foucault e heidegger

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139 FOUCAULT UM PENSAMENTO DESCONCERTANTE Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 136-149, outubro de 1995. Foucault e Heidegger A ética e as formas históricas do habitar (e do não habitar) LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO 1. Foucault e Heidegger? ada uma relação que é sem dúvida muito significativa, que passa por natural e de todos conhecida entre Foucault e Nietzsche, cabe, de início, perguntar acerca do sentido e da pertinência da aproxima- ção que aqui se fará entre Foucault e Heidegger. Para os leitores de um dos mais belos e elucidativos textos sobre o conjunto da obra de Michel Foucault - Michel Foucault: Beyond structuralism and hermeneutics, de Dreyfus e Rabinow - esta aproximação não surpreende. Assinalo, inclusive, que há uma entrevista de Foucault autorizando explicitamente esta relação. Diz ele: “Fiquei surpreso quando dois amigos de Berkeley escreveram que eu fora influenciado por Heidegger. Certamente é verdade, mas ninguém na França o tinha enfatizado” (Foucault, 1994, p.780). Contudo, é numa outra entrevista, concedida no dia 29 de maio de 1984, menos de um mês antes de sua morte, ocorrida em 25 de junho, que Foucault diz o que era necessário D RESUMO: A partir de uma entrevista em que Foucault coloca a obra de Heidegger como uma das duas bases fundamentais de seu próprio pensa- mento (a outra é Nietzsche), o texto desenvolve uma das possibilidades de aproximação entre Heidegger e Foucault: a compreensão da ética enquan- to morada e habitação. Os trabalhos derradeiros de Foucault, em que se renova o pensamento da ética através de um nítida separação entre ética e moral e mediante uma análise da ética enquanto procedimentos e técnicas de subjetivação - as tecnologias de si - são então contemplados por este ângulo. Ao final, é retomada e discutida a última mensagem de Foucault, a sua proposta de uma ética entendida como uma nova estética existencial. UNITERMOS: Foucault, Heidegger, ética, modos de subjetivação, estética existencial. Professor do Departa- mento de Psicologia Experimental do IP- USP, da PUC-SP e da UNIP

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Foucault e Heidegger

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    FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. A tica e as formas histricas do habitar (e do no habitar). TempoSocial; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de1995. F O U C A U LTUM PENSAMENTO

    DESCONCERTANTE

    Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 136-149, outubro de 1995.

    Foucault e Heidegger A tica e as formas histricas do habitar

    (e do no habitar)LUS CLAUDIO FIGUEIREDO

    1. Foucault e Heidegger?

    ada uma relao que sem dvida muito significativa, que passapor natural e de todos conhecida entre Foucault e Nietzsche, cabe,de incio, perguntar acerca do sentido e da pertinncia da aproxima-o que aqui se far entre Foucault e Heidegger. Para os leitores de

    um dos mais belos e elucidativos textos sobre o conjunto da obra de MichelFoucault - Michel Foucault: Beyond structuralism and hermeneutics, deDreyfus e Rabinow - esta aproximao no surpreende. Assinalo, inclusive,que h uma entrevista de Foucault autorizando explicitamente esta relao.Diz ele: Fiquei surpreso quando dois amigos de Berkeley escreveram queeu fora influenciado por Heidegger. Certamente verdade, mas ningum naFrana o tinha enfatizado (Foucault, 1994, p.780). Contudo, numa outraentrevista, concedida no dia 29 de maio de 1984, menos de um ms antes desua morte, ocorrida em 25 de junho, que Foucault diz o que era necessrio

    D

    RESUMO: A partir de uma entrevista em que Foucault coloca a obra deHeidegger como uma das duas bases fundamentais de seu prprio pensa-mento (a outra Nietzsche), o texto desenvolve uma das possibilidades deaproximao entre Heidegger e Foucault: a compreenso da tica enquan-to morada e habitao. Os trabalhos derradeiros de Foucault, em que serenova o pensamento da tica atravs de um ntida separao entre tica emoral e mediante uma anlise da tica enquanto procedimentos e tcnicasde subjetivao - as tecnologias de si - so ento contemplados por estengulo. Ao final, retomada e discutida a ltima mensagem de Foucault, asua proposta de uma tica entendida como uma nova esttica existencial.

    UNITERMOS:Foucault,Heidegger,tica,modos desubjetivao,esttica existencial.

    Professor do Departa-mento de PsicologiaExperimental do IP-USP, da PUC-SP e daUNIP

  • FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. A tica e as formas histricas do habitar (e do no habitar). TempoSocial; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de 1995.

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    dizer sobre sua vinculao a Heidegger:Certamente Heidegger foi para mim o filsofoessencial(...). Todo meu futuro filosfico foi determi-nado por minha leitura de Heidegger (...). Meu co-nhecimento de Nietzsche bem melhor do que o quetenho de Heidegger; no obstante foram estas asminhas duas experincias fundamentais. provvelque se no tivesse lido Heidegger no teria lidoNietzsche. Tinha tentado ler Nietzsche nos anoscinqenta, mas Nietzsche sozinho no me dizia nada.Enquanto que Nietzsche e Heidegger, a sim, este erao choque filosfico. Mas nunca escrevi nada sobreHeidegger e nada escrevi sobre Nietzsche alm de umpequeno artigo. So, contudo, os autores que mais li.Creio que importante termos um pequeno nmero deautores com os quais se pensa, com os quais se traba-lha, mas sobre os quais no se escreve (Foucault,1994, p. 703).

    O que, brevemente, pode ser identificado como o legadoheideggeriano na obra de Foucault? Certamente um legado multifactico,mas, sem dvida todas estas faces nos remetem crtica empreendida porMartin Heidegger s metafsicas do sujeito, ou seja, crena num sujeito comofundamento auto-fundante do mundo e das representaes. Quando Foucaultafirma:

    Penso que no h sujeito soberano, fundador, umaforma universal de sujeito que poderamos encon-trar em toda parte (Foucault, 1994, p.733).

    tema que atravessa toda a sua produo, estamos indiscutivelmenteno campo reflexivo instaurado por Heidegger com sua destruio dametafsica e, em particular, com sua crtica metafsica da Modernidade.Embora o mtodo genealgico seja uma criao de Nietzsche, no tenho dvi-das de que somente a destruio da metafsica do sujeito heideggeriana abriuo espao para a obra de genealogista realizada por Foucault.

    2. O interesse em Foucault

    As genealogias elaboradas por Michel Foucault exploraram trsdomnios:

    De incio uma ontologia histrica de ns mesmosem nossas relaes com a verdade, que nos permi-tem que nos constituamos como sujeitos do conheci-mento; em seguida, uma ontologia histrica de nsmesmos em nossas relaes com um campo de poderonde nos constitumos como sujeitos capazes de agirsobre outros; enfim, uma ontologia histrica de nos-

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    sas relaes com a moral, que nos permitem nos cons-tituirmos como agentes ticos. Todos os trs eixosestavam presentes, mesmo que de uma maneira umpouco confusa na Histria da loucura. Estudei o eixoda verdade no Nascimento da clnica e na Arqueolo-gia do saber. Desenvolvi o eixo do poder em Vigiar epunir e o eixo moral na Histria da sexualidade(Foucault, p. 393).

    A mim, particularmente, a partir de meus interesses psi, so os doisltimos eixos mencionados - os das tcnicas de dominao, com seus estu-dos das disciplinas, dos governos, das bio-tecnologias, e o das tcnicas desi - os que mais atraem a ateno. Vale mencionar que ambos os eixos tendi-am na obra de Foucault a uma certa integrao, como se depreende de um dosseus ltimos textos - sua participao em 1982 na Conferncia sobre A Tec-nologia Poltica dos Indivduos. Neste trabalho, entre outras indicaes dosrumos futuros de suas pesquisas - que retornaria questo das bio-tecnologi-as, aps os estudos sobre as tcnicas de si que resultaram nos dois ltimosvolumes da Histria da sexualidade, alm de inmeros textos avulsos queseriam material para o quarto volume (As confisses da carne) - Foucaultafirma que

    A caracterstica maior da racionalidade modernano nem a constituio do Estado, nem a emergn-cia do individualismo burgus, mas o seguinte fato: aintegrao dos indivduos a uma comunidade ou tota-lidade resulta de uma correlao permanente entreuma individualizao sempre mais avanada e a con-solidao desta totalidade (Foucault,1994, p. 827).

    Assim sendo, as tcnicas de dominao (governo) e as tcnicas desi, as principais responsveis pelo adensamento das subjetividades individu-ais, articulam-se na constituio da subjetividade moderna e contempornea(e da o interesse crescente de Foucault nas questes do liberalismo). Estaarticulao, por sinal, foi o objeto da anlise da contemporaneidade que tenteielaborar nos ltimos captulos de meu livro A inveno do psicolgico. Qua-tro sculos de subjetivao (1500-1900), ao mostrar as ntimas e paradoxaisalianas que se formam entre liberalismos e disciplinas desde o sculo XIX,tema a que retornarei adiante.

    3. O mbito das ticas

    Uma das principais contribuies de Foucault para o estudogenealgico das subjetividades reside, creio eu, na sua concepo do que abrangido pelo campo da tica. Ao separar conceitualmente dois domnios - odos cdigos morais e o dos atos ou condutas - enfatizando este segundocomo decisivo para a constituio das subjetividades, ele abriu um vasto cam-po de pesquisas e descobertas.

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    A dimenso tica da existncia abarca, naturalmente, o campo denossas relaes com os outros mediadas, explcita ou implicitamente, por c-digos de prescries e proibies, por padres de legitimao das condutas.Porm, a dimenso tica implica fundamentalmente os humanos em relaesreflexivas, vale dizer, instauram-se aqui relaes de cada um consigo mesmo. no mbito destas relaes de si para consigo que as propostas analticas deFoucault parecem mais fecundas. Numa rpida recapitulao, estas relaespodem, segundo ele, ser analisadas em quatro aspectos: (1) o da substnciatica (isto , a parte de si que visada pelo ditames morais), (2) o modo deassujeitamento (ou seja, o modo dos indivduos reconhecerem a fora destesditames), (3) os meios acionados para os controles e transformaes deseja-das (vale dizer, os procedimentos ascticos e ensinantes da tica) e, finalmen-te, (4) a teleologia de todo este processo (que so os ideais normalizadores enorteadores de todos os esforos de transformao, definindo o tipo de ho-mem perseguido nos processos de subjetivao). Estes quatro aspectos noso meros reflexos passivos das experincias humanas: eles tm, articuladosaos cdigos, uma eficcia constitutiva. Por outro lado, como sabemos, paraFoucault tanto os cdigos de prescries e proibies como, e principalmente,as relaes consigo so histricas e sujeitas a amplas variaes e mltiplascombinaes. Assim, as pesquisas genealgicas visam responder a seguintequesto:

    Como ns constitumos nossa identidade por meiode certas tcnicas ticas de si que se desenvolveramdesde a antiguidade at nossos dias? (Foucault,1994, p. 814)

    4. A tica e o habitar1

    A questo que me ocorre a seguinte: haver, para alm destasvariaes e sem se opor a elas uma figura que metaforize a dimenso tica daexistncia em toda a sua complexidade e eficcia? Recorrendo aqui explicita-mente a Heidegger proponho a casa, a morada, o habitar2. J no planoetimolgico, ethos se refere tanto aos costumes como a morada. Na verdade,hbitos e habitaes compartilham a mesma raiz.

    O homem arremessado num mundo que ele no escolheu e acomo a abertura ao que deste mundo lhe vem ao encontro, ou seja, ele existeno sentido preciso de ser fora de si mesmo, de ser o seu fora. Ora sustentar-se neste existir, e s assim se existe, exige um espao de separao, de recolhi-mento, de proteo que no encerre o existente numa clausura, mas lhe ofere-a uma abertura limitada em que se reduzam os riscos dos maus encontros.

    claro que uma casa, qualquer feitio que ela tome pode ser conce-bida como um aparelho para morar ou como um monumento a ser apreciadode fora. No entanto, para quem a habita e enquanto a habita, a casa no utenslio e objeto, tal como os demais entes. A casa tem, como o prprio mun-do, uma natureza pr-objetal, ela como uma parte do mundo, mas exatamen-

    1 Nesta seo, o materi-al que estou apresen-tando se baseia emgrande parte no meuartigo tica, sade eprticas alternativas(1995) em que as re-laes da tica com ohabitar e deste com asade so mais desen-volvidas.

    2 Para as consideraesque se seguem vali-medos textos de HeideggerBatir habiter pen-ser (1986), Srnit(1990) e Pour Servirde Commentaire aSrnit. Foi-me tam-bm de grande valia afenomenologia do ha-bitar desenvolvida porE. Lvinas em Totalitet Infini (1990), embo-ra no conjunto as ela-boraes levini-anassobre a tica preten-dam se colocar emoposio a Heidegger.

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    FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. A tica e as formas histricas do habitar (e do no habitar). TempoSocial; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de1995.

    te aquela parte em que podemos nos sentir relativamente abrigados. Pois bem,considerar o ethos como uma casa, como uma instalao, ver nele, nos cdi-gos, valores, ideais, posturas, condutas para consigo mesmo e para com osoutros algo equivalente moradia.

    O habitar sereno e confiado a condio do gozar, do fruir, ou sejada experincia do corpo como fonte de prazer - mesmo que limitado - livredos riscos e das incertezas.

    Mas o habitar sereno e confiado deve ser visto tambm como con-dio do trabalhar, ou seja, do apropriar-se pelo trabalho dos elementos natu-rais do mundo para convert-los tambm em proteo, alimento e gozo.

    Finalmente, no relativo distanciamento dos acontecimentos domundo l fora, propiciado pela habitao, que podemos desenvolver nossascapacidades cognitivas, tanto na via do conhecimento representacional, calcu-lador e cientfico, como na do jogo e da criao, como na da meditao filos-fica. O habitar sereno e confiado assim tambm a condio do pensar, dorepresentar, do brincar e do experimentar, exatamente porque o abrigo da casanos dispensa uma acolhida que nos dispensa de maiores esforos.

    Poderamos tambm chegar a resultados semelhantes tomando comoponto de partida a psicanlise, principalmente a psicanlise desenvolvida pelogrupo independente da escola inglesa (Winnicott, Balint, Bollas, etc.) e pelapsicologia do self (Kohut) cujas afinidades com a filosofia de Heidegger jforam assinaladas por diversos autores3. Estudos psicanalticos da proveni-entes nos revelam como o desenvolvimento psquico de cada um de ns exigeque, nos incios da vida, a criana seja acolhida e tenha a oportunidade de umainsero pr-objetalizada e pr-representativa no mundo. A me como am-biente facilitador (Winnicott), os pais como self-objetos (Kohut) ou comoobjetos transformacionais (Bollas) remetem-nos a esta condio em queos outros ainda no esto plenamente diferenciados em sua alteridade, mas,ao contrrio, cuidam da criana como se fossem uma parte dela mesma. Asobras destes autores revelam tambm que experincias deste tipo continuamocorrendo durante todo o processo normal de desenvolvimento e ao longo detoda a vida. H sempre ocasies em que partes do ambiente social e fsico nosoferecem - gratuitamente - um certo resgate dessa relao primria com oentorno. Em contrapartida, a ausncia precoce destas experincias, que doao indivduo a quietude do centro (Margaret Little), deixa marcas profun-das no processo de desenvolvimento, embora, naturalmente, seja o destino detodos ns o enfrentamento de situaes de maior diferenciao, isolamento,responsabilidade e risco. Contudo, somente a partir de um primordial sen-tir-se em casa que se criam as condies para as experincias de encontro dealteridades e para os conseqentes acontecimentos desalojadores.

    Entre as partes do ambiente que, num processo normal, continua-ro sempre a exercer, num nvel pr-reflexivo, estas funes protetivas,sustentadoras, acolhedoras, que nos oferecem renovadamente a quietude docentro, ressaltamos as moradas, sejam as casas materiais de madeira, pedra,

    3 Elsa Oliveira Dias e

    Zeljko Loparic, entreoutros, j publicaramalguns trabalhos ex-plorando estas resso-nncias.

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    tijolos ou mesmo papelo, sejam as moradas simblicas proporcionadas peloethos. Uma tica, na verdade, institui uma troca regulada de afetos e obriga-es recprocas entre os indivduos. esta reciprocidade que permite que cadaum possa, dentro de certos limites, confiar, contar com a presena de algunsoutros - em maior ou menor nmero - como self-objetos em algumas circuns-tncias. Mais que isso, a reflexividade implicada nas ticas, ou seja, as rela-es de si para consigo, fazem com que partes de um indivduo possam assu-mir com alguma autonomia e diante dele mesmo certas funes antes exercidaspelos outros. Poderamos dizer, ento, que o sujeito tico pode desenvolver acapacidade de manter e, numa certa medida, edificar sua prpria morada comuma relativa independncia.

    5. As formas histricas do habitar o mundo

    Gostaria agora de tratar com a brevidade que a circunstncia requerdas formas histricas do habitar o mundo.

    Numa rapidssima recapitulao poderamos nos reportar, de in-cio, ao que chamei de tica coesiva. O testemunho de antroplogos e histori-adores nos ensina um pouco acerca do ethos das chamadas civilizaes fe-chadas. Observa-se a um enraizamento quase fusional da comunidade nanatureza - ambas miticamente interpretadas - e de cada indivduo na suacomunidade. O cosmos e a ordem social confundem-se e em ambos as posi-es de cada um esto perfeitamente definidas, deixando um reduzido espaopara a individualizao singularizada. Corpo, vestes, casa e mundo; narrati-vas, rituais e atividades cotidianas esto perfeitamente entrelaados e integra-dos a um sistema de compreenso e ao. No centro dessa ordem esto osespaos, tempos, personagens, gestos e falas sagrados em que a realidade semostra verdadeiramente e em torno dos quais se estende a trama do sentido. Oethos coesivo domina, englobando sob o mesmo teto os seres humanos, os ani-mais, as plantas e foras da natureza. Trata-se de uma morada ampla e slida,resistente e exclusiva. Fora dela o pavor do nada, fora dela, os inimigos.

    Vai ser da perda de vigncia desta casa slida, resistente e comuni-tria que nascero os esforos mais ou menos explcitos de reconstruo dasmoradas; trata-se do campo em que se configura o que os modernos chama-ro de Razo Prtica, campo que permite e exige uma reflexo acerca dosmodos desejveis e legtimos de conduta. Surgem ento questes do tipo: comose conduzir adequadamente com os outros e consigo mesmo?; como e sobreque condutas exercer um autodomnio?; como moderar-se, como conter suanatureza?; como educar-se e trabalhar na construo de sua subjetividade?;como cuidar de si?

    Este pode ser o momento de acrescentar algumas palavras do pr-prio Foucault que me parecem corroborar, incidentalmente, a aproximaodos seus estudos sobre as tcnicas ticas de si problemtica heideggerianado habitar. Diz ele:

    Ocupar-se de si - o que de uma forma ou de outra est

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    FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. A tica e as formas histricas do habitar (e do no habitar). TempoSocial; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de1995.

    presente em toda tica desde a falncia da tica coesiva- no uma preparao para a vida; uma forma devida. (...) No h outro fim nem outro termo alm dopropsito de estabelecer-se junto a si, residir em simesmo, fazer a sua morada (Foucault, 1994, p. 356).

    Em muitas sociedades e pocas, perguntas a respeito de que casaconstruir e de como faz-lo podiam ser respondidas tomando-se como pressu-postas as posies dos indivduos na trama social em que existiam com seusestatutos e papis institucionalizados. Gerava-se, assim, o que podemos de-signar como uma tica da excelncia (MacIntyre, 1988; Ferry, 1995) ou umaesttica existencial (Foucault): cada um era chamado a realizar por contaprpria o trabalho de se impor um estilo de vida que se orientava pela idia deperfeio, auto-superao, excelncia no exerccio de sua funo e na ocupaodo seu lugar.

    Em nveis mais avanados de individualizao, comeam a faltaros pressupostos para uma tica da excelncia exclusiva e dominante, emborauma certa noo de excelncia esteja presente at os tempos modernos orien-tando distncia os movimentos de subjetivao. Vai ocorrer porm umafragilizao das identidades posicionais e, em decorrncia, d-se umaproblematizao muito mais severa das condutas individuais. O resultado foio surgimento e aperfeioamento do que Foucault denominou de cultura dasprticas de si, dos cuidados, s vezes obsessivos, de cada um consigo mesmo.Exames regulares e sistemticos da prpria conscincia, prticas de registrosde vida e de escrita de si, trocas de cartas pessoais, confisses, etc., foramalguns dos procedimentos desenvolvidos e acionados para a sujeio dos in-divduos a seus prprios cuidados: como se a partir daqui cada um se con-vertesse plenamente no edificador de sua prpria morada, de uma moradatalvez ainda bastante padronizada, mas j feita sob medida para cada um.Acentua-se desde ento a dimenso asctica da conduta tica, ao mesmo tem-po em que se reduz a sua dimenso esttica. O problema j no o de impor-se um estilo, mas o de renunciar em nome de alguma noo de pureza ou daexpectativa de um ganho futuro.

    Embora estes procedimentos de cuidados de si tenham desde a anti-gidade romana e, muito particularmente, desde o advento da cultura crist seconvertido numa verdadeira cultura e, assim, contribudo decisivamente paraa constituio das subjetividades modernas, foi apenas quando o cuidado desi veio a carecer quase que completamente de uma base coletiva, consensual etradicional na definio das metas e das formas legtimas da ao que estasprticas conquistaram seu pleno florescimento. Em outras palavras, so assituaes de desenraizamento profundo tanto das sociedades em relao ssuas condies naturais, como dos indivduos em relao s suas comunida-des que engendram as mais intensas exigncias de cuidar de si e de construir/reconstruir nossas moradas. Ao mesmo tempo, naturalmente, so estas as si-tuaes em que mais desnorteados estamos para empreender esta construo.

  • FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. A tica e as formas histricas do habitar (e do no habitar). TempoSocial; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149, outubro de 1995.

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    A tendncia dominante nestes tempos ser, ento, a de se colocar a eficciadas solues ticas no lugar que antes fora ocupado pela excelncia: trata-seagora de escolher ou justificar escolhas em termos de seus efeitos, das suasconseqncias para a vida, para o sucesso, para felicidade de cada um ou doconjunto.

    neste contexto, o contexto do individualismo moderno, que a ti-ca liberal articula um projeto de mundo e promove procedimentos de auto-domnio organizados pelas noes de soberania do indivduo e de mritoindividual. Mas tambm neste contexto que, diante dos impasses e precari-edades dos liberalismos, emergem e se consolidam as prticas disciplinares,to focalizadas por Foucault em suas pesquisas sobre as bio-tecnologias. Es-tas disciplinas, todavia, alm de fazerem parte do campo das tcnicas de do-minao e governo, geram suas prprias tcnicas ticas de si organizadas pe-las noes de integrao, ajustamento e funcionalidade. Por outro lado, dotrituramento de certos valores e posturas liberais pelas prticas disciplinaresnos contextos da vida pblica e domstica que emergem os mais intensosapelos da tica romntica, organizada pelas noes de pertinncia, participa-o e autenticidade.

    Minha sugesto, desenvolvida detalhadamente em outro trabalho(Figueiredo, 1992) a de que jamais se pensem liberalismos, disciplinas eromantismos em suas puras diferenas e aparentes antagonismos. A presen-a de cada um dos plos de nossa cultura contempornea deveria ser conce-bida a partir, talvez, da noo de diferana proposta por Derrida:

    A diferana o que faz com que o movimento designificao no seja possvel a no ser que cadaelemento dito presente, que aparece sobre a cenada presena, se relacione com outra coisa que noele mesmo, guardando em si a marca do elementopassado e deixando-se moldar pela marca de suarelao com o elemento futuro(...) necessrio queum intervalo o separe do que no ele mesmo paraque ele seja ele mesmo, mas este intervalo que o cons-titui em presente deve, no mesmo lance, dividir o pre-sente em si mesmo, cindindo-o (Derrida, 1991, p. 45).

    Acredito que os liberalismos, as disciplinas e os romantismos se-jam, cada um deles, o diferendo (o diferente e o adiamento) dos outros dois,que cada um deles seja o rastro do passado e o rastro do futuro, rastros dosoutros que fazem de cada um o que ele , mas que, por isso mesmo, fazem decada um um presente cindido. S assim, sob o signo da diferana, podem serpensados os trs plos constitutivos da tica contempornea e sob este sig-no que se constituem nossas subjetividades marcadas pelos rastros dos libera-lismos, das disciplinas e dos romantismos. o carter inapreensvel destesigno que torna o contemporneo um territrio da ignorncia: neste terri-trio, cada posio, cada identidade contm em si mais - e menos - do que

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    capaz de reconhecer. a diferana na sua produtividade invisvel que nos faza todos uma realidade heterognea de rastros: rastros liberais, rastros discipli-nares, rastros romnticos. Uma realidade, portanto, nunca presente a si mes-ma, j que constituda sempre pelos intervalos que nos separam dos outros ede ns mesmos.

    Creio que desta experincia perturbadora de sermos habitadospor trs diferantes sem podermos habitar serena e confiadamente uma s casa, desta experincia de radical desterritorializao que emerge uma figura pa-radigmtica da cultura do narcisismo, como a do mnimo-eu estudada porChristopher Lash. O mnimo-eu o produto do esforo de conservar o idnti-co na sua presena mais forte e, supostamente, menos cindida: aqui, agora. Atica de sobrevivente do mnimo-eu, se que de tica ainda se trata, implicanum investimento macio em si mesmo, sem a disposio para assumir umahistria e para fazer promessas. O mnimo-eu o preo pago pela recusa emser apenas uma composio dinmica de rastros heterogneos. o esforodesesperado, auto-mutilante, mas infrutfero, de estar presente a si mesmosem faltas, sem falhas, sem restos e sem sobras.

    Penso que apenas a partir de uma radical experincia de desterri-torializao e, inclusive, de uma observao rigorosa da cultura do narcisismoque Foucault pode elaborar sua derradeira mensagem: a proposta de uma re-novada esttica existencial. Fazer da vida uma obra de arte, sem qualquercompromisso com a autenticidade (crtica a Sartre; Foucault, 1994, p. 392,617), sem qualquer procura de uma verdade de si (crtica ao cultivo de sicaliforniano; Foucault, 1994, p. 402, 624): a pura e simples afirmao de umaarte de viver, tal como ele sugere ao movimento gay, em contraposio a qual-quer cincia ou conhecimento cientfico da sexualidade (Foucault, 1994, p. 735).

    Ora, como entendermos esta idia? Decididamente, fazer da vidauma obra de arte no guarda nenhum parentesco com os esteticismos, seja odos antigos dandys dos fins do sculo passado, seja o dos novos yuppies donosso fim de sculo. No se trata para Foucault, obviamente, de maquiar,decorar e perfumar a vida. Uma outra interpretao possvel seria a de supor-mos em Foucault uma nostalgia grega, ou seja, um desejo de reeditar a estti-ca existencial dos antigos, o que daria ao pensamento derradeiro de um ps-moderno como Foucault um carter paradoxalmente anacrnico. Julgo, po-rm que a partir da esttica de Nietzsche e de sua noo de grande estilopodemos fazer uma leitura muito mais instigante da proposta foucaultiana.Em um Fragmento Nietzsche afirma:

    A grandeza de um artista no se mede pelos belossentimentos que ele suscita, mas pelo grau de apro-ximao ao grande estilo, pelo grau em que se ca-paz do grande estilo. Este estilo tem em comum coma grande paixo o fato de desdenhar o prazer, de seesquecer de persuadir, de mandar, de querer... Domi-nar o caos que se , obrigar o prprio caos a tornar-

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    FIGUEIREDO, Lus Claudio. Foucault e Heidegger. The ethics and the historical forms of theinhabiting (and of the not inhabiting). Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 139-149,october 1995.

    se forma(Nietzsche, 14(61) de 1988).O grande estilo o que resulta da capacidade de nos tornarmos

    senhores do caos que somos em ns mesmos, sem mutilar as foras em com-bate, forando o caos a tomar forma (Ferry, 1995). Fazer da vida uma obrade arte seria assim suportar todas as tenses institudas pela diferana, pelosintervalos, pelos vestgios, pelas antecipaes, pelos diferendos de que somosfeitos. Nesta perspectiva, fazer da vida uma obra de arte seria o mais radicalcontraponto ao mnimo-eu que se constitui e conserva mediante as mais seve-ras mutilaes.

    Se h alguma viabilidade nesta proposta, no se sabe e talvez ape-nas o futuro nos diga. Aparentemente, contudo, a carga de tenso que elaexige suportar e o potencial trgico que ela contm jamais permitiriam queuma esttica existencial concebida a partir da noo de grande estilo pudesseser amplamente acolhida e experimentada. Na verdade, por enquanto o quevemos que as experincias de desenraizamento radical, capazes de gerar,por um lado, a cultura narcisista do mnimo-eu, vem gerando, de outro lado,formas extremamente mortferas, e igualmente narcisistas, de reter-ritorializao. A falta de uma casa, a falta de um ethos confortvel e sustentadorest, creio eu, na raiz das ondas nacionalistas, racistas e xenfobas dos lti-mos anos; est na raiz de um cultivo belicoso e intolerante dos particularismose das pequenas diferenas, est na raiz dos muitos processos agressivos deretribalizao.

    Infelizmente, j no podemos contar com Foucault para nos acom-panhar nesta difcil travessia.

    Recebido para publicao em abril/1995

    ABSTRACT: Based on an interview given by Foucault where heacknowledges the work of Heidegger and Nietzsche as the two main pillarsof his own thought, the essay explores one way of approximating Heideggerand Foucault: the understanding of ethics as dwelling and inhabitation. Therenewal of thought on ethics which takes place in the latest works by Fou-cault, through a sharp separation between ethics and moral philosophy andthrough an analysis of ethics as procedures and techniques of subjectivation- as technologies of self - are being here analysed from the point of view ofethics as dwelling and inhabitation. Finally, Foucaults last message, hisproposition of ethics understood as an new esthetic of existence is hererecuperated and discussed.

    UNITERMS:Foucault,Heidegger,ethics,modes ofsubjectivation,esthetic of existence.

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