expansoes contemporaneas literatura e ou

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  • 7/25/2019 Expansoes Contemporaneas Literatura e Ou

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    EXPANSESCONTEMPORNEAS

    Literatura e outras formas

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISR Cllio Campolina Diniz

    V Rocksane de Carvalho Norton

    EDITORA UFMGD W M MV-D Roberto Alexandre do Carmo Said

    CONSELHO EDITORIALWander Melo Miranda ()Ana Maria Caetano de FariaDanielle Cardoso de MenezesFlavio de Lemos CarsaladeHeloisa Maria Murgel StarlingMrcio Gomes SoaresMaria Helena Damasceno e Silva MegaleRoberto Alexandre do Carmo Said

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    Ana Kiffer

    Florencia GarramuoOrganizadoras

    EXPANSESCONTEMPORNEAS

    Literatura e outras formas

    Belo Horizonte

    Editora UFMG

    2014

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    2014, Os autores

    2014, Editora UFMGEste livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizaoescrita do Editor.____________________________________________________________________E96 Expanses contemporneas: literatura e outras formas / Ana Paula Kiffer e

    Florencia Garramuo, organizadoras. Belo Horizonte : Editora UFMG,2014.155p.: il. (Babel)

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-423-0043-7

    1. Arte Coletnea. 2. Literatura Coletnea. 3. Arte moderna Sc.XXI Coletnea. 4. Arte e literatura Coletnea. 5. Literatura Esttica Coletnea. I. Kiffer, Ana Paula Veiga. II. Garramuo, Florencia. III. Srie.

    CDD: 700 CDU: 7____________________________________________________________________

    Elaborada pela DITTI Setor de Tratamento da InformaoBiblioteca Universitria da UFMG

    C Michel Gannam

    A Eliane Sousa e Eucldia Macedo

    C Maria do Carmo Leite Ribeiro

    P Cludia Campos

    R Camila Figueiredo e Thas Duarte Silva

    P Cssio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico

    F Victoria Arenque

    P Warren Marilac

    EDITORA UFMGAv. Antnio Carlos, 6.627 | CAD II / BLOCO IIICampus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte/MGTel: + 55 31 3409-4650 | Fax: + 55 31 3409-4768www.editoraufmg.com.br | [email protected]

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    SUMRIO

    APRESENTAO 7

    HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE

    Trfego de imagens, composies anacrnicas e usos da

    cultura material nas representaes do tupi-guarani

    lvaro Fernndez Bravo 17

    A ESCRITA E O FORA DE SI

    Ana Kiffer 47

    POESIA, CRTICA, ENDEREAMENTO

    Celia Pedrosa 69

    FORMAS DA IMPERTINNCIA

    Florencia Garramuo 91

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    VIDA E MORTE DA IMAGEM

    Karl Erik Schllhammer 109

    FORMAS MUTANTES

    Wander Melo Miranda 135

    SOBRE OS AUTORES 153

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    APRESENTAO

    A esttica contempornea est habitada por uma sriede prticas e intervenes artsticas que evidenciam um

    estendido transbordamento de limites e expanses de cam-

    pos e regies. Segundo a descrio que Jacques Rancire

    faz dessa nova paisagem,

    todas as competncias artsticas especficas tendem a sair

    do seu prprio domnio e trocar seus lugares e seus poderes.Hoje temos teatro sem palavras e dana falada; instalaes e

    performances como se fossem obras plsticas; projees de

    vdeo transformadas em ciclos de afrescos e murais; fotografias

    tratadas como quadros vivos ou pintura histrica, escultura

    metamorfoseada em show multimdia, e outras combinaes.1

    No campo das artes visuais, essa paisagem vem sendo

    analisada de maneira consistente h alguns anos, numa

    reflexo terica que foi impulsada pelo impacto poderoso

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    da arte conceitual e das instalaes artsticas. J h algumas

    dcadas, com uma marca claramente estruturalista quetalvez tenha sido a sua limitao mais importante, Rosalind

    Krauss falou da escultura num campo expandido para

    situar a apario de um novo tipo de obras artsticas que

    s poderiam ser consideradas como esculturas se a prpria

    categoria de escultura se expandisse de tal maneira que

    deixasse de definir de modo especfico algum tipo de obra

    em particular.2

    Alguns anos mais tarde, e provavelmenteem resposta s crticas que tinha recebido pela rigidez desse

    paradigma estruturalista, a prpria Krauss ser uma das pri-

    meiras tericas a falar da condiopost-medialda arte con-

    tempornea para se referir propagao internacional da

    instalao de mixed media[que] tem se tornado ubqua.3

    No por acaso, nesse mesmo ensaio, a reflexo de

    Krauss se sustentava na anlise de algumas obras de MarcelBroodthaers, entre elas, a entitulada Charles Baudelaire: Je

    hais le mouvement qui dplace les lignes, de 1973. Trata-se

    de uma obra na qual o artista convm lembrar aqui, tam-

    bm poeta utiliza esse verso de Baudelaire colocando-o

    em cada pgina em lugares diferentes s vezes contra a

    margem esquerda, depois no centro da pgina, posterior-

    mente na margem direita , fazendo o texto figurar, sobrea pgina em branco, como imagem. O livro, pela sua vez,

    converte-se em uma sorte de objeto visual que incorpora o

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    APRESENTAO 9

    verso e o que o verso tem, sempre, de imagem como ele-

    mento construtivo dessa visualidade. Mas esse dispositivono faz o verso abandonar, nessa disposio, sua condio

    de verso, nem o livro, sua condio de livro. Muito pelo

    contrrio, precisamente a repetio e a colocao do verso

    na pgina so alguns dos procedimentos mais paradigm-

    ticos e representativos prprios e pertinentes da poesia

    enquanto forma discursiva. Ao colocar lado a lado literatura

    e visualidade, Broodthaers elabora uma forte crtica ideiade um meio especfico e se converte segundo Krauss em

    um dos precursores, numa genealogia da condio post-

    -medial, da arte contempornea. relevante que tenha sido

    Baudelaire quem inspirou essa genealogia, j que foi um

    dos nomes fundacionais em um movimento de expanso

    dos limites da lrica. Com tal expanso da lrica, Baudelaire

    vem consagrar a ideia de uma poesia moderna e de umaarte moderna , para a qual a sada para fora de siseria o

    seu dispositivo mais contundente.

    Neste momento poderamos assinalar que tal sada perfa-

    zia-se, sobretudo, nos mecanismos de passagens, na prpria

    relao entre as passagens do registro crtico ao potico, da

    vida cotidiana ao museu, entre outras que, por sua vez, no

    deixavam de inscrever nas prprias passagens arquitetnicascones de um certo modo de vida moderna na Paris de

    Baudelaire. Essas passagens, ainda ligaes entre interior e

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    exterior, vm sendo na arte e na vida contempornea

    explodidas em seus contornos arquitetnicos, estticos esubjetivos. Esta, se poderia dizer, uma interrogao crucial

    deste livro: quais transformaes se deixam notar entre a

    expansodos limites da arte moderna e a radicalidade de

    um no pertencimento contemporneo? De que modo o

    fora de si, antes marcadamente caracterizado pelos limites

    nacionais, territoriais e subjetivos, que faziam com que a

    sua apario se fundasse numa verdadeira transgresso,passou a caracterizar-se como um operador cotidiano das

    experincias-limite ou mesmo desidentitrias pelas quais

    passamos mais ou menos todos no mundo atual?

    E mesmo no mbito daquilo que por sculos (desde

    praticamente as origens da constituio do que entende-

    mos por Cincias Humanas)4se constituiu como lugar do

    especfico e do identitrio, hoje vemos, como aponta otexto de lvaro Fernndez Bravo, os diferentes modos de

    pensar o capital simblico amerndio como inespecfico

    mvel e heterocrnico e por sua vez passvel de evocar

    conotaes simblicas, histricas, etnogrficas e filosficas.

    Ou seja, a interrogao sobre os diferentes modos do no

    pertencimento, ou mesmo sobre a radicalizao das expe-

    rincias que hoje constituem um estar fora de si, nodeixa de apontar a fora paradoxal que age numa partilha

    do sensvel no mundo contemporneo. A prpria ideia de

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    APRESENTAO 11

    formas do no pertencimento (Garramuo) j em si um

    operador paradoxal, posto que recorre forma para falar doinespecfico, ou ainda o fora de si (Kiffer), que apela para

    uma exterioridade radical, porm ligada constituio do

    subjetivo. Ou, mais longe ainda, todo o desenvolvimento

    proposto por Schllhammer da ideia paradoxal de uma

    imagem que ao mesmo tempo um composto de vida e

    afeto, mesmo que saibamos que uma imagem j no mais

    a vida seno que a sobrevivncia do instante de sua morte,ali concentrada, congelada ou refluda.

    A esse respeito, tambm a literatura e a poesia contem-

    pornea (Pedrosa e Garramuo) participam de uma intensa

    expanso de seu campo ou meio especfico h alguns anos.

    No dizer de Pedrosa, ao analisar a poesia de Marcos Siscar:

    No ir e vir constante em que o dentro e o fora tm sub-

    vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuaisse mesclam a fragmentos de memria potica, filosfica,

    geogrfica, geolgica, biogrfica. Como na poesia de Mar-

    cos Siscar, exploraes literrias que estabelecem pontos de

    conexo e fuga entre fico e fotografia, imagens, memrias,

    autobiografias, blogs, chats e correios eletrnicos, assim

    como entre o ensaio e o documentrio, como o demostram

    textos to diversos como os de W. G. Sebald, Bernardo deCarvalho, John Berger, Joo Gilberto Noll, Fernando Vallejo

    ou, de Nuno Ramos, so cada vez mais numerosas, muito

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    embora isso no implique que sejam hegemnicas. Caberia

    assinalar, alis, que muitos dos textos que se limitam ao quepoderamos considerar como o seu prprio meio se de-

    cidirmos optar por uma linguagem positivista evidenciam

    uma srie de perfuraes nas convenes que tm definido

    a especificidade literria, abrindo, por conseguinte, outras

    possibilidades ou linhas de fuga em relao ideia da es-

    pecificidade do literrio.

    Trata-se no s de uma imploso do meio especfico,ainda se entendermos meio para alm do seu suporte

    fsico, incorporando em sua definio as convenes que o

    definem num momento histrico determinado.5Trata-se,

    mais alm e isto o mais importante , de um profundo

    questionamento do prprio enquanto definio estvel

    e circunscrita de uma especificidade. Especificidade tanto

    do meio como do prprio conceito de arte, como um modode postular o que em outro artigo temos chamado de uma

    arte inespecfica.6 ali que se joga uma noo de literatura

    ou de arte que tem incorporado, dentro de sua linguagem,

    suportes e funes, uma relao com outros discursos e

    esferas nos quais o literrio, ou o artstico, no dado nem

    construdo, mas, muito pelo contrrio, desconstrudo ou,

    pelo menos, colocado em questo ou sur rature, comoapontou Jacques Derrida. Esse movimento dispe textos

    que, no dizer de Wander Melo Miranda, deveriam ser

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    APRESENTAO 13

    pensados como formas mutantes, onde o dispositivo da

    montagem que os constri se realiza por meio de cortes erecortes no contnuo do relato, de migraes e sobrevivncia

    das figuras em que os eventos narrados se transformam.

    nessas sobrevivncias, nessas heterogeneidades7e heteroto-

    pias, que essa arte inespecfica cifra uma vontade de imbri-

    car as prticas artsticas na convivncia com a experincia

    contempornea. Para alm mesmo da noo de campo,

    enquanto espao circunscrito por limites e fronteiras, a ideiade uma arte que seria autnoma e independente aparece

    suplantada por uma arte inespecfica que se figura como

    parte do mundo.

    Na tentativa de pensar essa nova paisagem da arte con-

    tempornea, os ensaios deste livro tomam objetos diversos

    prticas estticas, antropolgicas, poticas, literrias para

    explorar com eles os modos como a expansividade da artehoje tem se constitudo num fora de si radical. O limite, des-

    se modo, deixa de se localizar enquanto uma anterioridade j

    dada, para se perfazer de modo transitrio, tnue ou poroso

    enquanto lugar de experincia da prpria obra (Kiffer).

    Desde os debates em torno da especificidade da obra de

    arte colocados por antroplogos e historiadores (Fernndez

    Bravo), expansividade da poesia brasileira contemporneaconcebida a partir de um hibridismo entre verso e prosa,

    noes como as de formas mutantes, obra-instalao

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    (Wander Melo Miranda) ou imagem pensiva (Rancire8

    e Schllhammer) buscam definir conceitos que permitamcompreender esse fora de si para pensar a proliferao

    escriturria que vai fazer da prpria atividade da escrita

    uma passagem incessante entre regimes heterogneos, seja

    no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de

    campos discursivos (Kiffer).

    As organizadoras

    Notas1 Jacques Rancire, El espectador emancipado, Buenos Aires, Manantial, 2010,

    p. 27, traduo nossa.

    2 Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field, October, v. 8, p. 30-44,Spring 1979. Lembremos a indefinio que pretende dar nome o conceito:Nos ltimos dez anos, coisas bem surpreendentes tm vindo a ser chamadasesculturas: estreitos corredores com monitores de televiso; grandes fotografias

    documentando o campo; espelhos colocados em ngulos estranhos em quartoscomuns; linhas temporrias cortadas no piso do deserto. Nada, pareceria,poderia dar a essa heterogeneidade o direito de reclamar o que poderia sersignificado pela categoria de escultura. S se a categoria for tornada quaseinfinitamente malevel. (Ibidem, p. 31.)

    3 Rosalind Krauss,A Voyage on the North Sea. Art in the Age of the Post-MediumCondition, London, Thames and Hudson, 1999, p. 20. Hal Foster tem apontadoque durante as ltimas trs dcadas o campo expandido tem lentamente im-plodido, j que termos antes tidos em contradio produtiva tm gradualmentecolapsado em compostos sem muita tenso, como nas muitas combinaes do

    pictrico e do escultural, ou de arte e arquitetura, em arte instalao hoje arteque, na sua maioria, cabe bem demais na cultura do desenho-exibio criticadaem outra parte neste livro. (Hal Foster, This Funeral is for the Wrong Corpse,em Design and Crime, and Other Diatribes, New York/London: Verso Books,2002, p. 127, traduo nossa.) Segundo Jane Rendell, comentando Foster, o

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    APRESENTAO 15

    campo teria explodido mais do que implodido, e (...) por essa razo que ascategorias j no esto postas em tenso. (Jane Rendell, Art and Architecture:

    A Place Between, London, New York, IB Tauris, Sept. 2006, no prelo, traduonossa.)

    4 Michel Foucault, Les mots et les choses: une archologie des sciences humaines,Paris, Gallimard, 1966.

    5 Cf. Jacques Rancire, What a Medium Can Mean, Parrhesia, n. 11, p. 35-43,2011.

    6 Cf. Florencia Garramuo, Especie, pertenencia, especificidad, em e-misfrica,v. 10, n. 1, Winter 2013.

    7

    Ver Ana Kiffer, Sobre limites e corpos extremos, em Karl Erik Schllhammer eHeidrun Krieger Olinto (org.), Literatura e criatividade, Rio de Janeiro, 7Letras,2012.

    8 Rancire, El espectador emancipado.

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    HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADETrfego de imagens, composies anacrnicas

    e usos da cultura material nas representaes

    do tupi-guarani

    lvaro Fernndez Bravo

    O problema que gostaria de analisar brevemente neste

    artigo a posio intermediria ocupada pelos objetos comoevidncia material para se teorizar sobre a natureza da cul-

    tura. Quando falo de objetos, refiro-me a vestgios de uma

    cultura material que se encontram em um espao indeciso

    e em transio: podem ser lidos como restos arqueolgicos,

    obras de arte, relquias ou artefatos, mas ficam fora de lugar

    e por isso mesmo podem ser apropriados, descontextualiza-

    dos ou restitudos no seu entorno (e tambm num campodisciplinar), possibilitando que se leia neles inmeros e

    diferentes tipos de evocaes. So objetos que, quando se

    reconhece seu itinerrio, desafiam a autonomia e no seu

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    18 lvaro Fernndez Bravo

    percurso cruzam fronteiras epistemolgicas, conceituais,

    territoriais e temporais, desenhando assim um mapa decontornos expandidos.

    Durante os anos de 1920, tanto na Europa quanto na

    Amrica Latina, consolidou-se um interesse pelo mundo

    indgena e sua cultura material como suporte para desen-

    volver teorias estticas e investigaes etnogrficas, ou ainda

    postular hipteses sobre a natureza das culturas nacionais.

    As vanguardas apelaram ao referente indgena, s vezes paradesafiar a hegemonia dos paradigmas nacionalistas, outras

    para consolid-la. O trfego de coisas aumentou, amparado

    pelo aparato colonial (desdobrado tanto pelas potncias

    coloniais do Atlntico Norte como pelos Estados nacionais

    latino-americanos), e com ele o nmero de depsitos e a

    infraestrutura para receber objetos e catalog-los. Nesse

    processo, os etngrafos ocuparam um rol chave. Comosabemos, as coisas e os objetos adquirem essa condio

    pelo uso e pelas camadas de olhares humanos que foram se

    sobrepondo a eles, colocando-os, muitas vezes, em relao

    com diferentes campos.

    Os objetos que ingressaram e se movimentaram entre os

    diferentes museus vo ser um dos focos de minha ateno

    aqui, e em particular os debates em torno da especificidadeda obra de arte, posto que muitas delas s adquiriram essa

    condio ao serem exibidas e contempladas como tais.

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    HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 19

    Esse problema atraiu o interesse de numerosos pensadores

    que se perguntaram pela migrao da cultura material noeuropeia, que foi trasladada em grandes quantidades desde

    seus lugares arqueolgicos em todo o mundo at chegarem

    aos museus europeus, norte-americanos e tambm latino-

    -americanos, revelando, pela primeira vez, conotaes es-

    tticas ali onde essa nfase no se configurava.

    Assim se pode falar de uma dupla migrao da Amrica,

    sia e frica para a Europa e os Estados Unidos e tambmdas reas rurais para as cidades e, uma vez l, entre os mu-

    seus que se multiplicaram e foram ganhando especificidade.

    Nas sucessivas trajetrias, os curadores e colecionadores

    davam aos objetos novos atributos.

    possvel encontrar um antecedente dessa preocupao

    na viagem de Aby Warburg (1866-1929) para o territrio

    da tribo dos ndios Pueblo, no atual estado de NovoMxico, Estados Unidos, em 1896. O contato de Warburg

    com os Pueblo marcou as suas teorias sobre o Nachleben

    e a sobrevivncia de prticas simblicas arcaicas em

    manifestaes artsticas contemporneas e heterocrnicas.1

    Warburg tinha comeado a pensar na questo da

    sobrevivncia em obras do Quattrocentoitaliano, nas quais o

    historiador de arte tinha reconhecido restos pagos arcaicos.Georges Didi-Huberman tem desenvolvido recentemente

    uma provocativa e erudita releitura da obra de Warburg que,

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    20 lvaro Fernndez Bravo

    em contraste com as leituras de Ernst Gombrich com as

    quais polemiza, busca reconhecer o valor do anacronismo.Didi-Huberman procurou recuperar a complexidade do

    legado warburguiano e elaborar alguns conceitos sobre

    os quais voltarei no meu trabalho, em particular o da

    heterocronia das coisas e das imagens.2 O caminho de

    Warburg foi precursor, se comparado a outros etngrafos,

    artistas e pensadores que percorreram a Amrica do Sul

    poucos anos depois e se detiveram na cultura materialamerndia para interrog-la e recuperar as perguntas do seu

    trabalho de campo para questionar sua prpria prtica e,

    com ela, os contornos disciplinares e os efeitos do trfego

    de coisas e de conceitos.

    Gostaria de pr em dilogo essas perspectivas para ana-

    lisar o problema do tempo heterogneo, o trfego de ima-

    gens e os usos da cultura material tupi-guarani como meio,isto , os diferentes modos de pensar o capital simblico

    amerndio como inespecfico mvel e heterocrnico e

    tambm passvel de evocar conotaes simblicas, hist-

    ricas, etnogrficas e filosficas distintas. Para tal, vou levar

    em considerao os debates que circundaram a publicao

    da revista Documents, dirigida por Georges Bataille, e seu

    efeito no modo de olhar para a cultura material guarani. Odilogo e a tenso entre etnografia e vanguarda atravessou

    a especulao esttica e terica durante esses anos e pode ser

    reconhecido nas pesquisas sobre o mundo guarani.

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    HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 21

    A figura de Alfred Mtraux (1902-1963) e seus escritos

    iniciais sobre as culturas tupi-guarani e tupinamb so umponto de partida para analisar o lugar do objeto de arte

    como conglomerado de relaes. Interessa-me examinar

    a construo de um discurso sobre o mundo guarani a

    partir dos restos e dos vestgios da cultura material con-

    servados em museus do norte da Europa e consultados por

    Mtraux para escrever seus primeiros livros. A pesquisa de

    Mtraux tem apoio em fontes escritas (relatos de viagem,crnicas coloniais e estudos etnogrficos contemporneos

    ao momento de escritura), mas sobretudo em sua leitura

    de documentos e nos cruzamentos interdisciplinares em

    que convergem a etnografia, a arqueologia, a filologia e a

    arte, o passado e o presente, a civilizao e o primitivo.

    Publicado em 1928, o mesmo ano em que Mtraux fez a

    curadoria, com Georges Henri Rivire, da exposio LesArts Anciens de lAmerique, no Museu do Louvre, e em

    que se comea a publicar em So Paulo a Revista de Antro-

    pofagia, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani

    oferece um repertrio de objetos a partir dos quais se

    desdobra uma teoria cultural. Porm, a assepsia metodo-

    lgica do antroplogo nunca perde de vista o objeto que

    ele usa para apoiar sua investigao.3Especula sobre suaantiguidade, sonda conotaes onde se reconhecem os

    debates do momento, elabora mapas e prope itinerrios

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    para as coisas. No segue o mesmo caminho do seu ami-

    go Georges Bataille, mas mantm algumas preocupaescomuns. por isso, talvez, que Andr Breton o chamou

    de o homem antipotico do sculo XX.4

    Sua interveno pode ser lida como uma resposta (mas

    tambm como um dilogo) com a revista Documents,

    dirigida por Bataille, que comeou a ser publicada em

    1929, no ano seguinte ao do seu livro e da exposio de

    arte americana de 1.200 objetos exibida no Louvre, a pri-meira grande exibio de arte pr-colombiana na Europa

    ocidental,5e da mudana de Mtraux para a Argentina,

    onde j ento dirigia o recm-fundado Instituto de Et-

    nologia da Universidade Nacional de Tucumn. Nesse

    mesmo ano de 1928, Mtraux, com Jean Babelon e Georges

    Bataille tinham editado um nmero da revista Cahiers de

    la Republique des Lettres, des Sciences et des ArtsintituladoLart prcolombien. Ali se incluiu LAmrique disparue,

    um dos primeiros artigos de Bataille. Essa revista permite

    reconhecer uma precoce manifestao do campo expan-

    dido no qual se cruzam a histria da arte, a cincia e a

    literatura. dentro dessas guas que quero ler a obra de

    Mtraux. Os objetos amerndios ocupavam uma posio

    desconcertante e aberta na exposio. Veremos os efeitosdessa posio mais adiante.

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    Cahiers de la Rpublique des Lettres, des Sciences et des Arts , 1928.

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    Mtraux, filho de um mdico suo que tinha se

    estabelecido na provncia de Mendoza, Argentina, passousua infncia na Amrica do Sul, viajou para realizar estudos

    no liceu da sua cidade natal, Lausane, Sua, e logo continuou

    seus estudos universitrios em Paris e em Gotemburgo,

    Sucia. Defendeu sua tese de doutorado na Sorbonne

    no mesmo ano de 1928, e a publicou em duas partes: La

    civilisation materielle des tribus Tupi-Guaranie La religin

    des Tupinamba et ces rapports avec celle des autres tribusTupi-Guarani.6Escreveu os dois livros sem ter realizado

    trabalho de campo, baseando-se nas colees de cultura

    material recolhidas por seu maestro Erland Nordenskild

    na Amrica do Sul, entre 1901 e 1902, e alojadas no Museu

    de Gotemburgo, e visitando os museus de Copenhague e

    Berlim. Durante sua permanncia em Paris, estudou com

    Marcel Mauss e estabeleceu uma longa relao com o grupode intelectuais surrealistas que pouco depois iria se nuclear

    na revista Documents. Dado meu interesse pelos objetos,

    vou me concentrar no primeiro de seus livros.

    Documentos da barbrie

    Antes de ingressar no problema da heterocronia da civili-

    zao material tupi-guarani, quero me deter brevemente no

    debate que teve lugar na revista Documents, e que tem um

    eco no trabalho do etngrafo suo que analisaremos aqui.

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    Muitos dos membros da revista (1929-1930, 15 nmeros)

    estavam plenamente imersos na discusso sobre a posioda cultura material de origem no europeia (primitiva)

    nos museus europeus. O subttulo da revista, Doctrines,

    Archologie, Beaux-Arts, Ethnographie, permite reconhecer

    a convivncia de categorias heterogneas dentro da publica-

    o, que rechaava a ideia do valor esttico como autnomo,

    desligado dos usos atribudos s coisas. Essa posio pode

    ser lida como um antecedente da perspectiva de Mtrauxde ler os objetos num campo expandido. A relao entre

    as vanguardas e a arte primitiva, j para fins dos anos de

    1920, mostrava seus impactos sobre o mercado de arte e

    consagrava a profanao desses objetos ao incorpor-los

    decisivamente ao mercado, elevando sua cotizao e con-

    firmando os efeitos irreversveis do museu sobre as coisas

    que caam nas suas garras. Como assinala Denis Hollier noprefcio edio de 1991, Documentster por plataforma

    uma oposio ao ponto de vista esttico.7

    Gonzalo Aguilar destaca que um andamento seme-

    lhante ocorre no Movimento Antropofgico em 1928. A

    esttica que tinha ocupado um lugar central noManifesto

    Pau-Brasil, de 1924, perde agora importncia e resulta

    substituda por uma afiliao poltica ao negcio indgena.8Trata-se, claro, de uma afiliao retrica, afastada de todo

    conhecimento etnogrfico ou contato com o mundo ame-

    rndio, com o qual os membros da vanguarda antropfaga

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    nunca tiveram uma aproximao efetiva, diferentemente

    de Mrio de Andrade, que manteve uma relao ativa como conhecimento cientfico, tanto nas suas viagens como na

    sua leitura da obra de Koch-Grunberg, citado vrias vezes

    por Mtraux no livro La civilisation matrielle.

    Se as coisas podiam ter um valor como documentos a

    partir dos quais se lia rastros de culturas primitivas, quer

    dizer, arcaicas e remotas, nesse valor de meio de acesso

    que residia uma de suas maiores riquezas, porque em talvalor j se preparava, naturalmente, uma reflexo sobre o

    contemporneo. Sem dvida que a defesa do valor de uso em

    face do valor de cmbio que o mercado impunha aos objetos

    radicava em preservar o resto material que essas coisas ti-

    nham tido antes de ingressar na economia da coleo. Muito

    embora se tratasse de objetos primitivos, se privilegiava seu

    valor de uso e se denunciava os arquelogos e os estetaspelo seu formalismo, interessados na forma de uma asa [de

    uma pea de olaria], mais incapazes de estudar a posio

    do homem que bebe.9

    Tambm significava conservar o lugar do intermdio

    e aberto que tanto as imagens como os objetos possuem.

    A condio de externalidade das coisas,10muito embora

    fosse fantasmagrica e opaca, as preservava do fetichismo damercadoria que sua cotizao na bolsa de valores da arte j

    comeava a lhes imputar. O debate suscitado em Documents

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    teve vrios participantes ligados a Mtraux, como o prprio

    Georges Henri Rivire, coeditor de Documentscom Bataille.Rivire tinha sido colaborador, com Mtraux, no s na-

    quela primeira exposio no Louvre, mas tambm como

    benfeitor, desde a subdireo do Muse de Ethnographie

    du Trocadro, dos envios de cultura material realizados

    desde o Chaco at Paris pelo etngrafo suo. O Muse du

    Trocadro foi mudando de nome no decorrer dos anos,

    primeiro para Muse de lHomme e depois para o atualMuse du Quai Brainly, e os objetos remitidos por Mtraux

    ainda permanecem l e podem ser observados na pgina

    web do museu. Foi no Muse du Trocadro onde Picasso

    teria se inspirado para pintar Les demoiselles dAvignon,

    logo aps observar objetos de procedncia africana expostos

    nas vitrines.11

    Carl Einstein, terico da arte primitiva e colaborador dapublicao, tambm se interessou pela questo da cultura

    material no campo expandido.12Einstein tinha proclamado

    alguns anos antes que a era das fices formalistas sobre a

    arte tinha acabado,13e atacou a mediao europeia capita-

    lista da qual a vanguarda se revelava, em ltima instncia,

    cmplice , por consider-la cultora duma arte burguesa,

    elitista, individualista e afastada de um propsito coletivistaque inclua situar os objetos longe da intermediao dos

    colecionistas.

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    O termo documento, que d ttulo revista, tambm

    contrasta com a categoria de monumento. Monumentoalude ideia da cultura como trofu e sublimao, que os

    membros da revista rechaavam, como fez Mtraux, em

    suas leituras etnogrficas de objetos da arte a partir de sua

    insero no mundo social de onde tinham sido extrados.

    No se tratava de sustentar a transparncia da coisa, mas de

    us-la como disparador para desenvolver hipteses sobre o

    universo de onde provinham e no qual interatuavam.As coisas adquiriam, assim, um valorpost-medial, pela

    sua condio inespecfica: a categoria de belas artes, em-

    bora aparecesse no nome da revista, estava compreendida no

    documento, que rechaava toda hierarquia (um sapato tinha

    o mesmo valor que uma diadema de origem vikingou uma

    obra de Giacometti). Recuperava-se, assim, intensamente, o

    valor de uso como ia fazer Mtraux na sua reconstruo dacultura guarani a partir dos objetos reunidos na coleo de

    seu maestro Erland Nordenskild no Museu de Gotembur-

    go e se afastava, tambm, de toda noo de pureza e cultura

    alta. por isso que a categoria de civilizao poder ser

    usada por Mtraux para se referir ao mundo guarani que

    at ento dificilmente poderia ter sido considerado como

    tal. Na mesma linha, Paul Rivet, que tinha recomendado a

    Juan B. Tern, Reitor da Universidade de Tucumn, para

    contratar Mtraux, assinalava que

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    capital o etngrafo, como o arquelogo, como o historiador

    da pr-histria, estudar tudo o que constitui uma civilizao, semdeslegitimar nenhum elemento, por insignificante ou banal que

    parea () os colecionistas tm incorrido no erro de um homem

    que for julgar a civilizao francesa atual pelos objetos de luxo

    que podem ser encontrados junto a um grupo muito reduzido

    da populao.14

    A afinidade da vanguarda com o baixo, a barbrie,os detritos, o anacronismo e seu ataque furioso s hierar-

    quias consagradas no museu no impediram nem em sua

    manifestao parisiense, nem nas suas expresses latino-

    -americanas, incluindo o Movimento Antropofgico bra-

    sileiro, as alianas estratgicas e o colaboracionismo com as

    instituies de acumulao simblica primitiva localizadas

    nos centros urbanos de poder poltico, tanto europeus

    como latino-americanos, para onde o trfego dos vestgios

    da cultura material continuou sem pausa.15No entanto,

    os objetos, ainda que descontextualizados, albergam uma

    resistncia e uma carga histrica inapagvel. Esse resduo

    temporal e simblico vai ser o foco de interesse de Alfred

    Mtraux a respeito da cultura guarani.

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    A civilizao material tupi-guarani

    O livro de Mtraux parte de dois conceitos raramen-te justapostos. Civilizao material apresenta um par

    conceitual que no idntico: nem cultura material

    nem civilizao isoladamente. A expresso pode se

    explicar, conforme observam Bossert e Villar, em relao

    ao alinhamento do antroplogo suo com o enfoque

    cauteloso e ainda disposto a conviver com a incerteza da

    escola escandinava de americanistas na qual o seu maestroErland Nordenskild o tinha treinado. Nordenskild

    cujas obras Aby Warburg conheceu e consultou16 con-

    tribuiu ainda com a revista Documents com um artigo

    sobre a cultura material indgena americana, cujas ideias

    tm semelhana com o mtodo de Mtraux no seu livro

    La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani.17No

    entanto, o artigo tinha noes difusionistas que procu-ravam indagar na difuso de elementos culturais para

    reconstruir o mapa tnico da Amrica do Sul. Tratava-

    -se de uma posio moderada, disposta a reconhecer

    invenes independentes e prximas a certo relativismo

    cultural afastado dos extremos dogmticos dos tericos

    da Kulturkreisedo difusionismo alemo ortodoxo.18

    Assim, Mtraux propunha estudar a civilizao mate-

    rial, um conceito que no estava associado com os grupos

    indgenas Tupi-Guarani, particularmente na Argentina,

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    onde o mundo indgena estava desprestigiado e tinha acesso

    somente a museus etnogrficos sob os parmetros racistasda antropologia fsica. Apesar de algumas tentativas de

    ingressar relquias indgenas em espaos associados com

    a arte, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos

    Aires, elas tinham sido corts, mas firmemente derivadas

    para o campo da cincia, como no caso da urna Quiroga,

    uma pea de olaria calchaqui descoberta e doada pelo

    arquelogo Adn Quiroga, eventualmente invisibilizadano Museu Etnogrfico da Universidade de Buenos Aires.19

    Em contraste com esse antecedente, o guarani se en-

    contra solidamente integrado no mundo paraguaio, onde

    , junto com o espanhol, uma das duas lnguas oficiais do

    Estado, e instituies como o Museu do Barro consagram

    a cultura material guarani como emblema da cultura na-

    cional.20O guarani ocupa, no entanto, um lugar menosntido tanto na Argentina como no Brasil e na Bolvia, onde

    tambm habitam falantes de lnguas guaranis.

    O Chaco uma zona de limites imprecisos que compre-

    ende regies da Argentina, Bolvia, Paraguai e Brasil. Seu

    territrio tem sido habitado e atravessado pelas migraes

    guaranis e tupis durante vrios sculos. Vou tomar os es-

    critos sobre esse grupo tnico como um campo expandidoe em movimentoque, a partir de objetos de arte de natureza

    hbrida, por momentos carregados de um valor religioso,

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    mas tambm dotados de conotaes estticas tal como

    os considerou Aby Warburg no seu ensaio sobre os ndiosPueblo do Novo Mxico, elaborado em torno de 1927,mas s publicado 50 anos mais tarde ,21evidenciam umconglomerado de relaes a partir do objeto de arte quecompreende crenas, mitologia, prticas comunitrias ereligiosas e patrimnio lingustico.

    Como assinalou recentemente Eduardo Viveiros deCastro, aplicar categorias como territrio ou comunidadeao mundo indgena entranha problemas difceis de seremresolvidos, ligados migrao, ao movimento e flutuaocontnua da mesma composio desses grupos humanos.22Como toda comunidade, os indgenas Tupi-Guaranino permanecem imveis, mas mudam, se deslocam,incorporam novos componentes, se fragmentam e alteramcontinuamente seu capital simblico. No permanecem

    idnticos a si mesmos. No obstante, esse fenmeno foireconhecido muito cedo pelos etngrafos, particularmentepor Mtraux (mas tambm por Nordenskild); foi elequem dirigiu as pesquisas de objetos realizadas durantesua permanncia em Gotemburgo. Mtraux procuravareconstruir o itinerrio da suposta irradiao a partir deum ncleo primignio no Amazonas para diversas regies

    da Amrica do Sul, incluindo a fronteira com o mundoandino, onde ele estudou os ento denominados indgenaschiriguanos, como possvel observar nos mapas declara inspirao difusionista includos em La civilisation

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    matrielle des tribus Tupi-Guarani. Ali se reconhece um

    xodo de leste a oeste, desde as costas atlnticas at ointerior do continente atravs dos rios amaznicos oudas selvas do Chaco, que culmina nos grupos Chiriguano(hoje denominados Av-Guarani) da Bolvia e do norteda Argentina.23 O efmero dos gentilcios, incluindo oprprio gentilcio tupi-guarani, indica no s uma condioatravessada por saberes contemporneos produo deconhecimento sobre esses grupos, mas tambm a maneiracomo o discurso para nome-los se torna rapidamenteanacrnico. Assim, categorias como tribo no ttulo daobra de Mtraux , nao e raa, para se referir aos tupi,revelam o anacronismo do discurso cientfico, atravessadopor uma forte ancoragem temporal. A lngua se encontraurdida pelo tempo em que foi usada e funciona, tal como afilologia tem sugerido, no s como meio de comunicao,

    mas como arquivo e depositrio arqueolgico do tempoem que operou.

    A palavra tinha um valor equivalente ao de um fssilpara os padres epistemolgicos dos anos de 1920, em quea antropologia se consolidava como disciplina,24mas osdiscursos etnogrficos, como a literatura de viagem, tinhamperdido tanto a sua nfase assertiva como a preciso cien-

    tfica, e revelavam antes atributos estticos e ideolgicoscom valor para uma Kulturwissenschaft, a cincia da culturapela qual advogava Warburg. Ainda que a composio dotupi-guarani apele a fontes escritas, objetos e imagens de

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    um extenso repertrio e atravs de um amplo arco tempo-

    ral, todo esse fluxo de informao, bibliografia, citaes ereferncias conduz a uma teoria sobre o presente: a deca-

    dncia e a ameaa de extino que se cerne sobre a cultura

    guarani, e que o etngrafo procura resgatar antes que seja

    tarde demais.

    As duas imagens que vemos continuao, includas

    no Captulo Sepultura de La civilisation matrielle des

    tribus Tupi-Guarani,25

    permitem reconhecer o modo detrabalho de Mtraux, que combina as ilustraes includas

    no livro de Hans Staden com fotografias contemporneas

    de objetos pertencentes coleo do Museu de Gotembur-

    go para elaborar uma teoria que culmina no presente. A

    bibliografia sobre sepultura inclui obras de Hans Staden,

    Jean de Lry, Yves Dvreux, Claude DAbbeville, Gabriel

    Soares de Souza, Andr Thvet e Martin Dobrizhoffer,todos autores de obras dos sculos XVI ao XVIII e que

    cobrem uma extensa superfcie e variedade de grupos tni-

    cos. Mas, junto com eles, tambm cita Nordenskild, Karl

    von Steinen, Juan Bautista Ambrosetti, Antonio Tocantins

    e Carl von Martius, autores mais modernos, alguns deles

    ainda contemporneos do prprio Mtraux e tambm es-

    tudiosos de culturas muito diversas. Os objetos convocamassim um repertrio heterogneo e impuro de saberes e

    escritos que combinam momentos histricos desiguais,

    de filiaes com escassas probabilidades de interseo.

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    Imagens tomadas de A. Mtraux, La civilisation matrielle des tribusTupi-Guarani, 1928.

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    O que que Mtraux prope ler na superfcie das coisas?

    Seu mtodo recupera as mltiplas capas de tempo alojadasnos objetos e procura desenvolv-las para entender uma

    trajetria que cruza diversos perodos e regies atravs dos

    quais os Guarani se deslocaram. Por se tratar de uma pes-

    quisa que confia em reconstruir uma trajetria, tem neces-

    sariamente que apelar a uma mobilidade conceitual capaz de

    registrar a sobrevivncia e, por isso mesmo, a heterocronia

    das prticas simblicas atravs de extensos perodos histri-cos. Na sua anlise, o antroplogo reconhece componentes

    estticos, rituais, religiosos, crenas, supersties e prticas

    coletivas. Sua teoria culmina nos Chiriguano e nos Omagua,

    grupos sobreviventes, contemporneos e portadores de

    prticas nas quais o etngrafo procurava reconhecer rastros

    do passado. Suas hipteses convivem com especulaes

    sobre as prticas funerrias dos Tupinamb e dos Guaranioriginrios, s vezes superpostas ou formando parte de um

    mesmo ncleo inicial a partir do qual comeou a difuso

    dos ritos simblicos ainda visveis. Isto , o passado arcaico

    e o presente contguo se tocam para postular uma imagem

    do contemporneo. O contemporneo precisa do arcaico

    para recortar seu territrio.

    Nos ritos funerrios se reconhece um rastro dos inte-resses de Bataille que sobrevivem, ainda que muito mais

    contidos, na prosa materialista de Mtraux. A festa, o

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    gasto improdutivo e a produo simblica associados

    morte permitem identificar algumas das obsesses dodiretor de Documentsna escritura muito mais mesurada

    de Mtraux. Contudo, a espessura da coisa conserva sua

    complexidade e tambm sua opacidade. Mesmo que a

    busca por escrutar filiaes entre distintos grupos se man-

    tenha, s permanece como uma hiptese que, em ltima

    instncia, sugere a indistino e inespecificidade de cada

    comunidade. Ainda que os indgenas sejamclassificadosem quadros de inspirao etnogrfica difusionista, tanto

    nos seus nomes como nos seus atributos h um status

    contingente e hipottico. A espcie s serve para demostrar

    afinidades, e no diferenas essenciais entre grupos tnicos

    como os Chiriguano: ainda que mantenham uma filiao

    lingustica com o mundo guarani, tm sido infludos por

    outras culturas, principalmente as andinas. A lngua exibesua prpria limitao como segurana de pertencimento

    simblico.

    Se pusermos em relao essa noo com a heterocronia

    warburguiana, possvel pensar nos fsseis viventes, seres

    perfeitamente anacrnicos da sobrevivncia, semelhantes

    aos elos perdidos definidos como formas intermedirias

    localizadas entre estgios antigos e estgios recentes de

    variao.26Por essa condio inclassificvel, o Nachleben

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    desafia as taxonomias evolucionistas e permite interpor-se

    como instrumento conceitual no campo expandido.O olhar de Mtraux sobre os grupos indgenas do Chacono um olhar entusiasmado nem otimista. Seu trabalho

    de campo foi difcil, numa rea rdua e para a qual careciade algumas ferramentas, assim como um conhecimentolingustico adequado.27Encontrou comunidades em de-cadncia, submetidas a uma rpida eroso do seu capital

    cultural e tratadas com indiferena pelos Estados nacionaisque agora as incluam, mas que no tinham interesse empreservar ou em estudar culturas com as quais, alis, guar-davam fortes relaes de parentesco, como tem observadoRaul Antelo nos escritos de Mtraux. Porm, a comprovaoda sobrevivncia, como observa Didi-Huberman sobre osvaga-lumes, encerra o reconhecimento de uma forma de

    resistncia cultural que conserva ao menos alguns vestgiosdo passado ainda vivos.28

    Os indgenas mantm, ainda com grande perigo deextino, rastros que os vinculam com seus ancestres e suacultura primordial, primitiva, e por isso mesmo dotada deum valor intrnsecopostepre-media, j que no tm sidoainda integrados ao dispositivo do mercado da arte que

    tinha comeado a deglutir e mercantilizar [commodify]na Europa a cultura material primitiva no europeia. Naimagem que vemos a seguir, uma fotografia tomada porMtraux durante seu trabalho de campo nos anos de 1930

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    no Chaco, observamos a produo de vasilhas semelhantes

    s que incluiu no seu captulo sobre a sepultura na culturatupi-guarani.29

    Fotografia de Alfred Mtraux, c. 1930, Museu Etnogrficode Genebra, Sua.

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    Concluso

    possvel assinalar, como j observou Raul Antelo, queos anos de Mtraux na Argentina lhe permitiram desenvol-

    ver uma teoria que no s compreendia os grupos indgenas,

    mas tambm as sociedades crioulas locais. El problema de

    la civilizacin, artigo publicado na revista Sur, de Buenos

    Aires, em 1937,30pode ser lido tambm como uma teoria

    do campo expandido, um manifesto contra a multiplicao

    artificial das diferenas culturais e um reconhecimentoda lngua como um patrimnio comum, uma forma de

    comunidade que revela abertura, intercmbio, interco-

    nexo, impureza e comparao, antes que segmentao,

    especializao e espacializao. Tanto nas pesquisas sobre

    o mundo tupi-guarani como no seu trabalho de campo com

    indgenas da regio do Chaco durante sua permanncia

    na Argentina, Mtraux, interessado como muitos dos seuscolegas no problema da perda e no impacto da aculturao

    sobre comunidades vulnerveis, refletiu, com efeito, sobre

    um problema mais amplo: a decadncia das sociedades

    modernas, o avano do nazismo na Europa, a desateno

    das elites latino-americanas para com o patrimnio cul-

    tural indgena e os padres de imitao e importao do

    capital simblico europeu entre as burguesias locais, que

    em muito pouco contribuam para reparar o dficit cultu-

    ral crnico dessas sociedades, subvencionando a imitao

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    ou comprando arte europeia para abastecer seus museus.

    Essa indiferena pelo mundo amerndio era reveladorade uma civilizao, a crioula, dependente, atrasada e um

    pouco grotesca; se trata da mesma acusao que articulou

    o Movimento Antropofgico e que emerge em numerosas

    vozes latino-americanas do perodo.

    preciso assinalar, para finalizar, que, alm da recu-

    perao do trabalho de Mtraux a favor das sociedades

    primordiais, realizada por Antelo, a tarefa do etngrafonunca abandonou um compromisso ao menos equvoco

    com o trfego da cultura material aos centros de acumula-

    o cultural europeus, avaliados pelo aparato colonial: os

    museus que as vanguardas tinham denunciado durante sua

    fase heroica, mas dos quais se converteram em cmplices

    muito pouco tempo depois. Tambm os museus latino-

    -americanos se abasteciam de mecanismos semelhantes,a partir de estruturas polticas onde os Estados exerciam a

    ao colonial sobre seus prprios povos originrios.

    As mesmas imagens que abasteceram arquivos e depo-

    sitrios fotogrficos so resultado de uma intermediao,

    no s do etngrafo com as instituies metropolitanas e

    urbanas do saber, para as quais trabalhou, negociou e re-

    meteu coisas e imagens, mas tambm dentro do universocrioulo latino-americano, onde o contato com os indgenas,

    e mesmo a possibilidade das tomadas fotogrficas eram

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    difceis de se obter. As portas da comunidade chiriguana

    tinham sido abertas aos cientistas por terras-tenentesaucareiros. O etngrafo se hospedou, acompanhado pelo

    poeta argentino Oliverio Girondo e pelo escritor francs

    Drieu la Rochelle, enquanto realizava trabalho de campo,

    na confortvel fazenda de um engenho saltenho. Numa

    carta de 1932, em plena Guerra do Chaco, entre a Bolvia e

    o Paraguai, uma contenda afetou gravemente os indgenas

    que atravessavam continuamente fronteiras nacionais re-centemente estabelecidas, e sobre a qual Mtraux guardou

    um sugestivo silncio: No Chaco voltamos a nos encontrar

    [Drieu la Rochelle e Mtraux] com Girondo e seu irmo,

    e em um dos grandes engenhos da fronteira, hospedados

    por Bercetche, um dos reis do acar e do trigo, tivemos

    momentos trs parisiennes.31

    Os engenhos de acar atraram uma grande quantida-de de indgenas guaranis at as ladeiras da cordilheira dos

    Andes, na provncia de Salta, Argentina, tanto do Chaco

    argentino como da Bolvia e do Paraguai, desde fins do

    sculo XIX. Ofereciam trabalho e empregaram milhes de

    operrios. Como resultado dessa migrao, suas formas de

    vida sofreram uma severa aculturao, e muitos indgenas

    morreram, vtimas de doenas e das difceis condiesde trabalho que imperavam no engenho.32 Essas foram

    as condies de possibilidade para os etngrafos urbanos

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    europeus e latino-americanos fotograf-los, entrevist-los

    e tomar contato inicial com esses indgenas e seus objetos.Eles iniciaram, assim, os mapas, inventrios, descries e a

    coleo de cultura material tupi-guarani ainda conservada,

    mesmo que com escassa informao sobre sua origem e o

    modo como as coisas foram obtidas e arquivadas nos acervos

    dos museus onde ainda permanecem.

    BibliografiaPierre Lauret, Le silence des masques: le Muse du Quai Brainly commetombeau des peubles authochtones, Situations: Cahiers Philosophiques,n. 108, p. 105-125, dec. 2006.

    Alfred Mtraux, Antropofagia y cultura, em La religion des Tupinamba etses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni,Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.

    Notas1 Aby Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America,

    traduo e ensaio de interpretao Michael Steinberg, Ithaca, University ofCornell Press, 1995 (1. ed. alem baseada em conferncia de 1927).

    2 Georges Didi-Huberman,La imagen superviviente. Historia del arte y tiempo delos fantasmas segn Aby Warburg, traduccin Juan Calatrava, Madrid, Abada,2009; Jos Emilio Buruca, Historia, arte, cultura. De Aby Warburg a CarloGinzburg, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 2003; Serge Gruzinski,

    La pense mtisse,Paris, Fayard, 1999.

    3 Alfred Mtraux,La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, LibrarieOrientaliste Paul Geuthner, 1928.

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    4 Edgardo Krebs, El escritor argentino y la tradicin etnogrfica, OliverioGirondo. Exposicin homenaje, 1967-2007, Buenos Aires, Museo Xul Solar,

    2007, p. 34-44, Catlogo de exposio.5 Ibidem, p. 36.

    6 Mtraux, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani; Idem, La religindes Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris,Leroux, 1928; Federico Bossert e Diego Villar, La etnologa chiriguano de AlfredMtraux,Journal de la Socit des Amricanistes, v. 93, n. 1, p. 127-166, 2007.

    7 Denis Hollier, Le valeur dusage de limpossible, prefcio a Documents, Paris,Jean Michel Place, 1991, p. VII-XXXIV. Cf., tambm, James Clifford, ThePredicament of Culture. Twentieth Century Ethnography, Literature and Art,

    Cambridge, Harvard UP, 1988; e Hal Foster, Prosthetic Gods, Boston, OctoberBooks, 2004.

    8 Gonzalo Aguilar, Por una ciencia del vestigio errtico. Ensayos sobre la antropo-fagia de Oswald de Andrade, seguido de La nica ley del mundo, de AlexandreNodari, Buenos Aires, Editora Grumo, 2010, p. 10.

    9 Marcel Griaule, Poterie,Documents, n. 4, p. 236, 1930; Hollier, Le valeur dusagede limpossible, p. x.

    10 Bill Brown, Thing Theory, Critical Inquiry, v. 28, n. 1 (Things), p. 1-22, Autumn

    2001.11 Sobre o Muse du Quai Brainly, veja-se Krebs, El escritor argentino y la tradi-

    cin etnogrfica, e Nstor Garca Canclini, La sociedad sin relato. Antropologay esttica de la inminencia, Buenos Aires, Katz, 2010. O ltimo realiza umacrtica demolidora da instituio fundada em 2006 e tributria do espetculoe do formato de parque temtico (que inclui plantas tropicais ad hoce motivosterceiro-mundistas). A coleo, agora despojada de toda referncia histrica origem dos objetos exibidos, muitos obtidos pelas expedies nas que participa-ram membros de Documents, como Michel Leiris na expedio Dakar-Djibouti,atravs do saqueio e a obteno em condies pouco claras de objetos rituais

    transformados em arte (Michel Leiris, LAfrique fantme, Paris, Gallimard,1988). Sobre Picasso e a arte africana, ver Foster, Prosthetic Gods.

    12 Raul Antelo, Apostilla a Alfred Mtraux. Antropofagia y cultura, em AlfredMtraux,La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribusTupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.

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    13 Carl Einstein [1919], On Primitive Art, trad. Charles W. Haxthausen, October,v. 105, p. 124, Summer 2003.

    14 Paul Rivet, Ltude des civilisations matrielles: ethnographie, archeologie,prhistoire, Documents, n. 3, p. 133, juin 1929.

    15 Eduardo Jardim, A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica, Rio deJaneiro, Graal, 1978; Leiris, LAfrique fantme.

    16 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, p. 62.

    17 Erland Nordenskild, Le balancier a fardeaux et la balance en Amrique,Documents, n. 4, p. 177-182, 1929.

    18 Bossert e Villar, La etnologa chiriguano de Alfred Mtraux, p. 129; GastnGordillo, Lugares de diablos. Tensiones del espacio y la memoria, Buenos Aires,Prometeo, 2010.

    19 Andrea Roca, La vida social de una urna, em La vecindad de los objetos: lo pro-pio y lo ajeno en el estudio de los sistemas clasificatorios del Museo HistricoNacional y el Museo Etnogrfico, Tese (Licenciatura), Universidad de BuenosAires, 2003.

    20 Ticio Escobar, La belleza de los otros: arte indgena del Paraguay, Asuncin,Centro de Documentacin e Investigaciones de Arte Popular e Indgena delCentro de Artes Visuales, 1993.

    21 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America .

    22 Eduardo Viveiros de Castro, A indianidade um projeto do futuro, no umamemria do passado, Prisma Jur., So Paulo, v. 10, n. 2, p. 257-268, jul.-dez.2011, disponvel em .

    23 Gordillo, Lugares de diablos.

    24 Roberto Esposito,Tercera persona. Poltica de la vida y filosofa de lo impersonal,trad. Carlo Molinari Marotto, Buenos Aires, Amorrortu, 2009.

    25 Mtraux, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani, p. 272-273.

    26 Didi-Huberman, La imagen superviviente, p. 60.

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    27 Silvia Hirsch, De la autoridad etnogrfica a la pasin etnogrfica: una relecturade Alfred Mtraux, Cuadernos del INAPL, n. 18, Buenos Aires, Secretara de

    Cultura de la Nacin, 1998-1999, p. 223-232; Krebs, El escritor argentino y latradicin etnogrfica.

    28 Georges Didi-Huberman, Sobrevivncia dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Novae Mrcia Arbex, reviso de Consuelo Salom, Belo Horizonte, Editora UFMG,2011.

    29 Carlos Daro Albornoz, La coleccin Mtraux, Separata do Catlogo da mos-tra itinerante De Suiza a Sudamrica Etnologas de Alfred Mtraux, MuseuEtnogrfico de Genebra, Genebra/Sua, 1998.

    30 Alfred Mtraux, El problema de la civilizacin. La nocin del cambio en el

    dominio moral e intelectual de las sociedades, Sur, n. 30, p. 7-27, marzo 1937.

    31 Carta de 26 de setembro de 1932 a Yvonne Oddon apudKrebs, El escritorargentino y la tradicin etnogrfica, p. 37.

    32 Gordillo, Lugares de diablos.

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    A ESCRI TA E O FORA DE SI

    Ana Kiffer

    Un aveugle ne mettra pas lme dans la glande pinale.Lme se trouve o il sent, o le vivant se mobilise aucontact de monde rel. Descartes considrait commecentre ce qui vient de la tte et en cela privilgie la vue.

    Mais le rle du centre ne peut supprimer que la sen-sibilit est loeuvre dans les organes priphriques.Lespace nest pas que visuel.

    Bernard Andrieu

    Este texto, nascido de uma srie de impossveis, buscar

    ser um sistema mvel e provisrio de notaes em torno da

    noo de escrita e suas relaes com um modo discursivoformulado sob a gide de um fora de si. Tentaremos es-

    boar fragmentos de leituras, sem perder de vista o contexto

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    em que estes se inserem, e pensar, sobretudo, nas transfor-

    maes sofridas por essa noo no contexto do pensamentodos ltimos 50 anos.

    Roland Barthes, em texto de 1973, retoma, repensando

    sua prpria trajetria, a noo de escrita:

    O primeiro objeto com que me deparei em um trabalho

    passado foi a escrita: mas entendia ento essa palavra em sentido

    metafrico: para mim, era uma variedade do estilo literrio, suaverso () coletiva, o conjunto dos traos da linguagem por meio

    dos quais um escritor assume a responsabilidade histrica de sua

    forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da

    linguagem.1

    Ningum melhor do que o prprio autor resumiria a

    empreitada histrica do Grau zero da escrita, livro de umjovem Roland Barthes que fez com que o debate intelectual

    francs poca, centrado na figura de Jean-Paul Sartre e

    sua noo de engajamento literrio, rodasse, rodopiasse. A

    meu ver, Barthes no abandonar essa viso metafricada

    escrita (e seria possvel faz-lo?), no entanto, e esse texto

    de 1973 o demonstra, o autor vira os olhos, no por acaso

    num contexto em que a corporalidade assume importantes

    estratos discursivos na sociedade, para uma viso da escrita

    que ele mesmo diz (cito) volta-se para o sentido manual

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    da palavra.2Tal sentido, seria importante notar, apesar de

    reinscrever a noo de escrita no interior das conhecidasdicotomias entre o intelectual e o manual, o metafrico e

    o literal, o espiritual e o corporal, deixa entrever, ao menos

    para esses nossos olhos j cansados de hoje, sadas interes-

    santes e no negligenciveis. A primeira delas ser aquela

    que implicar escrita e gesto:

    Para o padre Jacques van Ginneken, jesuta, a primeira lin-guagem da humanidade foi uma linguagem gestual; () [para

    ele], a promoo da vogal na linguagem e o aparecimento da

    escrita estariam situados entre a era dos gestos e a dos cliques; em

    outras palavras (proposio exorbitante), a escrita seria anterior

    linguagem oral.3

    Aqui, estamos menos interessados no contedo histricodo discurso de Barthes e mais interessados nisso que desse

    contedo se libera enquanto potencialidade em torno da

    noo de escrita. Do gesto, por conseguinte, interessa-nos

    no sua anterioridade ou posteridade, mas a possibilidade

    que abre para romper a dicotomia entre o oral e o escrito.

    Dito de outro modo: a potencialidade de uma escrita que j

    no mais se oponha oralidade o que a escrita enquanto

    gesto pode liberar para ns. Rancire, 20 anos depois de

    Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no j famoso livro

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    Polticas da escrita.4Mas o prprio Barthes no deixa de tirar

    algumas concluses dessa nova potencialidade:

    () no necessrio fazer a escrita descender da fala (se-

    gundo o mito cientfico da transcrio) para nela distinguir as

    duas coordenadas da linguagem: o paradigma e o sintagma. A

    clivagem est alhures: () onde se pode opor sintagmas lineares

    (escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomticos]

    (nas figuraes murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos).5[Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporneas, como

    veremos mais adiante.]

    Vejam que Barthes j aqui busca observar mesmo que

    atravs do carter manual da escrita novas formas de sua

    prpria realizao que escapariam ao funcionamento dico-

    tmico do pensamento estruturalista que ainda regia suareflexo sobre a linguagem em 1973. Sintagmas radiantes, ou

    rizomticos, notados por Barthes na produo da escrita de

    quadrinhos, nos murais ou mesmo na pintura, deixam en-

    trever essa proliferao escriturria que vai fazer da prpria

    atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes

    heterogneos, seja no interior das artes imagem, desenho,

    mquina, mo, letra, palavra, trao, poesia etc. seja entre

    distintas camadas de campos discursivos.

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    Uma segunda e ltima instncia a destacar, no escopo

    do que por ora nos interessa discutir com o texto de Barthesparte da seguinte reflexo:

    () em estranghelo (antiga escrita siritica), o escriba vai de

    cima para baixo, mas para ler preciso girar o manuscrito 90 para

    a direita e ler horizontalmente: o corpo do ledor no o corpo

    do escrevedor: um vira o outro; talvez a esteja a regra secreta de

    todas as escritas: a comunicao [entre aspas no texto] passapor um avesso.6

    Notemos a riqueza dessa indicao: primeiro, aquilo

    que a atividade da escrita exigiria do escriba em termos

    corpreos, mais ainda alm, na alterao mesma da lgicalinear que caracterizaria o prprio da atividade escriturria

    e leitora. Segundo, a hincia que se estabelece entre o corpoque escreve e o corpo que l. Terceiro, a metamorfose que

    tal hincia vem exigir para sair de um corpo escriturrioe adentrar um corpo ledor. Por ltimo, a interveno

    propriamente barthesiana sobre o contedo histrico daescrita siritica, qual seja: a desconstruo em torno do mito

    comunicacional de toda e qualquer escrita.

    Interessa-nos diretamente essa metamorfose dos corposatravs das escritas. Sobre isso vimos trabalhando h muito.

    A prpria noo de fora de si, ttulo deste trabalho e, ain-da mais, ttulo da pesquisa que vimos desenvolvendo nos

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    ltimos dez anos, est atravessada por esse avesso, para

    usar as palavras de Barthes. Se por um lado estar fora de siexprime uma exacerbao das intensidades afetivas e, por

    conseguinte, corpreas, por outro, essa mesma noo vem

    evocar um certo deslocamento, mais alm, uma profunda

    dissociao entre um eu mesmo e algo fora dele.

    Poder-se-ia dizer, assumindo at certo ponto a hiptese

    levantada por Evelyne Grossman em Langoisse de penser:

    possvel que com Blanchot, assim como com muitos outros

    escritores modernos, ler requer menos de uma captao imagi-

    nria e mais da nossa capacidade de suportar os efeitos dos afetos

    mais ou menos violentos, desestruturantes, que o texto exerce

    sobre ns. Em outros termos, trata-se para o leitor de ser capaz

    de no resistir aos efeitos transferenciais reais que exerce sobre ele

    a escrita, ainda melhor, de ser capaz de certa atitude dissociativa qualidade requisitada, como se sabe, de todo analista como de

    todo analisado.7

    Evelyne Grossman vem ressaltar que a relao com a es-

    crita uma relao dissociativa. Se somarmos essa assertiva

    contribuio de Barthes, deveramos notar que tanto autor

    quanto leitor atravessam essa mutao corporal atravs do

    processo de escrita/leitura. A paradoxal noo de fora de

    si encontra aqui sua prpria condio de possibilidade,

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    deixando de ser um julgamento moral ou imaginrio sobre

    aquele que perde a razo em estado de fria, o fora de siganha atravs da escrita essa liberao estar habitado

    pelo fora, ou escrever como processo de uma experincia

    do desabrigo subjetivo o que vem nos propor muitas das

    experincias artsticas modernas e contemporneas. No

    longe dessa experincia se situa Marguerite Duras quando

    descreve a inveno de seus personagens: Ento elas me

    vm de alhures () A pretenso de se crer s diante dafolha enquanto tudo vos acontece de todos os lados. ()

    isso vos acontece do exterior. Ou ainda:

    sem dvida o estado que tento encontrar quando escrevo;

    um estado de escuta extremamente intensa, mas veja, do exterior.

    Quando as pessoas que escrevem dizem: quando se escreve se est

    na concentrao, eu diria: no, quando escrevo tenho o sentimentode estar numa extrema desconcentrao, no me possuo mais,

    () tenho a cabea esburacada.8

    A cabea esburacada, furada, transpassada, de Duras

    no deixa de remeter para essa experincia de disjuno

    do corpo, para esse estado de despossesso que faz entre-

    ver uma experincia corporal distante daquela que funda e

    une corpo e identidade numa s e mesma srie, numa s e

    mesma figura humana.9Outras corporalidades, portanto,

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    o que vem reivindicar a escrita enquanto prtica ou cena

    de um estar fora de si.Mas, muito antes de Duras, a escrita dos Cadernos,

    de Antonin Artaud, j inventava outro comportamento

    para as palavras, exigindo atravs de um novo modo de

    dizer a criao, segundo o autor, de novos corpos de

    sensibilidade.10Em outros trabalhos j buscamos desen-

    volver a relao plstica do trao a sua figurao potica das

    palavras.11

    Assim como no pudemos deixar de observar aproduo incessante das figuras pontiagudas e das caixas e

    cubos como mutaes desse corpo que, ao se fazer em cor-

    pos escritos, vem transformar-se em mquinas perfurantes

    e mquinas de sopro capazes de inscrever, rasgar, cortar o

    abscesso da e na linguagem. Mquinas de sopro que bus-

    cavam essa sensao vibrtil na experincia da escrita e da

    leitura. Procedimentos que, por conseguinte, encetavam acriar, segundo o autor, a experincia de uma linguagem

    raio.12Agenciamento ou no de corpos sem rgos, como

    quis Artaud e, posteriormente, Deleuze e Guattari,13o mais

    importante nos parece ser a notao sonora, vibrtil, ttil,

    que essa escrita quer assumir. Novos corpos de sensibili-

    dade exigem, certamente, uma alterao na organizao

    dos sentidos, como vimos tambm insistindo. EvelyneGrossman ressalta:

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    () para o escritor no se trata mais de anotar seus pensamen-

    tos para fix-los num caderno, mas sim de inventar um suporte

    suficientemente mvel e plstico, um sutil subjtil, como ele disse,

    para que as frases inscritas possam ser a todo momento retoma-

    das, recolocadas em movimento, entrando num outro conjunto

    de fragmentos moventes.14

    A crtica nos alerta para uma importante transformao

    o caderno do autor comea a se aproximar mais das ex-perincias dos cadernos dos artistas, sem, no entanto, nisso

    se transformar. Estamos ainda num regime de produo

    de discurso da e atravs da escrita. Mas a escrita saiu de si

    mesma, deixou sua identidade fixadora para transformar-

    -se num procedimento algo mvel, vibrtil e, sobretudo, no

    contexto de Artaud, algo que pudesse refazer seu prprio

    corpo, ele mesmo tambm doente, desalojado e despossudode si mesmo. Evelyne vem insistindo no poder de rasgo,

    na violncia disruptiva dessas experincias de escrita/lei-

    tura. Ou, como j havia dito Maurice Blanchot, [o] jogo

    da etimologia corrente [que] faz da escrita um movimento

    de corte, um rasgo, uma crise () [] simplesmente a lem-

    brana da ferramenta prpria para escrever que era tambm

    prpria para fazer incises: o estilete.15

    Gostaramos, aqui, no de discordar dessa hiptese,

    mas de sobre ela inserir um deslocamento, um passo ao

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    lado. Tal passo poderia indicar que muitas dessas escritas

    desestruturadas e desestruturantes, como quer EvelyneGrossman, buscavam modos de se relacionar criticamente

    com os projetos de reconstruo da humanidade a partir

    do ps-guerra. Seria preciso dizer ainda que esse passo ao

    lado s possvel porque tanto os grandes blocos tericos

    quanto os grandes movimentos estticos sumiram da cena

    contempornea deixando no um vazio, mas a possibili-

    dade mesma de um exerccio crtico que se atrele menoss grandes duraes que buscavam encetar esses autores

    anteriores, at agora aqui citados. Por grandes duraes es-

    tamos sugerindo no exatamente o seu carter cronolgico

    e histrico (mesmo que tambm por a se possa dizer algo

    sobre isso), mas, e sobretudo, as categorias universalistas

    que sustentaram o arcabouo desses discursos. Muitos

    sempre e muitos nunca em torno de noes tais comoas de linguagem, de escrita, de sujeito, abundaram nas

    teorias estruturalistas, assim como em determinadas corren-

    tes psicanalticas, e por que no dizer, no investimento ora

    heroico ora suicida que os prprios artistas viveram com

    suas obras, dentre eles Artaud, mas tambm Blanchot ou

    mesmo Marguerite Duras. por isso mesmo que podemos

    dizer hoje que essa relao intrnseca entre a escrita e omvel, vibrtil, ttil no se dar sempre atravs de um

    vnculo desestruturante, violento, dilacerante, como

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    sugere Evelyne Grossman na esteira de Artaud e Blanchot.

    A prpria noo de estrutura mesmo que ainda apareade modo viciado em nossas vises de mundo j no d

    mais conta do que nos acontece hoje.

    Se os Cadernosde Artaud, em seu prprio carter asilar,

    atuaram como testemunho e efeito da barbrie da Segunda

    Guerra, e, nesse sentido, no poderiam deixar de inscrever a

    escrita enquanto lembrana etimolgica daquele ato/palavra

    cruel e rasgar e cortar a prpria carne , hoje dificilmenteencontraremos, digamos, esse corpo heroico e glorioso que

    se oferea enquanto testemunha de sua prpria palavra.

    De modo distinto, porm ainda num deslocamento em

    continuidade com essa escrita enquanto crise e rasgo, que

    tambm vem se inscrever muitas das imagens gritadas do

    cinema de Glauber Rocha. Sua crtica delirante no deixou

    de observar com muita lucidez esse desabrigo que sustm,ao mesmo tempo em que pe em suspenso, a subjetividade

    do prprio artista, agora no caso o artista latino-americano

    e sua submisso outra barbrie, a dos regimes totalitrios

    que assolaram a dcada de 1960 e 1970 do lado de c. Seu

    fim proftico em Lisboa,16dizendo realizar na prpria carne

    a esttica da fome, pobre, doente e miservel na Europa, faz

    entrever de modo contundente essa escrita mais que escritade que falava Rancire,17e que vimos aqui bordejando, qual

    seja: um corpo se entrega para confirmar a escritura.

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    Quando vemos as experincias performticas do corpo

    em movimento em algumas obras de Hlio Oiticica,18

    sobre-tudo seus Parangols, ou na performance Corpo coletivo, de

    Lygia Clark,19revemos, quase que de modo paradigmtico,

    a pregnncia em torno desse corpo glorioso, a que ao fim e

    ao cabo se oferecem, seja enquanto dor seja enquanto xtase,

    muitas dessas manifestaes dilacerantes ou desestrutu-

    rantes da arte do ps-guerra at mais ou menos os anos

    de 1960 e 1970. Alis, dor e xtase so pares fundamentaisa uma esttica do fora de si. No por acaso muitos desses

    autores aqui citados flertaram com a mstica medieval. Ou

    dela buscaram um entendimento muito particular.

    bem verdade que esse corpo exttico no o mesmo em

    Artaud, Glauber, Oiticica ou Clark. E, por favor, entendam:

    no a isso que nos referimos. No entanto, uma srie os liga

    sem excluir a multiplicidade de suas diferenas. Essa srie,e isso o que vimos tentando dizer, se liberou por um lado

    a escrita de seu carter fixador, imvel, de suas tendncias

    imaginrias, por outro no a liberou de sua aposta numa

    eternidade. Em Artaud, tal manifestao flagrante, e

    a leitura de Grossman s vem confirmar esse carter: O

    texto no tem nem comeo nem fim. Dito de outro modo:

    nem nascimento nem morte. Eu jamais nasci, repete eledesde Rodez, e em consequncia no pode morrer, conclui

    Evelyne Grossman.20

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    Gostaramos de sugerir, a partir dessa genealogia frag-

    mentada e fragmentria que fizemos at aqui, que umaesttica do fora de si no se caracterizaria exclusivamente

    por essa exacerbao dos afetos, que faz crer que um corpo

    seja do autor, seja do leitor se entregar como confir-

    mao da letra morta ou da escrita rf. No esqueamos

    que o fora de si antes de tudo um desalojar da alma, um

    passo ao lado, um despossuir-se que reaparecer na cena

    contempornea atravs de, como disse Ricardo Basbaum,uma falncia das vozes interiores.21 interessante pensar

    como a literatura se sustm e se suspende a partir daquilo

    que foi durante sculos o seu prprio cerne e questo: a

    constituio de vozes interiores.

    Mas ao dizer isso no podemos negar ou esquecer que

    a construo artstica desses corpos gloriosos ou extticos

    abriu um lastro possvel de experimentao para que no-vos corpos sensveis fossem criados no seio da arte e da

    literatura. A primeira, sem ter mais a obrigao com a tela,

    com o enquadre, com a moldura fez saltar para a vida um

    sem-nmero de experincias. A segunda, at certo ponto

    liberta das estruturas dicotmicas, assim como da lineari-

    dade narrativa, fez com que tudo aquilo que parecia no se

    poder ali dizer fosse percorrendo o campo de sua experi-ncia. Ainda se deveria notar que o entrelaamento, efeito

    do prprio deslocamento ou expulso de suas identidades

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    anteriores, fez com que esses dois campos literatura e

    arte investissem em novos modos de dilogo entre si. Umdeles ser atravs da escrita. De que maneira saltar de um

    para outro lado essa prtica, e qual transformao sofrer

    a escrita em cada uma dessas passagens, so perguntas

    necessrias quele que se aproxima de experincias-limite

    entre esses dois campos hoje.

    Sob esse aspecto gostaramos ainda de acrescentar dois

    fragmentos ou hipteses de leitura, a partir de um projetode uma artista contempornea, Tatiana Grinberg, de quem

    vimos tambm falando e aproximando nossa pesquisa,

    sobretudo no ltimo ano e meio.

    O projeto, intitulado Placebo01,22 foi exposto de abril

    a junho de 2011 no Museu de Arte Moderna do Rio de

    Janeiro, com curadoria de Luis Camillo Osrio. Depois de

    muitas conversas, encontros e visitas ao MAM, hoje temosem mos o catlogo recm-lanado e composto de fotos e

    desenhos do projeto, texto-plaqueta da exposio, escrito

    por Camillo Osrio, assim como uma longa conversa entre

    a artista, Ricardo Basbaum e Ceclia Cotrim. O objeto, fruto

    do projeto, um chip envolto numa capa plstica moldada

    pela forma da cavidade bucal.23Tal chip na verdade um

    captador; ele recebe o som por FM e vibra.24 Ou, comodisse Grinberg, ele um receptor, que transforma aquelas

    ondas FM em vibrao.25Introduzido no interior da boca,

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    em contato com os ossos dos dentes dever captar e vibrar

    as ondas sonoras, fazendo com que o experimentador ouafragmentos de entrevistas realizadas pela artista com pessoas

    que tenham passado por alguma situao de dor extrema,

    cirurgia ou parto, por exemplo.

    Desse projeto e da conversa da artista com Cotrim e

    Basbaum, recm-lanada no catlogo da exposio, relevo

    dois pontos para concluir essa outra conversa, que este texto

    quis encetar. O primeiro deles diz respeito forma comoGrinberg (entre outros, claro) deslocar justamente esse

    corpo exttico ou glorioso que herdamos mais ou menos

    todos das experincias artsticas da segunda metade do s-

    culo XX, a partir da relao entre a experincia do corpo e a

    constituio de mundos ou vozes interiores. Tomemos a

    instalao Entre quatro paredes,26originalmente feita numa

    ocupao/performance em um hotel do bairro da Lapa, noRio de Janeiro (o LoveStory), mas reinserida nesta ltima

    exposio no Museu de Arte Moderna do Rio.

    Impossvel no notar a expulso que sofre o participante

    do interior da caixa de Entre quatro paredes. Sua entrada

    possvel mais se assemelha a uma intruso. O interior no se

    abre, no acolhe, no convida: fechado, branco, de luz fria

    e com alguns espelhos refletores, ele se nos aparece atravsdessas frestas / buracos pelos quais se pode penetrar partes

    do corpo e, pela percepo que essa penetrao provoca,

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    experimentar deslocamentos desse centro unitrio, desse

    aglutinar do corpo e da experincia vivida na constituioou no reconhecimento de um si mesmo. Poder-se-ia dizer

    que a experincia exttica dos Parangols, ou mesmo a dos

    Ncleos, de Oiticica, tambm buscavam um deslocamento

    ou projeo desse mundo interior para fora. Como disse o

    prprio Hlio, tratava-se de uma obra de conquista do ex-

    terior. No entanto, como vem observando Nuno Ramos,27

    entre outros, essa conquista cada vez maior do exterior teria,na obra de Hlio, acabado por criar um imenso interior.

    Esse desejo cada vez maior de fazer aparecer na obra a vida,

    acabou por congelar num espao especfico aquilo que seria

    a abertura e o fluxo da prpria relao obra/vida. No me

    interessa discutir isso aqui. Sua hiptese me parece vlida

    apenas para atentarmos que algo de uma outra experincia

    do fora de si acontece nos espaos e nas relaes entreescrita e arte hoje.

    Segundo depoimento de Tatiana Grinberg em entrevista

    ainda indita que eu e Renato Rezende28realizamos com a

    artista, ela disse ter tido, no decorrer da exposio Pla-

    cebo01, o relato de uma menina cega que experimentou a

    instalao Entre quatro paredes. Tal relato pode nos ajudar

    a concluir essa hiptese. A menina, que sofria da privaode um dos sentidos, disse sentir-se, ao inserir partes de seu

    corpo nas frestas da caixa fechada, como uma bailarina

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    danando sobre uma perna s. Alterao radical do apara-

    to perceptivo, desequilbrio do corpo, agora reequilibradonuma linha tnue de sensaes quase imperceptveis, que

    associam e desalojam a experincia subjetiva. Impedir a

    constituio de uma unidade entre corpo e identidade, ex-

    pulsar o eu de seu mundo interior, pode ser, como indica

    Grinberg, uma nova possibilidade de experimentar o dentro

    e o fora do mundo ao mesmo tempo. Nesse sentido, o efeito

    imediato no somente o apagar das fronteiras dentro efora, mas, e sobretudo, o deixar entrever, noflashde uma

    fresta, que tais fronteiras, alm de mveis, so efeitos visu-

    ais, sonoros, tteis, entre muitos outros, de construes e

    desconstrues permanentes e aleatrias. Ou poderamos

    dizer com Andrieu que

    as diferenas entre dentro e fora, entre limpo e sujo, entremasculino e feminino, frente e trs, natural e artificial no existem

    mais no corpo hbrido: no que sejam dissolvidas numa fuso

    ou confuso de gneros, mas porque tornaram-se dispositivos

    operatrios para chegar at o outro lado do corpo, nesses lugares

    inditos que se do atravs da conscincia experiencial e no mais

    somente atravs das categorias de julgamento.29

    justamente aqui que interessa levantar a segunda e

    ltima hiptese acerca desse mesmo trabalho. Parte da

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    conversa entre Basbaum, Grinberg e Cotrim editada no

    Catlogo. Ricardo Basbaum diz:

    Uma coisa que eu tenho observado so as anotaes, essas

    suas anotaes de trabalho. Onde est o limite entre aquilo ser

    uma anotao privada, como nos cadernos de Hlio (Oiticica),

    por exemplo, ou j ser feita para ser exposta ()

    Responde Grinberg: Aqui misturadoNovamente Basbaum:

    T misturado, deu pra ver (), mas isso tem a ver com a lgica

    toda, com toda essa lgica de mundo exterior/interior, espao

    privado, espao pblico, abertura onde est esse limite?

    Fala Ceclia Cotrim:

    Outro dia estava lendo o texto do