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:: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral Edio Especial: Dossi Marx ISSN 1981-061X.
GENSE, FUNO E CRTICA DOS VALORES MORAIS NOS TEXTOS DE
MARX DE 1841 A 1847
Ana Selva Castelo Branco Albinati**
Resumo
Sntese da dissertao de mestrado com o mesmo ttulo, na qual se
percorre as etapas do pensamento de Marx, de seus escritos iniciais elaborao
dos princpios de sua filosofia original, no que se refere s consideraes do autor
sobre a natureza e o papel dos valores morais na existncia social.
Palavras-chave: moral sociabilidade determinao social da conscincia.
Genesis, function and critique of moral values in texts of Marx from 1841 to 1847
Abstract
Synthesis of the homologue master dissertation, composed by the analysis
of the stages of Marx's thought from his first writings to the elaboration of his
original philosophy, referring to the author considerations about the nature of the
function of moral values in the social existence.
Key-words: moral sociability social determination of the conscience.
Introduo:
Neste trabalho, procuramos sistematizar as indicaes de Marx acerca
das questes relativas moral, indicaes estas esparsamente distribudas ao
longo de suas obras.
1
A delimitao do perodo 41-47 se deu em funo de que esse conjunto
de obras configura um material expressivo para a investigao pretendida, na
medida em que apresenta os elementos necessrios para a compreenso da
evoluo do pensamento do autor a respeito da origem e da funo dos valores
morais, a partir da identificao de dois momentos distintos de sua produo
intelectual que a se encontram:
- o primeiro, que se estende de 1841 a 43, compreendendo sua
dissertao de doutorado, Diferenas entre as filosofias da natureza de Demcrito
e Epicuro, e os artigos da Anekdota e da Gazeta Renana;
- o segundo, de meados de 1843 a 47, que se estende da Crtica da
Filosofia do Direito de Hegel Misria da Filosofia.
O primeiro momento constitui a fase pr-marxiana, caracterizada por uma
produo terica alinhada ao modo idealista de reflexo. Marx se insere, nesse
momento, na tradio do idealismo alemo, no qual sobressai a influncia de
Hegel, principalmente na tese doutoral, e dos autores neo-hegelianos de esquerda,
sobretudo Bruno Bauer, mas apresenta tambm importante influncia de Kant,
verificvel sobretudo nos artigos da Gazeta Renana. O estudo do conjunto de
artigos desse perodo nos permitiu concluir, de acordo com a observao j
realizada por J. Chasin que, contrariamente periodizao tradicional da obra de
Marx, somente esse curto perodo pode se encaixar na rubrica de obra juvenil[1].
O segundo perodo compreende a emergncia da produo propriamente
marxiana, que se demarca pela ruptura com os paradigmas do idealismo alemo.
, portanto, uma primeira exposio do pensamento prprio do autor, j que ali
esto expostas conquistas fundamentais que sero conservadas e desenvolvidas
em sua obra posterior.
Em nosso trabalho, procuramos ressaltar as caractersticas de cada um
desses perodos, com vistas compreenso das determinaes diferenciadas
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sobre os valores morais, que comparecem em cada um desses momentos, em
funo do arcabouo terico ao qual o autor se vincula em cada um deles.
Embora a questo da moralidade no tenha sido objeto privilegiado de
anlise por parte de Marx, procuramos explicitar as possveis determinaes pr-
marxianas e marxianas a respeito dos valores, o que implicou, sobretudo na
segunda fase, no resgate da noo de determinao social do pensamento.
Esclarecemos que esse trabalho no visou propor ou reconhecer uma
tica a partir de Marx, mas simplesmente descobrir e expor de forma a mais
sistematizada possvel o que o autor nos deixa indicado a respeito dos valores
morais.
Dessa forma no entraremos aqui na discusso a respeito do que seria
uma possvel tica a partir da obra de Marx, possibilidade aventada por Vsquez,
por exemplo, para quem o marxismo como doutrina tica oferece uma explicao
e uma crtica das morais do passado, ao mesmo tempo que pe em evidncia as
bases tericas e prticas de uma nova moral[2] ou contradita por Kamenka para
quem no existe uma tica do marxismo, j que Marx, ele mesmo, no escreveu
nada de substancial ou sistemtico sobre o problema da teoria tica ou da filosofia
moral.[3]
Em nossos estudos procuramos compreender, entre outros aspectos, o
por qu da ausncia de uma reflexo especfica sobre a moral por parte de Marx,
o que nos levou a questionar as investidas no sentido de constituio de uma
moral a partir do texto marxiano. Essa ausncia que por vezes considerada
como uma incompletude a ser preenchida pelos estudiosos do autor se mostra
como um aspecto coerente de sua anlise da totalidade do ser social, na qual a
moralidade comparece como um dos modos de conscincia que integra o conjunto
das formaes ideais.
A anlise dos textos que compem o perodo aqui considerado nos
propicia uma viso privilegiada do desenvolvimento do pensamento do autor que
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rompe com a perspectiva idealista na qual era possvel a afirmao de uma moral
universal pautada sobre a natureza racional dos homens e atinge, em seu
momento propriamente marxiano, a determinao da moral como uma das
expresses de um dado modo de ser social e no como um aspecto autnomo
que possa ser pensado de forma independente e a respeito do qual possam ser
feitas prescries tendo por base qualquer suposto de carter idealista.
A Tese Doutoral: a autoconscincia como princpio da liberdade:
Em sua tese doutoral, Diferenas entre as filosofias da natureza de
Demcrito e de Epicuro, Marx faz uma leitura original da filosofia epicurista,
na qual destaca a afirmao de Epicuro da auto-conscincia como princpio da
liberdade que se instaura desde o reino da natureza.
A inteno original de Marx era fazer um estudo da filosofia ps-
aristotlica, do qual a tese doutoral seria apenas um incio, projeto justificado pelo
fato de que as escolas helensticas constituiriam momentos da
autoconscincia, e que, no seu conjunto, o epicurismo, o estoicismo e o
ceticismo integrariam a estrutura completa da autoconscincia[4]
O ponto de partida de Marx a observao de que embora os dois
filsofos, Demcrito e Epicuro, professem a mesma cincia, o atomismo, eles se
distinguem radicalmente no que diz respeito verdade, possibilidade do
conhecimento, relao entre o pensamento e a realidade, e ao prprio sentido
da cincia.
Em Demcrito, h, segundo Marx, passagens contraditrias sobre a
possibilidade de certeza do conhecer e essa posio democritiana se d em
funo da relao que ele estabelece entre a essncia (o tomo) e o fenmeno.
Haveria em Demcrito uma separao entre essncia e fenmeno, que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essncia. Para Demcrito, os verdadeiros
princpios so os tomos e o vazio, o demais opinio, aparncia.[5]
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Na concepo de Demcrito a essncia de todas as coisas so os tomos
e o vazio. No entanto ns no podemos conhecer a essncia das coisas, mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de tomos, como a cor, o
cheiro, o frio, o quente, etc, que formam os fenmenos, que ento so percebidos
pelos sujeitos. Mas esses fenmenos, essas qualidades, so apenas aparncias
que no dizem verdadeiramente da essncia dos seres. Numa palavra, so
opinio. Enquanto opinies, no podem ser elevados categoria de verdade. Os
sentidos nos levam a perceber o fenmeno, mas este instvel e no verdadeiro.
Sendo assim, Demcrito descarta os sentidos como fonte do verdadeiro
conhecimento, o que s seria possvel pela razo. Todo conhecimento a partir dos
sentidos apenas aparncia, sendo o mundo sensvel apenas uma aparncia
subjetiva.
J para Epicuro, o mundo sensvel um fenmeno objetivo, j que os
sentidos para ele so arautos do verdadeiro[6]
Marx trabalha esta diferena nos dois autores a partir da noo de
antinomia, ou seja, da diferena entre fenmeno e essncia, tal como colocada
por eles. Para tanto, ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razo de tal contraposio entre os dois filsofos.
Entre as diferenas mais importantes, a principal delas, que d
sustentao a todo o sistema epicurista, o movimento de declinao da linha
reta atribudo aos tomos.
Diferentemente de Demcrito, que apenas reconhece os movimentos dos
tomos ditados pela necessidade natural, a queda em linha reta e o movimento de
repulso que daria origem aos compostos de tomos, Epicuro introduz um terceiro
movimento, o da declinao da linha reta, que corresponderia ao movimento de
auto-determinao dos tomos. Dessa forma introduz no mundo da matria uma
possibilidade de auto-determinao que traduziria a forma pura do tomo, em
contraste com a sua existncia material.
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O movimento de declinao significa a possibilidade do desvio da linha
reta, e portanto, do determinismo natural.
De acordo com Marx, Epicuro admite um triplo movimento dos tomos no
vazio. O primeiro movimento o da queda em linha reta; o segundo se produz ao
desviar-se o tomo da linha reta; o terceiro se deve repulso dos muitos tomos.
Demcrito compartilha com Epicuro a hiptese do primeiro e terceiro movimentos;
difere dele, no entanto, quanto declinao do tomo em relao linha reta.[7]
A queda em linha reta, segundo Epicuro, faz equivaler todas as coisas, na
medida em que as torna simples pontos de uma linha reta, retirando assim a sua
individualidade. Nesse caso, estaramos no terreno do total determinismo natural.
contra isso que Epicuro introduz a idia do movimento de declinao.
Segundo Marx, Epicuro atribui ao conceito de tomo dois momentos
contraditrios, porm inter-relacionados: temos que o tomo, enquanto seu
movimento a linha reta, se acha determinado puramente pelo espao, tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existncia puramente material. Mas,
como temos visto, um dos momentos do conceito de tomo consiste em ser forma
pura, negao de toda relatividade, de toda relao com outra existncia. E temos
visto tambm como Epicuro objetiva estes dois momentos, contraditrios entre si,
mas que se acham implcitos no conceito de tomo.[8]
Portanto, temos, de acordo com Epicuro, que o conceito de tomo contm
dois momentos: a determinao material, expressa na queda em linha reta, que
corresponde forma da existncia material dos tomos , e a determinao formal,
que enquanto autodeterminao se expressa num movimento incausado e livre
que a declinao. Esta determinao formal significa a negao de toda
relatividade ou seja, a afirmao da singularidade pura .
Com esse procedimento, Epicuro nega o determinismo total que
Demcrito admite no mundo natural. Em uma passagem citada por Marx, ele
afirma: A necessidade, que alguns apresentam como senhora absoluta, no
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existe, mas sim algumas coisas so fortuitas e outras dependem da nossa
vontade.[9]
Ao admitir esses dois momentos no conceito de tomo, Epicuro introduz,
no domnio da natureza fsica, a possibilidade do acaso e da liberdade. A auto-
determinao apresentada no tomo como a capacidade deste de se recusar ao
determinismo representado pela linha reta.
Desta forma, a existncia relativa com a qual o tomo se enfrenta, o
modo de existncia que este tem que negar, a linha reta. A negao imediata
deste movimento outro movimento que, representado por si mesmo no espao,
constitui a declinao em relao linha reta.[10]
A declinao afirmada por Epicuro, segundo o entendimento de Marx,
apoiado em parte na anlise de Lucrcio, a quem considera o melhor intrprete de
Epicuro entre os antigos, como o movimento da singularidade pura em sua
afirmao contra o determinismo mecanicista da natureza. Usando os termos de
Lucrcio, pode-se dizer que a declinao rompe com os laos da fatalidade.
A hiptese do movimento de declinao foi objeto de crticas por parte de
vrios estudiosos da filosofia de Epicuro. Marx observa que Ccero, entre outros,
critica o fato de que a declinao possa ocorrer sem causa. No entanto, essa
crtica no observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de negar a
necessidade natural, uma vez que esta poderia se tornar um jugo ainda maior
sobre a liberdade dos indivduos do que os temores de fundo religioso. A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada, aspecto apenas
reconhecido por Lucrcio.
Ao atribuir ao tomo o movimento de declinao, Epicuro reconhece no
conceito de tomo dois momentos contraditrios entre si, como j vimos. A
declinao o movimento de autodeterminao oriunda da forma pura. No
entanto, essa autodeterminao se concretiza numa existncia material. nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradio com a forma pura. O que
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Demcrito cindia, o fenmeno como aparncia subjetiva e a essncia como a
forma pura inatingvel pelos sentidos, Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no prprio conceito de tomo. Dessa forma pode-se
compreender as diferenas entre os dois filsofos no tocante possibilidade do
conhecimento.
Marx observa que, alm da introduo da autodeterminao no campo
da natureza, o movimento de declinao era tido por Epicuro como necessrio
para que se desse o encontro entre os tomos e, conseqentemente, a formao
de todas as coisas. De acordo com Marx:
Epicuro supunha que inclusive no vazio os tomos declinavam um pouco
da linha reta, e da provinha, segundo ele, a liberdade... Observemos de
passagem que no foi esse o nico motivo que o levou a inventar o movimento da
declinao; se valeu deste tambm para explicar o encontro dos tomos, pois se
deu conta de que, supondo que se movessem a igual velocidade em linhas retas
projetadas de cima para baixo, jamais poderia se compreender que chegassem a
se encontrar, e deste modo o mundo no chegaria a se produzir. Era, pois,
necessrio que se desviassem da linha reta.[11]
O que se depreende a partir desta citao que a constituio de todas
as coisas surge como conseqncia da declinao dos muitos tomos, portanto
como conseqncia dos movimentos singulares, frutos da autodeterminao.
Marx chama ateno para o fato de que a declinao no um aspecto
isolado da fsica de Epicuro, mas, ao contrrio, o centro de sua filosofia, o
princpio de afirmao da conscincia de si singular abstrata, que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista. Se no entendimento materialista o homem nada
mais do que um composto de tomos, fcil compreender a importncia que a
hiptese da declinao assume na afirmao da liberdade humana.
Com efeito, o conceito de declinao na fsica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista. Marx observa que:
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do mesmo modo que o tomo se libera de sua existncia relativa, da linha reta,
abstraindo-se dela, desviando-se dela, toda a filosofia epicurista se desvia do ser-
a restritivo onde quer que sejam representados em sua existncia o conceito da
singularidade abstrata, a independncia e a negao de toda relao com outra
coisa. Assim, a finalidade do fazer a abstrao, a repulsa da dor e de tudo que
possa nos extraviar, a ataraxia.[12]
Portanto a declinao vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista. Ela indica um momento no conceito de tomo que corresponde ao
movimento da forma pura, da pura autodeterminao; ela apresentada como a
responsvel pelo encontro entre os tomos e conseqente formao do mundo e,
mais que isso, ela no se limita ao domnio da natureza, mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia, conceito central da filosofia epicurista. Continuando a tecer
essa relao entre a declinao no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens, o Marx da Tese Doutoral acrescenta que o homem s deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona no tem uma
existncia distinta, mas sim tambm um homem singular, ainda que no seja
todavia o esprito. Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular, tem que haver superado em si sua existncia relativa, a
fora dos apetites e da mera natureza[13]
Portanto, se no plano da fsica, a declinao permite o encontro entre os
tomos e a conseqente formao de todas as coisas, no plano da sociabilidade,
esse desviar-se refere-se superao dos aspectos prprios naturalidade
imediata do homem, pelo domnio dos apetites e das paixes. Marx ainda dir que
a repulso a primeira forma da auto-conscincia; corresponde, portanto,
conscincia de si, que se concebe como o ser imediato, como o singular
abstrato.[14]
A conscincia de si comea a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central, atravs do qual se faz possvel a liberdade dos determinismos,
seja no campo da pura natureza, seja no campo da sociabilidade. Essa relao
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fica mais evidenciada se atentarmos afirmao de Marx de que em Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulso; no poltico o contrato e no
social a amizade.[15] O que haveria de comum a essas duas relaes que elas
so instauradas pelo movimento de autodeterminao dos homens singulares, so
portanto relaes constitudas pela vontade livre no seu movimento de abandono
do elemento natural.
Torna-se compreensvel, a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hiptese da declinao, o entusiasmo com que o Marx da poca se
dedica ao estudo de Epicuro. De fato, ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade, na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da superstio religiosa e do determinismo, atravs da introduo da
liberdade no prprio domnio da natureza. A anlise que Marx realiza no texto de
Epicuro vai, pouco a pouco, revelando a autoconscincia como o ncleo de sua
filosofia e, atravs de uma interpretao bastante original, consegue sustentar,
mesmo no que pareceria contraditrio no interior dessa filosofia, essa
autoconscincia como suprema divindade[16], diante da qual nenhum
determinismo tolerado.
No entanto, a autodeterminao, a autoconscincia, no a nica
determinao presente no tomo. Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expresso material dos tomos, que ele procura explicar a partir da
considerao sobre as qualidades dos tomos. Segundo Marx, mediante as
qualidades, o tomo adquire uma existncia que contradiz o seu conceito,
concebe-se como existncia alienada, diferente de sua essncia. Esta contradio
a que interessa fundamentalmente a Epicuro.[17]
Diferentemente de Demcrito, que atribui as qualidades apenas aos
compostos de tomos, entendendo-as como arranjos exteriores que se
diferenciariam entre si pela forma, situao e ordem dos tomos, Epicuro vai
reconhec-las nos prprios tomos, como magnitude, forma e gravidade. Mas vai
faz-lo de tal modo que atribui qualidades aos tomos para neg-las em seguida,
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recuperando o tomo em seu conceito, uma vez que as qualidades, por serem
mutveis, contradizem o conceito de tomo em sua imutabilidade. No
detalharemos o procedimento de Epicuro a respeito das qualidades dos tomos,
restringindo-nos apenas ao fundamental, que a considerao por parte deste da
existncia material (atravs das qualidades) na sua relao contraditria com a
forma pura do tomo. A este respeito, Marx observa que Epicuro objetiva a
contradio entre essncia e existncia inerente ao conceito de tomo.[18]
De acordo com Marx, essa a grande diferena de Epicuro em relao a
Demcrito, j que para este o emprico no passa de uma combinao de tomos
com os quais no mantm nenhuma relao essencial, enquanto para Epicuro,
trata-se de uma nica coisa, o
fenmeno que revela a essncia, o que vale dizer que os sentidos esto a
utorizados ao conhecimento. Trata-se em Epicuro de uma duplicidade presente
no tomo, o que o leva a considerar o tomo enquanto princpio e o tomo
enquanto matria. Esta questo abordada por Marx, para quem esta
diferenciao se coloca em Epicuro no prprio interior do conceito de tomo, e no
pelo estabelecimento de duas coisas distintas.
A contradio entre existncia e essncia transparece atravs das
qualidades, na forma como o tomo se manifesta no mundo sensvel. Embora o
tomo com qualidades seja uma alienao da essncia , a que o tomo se
realiza no mundo:
Com essa passagem do mundo da essncia ao mundo do fenmeno,
manifesta-se a contradio contida no conceito de tomo, na sua mais difana
realizao. Pois o tomo , enquanto seu conceito, a forma absoluta e essencial
da natureza. Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da matria absoluta,
do substrato carente de forma do mundo fenomnico.[19]
O que, segundo a anlise de Marx, remete o fenmeno essncia na
filosofia de Epicuro o tempo. Tanto Epicuro quanto Demcrito consideram que o
tempo no pode fazer parte do mundo da essncia, j que este se caracteriza, por
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princpio, por sua completude e sua conseqente imutabilidade. Mas para
Demcrito, de acordo com Marx, o tempo, excludo do mundo da essncia,
relegado autoconscincia do sujeito filosfico, e nada tem a ver com o mundo
mesmo.[20]
O tempo no faz parte do mundo da essncia, nem sequer do mundo do
fenmeno, mas se encontra na autoconscincia, como algo semelhante a uma
condio da percepo. Para Epicuro, diferentemente o tempo se converte na
forma absoluta do fenmeno[21], pois considera que a composio espacial dos
tomos a forma passiva enquanto o tempo a forma ativa do fenmeno. O
tempo determinado como acidente do acidente, na medida em que a
transformao refletida em si, a mudana enquanto mudana. Esta forma pura do
mundo fenomnico precisamente o tempo.[22]
O tempo , na filosofia de Epicuro, de acordo com a dissertao de Marx,
o elemento de desvelamento da essncia. Uma vez que Epicuro considera a
contradio entre essncia e fenmeno como constituinte do ser, o fenmeno se
apresenta no tempo como uma alienao da essncia. Mas o tempo a chama
da essncia que devora eternamente o fenmeno e lhe imprime o selo da
dependncia e da no-essencialidade.[23] o tempo a marca do fenmeno que ao
transformar-se, rumo a auto-aniquilao, retorna ao seu ser para si.
Marx conclui que, com a anlise do tempo na filosofia epicurista, aliada a
todos os elementos j expostos, pode-se tirar as seguintes concluses: Em
primeiro lugar, Epicuro faz da contradio entre matria e forma o carter da
natureza fenomnica... Em segundo lugar, Epicuro o primeiro que concebe o
fenmeno como fenmeno, quer dizer, como uma alienao da essncia, que por
sua vez se reafirma em sua realidade como tal alienao.[24]
Epicuro pensa o tomo em seus dois atributos: como princpio essencial
de todas as coisas (determinao formal) e como elemento formador de todas as
coisas (determinao material). Sendo assim, possvel estabelecer uma relao
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de cognoscibilidade entre fenmeno e essncia, vale dizer, conceber o fenmeno
como fenmeno, ou seja, como manifestao sensvel e contraditria da essncia.
Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como critrios vlidos para
o mundo sensvel que, atravs de contedos mutveis, percebem o fenmeno
enquanto tal.
Expostas aqui as caractersticas bsicas do atomismo epicurista,
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx: a apreenso da
alma contraditria do mundo, e a emergncia da autoconscincia como princpio
da liberdade que constitui todas as coisas.
O segundo aspecto melhor determinado por Marx no captulo sobre os
meteoros. At ento, a autoconscincia j surgia como princpio formal do tomo,
atravs do movimento de declinao, que significa, como vimos, a possibilidade
de recusar a necessidade natural, expressa no princpio material. Epicuro introduz
a declinao como um movimento incausado, fruto da autodeterminao dos
tomos singulares. A tenso entre esses dois princpios, tambm referidos pelos
termos tomo-princpio e tomo-elemento, perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizao no mundo sensvel.
, no entanto, na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontrar
desnudado o princpio da autoconscincia como o fundamento central da filosofia
epicurista.
De acordo com sua anlise, a teoria dos meteoros um captulo essencial
da fsica de Epicuro no sentido de revelar a determinao da autoconscincia
como suprema divindade. Isso porque ali que Epicuro, ao contrariar toda a
tradio grega no que se refere aos corpos celestes, o faz no propsito de afirmar
a supremacia da autoconscincia.
Vejamos: segundo a tradio grega, os corpos celestes seriam corpos
perfeitos e incorruptveis, trazendo em si a completude prpria dos seres divinos.
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Epicuro vai se colocar energicamente contra essa idia, o que, a princpio, parece
ser uma contradio, uma vez que o sistema dos corpos celestes poderia ser
entendido como a cspide do sistema, na medida em que a estaria resolvida a
tenso entre essncia e existncia. Os corpos celestes seriam, ento, seres nos
quais a essncia se materializaria sem contradies.
No entanto, Epicuro no aceita essa idia, e dessa negao emerge com
maior clareza o papel que reserva autoconscincia na sua filosofia. Marx
observa que, nos corpos celestes, os momentos contraditrios se conciliam entre
si. No sistema celeste, a matria recebe em si a forma, assimila a singularidade e
cobra assim sua independncia. Ao chegar a esse ponto, deixa de ser uma
afirmao da autoconscincia abstrata.[25]
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliao entre forma e
matria, teramos no dizer de Marx, no mais a matria como singularidade
abstrata, mas sim como singularidade concreta, como universal. No entanto,
Epicuro recusa esse coroamento de seu sistema.
Segundo Marx, o que faz com que Epicuro rejeite esta condio de
perfeio aos corpos celestes que a aceitao dessa teoria levaria a uma
refutao da autoconscincia enquanto princpio supremo. A realizao
sensvel de uma singularidade concreta significa para Epicuro, consoante a
anlise de Marx, uma anulao da autoconscincia, na medida em que esta se
manifesta justamente na contradio entre matria e forma. Escreve Marx:
No sistema celeste, a matria recebe em si a forma, assimila a
singularidade e cobra assim sua independncia. Ao chegar a este ponto, deixa de
ser uma afirmao da autoconscincia abstrata. No mundo do tomo, como no
mundo do fenmeno, a forma lutava contra a matria, uma das determinaes
cancelava a outra e era precisamente nesta contradio que a conscincia
singular-abstrata objetivava sua natureza.[26]
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Enquanto no mundo terrenal, a autoconscincia se objetiva e se mantm
na contradio entre a forma e a matria - e o movimento de declinao
exatamente a ao desta autoconscincia - no mundo celeste, a conciliao que
torna completamente efetiva a forma na matria faz com que a autoconscincia
singular no tenha mais sentido, e isso equivale para Epicuro a se perder na
universalidade, a reconhecer um domnio no qual a autoconscincia singular no
se diferencia da autoconscincia universal, fazendo com que a autonomia
individual ceda ao jugo da superstio.
desse jugo que Epicuro quer libertar o homem. Por isso ele recusa a
tradio grega, que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes.
Marx nos lembra que da mesma forma como Epicuro trata os demais
objetos de estudo, considerando todas as hipteses como razoveis desde que
no firam a observao dos sentidos, tambm o estudo dos meteoros deve ser
considerado como um objeto comum, e no como algo superior e sagrado.
Coloca-o, portanto, no mesmo nvel de qualquer cincia, e com o mesmo objetivo:
proporcionar a ataraxia. Nesse sentido qualquer explicao serve para explicar os
corpos celestes, sendo que pode ser vlida mais do que uma nica explicao,
desde que ao final se alcance o apaziguamento dos temores humanos. Para
Epicuro, como a eternidade dos corpos celestes perturbaria a ataraxia da
autoconscincia, uma conseqncia necessria e imperiosa que eles no sejam
eternos.[27]
Portanto, por estranha que parea a princpio a posio de Epicuro a
respeito dos corpos celestes, Marx a compreende como uma proclamao
consciente do princpio de sua filosofia, que a autoconscincia singular abstrata.
como se neste momento este princpio se mostrasse plenamente na teoria de
Epicuro.
H problemas nessa teoria, que Marx se apressa em demonstrar: a
prpria possibilidade da cincia se v comprometida, o que alis para Epicuro no
era propriamente um problema, j que isso coerente com a sua idia de que a
15
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn27#_edn27
cincia serve fundamentalmente para tranquilizar o esprito, para promover a
ataraxia, e no para o conhecimento efetivo da natureza.
Se h, no entanto, dificuldades no que se refere possibilidade objetiva
da cincia, o mrito que Marx reconhece ao filsofo que ele fecha as portas
para o misticismo e a superstio, colocando a autoconscincia como elemento
libertrio. A esse respeito, Marx conclui: Se a autoconscincia singular abstrata
se postula como princpio absoluto, toda cincia verdadeira e real estar
cancelada, certamente, j que a singularidade no impera na natureza mesma das
coisas. Mas com isso se derruba tambm tudo o que se comporta de modo
transcendente autoconscincia humana e pertence portanto ao intelecto
imaginativo.[28]
Portanto, a filosofia epicurista se caracteriza pela afirmao da
autoconscincia singular abstrata, em contraposio a qualquer determinismo de
ordem natural ou sobrenatural. O entusiasmo de Marx pelo autor evidente, na
medida em que participa de um movimento de crtica aos fundamentos
heternomos, sobretudo oriundos da religio, que tem como fundamento
justamente a autoconscincia.
Em funo do reconhecimento desse elemento libertrio na filosofia
epicurista que Marx se referir a Epicuro como o maior pensador do iluminismo
grego e sua atomstica como a cincia da natureza da autoconscincia.[29]
Os limites, no entanto, dessa concepo de Epicuro so indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princpio
de que nos fala Epicuro a autoconscincia sob a forma da singularidade
abstrata[30], ou seja, a autoconscincia humana concebida por Epicuro de
forma anloga sua concepo dos tomos, como um atributo acabado, isolado,
de cada indivduo.
Esta caracterizao feita por Marx nos remete sua inteno inicial que
era fazer um estudo da filosofia helenstica, no sentido de apresentar os
16
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn28#_edn28http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn29#_edn29http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn30#_edn30
seus momentos mais significativos, o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a estrutura completa da
autoconscincia. Como tal projeto foi abandonado, no h elementos que
possam indicar, com certeza, o rumo pelo qual Marx encaminharia a questo da
autoconscincia a partir do epicurismo. No entanto, a indicao do carter da
autoconscincia em Epicuro traz em si, a despeito do tratamento elogioso que ele
dispensa ao filsofo, o reconhecimento da limitao de tal conceito. Ele dir, por
exemplo, numa passagem a respeito da distino que Epicuro faz entre o tomo-
princpio e o tomo- matria, que enquanto o tomo se concebe conforme seu
puro conceito, sua existncia o espao vazio, a natureza aniquilada: quando
ingressa na realidade, descende base material, que, portadora de um mundo de
mltiplas relaes, no existe nunca alm de suas formas indiferentes e externas.
E esta uma conseqncia necessria toda vez que o tomo se pressupe como
o abstratamente individual e acabado, e no pode afirmar-se como o poder
idealizante e transcendente daquela diversidade. A singularidade abstrata a
liberdade da existncia, no a liberdade na existncia.[31]
Se atentarmos a este trecho, temos que o entendimento do tomo
enquanto singularidade abstrata s pode desembocar numa atitude de negao
do existente, de um reconhecimento absoluto de sua alienao no existente,
diante do qual s resta o desvio, a ataraxia. a isto que ele se refere ao dizer que
a singularidade abstrata a liberdade da existncia, no a liberdade na
existncia, ou seja, a liberdade de se abstrair da existncia, mas no de se
reconhecer como liberdade realizada na existncia.
Nesta citao temos ento que, enquanto singularidade abstrata, a
autoconscincia s pode desviar-se do ser-a que a limita, s lhe resta abstrair-se,
o que corresponde declinao na fsica epicurista e ao seu correspondente no
campo da moralidade, a ataraxia.
De fato, a escavao original que ele realiza no texto de Epicuro coloca
luz a autoconscincia como suprema divindade. Nesse sentido poderamos
17
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn31#_edn31
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro terico que afirma a
autoconscincia como princpio absoluto da liberdade, princpio que possibilitar
ento a autonomia humana, garantida por Epicuro a partir mesmo da base
material da natureza. Dessa forma, os valores sociais e, dentre eles, os valores
morais teriam sua origem na autonomia dos sujeitos individuais que, a partir de
sua auto-determinao, criariam as relaes sociais e pessoais, (o contrato e a
amizade, no dizer de Epicuro), a partir da recusa consciente das determinaes
naturais, tais como as inclinaes, os apetites, etc.
Assim sendo, o Marx desse primeiro momento se alinharia perfeitamente
idia iluminista da autonomia do agir moral, como exigncia da prpria
moralidade. Os valores morais seriam dessa forma no oriundos dos temores ou
das supersties de origem heternoma, mas se justificariam a partir da
autonomia da autoconscincia.
No entanto, observam-se no texto vrias referncias ao carter individual
e abstrato da autoconscincia epicurista. A despeito do fato de indicar, na anlise
dos meteoros, a justificativa para tal considerao na filosofia epicurista, qual seja,
a necessidade da afirmao da autoconscincia singular e abstrata como forma de
garantir a libertao dos temores e mistificaes religiosos, o prprio Marx que
nos indica tambm a limitao reservada autoconscincia de Epicuro, que
apresenta como nica forma de ser o recurso do desvio e da abstrao da
realidade dada.
Pessanha observa a este respeito que ao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanada no epicurismo
aquela possvel numa filosofia da autoconscincia: uma liberdade somente interior.
a liberdade compatvel com uma filosofia do indivduo isolado, da declinao do
tomo - e que se amplia apenas at s dimenses da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria, s dimenses da serena e prazeirosa
amizade, como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklub.[32]
18
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn32#_edn32
Embora nos parea apressada a sua concluso a respeito dessa
questo, no sentido de que a posio crtica de Marx em relao relevncia
dada pelo idealismo ativo autoconscincia ainda no se verifica concretamente
nesse momento, parece-nos correta, no entanto, a observao de que j h
alguma restrio ao conceito epicurista, ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas uma anlise mais completa do
ciclo completo da autoconscincia representado nas escolas helensticas.
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao mtodo hegeliano presente em sua
tese doutoral, o mais hegeliano dos escritos de Marx, bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Esprito, obra na qual Hegel
se refere s escolas helensticas como
momentos da autoconscincia. A respeito do que seria a posio de Marx
em relao autoconscincia na filosofia de Epicuro, Rossi reposiciona a questo
da seguinte maneira: No conhecemos - como em geral indispensvel no que
se refere a uma construo hegeliana - a continuao desta dialtica, e se Marx
teria ou no intenes de apresentar, nas
partes projetadas sobre a filosofia grega, o ceticismo como sntese do
epicurismo e do estoicismo, de acordo com a letra hegeliana; ou se, pelo contrrio,
o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo, reconhecvel por enquanto na
seleo do tema e na apreciao do iluminismo de Epicuro, o destinava a colocar
diferentes solues.[33]
Portanto, no h mais que indicaes a respeito da limitao que Marx j
encontraria no conceito epicurista de autoconscincia, de tal forma que seria
prematuro afirmar, a partir da tese doutoral, se Marx se colocaria de acordo com
a anlise hegeliana que considera a autoconscincia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreenso mais abrangente da relao da
singularidade com a universalidade, ou se Marx, enfatizando a centralidade da
autoconscincia singular, alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade, entendida
19
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn33#_edn33
como realizao da universalidade, ou se, mais que isso, pode-se antever aqui um
prenncio de sua crtica relevncia atribuda pelo idealismo ativo
autoconscincia como elemento libertrio, como pretende Pessanha.
Se como diz Marx, a autoconscincia de que fala Epicuro a
autoconscincia singular e abstrata, e se o conceito de declinao tem seu
correspondente no conceito de ataraxia, teramos em Epicuro que a concepo do
tomo singular abstrato, quando transportado para o mundo humano, carrega
consigo tambm a considerao do homem como um ser abstrato, cuja
autoconscincia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
s se afirma ao neg-lo, atravs da abstrao que leva ataraxia.
Tal inferncia nos parece pertinente a partir da qualificao da ao da
singularidade abstrata como uma liberdade da existncia e no uma liberdade
na existncia , feita por Marx, o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista. Mas, como nos adverte Rossi, seria prematuro afirmar tal concluso
somente a partir do texto da tese doutoral, uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relao essa questo.
A esse propsito encontramos alguns elementos nos estudos
preparatrios que acompanham a dissertao de Marx. Ali o autor desenvolve o
que j havia anunciado na introduo dissertao a respeito do carter subjetivo
das filosofias helensticas. Marx dir que as filosofias epicurista e estica foram a
ventura de seu tempo; assim como a mariposa noturna, que busca a luz da
lmpada particular quando j se ps o sol universal.[34]
O carter das filosofias helensticas , portanto, de acordo com Marx, a
forma subjetiva com que exprime a sua oposio ao mundo. A autoconscincia, tal
como determinada por Epicuro, carrega em si essa caracterstica de ser ao
mesmo tempo, constituinte e negadora da realidade. Marx observa em uma
passagem de seus estudos que na conscincia de Epicuro est presente do
modo mais claro possvel que a repulso vem dada com a lei do tomo segundo a
qual este se desvia da linha reta. E que isto no deve ser interpretado no sentido
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http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn34#_edn34http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn34#_edn34
superficial de que somente assim possam os tomos se encontrar em seu
movimento.[35]
Apoiando-se na interpretao que Lucrcio faz de Epicuro, Marx ressalta
que a autoconscincia que se expressa no movimento da declinao, mais do que
ser responsvel pelo encontro dos tomos e consequente constituio do mundo,
resguarda o livre-arbtrio.
Na filosofia epicurista, encontra-se dessa forma o elemento subjetivo que
se ope de forma dialtica realidade, na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade. A questo que ora permanece
como Marx determina nesse momento a relao entre a subjetividade e a
objetividade ao mesmo tempo posta e questionada pela autoconscincia. a
partir desse entendimento que nos ser possvel compreender a determinao
dos valores morais tal como colocada por ele nesse perodo. Ou seja, como Marx
determina nesse momento a gnese e a legitimao dos valores morais.
Os artigos da Anekdota e da Gazeta Renana: da autoconscincia singular-abstrata universalidade dos valores:
Nos artigos da Anekdota e da Gazeta Renana, escritos entre 1842 e
meados de 43, h vrias passagens nas quais encontramos reflexes de Marx a
respeito da relao entre a singularidade e a universalidade configurada nas
formulaes morais e jurdicas.
Embora o exame da moralidade no seja o centro de suas preocupaes
foi possvel, a partir das poucas referncias diretas questo e a partir do
reconhecimento do quadro terico no qual o autor se colocava naquele momento,
inferir algumas concluses a respeito das determinaes acerca dos valores
morais.
21
http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn35#_edn35
Os artigos tratam de assuntos diversos: liberdade de imprensa, censura,
questes jurdicas relativas ao furto de lenha, mas que se alinham sobre uma
questo central: a afirmao da racionalidade do Estado, do direito e das
instituies, com a conseqente cobrana dessa racionalidade em vista da
irracionalidade dos governos, instituies e leis existentes.
Nesses artigos podemos perceber que Marx compartilha do
reconhecimento do direito e do Estado enquanto instncias de representao da
racionalidade e da liberdade humanas, herdeiro de uma antropologia racionalista
de afiliao claramente kantiana.*
No que se refere moral, podemos deduzir, pelo talhe de seu
pensamento naquele momento, pela possibilidade de uma tica universal fundada
na razo. Essa possibilidade se alicera na crtica direta de Marx ao relativismo
tico, presente no artigo Manisfesto Filosfico da Escola histrica do direito, no
qual coloca como critrio de avaliao das condutas e costumes morais, o maior
ou menor grau de racionalidade.
Ali, em polmica contra a concepo positiva e naturalista do direito de
Gustav Hugo, jurista precursor da escola histrica do direito, Marx afirma: o
alemo que educa sua filha como a jia da famlia no para ele mais positivo
que o rasbuta, que a mata para no ter que preocupar-se em aliment-la.[36]
Essa crtica da equivalncia das condutas morais evidencia o carter
racionalista que enforma o pensamento de Marx nesse momento.
Contra a fundamentao filosfica da escola histrica do direito, Marx
observa que a valer a considerao de que o dado positivo passa a se auto-
sustentar como uma evidncia, isso equivale a abrir mo do julgamento do
existente a partir da exigncia racional. E acrescenta: Tambm a argumentao
de Hugo positiva, como seu princpio, quer dizer, acrtica. Hugo no reconhece
diferenas. Toda existncia para ele uma autoridade e toda autoridade
reconhecida por ele como um fundamento.[37]
22
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Prosseguindo em sua argumentao, Marx conclui: Em uma palavra, as
erupes da pele so, para ele, to positivas quanto a prpria pele.[38]
Essa fundamentao racionalista est presente tambm em uma das
poucas referncias explcitas moral, no artigo da Anekdota, Observaes sobre
a recente Instruo prussiana acerca da censura, quando ele se refere a Kant,
Fichte e Spinoza como heris intelectuais da moral, pela defesa que estes
autores fazem da autonomia da moralidade:
A moral independente vai contra os princpios gerais da religio, e os
conceitos especiais da religio so contrrios moral. A moral s reconhece sua
prpria religio geral e racional, e a religio reconhece somente sua especial
moral positiva. Portanto, vista dessa instruo, a censura ter como rechaar
como irreligiosas, como atentatrias ao recato, disciplina e ao decoro exterior
as doutrinas dos heris intelectuais da moral, tais como Kant, Fichte e Spinoza.
Todos estes moralistas partem da existncia de uma contradio de princpio
entre a moral e a religio, posto que, segundo eles, a moral descansa sobre a
autonomia e a religio sobre a heteronomia do esprito do homem.[39]
Desse trecho depreende-se a considerao que Marx faz nesse momento
sobre a moral, alinhado filosofia idealista alem, que reconhece a gnese do
valor moral na autonomia do esprito humano. A heteronomia religiosa ou de
qualquer teor contrria, portanto, ao princpio intrnseco da moralidade. Dessa
forma as normas e os valores morais tm origem na legislao livremente posta
pelos sujeitos racionais. apenas a racionalidade que poder conferir legitimidade
aos costumes e assim resguard-los da arbitrariedade.
O centramento na racionalidade e na liberdade do esprito humano como
nica instncia de universalidade da esfera poltica, da esfera jurdica e da esfera
moral se reafirma ao longo dos artigos da Gazeta Renana. A respeito das leis, por
exemplo, Marx expe no artigo Sobre a liberdade de imprensa, a perverso
efetuada pela compreenso positiva da realidade, que considera como leis
formulaes jurdicas que no correspondem ao conceito de lei, ao passo que no
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http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn38#_edn38http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn39#_edn39
reconhece leis que, apesar de no revestirem a forma de leis, o so na medida em
que expressam a existncia positiva da liberdade.[40]
claro o legado iluminista presente nos artigos. Talvez a passagem mais
eloqente a esse respeito seja a que se refere origem racional das leis, ao
carter de necessidade da lei em virtude de uma exigncia racional que, enquanto
tal, pode ser compreendida e compartilhada pelos seres racionais: As leis so
antes as normas positivas, luminosas e gerais onde a liberdade tem uma
existncia impessoal, terica e independente da vontade particular. Um cdigo de
leis a bblia da liberdade de um povo.[41]
A autonomia e soberania da razo como fundamentao das esferas
universais reafirmada no artigo Editoral do nmero 179 da Gazeta de Colnia,
no qual Marx se dirige contra esse editorial que pretendia legitimar a relao entre
religio e Estado.
Marx desenvolve ali a sua concepo de Estado como esfera universal
que no pode,
portanto, se pautar pelos princpios particulares da religio. Tambm
nesse artigo, o autor articula a filosofia e a poltica como os momentos
respectivamente terico e prtico de um mesmo desenvolvimento do esprito
humano na sua busca pelos valores universais.
Nesse artigo, ele se refere filosofia da razo como o termo mais
adequado no lugar da razo da filosofia[42]. Parafraseando o autor, podemos
dizer que a sua concepo de moral se caracterizaria, nesse momento, por uma
religio da razo em contraposio razo da religio, que ele critica em seus
artigos. Ou seja, Marx critica qualquer origem heternoma para o Estado, o direito
e a moral, porque essa fundamentao heternoma sempre parcial e limitada.
filosofia cabe a crtica do existente, no sentido de diferenciar o acidental
do essencial, o arbitrrio do necessrio, o efetivo do verdadeiro, tendo como
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princpio a universalidade da liberdade como essncia humana, para alm de
qualquer fronteira cultural, geogrfica ou religiosa. Para o jovem Marx, a filosofia
a arma crtica que responde
exigncia de realizao da liberdade racional na realidade que se lhe
contrape, no se deixando iludir pelas formas do existente. Podemos concluir
que Marx se encontra nesse momento no interior de uma filosofia da auto-
conscincia, entendida como elemento necessrio e suficiente para a
transformao do existente.
Ele realiza nos artigos da Anekdota e da Gazeta Renana a superao do
tratamento individualista da auto-conscincia, tal como se depreende da filosofia
de Epicuro, em favor de uma concepo universalista da moral, fundamentada na
racionalidade.
Move-se dentro de uma perspectiva que relaciona o singular e o universal,
partindo da existncia singular dos indivduos, de sua natureza racional e livre,
que deve se explicitar na existncia social e na formulao de princpios universais
que tm como base a racionalidade penetrvel por todos os seus co-partcipes.
Avana no sentido de superar o conceito epicurista de auto-conscincia,
na medida em que esta assumiria um papel de afirmao da singularidade
atravs da recusa do existente. Nos artigos, diferentemente, Marx identifica a
auto-conscincia a uma racionalidade livre que fundamentalmente fator de
transformao dessa realidade.
Por outro lado, contrariamente ao pensamento de Hegel, que por seu
idealismo contemplativo justisfica todas as formas de existncia - todo real
racional, Marx, acompanhando os jovens hegelianos de esquerda, enfatiza a
auto- conscincia. Assim, o dever-ser no apenas conservado, ao contrrio da
filosofia de Hegel, mas dimenso fundamental para a reflexo do autor nesse
momento.
25
A esse respeito, vale a pena citar algumas passagens do artigo O projeto
de lei sobre o divrcio. Este artigo , em primeiro lugar, uma reinvestida do autor
contra a escola histrica do direito. A questo em pauta o matrimnio e o
divrcio entendidos como convenes arbitrrias na concepo naturalista do
historicismo jurdico. Marx se reporta a Hegel no sentido de reconhecer nas
instituies uma significao tico-espiritual que ultrapassa o mero aspecto natural.
Tambm explicitamente a Hegel dos Princpios da Filosofia do Direito, que
Marx retoma a determinao de que em si, quanto ao conceito, o matrimnio
indissolvel, mas somente em si, quer dizer, quanto ao conceito.[43]
Para Marx, o matrimnio se fundamenta sobre o esprito humano que, ao
contrrio da natureza animal, acrescenta ao mandato da natureza uma essncia
espiritual. Sendo assim, as instituies tm a necessidade que lhes confere a
natureza humana. Nesse sentido que reconhece as instituies necessrias e
indissolveis enquanto conceitos, enquanto produtos da razo dos homens.
No entanto, no h em Marx um entendimento de que toda existncia
corresponde ao seu conceito. Ao contrrio, ele afirma: assim como vemos que, na
natureza mesma, a dissoluo e a morte aparecem ali onde uma existncia no
corresponde mais plenamente sua determinao e como a histria universal
decide quando um Estado se divorciou a tal ponto da idia do Estado que j no
merece seguir subsistindo, assim o Estado decide em que condies um
matrimnio existente deixa de ser tal matrimnio.[44]
Dessa forma, ele empreende duplamente uma luta contra a tirania do
emprico: na sua
verso naturalista, tal como se apresenta na Escola histrica do direito, e
na sua verso especulativa, tal como se apresenta em Hegel.
Em funo do enquadramento terico no qual Marx se encontrava, pode-
se dizer que h nesse momento uma determinao positiva da moral, assim como
do direito e do Estado, como esferas de universalidade da liberdade humana,
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http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn43#_edn43http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn43#_edn43http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn44#_edn44http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn44#_edn44
determinao que herdeira dos ideais iluministas de autonomia. Sendo assim,
um confronto entre o universal e o singular s pode ser admitido como um
atentado racionalidade, razo moral presente nos costumes. A no ser, como
o autor tambm nos indica, naqueles casos em que o confronto se d a partir da
defesa da racionalidade exatamente contra aquelas existncias que no mais
realizam o seu conceito, tarefa reservada filosofia.
O autor estendeu at onde era possvel o exerccio da crtica filosfica
visando a racionalizao do mundo objetivo. Os limites desse procedimento so
visveis no artigo Debates sobre a lei que pune os roubos de lenha, no qual a
clareza contundente da anlise da supresso do direito de recolha da lenha
esbarra na perspectiva ingnua da modificao da lei por meio da crtica filosfica,
do chamamento razo do Estado enquanto instncia representativa do bem
comum.
Os impasses a que teria chegado nesta empreitada o levaram a um
questionamento desse arcabouo terico, com implicaes decisivas na
considerao sobre a gnese das formaes ideais, nas quais se incluem os
valores morais.
O acompanhamento desse questionamento e de seus desdobramentos
ns o fizemos na segunda parte de nosso trabalho, ao tratar dos textos que vo da
Crtica da Filosofia do Direito de Hegel de 43 Misria da Filosofia de 47.
Os anos de 43-47: o reconhecimento da determinao social do pensamento:
No conjunto de textos que compem esse perodo, reconhecemos como
caracterstica unificadora o carter ontolgico das crticas que Marx dirige
filosofia especulativa, poltica e ao Estado, e, ainda que de forma apenas inicial,
economia poltica.
27
A primeira dessas crticas se d em relao poltica, em funo do
prprio itinerrio do autor, levado pelas questes com as quais se viu envolvido
quando de seu trabalho em A Gazeta Renana. na elaborao de A Crtica da
Filosofia do Direito de Hegel que Marx, ao criticar o Estado monrquico, comea a
esboar, na expresso cunhada por Chasin, a determinao onto-negativa da
politicidade[45].
Opera-se nesse momento a ruptura com a idia de Estado racional e a
ruptura com a noo de uma universalidade fundamentada na razo como atributo
transcendental, o que leva Marx a inaugurar uma tematizao absolutamente
original em relao poltica, e que implica em desdobramentos tambm na
reflexo sobre a moral.
De fato, nesse texto, essa determinao acerca do poltico to-somente
esboada e seu desenvolvimento s ser concludo nos textos imediatamente
seguintes: Sobre A Questo Judaica e Glosas Crticas Marginais ao artigo O rei
da Prssia e a reforma social.
A crtica filosofia especulativa tambm se inicia na em A Crtica da
Filosofia do Direito de Hegel e se consolida nos textos seguintes.
A emergncia dessa virada ontolgica reconhecida posteriormente pelo
prprio Marx quando, no prefcio de 59 Para a crtica economia poltica, afirma:
Minhas investigaes me conduziram ao seguinte resultado: as relaes jurdicas
bem como as formas de Estado, no podem ser explicadas por si mesmas, nem
pela chamada evoluo geral do esprito humano; estas relaes tm , ao
contrrio, suas razes nas condies materiais de existncia em sua totalidade,
relaes estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do sculo XVIII,
compreendia sob o nome de sociedade civil.[46]
Se a primeira crtica politicidade surge desde ento enlaada com a
segunda crtica filosofia especulativa, na seqncia estas apontaro
necessariamente para a crtica da economia poltica. Na continuidade da citao
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acima, Marx acrescenta: Cheguei tambm concluso de que a anatomia da
sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Poltica.
Na crtica economia poltica, inicialmente desenvolvida em Os
Manuscritos Econmico-Filosficos, que se encontram as determinaes
essenciais do autor no que se refere compreenso do processo de auto-
construo do ser social.
O acompanhamento desse desenvolvimento do autor foi imprescindvel
para que pudssemos contextualizar as determinaes pertinentes ao mbito da
moralidade.
A partir dessa nova base ontolgica, a esfera dos valores morais perde a
suposta autononomia que gozava no momento anterior, o da reflexo pr-
marxiana, e passa a se constituir como um aspecto no interior das formaes
ideais, formaes essas essencialmente vinculadas base material da existncia
social dos homens.
Atravs da anlise do trabalho como atividade fundante do ser humano,
Marx consolida a determinao do homem como ser ativo, e como ser ativo social,
na medida em que a atividade humana no pode existir extra-socialmente.
Nesse texto fundamental, Marx indica a relao entre a forma social da
atividade humana e a construo das individualidades humanas, no que se refere
sua relao com o mundo e com os outros indivduos, e no que se refere
produo das manifestaes espirituais. O ponto de partida, definitivamente
consolidado que importa, acima de tudo, evitar que a sociedade se considere
novamente como uma abstrao em confronto com o indivduo. O indivduo o
ser social.[47]
A partir da fundamentao ontolgica que reconhece o ser humano como
ser essencialmente social que Marx pode descartar a suposta fundamentao
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http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn47#_edn47http://www.verinotio.org/revista4_genese.htm#_edn47#_edn47
de carter racionalista dos valores que compem as chamadas formaes ideais,
remetendo-as, em sua origem e em seu contedo, sua insero social.
A possibilidade de uma anlise crtica dos valores se apresenta agora no
interior de uma proposio terica que tem como pressuposto a crtica da prpria
sociedade civil, uma vez reconhecida a atividade social como base ontolgica
ltima de todas as realizaes humano-societrias.
H em Sobre A Questo Judaica uma passagem esclarecedora da
maneira como Marx relaciona os valores ao solo material do qual brotam. Ao
analisar o conceito de liberdade presente na declarao dos direitos humanos, ele
observa: A liberdade o direito de fazer tudo o que no cause dano aos outros.
Os limites dentro dos quais cada um pode atuar sem prejudicar os outros so
determinados pela lei, assim como a fronteira entre dois campos marcada por
uma estaca. Trata-se da liberdade do homem enquanto mnada isolada, retirado
para o interior de si mesmo.
[...] a liberdade como direito do homem no se funda nas relaes entre
homem e homem, mas antes na separao do homem a respeito do homem. o
direito de tal separao, o direito do indivduo circunscrito, fechado em si
mesmo.[...] Leva cada homem a ver nos outros homens, no a realizao, mas a
limitao da sua prpria liberdade.[48]
O autor remete dessa forma a abstratividade de um conceito formal ao
seu solo social, de forma que a concepo negativa da liberdade como limitao,
como algo que separa os homens entre si e, portanto, como propriedade limitada
e circunscrita a cada qual, surge como produto social, mostra a sua gnese e a
sua razo de ser histrica.
Temos, ao final do perodo 43-44, como conquista definitiva do
pensamento marxiano e base de suas investigaes futuras, a determinao do
homem como ser social sensvel e ativo, cuja autognese implica a relao
ineliminvel entre a subjetividade e a objetividade.
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Em decorrncia do reconhecimento dessa relao entre objetividade e
subjetividade que compe o ser social, Marx oferece, ao final de Os Manuscritos
econmico-filosficos, os elementos que permitiro a compreenso das formaes
ideais como prolongamento ideal de uma dada realidade social.
Em outras palavras, o autor nos aponta o fenmeno da determinao
social do pensamento, que ser mais desenvolvida nos textos seguintes, A
Sagrada Famlia, A Ideologia Alem e Misria da Filosofia.
O que o autor reconhece nesses textos a vinculao ineliminvel entre a
objetividade social, que se estrutura em funo do modo de produo, e as
formaes ideais, na medida em que estas so expresses de um dado modo de
ser social.
Marx traz luz a compreenso de que a produo material da vida no
significa apenas a produo da vida material mas tambm implica a produo de
uma dada forma de vida social, pautada sobre relaes sociais determinadas, o
que implica, por sua vez, a produo dos indivduos humanos, enquanto
indivduos sociais. Ou seja, a considerao acerca do modo de produo no se
restringe ao campo dos interesses econmicos, mas se eleva elucidao da
auto-produo do homem como ser social.
Nesse sentido, o pensamento, a conscincia, uma das manifestaes
dos indivduos em sua interatividade social. Ao afirmar a determinao social do
pensamento, isso no significa reduzi-lo a um produto mecnico derivado do modo
de produo. O que Marx contrape abstratividade especulativa o fato
inalienvel de que a conscincia no existe pairando sobre a realidade, mas sim
um atributo, um predicado de um ser concreto, que se mostra, portanto, como
mais um predicado ou mais uma manifestao, ainda que mpar, dos sujeitos
sociais. Nas palavras de Marx: a produo de idias, de representaes e de
conscincia est em primeiro lugar direta e intimamente ligada atividade material
e ao comrcio material dos homens; a linguagem da vida real. As
representaes, o pensamento, o comrcio intelectual dos homens surge aqui
31
como emanao direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a
produo intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, poltica,
moral, religio, metafsica, etc., de um povo. So os homens que produzem as
suas representaes, as suas idias, etc, mas os homens reais, atuantes e tais
como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas foras
produtivas e do modo de relaes que lhe corresponde, incluindo at as formas
mais amplas que estas possam tomar.[49]
Em virtude das incompreenses que cercam a determinao social do
pensamento, vale a pena citar aqui uma passagem esclarecedora de Chasin: o
que h, ento, de escandaloso em constatar que tal como os indivduos
manifestam sua vida, assim eles pensam? A extravagncia no est, exatamente,
em sustentar o oposto? Donde a suspeio, de que haja certa fissura
economicista no trecho, antes de tudo desconsiderao pelo estatuto da obra
marxiana e, por conseqncia, desateno relativa ao teor precpuo da
composio conceitual, mesmo porque focalizar condicionamentos tratar de
discernir condies, possibilidades ou impedimentos de atualizao, deslindar
processos genticos, o que s passvel de eliso em face do incondicionado, do
absoluto, cuja figura, alis, ao inverso de consagrar uma presena de validade
infinita, remete ao vazio, pois basta desconhecer ou abstrair a origem e o
desenvolvimento de algo, real ou ideal, para que o mesmo assuma a mscara do
eterno.[50]
O reconhecimento das condies e das limitaes objetivas da produo
social da conscincia no implica o reducionismo de se identificar os produtos
espirituais imediatamente a uma dada existncia material. O prprio Marx nos
indica em vrias passagens a complexidade da relao entre as formaes ideais
e a base econmica.
A caracterstica do conjunto das formaes ideais seria a duplicidade em
relao sua origem: teria a sua gnese no processo concreto-material, e deste
se afastaria, atravs de mediaes, a ponto de aparentar uma pseudo-autonomia,
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na medida em que nem sempre se desvenda imediatamente na materialidade de
uma dada configurao concreta que lhe deu origem. Marx trabalha essa questo
na Ideologia Alem ao tratar da necessidade que a classe dominante tem de
apresentar os seus valores como valores universais, e os mecanismos
econmico-sociais que permitem esse trnsito.
Se Marx se refere ao conjunto das representaes, idias e conceitos
como ideologia, no se pode, no entanto, tomar esse conceito apenas na acepo
de escamoteao e legitimao de uma dada realidade social.
De fato essa acepo existe no texto de Marx, mas no somente essa.
Quanto a esse aspecto, procuramos acompanhar a anlise de Vaisman a
respeito das conotaes que o termo adquire na obra de Marx. Tem-se como
resultado dessa anlise o reconhecimento de duas acepes do termo: o sentido
onto-crtico, que se refere ao uso do termo para indicar a inverso que a reflexo
idealista efetua entre o predicado e o ser; e o sentido onto-nominativo, que
designa o uso mais abrangente que Marx faz do termo para indicar o conjunto de
formas de conscincias relativas a uma dada forma de sociabilidade.
Tal anlise nos indica a impropriedade de se restringir o conceito de
ideologia uma noo de falsidade ou de ocultamento. A identificao da
ideologia como falsidade no leva em considerao o carter da crtica de Marx,
na qual a prpria falsidade de uma representao no tida somente como
falsidade em relao realidade representada, mas como falsidade necessria,
produzida nos limites de um dado conjunto de fatores e relaes sociais que
enformam as idias e representaes. o que Marx chama a ateno ao afirmar a
respeito dos idelogos neo-hegelianos: Se a expresso consciente das condies
de vida reais desses indivduos imaginria, se nas suas representaes
consideram a realidade invertida, este fenmeno ainda uma conseqncia do
seu modo de atividade material limitado e das relaes deficientes que dele
resultam.[51]
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O que Marx enfatiza exatamente essa vinculao, a necessria e
ineliminvel relao que existe entre as idias, as representaes e o solo de
onde brotam. Nesse entendimento, tem-se que a falsidade ou correo das
representaes no so motivadas, assim, por mecanismos puramente ideais,
inerentes prpria constituio da esfera subjetiva, mas derivam
da potncia ou dos limites do modo pelo qual os homens produzem seus
meios de vida, ou seja, os limites devida apreenso dos nexos constitutivos da
realidade so postos socialmente.[52]
De acordo com Vaisman, essa identificao de ideologia como falsa
conscincia tem, em grande medida, respaldo na obra de Lukcs, Histria e
conscincia de classe, a partir da qual diversos intrpretes da obra de
Marx desenvolveram sua reflexo consubstanciando essa noo errnea e
simplificadora de ideologia.
Porm, o prprio Lukcs, em Para uma Ontologia do Ser Social, que
buscou, inclusive enquanto corretivo de seu roteiro anterior, enfrentar o problema
da ideologia de outro modo, valendo-se do critrio onto-prtico. Sob essa diretriz,
o aspecto mais importante da anlise lukacsiana reside no empenho em
demonstrar o papel e a funo das formaes ideais na resoluo dos problemas
de ordem prtica que permeiam a existncia social, colocando em segundo plano,
no que tange identificao do fenmeno enquanto tal, a avaliao da falsidade
ou correo dos produtos espirituais em sua funo ideolgica.[53]
Ao analisar a ideologia a partir do critrio onto-prtico, Lukcs retm com
mais vigor a complexidade da relao entre o real e o ideal, de acordo com a
reflexo marxiana. Ou seja, os produtos ideolgicos no se resumem uma
funo falsificadora ou escamoteadora da realidade, embora possam inclusive
apresentar essa caracterstica, mas a sua principal caracterstica diz respeito
estreita vinculao que mantm em relao s condies objetivas reais das quais
se derivam. A sua correo ou falsidade secundria em relao ao fato de que,
enquanto produtos sociais, as idias e representaes exprimem os contedos e
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as limitaes de uma dada existncia social, qualificando-se dessa forma, como
idias orientadoras na resoluo dos problemas de ordem prtica.
Esse esclarecimento fundamental para que se compreenda a
determinao marxiana da moral como ideologia.
Se os valores morais podem desempenhar uma funo ideolgica, no seu
sentido restrito, temos no entanto que o alcance do termo ideologia aponta para a
insero histrico-social do conjunto das formas de conscincia no que se refere
ao seu contedo possvel, aos seus avanos e s suas limitaes objetivas.
Gnese, funo e crtica dos valores morais: a moral a impotncia colocada em ao... (Marx):
A despeito da forma fragmentada com que as questes acerca da moral
so tratadas nos escritos de Marx, possvel reconhecer algumas determinaes
que so reiteradas ao longo dos mesmos. o que procuraremos
sistematizar nesse momento.
Em Os Manuscritos Econmico-Filosficos, um dos problemas
investigados a relao da moral com a economia. Marx constata que os
economistas consideram, no que se refere ao salrio, apenas os elementos
imediatamente necessrios para a manuteno da vida fsica do trabalhador.
Referindo-se ao procedimento dos economistas, afirmado que: Em primeiro
lugar, pela reduo que faz das necessidades do trabalhador manuteno
indispensvel e miservel da vida fsica e da sua atividade ao mais abstrato
movimento mecnico, o economista afirma que o homem, alm delas, no tem
mais necessidades, quer de atividade, quer de prazer; e, no entanto, declara que
tambm esta vida constitui uma vida e uma existncia humanas. Em segundo
lugar, ao considerar como padro e, sem dvida, padro universal (porque se
aplica massa dos homens) a vida mais pobre possvel, faz do trabalhador um
ser desprovido de sentidos e de necessidades, da mesma maneira
que transforma a sua atividade em simples abstrao de toda a atividade. Por
35
conseguinte, todo o luxo do trabalhador lhe surge como reprovvel e tudo o que
vai alm da atividade super-abstrata - quer como prazer passivo, quer como
manifestao da atividade pessoal - pelo economista considerado como luxo. A
economia poltica, a cincia da riqueza, revela-se ao mesmo tempo como a
cincia da renncia, da privao, da poupana, que consegue realmente poupar
ao homem a necessidade de ar puro ou de atividade fsica. Esta cincia da
indstria maravilhosa simultneamente a cincia do ascetismo. O seu ideal o
avaro asceta mas usurrio, e o escravo asceta mas produtivo. [...] Apesar da
aparncia mundana e voluptuosa, constitui uma cincia verdadeiramente moral, a
mais moral de todas as cincias. A sua principal tese a auto-renncia, a renncia
da vida e de todas as necessidades humanas. Quanto menos cada um comer,
beber, comprar livros, for ao teatro ou ao baile, ao bar, quanto menos cada um
pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, poetar, etc., tanto mais poupar, tanto maior
ser o seu tesouro, que nem a traa nem a ferrugem roero, o seu capital. Quanto
menos cada um for, quanto menos cada um expressar a sua vida, tanto mais ser,
tanto maior ser a sua vida alienada e maior ser a poupana da sua vida
alienada.[54]
Nesse trecho, Marx determina a origem da moralidade no modo de
produo da vida material, pois o contedo moral est referido diretamente aos
interesses da produo. Os valores, tais como o ascetismo, a renncia, se
explicam luz dos interesses do capital.
Ele identifica como algo constitutivo do modo de produo capitalista a
necessidade do poupar, que ao extremo o poupar da prpria vida. O ascetismo
como valor se origina de uma necessidade do capital que transforma em padro
universal a vida mais pobre possvel. A avareza no acrescentada, no
exterior, mas existe como princpio da acumulao do capital. Neste sentido que
o viver, o expressar-se, o ser, que em Marx s pode se dar objetivamente, cede
lugar ao poupar, ao acumular.
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Isso nos leva a um outro aspecto importante, que o fato de Marx
pouqussimas vezes se debruar sobre a questo moral. Essa ausncia se
compreende exatamente como decorrncia do fato de que Marx, a partir do
momento em que determina a forma da sociabilidade em funo do modo de
produo como origem de todas as manifestaes humanas, recusa
necessariamente qualquer autonomia aos valores expressos nas manifestaes
ideais. Nesse sentido, Marx no faz uma anlise moral dos valores, mas uma
anlise crtica, gentica, dos mesmos. O que ele demonstra na realidade o
carter no- moral de uma dada moralidade. Da mesma forma, Marx no se
prope em nenhum momento a elaborar uma tica, j que no se encontra ali a
origem das inquietaes do autor, e sim na forma da produo material da vida.
no modo de produo que se pode encontrar os fatores determinantes de uma
determinada valorao moral.
Portanto, ao tratar das questes relativas s decises e valores morais,
Marx o faz a partir de uma abordagem objetivo-ontolgica, na qual procura trazer
tona a gnese e a razo de ser de uma determinada moralidade.
Continuando na anlise da doutrina do ascetismo, Marx demonstra como
dali derivam medidas ainda mais drsticas em relao ao proletariado. A tese da
renncia inflingida de forma muito mais severa aos trabalhadores, atravs de
uma justificativa moral que permeia e apazigua a truculncia da relao
econmica. A rigor essa a teoria que subjaz ao modo de produo capitalista,
ainda que no possa vir tona, sob a acusao de cinismo. a teoria da utilidade
em nome da qual toda necessidade humana tem que ser posta prova. Nesse
sentido que Marx compreende, entre outras coisas, o elogio ao controle da
natalidade, dirigido s classes trabalhadoras: H homens a mais. A verdadeira
existncia do homem puro luxo, e se o trabalhador moral, torna-se-
econmico na procriao.[55]
Essa inter-relao entre o econmico e o moral pode, no entanto, ainda
segundo o autor, se mostrar antagnica. Como isto poderia ser entendido? Ele
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dir de uma relao aparente e de uma relao essencial, que daria conta de
esclarecer esta aparente contraditoriedade entre as duas esferas. A relao
aparente se d, muitas vezes, na forma de anttese: Suponhamos que eu
pergunte a um economista: estarei a obedecer s leis econmicas quando ganho
dinheiro pela venda e prostituio do meu corpo para a volpia de outra pessoa
(na Frana os trabalhadores das fbricas chamam prostituio das suas mulheres
e filhas s x horas de trabalho - o que literalmente verdadeiro), ou quando vendo
o meu amigo aos marroquinos (e a venda direta de seres humanos existe em
todos os pases civilizados na forma de comrcio de recrutas)? O economista
replicar: No ests a agir contra as minhas leis; mas deves atender ao que dizem
a prima moral e a prima religio.[56]
Marx toca aqui no problema moral propriamente dito, ou seja, na opo
moral individual em meio a circunstncias concretas. O que ele evita fazer
justamente embrenhar-se em questes de foro ntimo que determinariam este ou
aquele agir, e sim recuperar o escopo social no qual a questo moral se apresenta.
No se trata de uma abordagem do agir moral, mas de elucidar as razes reais
que criam o impasse moral.
A aparente contradio entre as leis da moral ou da religio e as leis
econmicas, para as quais perfeitamente concebvel a prostituio ou a venda
de seres humanos, uma vez que de acordo com o princpio da economia
capitalista tudo o que possuis deve se tornar venal[57], explicada pelo autor,
como decorrncia da alienao de uma esfera em relao outra. Observa Marx:
A natureza da alienao implica que cada esfera me prope normas diferentes e
contraditrias, uma a moral, outra a economia poltica, porque cada uma delas
constitui uma determinada alienao do homem: cada uma concentra-se num
crculo especfico de atividade alienada e encontra-se alienada em relao outra
alienao.[58]
Nesse trecho, Marx se refere moral como uma forma de alienao, uma
das esferas
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da alienao do homem. Quando no primeiro manuscrito, o autor examina
as formas de alienao advindas da relao do homem com a sua atividade, um
dos aspectos levantados era exatamente o da alienao do homem em relao a
si mesmo.* Na medida em que os indivduos no tm o domnio sobre a sua
produo e conseqentemente sobre a sua vida e o seu modo de ser, eles ficam
sujeitos a diferentes solicitaes dos muitos campos cindidos de sua existncia:
enquanto trabalhador, enquanto indivduo moral, enquanto cidado. A moral se
apresenta como alienao, ou seja, como esfera de estranhamento por parte dos
indivduos, que na sua vida concreta, no conseguem conjugar de forma coerente
as solicitaes diversas das diversas esferas de alienao.
A partir do prisma moral, pode parecer cruel ou cnico o procedimento
exigido pela esfera econmica. No entanto, como Marx no se encaminha em sua
anlise por um julgamento moral da economia, o que tratar de esclarecer a
gnese dessa aparente contradio entre moral e economia.
O cinismo que possa transparecer quando se aborda por um prisma, o
moral, questes de outro campo, o econmico, pode ser compreendido em vista
da fragmentao de solicitaes oriundas da alienao primeira dos indivduos em
relao ao trabalho. No entanto, continua Marx: a anttese entre a moral e a
economia poltica no passa de mera aparncia; ao mesmo tempo uma anttese
e uma ausncia de anttese. A economia poltica exprime apenas, sua
maneira, as leis morais.[59]
Nessa passagem o autor nos coloca que, o que por vezes nos parece
uma anttese entre moral e economia, na realidade perde essa aparncia, na
medida em que se compreende o processo de alienaes consecutivas geradas a
partir do trabalho alienado. Em termos simplificados, a emergncia de
contradies entre o agir econmico e o agir moral s se d em funo do modo
de produo, que cria junto consigo o indivduo que, para sobreviver, precisa se
tornar venal. Nesse sentido, a moral, ainda que se pretenda autnoma, na medida
em que coloca objees ao agir econmico, s tem sua existncia em funo
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desse modo especfico de produo. Seria, ainda que supostamente contrria a
ele, ainda assim uma decorrncia do mesmo. As suas questes e objees
transitam em torno das questes materiais, e a elas esto submetidas. O contedo
moral est determinado e circunscrito uma dada configurao material.
Nesse sentido que, em Marx, a crtica da economia poltica redunda
numa crtica
da moral, mas uma mera crtica da moral no se justifica na medida em
que seria impotente frente aos imperativos da produo material.
Por detrs de uma aparente contradio, portanto, entre as duas esferas,
Marx indica, por vezes, a presena de contradies para, no momento
seguinte, compreend-las dentro de uma totalidade que lhes confere, ainda que
perversamente, sentido.
A sua tese que por trs de uma aparente contradio entre as diversas
solicitaes das esferas da existncia humana, e mais especificamente entre as
leis da economia e as normas morais de uma mesma sociedade, h no entanto
um prolongamento a ser desvelado.
Se nos Manuscritos, Marx esclarece a vinculao entre a base produtiva e
o sistema de valores que podem ser, com maior ou menor imediaticidade,
remetidos quela, na Sagrada Famlia que encontramos alm da indicao da
origem dos valores, passagens referentes crtica que o autor desenvolve
moralidade burguesa.
Na Sagrada Famlia, a maior parte dessas passagens se encontra nos
captulos sobre os Mistrios de Paris. Esse texto, muito popular na poca, era
uma espcie de folhetim, de autoria de Eugene Sue, publicado em
1842. Marx vai se dedicar a um estudo no s do texto de Sue, mas tambm da
anlise do romance realizada por Szeliga (pseudnimo de Franz-Zychlin von
Zychlinski).
40
O texto Mistrios de Paris o pretexto que Szeliga usa para criar uma
srie de figuras que representam os vcios e as virtudes presentes na sociedade,
mas de um ponto de vista especulativo, a partir do qual ao invs de procurar as
razes dos vcios e virtudes nas relaes concretas da vida social, remete-os
categoria de mistrios a serem decifrados pela Crtica. Ou como Marx ainda o
dir, noutras palavras, ele transforma o banal, o perfeitamente explicvel, em
mistrios. Szeliga parte de um texto folhetinesco, que retrata a sociedade
aristocrtica decadente de Paris e seus valores, e sua relao com os elementos
das classes subalternas, os criados, as prostitutas, etc., e cada uma destas
personagens tida como a representao, a encarnao de uma dada virtude ou
vcio. O que Marx faz arrasar a montagem realizada por Szeliga, no sentido de
demonstrar a artificialidade, a pretenso de uma realizao filosfica a partir de
dados empricos, e, por outro lado, demonstrar, ao contrrio do que pretende
Szeliga, a imoralidade presente no procedimento moral das personagens que se
pretendem virtuosas.
Na verdade, o comentrio de Marx vai no sentido de demontrar que
Szeliga faz uma leitura distorcida do romance de Sue em funo de seus
princpios tericos. Ele l o romance adequando-o a um moralismo que lhe caro
e que altera o prprio sentido original do texto.
claro o ponto de partida de Marx, que alinhado crtica de Feuerbach
contra a filosofia hegeliana, afirma como elemento fundante da realidade o seu
aspecto sensvel. Nesse sentido, que o autor coloca entre aspas a moral pura, o
amor verdadeiro, a razo universal, como abstraes em relao ao contedo
concreto do mundo sensvel. Essa recusa do sensvel um ponto a ser, por
diversas vezes, reiterado por Marx como parte do procedimento prprio aos
autores neo-hegelianos.
Contrariamente a essa recusa, Marx efetua uma anlise gentica dos
valores morais, entendidos exatamente a partir da realidade sensvel, profana,
41
que lhes d origem. Vejamos algumas passagens nas quais o autor exercita esse
remetimento de um determinado valor sua bas