ex nihilo
nihil fit. O mundo pode ser eterno ou não, mas isso é indiferente ao seu sentido, à
origem da sua determinação como mundo. Se o ex nihilo nihil fit corresponde ao
requerimento de sentido, ele aplica-se bem ao todo das coisas, pois é perfeitamente
possível pensá-lo como uma enorme incógnita silenciosa, por muito eterna que possa
ser, aquilo a que Pascal chamava "le silence éternel"37
36 TOMÁS DE AQUINO, Opuscula Philosophica. De Aeternitate Mundi. Sobre este assunto, veja-se, por exemplo VAN VELDHUISSEN, D., The question on the possibility of an eternally created world: Bonaventura and Thomas Aquinas, in WISSINK, J., The Eternity of the World in the Thought of Thomas Aquinas and His Contemporaries, Leiden, Brill, 1990, p. 28 e ss.37 PASCAL, Pensées, 201, LAFUMA, L. (ed.), Pascal. Oeuvres Complètes, Paris, Seuil, 1963.
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