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Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC

ISSN 1415-4471

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Preço de AssinAturA PArA o Ano 2010R$ 35,00

Forma de PagamentoCheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina

ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8

CorresPondênCiA e AssinAturA

Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESCCaixa Postal 5041

88040-970 Florianópolis, SCFone/Fax: (0xx48) 3234-0400Home Page: www.itesc.org.brE-mail: [email protected]

Revisão: Pe. Ney Brasil PereiraEditoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta

Projeto gráfico: Antônio FrutuosoPrinted in Brasil

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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARAINSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA

Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino FellerVice-diretor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi

Secretário: Prof. Ms. Celso LoraschiCoordenador/Departamento de Ecumenismo: Pe. Dr. Elias Wolff

Coordenador/Departamento de Comunicação: Pe. Dr. Domingos Volney NandiCoordenador/Departamento de Bíblia: Prof. Ms. Celso Loraschi

Bibliotecária: Adriana de Mello TomazSecretária Acadêmica: Ana Maria Ramos

Secretária Institucional: Aline Maria PereiraAssistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães

Recepcionista: Crisleine Daiana Radatz

[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]CRB-14/416

Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 57, Florianópolis, 2010.

Quadrimestral ISSN 1415-4471

I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05)

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ENCONTROS TEOLÓGICOSrevistA quAdrimestrAl fundAdA em 1986Diretor: Elias WolffEditor: Vitor Galdino FellerRedator: Ney Brasil Pereira

CONSELHO EDITORIAL: Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SCDomingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SCEdinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SCHelcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PRInácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RSJoão Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MGJosé Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SCLilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SCLuiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RSMárcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SPMaria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJMaria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SCMarlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SCNey Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SCRudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RSValter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SCVilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SCVitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC

CONSELHO CONSULTIVO:Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RSArmando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SCÉrico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SCFábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SCGabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DFGertrude Marques IDP – ITESC – Florianópolis, SCJoaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GOLuís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SCMarta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJRoberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SCSérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PRSiro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SCVilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC

Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.

Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisado-res e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.

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Sumário

Editorial ....................................................................................................... 7

O projeto pastoral na América Latina e no Documento de AparecidaManoel Godoy ......................................................................................................... 11

As mudanças socioculturais e a Igreja no BrasilMário de França Miranda, SJ ................................................................................ 29

O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental? Questionamentos sobre suas possibilidades e incongruênciasPe. Sidnei Marco Dornelas, CS .............................................................................. 49

A perspectiva ecumênica do Documento de AparecidaMaria Teresa de Freitas Cardoso ........................................................................... 67

Catequese iniciática segundo AparecidaIrmão Nery, fsc ........................................................................................................ 81

Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundoVera Ivanise Bombonatto, fsp ................................................................................. 95

Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBsSérgio Ricardo Coutinho .......................................................................................... 111

A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolíticasPe. Nelito Nonato Dornelas .................................................................................... 123

Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação Geraldo Martins Dias .............................................................................................. 143

Ética religiosa e pós-modernidade: Fidelidade, um parâmetro fragilizadoMárcio Bolda da Silva ............................................................................................. 163

Recensões ..................................................................................................... 175

Crônicas ....................................................................................................... 187

Permuta ........................................................................................................ 189

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7Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

Editorial

O Documento de Aparecida (DAp) dá novo vigor teológico, espiritual, pastoral e estrutural para a Igreja em toda a AL e Caribe. Propõe ca-minhos para “revitalizar nosso modo de ser católico” (n. 13), promo-vendo e formando “discípulos missionários” (n. 14) conscientes da sua fé batismal, com vivência comunitária e capazes de assumir os desafios que o mundo hoje apresenta para a Igreja. A Igreja é, assim, chamada a rever e aprofundar sua verdadeira natureza, identidade, organização e missão. E isso de modo contextualizado na “realidade social, plural, diferenciada e globalizada, procurando novas respostas que dêem sus-tentação à fé e à experiência do discipulado dos agentes de pastoral” (n. 345). O DAp situa-se, assim, na tradição do Concílio Vaticano II e das grandes Conferências da Igreja no Continente - sobretudo Medellín e Puebla.

Assim fazendo, o DAp busca aprofundar a autoconsciência católi-ca perguntando o que é e como ser Igreja hoje. Uma definição de Igreja seria “uma comunidade discípula missionária de Cristo”, realidade de comunhão, “casa e escola” de comunhão (n. 158). A comunhão acon-tece na diversidade de carismas, ministérios e serviços, e seu lugar de concretização são as dioceses, as paróquias, as comunidades eclesiais de base, as pequenas comunidades, as conferências episcopais. Trata-se da comunhão na fé que exige a comunhão de vida na partilha fraterna e na prática da justiça.

Isso requer uma conversão pastoral e renovação missionária da Igreja, que a ajude a “abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (n. 365). Para essa conversão e renovação são chamados todos os discípulos e discípulas de Cristo, desafiados a uma atitude de abertura, de diálogo e disponibilidade para promover a co-responsabilidade e participação efetiva na vida da Igreja (n. 368).

O ponto de partida é entender que aprendemos a ser cristãos e a ser Igreja a partir da experiência de Deus em Jesus Cristo. Acontece

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8 Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

EditorialEditorial

o fortalecimento da fé, da esperança e da caridade. Essa experiência de encontro e de comunhão é vivida na Igreja e no mundo. O encontro com Cristo leva a reconhecê-Lo nos “rostos sofridos”, particularmente dos pobres, sendo a Igreja “convocada a ser “advogada da justiça e defensora dos pobres diante das ‘intoleráveis desigualdades sociais e econômicas’, que ‘clamam ao céu’” (n.395). Assim, a fé em Cristo implica uma opção decidida pelos empobrecidos, de modo que uma está implícita na outra (nn. 392.393).

Daqui as características do ser e do agir do discípulo missio-nário de Cristo: vive a alegria de ser discípulo missionário de Jesus Cristo (cap. III); busca uma devida formação (cap. VI); engaja-se na comunidade eclesial (cap. V); desenvolve sua missão a serviço da vida plena (cap. VII), da construção do Reino e da promoção da dignidade humana (cap. VIII).

Essa Igreja discípula missionária, escola de comunhão e ad-vogada da justiça precisa de estruturas que lhe dêem sustentação. Tal é a razão dos diversos Conselhos - pastorais, econômicos, de leigos, de religiosos, de presbíteros. Tal é a função também das Conferências episcopais. Concorrem para isso, ainda, os institutos de teologia e pastoral. Todos deveriam funcionar como “espaços de diálogo, discussão e busca de respostas adequadas aos enormes desafios enfrentados pela evangelização no Continente” (n. 344). Esses organismos e instituições eclesiais promovem a comunhão, mas podem ser também obstáculos para isso. Tudo depende da profundidade da conversão que possibilite uma renovação pastoral “decididamente missionária”.

Esses elementos identificam a Igreja no DAp. Mas não são isentos de ambigüidades e conflitos. De um lado, o DAp busca construir uma Igreja relacional, provocando nela uma reconfiguração estrutural, teórica e pastoral, abrindo-a ao mundo atual. De outro, reforça uma identidade eclesial consubstanciada nos elementos institucionais e dogmáticos. A primeira tendência apresenta sintonia com a caminhada teológica e pastoral da América Latina. A segunda apresenta reservas a esse jeito de a Igreja ser. O desafio é encontrar o “ponto de equilíbrio” entre o ad extra e o ad intra na Igreja.

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9Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

Editorial

Por isso, o DAp é um texto complexo. Ele integra diversos graus de qualidade literária, uma grande diversidade de tendências, teologias, opções ideológicas, que não facilitam compreender como foi possível encontrar fórmulas consensuais nas questões ad intra e ad extra da Igreja. O que fazer para que as diferenças e, inclusive, divergências que se apresentam no DAp, não impeçam a articulação da ação missionária da Igreja católica no continente?

A chave é entender e assumir, de fato, as grandes linhas do DAp: situar-se não apenas num tempo de mudanças mas na mudança de tempo; nesse tempo, viver o discipulado e a missão a partir do real encontro com Jesus Cristo; fazer efetivas reformas nas estruturas eclesiásticas; dinamizar a “pastoral da conservação”, optando por “uma pastoral decididamente missionária”; reassumir a opção pelos pobres, implícita na fé em Jesus Cristo...

Mas emergem questionamentos: como está a recepção do DAp na Igreja latino-americana e caribenha? Onde encontrar reais esforços para a aplicação de suas orientações? Como despertar os cristãos para o discipulado e a missionariedade que o batismo exige? Como evitar que, passados apenas pouco mais de três anos, o DAp caia no esqueci-mento, sem possibilitar a conversão pastoral e as mudanças estruturais tão necessárias na Igreja...?

Um primeiro passo é intensificar a recepção do DAp em todas as comunidades. E isso se dá através de um processo de estudo e discussão sobre esse Documento. A revista Encontros Teológicos quer contribuir para tal objetivo. E o fazemos pela segunda vez, sendo este número de nossa revista uma espécie de continuidade do número 51, intitulado “A Igreja no Documento de Aparecida”. Desta vez, apresentamos as seguin-tes reflexões: O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida (Manoel Godoy); As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil (Mário de França Miranda, SJ); O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental? Questionamentos sobre suas possibilidades e incongruências (Pe. Sidnei Marco Dornelas, CS); A perspectiva ecumênica do Documento de Aparecida (Maria Teresa de Freitas Cardoso); Catequese iniciática segundo Aparecida (Irmão Nery, fsc); Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo (Vera Ivanise Bombonatto, fsp); Conversão pastoral e

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Editorial

renovação missionária a partir das CEBs (Sérgio Ricardo Coutinho); A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolíticas (Pe. Nelito Nonato Dornelas); Conferência de Aparecida, um sim às no-vas tecnologias de comunicação (Geraldo Martins Dias); Ética religiosa e pós-modernidade: Fidelidade, um parâmetro fragilizado (Márcio Bolda da Silva). Temos, ainda, Recensões e Crônicas.

Elias Wolff

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 11-28.

* O autor é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte.

Resumo: Começando com uma citação do documento de Puebla sobre a “ação pastoral planejada”, o autor parte do fato de que, a seu ver, “o planejamento pas-toral está em baixa”, e que está se tornando muito comum a rejeição aos planos de pastoral. É nesse contexto que ele situa a argumentação em defesa de uma pastoral orgânica, de conjunto. Respondendo à pergunta “por que planejar?”, ele começa descrevendo a “situação pastoral atual”, para desenvolver a seguir seus ar-gumentos “em defesa do planejamento participativo”. Apresenta, para tanto, “razões teológicas”, “razões pastorais”, e “razões conjunturais”. Entre as “exigências para a recepção do plano diocesano”, descreve a “espiritualidade trinitária” e a “pastoral com dinâmica de eclesialidade”. Nesse sentido, considera importante uma avaliação mais cuidadosa, à luz de perspectivas amplas, dos pontos fortes e fracos de CEBs, paróquias, e movimentos, tanto do ponto de vista comunitário quanto do institucional. E conclui apresentando quatro eixos claros e firmes do Documento Final, que nos ajudam na estruturação de um Plano Diocesano à luz de Aparecida.

Abstract: Beginning with a quotation from the document of Puebla referring to a planned pastoral activity the author starts his study with a statement that the planning of pastoral activity is played down and thus it is common knowledge that the plans of pastoral work are offhand rejected. In this context he situates his argu-ments for the defense of an organic pastoral ministry in the various fields. In reply to the question why planning? the answer presented here develops the arguments about the need of participation in the planning stage. The reasons adduced are theological, pastoral, and circumstantial. Among the requirements of a receptive response to the diocesan planning mention is made of a Trinitarian spirituality and a pastoral concern related to ecclesiology. In this sense a compelling need arises for an evaluation of wider perspectives, including an analysis of weak and strong points of the CEBs, parishes, and movements together with their relationship with the faith community and the institutional structures. The conclusion envisages an axis with four radii in the final document which help the structuring of the Diocesan planning of pastoral activity in the light of Aparecida.

O projeto pastoral na América Latina e no Documento de AparecidaManoel Godoy*

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O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

“A ação pastoral planejada é a resposta específica, consciente e intencio-nal às exigências da evangelização. Deverá realizar-se num processo de participação em todos os níveis da comunidade e pessoas interessadas, educando-as numa metodologia de análise da realidade, para depois refletir sobre essa realidade do ponto de vista do Evangelho e optar pelos objetivos e meios mais aptos e fazer deles um uso mais racional na ação evangelizadora.” (Puebla 1307)

Planejamento pastoral em baixa

1. Antes de apresentar alguma proposta de planejamento pastoral à luz do Documento de Aparecida, gostaria de enfrentar um tema que está se tornando muito comum no meio eclesial: a rejeição aos planeja-mentos e muito mais aos planos de pastoral. É fácil afirmar que a onda do individualismo tomou conta do meio eclesiástico, porém detectar com precisão a sua causa já é tarefa mais complexa.

2. No imediato pós Concílio Vaticano II, as Igrejas Particulares assumiram seu papel eclesial, profundamente animadas pela eclesiologia que resgatava seu papel protagonista na organização eclesial pastoral. Dizia-se que a diocese era a unidade fundamental da ação pastoral. Isso se contrapunha ao isolamento paroquial tão comum na Igreja, reforçado pela eclesiologia tridentina. Cada pároco cuidava com extremo zelo de sua paróquia, e aí se perpetuava (havia até os que chamávamos de “vigá-rio colado”). Porém, em âmbito de Diocese, não havia uma pastoral de conjunto. O Concílio Vaticano II, ao resgatar a função episcopal pastoral, deixando claro que os bispos não são meros auxiliares do Bispo de Roma e nem somente administradores de uma circunscrição eclesiástica, des-taca a Igreja Particular como plenamente Igreja, desde que se mantenha aberta à comunhão com as demais Igrejas Particulares e com Pedro. Isso dava um novo impulso à ação evangelizadora e instava as comunidades paroquiais a um modelo de Igreja Comunhão, com forte acento numa pastoral de conjunto.

3. A eclesiologia total que emergia do espírito conciliar responsabi-lizava todos os membros da Igreja e os reconhecia como co-responsáveis na missão eclesial. Sujeitos adultos, e compromissados com um projeto claro de tornar o Reino de Deus cada vez mais visível. A Igreja foi-se organizando numa forma de comunhão e participação onde cada membro do Povo de Deus, do Bispo ao mais simples colaborador de uma comu-nidade de base, assumia sua missão com verdadeiro ardor. A igualdade

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Manoel Godoy

fundamental de todos os membros do Povo de Deus foi assumida até mesmo pelo Código de Direito Canônico, publicado em 1983: “Entre todos os fiéis, pela sua regeneração em Cristo, vigora, no que se refere à dignidade e atividade, uma verdadeira igualdade, pela qual todos, segundo a condição e os múnus próprios de cada um, cooperam na construção do Corpo de Cristo” (CDC Cân. 208).

4. A euforia desse momento histórico criou muitas expectativas em relação a uma Igreja totalmente renovada, de colegialidade efetiva, de comunhão e participação em todos os âmbitos eclesiais. De outro lado, toda essa movimentação da Igreja na base gerou insatisfações e suspeitas. Em 1979, quando da III Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, em Puebla, no México, já se podia sentir, de maneira muito forte, as duas tendências eclesiais em confronto. As afirmações de Medellin em relação às CEBs e à opção preferencial pelos pobres já ganhavam matizes, que deixavam entrever dificuldades com esse jeito de ser Igreja. Da segunda metade da década de oitenta em diante, o que se viu foi o crescimento de agrupamentos eclesiais com fortes tendên-cias a uma nova expressão religiosa, bastante adequada ao subjetivismo e individualismo crescentes na sociedade. Isso vai num crescendo até que na década seguinte, a de noventa, os chamados novos movimentos tornam-se a força visível mais expressiva no âmbito eclesial. Uma nova maneira de expressar a fé estava se firmando na Igreja. Aqui não é espaço para análise dessa nova expressão eclesial, mas apenas se quer destacar um aspecto que toca de perto nosso tema: planejamento pastoral. Esses novos movimentos não carregam consigo a teologia da Igreja Local e se sentem ligados e amparados diretamente pela instância eclesial superior, ou seja, o Papa. Dessa forma, planos paroquiais ou diocesanos de pastoral não são mais levados em conta por tais movimentos, pois é muito tênue seu vínculo com essas instâncias da Igreja. O Documento de Aparecida chega a dizer: “Alguns movimentos eclesiais nem sempre se integram adequadamente na pastoral paroquial e diocesana (DA 100e)”. Mas, no complemento desse ítem, fica claro que a situação é conflituosa, pois afirma: “... por sua vez, algumas estruturas eclesiais não são suficien-temente abertas para acolhê-los (DA 100e)”. Fica assim evidenciado o estado da questão: há paróquias e dioceses que reclamam da falta de compromisso dos movimentos com suas estruturas pastorais; há movi-mentos que reclamam da falta de abertura dessas instâncias para com eles. O que se pode afirmar, por enquanto, é que os planos de pastoral

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14 Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

não têm encontrado ultimamente uma recepção efetiva, não só da parte dos movimentos, mas também de parcela significativa do clero.

5. Nesse ponto nevrálgico da questão é que queremos situar a argumentação em defesa de uma pastoral orgânica, de conjunto.

Por que planejar?

I. Ver a situação pastoral atual

1. Por que planejar? Não é o Espírito Santo o condutor de nossa ação evangelizadora? O Papa Bento XVI, quando ainda Cardeal Ratzin-ger, no primeiro encontro mundial dos novos movimentos afirmou que, onde irrompe o Espírito Santo, sempre colapsam os projetos dos homens. E, continuando seu discurso, foi bem enfático sobre os planejamentos pastorais rígidos. Disse ele: É necessário também que se diga bem claro às Igrejas locais, inclusive aos bispos, que não devem consentir em pretensões de uniformidade absoluta nas organizações e programações pastorais; e que não podem considerar os projetos pastorais próprios como modelos fixos, pois, pode acontecer que, frente a meros projetos, as Igrejas se tornem impenetráveis ao Espírito de Deus. Não é lícito pretender que tudo tenha que enquadrar-se numa organização unitária; melhor é menos organização e mais Espírito. Sobretudo, não se pode servir de um conceito de comunhão, cujo valor pastoral supremo seja evitar conflitos.

2. É claro que não foi isso que o Papa Bento XVI queria, mas será que essa mentalidade não penetrou fundo nas nossas Igrejas e nas mentes dos que conduzem nossa ação pastoral, a ponto de constatarmos, hoje, não só uma excessiva flexibilização, mas verdadeiramente um desprezo pelos Planos de Pastoral? Cada qual toma conta de “seu feudo”, mas não assume a co-responsabilidade pelo todo da pastoral diocesana. E em nome do respeito ao pluralismo, não se segue mais planejamento algum.

3. Por outro lado, víamos, há alguns anos, uma proliferação de iniciativas pastorais desconexas, fragmentadas, mas que demonstravam, não sem ambigüidade, uma criatividade imensa. A cada Campanha da Fraternidade criávamos uma frente pastoral nova. Quando nossas agendas e nossas energias começaram a gritar, passamos a fazer duras críticas a essa metodologia. Não sem razão! Porém, o que se vê, hoje, é uma volta ao sacramentalismo de forma exacerbada. Não criamos novas pastorais,

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15Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

Manoel Godoy

deixamos até morrer algumas, mas enchemos nossas agendas de missas. Para todas as ocasiões, missas e mais missas.

4. O mesmo espírito individualista, que tomou de vez a socie-dade, chamada pós-moderna, entrou na Igreja e produziu uma grande fragmentação pastoral, comprometendo nossa eclesiologia de comunhão e participação. Palavras como colegialidade, complementariedade, sinodalidade, subsidiariedade e outras, que sustentam tal eclesiologia, entraram em desuso total.

5. Com o enfraquecimento da eclesiologia da Igreja Local, per-demos o fôlego pastoral para o enfrentamento de questões muito sérias, tais como: pastoral urbana, problema da violência, novos problemas que assolam nossas famílias, jovens e idosos. Os processos institucionais, calcados em excesso de centralização, acabam esvaziando mediações importantes para uma boa comunicação entre a base a cúpula. Nessa perspectiva, muitas iniciativas não encontram canais de concretização e terminam por não surtirem nenhum efeito prático.

6. Até mesmo esforços bonitos, como o da V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e Caribenho, realizado em Apare-cida, parecem destinados a se esvaírem pelo ralo da história, por falta de estruturas adequadas para sua recepção criativa. Sem Igreja Local, não há possibilidade de ressonância evangelizadora das conclusões de Aparecida.

7. Nem mesmo afirmações tão categóricas do magistério, como a fala do Papa, no seu discurso de abertura, têm repercussão no nosso agir evangelizador. Disse o Papa Bento XVI: “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. Em outras palavras, não se pode dizer que é cristão quem não leva a sério a opção pelos pobres. Qual a conseqüência de tal afirmação para a pastoral social?

8. Aparecida fala também: “Nenhuma comunidade deve isentar-se de entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária, e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DA, 365). Afirma também: Todos somos chamados a assumir atitude de permanente conversão pastoral, que, na fidelidade ao Espírito Santo, suscita a necessidade de uma renovação eclesial que implica reformas espirituais, pastorais e tam-bém institucionais (cf DA, 366-367). Diz ainda: “A conversão pastoral

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16 Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

de nossas comunidades exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação, para uma pastoral decididamente missionária” (DA, 370). Essas afirmações nos levam a perguntar: Como anda nosso plano pas-toral? Como anda nossa missionariedade? Como anda o Projeto Igrejas Irmãs? Como anda nossa disposição para mudanças?

9. Os bispos em Itaici afirmaram: “Uma comunidade insensível às necessidades dos irmãos e à luta para vencer a injustiça é um contrates-temunho e celebra indignamente a própria liturgia” (DGAE, 178). Será que nossas Celebrações Litúrgicas de fato nos comprometem com a vida de nossos irmãos, a ponto de reforçar nossa luta por uma sociedade nova e justa? Será que não continuamos a celebrar missas para inaugurações de casas comerciais, bancos e outros estabelecimentos em franca con-tradição com o espírito eucarístico?

10. Somando as mais recentes indicações do Magistério, sobretu-do as indicações da V Conferência em Aparecida, um plano diocesano hoje terá fôlego para favorecer uma visibilidade da Igreja Local com suas paróquias profundamente renovadas? Quem sabe até uma supe-ração da estruturação paroquial tradicional, favorecendo mais a sua organização em rede de comunidades? Terá nossa forma de articular o processo evangelizador capacidade para fazer das paróquias aquilo que o Papa João Paulo II indicava como caminho, e que foi assumido pela V Conferência? Paróquias verdadeiramente “acolhedoras e solidárias, lugar da iniciação cristã, da educação e da celebração da fé, abertas à variedade de carismas, serviços e ministérios, organizadas comunitária e responsavelmente, capazes de comprometer os movimentos de aposto-lado já atuantes, atentas às distintas culturas dos habitantes, abertas aos projetos pastorais e supraparoquiais e às realidades circunstantes”.1 Sob um olhar bem atento, será que todas essas características não indicam quase uma superação do modelo paroquial? Será possível a organização da paróquia como comunidade de comunidades, levando-se em conta as estruturas que conhecemos?

11. Do ponto de vista sociológico, nos últimos anos ficou mais evidente uma ulterior evolução do contexto cultural (da sociedade oci-dental e, nas devidas proporções, da sociedade brasileira). A situação das grandes instituições e sua influência sobre a vida privada dos cidadãos se tornou mais incerta. A Igreja, o Estado e os grandes aparatos institu-

1 JOÃO PAULO II. Ecclesia in America, 41. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 68.

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17Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010

Manoel Godoy

cionais estão em crise especialmente num aspecto: a capacidade de criar e manter um “ethos” (valores comuns) como base da convivência civil. Parece este ser resultado do próprio processo de secularização, que tem desembocado num extremo individualismo (nada mais é sagrado ou nada mais se impõe como valor comum à sociedade; o pluralismo chega a tal ponto, que ao indivíduo não resta outro critério a não ser ele mesmo). Nesse contexto, tende a se acentuar a distância entre a esfera pública e a esfera privada.

12. Na esfera pública, o “sistema” administra como pode seus interesses econômicos, políticos, militares, exigindo o conformismo dos cidadãos. Já na esfera privada, o cidadão goza de aparente ilimitada autonomia, até onde o sistema não se sentir atingido, mas pouco participa da vida pública, da qual tende a tornar-se espectador, num processo em que os meios de comunicação social têm grande influência e que afeta profundamente também a religião.

13. O que constatamos como resultado da “secularização” não é a supressão da religião, mas sua redução à esfera do privado. Daí que o propalado “retorno do religioso” não nos pode enganar, pois o que volta não é a religião ocupando novamente o mesmo lugar na socieda-de tradicional (ou na “cristandade”), mas é a religião como forma de experiência subjetiva, fragmentária, não institucionalizada. As novas tendências não se impõem sem resistências. O que vemos proliferar, especialmente no campo religioso, são os movimentos fundamentalistas e neo-conservadores (que reagem negativamente às novas tendências). Porém, eles também não escapam ao novo clima cultural e são marcados pela busca de experiências imediatas, emocionalmente intensas.

14. Na sociedade complexa em que vivem, os cristãos são desafia-dos a redescobrir sua identidade em meio a esse embate entre as opostas tendências do individualismo e da alternativa comunitária, da liberdade na esfera privada e da imposição do sistema nas questões estruturais da sociedade. E, no âmbito eclesial, devemos responder quais formas sociais a Igreja deve assumir para se manifestar como autêntica (teologicamen-te) Igreja de Cristo? Será que tudo isso não indica a necessidade de um planejamento bem pensado em âmbito local, como forma de enfrentar coletivamente a esses desafios?

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II. Argumentos em defesa do planejamento participativo

a) Razões teológicas:

– A evangelização não é um ato individual e isolado, mas pro-fundamente eclesial (cf. EN, 60).

– Nenhum evangelizador é senhor absoluto da sua ação evan-gelizadora, mas ele só poderá realizá-la em comunhão com a Igreja e com seus pastores (cf. EN, 60).

– “A firme decisão missionária da Igreja deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais das dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja” (DA, 365).

– “A vida em comunidade é essencial à vocação cristã. O disci-pulado e a missão sempre supõem a pertença a uma comuni-dade. Deus não quis salvar-nos isoladamente, mas formando um Povo. Este é um aspecto que distingue a experiência da vocação cristã de um simples sentimento religioso individual. Por isso, a experiência de fé é sempre vivida em uma Igreja Particular” (DA, 164).

– “A Diocese, presidida pelo Bispo, é o primeiro espaço da comunhão e da missão. Ele deve estimular e conduzir uma ação pastoral orgânica renovada e vigorosa, de maneira que a variedade de carismas, ministérios, serviços e organizações se orientem no mesmo projeto missionário, para comunicar vida no próprio território. Esse projeto, que surge de um caminho de variada participação, torna possível a pastoral orgânica, capaz de dar respostas aos novos desafios. Porque um projeto só é eficiente se cada comunidade cristã, cada paróquia, cada comunidade educativa, cada comunidade de vida consagrada, cada associação ou movimento e cada pequena comunidade se inserem ativamente na pastoral orgânica de cada diocese. Cada uma é chamada a evangelizar de modo harmônico, e integrado no projeto pastoral da Diocese” (DA, 169).

b) Razões pastorais:

– O papa Paulo VI, no 10º aniversário do CELAM, dizia essas palavras ainda agora atuais: “... na obra pastoral não se pode andar às cegas: o apóstolo não é alguém que corre incerto ou

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se bate contra o ar (1Cor 9,26); evita hoje a acomodação e o perigo do empirismo. Uma sábia planificação, portanto, pode oferecer também à Igreja um meio eficaz e incentivador para o trabalho”. “A planificação impõe opções e comporta renúncias mesmo do que, às vezes, seria o melhor; e a concentração de esforços intensiva e extensiva nos objetos essenciais, obriga a deixar realizações que, embora belas, sejam limitadas ou supérfluas”.

– Não damos conta, sozinhos, de dar respostas eficientes aos enormes e complexos desafios que nos são colocados pela realidade da pós-modernidade e da urbanização. A realidade urge respostas mais conjuntas!

– A ação pastoral e evangelizadora da comunidade eclesial deve ser necessariamente global, orgânica e articulada (cf. Medellín 15,9).

c) Razões conjunturais:

– Preparando-nos para o novo Plano Pastoral, é urgente entrar-mos em vigoroso processo de assumirmos juntos novo esforço evangelizador. Ajudar-nos-á, profundamente um espírito de humildade, pois ninguém tem resposta pronta para os imen-sos desafios pastorais que temos pela frente. Também será de grande valia se cada um buscar vencer o espírito individualista, tão característico dos dias de hoje.

– Cresce a consciência de inúmeros cristãos de que se deve supe-rar o comportamento de “ovelha” na Igreja e assumir, de fato, o protagonismo na ação evangelizadora (SD, 97). Já se disse à exaustão que a responsabilidade pelo processo evangelizador é tarefa de todos os membros do Povo de Deus. Ora, essa missão conjunta só acontecerá quando se instalar na vida da Igreja um autêntico processo participativo2.

2 Cf. CNBB, doc. 62, nº 190; DGAE, 2008-2010, n. 162-164.

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III. Algumas exigências para a recepção do Plano Dioce-sano

a) Espiritual:

– Em primeiro lugar, é preciso nos convencermos, para depois poder convencer os outros. Se nós não estamos convencidos da necessidade e importância desse Plano, ele já nascerá morto.

– É importante que a implementação do Plano Diocesano seja acompanhada de uma espiritualidade que favoreça o encon-tro pessoal com Jesus Cristo, o evangelizador do Pai, e uma maior docilidade à ação do Espírito Santo. Portanto, uma espiritualidade trinitária, que fundamenta a missão da Igreja (dos cristãos e cristãs) no coração da Santíssima Trindade (cf. CNBB, doc. 62,nº 46).

b) Pastoral com dinâmica de eclesialidade:

– A “conversão pessoal”, de que fala o documento de Aparecida, “desperta a capacidade de submeter tudo ao serviço da instau-ração do Reino da vida” (DA, 366). Todos “são chamados a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral, que implica escutar com atenção e discernir “o que o Espírito está dizendo às Igrejas” (Ap 2,29) através dos sinais dos tempos em que Deus se manifesta” (DA, 366).

– O processo de implantação do Plano Diocesano de Pastoral só será frutuoso, e proporcionará um testemunho de comunhão, se for assumido por todos. Deve ser um processo “participativo”, um mutirão que ajuda a refletir e organizar a pastoral orgânica. “A participação do laicato requer-se não só na fase de execução da pastoral de conjunto, mas também no planejamento e nos próprios organismos de decisão” (P 808).

– A implementação do Plano Diocesano será um tempo favorável para o despertar de novas vocações e ministérios em sua mais ampla diversidade. Estes serão, aos poucos, articulados em vista da organicidade pastoral (cf. Medellín 15,7; CNBB doc. 62).

– O processo de recepção do Plano Diocesano poderá seguir os mesmos princípios que deveriam estar presentes durante a sua elaboração, e que decorrem da própria natureza da Igreja-

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comunhão: variedade-complementaridade; autonomia; subsi-diariedade; participação responsável (Medellin 15,5).

– O sucesso do Plano está, enfim, em nossas mãos. É preciso dar continuidade às mesmas metas que caracterizam o planejamen-to participativo, gerando na vida da Igreja um “autêntico sentido comunitário” (cf. Medellin 15,35). Todos precisam saber: “...para que haja efetiva participação não bastam as estruturas par-ticipativas, nem a existência de grupos organizados. É preciso que haja a motivação e a “cultura” da participação. É necessário que pessoas e comunidades estejam interiormente convencidas da importância da participação e estejam dispostas a fazer o esforço adequado, saindo da indiferença ou do individualismo, da preocupação restrita a seus próprios interesses pessoais ou corporativos”3.

IV. Em vista de uma Igreja de modelo de comunhão e participação4

1. À luz dos documentos do Magistério supracitados, poder-se-ia, num primeiro momento da reflexão, partir de um exame crítico das atuais formas comunitárias e institucionais de presença da Igreja. Os critérios do exame seriam, substancialmente, dois: 1) o critério da autenticidade teológica: esta comunidade, ou grupo, pode ser considerada “eclesial”? Possui as ‘notas’ essenciais da eclesialidade?; 2) o critério da adequa-ção sociológica: esta comunidade, ou grupo, corresponde às condições socioculturais de hoje?. Um critério global e prático seria: Estas formas de organização incentivam a participação dos fiéis e fazem que a comu-nidade eclesial seja ativa?

Podemos privilegiar três formas que exigem esta reflexão: as comunidades eclesiais de base; os movimentos; a paróquia. Isto, sem antecipar juízos apressados, nem colocar de antemão as três realidades sobre o mesmo plano. Tanto mais que há inúmeras variantes. Apenas, parece-nos, é importante uma avaliação mais cuidadosa, à luz de pers-pectivas amplas, dos novos desafios da eclesialidade, dos pontos fortes

3 A. Antoniazzi, “Estruturas de participação nas Igrejas Locais”, apostilado de 16 p.4 Essa secção do artigo é devedora da reflexão do Pe. Alberto Antoniazzi em sua pa-

lestra sobre “Comunidade e Igreja Local”, realizada em âmbito do Regional Leste II, em 2003.

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e fracos de CEBs, paróquias, e movimentos, tanto do ponto de vista comunitário quanto institucional.

2. Um segundo momento da reflexão deveria estudar as formas de articulação de comunidades, paróquias e movimentos, em âmbito diocesano, regional e nacional. Para isso, podemos enumerar algumas interrogações para debate posterior:

– no atual contexto da sociedade complexa e na atual situação eclesial, o objetivo de articular três âmbitos em que a presença da Igreja pode se expressar: o âmbito das pessoas, o âmbito das comunidades e o âmbito da sociedade. Será que a Igreja pode identificar-se unicamente com alguma forma de “comunidade” em sentido estrito, ou deve oferecer alguma forma de presença e de comunhão nos três âmbitos?

– será o “planejamento participativo” uma forma autêntica e válida de articulação dinâmica dos diversos aspectos da ação e vida eclesial? Quais os métodos até aqui usados, e quais são seus pressupostos?

– os organismos pós-conciliares, tais como, Conselhos Pastorais, Assembleias, Sínodos, Encontros Intereclesiais etc., cuja finali-dade precípua é exatamente o confronto periódico das diversas instâncias eclesiais, em busca de uma comunhão mais efetiva, têm-se mostrado eficazes? Eles podem ser o instrumento privi-legiado de uma Igreja participativa, “sinodal”, em que pastores e fiéis caminham juntos, na variedade de vocações e carismas, na unidade de missão?

– o papel dos ministros, sobretudo ordenados, em vista da sis-temática aproximação da comunidade e repartição de respon-sabilidades, evitando a concentração do poder e o isolamento, não exige uma séria reflexão?

V. Planejar à luz do Documento de Aparecida

Sob o tema “Discípulos e Missionários para que nossos povos n’Ele tenham vida” e lema “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, realizou-se em maio de 2007, em Aparecida, mais precisamente na Ba-sílica Santuário de Nossa Senhora Aparecida, a V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e Caribenho. Diferentemente de todas as demais Conferências Gerais que a precederam, esta aconteceu cercada

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pelo povo simples, crente e peregrino. Contato salutar e fértil dos Bis-pos com os devotos de Aparecida, que todos os dias manifestam sua fé incondicional na Mãe de Jesus.

Várias leituras já foram feitas sobre o evento e seu documento final. Aqui faremos apenas um corte, na perspectiva do planejamento pastoral.

1. Proponho, para atingirmos essa finalidade, que o Documento Final seja lido na ótica do apelo dos Bispos à conversão pastoral e re-novação missionária das comunidades, presentes nos números 365 a 372. Nessa secção, emerge o serviço da instauração do Reino da vida, a devida atenção aos sinais dos tempos, os novos desafios do contexto histórico que se quer evangelizar, a centralidade da formação eclesial em todos os âmbitos na pessoa de Jesus Cristo, Mestre e Pastor, a refe-rência paradigmática das primeiras comunidades cristãs, a fidelidade à eclesiologia do Vaticano II, a audácia pastoral para superar esquemas viciados, o novo ardor missionário, a elaboração do projeto pastoral em âmbito diocesano, a participação ativa dos leigos no discernimento, na tomada das decisões, no planejamento e na execução. Ainda propõe que se reveja a estruturação paroquial, no sentido de torná-la mais eficaz pastoralmente; um cuidado especial com o voluntariado missionário leigo e com as associações leigas que se dedicam aos mais pobres, “à luz dos princípios de dignidade, subsidiariedade e solidariedade, em conformidade com a Doutrina Social da Igreja (DA 372)”.

2. É com esse corolário criativo de afirmações pastorais, que o Documento de Aparecida ilumina a produção de um verdadeiro plano pastoral diocesano. Assim iluminados, superaremos os planos que apon-tam essa ou aquela prioridade, para traçar verdadeiras pistas de ação mais abrangentes, alicerçadas em pilares consistentes de uma eclesiologia de comunhão e de participação.

3. Tomemos quatro eixos claros e firmes do Documento Final, que nos ajudam na estruturação de um Plano Diocesano à luz de Aparecida (DA 226 e 278).

Encontro pessoal com Jesus Cristo

4. O primeiro eixo é o da experiência religiosa, ou do encontro com Jesus Cristo. Trata-se do encontro com a pessoa de Jesus, e não meramente com a doutrina da instituição. O homem e a mulher de hoje

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O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

estão mais propensos a aderir a uma pessoa que os convença, do que a uma instituição, por mais bonita e atraente que ela seja. Será que teremos coragem de anunciar Jesus Cristo e sua práxis, independente da opção denominacional de cada um? Nesse primeiro momento da evangelização não negamos nossa afiliação religiosa, mas não a destacamos como o mais importante. É preciso empolgar as pessoas com a pessoa de Jesus Cristo e o Reino de Deus por ele anunciado. A exemplo do livro do teólogo espanhol, José Pagola, ou do teólogo sul-africano, Albert Nolan, Jesus hoje – uma espiritualidade de liberdade radical, que nos levam a amar o Filho de Deus de maneira incondicional, será que damos conta dessa empreitada querigmática? Dar conta de responder à pergunta fundamental que tantos santos e místicos propuseram, como maneira de moldar a nossa vida à vida do Mestre: “Em todos os momentos, em todas as circunstâncias, devemos perguntar: o que faria Jesus se estives-se no meu lugar?”. Favorecer a todos a possibilidade de experimentar Jesus em sua vida, com a intensidade do apóstolo Paulo quando dizia aos cristãos filipenses: “Depois que encontrei Jesus Cristo tudo o mais se tornou lixo para mim” (cf Fl 3,8); ou “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Enfim, será que Jesus e seu amor pelo Reino ainda empolga quem o encontra? Somente acreditando nisso é que podemos firmar o primeiro eixo de uma Igreja que quer superar esquemas caducos de evangelização.

Experiência da vida comunitária

5. O segundo eixo é o da vivência comunitária. A primeira Campa-nha da Fraternidade em âmbito nacional, realizada em 1964, tinha como tema a Igreja em renovação e como lema: “Lembre-se: você também é Igreja”. Será que não estamos precisando reforçar esse eixo, no sentido de fazer com que todos se sintam verdadeiramente Igreja? Nos últimos anos, por meio de alguns instrumentos de comunicação social católicos e por uma verdadeira onda de reforço do clero, voltamos a uma perspectiva pré Concilio Vaticano II, de uma Igreja muito clerical. O documento de Aparecida afirma: “Nossos fiéis procuram comunidades cristãs, onde sejam acolhidos fraternalmente e se sintam valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos (DA 226b)”. Para tanto, é preciso voltarmos ao reconhecimento da dignidade do leigo na Igreja; tanto de sua participa-ção ativa no ad intra da Igreja, como no ad extra. Nossas comunidades, afirma o documento de Aparecida, precisam ser fraternas e acolhedoras,

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para que o laicato seja realmente membro de uma comunidade eclesial e corresponsável em seu desenvolvimento. Nada mais contraproducente a esse esforço eclesial do que manter os leigos na infantilidade. Como dizia o grande teólogo Congar: “É preciso superar a visão de que leigo na igreja é aquele que está sentado para ouvir, ajoelhado para rezar e com a mão no bolso para pagar”. É preciso acordar para o fato de que parte significativa dos leigos não quer mais ser tratada como ovelha. Nesse sentido, vale bem o alerta brilhante do teólogo suíço, radicado no Brasil, Renold Blank, no seu livro “Ovelha ou Protagonista? A Igreja e a nova autonomia do laicato no século XXI”. O que mais nos preocupa é a categoria dos leigos autônomos que, sem confronto, vai deixando a Igreja silenciosamente, por rejeitar o tratamento de ovelha que encontram dentro da instituição.

Os que se apaixonaram pela pessoa de Jesus precisam encontrar, na Igreja, condições favoráveis de viver esse enamoramento, em co-munhão com outros que fizeram experiências semelhantes. Nada mais urgente que atender ao apelo de Aparecida para superar a pastoral de mera conservação, e partirmos para um novo ardor e nova paixão por Jesus e seu anúncio do Reino.

Formação bíblico-doutrinal

6. O terceiro eixo é o da formação. A experiência do encontro pessoal com Jesus e a adesão à comunidade cristã precisam favorecer a todos os fiéis a capacidade de dar razão de sua esperança a quem quer que o interrogue sobre seu sentido de vida. Esperança aqui é um vo-cábulo intercambiável com a fé. Fé ou esperança têm sua razão de ser. Fundamental nesse processo é o conhecimento mais profundo da Palavra de Deus. A Constituição Dogmática Dei Verbum já afirmava categori-camente: “É preciso que o acesso à Sagrada Escritura seja amplamente aberto aos fiéis” (DV 22). Muito já se fez nesse período pós Concilio Vaticano II, porém, temos sofrido ultimamente uma avalanche de leitura fundamentalista da Bíblia, empreendida por diversos segmentos eclesiais, comprometendo todo o esse esforço. A leitura da Palavra de Deus, por si só, não tira ninguém da ignorância bíblica. É preciso, na linguagem da Dei Verbum, “investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas palavras” (DV 12). Ou ainda: “Para corretamente entender aquilo que o autor sacro quis afirmar por escrito, é necessário levar devidamente em conta tanto as

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O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

nossas maneiras comuns e espontâneas de sentir, falar e contar, as quais já eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que costumavam empregar-se largamente no intercâmbio daquelas eras (DV 12)”.

Já conseguimos colocar a Bíblia na mão do povo, mas ainda falta muito para que ele adquira o gosto por sua leitura e estudo. A experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo, se autêntica, deve conduzir os fiéis a um amor mais forte à sua Palavra. O documento de Aparecida, depois de realçar esse conhecimento da Palavra como a única maneira de ama-durecer a experiência religiosa, afirma: “Nesse caminho, acentuadamente vivencial e comunitário, a formação doutrinal não se experimenta como conhecimento teórico e frio, mas como ferramenta fundamental e neces-sária no crescimento espiritual, pessoal e comunitário (DA 226c)”.

Compromisso missionário

7. O quarto e último eixo que Aparecida apresenta como desafio para a Igreja é o do compromisso missionário de toda a comunidade. Nesse ponto, Aparecida pecou pelo eclesiocentrismo, pois apresentou uma perspectiva bem reducionista da missão, como se essa se resumisse em trazer de volta ao seio da Igreja os filhos que dela se afastaram (cf. DA 226d). Ora, na perspectiva do Concílio Vaticano II e das Conferências Gerais do Episcopado Latino Americano que antecederam a de Aparecida, a visão de “missão” é bem diferente. A missão evangelizadora da Igreja, na ótica conciliar, deve favorecer uma atitude eclesial perscrutadora dos sinais dos tempos, discernindo a presença do Espírito nas mais diferentes culturas e ambientes a serem evangelizados. Perceber as sementes do Verbo já presentes no mundo é tarefa do verdadeiro discípulo-missionário. O próprio texto de Aparecida consegue, em outro momento, relacionar bem a missão com o anúncio do Reino de Deus, testemunhado por meio do serviço gratuito que todo cristão oferece à sociedade (cf. DA 278e).

Vale a pena, nesse contexto, recordar as distinções sobre o conceito de missão segundo o Papa João Paulo II, na sua encíclica Redemptoris Missio. Ele enfatiza que por “missão” podemos entender como primeiro sentido a dimensão ad gentes, o anúncio de Jesus Cristo onde Ele ainda não é suficiente conhecido e amado; como segundo sentido, as pastorais que realizamos em nossas comunidades cristãs; e, como terceiro sentido, a nova evangelização, que trata de re-anunciar Jesus e o Reino, com novo ardor, novos métodos e novas expressões, em lugares onde os fiéis se afastaram da Boa Nova (Cf. RMi 33).

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Opção pelos pobres

8. Esses quatro eixos podem se constituir num programa de evange-lização iluminado pelas conclusões de Aparecida, na fidelidade ao espírito do Concílio Vaticano II. Ousamos, apenas, acrescentar um quinto eixo, que julgamos extremamente necessário para fugirmos do vício do ecle-siocentrismo. Com esse acréscimo, não nos sentimos traindo o documento de Aparecida, que tão ricamente em outros parágrafos soube dar a ele o devido destaque. Trata-se de remarcar toda a trajetória evangelizadora dos discípulos-missionários pela “evangélica opção preferencial pelos pobres”. Embora Aparecida não tenha apresentado a opção pelos pobres como eixo a ser reforçado, reconheceu que ela “é uma das peculiaridades que marcam a fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha” (DA 391). E, talvez, uma das expressões mais significativas sobre essa opção esteja verdadeiramente presente no documento final, quando afirma: “Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho, reconhecemos sua imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e excluído como eles. A partir dessa experiência cristã, com-partilharemos com eles a defesa de seus direitos” (DA 398).

9. Cremos que com esses cinco eixos podemos elaborar um plano de pastoral com profunda abrangência de todas as dimensões eclesiais, envolvendo todas as forças vivas na edificação de uma Igreja centrada em Jesus e no Reino de Deus; respeitadora das diversidades presentes na Igreja desde seus primórdios; na variedade dos ministérios, que brotam dos carismas que o Espírito confere a todos que fazem a experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo; no mais renovado ardor missionário, como marca do novo discípulo no seio da sociedade hodierna com seus novos areópagos.

Conclusão

Estamos convencidos de que o planejamento participativo, se-guindo a tradição conciliar e das Conferências Gerais do Episcopado

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O projeto pastoral na América Latina e no Documento de Aparecida

latino-americano e caribenho, ressalta a importância do desenvolvimento de uma eclesiologia segura da Igreja local. Aparecida deu enfoque à te-ologia da Igreja Local e, nesse sentido, percebemos que o planejamento participativo na pastoral ganhou força. É claro que não se pode relegar a um segundo plano a articulação efetiva da Igreja Local com as estruturas regionais e, principalmente, nacionais. Isso, porque toda Igreja local é unida intrinsecamente, pela sua própria natureza de comunhão com Cristo, com todas as outras Igrejas locais, com as quais forma a “comu-nhão de Igrejas”. A comunhão das Igrejas tem um centro, a Igreja de Roma (que também é uma Igreja local, não a Igreja universal). Por isso a comunhão com Roma e com seu Pastor, sucessor de Pedro, “princípio visível da unidade, quer dos bispos quer da multidão dos fiéis” (LG 23), é dimensão intrínseca de toda a Igreja local, e não uma relação acrescentada posteriormente. Isso está presente na eclesiologia de Aparecida.

Como afirmava Alberto Antoniazzi, é a partir da diocese – do Bispo e de seus colaboradores diretos – que a Igreja local poderá articular suas diversas expressões e mostrar toda a unidade e variedade da sua vitalida-de. Portanto, a conversão pastoral e a superação de uma pastoral de mera conservação, que nos pede Aparecida, passam pela decisão corajosa das nossas Dioceses de assumirem sua missão, superando toda e qualquer tendência de redução à de mera coadjuvante no agir eclesial.

Endereço do Autor:Rua Pires da Mota 250,

Bloco E, Apto. 401, Bairro Madre GertrudesCEP 30512-760 Belo Horizonte, MGE-mail: [email protected]

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 29-48.

* O autor é Jesuíta, doutor em teologia e professor da PUC do Rio.

Resumo: O texto defende a necessidade de mudanças na própria Igreja de-vido às transformações ocorridas na sociedade. Numa primeira parte o texto apresenta a íntima interação entre Igreja e sociedade numa perspectiva teoló-gica. Em seguida enfatiza a importância da Igreja Local neste particular. Numa terceira parte analisa o impacto das transformações socioculturais na Igreja da América Latina e do Brasil considerando sobretudo o evento de Aparecida. E numa última parte se apontam algumas prioridades pastorais a serem assumi-das pela Igreja.

Abstract: The author stresses the need of changes within the Church due to the transformations that occurred in the society. The text presents in the first part an intimate interaction between Church and society in a theological pers-pective. Then special emphasis is placed on the importance of the local Church itself. The third part analyses the impact of socio cultural transformations on the Church in Latin America and Brazil focusing mainly on the event of Aparecida. In the last part some pastoral priorities are singled out which the Church should take into account.

As mudanças socioculturais e a Igreja no BrasilMário de França Miranda, SJ*

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As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil

É evidente que as mudanças ocorridas na atual sociedade repercu-tem intensamente no interior da Igreja. Aqui não pretendemos examinar em profundidade as causas dessas transformações socioculturais, e sim considerar como elas impõem novas tarefas para a Igreja no Brasil, seja na área da reflexão, seja no campo da pastoral. Todos sentimos a insu-ficiência das soluções passadas, que em contextos já desaparecidos se revelaram decisivas e eficazes. Mas experimentamos também como a Igreja deve mudar para fazer frente aos novos desafios e poder continuar a ser o que deve ser, isto é, sacramento da salvação de Jesus Cristo para a sociedade. Para tal ela deve ser significativa, pertinente, próxima, para seus contemporâneos.

Nossa exposição se apresenta dividida em quatro partes. As duas primeiras são de cunho mais fundamental e as duas últimas, de ordem histórica e pastoral. Começaremos mostrando como a Igreja, em sua dimensão institucional, se encontra em estreita relação com a sociedade na qual se acha inserida, influenciando-a e sendo por ela influenciada. Em seguida, enfatizaremos a importância da Igreja Local na atual conjuntura. Numa terceira parte, nos voltaremos mais para a Igreja no Brasil, procurando entender melhor sua situação atual a partir de sua história, da repercussão nela do Concílio Vaticano II bem como das Assembleias Episcopais promovidas pelo CELAM, ressaltando, sobretudo algumas aquisições da última Assembleia Geral de Aparecida. Finalmente, uma quarta e última parte terá como objetivo apresentar algumas consequências pastorais desta exposição, sem pretensão al-guma de esgotar a temática.

I – A interação da Igreja e do contexto sociocultural

Alguém poderia perguntar: por que é tão importante para a Igreja levar a sério as transformações ocorridas na sociedade ao longo da histó-ria? A resposta a essa questão já foi respondida no Concílio de Calcedônia, ao afirmar que a divindade de Cristo estava sem mistura (inconfuse), mas também sem separação (indivise) na humanidade de Cristo. Nosso conhecimento do Verbo de Deus aconteceu através do Jesus histórico. “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam da Palavra da Vida [...], nós vos anunciamos [...]” (1Jo 1,1-3). Chegamos ao Filho eterno através da humanidade de Jesus de Nazaré. Confessamos ter na pessoa de Jesus Cristo a plenitude da verdade e da salvação, mas temos

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de reconhecer que ela se manifesta num contexto sociocultural bem determinado, no qual foi entendido, acolhido e seguido por seus contem-porâneos. Além disso, a pessoa de Jesus Cristo nos é conhecida “como num “espelho, confusamente”, como diria S. Paulo (1Cor 13,12). Pois a tensão entre o “já” e o “ainda não” acompanha sempre nossa compreensão da verdade revelada, de tal modo que a Igreja “tende continuamente para a plenitude da verdade divina” (Dei Verbum n.8).

Observemos, ainda, que o acolhimento da verdade revelada na fé é parte constitutiva da revelação. Sem a fé, a autocomunicação divina não teria chegado à sua meta e nós a ignoraríamos. Assim, a resposta da fé a Deus, possibilitada pelo mesmo Deus, pertence ao próprio conteúdo do que é Palavra de Deus para nós. E por essa mesma razão devemos afirmar não estar completa a revelação sem a Igreja, enquanto comunidade dos que creem1. Ainda mais. A revelação não pode ignorar o horizonte cultural em que vive essa comunidade de fé, sob pena de não ser simplesmente entendida, sob pena de não ser simplesmente revelação. Não podemos negar esse substrato humano, sempre presente nas expressões doutrinais, nos preceitos éticos ou nas estruturas jurídicas encontradas na Igreja. A Palavra de Deus não cai num vazio antropológico, num ser humano abstrato ou numa sociedade indeterminada. Ela, sendo sempre a mesma, só é alcançada na mediação histórica e mutável na qual se faz presente.

A Igreja é uma realidade humano-divina. Ela é divina porque foi querida por Deus e por Ele determinada com componentes que a distin-guem de qualquer outro grupo social. Esses constituem o que denomi-namos seus elementos teológicos: a pessoa de Jesus Cristo, a ação do Espírito Santo, a proclamação da Palavra, a acolhida na fé, a celebração dos sacramentos, especialmente do batismo e da eucaristia, a presença do ministério ordenado. Essas características provindas da revelação é que nos levam a denominar a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo, Comunidade Salvífica.

Mas a Igreja é também uma comunidade humana, que existe enquanto distinta dos outros grupos humanos. Todo grupo humano de-monstra sua identidade porque seus membros estão unidos por quatro elementos que lhes são comuns. De fato, fazem experiências comuns, partilham compreensões comuns dessas experiências, chegam assim a

1 DULLES, A., Models of Revelation, New York, 1996, p. 220.

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avaliações comuns, que possibilitam decisões comuns2. Contudo, tais elementos comuns não surgem de repente, nem brotam do nada. Enquan-to comunidade humana, ela é, constitutivamente, uma comunidade de sentido e de valor, pois se compreende e se constitui sempre no interior de uma linguagem recebida, de um horizonte cultural transmitido, de uma interpretação determinada dos eventos, que possibilita sua com-preensão da realidade e sua escala de valores. Habitamos um mundo social criado por outros e que nos permite entender e avaliar a realidade à nossa volta.

O evento Jesus Cristo, suas ações, suas palavras, sua morte e ressurreição representam o componente transcendente da comunidade eclesial, agregando e vivificando seus membros. Ele abre para a huma-nidade um novo quadro interpretativo da realidade que possibilitará experiências comuns, compreensões comuns, avaliações comuns e compromissos comuns, constituindo, assim, a Igreja. Trata-se de uma comunidade com identidade própria, a saber, a manifestação social da modalidade de vida inaugurada por Jesus Cristo. Nela estão presentes não só a pessoa de Jesus Cristo, mas também as Escrituras, a Tradição, os dogmas, a liturgia, os santos etc. Podemos caracterizar esse conjunto como a dimensão objetiva da Igreja.

Observemos, entretanto, que tais componentes só constituem de fato a Igreja uma vez que sejam recebidos e apropriados por cada geração de cristãos. Só então ganham vida, entram na realidade social, emergem para os contemporâneos no discurso e nas práticas dos cristãos. Estamos às voltas com a dimensão subjetiva da Igreja. Essa dimensão nunca é geral, teórica ou uniforme, pois os que crêem, esperam e amam, vivem sempre em contextos concretos, somente nos quais poderá ser dada uma resposta a Deus pela fé vivida. Desse modo, a comunidade cristã sempre se constitui e se compreende com as representações mentais, as categorias sociais, as estruturas organizativas presentes e atuantes em seu respectivo contexto sociocultural.

Não nos deve admirar, portanto, que a Igreja, no curso de sua história, tenha se apropriado de elementos institucionais à mão para se organizar como comunidade3. Não pretendemos demonstrar como essa afirmação se deu realmente ao longo da história da Igreja, que papel os

2 KOMONCHAK, J.A. Foundations in Ecclesiology. Boston, 1995, p. 83-88.3 RATZINGER, J. “Demokratisierung der Kirche?”, em: RATZINGER, J.; MAIER, H.

Demokratie in der Kirche. Limburg, 1970, p. 9.

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fatores de cunho social, cultural, político e até econômico tiveram em sua atual compreensão. A influência do platonismo, da divisão do mundo em âmbitos de poder sagrado e de poder político, da figura do imperador romano, do conflito com as autoridades civis na gestação da jurisprudên-cia eclesiástica, bem como a rejeição da modernidade como inimiga da Igreja, com a consequente criação de “espaços” católicos na sociedade, são alguns exemplos de que a Igreja nunca se compreendeu e se realizou prescindindo do respectivo contexto histórico. As publicações do grande eclesiólogo dominicano Yves Congar já fornecem uma fundamentação convincente a partir da história da Igreja4. Dito mais sinteticamente: não podemos negar que, em sua configuração institucional, a Igreja do tempo das catacumbas não era a mesma do Renascimento, ou que a mesma na era patrística também se distinguia da que hoje conhecemos5. De fato, enquanto comunidade encarregada de viver e proclamar a salvação trazida por Jesus Cristo, não podia a Igreja se furtar ao diálogo com seu contexto sociocultural e político, pois exatamente nele viviam não só os cristãos, mas ainda aqueles a serem evangelizados. Era, portanto, fundamental conhecer a linguagem dominante, as práticas sociais, os desafios da época, para se fazer entender e ser significativa para a vida real de seus contemporâneos.

Também daqui podemos entender que a Igreja, em sua configura-ção institucional, tenha se transformado no curso dos séculos, por causa das mudanças da própria sociedade. Pois, repetimos, a Igreja muda para conservar sua identidade e sua finalidade. É nesse sentido que se afirma que ela se autoinstitucionaliza no curso da história. Essa configuração institucional não deve ser vista como algo extrínseco à realidade ecle-sial, como algo meramente organizatório, que poderia dela prescindir mantendo sua verdade e sua existência. Ao contrário. Os componentes teológicos constitutivos da comunidade de fé só serão uma realidade viva se encontrarem formas e estruturas adequadas pelas quais possam ser vividos pelos membros da comunidade. Afirmar que a Igreja é teo-logicamente uma comunhão, sem oferecer uma tradução na dimensão institucional, impede que essa comunhão seja de fato uma realidade. Sem estruturas de participação não haverá comunhão6. Bem sabemos o que se

4 Ver, sobretudo, sua obra L’Église de Saint Augustin à l’époque moderne, Paris, 19972.

5 Para maiores detalhes ver FRANÇA MIRANDA, M., A Igreja numa sociedade frag-mentada, S. Paulo, 2006, p. 135-139.

6 POTTMEYER, H.-J. Towards a Papacy in Communion. New York, 1998, p. 130s.

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passou com a doutrina da colegialidade episcopal, aprovada no Concílio Vaticano II mas sem chegar a ser plenamente vivida, por faltarem as bases jurídicas e institucionais para sua realização.

Como instrumento e sinal do Reino de Deus na história, é impor-tante que a Igreja viva os valores evangélicos, que a salvação de Jesus Cristo seja uma realidade em seu seio. Se sua mensagem é contradita por seu modo de vida, por suas práticas e estruturas, então sofre a Igreja em sua própria finalidade, pois ela é vista por nossos contemporâneos a partir de seu exterior, que pode impedi-los de chegar ao que ela realmente é. Do ponto de vista institucional, haverá uma crise na comunidade ecle-sial (como, aliás, em outros grupos sociais, como família, escola, classe política) sempre que as experiências, as compreensões, as avaliações e os compromissos comuns dos membros da comunidade, não mais se en-contrem na instituição concreta que lhes foi legada. Pois suas expressões e práticas, formulações doutrinais e morais, dinamismos e estruturas, não mais se adequam à realidade vivida pelos membros da comunidade. Essa realidade lhes apresenta novos desafios, novos contextos, novas mentalidades, que exigem uma nova configuração. O aparente embate entre a fé e o mundo pode ser, de fato, a oposição entre a fé plasmada e vivida no século XIII, com a fé do século XX7.

II – A importância da Igreja Local

Não podemos falar da interação entre Igreja e contexto sociocul-tural sem destacar o papel da Igreja Local nesta questão. Porque essa interação acontece exatamente na Igreja de um contexto sociocultural, concreto e determinado. Entretanto, a temática referente à Igreja Local é muito ampla e será aqui apresentada muito brevemente, destacando apenas o que mais condiz com o nosso tema. Entendemos Igreja Local não somente como uma diocese, mas também como um conjunto de dio-ceses de uma região dotada de características socioculturais semelhantes e, portanto, com iguais desafios. Equivale a Igreja Particular, expressão mais empregada no Concílio Vaticano II, porém menos aceita hoje por parecer “parte” da Igreja Universal, quando, de fato, nela subsiste “a una e única” Igreja Católica8. A história da Igreja nos apresenta exemplos dessa

7 RATZINGER, J. Dogma e anunciação. S. Paulo, 1977, p. 143.8 Sobre isso ver: DIANICH, S.; NOCETI, S. Trattato sulla Chiesa. Brescia, 2002, p 345

nota 134.

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Igreja Local tendo uma Igreja Principal ou Metropolita que, em regime sinodal, regulamentava questões como sagração de bispos, divisões de dioceses, normas canônicas e litúrgicas, disciplina do clero e dos leigos (LG 23). Naturalmente tinha grande peso o entorno cultural que moldava uma configuração própria para a Igreja Local9.

O Concílio Vaticano II considera a Igreja Universal como uma comunhão de Igrejas, ao afirmar que “a Igreja de Jesus Cristo está verda-deiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis”, mesmo que sejam “pequenas e pobres, ou vivendo na dispersão” (LG 26). Pois todas elas são “formadas à imagem da Igreja Universal, nas quais e pelas quais subsiste a Igreja Católica una e única” (LG 23). Nelas está presente verdadeiramente a Igreja de Cristo (CD 11). Por conseguinte, a Igreja Universal não consiste na soma ou na confederação de Igrejas Locais, que pudessem ser consideradas meras repartições administrativas da única Igreja Universal10. E, por sua vez, a Igreja local só é Igreja se em comunhão com as demais Igrejas (AG 38) consideradas sincrônica e diacronicamente.

A catolicidade da Igreja não pode ser considerada uma universali-dade que aniquilasse as características próprias de cada povo ou região, pois cada Igreja Local deve oferecer às demais seus dons em vista de uma maior plenitude (LG 13). Para isso, a Igreja deverá se inserir no contexto sociocultural onde se encontra (AG 10), aproveitando a sabedoria, as artes e as instituições dos povos para expressar a glória do Criador (AG 22). A catolicidade da Igreja não é apenas formal (mesma constituição teológica), mas real, ao apresentar configurações diversas das experiên-cias cristãs e das comunidades de fé. A Igreja é católica (universal) por estar às voltas tanto com o desafio das religiões na Ásia, quanto com a pobreza na África, ou com a crítica da modernidade na Europa, ou ainda com os marginalizados da América Latina.

O papel da sede romana como sinal da unidade da igreja é de for-talecer a comunhão entre as Igrejas Locais, supervisionando as mesmas para garantir sua comunhão e, assim, a unidade da Igreja de Jesus Cristo11. A história da Igreja nos demonstra que o exercício do primado pode variar

9 GRESHAKE, G., “Zwischeninstanzen zwischen Papst und Ortsbischöfen”, em: MÜLLER, H.; POTTMEYER, H. J. (Hrsg.). Die Bischofskonferenz: theologischer und juridischer Status. Düsseldorf, 1989, p. 98ss.

10 KASPER, W. Teologia e Chiesa. Brescia, 1989, p. 290.11 JOÃO PAULO II. Ut unum sint n. 74.

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no modo como é exercido. Consequentemente, existe a possibilidade de se “encontrar uma forma de exercício” que “se abra a uma situação nova”12. Pois as Igrejas Locais são fundamentalmente sujeito. Embora historicamente tenha havido tensão entre a Sede Romana e Igrejas Locais, devemos afirmar que a missão do primado, de fortalecer e confirmar as Igrejas Locais na fé e na vivência da caridade, demonstra que a força e a unidade do episcopado indicam a força e a eficácia do primado13.

Urge em nossos dias a volta de uma instância entre o papa e o bispo local como se deu no passado. As Igrejas Patriarcais, “por divina Providência”, reuniram-se em comunidades com “leis próprias, rito litúrgico próprio, e patrimônio teológico e espiritual próprio” (LG 23). Nesse tempo, a compreensão da Igreja como uma comunhão de Igrejas entre si e com a Igreja de Roma era uma realidade experimentada. Depois, houve uma fusão do cargo pontifício enquanto sucessor de Pedro com a missão do Patriarca do Ocidente, uma evolução cujo ponto mais alto se deu com Inocêncio III, que considerava o mundo como uma grande diocese cujo bispo era ele14. Essa evolução histórica deveria ser desfeita, permitindo a criação de novos patriarcados. De fato, a uniformidade do direito eclesiástico, a uniformidade da liturgia, o controle das sedes episcopais por parte de Roma, não provêm necessariamente do primado enquanto tal15.

Observemos ainda que a diversidade entre as Igrejas Locais é causada também pelo próprio Espírito Santo. Pois o Espírito, atuando na comunidade dos fiéis, não só mediatiza e atualiza Jesus Cristo, mas faz surgir novas compreensões de sua pessoa, novas maneiras de viver a fé, novas estruturas de comunhão eclesial. Através do discernimento dos sinais dos tempos, dos desafios existenciais, dos carismas diversos que desperta, Ele é não só princípio de unidade, mas também de diversidade. Para muitos, não é nada fácil aceitar tais verdades por causa do peso do

12 Ibid. n. 95.13 BUCKLEY, M., Papal Primacy and the Episcopate. Towards a relational Understanding,

New York, 1998, p. 72s. Ver ainda W. Klausnitzer (Der Primat des Bischofs von Rom, Freiburg, 2004, p. 448 nota 338) que menciona, nessa mesma linha, outros teólogos como Hünermann, Henn, Pottmeyer, Neuner.

14 GRESHAKE, G., Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologie, Freiburg, 2007, p. 424ss.

15 RATZINGER, J., O Novo Povo de Deus, S. Paulo, 1974, p. 138; POTTMEYER, H.-J., Towards a Papacy in Communion, New York, 1998, p. 133-135.

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passado (centralismo romano, uniformidade como unidade, nostalgia da cristandade)16.

A razão desta exposição sobre a Igreja Local está no fato de que é exatamente ela que realiza concretamente a missão da Igreja. E a iden-tidade última da Igreja é ser missionária, é estar a serviço do Reino de Deus17. Daí a clara afirmação do Vaticano II: “A Igreja peregrina é por sua natureza missionária. Pois ela se origina da missão do Filho e da missão do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai” (AG 2). Daí podermos concluir que a vivência e a proclamação do Reino de Deus devem não só ser a meta de todo o corpo eclesial, mas também moldá-lo em vista desse objetivo. Não só as pessoas deverão corresponder a essa finalidade, como também as estruturas, os cargos, as organizações, os grupos, as teologias, as pastorais, as normas, enfim tudo o que constitui o lado institucional da Igreja. Porque tudo isso é meio e não fim.

III – O impacto das mudanças na Igreja da América Latina e do Brasil

Sem dúvida alguma, a raiz das transformações do catolicismo no continente latino-americano está no Concílio Vaticano II. João XXIII, ótimo conhecedor da história da Igreja, percebeu a distância entre a Igre-ja de então e a sociedade moderna. Esse fato dificultava sobremaneira sua tarefa evangelizadora. Daí, a busca de uma atualização (aggiorna-mento) da Igreja que a tornasse mais capaz de proclamar a mensagem evangélica e de agir no mundo. Mas, para se atualizar, ela necessitava conhecer a realidade onde se encontrava. Daí a segunda palavra-chave para se entender o Vaticano II: diálogo. Ao entrar em diálogo com seu interlocutor, a Igreja não apenas fala e influencia, mas também escuta, aprende, é influenciada, se questiona, se modifica, se atualiza. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II se distingue dos anteriores, por não ter procurado corrigir erros doutrinais ou morais, mas simplesmente por

16 Ver as realistas observações de KOMONCHAK, J.A., “La réalisation de l’Église en un lieu”, em: ALBERIGO, G.- JOSSUA, J.P. (Ed.), La réception de Vatican II, Paris, 1985, p. 107-126.

17 DIANICH, S., Chiesa in missione. Per una ecclesiologia dinamica, Torino, 19873; POTTMEYER, H.-J., “Die Frage nach der wahren Kirche”, em: Handbuch der Funda-mentaltheologie III, Tübingen, 20002, p.159-184.

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pretender atualizar a mensagem da salvação de Jesus Cristo, conhecendo melhor e levando a sério o destinatário18.

Para melhor compreendermos e valorizarmos a opção do Vaticano II no que diz respeito à relação Igreja e sociedade. recordemos como ela se dava no passado. Pois, nesse tempo, essa relação consistia em grande parte no relacionamento da Igreja com o Estado19. Este era considerado a representação suprema da vida social e política, acima de qualquer outra autoridade, e com poderes de direito para garantir o bem-estar dos cida-dãos. Constituía realmente uma sociedade perfeita dotada de finalidade própria, como ensinava Aristóteles e concordavam seus seguidores na Idade Média. Além disso, comparavam a sociedade a um organismo, comandado pela cabeça, a saber, o rei, ou simplesmente o governo. Daí serem os cidadãos e suas possíveis associações representados sem mais pelo Estado e por ele absorvidos. Esse fato explica que a relação da Igreja com a sociedade irá se limitar, em grandes linhas, a seu relacionamento com o Estado.

Por seu lado, a Igreja também irá se conceber, analogamente ao Es-tado, como uma entidade de direito autônoma e autossuficiente, indepen-dente de qualquer outra instituição, dotada das propriedades necessárias para alcançar sua finalidade própria, numa palavra, também como uma “sociedade perfeita”. Essa compreensão não tem suas raízes no Novo Testamento, mas foi sendo gerada a partir da questão das investiduras, para garantir a autonomia e a independência da Igreja, ameaçada então pelo poder político. Deste último a Igreja tomou mesmo as características e as propriedades. Consequentemente, Igreja e Estado se confrontavam como duas “sociedades perfeitas”. Elas se distinguiam não pelas respec-tivas estruturas, nem pelos meios que utilizavam, mas pelas diferentes finalidades e tarefas correspondentes. A Igreja buscava a salvação das almas, enquanto o Estado procurava o bem-estar dos cidadãos.

De fato, contudo, Igreja e Estado se relacionavam como forças concorrentes. Devido ao fato histórico da cristandade, a Igreja ganhava a última palavra nas disputas, por apresentar um objetivo superior, a finalidade última e mais elevada da humanidade, que está acima do bem-estar dos cidadãos. Entretanto, essa concepção de Roberto Bellarmino

18 THEOBALD, Ch., “As opções teológicas do Concílio Vaticano II: em busca de um princípio interno de interpretação”, Concilium n.312 (2005) p. 128.

19 BÖCKENFÖRDE, E.-W., “Staat-Gesellschaft-Kirche”, em: Christlicher Glaube in moderner Gesellschaft. Teilband 15, Freiburg, 1982, p. 15-26.

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irá se enfraquecendo no curso dos anos, seja pelo evento da Reforma no interior do cristianismo, seja pela revolução francesa, que dispensou a fundamentação religiosa do Estado civil e não reconheceu a Igreja como sociedade perfeita.

Dessa breve exposição histórica emerge um fato que nos atinge fortemente ainda hoje. O âmbito político e o âmbito religioso da socie-dade se expressaram, dialogaram, entraram em conflito, encontraram soluções, apenas por meio das autoridades e instituições da Igreja e do Estado. O cidadão cristão não tinha, como cidadão, nenhum peso na área sociopolítica e, como cristão, nenhuma voz na área religiosa, sendo representado pelas instituições citadas. Estas, por um lado, lhe poupavam uma participação ativa, consciente e crítica por ocasião dos embates cívico-religiosos, mas o condenavam, por outro, a certa passividade e apatia que perdura até nossos dias.

Nesse contexto, adquire importância fundamental a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II. Pois sua finalidade aparece já em sua primeira afirmação: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo...” (GS 1). Subjacente à Constituição está a convicção de que, somente enquanto aceita em seu valor humano, poderá a Igreja ser ouvida e acolhida em sua proclamação evangélica. Desse modo, ela se abre ao diálogo com todos os que buscam construir uma humanidade mais fraterna e mais justa, mesmo que sejam de ou-tras crenças. E reconhece que todos os esforços humanos por melhores condições de vida e de convivência social correspondem ao desígnio de Deus (GS 34) e à ação do Espírito Santo (GS 38).

Conforme Gaudium et Spes, a Igreja não está ao lado da socie-dade por ter uma finalidade própria. Pois sua missão, embora de cunho religioso, repercute na organização e no fortalecimento da comunidade humana (GS 42). Os leigos cristãos são estimulados a agir na sociedade civil à luz da fé e da doutrina do magistério (GS 43). Mas a Igreja não só colabora com a sociedade, mas também é por ela ajudada (GS 40), seja pela linguagem e cultura de uma época ou de uma região, seja por novas formas de organização social mais aptas à sua missão salvífica (GS 44). É patente a mudança na relação Igreja e sociedade, quando confrontada com o período anterior.

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Retornando de Roma, os bispos latino-americanos se voltam para a realidade deste subcontinente, dando início, no espírito conciliar de atualização e diálogo, às grandes Assembleias Episcopais de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Trata-se, sem dúvida, da recepção do Vaticano II na América Latina. A sequência dessas Assembleias se deve às transformações significativas na sociedade. Os bispos encaram sem subterfúgios as duras condições de vida das populações mais po-bres, voltam-se mais para elas, apontam as causas das injustiças sociais, respeitam e acolhem as culturas regionais (Puebla 385-343).

Na mesma linha está o recente texto de Aparecida. Pois reconhece, em alguns traços, a fraqueza da fé plasmada num contexto de cristandade, frente à atual sociedade (DA 12). Afirma que certas estruturas eclesiais contribuem para que muitos deixem a Igreja e busquem alhures respostas para suas inquietações e aspirações (DA 225). Os bispos em Aparecida exigem uma autêntica conversão pastoral que implica abertura para o novo, liberdade diante do tradicional, busca “de novas formas para evangelizar de acordo com as culturas e as circunstâncias” (DA 369). A mútua interação entre Igreja e sociedade também foi por eles reco-nhecida. “A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico onde vivem seus membros” (DA 367). E não só a pastoral, pois há “a necessidade de uma renovação eclesial que implica reformas espirituais, pastorais e também institucionais” (DA 367). Ou, como os bispos afirmam expressamente, urge “abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DA 365).

Querer entender a situação da Igreja no Brasil em sua relação com a sociedade atual, exige certo conhecimento da nossa história. Pois só assim teremos consciência das conquistas e das deficiências que nos foram legadas do passado. Vejamos. No período colonial, que se esten-de até a proclamação da República, Igreja e Coroa estão unidas num empreendimento comum: conquistar novas terras para Portugal e trazer seus habitantes para a fé católica. Desse modo, ambas as instituições se reforçam e legitimam mutuamente. Para o imaginário do tempo, a con-quista dos reis portugueses se revestia de um caráter missionário e divi-no. Desse modo consegue a Coroa portuguesa, para melhor realizar sua missão, importantes privilégios da Santa Sé, como nomeação de bispos, recolhimento e administração do dízimo, sustento do clero, construção de Igrejas, aprovação de documentos eclesiásticos, mesmo dos que vinham de Roma, etc. Era o tempo do padroado. Hoje, reconhecemos que houve forte dependência da Igreja com relação à Coroa.

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As vantagens para sua tarefa missionária, já que todos deviam ser católicos e batizados, caso não o fossem ainda, trouxeram também consequências negativas duradouras. Primeiramente, uma fragilidade institucional, uma vez que a Igreja se apoiava na monarquia. Aliada ao Poder, ela se sentia suficientemente forte e, assim, não desenvolveu como devia sua estrutura interna. Em seguida, dessa situação resultou a ausência de uma pastoral de conquista entre os responsáveis e de com-promisso entre os fiéis, já que ser católico e ser brasileiro se equivaliam. Além disso, a influência da Igreja na sociedade colonial se fazia sempre por meio da Coroa, impossibilitando uma ação própria que constituísse, por exemplo, um laicato consciente. As prioridades do Estado tinham, de fato, primazia diante das prioridades da Igreja.

Nesse tempo, o catolicismo dominante no Brasil era de cunho devocional, trazido pelo catolicismo medieval português, expresso na devoção aos santos, nas promessas, na comunicação com os mortos, nas procissões, despreocupado de doutrinas e sacramentos. Um catolicismo familiar que floresceu tranquilamente sem qualquer mediação institu-cional ou clerical. Esse fato revela quão limitada era a influência real da Igreja na sociedade, embora esta fosse considerada católica. Também explica a passividade do católico diante do poder instituído, fazendo-o atuar como fator de estabilidade e de continuidade, seja pela união de Igreja e Coroa Imperial, seja por esta religiosidade popular.

Com o advento da República, a Igreja perde suas regalias e ga-nha finalmente sua liberdade. A separação de Igreja e Estado foi dura, por ela não ter desenvolvido suficientemente sua própria estrutura. A chegada do clero e de religiosos vindos da Europa amenizou em parte esta lacuna. Mas o reatamento das relações diretas com o Vaticano favorecerá a implantação de uma pastoral europeia, mais voltada para a classe média urbana, enquanto a maioria da população brasileira era rural e bem subdesenvolvida. Enfim, uma pastoral que não levava em conta o contexto brasileiro.

As fortes mudanças ocorridas no país, pela crescente moderniza-ção a partir de 1955, acabaram por repercutir no interior da Igreja. Esta se coloca a favor das transformações estruturais reclamadas, dirigindo sua atenção para os camponeses das zonas rurais, embora com fortes reações provindas de certos setores eclesiais. A recém-fundada CNBB terá um importante papel nesse momento, pelas mudanças em favor das classes populares. A paz selada com o governo militar implantado em

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As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil

1964, devida à eliminação do “perigo comunista”, não teve longa dura-ção. Abusos de poder, violências, torturas, mesmo de leigos católicos e até de sacerdotes e bispos, em nome da doutrina da segurança nacional, levaram a Igreja a tornar-se uma crítica ferrenha do regime vigente. Por volta de 1978, ela passa a trabalhar preferencialmente com as classes mais pobres. Marco significativo dessa opção foi o corajoso documento intitulado Exigências Cristãs de uma Ordem Política.

O pontificado de João Paulo II terá importantes consequências para a Igreja do Brasil. Sua abertura a outras religiões, ou mesmo sua sensibilidade para a diversidade cultural no mundo, representam pas-sos decisivos e corajosos para a Igreja Católica. Mas a preocupação da Santa Sé em acalmar o movimento pós-conciliar, sua insistência na centralização romana, seu controle da reflexão teológica, seus critérios para a nomeação de novos bispos, acabam por repercutir claramente em nossa Igreja. Embora continue próxima aos pobres em grande parte das dioceses brasileiras, pôde-se observar uma mudança na ênfase de seus pronunciamentos, uma diminuição da importância dada ao apostolado social, um maior silêncio sobre as Comunidades Eclesiais de Base, uma maior preocupação com movimentos de classe media. Com relação ao governo, a CNBB manteve sempre sua independência, sabendo criticar o modelo econômico adotado nos últimos anos, embora às voltas com problemas internos urgentes, como o avanço do pentecostalismo em nosso país ou a expansão de uma cultura secularizada na sociedade.

Mas a Igreja no Brasil, apesar de todo o seu esforço em favor de uma sociedade mais justa e fraterna, não vem conseguindo mobilizar devidamente seus membros na construção de uma nação marcada pelos valores cristãos. Algumas das causas provêm da própria sociedade. Temos uma democracia frágil, pois a maioria da população não apresenta um nível de educação que lhe permita exercer sua cidadania consciente e eficazmente. Podemos acrescentar ainda a complexidade de um país de dimensões continentais, que inviabiliza um conhecimento adequado das questões em jogo. Mencionemos ainda que, numa sociedade pluralista, a tolerância global acarreta uma forte erosão do ethos social, uma anar-quia no sistema de valores, um relativismo sem fronteiras que dificulta sobremaneira a convivência humana20.

20 RATZINGER, J. Chiesa, Ecumenismo e Politica. Torino, 1987, p. 202s.

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Mário de França Miranda, SJ

IV – Prioridades pastorais

As mudanças socioculturais são amplas, como vimos, e ocasionam numerosos desafios para a Igreja. Certamente, ao procurar fazer frente a esses desafios atuais, a Igreja irá ganhando uma configuração nova, mais apta e mais condizente com a realidade vivida em nossos dias. Prioriza-mos algumas linhas pastorais, descritas brevemente, sem excluir outras que poderiam ser acrescentadas. Orientou-nos bastante nesta tarefa o texto do Documento de Aparecida.

1) A ênfase na experiência salvífica

O cristianismo nasceu da experiência salvífica feita pelos primeiros discípulos com Jesus Cristo, que os levou a testemunhar, em palavras e com a própria vida, a força salvadora de Deus por meio de seu Espírito. A transmissão da fé consiste em testemunhar tal experiência a outras gerações, para que também possam dela participar. A autêntica tradição consiste em transmitir uma realidade viva, a saber, o próprio Deus se entregando a nós no Filho e no Espírito para nos salvar.

Numa sociedade de cristandade, essa experiência já era suposta, pois a própria sociedade oferecia o quadro religioso que facilitava a experiência salvífica e sua identificação. Ao contrário de hoje21. Nossos contemporâneos são céticos com relação a discursos e ideologias, e famintos por referenciais sólidos onde possam ancorar e orientar suas vidas22. O fascínio pelas religiões do Oriente, a irrupção mesmo ambígua do pentecostalismo, a busca do silêncio, do conhecimento próprio, são fenômenos que questionam um catolicismo demasiadamente racionali-zado, juridicamente enquadrado, autoritariamente governado. Como já se escreveu: “ser cristão significa então, simplesmente, fazer parte de um grande aparelho e ter a ideia de que existem inúmeras orientações morais e dogmas difíceis”23.

A pastoral hoje não mais pode ser impositiva ou proibitiva. Ela deve consistir num convite à liberdade de cada um para uma experiência

21 MOINGT, J., La transmission de la foi, Paris, 1976; Id., “Transmettre un avenir de foi”, Recherches de Sciences Religieuses 81 (1993) 11-27.

22 ALVAREZ BOLADO, A., Mística y secularización. En medio y a las afueras de la ciudad secularizada, Bilbao, 1992.

23 RATZINGER, J., O sal da Terra, Rio de Janeiro, 1997, p. 100.

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salvífica com Jesus Cristo, apresentando positivamente a atraente mensa-gem do Mestre de Nazaré, como magistralmente vem fazendo Bento XVI em suas encíclicas. O encontro pessoal com Jesus Cristo foi enfatizado em Aparecida, mas esbarra em mentalidades e práticas tradicionais que podem torná-lo inócuo. Cabe à pastoral valorizar a opção livre da fé e não esconder o seu risco, oferecer uma pedagogia da oração pessoal com um contato direto com a Palavra de Deus, abrir momentos de silêncio e interiorização em nossas celebrações.

2) Cristãos missionários

Toda a razão de ser da Igreja, como vimos, está na proclama-ção e realização do Reino de Deus, o que a compromete seriamente. Daí a afirmação do Concílio Vaticano II, de que a Igreja só será sinal levantado, luz do mundo e sal da terra, enquanto “viver profunda-mente a vida cristã” (AG 36). Enquanto comunidade dos seguidores de Cristo, o imperativo missionário atinge a todos na Igreja, todos constituem o “novo sacerdócio” (1Pd 2,9; Ap 1,6), e o verdadeiro culto consiste na oferta da própria vida a Deus (Rm 12,1), fazendo o bem aos demais (Hb 13,16). O documento de Aparecida afirma que “cumprir essa missão não é tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã” (DA 144), consistindo essa missão em partilhar a experiência salvífica com Jesus Cristo, testemunhando-o e anuncian-do-o a outros (DA 145).

Essa missão se refere primeiramente ao mundo (DA 210), mas também se realiza no interior da Igreja (DA 211). Tanto num setor como no outro, os bispos em Aparecida demonstraram que os leigos necessi-tam de maior autonomia e participação, já que são verdadeiros sujeitos eclesiais e competentes interlocutores entre a Igreja e a sociedade (DA 497a). Também na Igreja, os leigos “hão de ter parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade” (DA 211), participando “do discernimento, da tomada de decisões, do planejamento e da execução” (DA 371). Naturalmente, o objetivo visa-do pelos bispos em Aparecida dificilmente se tornará realidade, se não houver uma séria e profunda mudança na mentalidade do clero e maior criatividade nas instituições eclesiais.

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3) O respeito à diversidade e ao itinerário próprio de cada um

No passado, devido à homogeneidade cultural e religiosa, havia o pressuposto tácito de que todos os membros da Igreja estavam de certo modo igualmente receptivos e aptos para receber as orientações e as normas da autoridade eclesial. A pessoa, no que tinha de única e distinta das demais, não era levada em consideração. Esse fato gerava má consciência em alguns enquanto favorecia o afastamento de outros, já que não conseguiam seguir os padrões éticos prescritos. Na atual sociedade, que tanto preza a subjetividade, a Igreja deveria espelhar o jeito de Jesus Cristo abordar cada pessoa, partindo de sua realidade e levando-a a avançar. Esse comportamento pastoral, que não elimina as metas comuns para todos, procura respeitar os diversos itinerários para essas metas.

Tarefa difícil, porque pressupõe adequada formação teológica, bondade e misericórdia no coração dos pastores e agentes pastorais, como também uma reeducação da própria comunidade eclesial, acos-tumada a padrões uniformes de comportamento. Aceitar a diversidade na Igreja, é aceitar certa diversidade de pertença já conhecida de todos nós. Uma pastoral voltada para os mais afastados pode parecer minimalista para alguns, mas é o que pode ser pedido desses católicos neste momento. O que nos parece simples, pode exigir deles grande empenho e sacrifício.

4) A formação teológica

Devido a razões históricas já mencionadas, o catolicismo brasileiro está assentado em bases frágeis. Muitos batizados, e poucos realmente evangelizados. O que explica a saída de muitos para outras Igrejas, ou sua queda na indiferença religiosa. Sem descurar uma pastoral dos sacra-mentos, devemos insistir hoje numa maior evangelização. Porque o que está em questão em nossos dias é a própria fé. O mundo secularizado em que vivemos, mesmo apresentando manifestações marginais, ambí-guas ou autênticas, de religiosidade, se constitui num sério obstáculo à fé do indivíduo. O quadro social cristão do passado, que respaldava a fé de nossos antepassados, não mais existe, exigindo do cristão uma séria formação que lhe forneça internamente o que externamente a socieda-de não mais lhe proporciona. Aqui se explica uma busca de formação

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teológica por parte dos leigos, até com maior entusiasmo do que por parte dos clérigos. A ascensão cultural das classes sociais mais simples, e o pluralismo de visões da realidade, de valores éticos, hoje reinante, exigem do agente pastoral e, sobretudo, do presbítero, uma cultura geral mais ampla e uma formação teológica mais profunda, que lhe permitam responder às problemáticas existenciais, culturais e sociais atuais. Infe-lizmente, constata-se, e não só no Brasil, uma queda no nível dos estudos nos seminários e nas faculdades de teologia.

5) A promoção de grupos de vivência cristã

Uma das características da atual sociedade, sobretudo nas grandes cidades, é a solidão. Daí uma busca enorme por experiências comunitá-rias, por sentir-se acolhido, entendido e ajudado por um grupo. Embora afirmemos teologicamente ser a Igreja uma comunidade, nela poucos conseguem uma autêntica experiência eclesial. Daí a necessidade e a urgência de se criarem novas concretizações de Igreja. Tais grupos menores de cristãos já são uma realidade em nosso país, mas deveriam ser mais valorizados e incrementados. Eles representam o espaço onde seus membros podem melhor viver sua fé e desenvolver uma ação pas-toral correspondente. Para que isso aconteça, não devem se fechar em si mesmos, mas contribuir com outros grupos na paróquia ou na diocese, a saber, devem ser grupos missionários.

6) A responsabilidade da Igreja Local

Os cristãos só vivem sua fé a partir de sua realidade existencial e sociocultural. Com outras palavras, a fé cristã só será realmente vivida, na medida em que penetre no modo particular com que cada pessoa vê, expressa e vive sua realidade. Compete às Igrejas Locais aproveitar toda a riqueza do seu entorno para melhor evangelizar, proclamar a Palavra de Deus, celebrar a fé, organizar as comunidades, refletir a verdade cristã, criar estruturas adequadas e eficazes. Naturalmente, sempre em comunhão com as demais Igrejas e com a Sede Romana. Ao bispo de uma diocese (ou aos bispos de um regional) compete estar atento às necessidades de suas ovelhas, ao seu contexto vital, aos seus desafios. Não ajuda à Igreja Universal o silêncio das Igrejas Locais, pois a iniciativa de uma acaba por reverter no bem das demais, como já aconteceu nas Assembleias do CELAM com relação à Igreja Universal.

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7) A opção preferencial pelos pobres

Esta opção foi reafirmada em Aparecida por Bento XVI em seu discurso inaugural (DI 3): “a opção preferencial pelos pobres está im-plícita na fé cristológica daquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza” (DA 392). E o documento continua: “tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres, e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo” (DA 393). A consequência eclesiológica dessa afirmação também aparece neste texto: “A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes (cf. Mt 9,35s). Ele [...] sendo rico, escolheu ser pobre por nós (cf. 2Cor 8,9), ensinando-nos o caminho de nossa vocação de discípulos e missionários” (DA 31).

Sem dúvida observamos hoje certo esfriamento de uma mística de compromisso pelos pobres, mística essa que alimentou as jovens ge-rações do passado. Mesmo sem querer discutir as causas desse declínio, constatamos com preocupação que, unido ao crescente domínio do fator econômico na sociedade, entrou na Igreja uma mentalidade que preza a ascensão social, a busca por cargos e poder, a diminuição do zelo apos-tólico, a subserviência interesseira que caracteriza hoje certa parte dos jovens e dos futuros presbíteros, penetrando também na vida religiosa, em movimentos e organizações laicais. Consola-nos, contudo, a vida de tantos que labutam heroicamente nas regiões mais pobres em pleno anonimato, sem o reconhecimento e as honras oficiais, porém mais fiéis à mensagem e à pessoa de Jesus Cristo. Aí se encontra a mais autêntica comunidade cristã, pois aí existe mais amor, fé, esperança, abnegação. O verdadeiro centro da Igreja é algo diferente de seu centro de governo e administração24.

Conclusão

A reflexão acima certamente apresenta lacunas e requer matiza-ções, por tratar de um tema tão vasto. As mudanças na Igreja são lentas pela diversidade de mentalidades e práticas, de gerações e etnias nela presentes, as quais devem ser respeitadas. Mas nossa fé confessa ser o

24 RATZINGER, J., O Novo Povo de Deus, p. 230, citando Urs von Balthasar.

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As mudanças socioculturais e a Igreja no Brasil

Espírito Santo aquele que “rejuvenesce a Igreja e renova-a perpetuamen-te” (LG 4). Portanto nossa preocupação com a Igreja deve se expressar não só numa reflexão, mas na oração a Deus, protagonista primeiro de toda pastoral.

Endereço do Autor:Rua Marquês de São Vicente, 389

22451-041 Rio de Janeiro, RJE-mail: [email protected]

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 49-66.

* O autor é da Congregação dos Missionários de São Carlos. Assessor do Setor Mo-bilidade Humana e Missão Continental da CNBB.

Resumo: O autor responde à pergunta feita no título do seu artigo: “O método das Santas Missões Populares está a serviço da Missão Continental?” E co-meça lembrando que essa “Missão Continental” é a grande prioridade deixada pela Conferência de Aparecida e assumida pelo Episcopado latino-americano. A seguir, apresenta as “possibilidades”, sem deixar também de apontar para as “incongruências” do referido “método” das Santas Missões Populares postas a serviço da “Missão Continental”, cujo projeto vem expresso no Projeto Nacional de Evangelização “O Brasil na Missão Continental”, e no “Itinerário da Missão Continental”, com seus principais pressupostos. Entre esses, a Diocese, e a Paróquia, que deveriam constituir-se “em permanente estado de missão”. E conclui: Para além de um grande evento missionário, como os realizados pelas Missões Populares, a Missão Continental, uma vez mais, coloca como objetivo a continuidade da renovação da ação missionária, incorporando-a nas estruturas, dinâmicas formativas e planejamentos pastorais. Tal dinamismo, atuando como “pastoral decididamente missionária”, nesse sentido, não é mais tarefa das SMP, mas obra a ser pensada e realizada na continuidade do cotidiano.

Abstract: The author answers the question raised in the title of the article “The method of Holy Missions among the people is at the service of the Mission of the Continent?” To begin with it is to be remembered that the “Mission exten-ded to the Continent” is the foremost priority endorsed by the Conference of Aparecida and by all Latin American Bishops. The following subject dealt with concerns the possibilities without leaving out some incongruous aspects of the method underlying the Holy Missions among the people in a far reaching scale to embrace the “Continental Mission”. In fact, it constitutes the national project of evangelization and served as criterion for “Brazil involved in the Continental Mission” and the “Itinerary of the Continental Mission” with the main presupposi-tions therein implied. Mention is made of the diocese and the parish which should show forth permanent readiness to reach out. The conclusion to be drawn is to pool resources, renewal of strategies, marshalling the forces of all the faithful. The dynamic efforts implementing the pastoral activity of missionary service in the Church transcends the Holy Missions among the people because it is the fulfillment of salvation in history in progress in daily life.

O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental?Questionamentos sobre suas possibilidades e incongruênciasPe. Sidnei Marco Dornelas, CS*

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O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental?

A Missão Continental (MC) é a grande prioridade deixada pela Conferência de Aparecida e assumida pelo Episcopado latino-americano. Ela vem encontrando diferentes formas de implementação nos países da América Latina. No Brasil, a CNBB, em sua Assembleia Geral de 2008, delineou o modo como entende que ela deveria ser colocada em prática. Nas DGAE 2008-2010, assim se expressa sobre a MC:

A Igreja no Brasil sempre foi missionária. No entanto, esta consci-ência tem-se intensificado sobretudo nos últimos tempos, como atestam o novo estilo das Diretrizes (DGAE) e os projetos quadrienais: Rumo ao Novo Milênio, Ser Igreja no Novo Milênio, Queremos ver Jesus. Chegou a hora de intensificar este espírito missionário, participando da Missão Continental, assumindo-a com rosto brasileiro, conforme a realidade e a caminhada das nossas Igrejas Particulares (212).

Na verdade, esse trecho vem lembrar que a MC não é um evento isolado entre outros, e nem pode ser visto em descontinuidade com a caminhada missionária já realizada pelas Igrejas Particulares, ou desvin-culada dos projetos de animação missionária assumidos pela Igreja no Brasil nos últimos anos. A rigor, a proposta da MC busca tão simples-mente tornar efetiva a prioridade elegida pelos bispos em Aparecida: realizar a “conversão pastoral”, no sentido de uma Igreja em “estado permanente de missão”. Mais concretamente, tornar realidade a aspira-ção de fazer passar a pastoral de nossas comunidades, de uma “pastoral de mera conservação” para uma “pastoral decididamente missionária” (Ap 370). Ora, ao longo das últimas décadas, por meio de seus planos de pastoral e projetos missionários, a Igreja no Brasil e parte substan-cial das Igrejas Particulares têm-se proposto esse mesmo objetivo. É na continuidade desse percurso histórico que deve ser entendida a imple-mentação da MC.

Tendo presente, portanto, a caminhada da Igreja no Brasil, cons-tata-se que em várias dioceses, inclusive através da ação de algumas congregações de vida consagrada, existe já um trabalho consistente de animação missionária, inclusive com o propósito expresso de renovar estruturas paroquiais, multiplicando a participação e estreitando os vín-culos entre as diferentes comunidades e pastorais. Nesse sentido, uma metodologia fecunda foi-se construindo, encontrando expressão nas Santas Missões Populares (SMP). Com a bagagem dessa experiência, surgiu então naturalmente a pergunta: não seriam as SMP o instrumento

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Sidnei Marco Dornelas, CS

mais fecundo, mais propício, para fazer deslanchar o espírito da MC em nossas Igrejas?

De início, uma aparente incongruência parece questionar essa pro-posta de aplicação da metodologia das SMP a serviço da MC. De um lado, o objetivo da MC, de colocar todas as comunidades num “permanente estado de missão”, pressupõe que existam ou se criem estruturas de con-tinuidade nas Igrejas locais que, no cotidiano, permitam a “permanência” desse estado; por outro, as SMP, em todos os casos, preveem um roteiro que se desenrola num percurso que compreende um começo, um meio e um certo fim, mesmo que apontando para alguma forma de continuidade. Seria uma incongruência, na medida em que as SMP se estruturam mais como um evento localizado no tempo, enquanto que a MC busca dar o impulso para uma nova mentalidade e dinâmica de ação e estruturação pastoral, com pretensão de se estender indefinidamente. Na busca de refletir como colocar as SMP a serviço da MC devemos, logo, colocar em pauta a questão: como fazer com que a metodologia emergente da prática das SMP possa tornar efetiva a prioridade de Aparecida, a MC? Em outros termos, como ensejar, por meio delas, uma mentalidade e estruturas eclesiais de um “permanente estado de missão”?

Neste trabalho, procurando dar uma resposta concreta a essa questão, partimos de uma breve apreciação das possibilidades das SMP, enquanto instrumento apto para viabilizar os objetivos da MC. Em se-guida, consideramos as linhas principais do projeto da MC, tal como expresso no Projeto Nacional de Evangelização “O Brasil na Missão Continental”, e no “Itinerário da Missão Continental”, com seus prin-cipais pressupostos. Entre esses, a Diocese, enquanto elabora o Plano de Pastoral de conjunto para toda Igreja local; e a Paróquia, enquanto “unidade operacional” da missão e local onde efetivamente se vive em comunidade. Em especial, levantamos alguns questionamentos sobre a dinâmica social em que se movem atualmente o espaço e as estruturas paroquiais. Buscando uma visão mais realista e lúcida do que seja hoje a situação da Diocese e das paróquias, procuramos também visualizar como as SMP podem prestar um serviço útil na implementação da MC. Finalizamos com algumas questões abertas sobre a “leitura orante da Bíblia”, o uso da simbologia religiosa, ou sobre possíveis modalidades alternativas de SMP para ambientes urbanos ou aqueles considerados como “fronteiras” da ação pastoral da Igreja.

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O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental?

Santas Missões Populares (SMP)

Nos últimos anos, em várias dioceses e também por iniciativa de algumas congregações religiosas, a experiência das SMP tem-se difun-dido como um método eficaz de renovação da vida eclesial. Sobretudo em meio rural, não faltam testemunhos sobre a riqueza de seus frutos no que diz respeito a uma revitalização individual de cada cristão, mas também das comunidades juntamente com suas Paróquias e Dioceses. De tal maneira que, mesmo antes da Conferência de Aparecida, quando já se falava da MC como a sua grande proposta conclusiva, as SMP foram consideradas como um modelo genuinamente brasileiro em vista de uma missão compreendendo todo o continente. E de fato, na leitura do “Itinerário da Missão Continental”, elaborado pelo CELAM (2009), encontramos ecos, não só de conteúdos da proposta das SMP, mas também de tantos outros projetos e planos pastorais desenvolvidos pela Igreja do Brasil, assim como de muitas Dioceses, ao longo das últimas décadas. O que o método das SMP apresenta, amadurecido por uma experiência acumulada de muitos anos de prática missionária, e tendo mesmo uma certa sistematização, é uma simplicidade de meios ao lado de uma clareza de objetivos, tornando-o acessível a qualquer contexto pastoral, por mais carente que seja.1

Poderíamos citar algumas das características da sua metodologia e experiência acumulada, que a candidatam a ser um instrumento fecundo para a difusão e concretização dos objetivos da MC. Antes de mais nada, a simplicidade de sua proposta, sintetizada com a expressão “a missão de Jesus”, como o cerne da espiritualidade do missionário, podendo ser compreendida por qualquer leigo. É interessante notar como esse prin-cípio dialoga com um aspecto central da MC e um de seus principais objetivos, sintetizado no seu lema “a alegria de ser discípulo missionário”. A MC tem como um de seus objetivos primeiros justamente gerar uma mentalidade e atitude permanente de missão em cada batizado, e para isso propõe o método da “leitura orante da Bíblia”. A conscientização de princípio das SMP para cada missionário, de que ele está agindo na “missão de Jesus”, através de uma ligação cotidiana entre a vida e o Evan-gelho, pode dialogar com a proposta da “leitura orante” da MC. Nesse sentido, os vários métodos de “leitura orante” poderiam contribuir ao

1 Nos servimos da contribuição de Luis Mosconi & Alii, “Uma profunda experiência da Trindade Santa vivida no coração das massas”. In: CNBB. Missões Populares da Igreja no Brasil: memória, projeto, seguimento”, 2007.

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Sidnei Marco Dornelas, CS

que as SMP chamam de “missão de Jesus”, aprofundando a consciência que deve animar qualquer metodologia missionária.

Outra característica importante das SMP está na busca em se apoiar nos recursos locais, em termos de meios e pessoas, para atingir a especifi-cidade da realidade na qual atuará. É o que, em outros termos, seria saber aproveitar da limitação ou simplicidade dos meios existentes, confiando na capacidade das pessoas comuns. Busca-se a utilização dos espaços disponíveis, o uso de dinâmicas simples como os momentos de partilha, de conversa e de oração comunitária sobre os temas da vida no dia a dia. Enfim, uma radical confiança nos pobres. Essa perspectiva das SMP pode ser o alicerce da MC na medida em que um dos seus objetivos principais é ir ao encontro dos cristãos afastados, em qualquer ambiente em que esses se encontrem. Mais do que destinatários, busca-se interlocutores. Tal “interlocução”, um diálogo franco e aberto, exige uma atitude de humildade que se apoie justamente na simplicidade dos meios, com uma atenção à especificidade de cada realidade local. Significa confiar e saber delegar a cada leigo a tarefa de entrar em tais ambientes, alargando o raio de ação da Igreja, incrementando seus espaços de participação, a fim de alcançar a meta da MC, tornar a paróquia uma “rede de comunidades”.

Mas, principalmente, uma característica da proposta das SMP, que pode habilitá-las de maneira especial à MC, é que elas buscam expres-samente ser uma “sacudida” na vida das pessoas e estruturas paroquiais e diocesanas, acomodadas numa “pastoral de mera conservação”. Nesse sentido, como método de mobilização que envolve indistintamente todos os grupos paroquiais, numa convocação que relativiza temporariamente o calendário e a rotina habitual de cada grupo, as SMP criam um tem-po especial de atividades que tendem a colocar em primeiro plano o fundamental da comunidade eclesial. Nesse “tempo especial”, as SMP, envolvendo num planejamento participativo todas as forças vivas da Igreja local, podem efetivamente alavancar uma nova forma de partici-pação, ao alicerçarem uma consciência renovada de Igreja que supere o particularismo de devoções, interesses e programas de grupos e movi-mentos. Numa perspectiva que privilegie a Igreja local no seu conjunto e sua missão de difundir o evangelho, mais do que a manutenção de suas estruturas paroquiais, essa “sacudida” pode ser realmente a ocasião de uma “conversão pastoral”.

Enfim, as SMP, apesar de sua potencialidade, continuam a ser um “instrumento” que pode ser tanto ou mais fecundo, na medida em

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O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental?

que ele se adapta e é mobilizado em função dos objetivos que a Diocese e Paróquias se propõem na dinâmica de uma MC. Em outros termos, as SMP não podem estar desvinculadas da realidade da Igreja local, e sobretudo de um planejamento pastoral que busque a continuidade entre a caminhada pastoral anterior e a proposta de avançar, no sentido de uma Igreja que integre outros ambientes e evangelize realidades de “fronteira”, criando seu próprio modo de estar “permanentemente” em estado de missão.

Diocese

O projeto da MC, tal como elaborado no “Itinerário da Missão Continental”, ao argumentar sobre a sua novidade em relação a outras iniciativas missionárias, afirma que procura sua realização como “pro-cesso pedagógico” em vista da implementação do principal objetivo de Aparecida, a “conversão pastoral”. Necessariamente, o ponto de referên-cia fundamental desse “processo pedagógico” é a Diocese, como unidade pastoral. Mais importante ainda, a Diocese deve ser a referência para a implantação de uma verdadeira pastoral orgânica, numa concertação e sinergia envolvendo todos os batizados, pastorais e seus planejamentos. Ou seja, na verdade o projeto da MC não faz mais do que confirmar, não só o que Aparecida declara, mas também o que é desde sempre reco-nhecido como a principal autoridade em termos de ordenamento de toda atividade pastoral: a Diocese. Ao indicar a Diocese como sua unidade pastoral, como a referência para a elaboração do projeto de pastoral de conjunto da Igreja local, o projeto da MC em outros termos mostra que tem como objetivo a renovação das estruturas já existentes na Igreja.

Portanto, é no âmbito do planejamento da ação pastoral pela Diocese, numa convocação ampla de todas as forças vivas da Igreja local, que devem ser decididos quais os objetivos, quais as estratégias, a metodologia, a distribuição das atividades, sua programação e plano de ação. É nesse âmbito que deve ser pensado o modo de utilização do instrumental das SMP. As SMP devem se colocar a serviço para viabilizar os objetivos em torno dos quais o projeto missionário da Igreja local foi construído, em vista da continuidade que ela almeja alcançar. Entendido como processo pedagógico, as SMP cumpririam também uma função de laboratório para a formação de lideranças, no sentido de as prepararem para uma dinâmica mais participativa de Igreja na realidade local, e nos novos ambientes em que penetrarem.

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Na elaboração de tal projeto devem entrar necessariamente: a análise social e eclesial da realidade da Diocese, com detalhamento dos seus pontos sensíveis; um posicionamento frente às conclusões de Aparecida, em que possa sobressair o “rosto” da Igreja local, como um “rosto específico do continente” a ser contemplado na MC; a proposição de objetivos, prioridades, estratégias, metas consensualizadas por todos; o delineamento de um itinerário formativo dos missionários, em vista também de sua continuidade como agentes de pastoral; uma sondagem dos ambientes e grupos que estão na “fronteira” ou fora do âmbito ecle-sial, e que necessitam de modalidades de ação pastoral alternativas. O itinerário formativo do missionário deve levar a um clima de abertura suficiente para saber como acolher e se relacionar com as realidades mais difíceis e complexas, justamente aquelas que se encontram na “fronteira” da ação pastoral.

Para identificar essas realidades de “fronteira”, o próprio documen-to de Aparecida oferece pistas preciosas, identificadas como os “rostos sofredores que doem mais” (item 8.6): pessoas que vivem na rua nas grandes cidades; migrantes; enfermos; dependentes de drogas; detidos nas prisões. Dentre esses, a categoria que apresenta um arco mais amplo de realidades específicas é a denominada de “migrantes”, se considerarmos o vasto leque de pessoas atingidas pela mobilidade humana: imigrantes, famílias de emigrantes, migrantes urbanos, migrantes sazonais e tempo-rários, trabalhadores do mar, nômades, caminhoneiros, vítimas do tráfico de pessoas, refugiados, entre outros. Existem, inclusive, experiências bem sucedidas de acompanhamento de migrantes temporários nas suas realidades de origem e destino, que dialogam com a prática consagrada nas SMP. A difusão dessa modalidade de missões populares entre mi-grantes temporários rurais, suas famílias e comunidades, tem permitido realizar uma mútua sensibilização entre as Dioceses de origem e destino dos migrantes, em vista de uma maior colaboração no seu acompanha-mento.2 Essa experiência mostra-se tanto mais fecunda quanto, não só permite alargar o horizonte do país e do continente entre Igrejas distantes e seus respectivos agentes de pastoral, facilitando o intercâmbio e troca de experiências, criando uma proximidade única com a condição bipolar vivida pelos migrantes e suas famílias, como também vem constituindo

2 Para conhecer mais o trabalho da Pastoral do Migrante Temporário Rural e sua experiência de missões populares, consultar o material do Serviço Pastoral dos Mi-grantes (SPM) e da Pastoral do Migrante sediada em Guariba (SP). Cf. <httm://www.pastoraldomigrante.org.br>.

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uma modalidade de ação missionária que pode ser adaptada para outros contextos marcados pela mobilidade humana, como os imigrantes latino-americanos e os brasileiros no exterior.

O planejamento da MC não pode deixar de prever também todas as estruturas e recursos necessários, ao ter presente a complexidade que ela pode atingir, mesmo que, no espírito das SMP, reconheça que a grande riqueza da ação missionária se encontra nos meios e pessoas simples disponíveis no local. Assim, faz parte do esforço de convocação e mobilização a realização de uma agenda de retiros, de cursos de capa-citação, de assembleias e itinerários de ações conjuntas. Nesse sentido, a metodologia das SMP pode se tornar a oportunidade para unir toda a Diocese num esforço conjunto e concertado de ações. Essa metodologia pode agir já como uma forma de convocação e animação de todas as forças vivas da Igreja local: paróquias, movimentos, pastorais, grupos específicos, entidades. O consenso de todos em torno da metodologia das SMP pode facilitar não só a realização propriamente dita da missão em toda a Diocese, mas pode também contribuir para uma linguagem e experiência comum que encaminhe para o momento posterior, para dar forma a uma pastoral planejada em vista de sua continuidade futura. Justamente, nesse sentido, deve haver o consenso em torno da Paróquia, como o local e foco para o qual converge a proposta de realização da MC e sua posterior continuidade. Nesse ponto é que o projeto da MC aponta como meta a “conversão pastoral” das estruturas paroquiais.

Paróquia

A grande meta missionária da MC é a “conversão pastoral” das estruturas paroquiais, ou seja, a passagem de uma pastoral de “conserva-ção” para uma “pastoral decididamente missionária”. Logo, é da Paróquia que se trata, de sua delimitação territorial, do uso de seus recursos físicos e econômicos, de suas atribuições e limitações jurídicas, de seu papel de organizar a ação pastoral. A Paróquia, porém, antes de ser apenas essa es-trutura de ação pastoral, é o local de encontro dos cristãos que vivenciam sua experiência comunitária, onde praticam e celebram sua fé, além de pertencer ao meio social onde se sentem chamados a evangelizar. Ela é o espaço no qual eles se podem identificar emocionalmente, e a partir do qual podem se sentir interpelados e motivados pessoalmente a participar, como parte do grupo do qual fazem parte. É no espaço da Paróquia, en-quanto unidade operacional da MC, que a missão de fato deverá ocorrer,

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que o processo pedagógico e formativo também se realizará, e onde uma nova estrutura de organização eclesial e de ação pastoral poderá ter lugar. É nesse espaço local que se poderá medir a incidência da ação pastoral da Paróquia e seu comprometimento com a MC.

No entanto, nunca é demais atentar para a realidade efetiva da Paróquia nos dias de hoje, para o jogo de relações que os seus atores estabelecem no interior de seu espaço, mas também com outras instâncias e espaços de ação eclesial. A Paróquia hoje é muito mais do que simples-mente uma unidade jurídica e territorial, de prestação de serviço social e religioso, e está passando, às vezes imperceptivelmente, por grandes transformações. Ensaiando um esboço de demonstração, expomos o seguinte esquema:

A renovação paroquial desejada pelo projeto da MC reflete o que buscavam os Bispos da América Latina reunidos em Aparecida: que a Paróquia possa ser concretamente uma “escola de comunhão”, através de modalidades variadas de acolhida e de organização da ação pastoral, como a setorização de paróquias, ou a proposição de um plano orgânico comum a diversas paróquias, ou sua estruturação como “rede de comu-nidades”, entre outras (Ap 517 e 518). São tentativas de responder a uma realidade que se transforma rapidamente, e que vem se tornando cada vez mais complexa. Por trás de tais propostas, percebe-se como os Bispos de fato já encontram modalidades alternativas de participação no espaço

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eclesial que são transversais a qualquer planejamento pastoral. No quadro acima, esboça-se sinteticamente o jogo de relações diferenciadas no qual a Paróquia se encontra envolvida. Em primeiro lugar, toda Paróquia, como unidade territorial e canônica, deve responder a uma relação de autoridade à qual está submetida, na figura da Diocese. Toda Paróquia é uma porção da Igreja local, atuando numa relação de obediência e subsidiariedade. É nesse primeiro plano que todo planejamento e ação pastoral deve ser compreendido, enquadrando-se numa normatividade prevista anterior-mente. É dentro desse quadro de normatividade canônica que se entende o raio de possibilidades do planejamento pastoral da Paróquia, mesmo aquele a que se reporta à MC, pois é em relação à Diocese que o projeto da MC fundamenta seus objetivos de “conversão pastoral”.

É nesse sentido que a meta da Paróquia como “rede de comunida-des” pode ganhar novos e diferentes sentidos: rede de CEBs? de grupos de oração? ou dos diferentes círculos de Movimentos e Comunidades Vivas? Todos podem ganhar uma legitimação no âmbito da MC? E que dizer de ambientes antes excluídos ou ignorados, qual a sua forma de incorporação nessa possível “rede”? Na verdade, a pulverização da participação comunitária numa enormidade de grupos, pastorais e mo-vimentos, grande parte alheios ou apenas parcialmente envolvidos em qualquer planejamento paroquial ou mesmo diocesano, transversais ao espaço eclesial, interpela qualquer projeto missionário, mesmo aquele que se apoia na metodologia das SMP. Pois, nessa nova realidade, não é mais tão somente (às vezes, nem principalmente) o território, o que determina o nível de participação comunitária e nem qual seria o seu teor. Na dinâmica dialética entre a necessidade de abertura e de fechamento do espaço eclesial, de sua fragmentação, diversificação e busca de unidade, a MC objetivada pela Igreja deve conciliar modalidades alternativas de animação missionária, se ela deseja dialogar e alcançar alguma incidência nesse novo contexto eclesial.

No entanto, a Paróquia ainda surge como aquela estrutura que oferece os recursos mais estáveis para qualquer forma de participação eclesial. Como local físico, que reúne uma série de recursos aptos à participação social e religiosa, ainda é referência fundamental para qualquer forma de convivência comunitária. Dentro de um determinado território, mesmo no espaço urbano, é ainda a infraestrutura mais apta para qualquer modalidade de participação e articulação pastoral. Nesse sentido, qualquer que seja a forma delineada do projeto missionário, ela é o referencial mais importante na construção da comunidade eclesial.

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Assim, na elaboração de um projeto missionário paroquial, enquanto unidade operativa do projeto diocesano, além do necessário levanta-mento da realidade local, a fim de tornar o plano eficaz, poderiam ser apresentados três objetivos básicos: 1) a “conversão das estruturas pa-roquiais”, flexibilizando-as e tornando-as aptas a uma realidade eclesial cada vez mais plural e móvel; 2) em vista de uma “rede” de células de comunidade, buscando a colaboração, a convivência e a participação de todas, independente de sua natureza, em comunhão numa mesma tarefa de evangelização; 3) situando-se no interior do projeto diocesano da MC, numa espiritualidade de comunhão, enquanto “rosto específico da Igreja local” e sua unidade operativa. Em torno desses objetivos, poderiam ser detalhados outros aspectos importantes, como objetivos específicos para determinados locais e ambientes, estratégias de ação e animação da pastoral, metas a serem alcançadas, estruturas e recursos, itinerários formativos em todos os âmbitos.

É nesse nível paroquial que as SMP podem mostrar propriamente sua potencialidade como uma metodologia que, para além de um ins-trumental operacionalizador do projeto paroquial, permite que se criem laços comunitários, convocando e envolvendo todos aqueles que vivem num mesmo território ou partilham de um mesmo ambiente. Se a MC, mais do que destinatários, busca interlocutores, as SMP, ao repensarem sua metodologia para atingir novos ambientes, situações inusitadas e formar novos agentes para novas formas de ação missionária, podem ser um verdadeiro instrumento para uma vida comunitária mais participativa, na medida em que tomam forma a partir das demandas reais das pessoas, das contradições que perpassam seu cotidiano, e do protagonismo que exercem no interior de suas próprias condições de vida.

Experimentando a versatilidade das SMP

No “Itinerário da Missão Continental”, várias ações de conjunto são previstas a fim de ajudar na sua implementação: a revisão de planos, programas; planejamento de médio e longo prazo; revisão de procedi-mentos de organismos diocesanos; a promoção de intercâmbio entre dioceses, organismos, conferências episcopais; o desenvolvimento de instâncias de consulta (observatórios, assessorias); encontro de lideran-ças e organizações sociais. Pouco se pensou no que existe propriamente como metodologia e experiência real de missão que, ao mesmo tempo em que cubra um território amplo como uma diocese, possua também

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a capacidade de atingir capilarmente o tecido social de cada pequena comunidade. Nesse sentido, as SMP trazem desde o princípio essas qualidades. Porém, a incongruência lembrada no início deste texto, entre a busca de “permanência” da MC e a “efemeridade” da realização das SMP, ressurge em alguns pontos importantes, o que leva a questionar sua versatilidade em relação à proposta da MC. Tentaremos discutir três desses pontos.

1) Leitura Orante da Bíblia e “Missão de Jesus”

Um aspecto fundamental na Conferência de Aparecida, e nem sempre destacado, é a sua preocupação com a formação da identidade de todo batizado, enquanto “discípulo missionário”. Todo discípulo missio-nário encontra sua identidade e se forma no encontro pessoal com Jesus Cristo (DAp. 28-29). Na verdade, essa é uma afirmação que serve de eixo ao documento inteiro, desde a primeira página até suas conclusões finais, o que acaba refletindo diretamente nas metas propostas da MC. Se tomarmos como indicativo o lema do projeto da MC, “a alegria de ser discípulo missionário”, parece que a grande finalidade da MC, mais do que atingir os “outros” que estariam fora da Igreja, estaria em despertar e dar solidez à fé dos próprios missionários. Talvez nesse sentido se possa entender que, na MC, se declare que ela procura antes “interlocutores” que “destinatários”. Em todo caso, a preocupação da formação dos “dis-cípulos missionários” como estratégia fundamental da MC está implícita no entendimento da missão como “processo pedagógico”. Como tal, teria como público-alvo os jovens e afastados da Igreja, e se desenvolveria em etapas progressivas, começando pelo encontro pessoal com o Cristo, passando pela conversão e discipulado, até o envio à missão.3 E é nesse sentido que se pode entender a centralidade da “leitura orante da Bíblia” como prática cotidiana do discípulo missionário.

No projeto da MC, a prática da “leitura orante da Bíblia”, como “Lectio Divina”, é apontada expressamente como o método que deverá motivar e dar uma sustentação permanente à identidade do “discípulo missionário”. É o método proposto para um continuo encontro pessoal com o Cristo, que deverá acompanhar o missionário no exercício de sua missão na Igreja. Já mencionamos anteriormente como essa preocupa-

3 Esta dimensão pedagógica da MC está desenvolvida no Projeto Nacional de Evan-gelização “O Brasil na Missão Continental, na parte V e VI, referente à pedagogia da missão permanente.

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ção encontra ressonância num traço fundamental das SMP, na medida em que cada missionário deve se colocar primeiramente como quem trabalha na “missão de Jesus”. No entanto, nas SMP, o contato com o Evangelho não busca a mesma profundidade da “Lectio Divina”, pelo fato de não ser mais que um apoio que impulsiona à prática missionária e à participação comunitária. As SMP parecem dialogar mais de perto com a tradição recente da leitura popular da Bíblia, tal como praticada nos grupos de base que formam o tecido social das CEBs. Assim, a metodologia das SMP visa tão somente realizar, num período limitado de tempo, um esforço coletivo, um verdadeiro “mutirão”, a missão que será uma “sacudida” nas estruturas paroquiais. Dessa forma, não existe uma preocupação maior em dar uma metodologia sistemática (mesmo que simplificada) de leitura orante.

O questionamento que ora levantamos seria se, na dinâmica das SMP como tais, existiria versatilidade suficiente para incluir a prática da leitura orante, ou outras variantes, que se adaptassem ao momento singular da realização das SMP. Ou então, se deveria haver, dentro desse “processo pedagógico”, uma transição entre um contato ainda superficial com a Palavra de Deus, como propulsora da missão, e outro momento, o da continuidade da prática pastoral, de sua estruturação, em que a motivação e aprofundamento da leitura e oração bíblica poderiam encontrar um consenso na metodologia da “Lectio Divina”. De toda ma-neira, pode-se constatar que existe mais de uma metodologia que pode ser qualificada como forma de “leitura orante”, atualmente em voga nos vários grupos e movimentos atuantes na Igreja. Em nível de CNBB, existe a iniciativa concreta da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade e da Justiça e da Paz, em conjunto com a Comissão Episcopal Bíblico-Catequética, de uma proposta de “Leitura Orante e Popular da Bíblia na Pastoral Social”. A experiência de aprofundamento vocacional do discípulo missionário no âmbito das pastorais sociais, por meio de uma forma adaptada de “leitura orante”, permite pensar que mesmo a metodologia das SMP possa, dentro de sua dinâmica, dar outro porte à “missão de Jesus” através de formas adaptadas de “leitura orante” da Palavra de Deus.

2) O “triptico” e a piedade popular

O documento de Aparecida também dedica muitas páginas à importância da religiosidade popular, como um lugar muito especial

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de encontro com Jesus (DAp. 258 a 265). Através de sua simbologia e de suas manifestações, a fé das classes populares vem se alimentando espontaneamente ao longo de várias gerações, nos diferentes rincões da América Latina. De fato, os momentos de mobilização de massa do povo católico em nosso país geralmente se apoiam nas devoções populares, que encontram na simbologia religiosa sua expressão mais forte. Na dinâmica das SMP, uma das lições tiradas de sua experiência acumulada, é o valor dessa simbologia como um caminho fecundo para se chegar à intimidade dos valores religiosos da população mais pobre, e poder assim dialogar de maneira mais profunda com suas concepções de mundo. A simbologia religiosa popular mostra-se um caminho rico para realizar a almejada inculturação da fé. Por ela, não só as classes populares encontram sua melhor forma de expressão, e crescem assim na fé dentro da Igreja, mas também a Igreja pode se tornar um espaço mais participativo e aprender novas formas de celebrar e vivenciar a fé, com um rosto mais popular.

Esse é também um objetivo da MC, ao propor que cada Igreja local realize a sua “conversão pastoral”, incluindo, entre tantos interlo-cutores, diferentes grupos das classes populares no interior do espaço eclesial. No entanto, a proposta do uso do “Tríptico” como o “símbolo” mesmo da MC, embora apoiada na piedade popular de algumas regiões da América Latina, parece desconhecer que um dos traços principais da religiosidade popular é seu caráter acentuadamente regional. É possível que, com o crescimento da penetração da Mídia eletrônica nos meios populares, venham a existir devoções de massa que alcancem difusão nacional ou continental. Mas, não existem garantias para saber quais símbolos ou devoções populares, de caráter regional ou particular, hão de se sobrepor aos outros. Ora, a proposta do “Tríptico”, com todas as suas boas intenções, não pode pretender substituir uma enormidade de devoções de vários tipos já disseminadas nos mais diversos ambientes e grupos. As SMP, numa metodologia que se desenvolveu no contato com as expressões da religiosidade popular, procura dialogar com essa simbologia, vendo nela um caminho para gerar uma participação mais autêntica no interior da comunidade. No seu uso pontual no tempo e no espaço próprio da realização da missão, no respeito à autonomia de tais expressões, nem as SMP parecem monopolizar o uso dessa simbologia, nem ela parece ocupar um lugar maior do que deveria, na renovação comunitária e paroquial.

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No entanto, apesar de aparentemente “postiço”, a versatilidade e generosidade de espírito de membros de várias comunidades de diversas Dioceses em todo país, que assumiram mais intensamente a proposta da MC, permitiram que houvesse uma grande aceitação do “Tríptico” em sua atuação. Inserido na prática religiosa dos grupos de oração, através da forma de uma “capelinha” (como tantas outras capelinhas que percorrem as casas no interior do Brasil), pode exercer a função de um “quadrante” pedagógico para a evangelização. Sua intenção inicial de se tornar o sím-bolo mesmo da MC, para atingir o seu objetivo, numa dinâmica própria das SMP, não pode estar desvinculada de toda a riqueza da religiosidade popular já existente, nem das muitas práticas devocionais que as classes populares e diferentes extratos da população não se cansam de recriar. Saber compor e dialogar com essa riqueza da religiosidade popular, mes-mo que ocasionalmente, como no caso das SMP, é a condição necessária para que o “Tríptico” possa ensejar uma ocasião a mais para realizar a inculturação da fé em meio popular.

3) Modalidades alternativas de SMP e pastoral ambiental e de fronteira

Uma das objeções feitas à metodologia das SMP é a dificuldade de sua aplicação em determinados ambientes, sobretudo aqueles que se reportam ao espaço urbano das grandes cidades. Respondendo a essa objeção, argumenta-se que existe um apego demasiado ao método, não se levando suficientemente em conta o contexto da realização da missão, no caso, o mundo urbano.4 De toda maneira, essa resposta apenas confirma a dificuldade real demonstrada por determinados tipos de ambientes, ou determinados grupos que vivem à margem dos padrões correntes da so-ciedade, especialmente no contexto das grandes metrópoles, às formas já consagradas de ação evangelizadora. A simplicidade de meios, recursos e agentes que marcam a metodologia das SMP, encontra menos dificuldade na zona rural, em comunidades ainda fortemente marcadas por relações de vizinhança. Um contexto semelhante é possível ser encontrado nos bairros rurais de pequenas e médias cidades do interior, ou ainda em muitas periferias urbanas de grandes cidades brasileiras. Também ali, metodologias de missão oriundas da experiência das SMP encontram ressonância na renovação da vida comunitária. Porém, a proposta da

4 Missões Populares da Igreja no Brasil, p. 63.

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MC almeja chegar além desses ambientes em que a estratégia da visita-ção de famílias é ainda o meio mais propício de realizar a missão. Para além desse público, o itinerário da MC prevê que setores profissionais, ambientes específicos, grupos minoritários, bem como determinados territórios de entrada restrita, possam também ser evangelizados.

Existe uma dificuldade real da metodologia das SMP, tal como proposta normalmente, em atingir ambientes como esses. A cidade glo-balizada aboliu algumas fronteiras físicas, mas ergueu outras, que filtram ou barram o acesso de múltiplas formas de assédio, a que determinados grupos específicos frequentemente se veem expostos. Normalmente, em tais ambientes e setores, para se aproximar de determinado território vigiado, grupo minoritário etnicamente marcado, ou classe profissional organizada, a solicitação de visita ou contato que permita a evangelização deve partir do seu interior. Numa sociedade em que até mesmo os servi-ços religiosos são negociados numa determinada forma de “mercado”, a Igreja deve encontrar as suas formas próprias e adequadas de mediação, para dialogar com essa multiplicidade de ambientes. Tal necessidade se apresenta, seja para se entrar no território de uma favela ou de um condomínio fechado, seja para se ganhar a confiança de um grupo de imigrantes ou de ciganos, para se fazer presente no setor da saúde, da educação ou de um círculo de empresários. As SMP devem repensar completamente suas estratégias e a formação de seus agentes, se desejam ser um instrumental capaz de obter alguma forma de incidência nesses contextos. Na complexidade da atual realidade urbana, existe um saber e uma confiança que não podem ser dispensados (e que provavelmente não se adquirem na escola, mas sobretudo numa prática de persistente aproximação), e que se tornam um instrumental fundamental para o diá-logo com determinados grupos humanos. Não será possível pensar uma estratégia missionária nesses ambientes, sem esse tipo de mediação.

A Igreja no Brasil e na América Latina, mesmo no momento da “sacudida” do impulso da MC (com a ajuda das SMP ou não), não pode dispensar o diálogo e o apoio às pastorais ambientais e de fronteira que se organizam em vários níveis, e já prestam assistência a essas realidades. O grande serviço que a MC pode prestar nesse sentido, é sensibilizar as várias instâncias das Igrejas locais – Conferências, Regionais, Dioceses, Paróquias – para esse tipo de serviço, como espaços alternativos de enga-jamento e frentes de ação pastoral, e que desde sempre atuaram com uma consciência clara de que estão em “permanente estado de missão”.

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Considerações finais

O projeto da MC procura claramente renovar e mesmo restabelecer as principais instâncias de articulação pastoral, a Diocese e a Paróquia, no sentido de que elas também deem um passo qualitativo, passando de uma “pastoral de mera conservação” para uma “pastoral decididamente missionária”. Nesse sentido, ele se enquadra inteiramente dentro do es-pírito da Conferência de Aparecida. As SMP, mesmo reconhecendo seus limites e carências, podem constituir um instrumental valioso para a sua realização. A Igreja no Brasil, nos seus projetos de animação pastoral, em nível nacional, regional ou diocesano, ao longo das últimas décadas vem buscando alcançar esses mesmos objetivos, e é nesse contexto que se pode reconhecer toda a riqueza representada pelas SMP. Não há como negar, porém, que toda estruturação canônica e “ordinária” da ação pastoral na Diocese e na Paróquia, está apoiada na pessoa do Bispo e do Pároco, respectivamente. Uma concepção mais coletiva e partilhada da ação pastoral, como ansiada pela MC, só pode se tornar realidade se eles, pessoalmente, se comprometerem com sua efetivação. Da poten-cialidade, mas também contingência, de seu entusiasmo, compromisso e sensibilidade pela vida do Povo de Deus, dependem a possibilidade de realização plena da MC e sua continuidade futura. Tantos planos de pastoral e projetos de animação missionária aprovados pela CNBB têm confirmado a constatação dessa contingência histórica e estrutural na vida da Igreja. Isso é tanto mais fundamental que, para além de um grande evento missionário, como os realizados pelas SMP, a MC, uma vez mais, coloca como objetivo a continuidade da renovação da ação missionária, incorporando-a nas estruturas, dinâmicas formativas e planejamentos pastorais. Tal dinamismo, atuando como “pastoral decididamente missio-nária”, nesse sentido, não é mais tarefa das SMP, mas obra a ser pensada e realizada na continuidade do cotidiano.

Referências

CELAM – Conselho Episcopal Latino-americano. Documento de Apa-recida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/Paulus, 2008.

CELAM. Itinerário da Missão Continental. Brasília: Edições CNBB, 2009.

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O método das Santas Missões Populares a serviço da Missão Continental?

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Missões Populares da Igreja no Brasil: memória, projeto, seguimento. Brasília: Edições CNBB, 2007.

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2008-2010. Brasília: Edi-ções CNBB, 2007.

CNBB. Projeto Nacional de Evangelização: O Brasil na Missão Conti-nental. Brasília: Edições CNBB, 2008.

Endereço do AutorParóquia Bom Jesus dos Migrantes

Quadra 04 – Área Especial 02Caixa Postal 7552

CEP 73001-970 Sobradinho, DF

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 67-80.

* A autora é Doutora em Teologia, professora da Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro, do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro, da Faculdade de São Bento – Rio de Janeiro e do Instituto Filosófico e Teológico São José, de Niterói, e membro da Comissão Arquidiocesana para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Resumo: A V Conferência do CELAM em Aparecida (2007) tem uma perspectiva ecumênica. Dedica duas seções do documento conclusivo ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso. Entre seus pressupostos teológicos está a participação da comunhão dada por Deus. Os caminhos da unidade são de santidade, de diálogo e de colaboração. Também é de interesse ecumênico o propósito geral do documento de valorizar a vida, ao conduzir os discípulos missionários à vida plena em Cristo.

Abstract: The CELAM V conference in Aparecida (2007) has an ecumenical perspective. It dedicates two sections of the concluding document to ecumenism and interreligious dialogue. Among its theological pressupositions is the partici-pation of the communion given by God. The paths of unity are those of sanctity, of dialogue and of collaboration. The general proposal of the document in valu-ing life through leading the missionary disciples to full life in Christ is also of ecumenical interest.

A perspectiva ecumênica do Documento de AparecidaMaria Teresa de Freitas Cardoso*

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A perspectiva ecumênica do Documento de Aparecida

Introdução

O ecumenismo é uma das solicitudes pastorais da V Conferência do CELAM, realizada em Aparecida no ano de 2007. O documento conclusivo (DA) tem uma perspectiva ecumênica seja por dedicar seções específicas ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, seja porque o pro-pósito geral do documento se apresenta com um interesse ecumênico.

A visão ecumênica do documento se faz a partir de uma teologia de comunhão. O diálogo inter-religioso se orienta para uma colabora-ção. A intenção geral do documento é de buscar a vida em plenitude, e nisso inclui uma valorização da vida, que pode ser um valor comum no diálogo. Este artigo pretende fazer uma breve análise do tratamento que o CELAM dá a esse tema, mostrando pressupostos e caminhos que se delineiam.

1 A solicitude ecumênica na V Conferência do CELAM

Os bispos do CELAM em Aparecida tiveram solicitude com a questão do ecumenismo e com a possibilidade de promover a pastoral de hoje levando em conta também o ecumenismo. Tal interesse se mostrou desde o acolhimento de observadores não católicos, até a dedicação de seções específicas para o tratamento do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.

A V Conferência escutou a voz de oito observadores não católicos: um arcebispo grego ortodoxo, um arcebispo anglicano, o presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil e moderador da Comissão Central do Conselho Mundial de Igrejas, um pastor metodis-ta, um pastor da Igreja Missão Pentecostal, uma pastora presbiteriana co-presidenta do Conselho Mundial de Igrejas, um pastor presidente da União Batista Latino-Americana e um representante da Comunidade Hebraica (do Brasil).1

1 Para a lista oficial dos participantes da V Conferência do CELAM em Aparecida, cf. site do CELAM <www.celam.org>, acesso em 8/9/2007. Lá não consta o nome do representante judeu. Para o texto do Documento de Aparecida (DA), cf. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Brasília: Edições CNBB – São Paulo: Paulinas – São Paulo: Paulus, 2007.

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Os bispos acolheram os depoimentos de cada um e levaram para as suas conclusões a decisão de uma ação ecumênica, levados por motivos teológicos e pastorais, e com a ideia de realizar melhor serviço de vida em nossa sociedade. Valorizaram a colaboração dos cristãos, a estima e a solidariedade com os judeus e o respeito e a valorização mútua para com as religiões autóctones. O documento de Aparecida dedicou o espaço de algumas páginas ao ecumenismo e o diálogo inter-religioso.

2 O ecumenismo no DA: pressupostos, objetivos, caminhos

Tratamos primeiramente do ecumenismo em sentido estrito, ou busca de maior unidade entre os cristãos. Que pressupostos estão na base da solicitude ecumênica no DA? Que ideias teológicas fundamentais iluminam suas proposições? Que preocupações marcam suas decisões? Que pistas concretas de ecumenismo devem ser percorridas?

O propósito geral da Conferência é impulsionar “a ação evangeli-zadora da Igreja, chamada a fazer de todos os seus membros discípulos e missionários de Cristo, Caminho, Verdade e Vida, para que nossos povos tenham vida nEle” (DA, n. 1). Pede-se a Maria, “perfeita discípula e peda-goga da evangelização, que nos ensine a ser filhos em seu Filho e a fazer ‘o que Ele nos disser’ (Jo 2, 5)”. “Fazer o que Ele disser” implica em viver a unidade. Ser discípulo como ser missionário é atender ao Evangelho. O Evangelho mostra que Jesus, diante de Sua Hora, orou pela unidade com o amor do Pai e do Filho. A unidade tem repercussão missionária: “que todos sejam um para que o mundo creia” (Jo 17, 21).

A comunhão eclesial, que foi objeto do quinto capítulo do DA, é vista como pressuposto do ecumenismo: “a compreensão e a prática da eclesiologia de comunhão nos conduz ao diálogo ecumênico” (DA, n. 227). Ela é vista também em relação com o batismo, que estabelece uma relação entre cristãos. Trata-se de um vínculo sacramental. O batismo e o reconhecimento do batismo são importantes na relação ecumênica. Feitos filhos no Filho, e ligados sacramentalmente no batismo, o batismo irmana.

Essa ligação pelo batismo torna irrenunciável o caminho ecumê-nico. Isso se mostra na encíclica Ut Unum Sint, de João Paulo II. O DA recorda, junto com a encíclica, que “com o Concílio Vaticano II a Igreja Católica empenhou-se, de modo irreversível, a percorrer o caminho da

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busca ecumênica, pondo-se assim à escuta do Espírito do Senhor, que ensina a ler com atenção os sinais dos tempos”.2

À fraternidade, o CELAM contrapõe a contradição da divisão ou da falta de unidade. A falta de unidade “representa um escândalo, um pecado e um atraso do cumprimento do desejo de Cristo ‘que todos sejam um’” (DA, n. 227). É “escândalo”, porque contradiz o evangelho que se apregoa; é “pecado”, porque desobedece ao evangelho de Cristo e vai contra o seu desígnio; é “atraso”, porque entre o “já” e o “ainda não” da dimensão escatológica da Igreja, está o seu crescimento, na ação do Espírito, mas o que divide dificulta o crescimento nos fiéis e obscurece o caminho da Igreja para a sua plenitude.

O DA acentua a oração de Jesus (Jo 17,21): “a fim de que todos sejam um”. E ali também se insinua o fundamento da unidade na comu-nhão entre o Pai e o Filho, ao se acrescentar: “como tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que eles estejam em nós”, e se explicita a ressonância missionária do texto: “para que o mundo creia que me enviaste”.

O DA faz ver que o fundamento do ecumenismo é teológico. Seria insuficiente ainda a sua afirmação por “exigência simplesmente sociológica”. A razão é antes “evangélica, trinitária e batismal” (DA, n. 228). Depois de mostrar isso, o documento volta a mencionar a eclesiologia de comunhão: o ecumenismo “expressa ‘a comunhão real, ainda que imperfeita’, que já existe entre os que foram regenerados pelo batismo”, e também faz “o testemunho concreto de fraternidade”. Exis-te uma comunhão real, ainda que imperfeita. Essa comunhão deve ser visibilizada. O testemunho de unidade compartilhada poderia tornar-se um sinal na missão. Afinal, temos tanto em comum, pois, como se tem dito desde o papa João XXIII, “é muito mais o que nos une do que o que nos separa”.

Além disso, o diálogo, marcado pelo “caráter trinitário e batismal do esforço ecumênico”, emerge como “atitude espiritual e prática”, trilhando um “caminho de conversão e reconciliação”. O Vaticano II sancionou o tema da conversão, junto com a oração, dentro do chamado

2 Cf. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica “Ut unum sint” (UUS), sobre o empenho ecumê-nico (25/5/1995), São Paulo: Loyola, 1995, n. 3. A intenção ecumênica do concílio se confirmava no Decreto “Unitatis Redintegratio” (UR), sobre o ecumenismo, in Com-pêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações, Petrópolis: Vozes, 21ª, 1991, n. 1 e na Constituição Sacrosanctum Concilium, in Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações, Petrópolis: Vozes, 21ª, 1991, n. 1.

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“ecumenismo espiritual”.3 Também a encíclica Ut unum Sint falava em diálogo para “exame de consciência”,4 “diálogo da conversão”,5 e pres-supunha sempre “a vontade de reconciliação”.6 O diálogo ecumênico ultrapassa a explanação de doutrinas. Ele busca a história para reconhe-cer a verdade dos fatos, das práticas, acertos e faltas; acertos que serão justamente valorizados, faltas pelas quais se pedirá o perdão.

A meta final é a da celebração conjunta da Eucaristia, que cons-titui, na encíclica sobre o ecumenismo, um “desejo ardente” de todos os cristãos.7 O Conselho Mundial de Igrejas expressa o mesmo desejo pela sua comissão Fé e Constituição: chegar um dia à meta da “unidade visível em uma fé e uma comunidade eucarística, expressa no culto e na vida comum em Cristo”.8 Para alcançar a meta, o DA pensa no “com-promisso do Batismo”.

Em seguida, o DA propõe uma apologética autêntica. Hoje as pessoas se colocam muito frequentemente contra a apologética. Teme-se uma apologética polêmica. Hoje se pede uma apologética apropriada a nossos tempos, que evite dividir os cristãos ou agredir o mundo. O DA pede uma apologética inspirada nos Pais da Igreja como uma “explica-ção da fé”. Não seja de “per se” negativa. Seja para “dizer o que está em nossas mentes e nossos corações de forma clara e convincente”, como diz Paulo, “seguindo a verdade no amor” (Ef 4, 15). Tal apologética se caracteriza pela serenidade, a limpidez e a fidelidade evangélica na caridade. De fato, a verdade e a proposta do evangelho ficariam mais translúcidas na boa palavra e na prática cristã. Explica-se o sentido do Evangelho. Valoriza-se a fidelidade da vida. A verdade evangélica se mostra mais clara e comunicadora de vida: “uma apologética reno-vada para que todos possam ter vida nEle” (DA, n. 229). Também o ecumenismo se beneficia dessa nitidez, da serenidade e da caridade, da sinceridade e da santidade.

3 Cf. UR, nn. 6-8.4 Cf. UUS, n. 34.5 Cf. UUS, n. 35.6 Cf. UUS, n. 29.7 Cf. UUS, n. 45.8 De modo mais completo, no original em inglês: “to proclaim the oneness of the Church

of Jesus Christ and to call the churches to the goal of visible unity in one faith and one eucharistic fellowship expressed in worship and in common life in Christ, in order that the world may believe”. Cf. M. TANNER, “What is Faith and Order?”, no site de World Council of Churches / Faith and Order, <www.wcc-coe.org>, acesso em 28/11/1999.

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O CELAM dedica-se ao “ecumenismo espiritual”, para acentuar que “a unidade é, antes de tudo, um dom do Espírito Santo”. Por isso, “oramos por essa intenção” (DA, n. 230). Como o decreto UR, contempla a “conversão do coração, santidade de vida e orações particulares e públi-cas pela unidade dos cristãos”, que formariam o “ecumenismo espiritual” e seriam “como que a alma de todo o movimento ecumênico”.9

Para tudo isso se requer empenho – pessoal e comunitário. Melhor que a agressão ou o preconceito é o cultivo da própria espiritualidade e o respeito e a consideração também da vida espiritual do outro. E, na aproximação e na estima, haveria os frutos espirituais de enriquecimento mútuo, do encorajamento mútuo, da santidade que desperta para a san-tidade. No ecumenismo espiritual destaca-se a oração. Participa-se da oração de Cristo pela unidade. E se pode orar pelas várias intenções que podem ser compartilhadas.10

Já houve muitos frutos no movimento ecumênico (DA, n. 231). Poderiam parecer poucos. Uma pista a percorrer seria a de apreciar tan-tos sinais de Deus na história recente de busca de unidade, e outra, a de procurar aproveitar mais os meios que temos de fazê-la crescer. Assim, se “o movimento pela unidade dos cristãos” foi uma “ação do Espírito Santo” e se já foram recolhidos “muitos frutos”, ainda necessitamos de “mais agentes de diálogo e mais bem qualificados”. Seria bom tornar “mais conhecidas as declarações que a própria Igreja Católica tem subscrito no campo do ecumenismo desde o Vaticano II” (DA, n. 231). Seria oportuno estudar o Diretório ecumênico e procurar a dimensão ecumênica na formação dos que trabalham no ministério pastoral. O ministério pastoral é sempre um ministério de comunhão.

O DA valoriza a necessidade de uma preparação adequada ao mostrar que a mobilidade humana é uma “característica do mundo de hoje”. Deve-se preparar os fiéis para o encontro e o diálogo. A aproxi-mação das pessoas com diferenças de tradições, de culturas, de religiões, pode tornar-se “ocasião propícia do diálogo ecumênico da vida”, como

9 Cf. UR n. 8.10 Cf. a oração pela unidade compartilhando várias intenções em CONSELHO PON-

TIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS, Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, São Paulo: Paulinas, 1994, n. 108-109.

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exposto pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itine-rantes (citado no DA).11

Uma das dificuldades para o ecumenismo seria “o surgimento de novos grupos religiosos” (DA, n. 232). E há os “que deixaram a Igreja para unir-se a outros grupos religiosos” (DA, n. 225-226). Eles seriam levados por motivos “vivenciais”. Não teriam encontrado “uma experiên-cia religiosa profunda”. O CELAM faz pensar que é preciso desenvolver uma “experiência religiosa profunda”; um “anúncio querigmático” e “tes-temunho pessoal dos evangelizadores”, para favorecer “uma conversão pessoal e a mudança de vida integral”; e uma “vivência comunitária”, em que se sintam “valorizados” e “eclesialmente incluídos”, membros de uma comunidade eclesial e corresponsáveis em seu desenvolvimento”, permitindo-se com isso “maior compromisso e entrega”. Também neces-sitariam de “formação bíblico-doutrinal” para se poder fazer amadurecer “a experiência religiosa e uma destacada convivência comunitária” (DA, n. 225). Por último, o documento chamava a atenção para a importância do “compromisso missionário de toda a comunidade”, a sair “ao encontro dos afastados” (DA, n. 226).

O ecumenismo fica prejudicado quando existem confusões entre o conceito de ecumenismo propriamente dito e o de diálogo inter-religioso. Por isso, propõe-se o cuidado no emprego desses termos, para se evitar confusões.12 O Documento não explicita as consequências dessa confu-são, mas mostra que as orientações são específicas. A caridade é que é para todos.

Incentiva-se a todos os que participam de trabalhos eclesiais: “aos ministros ordenados, aos leigos e às pessoas de vida consagrada, a participarem de organismos ecumênicos”, com a direção dos pastores, para “realizarem ações conjuntas nos diversos campos da vida eclesial, pastoral e social”. Aqui se passa da contemplação do que os cristãos são na comunhão eclesial, para todas as suas ações. O DA conclui de-sejando que “a promoção da unidade dos cristãos”, já “assumida pelas Conferências Episcopais”, venha a se consolidar “sob a luz do Espírito

11 O DA refere-se à Instrução Erga migrantes caritas Christi, nn. 56-58.12 Quando se trata do ecumenismo no sentido estrito, trata-se de fazer valerem os laços

de comunhão cristã e aí, para os católicos, seria a relação com aqueles que estão no seio de comunidades cristãs não-católicas. Já quando se fala de grupos religiosos não-cristãos, o CELAM emprega a terminologia corrente nos documentos da Igreja Católica, falando de diálogo inter-religioso. O que está em jogo é o círculo em questão neste ou naquele diálogo. A abertura de coração naturalmente deve ser universal.

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Santo” (DA, n. 232). Pedem-se novas formas de atuação: “para a nova etapa evangelizadora” que temos à frente, “o diálogo e a cooperação ecumênica se encaminhem para despertar novas formas de discipulado e de missão em comunhão” (DA, n. 233).

Fica também valorizada a colaboração missionária e o testemunho comum, que aliás foram motores do próprio movimento ecumênico em seus albores. A proposta de Aparecida – de sermos hoje discípulos e missionários, por um lado, e os caminhos e objetivos do ecumenismo, por outro lado, se encontram e se implicam mutuamente. Na contribuição mútua aparece mais a comunhão. O cristão vai viver na comunhão e é também chamado a servir pela comunhão e a comunicá-la.

A seção do ecumenismo se conclui com palavras dos papas João Paulo II e de Bento XVI. O primeiro adverte que a clareza e a prudência da fé levam “a evitar o falso irenismo e o desinteresse pelas normas da Igreja”, ao passo que também levam “a evitar a indiferença na bus-ca da unidade”, a “posição pré-concebida”, bem como o espírito de “derrotismo”.13 Sugerem a fidelidade à própria fé e a coragem de pôr-se a caminho. Bento XVI faz ver que, no ecumenismo, “fazem falta gestos concretos” que penetrem os espíritos para a conversão e o progresso do caminho ecumênico.14 Gestos concretos! Gestos concretos são certamente os gestos proféticos de tantos líderes e pastores que impulsionaram o movimento ecumênico. Certamente também estão nas pessoas que, no dia a dia, nas diversas comunidades, vivem o espírito do ecumenismo.

3 O diálogo inter-religioso no DA

Em cinco parágrafos, a V Conferência do CELAM trata do di-álogo inter-religioso. O primeiro deles diz respeito às relações com o povo judeu. Reporta-se à Declaração Nostra Ætate, ao recordar a união que cristãos e judeus têm na fé no único Deus, e na palavra do Antigo Testamento.15 Os judeus podem ser chamados pelos cristãos de seus “irmãos maiores”. Esta foi uma expressão utilizada por João Paulo II na sua histórica visita à Sinagoga de Roma em 1986. Os bispos se fazem

13 Cf. UUS, n. 79.14 Bento XVI mencionou a importância de “gestos concretos” já na sua primeira men-

sagem ao final da concelebração eucarística com os cardeais eleitores na Capela Sixtina, aos 20/4/2005.

15 O DA refere-se ao CONCÍLIO VATICANO II, Declaração “Nostra Ætate”, n. 4.

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solidários dos judeus, recordando seus particulares sofrimentos “também em nossos países”. As relações com os judeus devem ser consolidadas em “maior colaboração” e no “apreço mútuo” (DA, n. 235).

O diálogo se amplia ainda com o diálogo inter-religioso (DA, n. 236). O DA pensa na “graça de Cristo”, que “pode alcançar a todos os que Ele redimiu, para além da comunidade eclesial, porém de modos diferentes”. São palavras vindas do documento Diálogo e Anúncio, de 1991.16

O mesmo documento Diálogo e Anúncio, aliás, na linha do Concílio Vaticano II na constituição Lumen Gentium (LG), primeiro vê a salvação daqueles que “desconhecem que Jesus Cristo é a fonte da salvação”. Eles também seriam alcançados pelo mistério da salvação “por caminhos conhecidos por Deus, graças à ação invisível do Espírito de Cristo”. Valoriza-se o que têm de bom “nas suas próprias tradições religiosas” e sua ação segundo “os ditames da sua consciência”. Por outro lado, o DA pensa, no contexto das relações com os não-cristãos, na importância do testemunho missionário, que se faz conforme o man-dato de Atos 1,8, e que levará a “explicitar e promover essa salvação já operante no mundo” (DA, n. 236).

O CELAM pensa no diálogo, principalmente com as religiões monoteístas (DA, n. 237). Deve existir uma articulação entre o anúncio e o diálogo na tarefa evangelizadora. Como está na Lúmen Gentium, a Igreja é como “sacramento universal de salvação”,17 refletindo a luz de Cristo que ilumina todo homem (cf Jo 1, 9). Para isso, comenta o CELAM, deve-se atuar com “empenho, discernimento e testemunho” e com as virtudes teologais: “fé, esperança e caridade” (DA, n. 237).

Novamente com a LG (n. 1), tem-se em vista a tarefa da Igreja de servir à unidade com Deus e à unidade do gênero humano. Para isso, um instrumento é o diálogo. Este pressupõe o respeito e a valoração das pessoas com quem a Igreja vai dialogar. Aliás, deve-se promover o respeito e a valoração de todas as pessoas, a dignidade comum.

16 Cf. Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e Congregação para a Evan-gelização dos Povos, Diálogo e anúncio (1991), São Paulo, Paulinas, 1996, n. 29. Referiremos esse documento pela abreviatura Diál An.

17 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Lumen Gentium, in Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 1.

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Para o documento Diálogo e Anúncio, o diálogo inter-religioso envolve mais que uma simples compreensão e relação amistosa, pois vai se colocar também em vista de intercâmbio, onde se pode fazer conhecer o “testemunho do próprio credo” e “a descoberta comum das respectivas convicções religiosas”. Nisso “todos são convidados a aprofundar seu empenho religioso” e a responder sinceramente “ao apelo pessoal de Deus” e a seu “dom gratuito”.18

Nas considerações do CELAM em sua V Conferência, entende-se que o diálogo deve ser empreendido como compromisso e graça (DA, n. 238). Supõe uma conveniente preparação. As culturas latino-americanas apresen-tam diferentes traços, diferentes visões religiosas. Para o cristão, o Evangelho deve ser anunciado. Entretanto, isso há de ser feito “com mansidão e respeito por suas convicções religiosas” (DA, n. 238). Deste modo se insinua um caminho concreto para o diálogo inter-religioso, que, embora sem excluir o direito de anunciar, entretanto o faz antes em perspectiva dialogal.

A secção sobre o diálogo inter-religioso termina procurando a con-tribuição possível na “construção da nova humanidade”. Assim, também se deseja a construção social. O diálogo pode abrir “caminhos inéditos de testemunho cristão”, porque ele também promove “a liberdade e a dignidade dos povos”, estimula “a colaboração para o bem comum”, ele “supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas” (DA, n. 239). O diálogo ainda pode unir e favorecer o apoio entre as pessoas, também para que procurem superar todo tipo de violência. Pode ajudar a educar para a paz e para a consciência cidadã.

Para encerrar a secção sobre o diálogo inter-religioso, o DA men-ciona o conjunto da doutrina social da Igreja. Fica insinuado que também a doutrina social poderia ser levada ao diálogo mais amplo. O diálogo da doutrina social seria uma forma de os cristãos tentarem contribuir e buscar o compartilhamento de valores e serviços, aceitando mais colaborações.

4 Considerações sobre o propósito geral do documento

Será que o DA poderia ser todo ele visto como uma contribuição de interesse ecumênico? Parece que o propósito geral da V Conferência do CELAM tem interesse ecumênico. O CELAM propõe diálogo ecumênico

18 Diál An., n. 40.

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e promove que se busque viver mais a comunhão. Propõe diálogo inter-religioso no qual se promove a colaboração. Mais fundamentalmente, o CELAM propõe aos discípulos missionários que vivam a vida plena em Cristo. Ora, na valorização da vida plena se encontra a valorização de todo o viver.

O propósito estabelecido na introdução do documento foi o de fazer de todos os membros da Igreja “discípulos e missionários de Cristo Caminho, Verdade e Vida, para que nossos povos tenham vida nele” (DA, n. 1). É nessa perspectiva que se coloca a nova tarefa evangelizadora.

Um dos aspectos a valorizar entre nossos povos é a esperança e a alegria de viver, ainda que passando por condições difíceis (DA, n. 7). A situação hoje traz desafios grandes e requer cuidados. Existem conturbações sociais e políticas. Desenvolve-se uma cultura distancia-da da fé cristã e mesmo hostil à tradição cristã. A Igreja está ciente de que deve proteger e alimentar a fé (DA, n. 10). Ela quer promover os cristãos enquanto novos discípulos e missionários, de modo que sejam “protagonistas de uma vida nova para uma América Latina que deseja reconhecer-se com a luz e a força do Espírito” (DA, n. 11), a partir do encontro com Cristo (DA, n. 12). Esse “acontecimento fundante e encon-tro vivificante com Cristo” vai se manifestar “como novidade de vida e missão em todas as dimensões da existência pessoal e social”.

Tal novidade de vida e de missão requer “uma evangelização muito mais missionária”, empreendida “em diálogo com todos os cristãos e a serviço de todos os homens”. É o modo eficaz de levarmos a novidade de vida à sua plena maturação e frutificação (fala-se também em “frutos de verdade e amor”). O documento usa as palavras de Bento XVI para falar sobre “o rico tesouro do Continente Americano… seu patrimônio mais valioso: a fé em Deus amor”. Esse tesouro, acrescenta o DA, cor-reria o risco de diluir-se.

Hoje se coloca o problema de “escolher entre caminhos que conduzem à vida ou caminhos que conduzem à morte”. Foram dados muitos dons ao continente latino-americano, mas se está diante da pos-sibilidade de dilapidá-los. De fazer uma “cultura sem Deus e sem seus mandamentos”, “animada pelos ídolos do poder, da riqueza e do prazer efêmero”. Por outro lado, ficaria ainda aberta a opção por Deus, como a dos “caminhos de vida verdadeira e plena para todos, caminhos de vida eterna”. A serviço dessa opção está a fé, que “conduz à plenitude de vida que Cristo trouxe”, na qual se desenvolve também “a plenitude da

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existência humana em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural”. Toda essa plenitude está implicada na vida que Deus comunica por seu amor gratuito, porque Ele é o amor que dá a vida (DA, n. 13).

O CELAM faz ver que a Igreja quer participar das tristezas e alegrias do homem de nossa sociedade (DA, n. 16). O discípulo, atraído pela sabedoria e a bondade de Cristo (n. 21) e animado pela alegria do Evangelho (DA, n. 28), quer ser portador do Evangelho (n. 30). O dom da fé cristã pode responder de modo mais pleno aos que buscam uma resposta em um mundo de fragmentação (DA, n. 36) e de crise de senti-do (DA, n. 37). Trata-se de levar a boa nova: boa nova de Cristo, que é também boa nova da dignidade humana, boa nova da vida, boa nova da atividade humana, boa nova do destino universal dos bens e da ecologia, boa nova do amor e da esperança.

Encontra-se em tudo isso tantos elementos de resposta para os que desejam encontrar sentido do viver. Existem tarefas para o cristão. O discípulo missionário está chamado a uma contribuição efetiva na evangelização e na valorização da dignidade e da vida humana, em suas dimensões individual e comunitária. Todo o DA promove a formação e a atuação do discípulo missionário, em vista da vida plena em Cristo, e a contribuição para difundir uma cultura e um serviço da vida. O DA aponta de modo especial para aqueles que se encontram em situações de especiais dificuldades e que precisam ser acolhidos ao invés de serem excluídos, ser consolados e restaurados, quando apresentam o rosto de Cristo sofredor.

O chamado do Evangelho para a vida é um chamado de interesse ecumênico. Todos os cristãos se identificam com essa aspiração e todos têm responsabilidade em atender ao Cristo. Por outro lado, também não se trata apenas da busca de unidade dos cristãos em torno a esse evangelho. Importa um diálogo maior. O interesse pela vida, e a responsabilidade perante a vida, são para todos, ainda que de diferentes religiões ou de diferentes segmentos da sociedade. O propósito geral do DA se associa a uma aspiração universal. O cristão interpreta essa aspiração e a sua realização mais plena em relação com Cristo. Entretanto, a partir de Cristo se sente motivado a testemunhar e a contribuir com todos, para que todos possam viver melhor e mais plenamente.

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Conclusão

Mostrou-se no DA que a comunhão pertence à realização da Igreja. Os cristãos estão inseridos na comunhão com a Trindade e ligados com laços de comunhão. O ecumenismo decorre da vocação para a unidade e expressa a unidade que já se tem. Ele se constrói com a oração que se associa à oração de Jesus, e se consolida na vida espiritual, no diálogo e na colaboração.

O diálogo inter-religioso amplia as relações dos cristãos. Consi-dera a todos no desígnio de salvação segundo o conhecimento de Deus. O anúncio só se faz com o respeito e o diálogo, como testemunho do cristão. O diálogo promove a colaboração.

A vida plena, que, na fé cristã, se encontra em Cristo, é razão de ser do cristão, também do seu ser discípulo missionário. Essa fé não só responde à sua aspiração natural, mas também o compromete. Os cristãos, pelo diálogo e a colaboração, podem se associar aos outros cristãos e às outras pessoas na sociedade, para que a vida seja valorizada, para que as famílias tenham lugar, para que os que sofrem sejam consolados e atendi-dos, para que todas as pessoas sejam mais plenamente dignificadas. Isso é de interesse ecumênico. Para o cristão, isso decorre do próprio mistério da comunhão com Cristo a comunicar a sua vida e a sua unidade.

Referências bibliográficas

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_____. Constituição Sacrosanctum Concilium, in Compêndio do Vatica-no II. Constituições, Decretos, Declarações. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

_____. Declaração “Nostra Ætate”, in Compêndio do Vaticano II. Cons-tituições, Decretos, Declarações. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

_____. Decreto “Unitatis Redintegratio” (UR), sobre o ecumenismo, in Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

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A perspectiva ecumênica do Documento de Aparecida

CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS. Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo. São Paulo: Paulinas, 1994.

CONSELHO PONTIFÍCIO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS. Diálogo e anúncio (1991). São Paulo: Paulinas, 1996.

CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas; São Paulo: Paulus, 2007.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica “Ut unum sint” (UUS), sobre o empenho ecumênico.

<www.celam.org>, acesso em 8/9/2007.

<www.wcc-coe.org>, acesso em 28/11/1999.

Endereço da Autora:Av Pref. Dulcídio Cardoso, nº 2500, Bl. 2, Ap. 1.106

Barra da Tijuca, CEP 22631-051 Rio de Janeiro, RJ

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 81-94.

* O autor é Irmão Lassalista, e presidente de SCALA (Sociedad de Catequetas Latino-americanos), integrante do Grupo de Reflexão Catequética da CNBB (GRECAT) e de AMERÍNDIA. Como escritor está com 56 livros publicados.

Resumo: Tendo participado de perto da realização da V Conferência do Episco-pado Latino-americano em Aparecida, SP (13-31/05/2007), como integrante de AMERÍNDIA, um grupo de 30 voluntários (teólogos e pastoralistas), procedentes de vários países, o autor em primeiro lugar destaca os itens mais importantes do discurso de Bento XVI, na abertura dessa V Conferência, relativos à cate-quese. Detém-se, sobretudo, nos aspectos relacionados, no Documento de Aparecida (DAp), com a iniciação cristã e, dentro dela, a catequese. Conclui suas reflexões dizendo: “O Pentecostes de Aparecida precisa passar para as bases da Igreja e, aos poucos, atingir mais e mais pessoas, renovando todos os fiéis e as estruturas da Igreja”

Abstract: At the aftermath of the V Conference of the Bishops of Latin America held in Aparecida, SP (from May 13 to 31 of 2007), an overview of the organi-zation could shed some light, as for instance the presence of AMERINDIA, a group of 30 volunteers (theologians and pastoralists) from various countries, and the author of this article participated in the meeting. One of the most important points of interest in the speech of Bento XVI delivered at the opening of the V Conference concerns Catechetics. In connection with the area of religious instruction, the Document of Aparecida pays special attention to the initiation in the Christian faith. In conclusion, the article hails the event at Aparecida as remarkable as Pentecost in the past and thus should pave the way to the core and the foundation of the Church in order to reach all the faithful and renew the very ecclesiastical structures.

Catequese iniciática segundo AparecidaIrmão Nery fsc*

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Catequese iniciática segundo Aparecida

Introdução

1 Bento XVI, em Aparecida, enfatiza a catequese

1.1 A catequese esteve desde a colonização da América Latina e do Caribe.

No dia 13 de maio de 2007, o Papa Bento XVI afirmou, em seu Discurso de Abertura da V Conf., que a catequese esteve muito presente na evangelização da América Latina e do Caribe desde a época da sua colonização. São palavras suas: “do encontro da fé com as etnias origi-nárias nasceu uma rica cultura cristã”, “formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas”.

Ele, porém, incorreu em um deslize histórico, que despertou fortes reações, sobretudo em nosso Continente, ao dizer que “o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas e nem foi uma imposição de uma cultura estranha”. Alguns dias depois, porém, em uma Audiência pública em Roma, ao fazer um balanço de sua visita ao Brasil - mas sem reconhecer que errara –, ele aludiu às graves falhas cometidas pelos cristãos quando da colonização da América Latina e do Caribe. Apesar desta sua nobre atitude posterior, o mal estar criado em Aparecida permaneceu e ficou para a história.

Aprendemos com isso que já é tempo de a Igreja Católica se con-textualizar melhor e aprender a se situar na história como um grupo entre outros, grupo importante, sem dúvida, sobretudo, no Ocidente cristão, mas que para isso precisa ser bem mais humilde do que, em geral, muitos pastores e documentos o fazem entender. O Papa João Paulo II fez mais de 120 pedidos de perdão pelos erros da Igreja no passado. Foi um gesto elogiado, contudo é preciso ir além e, principalmente, corrigir-se.

1.2 Bento XVI e a catequese. O Discurso de Abertura, concebido pelo Papa como programático para a V Conf., assim o foi considerado pelos bispos. E, para os temas que nos interessam aqui, naquele seu importante texto, Bento XVI traçou alguns elementos fundamentais para a compreensão da catequese e a sua renovação hoje. Limito-me a destacar o que segue:

1.2.1 Conhecer a fundo Jesus Cristo e a Palavra de Deus. O Pon-tífice inicia sua fala sobre a catequese, no capítulo 3, dizendo: “Antes de falar do que comporta o realismo da fé no Deus feito homem, nós temos

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de aprofundar a pergunta: como conhecer realmente Cristo para poder segui-lo e viver com Ele, para encontrar a vida n’Ele e para comunicar essa vida aos outros, à sociedade e ao mundo?”

E o próprio Papa dá a resposta, ao apresentar aquilo que constitui uma das chaves fundamentais para a mudança radical da catequese hoje: “Antes de tudo, Cristo se dá a conhecer a nós em sua pessoa, em sua vida e em sua doutrina, por meio da Palavra de Deus”. E acrescenta: “Para a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em Aparecida, o conhecimento profundo da Palavra de Deus é condição indispensável ”.

1.2.2 Medidas práticas. Em seguida, o Pontífice se refere a duas consequências desse princípio renovador, por ele acima enunciado:

a) A Palavra de Deus... “Por isso, é preciso educar o povo na leitura e meditação da Palavra de Deus: que ela se converta em seu alimento para que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6, 63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem a fundo? Temos que fundamentar nosso compromisso missionário e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus. Para isso, animo os Pastores a esforçar-se em dá-la a conhecer”.

b) A catequese... “Um grande meio para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo é a catequese. Nela se transmite de forma simples e substancial a mensagem de Cristo. Convirá, portanto, intensificar a catequese e a formação na fé, tanto das crianças como dos jovens e adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida, e força para ser testemunhas de Cristo. Para isso se dispõe de instrumentos muito valiosos como o Catecismo da Igreja Católica e sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica.”

1.2.3. Catequese, que cuida sempre do essencial na fé. O Papa relembra que a catequese “transmite de forma simples e substancial a mensagem de Cristo”, já que não lhe cabem elucubrações teológicas, mas centrar-se no essencial da fé cristã. Para que seja substancial, porém, ela deve ser e fornecer um alimento rico e fortalecedor do discípulo e missionário do Senhor. Nesse sentido, a formação do cristão não se faz segundo um modelo escolar de sala de aula, como o estudo de uma dis-ciplina acadêmica, por melhor que seja a pedagogia que use.

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O específico da catequese é que ela acontece segundo o modelo de uma comunidade que se congrega para possibilitar à Palavra de Deus ressoar na vida das pessoas. Para isso ela necessita ser um itine-rário que implique uma experiência pessoal e comunitária com Jesus Cristo, que celebra sua presença e ação pela força de seu Espírito. É essa catequese que impulsiona, verdadeiramente, para o compromisso pessoal com Jesus e a comunidade eclesial, e para o engajamento na construção do Reino a partir do pobre, conforme o Projeto Messiânico de Jesus (cf. Lc 4, 14-21).

1.2.4 Catequese, Libertação e promoção humana. Para o papa Bento XVI, é imprescindível que a evangelização e a catequese estejam conectadas intrinsecamente com a vida, a libertação e a promoção hu-mana. Eis seu ensinamento: “Neste esforço por conhecer a mensagem de Cristo e torná-la guia da própria vida, é preciso recordar que a evangelização esteve sempre unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã. ‘Amor a Deus e amor ao próximo se fundem entre si: no mais humilde encontramos o próprio Jesus e em Jesus encontramos Deus’ (Deus caritas est, 15). Por isso, será também necessária uma ca-tequese social e uma adequada formação na Doutrina Social da Igreja, sendo muito útil para isso o «Compêndio da Doutrina Social da Igreja». A vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas.”

1.2.5 Catequese e Comunicação. Eis, segundo o Papa, outro ponto de grandíssima importância para a renovação da catequese, a comunica-ção: “Neste campo, não se deve limitar somente às homilias, conferên-cias, cursos de Bíblia ou teologia, mas é preciso recorrer também aos meios de comunicação: imprensa, rádio e televisão, sites da internet, foros e tantos outros sistemas para comunicar eficazmente a mensagem de Cristo a um grande número de pessoas.”

1.2.6 Catequese e Missão. Na conclusão de sua fala sobre a Ca-tequese, no Discurso Inaugural da V Conf., Bento XVI completa, de modo feliz, o seu ensinamento, ao dizer: “O discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-se impulsionado a levar a Boa Nova da salvação a seus irmãos. Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma moeda: quando o discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele nos salva (cf. At 4,12). Com efeito, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro.”

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Ser missionário é intrínseco ao ser discípulo, pois sobre ele foi derramado o Espírito de Pentecostes, que o leva ao compromisso com a profética e evangélica transformação da sociedade, segundo os parâme-tros dados por Jesus em Mt 25, 31-46 e o modo de ser Igreja apresentado por São Lucas quando fala das comunidades cristãs primitivas (Atos 2 e 4) e concretizadas hoje, de modo privilegiado, pelas Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs.

2 Aparecida e a formação do discípulo missionário hoje

2.1 Um acontecimento eclesial de primeira grandeza. Primei-ramente, deixemos claro que a V Conf., em Aparecida, SP, é muito mais que seus textos oficiais, ou seja, A Mensagem Final e o Documento Final. Ambos foram elaborados em circunstâncias adversas: o pouco tempo, a metodologia que não facilitou a produção, e alguns grupos que não respeitavam o que era aprovado pela Assembleia e modificavam frases, parágrafos e enfoques.

Entretanto, apesar destas falhas de uma “Igreja santa e pecadora”, a V Conferência, pela ação do Espírito Santo, foi um acontecimento eclesial de especial grandeza, no histórico das Conferências Gerais do Episcopado da América Latina e do Caribe (1955, Rio de Janeiro; 1968, Medellín; 1979, Puebla; 1992, Santo Domingo). O diálogo foi aberto e amplo; as contribuições antes e durante a Conferência foram ricas e representaram as muitas faces da Igreja Católica no Continente; o contato do público com os participantes da Conferência foi muito facilitado; a atuação das várias correntes de teologia, eclesiologia e pastoral foi livre; a presença numerosa de peregrinos simples e pobres chamou a atenção; a Tenda dos/as Mártires, montada próximo ao Santuário, falou alto, trazendo a memória dos que deram a vida pela fé em nosso continente, e o clamor dos empobrecidos e injustiçados; a Tenda dos/as Religiosos/as recordou constantemente o único necessário e o absoluto do amor de Deus; o Congresso de Teologia, em Pindamonhangaba, colocou ao alcance do povo os grandes temas da Igreja naquele momento da história. E tantos outros acontecimentos...

Com exceção da mídia católica, os grandes meios de comunicação, que tanto haviam evidenciado a visita do Papa ao Brasil, desconheceu a V Conf. E, isso, sem dúvida, constitui um ponto de interrogação para nós, Igreja.

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2.2 O exame de consciência a partir da realidade. Desde Me-dellín (1968), a hierarquia da Igreja Católica de nosso Continente, ao escrever seus documentos, costuma partir da realidade. Em Aparecida não foi diferente, e até mesmo acrescentou uma novidade, a autoanálise e a leitura da realidade à luz da fé. Depois de um amplo “Ver” sobre a realidade social, econômica, política, cultural da América Latina e do Caribe, a V Conf. analisou a situação da Igreja nesse mesmo contexto. É bastante otimista e triunfalista quanto aos aspectos positivos (DAp 98 e 99) e por isso ela louva, agradece, bendiz. No tocante aos aspectos não tão positivos, o Documento, apesar de revelar importantes falhas na Igreja (DAp 100), se cala sobre outras, não menos importantes. Como para a catequese, a realidade do mundo e da Igreja faz parte do seu conteúdo. Assim, como exemplo, citamos algumas facetas da realidade da Igreja que merecem mudanças e que poderiam ter sido melhor trabalhadas por Aparecida:

a) Os leigos e leigas ainda não são sujeitos para a maioria dos membros da hierarquia, que continua clericalista e se considera como a Igreja;

b) Os fiéis não possuem boa formação bíblica, teológica, espiri-tual, pastoral e missionária;

c) Ainda se continua a acreditar que a sacramentalização e a devoção, sem a evangelização e a catequese, são suficientes para o católico;

d) O espaço para os ministérios leigos na Igreja é mínimo; e) A formação atual dos presbíteros é desconectada do mundo e

das necessidades reais dos fiéis; f) A hierarquia não busca com liberdade evangélica caminhos para

mudar o modelo vigente de presbítero e, por esse motivo, não dá prioridade ao direito que os fiéis têm de acesso à Eucaristia, à Reconciliação e aos serviços do pastoreio dos presbíteros;

g) Uma parte da hierarquia resiste à Vida Religiosa Inserida no meio dos pobres e a valoriza muito mais pela suplência à falta de clero do que por seu valor profético específico no Povo de Deus;

h) Uma boa parte da hierarquia e de movimentos eclesiais é reti-cente e mesmo contrária às Comunidades Eclesiais de Base;

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i) Dos últimos 20 anos para cá, está havendo uma acelerada dimi-nuição da missão profética da hierarquia, dos/as religiosos/as e dos leigos e leigas, frente ao capitalismo, ao neoliberalismo e ao mercado e, também, um distanciamento em relação à opção pelos pobres e às suas iniciativas de solidariedade, libertação e promoção humana.

2.3 A necessidade de mudanças profundas na Igreja.

Se bem que todo o Documento de Aparecida (DAp) seja muito rico para a renovação da Igreja e, obviamente, da catequese, daremos atenção aqui à II Parte (julgar ou iluminar), números 101 a 346, que trata da Vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários. São 4 capítulos de fundamental importância para a catequese:

– Cap. 3. A alegria de ser discípulos missionários para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo (DAp 101-128);

– Cap. 4. A vocação dos discípulos missionários à santidade (DAp 129-153);

– Cap. 5. A comunhão dos discípulos missionários na Igreja (DAp 154-239);

– Cap. 6. O itinerário formativo dos discípulos missionários (DAp 240-346).

Apesar de alguns enriquecimentos ao texto, lamentavelmente algumas mudanças arbitrárias, introduzidas pela Equipe do CELAM, enfraqueceram a força renovadora e latino-americana de alguns tópicos desta II Parte. As principais modificações ocorreram nos seguintes te-mas: a) CEBs (cf. DAp 193-196); b) presbíteros (cf. DAp 209, 216); c) Diáconos Permanentes (cf. DAp 224); d) ecumenismo (DAp 225-233); e) Eucaristia; f) reestruturação da paróquia (DAp 294); g) paróquia como espaço comunitário (DAp 304-305); h) seminários em pequenas comu-nidades (DAp 319); i) catequese na escola católica (DAp 336).

Para a catequese, a mudança no tópico sobre reestruturação da paróquia é importante. A versão 4, votada na V Conferência, dizia, no número 309: “Assumir esta iniciação cristã exige não apenas uma re-novação da catequese, mas, também, uma reestruturação de toda a vida pastoral da paróquia. Propomos que este processo de iniciação cristã seja assumido...” Ora, a mudança na versão publicada é significativa, porque, em consequência, se suprimiu esta parte final da primeira frase: “mas, também, uma reestruturação de toda a vida pastoral da paróquia”

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Catequese iniciática segundo Aparecida

e, como consequência, o enfoque da proposta também foi modificado (DAp 294).

2.4 O caminho da Iniciação cristã.

2.4.1 Formação, um eixo central. Em Aparecida, sem dúvida e no meio das falhas humanas, o Espírito Santo inspirou a um bom nú-mero de bispos, ousados e proféticos, alguns textos importantes sobre a Formação Cristã, da qual a catequese é importante promotora. E se eles forem levados à prática, sem dúvida, produzirão significativas mudanças na Igreja a partir de presbíteros, diáconos, religiosos/as, leigos/as, bem formados, no discipulado e na missionariedade. Chamo a atenção, no Documento de Aparecida, para a Iniciação Cristã e a Iniciação à Vida Cristã, temas que já estão sendo há mais tempo estudados e aplicado no Brasil e em alguns outros países.

2.4.2 A realidade dos católicos: Olhando a realidade analisada, os bispos elencam falhas na vida dos católicos: a) temos uma alta por-centagem de católicos com uma identidade cristã débil e vulnerável (DAp 286); b) Temos um alto índice de católicos sem consciência de sua missão de ser sal e fermento no mundo (DAp 286); c) São muitos os católicos que não participam da Eucaristia dominical nem recebem com regularidade os Sacramentos (DAp 286); d) São muitos os católicos que não se inserem ativamente na comunidade eclesial. E os bispos concluem dizendo: “Tudo isso constitui um desafio que questiona profundamente a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a vivência cristã; um desafio que devemos enfrentar com decisão, coragem e criatividade, já que em muitos lugares a iniciação cristã foi pobre ou fragmentada” (DAp 287).

2.4.3 Orientações: Para que a missão da Igreja seja mais eficaz, os pastores decidiram por uma mudança fundamental no modo de realizá-la, isto é, adotar para valer a iniciação cristã dos fiéis. Eis o que consta no Doc. de Aparecida.: “A Iniciação Cristã, que inclui o kerygma, é o modo prático de colocar a pessoa em contato com Jesus Cristo e iniciá-la no discipulado. Ela nos fornece a oportunidade de fortalecer a unidade dos três sacramentos da Iniciação e de aprofundar em seu rico sentido. A Iniciação Cristã, propriamente dita, se refere à primeira iniciação nos mistérios da fé, tanto na forma de catecumenato pós-batismal para os batizados não suficientemente catequizados, como na forma de catecume-nato batismal para os não batizados. Este catecumenato está intimamente unido aos sacramentos da iniciação: batismo, confirmação e eucaristia,

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celebrados solenemente na Vigília pascal. É necessário distingui-la, portanto, da iniciação cristã como base (DAp 288).

2.4.4 Iniciação cristã, um Projeto continental. Os números 289 a 294 de Ap. trazem “propostas para a Iniciação Cristã”. A V Conf opta pela formação cristã, entendida como um processo, e não como atos isolados ou cursos acadêmicos de religião que priorizam o conhecimen-to intelectual, a formalidade da burocracia católica. E os passos desse processo são assim explicitados:

a) Começar pelo Kerigma, que se fundamenta na Palavra de Deus e leva ao encontro pessoal com Jesus Cristo, incluindo conversão, seguimento na comunidade e maturação da fé na prática dos sacramentos, no serviço e na missão.

b) Ter sempre o caráter de experiência que introduz a uma profun-da e feliz celebração dos sacramentos, com toda a riqueza dos sinais, e leva à transformação do mundo. É o que se denomina Catequese Mistagógica.

c) Colocar na catequese de iniciação, a dinâmica do cresci-mento gradual no conhecimento, no amor, no seguimento, para assim forjar a identidade cristã. A Comunidade que assim catequiza, renova-se na vida comunitária e no despertar missio-nário. Mas, para isso, são necessárias novas atitudes pastorais, a começar pelos bispos, pelos presbíteros e diáconos, pelas pessoas consagradas e pelos agentes de pastoral.

d) Ter sempre diante dos olhos o perfil do cristão a ser formado pelo processo de iniciação cristã: vida em Jesus Cristo, es-pírito de oração, amor à Palavra, vida sacramental, inserção cordial na comunidade e na sociedade, solidariedade e ardor missionário.

e) Transformar a paróquia para se garantir a prioridade da ini-ciação cristã para adultos batizados mas não suficientemente evangelizados, adultos não batizados, que ouviram o Kerigma e se decidem por Jesus, crianças batizadas para que completem a iniciação cristã. Toda a paróquia estude e assimile o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA), pois é, de fato, uma refe-rência necessária e um apoio firme para a iniciação cristã.

f) Fazer da Iniciação Cristã um Projeto Continental, e não apenas da Paróquia. Que ela passe a ser de agora em diante a

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maneira ordinária e indispensável de introduzir as pessoas na vida cristã e, também, como catequese básica e fundamental.

g) Assumir a catequese permanente, para se poder dar continui-dade ao processo de maturação na fé, no qual deve incluir-se o discernimento vocacional e a iluminação para os projetos pessoais de vida, a inserção na comunidade eclesial e o com-promisso com a construção do Reino.

2.4.5 Sugestões. A leitura, meditação e aplicação do Capítulo VI do DAp (286-294), permitem a dedução de algumas orientações práticas quanto à Iniciação Cristã. Eis algumas:

a) estimular na comunidade eclesial, e em todas as suas iniciativas, o processo de iniciação cristã que realmente tenha como prio-ridade o encontro pessoal com Jesus Cristo, a inserção fraterna na comunidade, a opção pelos pobres e o ardor missionário;

b) estudar em todos os níveis da comunidade o catecumenato dos primeiros tempos da Igreja e o RICA, para descobrir a importância da seriedade na formação dos fiéis (experiência de fé, fraternidade, mudança de vida, estudo da Palavra de Deus, da Igreja, dos Sacramentos, do Reino, ter compromisso missionário concreto...).

c) mudar as estruturas pesadas e caducas de nossas paróquias e dioceses, para que nossas comunidades coloquem em prática as qualidades relacionadas especialmente por São Lucas, em At 2, 42-47e 4, 32-35. A renovação, via Iniciação Cristã, requer conversão das pessoas e mudança de estruturas na Igreja.

2.4.6 Iniciação à Vida Cristã. Mas Aparecida abre espaço para uma diferenciação importante entre “Iniciação Cristã” (sacramentos da Iniciação Cristã) e “Iniciação à Vida Cristã” (educação para ser discípulo missionário). Enquanto o processo tradicional, mesmo que renovado, acarreta a sensação de sacramento como ponto de chegada da catequese e mesmo como encerramento, na Iniciação à Vida Cristã os sacramentos passam a ser alimento da caminhada, rumo ao discipulado missionário. Neste caso vale não tanto o esquema do RICA em 04 tempos (Kerigma, Catecumenato ou Catequese, Purificação-Iluminação e Mistagogia) e 03 etapas (Celebrações de transição de um tempo para outro), mas a inspira-ção catecumenal. Esta perspectiva foi trabalhada pela CNBB e publicada no Estudo nº 97 Iniciação à Vida Crista de inspiração catecumenal.

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3 A catequese no Documento de Aparecida

3.1 A realidade: Se bem que a Iniciação Cristã seja, de per si, intrínseca à catequese, o Doc. de Ap., obviamente, não poderia deixar de falar, de modo explícito, sobre a especificidade da catequese. E ele o faz nos números 295 a 300. Diz que “os desafios que a situação da América Latina e o Caribe apresentam, exige uma identidade católica mais pes-soal e fundamentada. O fortalecimento desta identidade passa por uma catequese adequada que promova uma adesão pessoal e comunitária a Cristo, sobretudo, nos mais fracos na fé” (DAp 297).

Há, na VConf., um reconhecimento pelo imenso esforço realiza-do para atualizar e renovar a catequese em todo o Continente. Como é óbvio, ela é considerada, por pastores e famílias, como imprescindível na formação cristã. É enorme o número de comissões de catequese e, sobretudo, de catequistas generosamente entregues à missão, aos quais e às quais a V Conf. muito agradece (DAp 295).

Mas reconhece-se, por outro lado, históricas e graves falhas na catequese (DAp 296). São citados alguns exemplos: a) pouca formação teológica e pedagógica dos catequistas; b) subsídios, que são muitos, mas que não se integram na pastoral de conjunto e são sem métodos pedagógicos atualizados: c) famílias, ausentes da catequese, não cola-boram; d) párocos, e seus auxiliares, não assumem a tarefa de líderes e coordenadores da catequese...

3.2 Mudanças necessárias. O que pede o Doc. de Ap. será aten-dido, na proporção em que algumas situações forem mudadas em nossa Igreja, e algumas medidas, para isso, forem tomadas e levadas a sério. Citamos algumas:

a) Conscientizar a comunidade eclesial de que é ela que está encarregada da formação cristã de todos os seus membros. A comunidade precisa tomar todos os meios possíveis para ga-rantir essa formação, inicial e continuada, para todos e todas.

b) Comprometer, de modo especial, os bispos, os presbíteros e diáconos, para colocarem, como prioridade na missão de pasto-rear, que de Jesus receberam, a condução dos fiéis ao encontro pessoal com Jesus Cristo vivo, e a eles ensinarem tudo o que Ele mandou ensinar (cf. Mt 28, 19-20).

c) Introduzir o processo de iniciação cristã e, sobretudo, da inicia-ção à Vida Cristã, como meio específico para a formação dos

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Catequese iniciática segundo Aparecida

próprios catequistas. Isso significa libertar as escolas e cursos destinados à formação de catequistas, de seu tradicional caráter de minicursos acadêmicos de teologia, voltados excessivamente para o intelecto, sem a interação fé-vida, sem a linguagem ca-tequética da mensagem cristã, sem os processos pedagógicos da catequese (DAp 296). Isso requer uma formação integral do catequista: vida de oração, apreço pela liturgia, vivência comunitária, compromisso apostólico...

d) Dar ênfase à catequese permanente, continuada, como pro-cesso. Não mais reduzir a catequese à preparação para algum sacramento, mas torná-la verdadeira iniciação à vida cristã, na qual, em momentos oportunos, se celebrarão os sacramentos (DAp 298). Compete a cada Igreja particular, com a ajuda das Conferências Episcopais, estabelecer um processo catequético orgânico e progressivo que se estenda por todo o arco da vida, desde a infância até a idade avançada (DAp 276 - 280).

e) Orientar e insistir junto aos elaboradores de materiais para a catequese, e junto às editoras, para que assumam os caminhos renovadores da catequese, apontados pela Igreja (DAp 296);

f) Organizar bem os serviços da catequese nas paróquias e nas dioceses (DAp 296).

g) Envolver ao máximo os pais na catequese das crianças e dos adolescentes. A família é a primeira e principal escola da fé (DAp 302 – 303). E um modo concreto de renovar a catequese é possibilitar a iniciação cristã dos pais, portanto, realizar com eles a catequese com adultos (DAp 296). Aos poucos, os pais introduzirão em seus lares práticas cristãs como a oração da fa-mília, a leitura frequente da Palavra de Deus, o zelo por viver as virtudes cristãs. Que sejam, portanto, “igrejas domésticas”.

h) Priorizar, na catequese, as Sagradas Escrituras, indispensáveis para o conhecimento cada vez mais aprofundado de Jesus Cristo e do que ele quer de nós, da Igreja e do mundo.

i) Desenvolver, nos catequistas, uma forte espiritualidade de disci-pulado e missionariedade. Não se trata de mero devocionismo, mas de um deixar-se tomar inteiramente pelo fogo e pela vida do Espírito Santo, pelo impulso e ardor que dele provêm. Se isso existir, sem dúvida, a pessoa aprenderá a viver e expressar

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Irmão Nery,fsc

esse estilo de vida no trabalho, no diálogo, no serviço e na missão de cada dia (DAp 284)

k) Levar em conta a religiosidade popular, pois ela é parte vital da matriz cultural de nosso povo, e possui um grande potencial educativo a ser pedagogicamente bem trabalhado na catequese e na liturgia. Cuidar, sobretudo, de ajudar os fiéis a se apropriarem progressivamente das virtudes dos santos, de modo especial de Maria.

4 Mas, Aparecida ainda vale?

Hoje, sem dúvida, é tudo descartável, tudo passa rápido e se está em busca de novidade. Nossa Igreja é, sem dúvida, excelente produtora de documentos, mas infelizmente não possui estratégia para que eles cheguem ao povo e percorram um caminho renovador nas pessoas e instituições. Não é por falta de documentos, livros, CDs, DVDs, TVs, Internet, cursos, seminários, congressos, retiros... que a Igreja não está como deveria estar, face aos desafios do mundo contemporâneo. É uma questão de conversão, de comunhão e de unidade na ação. O clamor de Aparecida não passará nunca, especialmente nos seguintes três tópicos: a) renovação pessoal de todos os católicos do Continente, por meio do encontro pessoal com Jesus Cristo e da consequente conversão; b) re-novação ou conversão pastoral; c) compromisso pessoal dos fiéis com Jesus Cristo, com a comunidade eclesial e com a missão.

Os temas deste artigo não foram tratados exaustivamente. Mas, se assumirmos na oração, na reflexão pessoal e comunitária, a decisão apostólica de passar para a prática a riqueza da V Conf, evidentemente levaremos a sério Aparecida e o Projeto Missão Continental, e mudan-ças realmente significativas acontecerão na vida de todos e todas, como também na organização pastoral de nossa Igreja. E a catequese, com o impulso recebido por Aparecida, certamente poderá dar uma excelente contribuição para a grande missão de renovação dos fiéis e da Igreja nestes próximos anos.

Para isso, é urgente começar logo a zelar, efetivamente, para que a catequese esteja bem presente em tudo: a Paróquia seja ela toda catequé-tica (DAp 304-306); as pequenas comunidades e grupos estejam sempre aprofundando os conhecimentos, a experiência, a vida cristã (DAp 307-310), assim procedendo também os movimentos e novas comunidades (DAp 311-313); a catequese esteja bem presente nos Seminários e Casas

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de Formação religiosa (DAp 314 - 327); que, também, a educação católica (DAp 316, 328-330), sobretudo os centros educativos católicos (DAp 331-345) e as universidades e centros superiores de educação católica (DAp 341-346), cooperem, a seu modo e segundo suas possibilidades, para a sólida formação de todos os fiéis.

O Pentecostes de Aparecida precisa passar para as bases da Igreja e, aos poucos, atingir mais e mais pessoas, renovando todos os fiéis e as estruturas da Igreja. A tarefa de comunicar, refletir e aplicar o espírito do documento de Aparecida é, portanto, imprescindível. Na verdade, a V Conf precisa continuar acontecendo em nosso dia-a-dia, depois daquele grande e histórico evento de 13 a 31 de maio de 2007, no Santuário Nacional de Aparecida.

O chamado à conversão pessoal para ser discípulos e missionários de Jesus Cristo, no compromisso forte com a Comunidade Eclesial e com a missão, em vista de que nossos povos tenham vida plena, marca a caminhada da Igreja na América Latina e no Caribe hoje. Em destaque, para nós, evidentemente, a opção pelo Jesus histórico, por mandato do Pai comprometido com a evangelização dos pobres, com a libertação dos oprimidos e excluídos, em vista de um mundo segundo os valores do Reino de Deus.

Endereço do Autor:São Paulo, SP.

E-mail: [email protected]

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 95-110.

* A autora pertence à Congregação das Irmãs Paulinas, é doutora em Teologia Dog-mática, professora de Cristologia, responsável pela área de Teologia e membro do Conselho Editorial de Paulinas Editora. Participa da Equipe de Reflexão teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil e da CLAR. É membro da Sociedade de Teolo-gia e Ciências da Religião e autora do livro Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino, publicado por Paulinas Editora.

Resumo: Conceber a identidade e a missão da vida religiosa consagrada como um caminho especial de seguimento de Jesus, o Missionário do Pai, é situá-la no amplo horizonte do discipulado missionário, retomado, com força e convicção, no Documento de Aparecida. Todos os carismas dos institutos, de vida contemplativa e ativa, existem para percorrer o caminho de Jesus e dar continuidade à sua missão. A Igreja conta com a colaboração da vida religiosa consagrada, na gestação de uma nova geração de discípulos missionários e de uma nova sociedade, onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa. A vida religiosa consagrada está empenhada em reavivar sua dimensão profético-missionária, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos pobres e fortalecendo o com-promisso com as grandes causas sociais, econômicas, políticas e ambientais.

Abstract: The document of Aparecida has a quite unique approach to the identity and the mission of religious life involving consecrated persons by focusing on the special lifestyle of following Jesus, the missionary of God the Father. Moreover, religious life is to be seen in a wider context of a missionary discipleship with new vigor and personal convictions. All the charisms of the religious institutes, of contemplative and active communities, are called to follow the way of Jesus and to strife to give continuity of his mission. The Church counts on the cooperation of religious life embraced by consecrated persons, and on the growth both of a new generation of missionary disciples and of a new society safeguarding justice and human dignity. Religious life manifested by consecrated persons should revive the prophetic and missionary dimension, exercising activities in urban peripheries and opening up new frontiers, intensifying the Christian option for the benefit of the poor and strengthening the commitment to major causes in the area of social, economic, political, and ecological interests.

Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundoVera Ivanise Bombonatto, fsp*

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Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo

Introdução

A proposta pastoral de Aparecida é ampla e ousada: passar de uma Igreja centrada na pastoral da conservação do passado a uma Igreja em permanente estado de missão, em que cada cristão seja discípulo-missio-nário de Jesus Cristo, “para que nele nossos povos tenham vida”.

Nesse horizonte, abrangente e desafiador, situam-se as referências do Documento de Aparecida à vida religiosa consagrada, particularmente os números 216-224 do capítulo V, intitulado A comunhão dos discípulos missionários na Igreja. São nove artigos que trazem como subtítulo Os consagrados e consagradas, discípulos missionários de Jesus Teste-munha do Pai, e situam a vida religiosa consagrada entre os discípulos missionários com vocações específicas na Igreja.

Sem ter a pretensão de esgotar o tema, esta breve reflexão tem por objetivo aprofundar o discipulado e a missão da vida religiosa con-sagrada tendo por base o Documento de Aparecida, em sintonia com o horizonte e as prioridades da Conferência dos Religiosos do Brasil para o triênio 2011-2013.1

1 Compromisso discipular-missionário

Inicialmente, retomando o Documento da Sagrada Congregação para os Institutos de vida consagrada, Vita consecrata,2 Aparecida rea-firma que a vida consagrada é:

– Dom do Pai, por meio do Espírito, à sua Igreja.– Caminho de especial seguimento de Jesus Cristo, para dedicar-

se a ele com coração indiviso e colocar-se, como ele, a serviço de Deus e da humanidade, assumindo a forma de vida que Cristo escolheu para vir a este mundo: vida virginal, pobre e obediente.

– Constitui elemento decisivo para sua missão (n. 216).

1 O horizonte e as prioridades para o triênio 2011-2013 foram escolhidos na Assembleia Geral Eletiva, realizada em Brasília, nos dias 19-22 de julho de 2010, que teve como tema: “Vida religiosa em contexto plural: identidade, relações e paixão pelo Reino” e como lema: “De olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2).

2 Cf. n. 1, 3, 4, 16 e 18.

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Ressalta, dessa forma, três dimensões essenciais da vida consa-grada: trinitária, cristocêntrica e eclesial. Essa referência coloca a vida consagrada no horizonte do seguimento radical de Jesus. É nele que ela encontra a razão de ser, e é a partir dele que entendemos sua existência, a vida mística e a missão profética. Em meio aos grandes desafios do mun-do complexo e plural, a vida religiosa consagrada é impulsionada pela Palavra de Deus a avançar “com os olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2).3

Ter o olhar fixo em Jesus é seguir seus passos; é ter uma relação profunda e pessoal com ele. O seguimento tem duas dimensões intima-mente relacionadas entre si: estar com Jesus: permanecer unido a Jesus e, com ele e como ele, fazer a experiência de Deus: é a dimensão do ser discípulo, da espiritualidade; ser para Jesus: dar continuidade à missão de anunciar o Reino de Deus: é a dimensão do ser missionário. Jesus chama e envia. Existe uma profunda e íntima relação entre chamado e envio, entre assemelhar-se a ele e ser enviado em missão.

Os religiosos e religiosas são vocacionados a estar com Jesus na mais profunda intimidade e a ser para ele de modo pleno e total. Todos os carismas religiosos na Igreja participam deste ser missionário. Cada congregação, de acordo com o dom do Espírito que lhe é concedido para o bem de todo o Corpo Místico de Cristo.

No contexto de uma sociedade secularizada, que atinge também a vida consagrada, os religiosos e as religiosas são chamados a teste-munhar a absoluta primazia de Deus e a paixão pelo seu Reino. A vida consagrada se converte em testemunha:

– do Deus da vida em uma realidade que relativiza seu valor (obediência),

– da liberdade frente ao mercado e às riquezas, que valorizam as pessoas pelo ter (pobreza),

– de entrega no amor radical e livre a Deus e à humanidade, frente à erotização e banalização das relações (castidade), (n. 219).

Essa referência aos votos religiosos deve ser entendida no contexto do seguimento de Jesus pobre, casto e obediente ao projeto do Pai, e em chave de testemunho escatológico.

É importante notar que Aparecida interpreta a identidade e missão da vida consagrada à luz do tema da Conferência: Discípulos missioná-

3 Cf. CRB. Horizonte para o triênio 2011-2013.

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rios de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida e do lema bíblico: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Afirma que a Vida consagrada é chamada a ser:

– Vida discipular: apaixonada por Jesus-caminho ao Pai, e por isso, de caráter profundamente místico e comunitário.

– Vida missionária: apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo radicalmente profética, capaz de mostrar a luz de Cristo às sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova, para o que se requer um profetismo que aspire até à entrega da vida, em continuidade com a tradição de santidade e martírio de tantas e tantos consagrados ao longo da história do Continente.

– Vida a serviço do mundo, apaixonada por Jesus-vida do Pai que se faz presente nos pequenos e nos últimos, a quem serve a partir do próprio carisma e espiritualidade (n. 220).

Em sintonia com Aparecida, a CRB, tem como uma de suas prioridades: “Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão por Jesus e seu Reino mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração encarnada, a contemplação sapiencial da realidade, o compromisso discipular-missionário, a convivência como irmãos e irmãs e a comunhão com toda a criação.”

Aparecida reconhece a atuação profética da vida consagrada em nosso continente, situando-a na grande virada que a Igreja latino-ameri-cana e caribenha é chamada a dar: passar de uma pastoral da conservação para uma pastoral missionária. Esta gigantesca tarefa exige mudança de mentalidade e de comportamento. Certamente, a vida consagrada, que por vocação é chamada a ser discípula missionária e a estar a serviço da vida, tem uma contribuição qualificada a dar para a realização dessa desafiante proposta.

Essa contribuição qualificada será eficaz na medida em que os religiosos e religiosas se colocarem radicalmente no seguimento de Jesus Caminho, Verdade e Vida da humanidade, sendo também eles caminho, verdade e vida para a humanidade hoje.

Outro aspecto relevante no Documento, ao tratar da vida consa-grada, é a referência à comunhão: “A partir do seu ser, a vida consagrada é chamada a ser especialista em comunhão, no interior tanto da Igreja quanto da sociedade” (n. 218). “Não pode existir vida cristã fora da

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comunhão: nas famílias, nas paróquias, nas comunidades de vida con-sagrada...” (278 d).

Essa vida em comum-união tem seu fundamento e modelo no mistério trinitário: os religiosos e religiosas são con-vocados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a viver em comunhão à luz do próprio carisma institucional.

O Documento de Aparecida traz uma referência especial à vida religiosa contemplativa, “testemunha de que somente Deus basta, para preencher a vida de sentido e de alegria” (n. 221). Em relação às novas formas de vida consagrada, recomenda que sejam “acolhidas e acompa-nhadas em seu crescimento e desenvolvimento no interior da Igreja” e pede aos Bispos que usem “discernimento sério e ponderado sobre seu sentido, necessidade e autenticidade” (n. 222).

De forma geral, o Documento afirma que “os Pastores valorizam como inestimável dom a virgindade consagrada, daqueles e daquelas que se entregam a Cristo e à sua Igreja com generosidade e coração indiviso, e se propõem velar por sua formação inicial e permanente.” (n. 222).

Na Igreja, rica em dons e ministérios, a vida religiosa consagra-da apresenta-se plural em seus carismas e, ao mesmo tempo, unida no mesmo Espírito.

2 Diversidade de carismas, unidade missionária

A vida religiosa nasce como alternativa à vida cômoda e ao cristia-nismo aburguesado. Surge, portanto, como consciência crítica da própria Igreja. Ao longo dos séculos, o Espírito suscitou e continua suscitando na Igreja diferentes formas de vida consagrada, que são expressão do único mandamento do amor dado por Jesus, na sua conexão indivisível entre amor a Deus e amor ao próximo.4 Esse amor se concretiza na entrega da própria vida, para dar continuidade ao projeto missionário de Jesus. Por conseguinte, a missão é elemento essencial da vida consagrada, não só da vida apostólica ativa, mas também da vida contemplativa.5

Os modos de concretizar a missão são múltiplos, e variam de acordo com as necessidades dos tempos e do contexto sociocultural. Os

4 Cf. João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Vita consecrata, n. 5.5 Cf. João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Vita consecrata, n. 72.

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fundadores e fundadoras das congregações e institutos religiosos, à luz do Espírito, souberam ler os sinais dos tempos e deram inicio a novas formas de vida religiosa adequadas às necessidades.

De acordo com a Exortação apostólica pós-sinodal Vita consecrata, a contribuição específica dos consagrados e consagradas para a evangeli-zação consiste, em primeiro lugar, no testemunho de uma vida totalmente entregue a Deus e aos irmãos, seguindo o exemplo de Jesus que se fez servo de todos, por amor. As pessoas consagradas não se limitam a dar uma parte de seu tempo para a missão, mas entregam a vida toda, as forças físicas e os dons recebidos, colocando-os a serviço do Reino de Deus.

Quem segue Jesus assume o compromisso de dar continuidade ao seu projeto. Daqui nasce o ardor missionário, tanto dos que seguem Jesus na vida contemplativa como na vida ativa. Para entender essa realidade, é importante aprofundar o conceito de missão.

3 Missão: compromisso existencial

A palavra missão deriva do latim missio e etimologicamente significa enviar; designa o envio de uma ou mais pessoas para um de-terminado lugar ou situação, com uma tarefa específica a ser cumprida em benefício de um ou mais destinatários. No vocabulário teológico, o conceito de missão é amplo e possui um caráter dinâmico e relacional. Estabelece uma relação vital entre: a pessoa que detém uma mensagem e envia a comunicá-la; o enviado que deve anunciar e testemunhar a mensagem; o interlocutor que recebe a mensagem.

Deus Trindade: o Pai, por meio de seu Filho, na força do Espírito, nos envia a comunicar seus dons de vida e salvação, os enviados somos todos nós, discípulos missionários, e nosso interlocutor é a humanidade inteira. Como cristãos, estamos em relação, profunda e vital, com Deus que nos envia e com o povo a quem “somos devedores do Evangelho” (cf. Rm 1,14).

No Antigo Testamento, a missão refere-se a uma tarefa específica: é a escolha de uma pessoa por parte de Deus e o seu envio a alguém com uma mensagem a transmitir ou uma atividade a realizar. O destinatário é, em geral, o povo de Deus ou, às vezes, até nações ou pessoas longínquas, como no caso de Moisés e dos profetas.

No Novo Testamento, em geral, a missão refere-se, primeiramente, ao Pai que envia ao mundo seu Filho Jesus, na força do Espírito. Jesus é o

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enviado por excelência, o Missionário do Pai que armou sua tenda entre nós, veio para fazer a vontade do Pai e consumar sua obra (cf. Jo 4,34). A missão é a ação do próprio Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho, no Espírito, revelando-se na obra da Criação do universo e do ser humano, na realidade histórica, na pessoa humana, até que “Cristo seja tudo em todos” (cf. Col 3,11).

Ao concluir sua obra redentora, Jesus, por sua vez, envia os Doze após-tolos e os discípulos de todos os tempos e lugares para serem suas testemunhas e anunciarem o Evangelho a todas as nações, até os confins do Universo. Missão é anunciar e testemunhar a experiência do amor de Deus, único e irrepetível, que se manifesta na Criação, na História e, de modo novo e definitivo, na vida, morte e ressurreição de Jesus, Salvador da humanidade.

Para o discípulo, a missão não é tarefa ocasional, mas parte integrante da sua identidade cristã; é extensão testemunhal da mesma vocação: o discípulo é chamado e enviado em missão. Todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão, ao mesmo tempo em que o vincula a si. Como Jesus é testemunha do mistério do Pai, assim os discípulos são testemunhas da morte e ressurreição do Senhor até que ele venha (cf. DA, n. 144).

A Igreja, desde o início, teve consciência da necessidade de procla-mar a alegre notícia de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, testemunhando-o por toda a parte até com o sacrifício da própria vida. A Igreja é, por sua natureza, missionária. Na fidelidade a Cristo Jesus, Salvador universal, a Igreja, ao longo da história, sempre se preocupou em responder ade-quadamente a essa missão de ser portadora da Boa Nova e sacramento universal de salvação (cf. LG n. 48).

Como chamado e enviado em missão, o discípulo é um enamorado de Jesus Cristo: chamado a seguir o Mestre Jesus, a tornar-se parecido com ele. “No seguimento de Jesus, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e pequenos, sua fidelidade à missão recebida, seu amor serviçal até a doação de sua vida” (DA n. 139).

No caminho do seguimento de Jesus, o conhecimento da ver-dade sobre a pessoa de Jesus e o consequente apaixonar-se por ele é o resultado de um processo relacional e dinâmico, em que o seguidor vai, progressivamente, se confrontando com a pessoa de Jesus e com

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seus ensinamentos. Nesse confronto, toma consciência da identidade de Jesus, Filho de Deus, e vai descobrindo sua própria identidade de discípulo missionário.

O seguimento de Jesus introduz na vida do discípulo uma força dinamizadora, capaz de subtraí-la de toda rigidez e estagnação. A missão do discípulo é vivificada pela força da palavra de Jesus que chama: “Vem e segue-me” (cf. Mt 4, 18-22) e envia: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16,15). Ser discípulo missionário é entrar no movimento da vida de Jesus que arma sua tenda entre os pobres e excluídos deste mundo, anunciando-lhes a boa-nova do Reino, que passa pela cruz, mas não termina nela e sim na ressurreição.

Na vida religiosa, concebida como seguimento radical de Jesus, é im-portante estabelecer a distinção entre “missão” e “atividade apostólica”.

4 Atividades apostólicas expressam a missão

Na vida consagrada, em sentido amplo, atividades apostólicas são as tarefas, manuais ou intelectuais, que desenvolvemos, em geral, de forma constante, e que estão sujeitas às coordenadas do tempo e ligadas a um determinado espaço, seja ele físico ou virtual.

É a gama de atividades que concretiza, expressa, mas não esgota a missão própria de cada congregação ou instituto. Em geral, são as atividades ligadas às obras apostólicas próprias de cada congregação ou instituto, que identificam e, ao mesmo tempo, aproximam os religiosos (as) da vida do povo.

Neste momento histórico em que estamos vivendo, caracterizado por profundas e rápidas transformações, as atividades apostólicas que expressam a missão trazem consigo inúmeros desafios para a vida con-sagrada. Entre eles, podemos citar:

– o excesso de ocupações na agenda dos religiosos (as), que podem levar ao estresse e ao ativismo, em detrimento do tes-temunho e do anúncio qualificados;

– a relação entre vida consagrada e profissionalismo, que exige maturidade e vivência profunda dos valores religiosos, na busca constante de um sadio equilíbrio;

– a relação patrão e empregado nas obras apostólicas, que requer conhecimento das leis trabalhistas e um ambiente de trabalho

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que respeite a pessoa e possibilite o seu crescimento humano-espiritual;

– a questão das estruturas organizativas, que, muitas vezes são rígidas e centralizadoras das decisões;

– as relações de poder, que devem ser pautadas no poder-serviço.

Esses desafios, entre outros, exigem constante reflexão e discernimen-to, tendo como realidade central a vida, o exemplo de Jesus, que afirmou “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

5 A Missão da vida religiosa: dar continuidade ao projeto de Jesus

Na perspectiva da vida religiosa entendida como “caminho de especial seguimento de Jesus”, a missão é a vida, o ser de pessoas consa-gradas entregues, na totalidade e na radicalidade, como expressão de amor incondicional a Deus e aos irmãos. Transcende o tempo e o espaço. Não se resume na realização de tarefas isoladas, de um programa ou de um projeto; é compartilhar a experiência do encontro com Jesus, testemunhá-lo e anunciá-lo a todos, conforme o mandato de Jesus: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).

Missão é:

– testemunhar a alegria que brota da certeza de que Jesus res-suscitado está vivo em nosso meio;

– comunicar o amor gratuito de Deus Trindade para com cada um (a) de nós;

– revelar o rosto terno e misericordioso de Deus Trindade.Jesus, o Missionário do Pai, veio para que todos tenham vida, e vida

plena (cf. Jo 10,10). Ele afirmou: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,21). Sua vida, seus ensinamentos e sua pedagogia constituem o modelo para o nosso agir missionário, em uma sociedade globalizada e excludente. O discípulo missionário segue os passos de Jesus: na humil-dade, no serviço, no amor incondicional a Deus e à humanidade.

A missionariedade como elemento essencial da vida consagrada expressa-se, particularmente, em três aspectos intimamente relaciona-dos: a própria consagração, a vida segundo o Espírito e o viver em comunhão.

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Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo

A própria consagração: a pessoa consagrada, por força de sua consagração é, em si mesma, missionária, pois testemunha, segundo o projeto de seu respectivo carisma institucional, a presença do Ressus-citado, e se torna luz, sal e fermento de vida nova para a sociedade. “A própria vida consagrada, sob a ação do Espírito, faz-se missão. Quanto mais os consagrados se deixarem conformar a Cristo, tanto mais o tornam presente e operante na história da salvação da humanidade”.6

A vida segundo o Espírito: nossa experiência de Deus constitui o lugar, por excelência, da nossa missão. Nossa vida consagrada carac-teriza-se pela profunda e intima relação com Deus Trindade: o Pai que nos criou e nos recria a cada momento, o Filho no qual temos os olhos fixos como autor e consumador de nossa fé, (Hb 12,2) e o Espírito que habita em nós e nos transforma em novas criaturas.

A contemplação do rosto terno e misericordioso de Deus nos faz per-ceber, na sua luz, as injustiças, a violência, o desrespeito à dignidade humana e nos estimula a lutar contra todos os males que oprimem a vida humana e dificultam o crescimento do Reino de Deus em nosso meio. Sabemos que, para dar muitos e abundantes frutos em nossa missão, precisamos permanecer unidos a Jesus, como a videira unida aos ramos (cf. Jo 15,1-17).

O viver em comunidade, cuja origem e modelo é a comunhão de amor das três Pessoas divinas, constitui um testemunho missionário. Cria-das à imagem de Deus Trindade, trazemos em nós a marca existencial de sua semelhança, e somos vocacionados à comunhão. Jesus congregou um grupo de discípulos e discípulas para formar uma comunidade que vive a unidade (cf. Jo 17,21). A vida em comunidade é um espaço privilegiado para o crescimento e amadurecimento humano. É o lugar do testemunho do amor de Deus e do próximo, do reconhecimento de que realmente somos seguidores e seguidoras de Jesus. “Nisto reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35).

A nossa vida consagrada será tanto mais missionária quanto mais íntima for a nossa comunhão e a nossa entrega ao Senhor, mais fraterna a nossa vida comunitária e maior for o nosso compromisso com a missão específica de cada instituto.7 Aparecem aqui as dimensões essenciais da vida consagrada: a experiência de Deus, a vida fraterna e a missão. Esses pilares constitutivos devem ser vividos à luz da vontade expressa por

6 Partir de Cristo, n. 9.7 Vita Consecrata, n. 72.

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Jesus: Ide por todos os lugares e pregai o Evangelho a todas as criaturas, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a praticar tudo o que lhes ensinei (cf. Mc 16,15 e Mt 28,19-20).

A missão é o lugar privilegiado para explicitar nossa profecia e, por isso, traz alguns desafios:

– a relação entre missão e obras apostólicas, que exige a elabo-ração participativa de projetos apostólicos consistentes e em sintonia com o próprio carisma institucional;

– a opção pelos pobres, implícita na fé cristológica, que deve levar a descobrir os novos rostos da pobreza e a fazer escolhas apostólicas coerentes e corajosas;

– o respeito à dignidade da pessoa e a promoção humana, que ajude a superação da violência e de todos os males que afligem a vida humana, e ao engajamento nas grandes causas humani-tárias atuais, sempre de acordo com o próprio carisma;

A reflexão e o discernimento sobre esses enormes desafios ajudam os religiosos e religiosas a saírem do comodismo e a reverem as pró-prias estruturas apostólicas, a fim de que a vida religiosa consagrada, contemplativa e apostólica, seja missionária e a missão seja profética, colaborando para gestar uma nova geração de discípulos missionários e uma nova sociedade.

6 Esperanças de Aparecida em relação à vida consagrada

Há uma esperança fundamental que atravessa todo o Documento de Aparecida, que se transforma em proposta audaciosa: fazer de todos os cristãos “discípulos missionários de Jesus Cristo para que nele nossos povos tenham vida”. Essa proposta fundamental envolve e compromete a vida consagrada, chamada, segundo seus carismas, a colaborar na gestação de:

– uma nova geração de cristãos discípulos missionários, e– uma nova sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade

das pessoas (n. 217). Para atingir esse objetivo, a vida religiosa se propõe avivar sua

dimensão profético-missionária, atuando nas novas periferias e fronteiras,

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intensificar a opção pelos pobres, e fortalecer o compromisso com as grandes causas sociais, econômicas, políticas e ambientais.8

Colaborar na gestação de uma nova geração de discípulos missionários

O Documento de Aparecida reconhece a colaboração da vida consagrada para a missão da Igreja (n. 217). No texto, o verbo cola-borar é usado no presente colaboram, indicando uma realidade que já está acontecendo. Ao mesmo tempo, coloca algumas condições para que continue ocorrendo: “fazer de seus lugares de presença, de sua vida fraterna em comunhão, e de suas obras, lugares de anúncio explícito do Evangelho, principalmente aos mais pobres, como tem sido em nosso continente desde o início da evangelização” (n. 217).

Esta afirmação, de um lado, provoca a vida religiosa a um profundo exame de consciência acerca da qualidade da presença, das relações fra-ternas, das obras apostólicas. Por outro, sabemos que, em muitos lugares, dada a situação de extrema carência de nosso povo, o anúncio explícito do Evangelho necessita ser acompanhado com obras de promoção humana e de defesa da vida, que garantam sua dignidade e sobrevivência.

Entretanto, não resta dúvida de que o objetivo que se quer alcançar é desafiante: formar uma nova geração de cristãos discípulos missionários. É importante perguntar-se: qual é a identidade desta nova geração de discípulos missionários? No próprio Documento, encontra-se a resposta. O discípulo missionário é vocacionado à santidade e à comunhão na alegria de ser:

– chamado a seguir Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida (n. 129-135) e a identificar-se com Ele (n. 136-142), por meio do encontro pessoal que se concretize numa experiência profunda de fé,

– enviado a anunciar o Evangelho do Reino da vida (n. 143-148),– animado pelo Espírito Santo (n. 149-153),– chamado a viver em comunhão com todo o povo de Deus

(n.154-162).O chamado ao seguimento de Jesus, a progressiva configuração

a Ele, o envio, a vida no Espírito e a comunhão, que caracterizam o ser

8 Cf. CRB. Prioridade 2 para o triênio 2011-2013.

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discípulo missionário, não são realidades justapostas, mas complementa-res e estão profundamente inter-relacionadas, constituindo um itinerário mistagógico de santificação.

O Documento de Aparecida especifica alguns lugares de encontro com Jesus Cristo: a Sagrada Escritura, a Sagrada Liturgia, a Eucaristia, a reconciliação, a oração pessoal e comunitária, os pobres, aflitos e en-fermos, a piedade popular (n. 246-265).

Destaca a importância do caminho formativo do discípulo mis-sionário; um processo que comporta cinco aspectos fundamentais e complementares: o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipu-lado, a comunhão e a missão (n. 278). Essa formação deve respeitar os seguintes critérios básicos:

– ser integral, querigmática e permanente, – estar atenta às dimensões humana e comunitária, espiritual,

intelectual, pastoral e missionária, – respeitar os processos e acompanhar o discípulo – formar na espiritualidade da ação missionária (n. 279-285).A realidade da formação do discípulo missionário em todas as suas

dimensões apresenta-se como um amplo espaço de transformação para a vida consagrada, que engloba uma dupla exigência: requer uma atenção especial na formação inicial e continuada de seus membros; e abre a possibilidade de ações concretas no campo da formação dos discípulos missionários, de acordo com a especificidade do próprio carisma.

Colaborar na gestação de uma sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana

Essa nova sociedade, caracterizada pela vida em plenitude para a pessoa inteira e para os nossos povos, é o sonho de todos. Sua gestação inclui a promoção e a libertação integral da pessoa humana e de todas as pessoas, tornando-as sujeitos e protagonistas da sua própria história. Ela será fruto de um discipulado e de uma Igreja discípula em permanente estado de missão.

O discípulo é chamado e enviado em missão a serviço da vida. A opção pela vida é parte integrante do caminho de seguimento de Je-sus que afirmou: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Vida concreta em todas as suas dimensões e

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Vida Religiosa consagrada: rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo

em todas as suas etapas, que inclui ações imediatas e políticas públicas que garantam vida plena.

Consequentemente, o discípulo missionário compromete-se com a opção preferencial pelos pobres “implícita na fé cristológica no Deus que se fez pobre para enriquecer-nos com sua pobreza” (Bento XVI).

O grande desafio para a Igreja e para a vida religiosa consiste em descobrir os novos rostos da pobreza (n. 402), os novos sujeitos sociais, os novos excluídos. Esses novos rostos estão nas novas fronteiras, nas novas periferias, nos novos desertos, que são espaços em transformação.

O Documento de Aparecida indica os lugares de gestação desta nova sociedade, que são também espaços de formação dos discípulos missionários: a família, primeira escola da fé (n. 302-303), as paróquias (n. 304-305), as pequenas comunidades eclesiais (n. 307-310), os mo-vimentos eclesiais e novas comunidades (n. 311-313), os seminários e casas de formação (n. 314-327), a educação católica (n. 328-346).

Para a gestação dessa nova sociedade, destacamos aqui aquelas impli-cações em que o Documento refere-se explicitamente à vida consagrada.

– Conversão pastoral: “... consagrados e consagradas... são chamados a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral, que implica escutar com atenção e discernir “o que o Espírito está dizendo às Igrejas” (Ap 2,29), através dos sinais dos tempos em que Deus se manifesta” (n. 366).

– Diálogo ecumênico: “... incentivamos... a vida consagrada... a participarem de organismos ecumênicos, com cuidadosa pre-paração e esmerado seguimento dos pastores, e a realizarem ações conjuntas nos diversos campos da vida eclesial, pastoral e social” (n. 232)

– Pastoral urbana: “Um plano de pastoral orgânico e articulado que se integre em projeto comum às paróquias, comunidades de vida consagrada, pequenas comunidades, movimentos e instituições que incidem na cidade, e que seu objetivo seja chegar ao conjunto da cidade.” (n. 518 b).

Essas provocações de Aparecida encontram eco na preocupação da vida religiosa de qualificar suas relações, de dialogar com as diferenças pessoais, culturais, étnicas, religiosas, geracionais e de gênero.9

9 Cf. CRB. Prioridade 3 para o triênio 2011-2013.

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7 Vida consagrada na Igreja

No que diz respeito à relação da vida consagrada com a Igreja, o Do-cumento de Aparecida assim se exprime: “A vida e a missão dos consagrados devem estar inseridas na Igreja particular e em comunhão com o Bispo. Para isso, é necessário criar meios comuns e iniciativas de colaboração que levem a um conhecimento e valorização mútuos e um compartilhar da missão de todos os chamados a seguir Jesus” (n. 218, cf. 169). É importante salientar que os meios comuns e as iniciativas de colaboração levem a um conheci-mento e valorização mútuos e a compartilhar a missão. Para isso, requer-se, de ambas as partes, abertura ao diálogo e respeito recíproco.

O Documento de Aparecida reconhece a missão de serviço e animação da vida consagrada dos organismos nacionais e continentais: Confederação de Institutos seculares (CISAL), Confederação dos religiosos da América Latina (CLAR), e as Conferências Nacionais dos Religiosos.

Por fim, o Documento de Aparecida lembra que os povos latino-americanos e caribenhos esperam muito da vida consagrada nas suas várias expressões: contemplativa, de vida apostólica e secular. Ela revela o rosto materno da Igreja. “Seu desejo de escuta, acolhida e serviço, e seu testemu-nho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade latino-americana e caribenha, fundada em Cristo, é possível” (n. 224).

Conclusão: “de olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2)

O Documento de Aparecida retoma, com força e convicção, a realidade fundamental do cristão: a missão não é privilégio de alguns discípulos, mas compromisso de todos, implícito no seguimento de Je-sus. Ele chama e envia em missão. Definir a vida consagrada como um caminho especial de seguimento de Jesus, o Missionário do Pai, é situá-la no amplo horizonte do discipulado missionário. Todos os carismas dos institutos religiosos, de vida contemplativa e ativa, existem para prosse-guir o caminho de Jesus e dar continuidade à sua missão.

Não é possível compreender a vida religiosa consagrada senão a partir da missão, entendida como continuidade do modo de ser e de viver de Jesus. Tanto a vida contemplativa como a apostólica só se justifica a partir da missão que lhes foi confiada, pela bondade de Deus, por meio dos Fundadores e Fundadoras, para a salvação da humanidade.

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Nas fronteiras da Igreja, sempre houve consagrados e consagradas dispostos a serem fiéis testemunhas de Jesus Cristo, até a entrega da própria vida. A história missionária da Igreja está povoada por “uma nuvem de testemunhas” (cf. Hb 12,1), que tiveram a ousadia de caminhar “de olhos fixos em Jesus” (Hb 12,2), e regada pelo sangue de muitos religiosos e religiosas mártires, que deram vida “por causa de Jesus” (2Cor 4,11).

Bibliografia:

AMERÍNDIA (org.). Aparecida, o renascer da esperança. São Paulo: Paulinas, 2006.BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002.BRIGHENTI, Agenor. A desafiante proposta de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2008.CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2007.CONGREGAÇÃO para os Institutos de Vida Consagrada e as sociedades de vida apostólica. Partir de Cristo. São Paulo: Paulinas, 2002.JOÃO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal “Vita Consecrata”. Paulinas: São Paulo, 1996.JOSAPHAT, Frei Carlos. Bartolomeu de las Casas. Espiritualidade contemplativa e militante. São Paulo: Paulinas, 2008.NOLAN, Alberto. Jesus hoje: uma espiritualidade de liberdade radical, Paulinas: São Paulo, 2008. PANAZZOLO, João, Missão para todos: introdução à missionologia, São Paulo: Paulus, 2006.SOBRINO, Jon. O Princípio Misericórdia. Descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis: Vozes, 1994. REVISTA eletrônica Ciberteologia. Disponível em: <www.ciberteologia.com.br>.

Endereço da autoraRua Dona Inácio Uchoa, 62

CEP 04110-020 São Paulo, SP

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 111-122.

* O autor é Mestre em História pela UnB. Professor de História da Igreja Antiga no Curso de Pós-graduação lato sensu em História do Cristianismo Antigo na UnB; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura (franciscanos conventuais); presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil); assessor da CNBB para as CEBs.

1 Conferir, do mesmo Autor, o artigo “As CEBs no Documento de Aparecida”, publicado nesta revista em 2008: Encontros Teológicos n. 51, ano 23, número 3, pp. 99-110.

Resumo: O Documento de Aparecida convoca toda a Igreja latino-americana e caribenha a se colocar em estado permanente de missão (DA 551). Uma Igreja em estado permanente de missão exige a conversão pastoral de nossas comunidades, que se vá além de uma pastoral de mera conservação, para uma pastoral decididamente missionária (DA 370). Neste processo, Aparecida clama por uma renovação da Paróquia. Concretamente aponta uma saída: que os agentes missionários promovam a criação de comunidades de famílias, que coloquem em comum sua fé e as respostas aos seus problemas (DA 372). Em outras palavras, criar Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Neste artigo queremos enfrentar esta questão.

Abstract: The Document of Aparecida convokes all the Latin American and Caribbean Church to place in permanent state of mission (DA 551). A Church in permanent state of mission demands the pastoral conversion of our communities, and goes beyond a pastoral of mere conservation to a pastoral decidedly mis-sionary (DA 370). In this process, Aparecida clames for a renewal of the Parish. It points an exit: that the missionary agents promote the creation of communities of families, who place its faith in common and the answers to its problems (DA 372). In other words, to create Basic Eclesial Communities (CEBs). In this article we want to face this question.

Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs1

Sérgio Ricardo Coutinho*

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Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs

1 A Renovação missionária deve impregnar todas as estruturas eclesiais (DA 365)

O Documento de Aparecida convoca toda a Igreja latino-americana e caribenha a se colocar em estado permanente de missão (DA 551). Para isso, pelo menos 4 exigências se apresentam.

Primeiro, a Igreja, para que ela seja toda missionária, necessita desinstalar-se de seu comodismo, estancamento e tibieza (DA 362). Em segundo lugar, para que a pessoa inteira e todas as pessoas tenham vida em plenitude, cada comunidade cristã precisa converter-se em “um po-deroso centro de irradiação da vida em Cristo” (DA 362). Em terceiro, para que esta firme decisão missionária de promoção da cultura da vida impregne todas as estruturas eclesiais e todos os planos de pastoral, em todos os níveis eclesiais, bem como toda a instituição, abandonando as ultrapassadas estruturas (DA 365).

Por fim, uma Igreja em estado permanente de missão exige a con-versão pastoral de nossas comunidades, que se vá além de uma pastoral de mera conservação, para uma pastoral decididamente missionária (DA 370). Com isso, está em jogo sua própria renovação eclesial.

Diante das transformações sociais e culturais, uma renovação eclesial deve envolver reformas espirituais, pastorais e também institucionais (DA 367).

Nesse processo, Aparecida clama por uma renovação da Paróquia. Esta é célula viva da Igreja, mas faz-se necessário sua vigorosa reno-vação, a fim de que seja, de fato: espaço de iniciação cristã, educação e celebração da fé, aberta à diversidade dos carismas, serviços e minis-térios; organizada de maneira comunitária e responsável; integradora de movimentos; aberta à diversidade cultural e a projetos pastorais supra-paroquiais e das realidades circundantes (DA 170). A renovação das paróquias exige reformular suas estruturas, para que sejam redes de comunidades e de grupos (DA 173).

Desse modo, continua o documento, levando-se em consideração as dimensões de nossas paróquias, é aconselhável uma setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e de coordenação, que permitam maior proximidade às pessoas e a grupos que vivem na região. Concretamente, Aparecida aponta uma saída: que os agentes missionários promovam a criação de comunidades de famí-lias, que coloquem em comum sua fé e as respostas aos seus problemas

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Sérgio Ricardo Coutinho

(DA 372). Em outras palavras, criar Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Em relação à Igreja no Brasil, essa proposta já vem se desenvol-vendo há muitos anos, desde a elaboração de seus Planos de Pastoral e das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, bem como na organização pastoral da CNBB.

2 As CEBs na estrutura organizativa da Igreja no Brasil

A Igreja no Brasil, nos últimos 60 anos, sempre procurou estar em sintonia com os “sinais dos tempos” e a responder aos desafios postos para o trabalho evangelizador.

Em 1962, em resposta a uma carta que o Papa João XXIII enviara às Igrejas latino-americanas, os bispos do Brasil criaram o seu primeiro Plano de Pastoral, visando abranger todo o território nacional. Assim, nasceu o Plano de Emergência (PE), seis meses antes da abertura do Concílio Vaticano II. Esse plano apresentava 4 eixos fundamentais, que tinham por objetivo unificar a ação eclesial no Brasil. Renovação era a palavra de ordem, por isso os três primeiros eixos a tinham em mente: 1º Renovação das Paróquias; 2º Renovação do Ministério Presbiteral; 3º Renovação dos Educandários Católicos. O 4º eixo era a própria implantação de uma ação pastoral planejada: Introdução a uma Pastoral de Conjunto.

Para a nossa reflexão aqui, chama a atenção o eixo da Renovação das Paróquias. O vocábulo comunidade foi a palavra-chave e de parti-cular relevância do PE. Aparece como referencial constante das grandes intuições renovadoras do Plano.

O enfoque dado ao termo foi prevalentemente teológico-pastoral. Seu complemento mais frequente, que confere uma conotação específica ao termo, é de Igreja. Várias vezes, inclusive, comunidade é sinônimo de Igreja (local, universal)2.

Essas comunidades de Igreja são designadas como comunidades de fé, de culto, de serviço divino, de caridade.

Os qualificativos que acompanham o substantivo comunidade são vários: local, paroquial, natural. O mais relevante, porém, é o adjetivo

2 Cf. PE, pp. 16, 17 e 19.

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Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs

natural. O texto que versa sobre a renovação paroquial apresenta uma tipologia de comunidades naturais, seja do ponto de vista religioso (cris-tãs, abertas à evangelização, indiferentes, pagãs), seja do ponto de vista geográfico ou ambiental (rurais, de bairro, de trabalho, de estudantes)3.

Como ponto de partida e paradigma da renovação paroquial, o Plano menciona a comunidade-piloto, expressão que traduz certo pioneirismo pastoral atribuído a experiências pastorais renovadoras do Nordeste.

O vocábulo comunidade veicula, assim, ao longo do discurso do PE, uma das ideias-chave da eclesiologia renovada do imediato pré-Vaticano II, que inspira, em grande parte, o esforço de renovação pastoral da Igreja no Brasil.

Terminado o Concílio Vaticano II (dezembro de 1965), a Igreja no Brasil foi, sem dúvida nenhuma, uma das primeiras que, por meio de sua Conferência Episcopal, deu uma resposta ampla às perspectivas de mudanças desejadas por aquele grande evento eclesial. No começo do ano de 1966, o Plano de Pastoral de Conjunto (PPC) já se apresentava como uma proposta acabada para colocar a Igreja do Brasil no compasso das conclusões do Concílio.

Na tentativa de colocar bases sólidas à totalidade da ação pastoral, o PPC tomou os principais documentos conciliares e criou seis linhas fundamentais de ação. A 1ª linha, baseada na Constituição Lumen Gen-tium, dava as coordenadas para uma eclesiologia que, mais tarde, ganharia o nome de “comunhão e participação”. Suas ações visavam reforçar os elementos estruturantes da Igreja e seus agentes principais.

A 2ª linha tinha por objetivo introduzir na Igreja do Brasil a preocu-pação com o anúncio do Evangelho além de suas fronteiras, inspirando-se no documento conciliar Ad Gentes. Esta linha buscava reunir todas as iniciativas surgidas em torno do polo missionário, entre elas o Projeto Igreja-irmãs, que visava a solidariedade entre as dioceses do Brasil.

A 3ª linha tinha em mente a preocupação com a formação dos cristãos. Na linha da Dei Verbum, buscava tornar o cristão uma pessoa adulta, capaz de dar razão de sua fé e de sua esperança.

3 Cf. PE, pp. 21-24. O texto não define a comunidade natural, mas apresenta elementos que permitem deduzir o sentido da expressão: homogeneidade relativa dos grupos; delimitação do território de convivência (bairros, povoados rurais); centro de interesse comum (trabalho, estudo).

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A linha 4 buscou adequar toda a dimensão orante e celebrativa da Igreja às conclusões do Concílio, dando novo rumos à liturgia. A 5ª linha foi a que tratava do relacionamento da Igreja Católica com as outras Igrejas cristãs.

A 6ª e última linha do PPC reunia todas as iniciativas da Igreja que visavam à vivência do profetismo cristão na sociedade, por meio da radical evangélica opção preferencial pelos pobres.

No entanto, podemos constatar que a resolução mais importante do PPC foi a de propor um novo modelo de Igreja que facilitasse plena participação de todos os batizados na base da sociedade e da Igreja, já iniciada com o PE. Daí a importância da linha 1 como ponto de partida para as demais linhas.

A tentativa de virada eclesiológica que o PE representa se manifes-ta, sobretudo, no uso abundante do vocábulo comunidade, com uma carga semântica característica daquele momento de transição de uma eclesio-logia prevalentemente juridicista para a eclesiologia de comunhão.

O PPC marca uma clara linha de continuidade com essa tendência, abrindo-a, porém, às novas conquistas e perspectivas do Vaticano II.

O vocábulo comunidade tem amplo espaço no Plano. Por isso, podemos considerá-la também a palavra-chave do Plano conforme está escrito: “A Igreja é a comunhão de vida dos homens com o Pai e entre si, em Jesus Cristo, no dom do Espírito Santo, comunicada e manifestada pela mediação da comunidade visível”.4

Agora, é preciso destacar a presença no PPC da expressão comu-nidade de base, usada também no plural. A expressão é conectada, em certa forma, com a expressão comunidade natural, usada várias vezes no PE, mas sem identificar-se com ela. O texto não explicita o conteúdo do termo, dando-o por suposto, e indica apenas uma de suas formas de concretização na área rural: as capelas rurais.

A expressão sinaliza uma das reais inovações do PPC, que contém embrionariamente toda a riqueza das Comunidades Eclesiais de Base.

A porta de entrada para a tematização das CEBs no PPC é a dinamização das paróquias. Ao tratar da comunidade de Igreja, o PPC

4 Cf. PPC, pp. 26-27.

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Conversão pastoral e renovação missionária a partir das CEBs

constata a dificuldade de as paróquias se converterem em comunidades vivas, concluindo:

Faz-se urgente uma descentralização da paróquia, não necessaria-mente no sentido de criar novas paróquias jurídicas, mas de suscitar e dinamizar, dentro do território paroquial, comunidades de base (como as capelas rurais), onde os cristãos não sejam pessoas anônimas que apenas buscam um serviço ou cumprem uma obrigação, mas sintam-se acolhidos e responsáveis, e delas façam parte integrante, em comunhão de vida com Cristo e com todos os seus irmãos.5

Nossas paróquias locais são ou deveriam ser compostas de várias comunidades locais ou comunidades de base, dada sua extensão, den-sidade demográfica e percentagem de batizados a elas pertencentes de direito. Será, pois, de grande importância empreender a renovação paroquial pela criação ou dinamização dessas comunidades de base. Nelas devem ser desenvolvidas, na medida do possível, as seis linhas fundamentais de ação da Igreja.6

Dessa forma, as CEBs foram incorporadas na Linha 1, naquilo que ficou conhecido como “dimensão comunitário-participativa” da CNBB.

Em 2001, com as modificações estatutárias da CNBB, a dimensão comunitário-participativa foi dividida em 3 Comissões Episcopais: a Comissão para a Família, a Comissão para as Vocações e Vida Consa-grada, e a Comissão para o Laicato. Foi justamente nesta última, que se criou o “Setor CEBs”.

Uma das missões deste Setor, por meio de seu assessor, é o de participar da articulação nacional das CEBs, em parceria com a Comissão Ampliada Nacional de CEBs e com o Secretariado do “In-tereclesial” que se organiza na (arqui)diocese que recebe o encontro nacional das CEBs.

A Ampliada Nacional das CEBs se constituiu nos preparativos para o VI Intereclesial em Trindade (GO), em 1986, como um grupo de apoio e serviço à Igreja local no planejamento do Intereclesial. O seu nascimento foi uma forma de garantir a presença dos Regionais da CNBB na preparação dos Intereclesiais, como trabalho coordenado em nível nacional e garantidor da memória dos encontros.

5 Cf. PPC, pp. 38-39. (os grifos são nossos)6 Cf. PPC, p. 58. (os grifos são nossos)

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Seu atual perfil é formado pelo Secretariado da Igreja local do Intere-clesial e seu respectivo (Arce)Bispo, por dois representantes eleitos em cada Regional (preferencialmente um homem e uma mulher, um(a) religioso(a) e outro(a) leigo(a)), dois assessores permanentes, dois membros do Secreta-riado do último Intereclesial, por um membro do CONIC (visando o diálogo ecumênico) e do CIMI (procurando o diálogo com outras culturas irmãs), pelo bispo que acompanha as CEBs na Comissão Episcopal Pastoral do Laicato da CNBB, e pelo assessor do Setor CEBs dessa mesma Comissão.

3 A conversão pastoral requer comunidades eclesiais de discípulos missionários ao redor de Jesus Cristo (DA 369)

A necessária conversão pastoral e renovação eclesial, sem dúvida nenhuma, passa pela paróquia.

Conforme salientou o Documento de Aparecida, as pessoas an-seiam, hoje, por uma experiência religiosa pessoal: há uma fome pelo divino, uma busca pelo absoluto. O “reencantamento” religioso acon-tece em todas as religiões do mundo. O rápido crescimento das Igrejas pentecostais atesta, de modo claríssimo, o que as pessoas esperam das tradições religiosas em sua busca por sentido pessoal e em sua procura por uma comunidade igualitária e participativa.

Com o apoio e o encorajamento de um pequeno grupo, as pessoas encontram seu caminho para Deus, e Deus encontra um caminho para as pessoas. As pessoas têm ânsia de experimentar Deus, de relacionar-se com Ele e de compartilhar sua própria fé com outras pessoas, em liberdade e espontaneidade, numa atmosfera de identidade e confiança.

Uma pesquisa recente confirmou muito bem esta necessidade das pessoas. Por meio de entrevistas com os membros de diversas comunidades, revelou-se que as principais mudanças sentidas na vida daquele (ou daque-la) que participa de uma CEB são: a vivência comunitária; a participação coletiva que muitas vezes contribui para a saída do isolamento; o apren-dizado nos relacionamentos interpessoais; a convivência com realidades sociais distintas, incluindo-se aí pessoas de diferentes classes sociais.

(...) porque a gente começa a conhecer mais pessoas, a troca de ex-periências, a fé que a gente celebra junto, as várias interpretações do

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próprio Evangelho a partir da vida da gente, eu acho que isso sempre enriquece a fé. (N.N., 39 anos, casado)Olha, como toda a gente dentro da comunidade, na vila onde eu moro, a gente tá [sic] junto de toda a luta do povo, que é pela escola, para ampliar as salas de aula, para ter mais séries, na luta pela associação de moradores e bem nessa ação aí se unir ação com oração. (N.N., 46, casada)7

Nesse sentido, a unidade básica da Igreja, a paróquia, parece ser deficiente, em muitas partes da Igreja, neste aspecto. O que faz falta é a pequena comunidade de fé, que é a resposta de hoje à busca individual por Deus e ao envolvimento pessoal significativo em favor da transfor-mação da humanidade.

De fato, a paróquia foi, até agora, e para muitos segue sendo, a única base eclesial canônica dos batizados. No entanto, Aparecida clama por uma paróquia missionária, “comunidade de comunidades” ou “rede de comunidades”.

Num olhar crítico sociológico, a paróquia se constituiu numa estrutura com características que dificultam o trabalho evangelizador: é uma instituição de “Cristandade”, uma organização de massa, cir-cunscrita territorialmente, centrada no culto-devocional, defendendo a ordem social, com forte liderança sacerdotal e, enfim, uma instituição administrativo-financeira.

A questão é se é possível propor um modelo alternativo, mais evangélico, onde haja participação. Um modelo que favoreça a co-responsabilidade de todos os seus participantes. Um modelo onde a fraternidade, a comunhão (koinonia) e os serviços (diakonia) sejam expressão real do mistério salvífico, sinais do reino e reveladores do projeto de Deus em Cristo. Será possível, na paróquia, radicalizar a tal ponto a experiência da fé, que a evangelização aconteça pela irradiação da vivência cristã das próprias comunidades?

É fundamental, em todo esse processo de conversão pastoral, recuperar o impulso evangelizador.

Nosso povo ainda não foi evangelizado. Ser cristão não é só ser batizado, casar na Igreja, participar da missa, receber os sacramentos em geral. A vida “sacramental” é ponto de chegada. Há um ponto de

7 Cf. FERNANDES, Silvia Regina Alves. Novas Formas de Crer: católicos, evangélicos e sem-religião nas cidades, CERIS/PROMOCAT, SP, pp. 209 e 211.

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partida que ficou relegado: a conversão, que é fruto da evangelização. Conversão para Cristo, para o seu projeto.

O primeiro ato de fé representa uma mudança radical na vida da pessoa. Mudam-se os critérios, mudam-se as atitudes, coloca-se na “contramão da história”, isto é, na oposição ao “projeto do mundo” ou da sociedade em que vivemos, que não se pautam pelas propostas de Jesus, e na disposição de viver a caridade e o compromisso com o projeto de Deus, até sacrificar a própria vida, como Jesus.

A adesão a Cristo, a fé, nos insere na comunidade dos seus seguido-res, nos faz membros explícitos de seu povo, do “novo gênero humano”, do qual ele é o primogênito.

A inserção na comunidade também é um processo. O primeiro ato de fé, que vem pela graça de Deus e pela descoberta de Jesus e de seu projeto, supõe um processo longo de inserção na comunidade. O catecumenato não pode ser suposto sob o risco de “queimar” uma etapa fundamental. E a catequese não pode ser reduzida a algumas noções teóricas ou um apren-dizado de fórmulas. Ela só tem sentido se for experiência progressiva da fé, um tempo em que a pessoa se treina para viver em fraternidade, faz os exercícios de superação dos egoísmos e suas consequências, para viver o amor, que é a própria essência do cristianismo.

Há um processo para se chegar à comunidade cristã, que não é respeitado. Nosso povo é batizado, recebe os sacramentos, mas não tem consciência clara de que está inserido em uma comunidade nova, misteriosa, sacramental.

Esse é um dos dramas da paróquia. Nós não somos comunidades de discípulos. Nossas paróquias têm fiéis, fregueses, pessoas que buscam sacramentos, bênçãos, encomendações etc., mas não se sentem membros de uma comunidade de “salvos em Cristo”. Eles só fazem a “desobriga”. A paróquia não evangeliza nem catequiza, no verdadeiro sentido da palavra.

A paróquia é realidade mais jurídica que “mistérica” Acabou sendo uma sociedade de batizados, conscientes ou não de sua fé, que vivem em certo território, com uma série de deveres ou obrigações, que nem sempre entendem e aceitam.

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4 A setorização da paróquia em unidades territo-riais menores (DA 372) e a criação de Comunida-des Eclesiais de Base8

Tanto o Documento de Aparecida, como o de Santo Domingo, dizem que paróquia deve tornar-se uma “comunidade de comunidades e movimentos”. Em outras palavras, a paróquia deve tornar-se uma “federação de comunidades”.

No entanto, acontece que aqui se introduz uma ideia de comunida-de diferente do sentido comum de comunidade paroquial. A comunidade cristã não é uma sociedade qualquer, ela não é uma aglomeração de “sócios”, mas de “discípulos”. São os discípulos de Cristo que formam comunidades cristãs. Exige-se dos discípulos uma postura nova, diferente, fundamentada na caridade e na fraternidade, na comunhão, na vivência da fé cristã; é uma realidade sacramental, ou seja, uma realidade humano-divina, fundada sobre Jesus, morto, ressuscitado e Senhor da História.

Comunidade é diferente de massa. Nossas paróquias em geral são compostas de uma “massa enorme” de fiéis. Para ser comunidade cristã é preciso passar além do anonimato das massas, é preciso viver relações de fraternidade, partilha de vida, os bens, a própria experiência da fé, provocar um confronto permanente com a Palavra (o projeto de Deus), e celebrar na alegria, na festa, a salvação que vai se manifestando em nós pela força do Espírito de Deus.

Na massa não temos nome, somos número. Na comunidade somos co-nhecidos e conhecemos nossos(as) companheiros(as), e podemos estabelecer relações fraternas profundas, possibilitando uma verdadeira ajuda mútua. Na comunidade não podemos fugir dos compromissos, não podemos refugiar-nos no anonimato, como acontece normalmente na paróquia tradicional, com sua pastoral de massa ou de grande quantidade de “fiéis”.

A questão, hoje, é passar da paróquia centrada no padre, nos sacramentos e na matriz, onde se atende à massa dos fiéis, para a mul-tiplicidade de comunidades menores, esparramadas pelo meio do povo, onde seja possível o processo de discipulado. Isso conduz para uma série de mudanças:

8 Muito importante nesse sentido é o pequeno livro do Pe. José Marins, da coleção “À luz de Aparecida”, que oferece um rico roteiro para a setorização da paróquia e a formação de Comunidades de base. Cf. MARINS, Pe. José. CEBs e pequenas comunidades eclesiais, Ed. CNBB, Brasília, 2009, pp. 30-41.

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a) O centro, ou o referencial, é a Palavra. Na paróquia tradicional, o referencial são os sacramentos e o padre. Nas comunidades, com o padre ou, em muitos casos no Brasil, sem ele, o povo se reúne em torno da Palavra. O padre pode provocar o surgimento da comunidade em torno da Palavra, bem como celebrar a ca-minhada de fé do povo da comunidade que vai se estruturando. Mas a comunidade pode continuar a crescer e organizar seus serviços, animados por um(a) leigo(a) ou equipe de leigos. A fé não depende do padre, mas da conversão a Jesus Cristo;

b) A experiência da fé, na força da Palavra, faz amadurecer a co-munidade, e dá aos participantes certa autonomia, e aos poucos vai rompendo a relação matriz-capela, que em muitos casos se tornou uma relação de dependência. À medida que a comunidade adquire maturidade, adquire autonomia e pode articular-se em pé de igualdade com outras comunidades, até com a matriz;

c) A matriz muda de “status”, por assim dizer, e passa a ser uma das comunidades que se articulam em pé de igualdade com as demais. O padre também muda de posição. De “senhor”, passa ou deve passar para articulador, animador, formador, celebran-te de alguns sacramentos e sinal de unidade de um conjunto de comunidades. Deixa de ser “funcionário” do sagrado e distribuidor de sacramentos e sacramentais, para ser “pastor” de muitos(as) discípulos(as) que se reúnem em comunidades diferentes e diferenciadas, e para elas é sacramento da solicitude do Bom Pastor, que é Jesus. O enfoque passa a ser diferente;

d) O discipulado leva as comunidades a um processo permanente de iniciação à fé (catecumenato) de todos os membros das comunidades, também novos. E prepara-os para celebrar de modo novo os sacramentos. Os sacramentos aos poucos se tornam ponto de chegada, e não de partida, como na paróquia tradicional, pois a evangelização adquire mais importância. A Palavra começa a ser verdadeiro alimento do povo de Deus, como foi e é a Eucaristia (DV, 21);

e) Os serviços burocrático-administrativos podem localizar-se na “matriz”, mas as decisões não são mais exclusivas de uma comunidade ou da matriz. Todas as comunidades têm, ou de-veriam ter, poder de decisão, tanto na pastoral como no econô-mico. Os conselhos, tanto pastoral como administrativo, devem necessariamente contar com os delegados das comunidades, e

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as decisões que comprometem o conjunto devem ser tomadas por todos;

f) Muda a “posição” do padre. Pelo direito canônico, o padre continua sendo o responsável último de tudo na paróquia, e o representante legal do bispo e da diocese. Na prática, deve priorizar a palavra e dedicar-se com o máximo empenho à formação e crescimento das comunidades. Deve capacitar-se, sobretudo para formar evangelicamente os animadores leigos das comunidades, os coordenadores dos setores e serviços (ministérios) que vão surgindo nas comunidades. Não é mais apenas o presidente da celebração, mas deve tornar-se também o formador dos agentes leigos, o bom Pastor, no sentido do evangelho, isto é, o que “dá a vida pelas suas ovelhas” como Jesus! É o irmão de referência entre os muitos irmãos (primus inter pares).

Em resumo, podemos descrever a proposta assim: que a paróquia se transforme em área geográfica ou jurídica de comunidades eclesiais de base, e que se considerem células vivas da Igreja as comunidades de discípulos, as comunidades de base, as comunidades geradas pela Palavra. Coordenadas por leigos ou também por diáconos permanentes, se existirem, cada grupo de comunidades se articule dinamicamente e de forma própria dentro de uma paróquia, tendo um presbítero como animador e articulador.

Desse modo, a paróquia viraria mais área pastoral, articulando comunidades, como uma mediação entre a diocese e as bases. A estrutura diocesana aos poucos poderia ser a seguinte (e já a encontramos em um sem número de dioceses): comunidade, paróquia, área (ou forania) e diocese. A referência seriam sempre as comunidades, embora os serviços burocráticos e administrativos mínimos ficassem em um determinado lugar ou em diversos lugares da área paroquial.

Talvez assim possamos concretizar a solicitação vinda de Santo Domingo, e corroborada por Aparecida: “paróquia, comunidade de comunidades”.

Endereço do Autor:SQN 212, Bloco F, Apto. 201, Asa Norte

70864-060 Brasília, DF

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 123-142.

* O autor é assessor da CNBB e do secretariado do 13º Intereclesial de CEBs.

Resumo: O artigo reúne uma série de informações referentes ao agir da Igreja Católica no Brasil, ressaltando sua incidência política na sociedade brasileira. Toma como paradigmas dessa atuação duas figuras do episcopado, D. Sebastião Leme e D. Helder Câmara, por considerá-los os de maior expressão nessa área e por representarem duas visões de participação sociopolítica no século XX, ainda presentes e em constante tensão no interior da Igreja. Depois de recordar “os primórdios dessa ação política”, que nos quatro primeiros séculos da nossa história foi caracterizada pelo regime de cristandade, aborda as “mudanças na sociedade, mudanças na Igreja”, a partir do século vinte. Focaliza a Igreja “no cenário político da década de 1960”, detendo-se no que ele qualifica de “revolução copernicana” na atuação sociopolítica da Igreja no Brasil. Descreve as “mediações sociopolíticas da Igreja” em nosso país, e termina aludindo à contribuição da Igreja ao empenho por uma reforma do Estado com participação democrática.

Abstract: The article deals with a series of studies concerning the activity of the Catholic Church in Brazil with special emphasis on the political implications in the Brazilian society. Two outstanding leaders in the episcopate are D. Sebastião Leme and D. Helder Câmara: both are mentioned as paradigms in this context due to their socio political role in the XX century whose tensions are still at work inside the Church until today. Initially, political endeavors have been dealt with during the four centuries since the beginning of Brazil from an overall perspective of the regime of Christianity. In the sequel of the historical background mention is made of changes both in society and in the Church. Since then until modern times and especially from the XX century onward the Church appears on the political scene within the 60ties which has been interpreted in terms of a Copernican revolution. A descriptive analysis is made of the socio political mediations of the Church in this country. Finally, the article makes a survey of the contribution of the Church to the reform of the State by the democratic participation of the citizen.

A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolíticasPe. Nelito Nonato Dornelas*

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A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolítica

Palavras preliminares

O presente artigo tem como objetivo reunir uma série de informações referentes ao agir da Igreja Católica, ressaltando sua incidência sociopolítica na sociedade brasileira. Tomaremos como paradigma dessa atuação duas figuras do episcopado, D. Sebastião Leme e D. Helder Câmara, por considerá-los os de maior expressão nessa área e por representarem duas visões de participação socio-política no século XX ainda presentes e em constante tensão no interior da Igreja.

Faremos uma leitura dos movimentos libertários surgidos a partir da metade do século XX, ressaltando sua acolhida pela Igreja, já articu-lada pela CNBB, traduzida em participação cidadã. Nosso foco será a atividade evangelizadora da Igreja no Brasil através da ação sociopolítica das pastorais sociais e os organismos a ela vinculados.

Tomarei como marco referencial o movimento profético provocado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), as Conferências Episcopais do CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano) em Medellín (1968) e Puebla (1979). Para tanto, lançarei um rápido olhar sobre o contexto sociopolítico brasileiro no qual a Igreja, por meio de sua organização pastoral, procura responder aos desafios mais prementes.

1 Os primórdios na atuação política da Igreja Católica

A formação da sociedade brasileira teve sua fundamentação ideológica na cosmovisão da Igreja Católica. Nos quatro primeiros sé-culos, o catolicismo, como religião oficial, serviu não só para permear a sociedade brasileira de valores morais e religiosos, mas também para reunir os mais diferenciados grupos sociais em torno do projeto lusitano europeu, que resultou numa sociedade marcadamente patriarcal, latifun-diária e escravocrata.

A implantação desse projeto não se deu de forma pacífica. Inú-meros foram os movimentos de resistência e contestação, dos quais participaram membros do clero e leigos católicos, pagando, muitas

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vezes, o preço por tal opção com o exílio, o cárcere e até mesmo com a própria vida.

Chegamos ao alvorecer do século XX, com uma Igreja ainda car-regando muitas marcas desse regime de cristandade. Parte considerável da hierarquia católica considerava a política como uma atividade secun-dária, influenciada pela visão de uma Igreja concebida como sociedade perfeita que, ao lado do Estado, deveria contribuir para a manutenção da ordem social estabelecida.

Quem vai provocar uma mudança na mentalidade católica sobre a participação política é o Cardeal Sebastião Leme, como já bem se expressa em sua carta pastoral de tomada de posse na Arquidiocese de Olinda em 1916: “Somos católicos de clausura! A nossa fé se res-tringe ao encerro do oratório ou à nave das Igrejas. Quando fora das portas dos lugares santos, tremulam nossos pendões, é certo que neles não fremem entusiasmos de reivindicação jurada; braçadas de flores é que eles levam em suas dobras perfumadas; não são bandeiras de ação; são vexilos de procissão” (Cardeal Leme apud Santo Rosário, 1962, p. 114).

A partir do momento em que a hierarquia católica incentiva a participação dos leigos na esfera política e com a entrada em cena do movimento da Ação Católica, surge, na década de 1920, a categoria do católico militante que, de forma mais expressiva, ensaia a ruptura com esse modelo de cristandade.

Reunido no Centro Dom Vital, surge um grupo de leigos católicos com tendências políticas diversas, porém com profunda visão da realidade nacional, capaz de elaborar metas e propostas políticas para a sociedade brasileira. Diante do desafio de uma inserção social da fé católica, a partir da década de 1920 vai florescer do seio da Igreja, em quase todo território nacional, uma imensa variedade de atividades sociais, promovida por leigos e congregações religiosas, denominada Ação Social, entendida como uma forma nova de superação da assistência tradicional até então praticada pela Igreja.

A senhora Stella de Faro, em palestra durante a primeira Sema-na de Ação Social realizada no Rio de Janeiro em 1936, convocada por D. Leme, apresenta a distinção entre ação social e assistência.

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Para ela, a ação social é inspirada pela necessidade das pessoas, é preventiva, distinguindo-se da prática caritativa, sobretudo curativa. O assistencialismo levava o remédio ao individuo atingido pelo mal, ao passo que a obra social procura saber sua causa para combater o mal em sua fonte.

A partir dos anos de 1950, ocorreram na sociedade brasileira, como um todo, as mais significativas e profundas mudanças, alterando profundamente os padrões de vida estabelecidos. Com as mudanças, aparecem também os novos problemas sociais, agravando ainda mais aqueles não erradicados.

Vão marcar esse período de mudanças na configuração da socie-dade brasileira o surgimento das metrópoles com seus arranha-céus, o crescimento da industrialização, o êxodo rural, a acentuação da migração das populações nordestinas, o surgimento das favelas, a modificação e ampliação dos meios de transportes, o aparecimento dos novos meios de comunicação de massa, o prolongamento da vida noturna urbana, a mudança de visão sobre a sexualidade, a emancipação da mulher, a afirmação do pluralismo religioso e o aparecimento de novas formas de cristianismo, sobretudo o pentecostal evangélico. Ocorre também o flo-rescimento das organizações sindicais, o anseio de participação política, acompanhada pelo surgimento da consciência de que o país necessitaria de profundas reformas de base, a começar pela educação, passando pela estrutura fundiária, por meio da reforma agrária, chegando à distribuição equitativa de renda.

Em suma, o entusiasmo provocado pela política desenvolvimen-tista de Juscelino Kubitscheck trouxe à consciência nacional uma maior sensibilidade pela integração social da população brasileira.

2 Mudanças na sociedade, mudanças na Igreja

No período de atuação política da Igreja inaugurado por D. Sebas-tião Leme, e que teve sua liderança até a década de 1940, pode-se afirmar que o projeto político da Igreja esteve pautado por dois princípios básicos: fortalecer a instituição católica por meio da qualificação e organização de seus quadros, mantendo o controle clerical e a direção hierárquica; incorporar à sociedade brasileira os valores éticos e religiosos que tradi-

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cionalmente haviam pautado a sociedade no regime de cristandade. Nesse período, a Igreja voltava-se diretamente sobre si mesma, procurando, a partir daí, recuperar sua influência na sociedade, mediante um processo de cristianização do Estado.

Essa posição, porém, começou a mudar com a fundação da Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, em 1952, quando se dá a entrada em cena de D. Helder Câmara que, assumindo a função de seu primeiro secretário-executivo, no decorrer de dez anos de mandato, vai dar um deslocamento significativo com relação ao enfoque socio-político da Igreja no Brasil. Merece destaque também a fundação da Conferência dos Religiosos do Brasil, CRB, em 1954, significando uma ação articulada das congregações religiosas e sua atuação cooperativa com a CNBB.

Em primeiro lugar, a Igreja passa a debruçar-se cada vez mais sobre a realidade brasileira, procurando analisar os problemas so-ciopolíticos, destacando suas causas e consequências. Em segundo lugar, realiza um esforço significativo para adaptar melhor a própria instituição aos novos tempos, a fim de continuar a exercer a influência sobre a mesma sociedade. Ao mesmo tempo, dispõe-se a colaborar de forma mais específica em projetos de interesse social, destinados a proporcionar melhor bem-estar à população, sobretudo aos seg-mentos mais carentes e necessitados. Como exemplo maior, veja-se o empenho de D. Helder na criação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste).

A instituição católica mostra-se mais sensível às transformações socioculturais e políticas que estão ocorrendo no país, procurando assumir uma atitude de serviço em favor do próprio povo. A hierarquia eclesiástica passa a reconhecer a necessidade de um aprofundamento sociológico para melhor entender a realidade brasileira, percebendo também a importância de identificar as causas econômicas geradoras dos problemas sociais. Nessa perspectiva, surge no episcopado uma visão mais abrangente da realidade e nasce a consciência da cons-trução conjunta de um plano nacional de pastoral, cuja elaboração se dará em 1966.

As décadas de 1950-1960 viram surgir do seio da Igreja Ca-tólica, inspirados nos princípios cristãos, entidades, organismos e

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movimentos que muito contribuíram para uma leitura socioanalítica da sociedade brasileira em vista de sua transformação. Nasce a CARITAS Brasileira, o MEB (Movimento de Educação de Base), o IBRADES (Instituto Brasileiros de Análise e Desenvolvimento Social), o CEAS (Centro de Estudos e Análise Social), o CEBI (Centro Bíblico ecumê-nico), as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), a CF (Campanha da Fraternidade), a CBJP (Comissão Brasileira de Justiça e Paz), a AP (Ação Popular), a TDL (Teologia da Libertação) etc.

3 A Igreja no cenário político da década de 1960

Desde o alvorecer dos anos 60, a Igreja Católica passou a acompanhar mais de perto e com certa preocupação os problemas sociais brasileiros. Quem mais esteve atento a essas questões foram os jovens participantes da JUC (Juventude Universitária Católica), e os participantes da JOC (Juventude Operária Católica). Havia nessa juventude católica militante um profundo anseio de gestar um modelo de sociedade que superasse a pura democracia formal na qual se fun-dava a sociedade brasileira, cujo poder permanecia concentrado numa pequena elite burguesa.

Essa ânsia de participação acentuou-se ainda mais quando os militares, ao lado de membros exaltados da burguesia, passaram a atuar com violência contra os movimentos sociais, cerceando os di-reitos dos trabalhadores, prendendo, torturando, exilando e matando muitos de seus líderes mais expressivos, como pretexto de combater o comunismo.

Houve tensões entre membros da hierarquia católica e jovens militantes da Ação Católica quanto ao método de análise da realidade, a forma de atuação política e até mesmo sobre a visão de sociedade por eles proposta. Todavia, apesar das cisões e rupturas surgidas dessas ten-sões, o saldo foi o surgimento de quadros militantes na esfera política, de inspiração cristã, composto por pessoas abertas ao diálogo com outros segmentos e opções ideológicas distintas, que souberam contribuir na proposição da construção de uma sociedade socialista, includente, aberta e participativa.

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O golpe militar ocorrido em 1964 provocou uma cisão ideológica na esfera da Igreja, obtendo significativo apoio tanto da parte do clero quanto do laicato. Houve também resistência de alguns grupos religiosos, como a Ação Católica e outros movimentos de resistência, de inspira-ção cristã, associados aos diferentes tipos de organização da sociedade provenientes de outras matrizes ideológicas.

4 Uma revolução copernicana na atuação sociopolítica da Igreja no Brasil

A figura de D. Helder Câmara representa um marco-referencial na mudança ocorrida na Igreja Católica em sua atuação sociopolítica no Brasil. Em comemoração aos cem anos de seu nascimento, celebrado em 2009, o monge beneditino Dom Marcelo Barros (2006) publicou um livro-testemunho sobre sua convivência com esse profeta do século XX. No livro, o monge testemunha as últimas palavras de Dom Hélder dirigidas a ele: “Não deixe morrer a profecia!”. Afirma o autor que cer-tamente Dom Hélder referia-se à profecia política e social ressurgida no seio da Igreja e da sociedade civil, na América Latina, a partir da segunda metade do século XX.

De fato, olhando criticamente a história, durante séculos, não se falava mais em profetismo, nem na Igreja nem na sociedade em geral. Quando os teólogos faziam referência ao profetismo limitavam-se a comentar sobre os profetas do Antigo Testamento, ressaltando suas referências à vinda do Messias, realizadas em Jesus Cristo. Salientavam o aspecto misterioso dos profetas e se utilizavam deles para justificar a divindade de Cristo. Ficava na sombra a forte dimensão social dos seus oráculos.

4.1 O Concílio Vaticano II e o ressurgimento da profecia na América Latina

O que desencadeou a redescoberta do profetismo em sua dimen-são sociopolítica na América Latina foi o pronunciamento corajoso da palavra “justiça”, feito pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Essa era, de fato, uma palavra proibida pelas elites dominantes no mundo inteiro, seja no interior da Igreja, seja na sociedade. No rastro do Concílio Vati-

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cano II, a segunda Conferência do CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano) em Medellín (1968) foi a maior expressão do espírito de profecia na América Latina, ao reconhecer que os pobres deste conti-nente esperam pela justiça à qual têm o sagrado direito como expressão da vontade de Deus.

Na terceira Conferência do CELAM, em Puebla (1979), os bispos fazem um balanço de Medellín, afirmando: “Nos últimos dez anos, comprovamos a intensificação da função profética. Assumir tal função tem sido trabalho duro para os pastores. Temos procurado ser a voz dos que não têm voz e testemunhar a mesma predileção do Senhor para com os pobres e os que sofrem. Cremos que nossos povos senti-ram que estamos mais perto deles. Com certeza conseguimos iluminar e ajudar. Agora, colegialmente, tentaremos interpretar a passagem do Senhor pela América Latina” (PUEBLA, 268). E dizem também: “É de suma importância que esse serviço do irmão siga a linha que o Concílio nos traça: ‘cumprir, antes de mais nada, as exigências da justiça, para não ficar dando como ajuda de caridade aquilo que já se deve, em razão da justiça; suprimir as causas e não só os efeitos dos males; e organizar os auxílios, de tal forma, que os que os recebem se libertem progressivamente da dependência externa e se bastem a si mesmos’” (PUEBLA,1146).

4.2 A expressão do profetismo na história

O profetismo, em sua incidência sociopolítica, não é algo abstrato, mas encontra-se na vida pessoal ou grupal de quem o assume e é sempre um surgimento individual ou coletivo, a partir do centro de uma situação conflitiva. O profetismo é desprovido de qualquer forma de poder, a não ser a sua própria expressão de vida. Dirige-se ao povo em geral, à sociedade, às classes dirigentes, de forma clara e pública. É movido pela sensibilidade aguçada para perceber os acontecimentos da realidade e qual deve ser sua intervenção no curso da história. Por isso, o profeta ou o movimento profético é perseguido, denunciado, maltratado, isolado, incriminado e morto. Razão pela qual o profeta ou movimento profético vive em permanente insegurança, sobretudo, pela consciência do destino daqueles que o precederam.

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Face à dramaticidade das últimas décadas na América Latina, o profetismo aqui ressurgido consistiu, por parte de muitos cristãos, leigos e leigas, religiosas e diversos membros da hierarquia, em abandonar sua vida razoavelmente confortável nos conventos e colégios e ir ao mundo dos pobres, marginalizados e excluídos, para alimentar-lhes a esperança. De fato, os excluídos, em geral, não têm esperança, somente possuem sonhos. O profetismo significou o revestimento da força de Deus que dá empoderamento aos pobres e os torna sujeitos dos processos históricos e da construção da cidadania eclesial e política, graças ao surgimento da esperança, pois ter esperança é ter poder.

5 As mediações sociopolíticas da Igreja no Brasil

A aproximação de parte da hierarquia da Igreja com o mundo dos pobres fez surgir, em setores da Igreja, a consciência da necessidade de criação de mediações sociopolíticas que contribuíssem, de forma organi-zada, para a emancipação e promoção dos grupos sociais marginalizados. Eram vários, amplos e novos, os problemas que atingiam diversos setores da sociedade brasileira. Os mais gritantes e percebidos por primeiro foram os desafios vividos pelos povos indígenas e camponeses na Amazônia legal, região essa escolhida pelo regime militar como área para ser “in-tegrada ao progresso nacional”.

Para o governo militar e os “novos bandeirantes” – as empresas privadas – a Amazônia era um “território sem gente”, um “território virgem, sedento por ser possuído” e, sendo assim, deveriam “levar o progresso a essa região atrasada”. Seu lema era: “uma terra sem gente para gente sem terra!”

Graças à articulação do episcopado brasileiro por meio de sua Conferência, a CNBB, os gritos dos camponeses e indígenas tiveram eco nas assembleias dos bispos, na voz do bispo de São Félix do Araguaia, D. Pedro Casaldaliga, por sinal, o primeiro a denunciar a existência de trabalho escravo na Amazônia. A essas denúncias foram somadas tantas outras igualmente corajosas, referentes ao cerceamento aos direitos humanos em suas diversas dimensões, vindas do Nordeste brasileiro, do Centro-Oeste e de vários centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro.

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A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolítica

Essa realidade nacional fragmentada, assim apresentada, le-vantou uma série de dúvidas sobre o que realmente se passava nos bastidores da política brasileira, deixando perplexa parte do clero, de intelectuais, de militantes em diversas organizações da sociedade civil. Os camponeses, os operários e os agentes de pastorais não conseguiam compreender criticamente o que estava acontecendo em todos os cantos do país.

Um primeiro esforço para analisar e compreender a realidade nacional e refletir sobre a sua responsabilidade naquela conjuntura, na época da mais dura repressão de todo o longo período de ditadura, foi feito pelo chamado “grupo não grupo” de bispos, que se reuniu, em 1973, na cidade de São Paulo. Naquela reunião, os bispos decidiram formar, com o apoio de especialistas, cinco grupos de trabalho para pesquisa, estudo e elaboração de cinco documentos, a saber: a) sobre a realidade nordestina; b) sobre a realidade do Centro-Oeste; c) sobre a realidade indígena; d) sobre o mundo do trabalho urbano; e) sobre o mundo aca-dêmico, os intelectuais e a segurança nacional.

Os grupos trabalharam exaustivamente, resultando na publicação de três valiosos documentos. Do Nordeste, o documento “Eu Ouvi os Clamores do meu Povo”, assinado pelos bispos e superiores religiosos; do Centro-Oeste, “Marginalização de um povo – o grito das Igrejas”, assinado pelos bispos da região; da Amazônia, “Y-Juca-Pirama – o índio, aquele que deve morrer” , assinado pelos bispos e missionários atuantes junto aos povos indígenas.

5.1 A criação da Comissão Pastoral da Terra – CPT

Como resultado da publicação dos referidos documentos foi criada a primeira “pastoral social”, a Comissão Pastoral da Terra, em um En-contro de Pastoral da Amazônia, no mês de junho de 1975.

A denúncia, feita pelos próprios trabalhadores e pelos agentes pastorais que os acompanhavam, sobre a situação de repressão aos trabalhadores, fez brotar dúvidas, em setores da Igreja, sobre as reais intenções da ditadura militar, dando assim uma resposta de dimensão sociopolítica à sua prática pastoral.

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Três foram os questionamentos básicos para a tomada de tal po-sição: a) afinal, se defender os direitos das pessoas que vivem na região amazônica é crime contra a segurança nacional, qual é o objetivo real dos grandes projetos que se instalam na região? b) em que medida os povos da Amazônia são ameaça à segurança nacional? c) quem constitui, nesse caso, a “nação” brasileira?

Como resposta a essas questões, a CPT define sua missão a partir das necessidades dos povos camponeses da região, ameaçados em relação ao seu direito à terra, e vítimas de toda forma de violência.

5.2 Conselho Indigenista Missionário – CIMI

O CIMI, que já existia desde 1972, em 1975 passou por um proces-so de redefinição e de reorganização para responder às novas demandas surgidas contra os povos indígenas, bem como para se adequar à nova consciência que estava surgindo naquele momento da história.

É sabido que, desde o início, para o projeto colonizador lusoeu-ropeu, os povos indígenas “não existiam”. O mesmo pensavam sobre os negros trazidos da África e aqui transformados em escravos, bem como todas as sucessivas massas de empobrecidos “levados” ou “atraídos” como mão-de-obra dos projetos de ocupação e exploração do Brasil como um todo e em especial da Amazônia.

Na década de 1970, a situação se agrava ainda mais na re-gião amazônica, com seus sucessivos e intermináveis conflitos. A Amazônia é a última área de implantação do projeto colonizador, iniciado sob o regime de segurança nacional, de forma claramente ditatorial e já em estágio de uma sociedade capitalista em consoli-dação. O objetivo era a promoção do progresso da região a qualquer custo, por meio de sua integração ao Brasil e ao mundo, renegando o direito à cidadania e à própria existência dos povos indígenas, dos caboclos, dos ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e demais comunidades tradicionais.

Para o projeto colonizador, todos eles “não existiam”. Caso tei-massem em apresentar-se, erguendo a cabeça, como não eram portadores de títulos cartoriais de propriedade, não possuíam direito aos territórios e às suas terras.

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Cada vez mais ficava claro para as vítimas e suas lideranças que, como na primeira colonização, e agora na forma capitalista, os habitantes nativos e originários da região, bem como as populações pobres que ali se instalaram, deviam incorporar-se ao progresso moderno, trabalhando como mão-de-obra assalariada ou explorada em “novas” relações de trabalho escravo; e, mesmo assim, deviam ser gratos pela oportunidade de serem incluídos na civilização.

5.3 As inspirações e os modelos de atuação sociopolítica

O surgimento das pastorais sociais na década de 1970, como mediações sociopolíticas de atuação pastoral da Igreja, correspondia à busca de compreensão crítica do processo de incorporação capitalista da Amazônia, imposto pela política estatal ditatorial e pelas iniciativas das empresas privadas. Nessa época, a Igreja havia acumulado valiosa experiência socioanalítica, graças ao método Ver-Julgar-Agir, elaborado e aplicado pelo movimento da Ação Católica, amplamente divulgado em território nacional, e às diversas entidades constituídas nas décadas anteriores com seu perfil analítico da sociedade.

Até a década de 1970, apesar de todo o esforço da Ação Social inspirada em Dom Leme, a Igreja ainda não havia conseguido ser uma resposta crítica e eficaz aos novos e gritantes desafios da sociedade. A maior parte da Ação Social ainda se restringia à assistência às pessoas empobrecidas ou a trabalhos de promoção humana, como o que era praticado pela CARITAS, símbolo maior dessa ação. Faltavam elemen-tos integradores que correspondessem com eficiência aos conteúdos do Ensino Social da Igreja e à realidade sociopolítica e pastoral.

Pode-se afirmar que, se o contexto sociopolítico era negativo, a situação eclesial era favorável. Os eventos já mencionados – Concílio Vaticano II (1962-1965) e Conferência Episcopal de Medellín (1968) – marcaram uma profunda mudança da Igreja, a partir de sua opção em favor dos pobres, dos direitos humanos e da justiça social.

5.4 As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs

As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, florescentes em todo o país a partir da década de 1960, foram o útero gerador de muitas

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lideranças das pastorais sociais, dos movimentos populares nas mais diversas áreas, dos sindicatos de classe e de categorias e dos partidos políticos democráticos.

As CEBs não surgiram de forma espontânea, das bases da po-pulação que as compõe. Elas apareceram como resultado de uma ação conscientizadora do clero e dos religiosos que, atuando como agentes pastorais, ajudaram seus participantes a perceberem elementos reais da vida e situação histórica. A razão principal de seu florescimento rápido está na correspondência entre esses elementos propostos pelos agentes pastorais e as carências concretas da população pobre. Assim, as CEBs corresponderam desde suas origens a um projeto bem definido e específi-co: estabelecer um novo modo de ser Igreja, inspirado nas comunidades cristãs primitivas, enraizado na realidade dos pobres, tanto nas áreas rurais como nas periferias urbanas.

Três elementos caracterizam essa experiência: a reunião ordiná-ria em grupos, com a finalidade da oração, reflexão, ação social e sua realização de modo participativo, com ênfase no aspecto comunitário; a vivência religiosa, mediada pela leitura e meditação da Bíblia, pela pessoa e ensinamentos de Jesus de Nazaré, mantendo-se sempre a vinculação com a instituição católica; por último, a reunião com a vizinhança de moradores de bairro, da favela ou da área rural, abria-se para formar uma comunidade típica de base popular com um novo olhar sobre a realidade.

Muitos leigos e leigas, religiosos e religiosas, presbíteros e bispos assumiram um posicionamento profético que colocou em prática essas opções pastorais, impulsionando e apoiando a forma-ção de CEBs e a prática da pastoral social. Muitos pagaram com a própria vida por terem feito essa aproximação de sua vivência religiosa e espiritual com a problemática da comunidade local e o mundo conflitivo da política, entendida como condição de fidelidade ao Jesus histórico, à sua utopia do Reino de Deus e ao povo pobre, marginalizado e excluído.

A Teologia da Libertação encontrou nesse contexto de vida cristã o terreno fértil para a sua reflexão sobre a Igreja dos pobres e um novo jeito de ser Igreja, bem como uma forma de libertar a própria teologia de

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seus condicionamentos culturais, superando o dualismo platônico, fator primordial de alienação ao engajamento sociopolítico.

Desde 1975, as CEBs promoveram doze encontros nacionais, denominados de “Intereclesiais”, com os delegados das bases eclesiais, chegando ao número de seis mil participantes no evento. São de ca-ráter ecumênico e aberto ao diálogo inter-religioso, com participação de delegações dos países da América Latina e organizações dos cinco continentes. Discutem temas ligados à vida da Igreja e da sociedade, e articulam as diversas experiências da base eclesial.

5.5 Das ações católicas especializadas nascem as pastorais sociais especializadas

As pastorais sociais nasceram como um serviço evangélico de risco. Os que assumiam as causas e as lutas de indígenas e camponeses candidatavam-se às mesmas negações e ódio manifestados contra esses que “não existiam” ou não deviam existir, selando com eles a sua própria sorte. Ser, então, um serviço evangélico, significava assumir a história dos indígenas e camponeses, com toda a sua riqueza e tragédia, e assu-mir as tensões do presente, buscando um futuro incerto, apostando no direito de lutar por ele.

A partir da década de 1970, no rastro das CEBs e das pastorais sociais, foram surgindo, a partir das comunidades católicas, diversos organismos, movimentos e pastorais com o perfil socioanalítico, cau-sando profundas implicações na vida política do país. Com o nome de pastorais, e com perfil sociopolítico, podemos elencar: Pastoral da Terra, Pastoral Rural, Pastoral Urbana, Pastoral Operária, Pastoral do Menor, Pastoral do Migrante, Pastoral da Mulher Marginalizada, Pastoral do Povo de Rua, Pastoral da Saúde, Pastoral Carcerária, Pas-toral dos Pescadores, Pastoral da Criança, Pastoral da Pessoa Idosa, Pastoral da Juventude, Pastoral das Pessoas Portadoras do vírus HIV, Pastoral da Sobriedade, Pastoral dos Surdos, Pastoral dos Nômades, Pastoral dos Ciganos e Circenses, Pastoral dos Refugiados, Pastoral do Turismo, Pastoral dos Trabalhadores do Mar, Pastoral dos Afro-brasileiros, Pastoral dos Direitos Humanos, Pastoral da Ecologia, Pastoral Universitária etc.

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Nas décadas de 1980 e seguintes vimos o florescer do “Movimento Fé e Política”, a criação do CEFEP – Centro Nacional de Fé e Política “Dom Helder Câmara”, a constituição, por parte da CNBB, de uma asses-soria política junto ao Congresso Nacional e a sua presença na Comissão de Ética, o surgimento do Mutirão Nacional pela Superação da Miséria e da Fome, a promoção, a cada ano, do “Grito dos Excluídos” na Semana da Pátria, a realização de quatro Semanas Sociais brasileiras, a criação do CERIS, Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais, a constituição do INP, Instituto Nacional de Pastoral, e a composição de uma equipe permanente de análise de conjuntura com uma publicação bimensal dessa análise.

Essas pastorais, organismos e eventos se propuseram a ser parteiros do protagonismo dessas populações que têm seus direitos e existência negados, apostando na força de sua organização transformada em luta política específica. Isso, em parceria com as organizações da sociedade civil, em vista da construção da cidadania plena.

No processo de redemocratização do país houve considerável participação dos militantes católicos, orientados pela CNBB, na ela-boração de uma “Constituição Cidadã”, bem como na participação de abaixo-assinados pela reforma agrária. Foi significativa sua participação na luta pela anistia e na implantação do movimento pela ética na política. Ressaltamos aqui a participação na primeira lei de iniciativa popular, que resultou na lei 9840 contra a corrupção eleitoral e, agora, a lei da “Ficha Limpa”, que obteve um milhão e seiscentas mil assinaturas dos eleitores cidadãos.

Convém ressaltar que um dos instrumentos mais eficazes no di-álogo da Igreja com a sociedade, em vista da construção da cidadania, é a promoção a cada ano da “Campanha da Fraternidade” que, a cada cinco anos, desde o ano 2000, tem sido promovida de forma ecumênica pelo CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs.

5.6 O sentido de serem “pastorais”

As pastorais sociais, como mediações sociopolíticas da Igreja, evitaram, ao longo do tempo, transformar-se em movimentos sociais e agir em nome ou representando os trabalhadores. Propuseram-se também

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não substituir nem mesmo as comunidades cristãs em sua missão de ação social, que deve ser uma atitude de todos os seus membros.

Presentes em todo o território nacional, elas solicitaram reco-nhecimento e apoio da hierarquia eclesiástica para serem serviços de articulação dos cristãos e cristãs que a elas se dedicam ou desejam parti-cipar; uma articulação com o objetivo de se capacitarem para um serviço evangélico aos diversos tipos de pessoas marginalizadas, exploradas, com direitos negados, excluídas e vítimas de violência, sem distinção de credo religioso.

Desse modo, as pastorais sociais não existem sem relação com as comunidades eclesiais, por isso, contribuem para que estas assumam organicamente o serviço aos trabalhadores do campo e da cidade, aos migrantes, aos refugiados e a todas as pessoas em situação de risco em seu planejamento pastoral. Procuram formar pessoas, Igrejas e comunidades “samaritanas”, prontas para socor-rer os necessitados. Elas são plenamente “pastorais”, no sentido de serem parte de uma dimensão essencial e irrenunciável da missão da Igreja de Jesus, o Bom Pastor; e por desejarem, mesmo se in-comodando profeticamente, que todas as comunidades e Igrejas estejam despertadas e organizadas para viver a missão sociopolítica transformadora no mundo.

A história das pastorais sociais mostra que elas nasceram com a missão de, a partir de práticas concretas, despertar as comunidades dos seguidores de Jesus Cristo a viverem o amor libertador. A metodologia de trabalho das pastorais sociais tem sempre em vista a transformação das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais que fazem da sociedade brasileira uma das mais injustas do planeta. Buscam como perspectiva comum e permanente a dimensão da construção da cidadania, possibilitando que as pessoas, comunidades e a própria sociedade, sejam protagonistas de sua história.

À cidadania associa-se a consciência e a prática da soberania, atra-vés da qual as pessoas envolvidas no processo são motivadas a participar dos meios possíveis ao seu alcance, para conhecer as instituições públicas, estatais, seus mecanismos de funcionamento e interferir em suas decisões. Um dos mecanismos de participação são os “conselhos de cidadania” e as audiências públicas, promovidos pelos governantes.

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Esse processo de educação para a ação cidadã assenta-se na melhor contribuição que cada participante é capaz de dar, assumindo respon-sabilidades cada vez maiores de coordenação, de animação cultural e espiritual, de sistematização e apresentação de propostas com incidência na vida política.

Portanto, a participação sociopolítica da Igreja não parte de um projeto determinado, já pronto. É um projeto participativo, que envolve as pessoas. A partir das situações concretas, assume com as pessoas o enfrentamento das necessidades, a luta por direitos, a construção e a conquista de um projeto de sociedade em que todas as pessoas vivam com liberdade e dignidade, participando das decisões políticas que dizem respeito à vida de todos.

É um trabalho de formação permanente, que desperta nas pessoas o desejo e o prazer de participar, de ter parte, de fazer parte. Uma formação que faça crescer a consciência através da reflexão sobre as ações desenvolvidas. Que avance na teoria, na explicação da realidade, na compreensão das estruturas sociopolíticas, na crítica da economia de mercado capitalista e da ideologia que o justifica, através da reflexão sobre as contradições presentes nas lutas concretas.

As pastorais participam dos movimentos sociais e se articulam com as forças vivas da sociedade. Ajudam na promoção das assem-bleias populares e participam da luta contra as dívidas externa e interna. Articulam-se com os movimentos no Semi-árido brasileiro e participam de suas lutas. Promovem as práticas de economia popular solidárias. Acreditam que haverá mais democracia quanto mais o conjunto dos cidadãos/ãs envolvidos participarem, e da forma mais direta possível, das decisões a serem tomadas. Quanto maior e mais direta a participação, maior a possibilidade de transformar as estru-turas, as bases da vida social, incluindo as estruturas da economia. O mais amplo, o nacional, não existirá sem a multiplicação e a melhoria da qualidade das práticas locais, sejam elas de economia solidária, de organização popular, de participação nas decisões políticas, de desenvolvimento cultural. Por outro lado, o local corre o risco de perder rumo se não se articular e for base de um projeto mais amplo, nacional, aberto às diferenças regionais, às potencialidades e limites de cada bioma que compõe nossa nação.

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6 Por uma reforma do Estado com participação democrática

No dia 11 de março de 2010 a CNBB lançou um documento de número 91 cujo título é: Por uma reforma do Estado com participação democrática. Eis o projeto de sociedade que a CNBB nos convida a construir:

“É urgente, porém, neste momento da história do nosso país, promover uma firme mobilização pelas reformas políticas que abram caminho para uma profunda reforma do Estado brasileiro. Uma reforma que vá, portanto, bem além das meras mudanças de regras de funcionamento de nossa democracia, tal como atualmente se estrutura em nosso país. Dentro dessa perspectiva, a CNBB conclama os irmãos e irmãs brasilei-ros a realizarem uma profunda e crítica análise das atuais instituições políticas e identificarem o que nelas pode ser modificado ou criado de novo, para que o Estado não esteja a serviço dos interesses produtivistas e consumistas, dentro e fora do Brasil, mas esteja efetivamente a ser-viço do bem comum e da dignidade das grandes maiorias nacionais”. (CNBB, 2010, p. 110)

7 Conclusão

Em síntese, a atuação sociopolítica da Igreja Católica, com apoio ou promovida pela CNBB, pode ser assim apresentada:

1. Campanha da Fraternidade, com debate de temas específicos da realidade nacional;

2. Semana do migrante, com abordagem dos temas relacionados às suas problemáticas especificas;

3. Semana dos Estudantes; 4. Dia Nacional da Juventude;5. Semana dos Povos Indígenas;6. Dezesseis edições do Grito dos Excluídos;7. Quatro Semanas Sociais Brasileiras;8. Análise de conjuntura sociopolítica e eclesial;9. Assessoria política junto ao Congresso Nacional;10. Promoção de uma missa mensal com os parlamentares na

sede da CNBB;

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11. Participação da Comissão de Ética no Governo Federal e na Câmara dos Deputados;

12. Comissão Episcopal para a Justiça, a Caridade e a Paz;13. Fórum Nacional de Mudanças Climáticas;14. Comissão Episcopal para a Amazônia15. Comissão especial da água e meio ambiente;16. Comissão especial para acompanhamento do trabalho escravo;17. Comissão Episcopal para a Vida e a Família;18. Mutirão Nacional pela Superação da Miséria e da Fome;19. Campanhas de coletas de assinaturas em abaixo-assinados de

combate à corrupção na vida política; como nos plebiscitos contra a dívida pública, Alca, privatização da Vale e pelo limite da propriedade;

20. Publicação de notas sobre questões pontuais da sociedade, documentos e subsídios de formação permanente sobre temas específicos;

21. Debates, seminários e simpósios temáticos, sempre na pers-pectiva de diálogo da Igreja com a sociedade;

22. Publicação anual do Caderno de Conflitos no Campo;23. Realização de quatro Congressos Nacionais dos Trabalhadores

Rurais (CPT);24. Doze Intereclesiais das CEBs;25. Semana Nacional da Solidariedade;26. Fundo Nacional de Solidariedade (CF);27. Curso de Fé e Política para militantes;28. Cinco Encontros Nacionais de Fé e Política;29. Fórum das pastorais sociais nos regionais da CNBB;30. Edição de dois mutirões latino-americanos de comunicação;31. Comissão especial para os problemas agrários;32. Conferências Ecumênicas da Paz na Câmara dos Deputados;33. Duas edições da Assembleia Popular;

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A presença da Igreja Católica no Brasil e suas implicações sociopolítica

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_____. Em busca dos sinais dos tempos. Brasília: Edições CNBB, 2010.

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Endereço do Autor:E-mail: [email protected]

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 143-162.

* O autor é Presbítero da arquidiocese de Mariana, jornalista, assessor de imprensa da CNBB.

Resumo: O presente artigo se propõe a fazer uma leitura de como a V Confe-rência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, realizada em 2007, em Aparecida (SP), tratou o tema da comunicação. Para tanto, fez-se um breve olhar histórico das quatro Conferências que antecederam a de Aparecida a fim de se obterem os parâmetros quanto à evolução do pensamento da Igreja da América Latina sobre a comunicação. No texto, destaca-se a nova cultura ad-vinda dos meios de comunicação bem como o uso, pela Igreja, desses meios para seu trabalho evangelizador. Acentua-se, assim, a comunicação como fe-nômeno humano, ao mesmo tempo em que se mostra que ela perpassa todo o Documento de Aparecida, que se rende às novas tecnologias de comunicação como um dos caminhos para atingir suas metas.

Abstract: The aim of this article is to present the approach to the media as it was dealt with in the V. General Conference of the Bishops of Latin America and the Caribbean held in 2007 in Aparecida (SP). At the beginning a brief historical survey is given of the major contributions of the previous four conferences ante-ceding Aparecida so as to show forth the propositions concerning the evolution of the thought of the Church concerning the media. The text stresses the new culture arising from the media and the use which was employed by the Church for evangelization. The emphasis lies in the fuller implications of the media as a human phenomenon and at the same time the whole document of Aparecida draws attention to further aspects of new technologies applied to the media at the service of its aims.

Conferência de Aparecida, um sim às no-vas tecnologias de comunicação Geraldo Martins Dias*

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Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação

Introdução

Dentre as revoluções tecnológicas responsáveis pelas rápidas e inimagináveis mudanças que afetam a sociedade, em escala mundial, está a dos meios de comunicação social. Em 1968, quando nem se podia imaginar o mundo digital na forma como o conhecemos hoje, os bispos da América Latina e Caribe, reunidos em Medellin, na Colômbia, já sentiam a força e o alcance dos novos Meios de Comunicação Social de sua época, ao afirmarem que eles “forjam uma nova cultura” que “favorece a personalização” da pessoa humana. E que, graças a esses meios, essa nova cultura “se põe ao alcance de todos, alfabetizados ou não, fato que não acontecia com a cultura tradicional, que favorecia apenas uma minoria”1.

O papa João Paulo II, em sua mensagem para o 18º Dia Mundial das Comunicações, em 1984, também relacionou os meios de comuni-cação com a cultura. “A cultura do nosso tempo, especialmente, parece dominada e plasmada pelos mais novos e poderosos entre os meios de comunicação, o rádio e, sobretudo, a televisão, tanto que, por vezes, parecem impor-se como fins e não como simples meios”. Note-se ainda que, nesse tempo, o mundo digital ainda era algo do futuro que nem todos poderiam prever. Passados dezoito anos, o mesmo papa, vivendo a efervescência da era digital, dedica sua mensagem, por ocasião do 36º Dia Mundial das Comunicações, exatamente à Internet, denominada como “novo foro para a proclamação do Evangelho”2.

Nessa mensagem, João Paulo II vai associar a Internet à capacidade de criar uma nova cultura. “Sem dúvida, a Internet constitui um novo foro, entendido no antigo sentido romano do lugar público em que se decidia sobre a política e o comércio, onde se cumpriam os deveres, se desenrolava uma boa parte da vida social da cidade e se expunham os melhores e os piores aspectos da natureza humana. Tratava-se de um es-paço urbano apinhado e movimentado, que refletia a cultura circunvizinha e criava uma cultura que lhe era própria. Isto não é menos verdadeiro

1 Conclusões de Medellin – II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, 5. ed., p. 163.

2 João Paulo II – As comunicações sociais, instrumento de encontro entre fé e cultura – 18º Dia Mundial das Comunicações, 1984. In. DARIVA, Noemi. Comunicação Social na Igreja, Documentos fundamentais. São Paulo: Paulinas, 2003.

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no que se refere ao espaço cibernético que é, por assim dizer, uma nova fronteira que se abre no início deste novo milênio”3.

É nesse contexto de um mundo mergulhado nas novas tecnolo-gias de comunicação, que gostaria de ler o Documento de Aparecida, sob a ótica da comunicação. Este é um aspecto que diferencia bastante a Conferência de Aparecida, das outras quatro que a precederam. A facilidade de comunicação dos participantes entre si e com outros que acompanhavam e assessoravam a Conferência, oficial ou extraoficial-mente, foi extremamente relevante. Segundo testemunhas, isso fica ainda mais evidente, ao ser comparada com a Conferência de Santo Domingo, em 1992, quando a comunicação, dada a estrutura montada, foi se não a maior, uma das maiores falhas.

Antes de falarmos da comunicação no Documento de Aparecida, vamos fazer uma rápida leitura deste tema nas quatro conferências an-teriores. Dessa forma, perceberemos melhor a evolução ou involução do pensamento da Igreja na América Latina acerca deste fenômeno que, cada vez mais, ocupa espaço em nossas discussões.

1 Do Rio de Janeiro a Santo Domingo

Quando nos referimos às conferências do episcopado latino-americano e caribenho, é comum nos esquecermos da primeira, realizada no Rio de Janeiro, em 1955, por causa do impacto das que se realizaram, especialmente, em Medellin (1968) e Puebla (1979) e, agora, em Apa-recida. Contudo, aquela, que foi a primeira, tem particular importância não só por ter sido nela criado o Celam, como também pelo fato de ter antecedido o Concílio Vaticano II.

Nessa Conferência, a Igreja na América Latina já demonstrava sua preocupação com a comunicação e o uso dos mass media na evangeliza-ção. O documento final dedica um capítulo inteiro aos Meios especiais de propaganda (Título V). De forma prática e objetiva, sem teorizar sobre o fenômeno humano da comunicação, os bispos manifestam o desejo de que a Conferência Episcopal de cada país tenha um jornal diário e de circulação nacional; exortam que, nas dioceses, haja grupo de padres que se dediquem à imprensa católica; sugerem que se crie nas dioceses o

3 João Paulo II. Internet: Um novo foro para a proclamação do evangelho - 36º Dia Mundial das Comunicações, 2002. In. DARIVA, Noemi. Op. Cit.

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“Dia da Imprensa Católica”, a ser celebrado anualmente e que, em cada país, haja um secretariado de imprensa.

A ênfase é dada, portanto, à imprensa, embora o documento fale também de rádio e “outros modernos meios de propaganda” sem nominá-los. Ainda não se usa o termo “meios de comunicação social”. É interessante perceber que, há quase 60 anos, a Igreja na América La-tina já tinha como meta não só estar nos meios de comunicação, mas, sobretudo, ter seus próprios meios, isto é, uma “imprensa católica”, sem deixar de “aproveitar as boas disposições de outros diários locais para que respondam melhor ao caráter genuinamente católico dos países latino-americanos, e divulguem tudo o que possa ajudar a formar o justo e são critério dos leitores”4.

Sob o influxo do Concílio Vaticano II e, especificamente, do De-creto Inter Mirifica, o segundo documento aprovado pelo Concílio, aos 4 de dezembro de 1963, a Conferência de Medellin (1968) dedica o último capítulo (16) de seu documento aos “Meios de Comunicação Social”. É visível a evolução do pensamento da Igreja sobre a comunicação, vista como “uma das principais dimensões da humanidade”. Já os meios de comunicação, segundo os bispos latino-americanos, “abrangem a pessoa na sua totalidade”, “plasmam o homem e a sociedade” e “forjam uma nova cultura”, além de aproximar “homens e povos, convertendo-os em próximos e solidários”5.

Medellin olha para os meios de comunicação, a partir da realidade de opressão vivida pelo povo latino-americano. Nesse sentido, há três preocupações básicas: a) que os MCS contribuam para a transformação da realidade. Daí sua preocupação com aqueles meios que estão “vinculados a grupos econômicos e políticos, nacionais e estrangeiros, interessados na preservação do status quo social”; b) que a Igreja entenda que, sem os MCS, ela não poderá cumprir sua missão de levar a Boa Nova de Cristo “até os confins da terra”; c) que haja adequada formação, tanto dos ministros ordenados quanto dos leigos e profissionais cristãos, para esta nova realidade que são os MCS6.

4 I Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. In DARIVA, Noemi. Op. Cit. p. 484 62.

5 Conclusões de Medellin – II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, 5. ed., p. 163.

6 Ibidem, p. 164-166.

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Ressalte-se que, nessa época, a América Latina já conhecia as ex-celentes experiências no uso do rádio, para educação à distância, visando a conscientização do cidadão, em relação aos seus direitos. É o caso da Escola Radiofônica da Colômbia, que surge no final dos anos 1940, e do Movimento de Educação de Base (MEB), no Brasil, na década de 1960. O regime militar, contudo, no caso do Brasil, pôs fim às escolas radiofônicas, não ao MEB que, em 2011, comemora 50 anos.

Se é iluminada pelos raios que emergem do decreto conciliar Inter Mirifica, que Medellin analisa a comunicação, Puebla (1979), onze anos depois, o faz sob a inspiração de um dos melhores documentos da Igreja sobre Comunicação: a Communio et Progressio, Instrução Pastoral sobre os Meios de Comunicação Social, da Comissão Pontifícia para as Comunicações Sociais, de maio de 1971.

Retomando e aprofundando a análise que Medellin faz sobre os MCS, Puebla é a Conferência do episcopado latino-americano que tem a leitura mais crítica em relação ao uso dos mass media, inclusive por parte da Igreja. Retoma a preocupação de Medellin, quanto aos meios serem dominados pelo poder político e econômico para a manutenção do status quo. Diz: “Devemos denunciar o controle desses meios de comunicação social e a manipulação ideológica que exercem os poderes políticos e econômicos, que se empenham em manter o status quo e até em criar uma ordem nova de dependência-dominação ou, pelo contrário, em subverter esta ordem para criar outra de sinal contrário”7. Nessa mesma perspectiva, Puebla denuncia o monopólio da informação, “tanto por parte do governo, como de interesses privados”; o que permite o “uso arbitrário” dos MCS e favorece a “manipulação” da notícia, segundo seus interesses8.

A novidade de Puebla, neste campo, comparada a Medellin, talvez esteja no seu olhar crítico para a própria Igreja, em sua relação com os meios de comunicação. Em primeiro lugar, Puebla se queixa da demora da Igreja em colocar em prática os ensinamentos do Magistério, a res-peito do uso dos meios de comunicação9. Em segundo lugar, os bispos reclamam do “insuficiente aproveitamento das ocasiões de comunicação”,

7 Conclusões da Conferência de Puebla – Evangelização no presente e no futuro da América Latina. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, 9. ed., p. 338, n. 1.069.

8 Idem n. 1071.9 Idem n. 1075.

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oferecidas à Igreja pelos meios que não são de sua propriedade , bem como da “incompleta utilização” dos próprios meios10.

Dentre as propostas pastorais elencadas por Puebla, é preciso destacar a que insiste em que, diante da realidade de pobreza, margina-lidade e injustiça no continente latino-americano, “a Igreja, no uso de seus próprios meios, deve ser, cada dia mais, a voz dos desamparados, apesar dos riscos que isso implica”11.

Outra novidade de Puebla, em relação às duas Conferências an-teriores, está logo na abertura da seção dedicada à comunicação social, quando os bispos avançam no conceito de evangelização, associando-a à comunicação. “A evangelização, anúncio do Reino, é comunicação: portanto, a comunicação social deve ser levada em conta em todos os aspectos da transmissão da Boa Nova”12. Essa chave de leitura é fun-damental, para que se estabeleça o lugar da comunicação, na vida e na prática pastoral da Igreja.

A quarta Conferência do Episcopado da América Latina e Caribe, realizada em Santo Domingo, em 1992, talvez seja uma das mais fracas ao abordar o tema da comunicação.

Inserido na segunda parte do terceiro capítulo, o tema é associa-do à cultura, mas se limita a, praticamente, repetir alguns pensamentos de Puebla. Contudo, diria que introduz, pelo menos, três aspectos que merecem ser aprofundados, dado que a Conferência os toca muito su-perficialmente.

O primeiro deles diz respeito à teologia da comunicação, que é timidamente esboçada na introdução ao tema, sob forma de “iluminação teológica”. O segundo é exatamente relacionar a comunicação com a cultura. O Documento lembra que “nos encontramos na nova cultura da imagem”, e que o evangelho deve “inculturar-se nessa cultura”. Limita-se a isso. Finalmente, Santo Domingo aponta a telemática e a informática como os “novos desafios para a integração da Igreja no seu mundo”. Afirma que é “imprescindível usar a informática para otimizar nossos recursos evangelizadores”13. Essa proposta se soma às demais indicações

10 Idem n. 1076.11 Idem, n. 1094.12 Idem n.1063.13 IV Conferência do Episcopado Latino-Americano – Santo Domingo. In. DARIVA,

Noemi. Op. Cit. p. 509-511.

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das três conferências anteriores que insistem em colocar a Igreja nos trilhos de uma comunicação assegurada pelos mais avançados meios desenvolvidos pela inteligência humana.

Do Rio de Janeiro a Santo Domingo, houve, sim, no processo das comunicações na Igreja, um progresso, embasado especialmente no Decreto conciliar Inter Mirifica e na Instrução Pastoral Communio et Progressio, além da Aetatis Novae e das mensagens dos papas para o Dia Mundial das Comunicações. A ênfase nesse período recai fortemente na organização e estruturação dos meios da própria Igreja (Rio de Janeiro); os meios a serviço da libertação do povo latino-americano (Medellin), da evangelização, sendo voz dos sem voz (Puebla) e na atenção à nova cultura, num tempo em que começa a despontar, e a ganhar força, o mundo da informática (Santo Domingo).

2 A Conferência de Aparecida

A quinta Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe, realizada em Aparecida, em maio de 2007, se distancia mais de meio século da primeira, que aconteceu também no Brasil, no Rio de Janeiro, em 1955. Nesse tempo, a história registra incontáveis fatos que marcaram a vida da sociedade e da Igreja, com fortes impactos em sua organização e ação. Os meios de comunicação social, mais do que testemunhas, são protagonistas que, juntamente com outros atores, têm grande responsa-bilidade na conjuntura político-social e cultural mundial.

A Igreja, inserida no mundo, recebe também os impactos dessas mudanças e a eles procura responder, iluminada pelo Evangelho que lhe permitiu constituir, ao longo dos séculos, um sólido pensamento sobre a pessoa humana e tudo que a envolve.

Uma das dimensões humanas que, nos últimos tempos, tem ocupa-do muito a reflexão da Igreja, é exatamente a comunicação ampliada pelas novas tecnologias que se caracterizam pela velocidade, instantaneidade, globalização, quantidade e fragmentação.

Gomes (2006) nos recorda que, “como fenômeno predominante-mente humano, já que supõe a consciência, a comunicação é condição imprescindível para o desenvolvimento da pessoa”14 e, “ao mesmo tempo

14 GOMES, Pedro Gilberto. Filosofia e ética da comunicação na midiatização da socie-dade. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2006, p. 15.

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em que é fruto das pessoas, é também condição que possibilita a realiza-ção do homem. Ele é comunicação e constitui-se na e pela comunicação. Desse modo, quando se examina e analisa a comunicação, toca-se no que de mais profundo existe no humano”15.

A realidade da comunicação foi considerada na Conferência de Aparecida como fenômeno eminentemente humano, tendo em vista as novas tecnologias da comunicação e da informação. É o que pretendemos destacar a seguir.

2.1 O contexto

O Documento de Aparecida, logo no início, reconhece que vive-mos uma mudança de época, cujo nível mais profundo é o cultural16. Aponta os meios de comunicação social como um dos fatores responsá-veis por essa mudança, por causa de sua capacidade de “criar uma rede de comunicações de alcance mundial, tanto pública como privada, para interagir em tempo real, ou seja, com simultaneidade, não obstante as distâncias geográficas”17.

Quem teve o privilégio de participar de alguma forma da Con-ferência em Aparecida, pode constatar que os bispos falavam de algo muito próximo deles. Afinal, poucos eram os que não usavam o celular e a rede mundial de computadores, característica mais que suficiente para diferenciar esta das demais conferências. Isso possibilitava contatos imediatos com agentes externos, como teólogos e peritos que, mesmo não fazendo parte do corpo oficial da assembleia, puderam ajudar na reflexão, segundo o grau de proximidade com algum membro da Conferência. Tudo facilitado pelo pendrive, pelo celular, pela internet.

Essas novas tecnologias facilitaram também a veiculação, na im-prensa, tanto dos atos oficiais da Conferência, quanto dos seus bastidores e iniciativas que ocorriam concomitantemente. Tudo isso expunha de tal forma a Conferência, que ficava quase impossível o sigilo das reflexões e decisões; tanto que, mal acabara a assembleia, o documento final já

15 Idem p. 22.16 Documento de Aparecida – Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado

Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Edicões CNBB-Paulus-Paulinas, 2007, p. 32, n. 44.

17 Idem p. 27, n. 34.

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estava online, em espanhol (língua “oficial” da Conferência), no site de um grande jornal brasileiro.

Esse é, portanto, o contexto, do ponto de vista das novas tec-nologias, em que se deu a Conferência de Aparecida. Tê-lo presente é importante porque nos faz compreender melhor o teor dos parágrafos que o Documento dedica à comunicação.

2.2 Comunicação no Documento de Aparecida

Ao contrário do que ocorreu em Medellin e Puebla, a Conferên-cia de Aparecida reserva pouco espaço à comunicação, sobretudo se consideramos o que dissemos acima no que tange ao papel das novas tecnologias da comunicação, nas mudanças que marcam o fim do segundo milênio e início do terceiro. Não há nenhuma reflexão ou conceituação de comunicação e muito menos uma análise da realidade dos meios de comunicação na América Latina. Nesse sentido, há uma clara ruptura com Medellin e Puebla, que situam e correlacionam os Meios de Comu-nicação Social com a realidade sócio-política, econômica e cultural do continente. A teologia da comunicação, mencionada indiretamente em Santo Domingo18, não é lembrada nem de longe em Aparecida. Escapa-me a compreensão deste caminho assumido pelos bispos. A impressão deixada pelo documento é de que não se quis gastar muito papel e tinta com este tema, e que os poucos parágrafos aí inseridos já seriam sufi-cientes para demonstrar o lugar que a comunicação ocupa na Igreja da América Latina e Caribe.

Inserida no capítulo 10º – “Nossos povos e a cultura” -, a comuni-cação é tratada apenas sob a ótica da “Pastoral da Comunicação Social” e se resume em sete pequenos parágrafos. Os mais otimistas dirão: “an-tes pouco que nada”. Pode ser. Contudo, a impressão que fica é que se perdeu uma ótima oportunidade de avançar mais numa reflexão sobre esse “fenômeno predominantemente humano”19 que, desde a primeira Conferência, vinha num crescendo e que apontava exatamente para a realidade que hoje se configura: de uma comunicação virtual, em escala planetária, cujo alcance ninguém pode medir.

18 IV Conferência do Episcopado Latino-Americano – Santo Domingo. Op. Cit. p. 508, n. 279.

19 GOMES, op. cit. p. 15.

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Mesmo sob esse limite, Aparecida revela avanços no debate sobre a comunicação. Ao longo do Documento, a palavra comunicação aparece mais de 30 vezes, sem contar os sete parágrafos específicos a que nos referimos anteriormente. A maior parte destas citações liga comunicação aos meios, seja para enaltecer seus benefícios, seja para alertar para os riscos e os males que causam. Por exemplo, o número 45:

A utilização dos meios de comunicação de massa está introduzindo na sociedade um sentido estético, uma visão a respeito da felicidade, uma percepção da realidade e até uma linguagem, que querem impor-se como autêntica cultura20.

No seu conjunto, porém, a visão sobre os meios de Comunica-ção que emerge de Aparecida é muito mais positiva. Não há, como já ocorreu em outros documentos ou pensamentos da Igreja, em referência aos meios, uma demonização, que mais assusta que aproxima. Isso nos permite inferir o lugar que a comunicação deve ocupar na Igreja: inti-mamente associada à evangelização, na perspectiva de fazer discípulos e missionários de Jesus os que a Ele aderem. Nesta perspectiva, a comu-nicação atravessa todo o Documento e, de forma implícita, é condição para se alcançar a meta posta pela Conferência.

Podemos ler os sete parágrafos específicos de Aparecida sobre Comunicação, sob três ângulos, não distintos, mas integrados e comple-mentares. O primeiro é o ângulo que aponta os meios de comunicação como instrumento eficaz e insubstituível de evangelização; o segundo re-mete para os compromissos que os bispos assumem, a fim de alcançarem esse objetivo, e o terceiro se refere à última das “admiráveis invenções da técnica”21: a Internet, com suas infinitas possibilidades também para evangelizar. Falemos de cada um desses ângulos separadamente.

a) MCS e evangelização

Fora o reconhecimento de que “a revolução tecnológica e os pro-cessos de globalização formatam o mundo atual como grande cultura midiática” e de que isso exige “capacidade para reconhecer as novas linguagens que podem favorecer maior humanização global”22, a Confe-

20 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 33, n. 45. 21 Compêndio Vaticano II – Petrópolis: Vozes, 1987, 19. ed. – Inter Mirifica n. 1.22 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 218, n. 484.

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rência de Aparecida não traz, neste campo da evangelização pelos meios de comunicação, nenhuma novidade. Retoma da Exortação Apostólica de Paulo VI Evangelii Nuntiandi, publicada em 1975, uma das mais contundentes afirmações, atestando a imprescindibilidade dos meios de comunicação para a evangelização, na mesma linha que fez Puebla.

Disse Paulo VI: “A Igreja se sentiria culpada diante de Deus, se não empregasse esses poderosos meios que a inteligência humana aper-feiçoa cada vez mais. Neles, encontra uma versão moderna e eficaz do ‘púlpito’. Graças a eles, pode falar às multidões”23.

Entendo que, ao recorrerem a essa afirmação de Paulo VI, os bispos da América Latina quiseram expressar, com clareza e sem subterfúgios, sua adesão incondicional, mesmo que não exclusiva, à evangelização também pelos meios de comunicação. Aliás, esta é uma cobrança que vem de muitos que acusam a Igreja de não ter entrado nos meios de comunicação. Argumentam que as igrejas evangélicas foram mais ágeis e descobriram primeiro este caminho e que, hoje, colhem os frutos de sua audácia com um crescimento que, até bem pouco tempo, parecia improvável. É verdade que tal afirmação se faz mais em relação à presença da Igreja na TV.

Comprovada ou não essa tese, o fato é que, cada dia mais, a Igreja Católica busca novas formas de se fazer presente na mídia eletrônica. No Brasil, por exemplo, já são pelo menos dez TVs e, segundo estimativas da Unda (Associação de Rádios Católicas), perto de 600 emissoras de rádio. Na era do virtual, há um sem número de portais e mídias sociais com o selo de “católicos”, incluídas até as comunidades virtuais, prota-gonizados tanto por leigos, quanto por ministros ordenados e religiosos e religiosas, seja individual ou institucionalmente.

Tudo isso reflete o esforço da Igreja em atender aos incisivos apelos dos últimos papas que veem, nos meios de comunicação, uma condição singular de atender ao mandato missionário deixado por Jesus Cristo: “Ide, fazei que todos sejam meus discípulos” (Mt 28,19). O Documento de Aparecida está, portanto, em plena sintonia com os novos tempos que marcam a relação da Igreja com os meios de comunicação, aliados importantíssimos no anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo.

23 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 218, n. 485.

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b) Compromissos dos bispos

Para alcançar a meta de evangelizar, através dos meios de comuni-cação, os bispos da América Latina e Caribe assumiram, em Aparecida, nove compromissos24 que apontam para três direções: 1) a valorização da nova cultura da comunicação; 2) a formação tanto dos comunicadores quanto dos agentes de pastoral e dos usuários dos meios e 3) o desen-volvimento de uma política de comunicação.

Quando os bispos falam de “nova cultura da comunicação”, entendo que se refiram à revolução causada pelas novas tecnologias da comunicação, como o celular, a internet, as mídias sociais, os aparelhos cada vez mais sofisticados como Ipod, Ipad, TV digital etc. Tudo isso trouxe impactos enormes à convivência humana e exerce grande influ-ência na comunicação humana. Portanto, reconhecer e aceitar essa nova cultura da comunicação é fundamental, para que a Igreja se mantenha em diálogo com o mundo.

O que caracteriza essa “nova cultura”, trazida pelas tecnologias da comunicação e da informação? Em primeiro lugar, a evidência da diversidade e da pluralidade que marcam nossa sociedade. Em segundo lugar, uma nova visão e um novo conceito de comunidade que desafia os paradigmas postos pela própria Igreja, ao longo de séculos, ao conceber a comunidade circunscrita à territorialidade, critério de pertença e de compromisso. Uma terceira característica é introdução do virtual em contraposição ao presencial. Poderíamos citar, ainda, a nova linguagem, além da superação de tempo e espaço. Graças à internet, podemos ter o mundo em nossa casa em tempo real, e beber das mais variadas culturas que fazem a riqueza da humanidade.

O papa Bento XVI, em sua mensagem para o 43º Dia Mundial das Comunicações, no ano passado, enumerou os benefícios dessa nova cultura na qual já nasceram os jovens de hoje, chamados por ele de ge-ração digital. Diz o papa: “Desta nova cultura da comunicação derivam muitos benefícios: as famílias podem permanecer em contato apesar de separadas por enormes distâncias, os estudantes e os investigadores têm um acesso mais fácil e imediato aos documentos, às fontes e às descobertas científicas e podem, por conseguinte, trabalhar em equipe, a partir de lugares diversos; além disso, a natureza interativa dos novos

24 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 218, n. 486.

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‘media’ facilita formas mais dinâmicas de aprendizagem e comunicação que contribuem para o progresso social”25.

Esse conhecimento é fundamental para quebrar as resistências de muitos membros da hierarquia em relação às novas tecnologias e para a consolidação de uma visão positiva, mas não ingênua, da comunicação que se faz através desses meios. Isso já foi descoberto pelos jovens, como nos recorda o papa: “De modo especial, os jovens, deram-se conta do enorme potencial que têm os novos ‘media’ para favorecer a ligação, a comunicação e a compreensão entre indivíduos e comunidade, e usam-nos para comunicar com os seus amigos, encontrar novos, criar comunidades e redes, procurar informações e notícias, partilhar as próprias ideias e opiniões”26. Por que as paróquias e comunidades não confiam aos jovens o protagonismo da evangelização por esses meios?

Um segundo conjunto de compromissos dos bispos, em Apare-cida, aponta para a formação na “cultura da comunicação”27. Eis aí um desafio posto à Igreja, desde que se dedicou à reflexão sobre os meios de comunicação, “novo areópago” no mundo da evangelização. Aliás, esse compromisso não é novo. Está em todos os documentos da Igreja sobre comunicação.

A quem se deve oferecer essa formação, requerida em pratica-mente todos os documentos da Igreja sobre comunicação? Ela tem, pelo menos, três interlocutores : todos os agentes, todos os cristãos, todos os comunicadores profissionais (proprietários, diretores, programadores, jornalistas, locutores). Em 1997, os bispos do Brasil, na 35ª Assembleia Geral da CNBB, assumiram esse mesmo compromisso e indicavam o público preferencial dessa formação: “as lideranças religiosas (bispos, presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas), os agentes da pastoral da comunicação, os profissionais da comunicação social e os animadores da comunicação, no espaço educativo”28.

25 Bento XVI – Novas tecnologias, novas relações. Promover uma cultura de respeito, de diálogo, de amizade. Disponível em: < http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/communications/documents/hf_ben-xvi_mes_20090124_43rd-world-communications-day_po.html>. Acesso em 20.10.2010.

26 Idem.27 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 219, n. 486 b e c.28 CNBB. Igreja e Comunicação rumo ao novo milênio.Conclusões e compromissos.

Documentos da CNBB 59. São Paulo: Paulinas, 2. ed., p. 16, Doc. 97, n. 36.

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Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação

Não basta, porém, definir o público da formação. É preciso, ain-da, indicar o conteúdo dessa formação. Nesse sentido, é fundamental acentuar o conceito de comunicação, superando o equívoco de muitos, que confundem os meios com a própria comunicação. Não podemos nos esquecer de que os meios são tão somente a técnica capaz de ampliar ao infinito o alcance da mensagem que se comunica.

Gilberto Gimenez define comunicação como sendo o “processo de produção/recepção de complexos efeitos de sentido (e não só de in-formação), a partir do lugar que os interlocutores ocupam, na trama das relações sociais e em função do horizonte ideológico cultural de que são portadores, em virtude de sua situação ou posição de classe”29.

Martino (2002) recorda que comunicação vem do latim communi-catio, palavra composta de três raízes: munis (estar carregado), co (simul-taneidade) e tio (ideia de atividade). Segundo o autor, esse termo aparece, pela primeira vez, no universo do cristianismo, “onde a vida eclesiástica era marcada pela contemplação e isolamento”. Ainda de acordo com Mar-tino, no Mosteiro, o isolamento vai ser quebrado com a prática de “tomar a refeição da noite em comum”, chamada, então, de communicatio30. Daí, comunicação como prática de colocar algo em comum, partilhar.

Marcondes Filho (2008) toca em outro ponto interessante, quando diz que “a comunicação jamais pode ser vista como transmissão, deslo-camento, transferência, como se fosse um objeto que eu pegasse de um lado e pusesse em outro, como eu faço com as fichas de um jogo; como se fosse possível eu retirar uma idéia, uma sensação, uma impressão, um sentimento dentro de mim e abrir a cabeça da outra pessoa para colocá-lo lá dentro. Não dá”31. Para ele, a comunicação autêntica, perfeita, é quando “me ligo ao outro”, e isso implica acolhida plena do outro. Por isso, ele diz que a comunicação “é fenômeno raro, mas não impossível”32.

A comunicação supõe relação, interação. “Só há verdadeira comu-nicação humana, quando o emissor comunica o que é, e se abre ao aco-lhimento do outro a ponto de se identificar com ele, sem dominá-lo”33.

29 GIMENEZ in GOMES, op. cit. p. 18. 30 Cf. MARTINO, Luiz C. De qual comunicação estamos falando. In. FRANÇA, Vera

Veiga. Teorias da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 13.31 FILHO, Ciro Marcondes. Para entender a comunicação. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 15. 32 Idem.33 CNBB. Comunicação para a verdade e a paz. Op. cit. p.11.

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Esta compreensão da comunicação respalda, de forma clara, a definição que os bispos do Brasil dão à Pastoral da Comunicação e que faltou à Conferência de Aparecida. Diz a CNBB que a “Pastoral da Comu-nicação é a pastoral do ser ou do estar em comunhão ou em comunidade. É a pastoral da acolhida e da participação; a pastoral das inter-relações humanas”34. A Communio et Progressio já dizia, antes, que “os fins primordiais” da comunicação social são “a comunhão e o progresso da convivência humana”35 e que “pela sua própria natureza, a comunicação social contribui para que os homens, comunicando-se entre si, adquiram uma consciência mais profunda da vida comunitária”36.

A formação na “cultura da comunicação” supõe, portanto, levar em consideração esses princípios básicos, antes de se preocupar com a capacitação técnica que leva as pessoas ao uso dos novos mass media. Este não é um desafio pequeno. A proposta, por exemplo, de incluir, na grade de formação dos futuros presbíteros, a disciplina de comuni-cação, vem de longe e, ainda hoje, é reivindicação recorrente dos que se ocupam da comunicação, por constatarem a resistência e, em alguns casos, o obstáculo que muitos membros do clero colocam, quando o assunto é comunicação. Sem a superação desse desafio, fica totalmente comprometida a grande proposta de Aparecida: fazer com que todos tenham um encontro pessoal com Jesus Cristo, a fim de que se tornem seus discípulos missionários.

Em relação à formação dos proprietários dos meios de comuni-cação, permanece o mesmo desafio já posto por Medellin e Puebla, não mencionado em Aparecida, que é o predomínio do poder econômico e político no uso dos meios a fim de se manter o status quo. Ainda so-fremos com a espetacularização das notícias e com o enfraquecimento, pelos meios de comunicação, do limite entre o público e o privado. A superação desse desafio depende, em grande parte, dos empresários e dos profissionais da comunicação.

Um terceiro bloco de compromissos, assumidos em Aparecida, diz respeito à relação da Igreja com os meios de comunicação. Superada a fase em que a Igreja olha com desconfiança para essas “maravilhas”, o tempo agora é de usar os meios que são oferecidos à Igreja e trabalhar

34 Estudos CNBB 75 n. 244.35 Cf. Communio et Progressio n. 1.36 Idem n. 8.

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Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação

para ter os próprios meios. E isso, em todos os setores, com ênfase na televisão, rádio, internet e meios impressos37. No caso do Brasil, esta já é uma realidade. A questão, portanto, não é mais ter os meios, ou, mesmo, para que tê-los. Essa é uma questão já superada. A questão que se coloca agora é mais profunda. Trata-se do conteúdo que esses meios da Igreja veiculam e a qualidade com que o fazem. Daí a razão de ser da preocupação com a formação integral dos comunicadores.

Um último compromisso dos Bispos da América Latina e Caribe é uma necessidade que ainda não está tão próxima de se tornar realidade:o desenvolvimento de uma política de comunicação, “capaz de ajudar tanto as pastorais da comunicação, como os meios de comunicação de inspiração católica, a encontrar seu lugar na missão evangelizadora da Igreja”38.

No Brasil, a CNBB caminha para aprovar um Diretório de Co-municação que deverá apontar nessa direção. Elaborado pelo Setor Comunicação Social da Comissão Episcopal para a Cultura, Educação e Comunicação Social, o texto já está pronto para ser publicado na co-leção Estudos da CNBB, quando deverá ser trabalhado pelas bases das quais receberá contribuições, antes de se tornar um documento oficial da CNBB. Ao que parece, está perto de se tornar realidade o sonho de muitos comunicólogos, que fazem parte da história da comunicação da Igreja no Brasil. A expectativa é de que, tendo definido uma política de comunicação para a Igreja no Brasil, haja um referencial que favoreça a unidade e a comunhão que devem caracterizar a evangelização através dos meios de comunicação católicos, particularmente as TVs.

c) Internet

A grande novidade do Documento de Aparecida, em relação à comunicação, está nos números 487 a 490, que assumem a internet, como “instrumento indispensável” para a evangelização. Tomando emprestadas as palavras do papa João Paulo II, a Conferência de Aparecida conclama a Igreja a se aproximar da internet “com realismo e confiança”. Não se po-dia esperar outra coisa. Afinal, já em 2002, o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais publicara o excelente documento Igreja e internet e, nesse mesmo ano, a mensagem de João Paulo II para o Dia Mundial

37 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 219, n. 486d.38 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 219, n. 486i.

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das Comunicações tratou também da internet, sob o título “Internet, um novo foro para a proclamação do evangelho”. Nessa mesma direção, Bento XVI, em sua mensagem para o 43º Dia Mundial das Comunica-ções, aproveitando as motivações do Ano Sacerdotal, exortou os padres a assumirem, “pra valer”, a evangelização através da internet: “A vós, queridos Sacerdotes, renovo o convite a que aproveiteis, com sabedoria, as singulares oportunidades oferecidas pela comunicação moderna. Que o Senhor vos torne apaixonados anunciadores da Boa Nova, na ‘ágora’ moderna, criada pelos meios atuais de comunicação”39.

Os bispos alertam, no entanto, que as relações favorecidas pelo mundo digital não substituem as relações pessoais. Esta preocupação sempre aparece forte, nas mensagens da Igreja em relação ao mundo virtual: “Apesar de a Internet nunca poder substituir aquela profunda experiência de Deus, que só a vida concreta, litúrgica e sacramental da Igreja pode oferecer, ela pode, certamente, contribuir com um suplemento e um apoio singulares, tanto preparando para o encontro com Cristo, na comunidade, como ajudando o novo crente na caminhada de fé, que então tem início”40. E ainda: “É também verdade que as relações man-tidas eletronicamente jamais podem substituir o contato humano direto, necessário para uma evangelização autêntica, porque a evangelização depende sempre do testemunho pessoal daquele que é enviado para evangelizar (cf. Rm 10,14-15)”41.

Outra preocupação dos bispos é com a exclusão digital. Uma realidade muito presente em nossa sociedade, dadas as grandes diferen-ças sociais que marcam o povo latino-americano, por causa do sistema político-econômico. Bem de acordo com a tradição da Igreja, na América Latina, a proposta é que a Igreja combata esta exclusão, criando “pontos de rede e salas digitais”42 (490).

Finalmente, os bispos dão algumas indicações dos vários “ser-viços” que a Igreja pode oferecer, através da internet, e chegam a citar a existência de “orientações religiosas e sociais diversas, tais como

39 Bento XVI – Novas tecnologias, novas relações. Promover uma cultura de respeito, de diálogo, de amizade. Disponível em: < http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/communications/documents/hf_ben-xvi_mes_20090124_43rd-world-communications-day_po.html>. Acesso em 20.10.2010.

40 João Paulo II – in. DARIVA, Noemi. Op. Cit. p. 434.41 Idem p. 435.42 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 221, n. 490.

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Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação

‘sacerdote’, ‘orientador espiritual’, ‘orientador vocacional’, ‘professor’, ‘médico’”43. Esse compromisso é um avanço e uma prova de que a Igreja está mesmo disposta a assumir o virtual como meio eficaz de evangeli-zação, não obstante os riscos que isso implica, como o enfraquecimento das relações interpessoais e, consequentemente, da vida comunitária.

3 Apontamentos finais

A exortação a que todos os cristãos se tornem discípulos-missionários de Jesus Cristo é a linha mestra de todo o Documento de Aparecida. Segundo o Documento, isso ocorre quando a pessoa faz a experiência de Jesus Cristo, a partir de um encontro pessoal com Ele. O anúncio da vida, da pessoa, da paixão e morte de Jesus Cristo se torna, portanto, tarefa de todos os cristãos. Os bispos veem, nesse compromisso, um grande desafio: “Aqui está o desafio fundamental que afrontamos: mostrar a capacidade da Igreja para promover e formar discípulos e missionários que respondam à vocação recebida e comuniquem, por toda parte, transbordando de gratidão e alegria, o dom do encontro com Jesus Cristo”44.

Um dos caminhos para vencer esse desafio é o aperfeiçoamento e o investimento na comunicação. Uma comunicação que seja capaz de convencer as pessoas do lugar de Jesus Cristo em suas vidas e, assim, fazerem opção por Ele, uma vez que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”45.

Nesse sentido, podemos dizer que o tema da comunicação é transversal, no Documento de Aparecida, como deve ser em toda a ação evangelizadora da Igreja. “O Documento de Aparecida, desde o começo até o final, deixa entrever a importância da transversalidade da comunicação, como algo essencial à vida da Igreja. Esse aspecto é muito importante, porque significa que a comunicação, da qual nos fala o papa João Paulo II como ‘caminho para a comunhão’, hoje, mais do

43 Idem.44 Documento de Aparecida. Op. Cit. p. 15, n. 14.45 Bento XVI, Deus Caritas Est, in Documento de Aparecida, op. cit. p. 13, n. 12.

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que nunca, é um desafio para a Igreja. Assim, a comunicação se converte numa das chaves de interpretação de Aparecida”46.

Realmente, sem um sério investimento na comunicação, todos os ideais de encontro, de formação, de conversão, de missão, de comunhão, propostos por Aparecida, ficam literalmente comprometidos. Não se en-tenda por investimento em comunicação somente a aquisição de meios tecnológicos. O primeiro investimento é de ordem humana, oferecendo aos responsáveis pela comunicação nos vários setores da Igreja adequa-da formação e capacitação técnica. Não se pode esquecer também de assegurar uma boa estrutura que favoreça a comunicação. Improviso e amadorismo não são aliados de uma comunicação eficiente e eficaz.

O Documento de Aparecida, visto no seu todo, se constitui num forte apelo a que a Igreja faça da comunicação uma dimensão de toda sua ação evangelizadora. O fato de o Documento dar ênfase às novas tecnologias, não nos permite concluir que à Igreja bastam os meios para que a comunicação se faça. Nesse sentido, lembramos vários autores, como Garaudy, que advertem para o risco de haver menos comunicação hoje, num mundo marcado pelos meios de comunicação. “Nunca se falou tanto de comunicações, de Norbert Wiener a Mac Luhan, e de encontros; e, no entanto, nunca houve menos comunicações verdadeiramente hu-manas entre os homens, pois o homem está, cada vez, mais solitário em relação aos outros e mais dividido dentro de si mesmo”47.

Marcondes Filho segue o mesmo caminho, ao afirmar que “nosso século é o século da incomunicação. É o século do paradoxo, pois, em nenhuma outra época da história humana, as pessoas tiveram, à sua dis-posição, tantos meios de comunicação: telefones, mensagens eletrônicas, equipamentos para transmitir imagens, vozes, acontecimentos”48.

Gomes (2006) se pergunta: “Será que o aumento de possibilidades de transmissão de informações corresponde a um aumento real das condi-ções de comunicação na sociedade?”. E responde em seguida: “A resposta afirmativa não é consenso entre os pensadores contemporâneos”49.

46 GOMES Carlos Arturo Quintero. A Comunicação. Coleção: À luz de Aparecida. Edições CNBB, 2010, p. 20.

47 GARAUDY, R. “Apelos aos vivos”. In: Castro, Nereu Teixeira. A comunicação liberta-dora. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 17.

48 FILHO, Ciro Marcondes. Op. Cit p. 13. 49 GOMES, Pedro Gilberto. Op. Cit.

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Conferência de Aparecida, um sim às novas tecnologias de comunicação

Ao defender o anúncio de Jesus Cristo a todos os povos, também através dos meios de comunicação, a Conferência de Aparecida confirma essa compreensão da comunicação como fenômeno eminentemente hu-mano e que só atinge seu ideal quando leva as pessoas a se encontrarem umas com as outras no grande Outro, que é Deus.

Endereço do Autor:CNBB

SE/Sul Quadra 801, Conjunto “B”70200-014 Brasília, DF

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Encontros Teológicos nº 57Ano 25 / número 3 / 2010, p. 163-174.

* O autor, presbítero da arquidiocese de Florianópolis, Doutor em Teologia Moral e em Filosofia, é professor de filosofia na Faculdade São Luís e de Teologia Moral no ITESC.

Resumo: As tradições religiosas se deixam guiar por um sentido forte de fi-delidade. Os tempos, porém, mudaram. No contexto pós-moderno, o conceito de fidelidade se apresenta fragilizado. O “descontínuo” é a regra que nasce da evidência de que o indivíduo está condicionado ao limite intransponível da contingência. Nesse sentido, o autor reflete sobre a “mudança de percepção”, procurando, a seguir, “detectar suas causas”. Num terceiro momento, convida o leitor a engajar-se “em busca da postura ético-religiosa originária”. Concluindo, afirma que “o apelo ético-religioso sempre ressoará sob o timbre de um grande desafio: o espaço do numinoso deve continuar sendo habitado como reserva de autonomia e alteridade inalienáveis, seja da parte de Deus, seja da parte de quem nele se acha inserido porque se reconhece como crente”.

Abstract: The religious traditions share in common their guidance by a strong sense of fidelity. Nevertheless times changed. In a postmodern environment the concept of fidelity became quite fragile. The lack of continuity is the rule originating from an evident state of affair that the individual is conditioned by an unsurpas-sable limit of contingency. In this sense, the author delves into the change of perception and tries to perceive its causes. In the third part the reader is invited to get involved in the search of the original ethical and religious posture. In the conclusion, a strong case is made in an ethical and religious appeal expressed as a big challenge to preserve the numinous space to be reserved for autonomy and inalienable otherness both on the side of God and on the side of anyone who adheres to Him because he declares being a believer.

Ética religiosa e pós-modernidadeFidelidade, um parâmetro fragilizado

Márcio Bolda da Silva*

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Ética religiosa e pós-modernidade: fidelidade, um parâmetro fragilizado

As tradições religiosas se deixam guiar por um sentido forte de fidelidade. O vínculo que liga o “fiel” à comunidade de fé é acalentado com a imagem de uma aliança marcada pela indissolubilidade. O pressu-posto é óbvio. Como conceber o ato de “confessar a fé” sem a exigência de adesão, e adesão incondicional? A premissa da incondicionalidade é determinante. A pertença a um círculo de fé, portanto, está pautada pelo pré-requisito da aceitação explícita ou implícita de um conjunto de verdades teológicas juntamente com um estilo próprio de testemunho ético-espiritual.

Que não fique despercebido o fato paradoxal. Da parte da comuni-dade de fé, sua sobrevivência como instituição depende substancialmente do vínculo de adesão ou de seguimento que se assegura na exigência de fidelidade irrestrita. Convém não esquecer que, para a sensibilidade ético-religiosa, a “apostasia” nunca foi encarada com bons olhos. Sua rejeição segue os ditames de um impulso sintomático. Até pouco tempo atrás, no Ocidente, o ato de “abandonar” ou “negar” a própria fé incutia o peso de uma “traição” abominável, severamente condenada.

Os tempos, porém, mudaram. No contexto pós-moderno, predo-mina outra percepção. Poderíamos dizer que o conceito de fidelidade se apresenta fragilizado. Não foge à regra de ser uma ideia vulnerável ao fenômeno da fragmentação.

A aproximação entre fidelidade e fragmentação indica que a busca pela fé e sua vivência se acham marcadas por uma percepção diferente. Primeiro, é preciso sublinhar que, no tocante aos vínculos institucio-nais, pela ótica da sensibilidade fragmentária, todos são dissolúveis e provisórios. Há de se considerar que a ideia de “provisório” é um dos aspectos que se coloca em realce na perspectiva pós-moderna. Pela ótica do provisório, não se sustenta nenhum vínculo que se arraste no tempo como linha de continuidade. O “descontínuo” é a regra que nasce da evidência de que, ao limite intransponível da contingência, o indivíduo está condicionado.

Que laço, sob a pressão do descontínuo, poderia ser amarrado de modo indesatável? As instituições religiosas insistem em preservar a linha de continuidade da própria identidade, apelando para o sentido incondicional de fidelidade. Não obstante a veemência do apelo, no mundo religioso vivido, principalmente, no Ocidente, o avanço do significado descontínuo de “pertença”, de “adesão”, se impõe de forma decisiva. Sua afirmação e ameaça são irrefreáveis. Contamina e debilita

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Márcio Bolda da Silva

qualquer “pacto espiritual” que se pretenda institucional e, muito mais, indissolúvel.

A mudança de percepção

É preciso reconhecer que uma nova sensibilidade dita as regras do jogo que mantêm em relação “adepto” e “comunidade de fé”. O ambiente atual em que se tece e se depura essa sensibilidade insopitável facilita e fomenta a quebra dos laços religiosos institucionais. É todo um modelo linear de concepção de fé que está entrando em erupção. Um ritmo de normalidade e de justificação plausível se desintegra, porque não con-vence mais. A linha de força que alimentava a convicção de pertença ao espaço de fé, seguramente hegemônico e inquestionável em suas bases institucionais, se descomprime ante a irrupção explosiva das formas espontâneas e diversificadas de experienciar o sagrado.

De fato, quem dita as regras da nova sensibilidade religiosa é a intuição da descontinuidade. Ela sobressai como intuição privilegiada, pois rege o sentimento religioso acomodado à força da espontaneidade e experiência pessoais. A consequência é previsível. Pela esteira do des-contínuo, os laços não se prendem indissolúveis. A fidelidade torna-se um conceito excessivo. Ou, vago demais para se extrair dele vínculos institucionais “monogâmicos”.

A sensibilidade religiosa descontínua põe em crise o sentido ape-lativo de tradição, de igreja institucional, de identidade religiosa única, de disciplina canônica... A constatação é generalizada. O comentário é difuso – as religiões e igrejas institucionais, no mundo ocidental, perdem cada vez mais espaço. Em relação a elas, a desconfiança e a rejeição crescem. A falta de credibilidade tolhe sua área de atuação e de influência. A plausibilidade de sua imagem, de seu discurso, se coloca em questionamento...

A contraofensiva não se conforma apenas com a reação crítica e condenatória. Instaura a novidade cuja força se ativa desintegradora. Nunca antes se tinha presenciado a explosão de uma força assim dissol-vente. O problema crucial é que ela concretamente atinge e desacredita o sentido rígido de Instituição, fundado na prerrogativa de fidelidade incondicional. Ainda não se conseguiu medir a intensidade avassaladora desse impacto. Seus efeitos, contudo, são visíveis nos surtos inusitados que a sensibilidade religiosa descontínua desencadeia como produção

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Ética religiosa e pós-modernidade: fidelidade, um parâmetro fragilizado

privatizante de experienciar e plasmar a relação com o sagrado. As formas de se vivenciar a relação tensa entre “crente” – “instituição” e “sagrado” se diluem em opções adaptadas às expectativas, aos interesses dos indivíduos.

A descontinuidade, pela qual se propulsiona a nova sensibilidade, é reflexo consequente da descompressão e fragilização que afeta direta-mente o sentido de fidelidade. Se os vínculos institucionais não pesam mais, assim como o papel coercitivo da autoridade magisterial, o espaço fica aberto para a construção de outros modelos de “adesão”. No que concerne ao sentido de adesão, as opções se multiplicam de modo anti-convencional. Vamos enumerar os modelos mais recorrentes.

Existe, por exemplo, o modelo chamado de “adesões parciais”. Dentro desse novo paradigma, “o indivíduo aceita uma parte dos dogmas e da disciplina da religião institucionalizada, mas discorda e rejeita outra parte. Ao limite, a religião pode tornar-se apenas um instrumento com que o indivíduo interpreta sua “biografia” pessoal, dando um certo sentido à sua vida. Mas essa religião nem precisa manifestar-se exteriormente, através da participação em ritos ou ações comunitários. Ela se torna “invisível”, patrimônio exclusivo e interior do indivíduo. Ela se afasta radicalmente das Igrejas e instituições religiosas”1.

Outra forma mais radical privatiza extremamente a identidade pessoal. “O indivíduo, para poder escolher e definir sua identidade, é levado a experimentar. Muitas vezes procura em diversas religiões, até acertar a que julga mais adequada, ou até abandonar a procura e se fechar em poucas convicções pessoais. Daí um fenômeno que os sociólogos observam há alguns anos também no Brasil: o chamado “trânsito” reli-gioso2. Há pessoas que passam de uma religião a outra com facilidade,

1 ANTONIAZZI, A. O sagrado e as religiões no limiar do Terceiro Milênio. In: CALIMAN, C. (org.). A sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis: Vozes, 1998, p.14.

2 A ideia de turismo religioso indica que “as comunidades religiosas tornam-se móveis, desterritorializadas e propiciam aos seus adeptos o direito a uma pertença também móvel e transitória, bem como propiciam aos fiéis variados encontros com parceiros de fé. Tais parceiros religiosos costumam ter as mais diversas origens étnicas, bem como são provenientes dos mais diversos locais das cidades, do planeta (turismo religioso) e dos mais variados níveis socioeconômicos” (GOUVEIA, E. H. Apontamentos sobre novos movimentos religiosos. In: SOUZA, B. M.; MARTINO, L. M. S. Sociologia da Religião e mudança social. Católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 153).

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Márcio Bolda da Silva

sem uma “conversão” (mudança profunda de pensamento e de vida, advertida e assumida como tal)”3.

Um fenômeno diferente e original se verifica na atitude dos que assumem a postura de verdadeiros “construtores de crenças”. Esta va-riação comporta uma dupla iniciativa. Há os que se identificam com o empenho de selecionar elementos de diversas crenças, adequados à pró-pria conveniência, ao gosto e interesse particular. No hábito de escolher componentes e mesclar ensinamentos provenientes de credos diversos, o indivíduo se encontra como criador da própria fé. É interessante observar que vertentes de fé, em explícita oposição doutrinária, são conjugadas e sintetizadas em forma de crença totalmente personalizada e, sobretudo, adaptada aos questionamentos existenciais, às circunstâncias particulares do indivíduo.

A referência à existência de uma segunda iniciativa acena para a realidade dos “construtores de crenças” enquanto fundadores de seitas, de “agências do sagrado”4. Nos dias de hoje, certamente este é o fenômeno que mais desconcerta e assusta. É alarmante constatar que diariamente, mundo afora, vicejam e se multiplicam de forma explosiva movimentos religiosos, desde os mais despojados até os mais estrambóticos.

Em busca das causas

A observação que perscruta a fundo o problema das religiões institucionais se dá conta de que, quando elas perdem força, “deixam o sagrado solto, entregue às vivências pessoais, individuais”5. Sem laços institucionais, sem limites condicionantes, a experiência do sagrado se constrói em processo de “privatização” e “individualização”. Assentada nesse núcleo elucidativo, a busca pelas causas atinge a raiz do problema. Se não for a raiz, seguramente é a razão mais convincente para explicar a mudança de percepção.

3 ANTONIAZZI, A. O sagrado e as religiões no limiar do Terceiro Milênio, p. 15. De fato, “a aventura, a errância, o chamado “nomadismo espiritual” torna-se símbolo do novo mundo em constante construção, em constante gestação, além disso, errância e aventura apresentam-se como polo central de qualquer tipo de estrutura social, tribal ou comunitária” (GOUVEIA, E. H. Apontamentos sobre novos movimentos religiosos, p. 155).

4 Cf. PRANDI, R. A religião do planeta global. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (orgs.) Glo-balização e Religião. Petrópolis: Vozes, 1999, p.63.

5 LIBÂNIO, J. B. O sagrado na pós-modernidade, In: CALIMAN C. (org.). A sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis: Vozes, 1998, p.61.

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Ética religiosa e pós-modernidade: fidelidade, um parâmetro fragilizado

Estudos da sociologia da religião perseguem essa ótica. A nova religiosidade, em certa parte, é devedora da perspectiva e da visão de mundo que a engloba. É um produto reflexo do que se está gestando como sociedade globalizada e momento cultural de pós-modernidade. O misto globalização e pós-modernidade se instala como ambiente fértil para o desabrochar do desenraizamento e da crença no relativo. O resultado inevitável é o enfraquecimento de todos os limites sistêmicos e simbólicos que nutrem o sentido de “crença” e “pertença”6. Assim, no mundo globalizado, a religião passa a ser um produto sem fronteira, sem território, adaptado igualmente às forças mercantis da oferta e da procu-ra7. Mais do que isso. Ela também se eleva como reserva de símbolos e significados, produzidos ou buscados livremente pelos indivíduos8.

Aí está a marca ou o logotipo da nova religiosidade. O individua-lismo9 não é apenas a tendência do momento, mas o processo de intuição e de criação, dentro do qual as expressões religiosas são produzidas como incontrolável avalanche de modismos místicos, de experiências de fé personalizada...

No contexto em que se centralizam a força e o papel determinante da individualização, o que vale como referencial de afirmação é a expe-riência direta e subjetiva. A adesão religiosa se converte em questão de opção privada, cujo traço distintivo representa a forma mais versátil de subjetivismo. Sob este ângulo, o então suposto “eclipse da secularização” ganha um novo contorno10. Não é o seu ocaso que gradativamente está se finalizando. O caminho, na realidade, toma uma direção inversa. É

6 Cf. PACE, E. Religião e globalização. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (orgs.) Globalização e Religião, p. 31-32.

7 Cf. PRANDI, R. A religião do planeta global, p.69.8 “Tendo sido deixada de lado a ênfase colocada pela modernidade sobre a secula-

rização como racionalização unilinear e oniabrangente, e tendo aparecido toda a fragilidade da secularização como subjetivação (a pós-modernidade não é apenas a época do “fim da História” mas também a da “morte do sujeito”), a religião constitui, hoje, uma reserva de símbolos e significados, reproduzidos institucionalmente, ou livremente buscados pelos indivíduos, dentro de uma multiplicidade de percursos e níveis” (MARTELLI, S. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 453).

9 Cf. PANIKKAR, R. La nueva inocencia. Navarra: Verbo Divino, p.247-248.10 “Já não se fala do colapso do sagrado, mas “do eclipse da secularização”. No fundo,

acentua-se a secularização subjetiva que significa um crescimento da religião priva-tizada e por isso pode assumir as mais diversas formas” (LIBÂNIO, J. B. O sagrado na pós-modernidade, p.62).

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ao ponto extremo da “secularização subjetiva” que chega a experiência privatizante do sagrado.

Não há como negar o fato novo e desconcertante. A “individu-alização” favorece o surgimento e instiga o crescimento da “religião privatizada”. Ela “libera os agentes religiosos. Agem então desligados de vínculos limitantes e multiplicam dessa sorte as expressões religiosas, gerando uma sensação de inundação religiosa”11.

Não é meramente uma questão de sensação. A constatação é real. A verdade é que o cenário religioso se afunda, inundado no turbilhão da oferta abundante de produtos espirituais insólitos. Sua variedade atende a todos os gostos, se estende a todos os interesses, se direciona a todas as atribulações existenciais... A regra imprescindível para estimular o bom êxito da comercialização enuncia que toda oferta seja exibida com o intuito de atrair, de ganhar o interessado ou o cliente pelo seu ponto fraco. Com estratégia semelhante trabalha o novo “marketing” da fé. Quem sabe, até com muito mais esperteza do que o mecanismo domi-nante no mundo econômico.

O “construtor de crenças” conhece, como ninguém, o ponto fraco de sua clientela. As angústias, as frustrações, os sentimentos de insatisfa-ção, a precariedade do sofrimento, o medo da dor, a sensação de perda e de derrota necessariamente interpelam a resposta de felicidade imediata, a terapia espiritual eficaz. Não sejamos ingênuos. As religiões sempre se voltaram para a condição miserável do ser humano e sua perspectiva de salvação e libertação. O diferencial, contudo, das novas promessas mescla o apelo emotivo juntamente com a “mercantilização” dos bens espirituais.

A oferta apelativa põe à mão a possibilidade concreta de curas mi-raculosas, de confortos espirituais restauradores... Proporciona o acesso seguro à vida totalmente liberta, à expectativa de “parar de sofrer”, à prosperidade fácil, à tranquilidade interior... O novo discurso religioso sobrevive, ao investir na “emoção” como se fosse a “caixa de Pandora”, de onde retira a mágica para sanar todos os males. Se é a emoção12 que

11 Ibid., p.62.12 “A religiosidade volta a se expressar hoje em formas espontâneas, quase infantis,

livres da institucionalização e da rígida regulamentação das Igrejas cristãs. O desejo se expressa como quer. A emoção é procurada em primeiro lugar. Mais amplamente, pode-se dizer que muitos dos atuais movimentos religiosos (mesmo no interior das Igrejas cristãs tradicionais) buscam uma resposta pragmática, imediata, a anseios e

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predomina, não se espera para amanhã a satisfação da sede de felicida-de. Sua saciação se impõe de forma imediata, suposto que os produtos espirituais apropriados estão ao alcance de todos.

Retornando a investigação ao centro da questão, todos os indícios apontam para a concretude de uma mudança de percepção. Uma nova sensibilidade de entender a fé, de projetar a relação com o sagrado está se delineando... Como tivemos oportunidade de verificar, no horizonte do mundo religioso vivido, seu florescimento e sua expansão causam impacto. O estremecimento próprio do fenômeno que, por abrir a pers-pectiva aos roteiros inexplorados, provoca desconcerto.

Justamente por desintegrar, a atual mudança de percepção religiosa está acompanhada do redimensionamento desconstrutivo de aspectos vivenciados e estimados como caros e essenciais à visão tradicional de fé. É fácil de intuir. A concepção de um sentido forte de fidelidade se apoia igualmente na defesa de um sentido forte, irrevogável, de tradição, autoridade magisterial, igreja institucional... Com a mudança de percep-ção, tais fundamentos não se apresentam mais irremovíveis. O novo foco de perspectivação confirma o contrário. Eles são relativos.

O conceito de fidelidade religiosa, sem limites vinculáveis, se dissolve em percepção frágil, exposta à relatividade extrema da experi-ência subjetiva. A experiência do sagrado se descobre aprisionada aos gostos pessoais, aos interesses individuais, às expectativas particulares. O desmonte do sentido tradicional e institucional de fé se efetiva e se solidifica em vista da concepção de fé como construção privativa.

Em busca da postura ético-religiosa originária

Temos de convir que o sagrado, na nova religiosidade, contempla muito mais a imagem e semelhança narcisística do construtor da própria crença, do que a transcendência e a alteridade divina. Presta-se muito mais a ser utilizado como um produto em que se reproduz a caricatura do indivíduo “interessado”. Interessado em refugiar-se em confortos espirituais alienantes. Interessado em prosperidade material. Interes-sado em parar de sofrer. Interessado em destacar-se do anonimato, da

insatisfações humanos. Dramas e angústias não deixam tempo para aguardar uma resposta mais elaborada: querem que a fome de felicidade, de “salvação”, seja saciada já, imediatamente” (ANTONIAZZI, A. O sagrado e as religiões no limiar do Terceiro Milênio, p. 12-13).

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solidão. Interessado em aparecer como carismático fundador de seitas, de modismos místicos...

Entrar na esfera sigilosa dos interesses religiosos é complicado. Algo sempre permanece velado, reprimido, encoberto. Por isso mesmo que a esfera turbulenta da vivência religiosa é intensamente vulnerável à fantasia mirabolante, à imaginação apocalíptica, à criatividade herética, à linguagem blasfema. O espaço que confina com a fronteira extrema da condição humana frágil e miserável há de infiltrar brechas para situ-ações absurdas, irracionais, sejam elas de pietismo, fideísmo, fanatismo, autoritarismo, esoterismo, extravagâncias místicas...

Pensamos que a distinção que Rudolf Otto contempla como título de sua obra principal – “O Sagrado. Um elemento não racional na ideia do divino e sua relação com o racional” – ajuda a aclarar o tecido poroso em que se constrói a relação vivencial com o sagrado. Na análise feno-menológica de Otto, a ideia de Deus inclui dois elementos categoriais distintos: o racional e o não-racional.

O elemento racional se apreende como predicador, dado que torna possível a formulação de conceituações plausíveis e objetivas. Já o elemento não-racional remete ao sentimento, à vivência religiosa. A experiência vivencial que se pode ter do sagrado está impregnada do sentimento numinoso. Num linguajar mais concreto, tal sentimento reflete o estado afetivo de sentir-se tocado pelo sagrado. Isso, em termos de vivência, revela a profundidade da experiência religiosa: sentir-se tocado por algo que atrai e se capta como indizível, indefinível, estranho, misterioso...

Mas não é só isso. Há um outro aspecto ainda mais questionante. O campo do “numinoso” envolve e seduz, porque é dominado por uma dupla força com poder de repelir e de atrair: o mysterium tremendum e o mysterium fascinans. O sagrado, por estar envolto em tremendo mis-tério, por ser inacessível e inefável, provoca temor. Faz tremer. O temor que situa a criatura na posição de humildade, de respeito ao totalmente outro. Existe, porém, o outro lado: o mistério que fascina. O sagrado conta com esse poder de sedução, visto que se mostra pela qualidade de ser majestoso, augusto, cativante, maravilhoso, fascinante.

Para Otto, portanto, é no espaço do numinoso que o sentimento e a experiência religiosa se inscrevem. Só dentro dele é possível viven-ciar o “sentimento do estado de criatura”. Sentimento este único, e cujo

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envolvimento impele a criatura a mergulhar no próprio nada, diante da grandeza inefável do mistério tremendo e fascinante.

Da reflexão fenomenológica passemos à realidade contextual em foco. Um horizonte religioso inusitado se delineia com a mudança de percepção e o surgimento de uma nova sensibilidade de relacionar-se com o sagrado. A nova perspectiva, malgrado sua carga inovadora e sua força desintegradora, coloca nossa investigação diante de uma constatação intrigante: nunca dantes se pensou ou se imaginou que a intromissão do indivíduo no campo numinoso pudesse ser assim espontânea, impulsiva, paradoxal, interesseira... Olhando sob a ótica fenomenológica que reserva ao sagrado o espaço de alteridade como mistério tremendo e fascinante, a fragmentação que o indivíduo provoca no campo do numinoso é, no mí-nimo, perturbadora. Daí brotam questionamentos éticos inquietantes.

O que em primeiro lugar se questiona é o grave problema da “mercantilização da fé”. A reserva de mistério tremendo e fascinante, que se vela ao campo numinoso, é violada pelo espírito interesseiro da apropriação e da comercialização dos bens espirituais. A fé, em contextos específicos, virou um esquema rentável que comercializa bens espirituais, um mercado que administra bens da salvação. Há os que comparam o novo marketing da fé com as prateleiras de um supermercado13. A di-versidade de oferta de produtos incita a pessoa a escolher entre os itens o que mais lhe agrada.

Lançada no competitivo espaço da mercantilização, a religião perde sua identidade originária. A atenção se volta para preocupações e tensões até então inimagináveis. Na disputa pelo mercado, o regime de concorrência é acirrado, pois novas formas religiosas ou produtos não param de arrebatar neodevotos. Isso atiça a ter que entrar no competitivo esquema de propaganda e publicidade14, no uso caro dos meios eletrônicos de comunicação de massa, no ritmo frenético do mercado da oferta e da demanda, do consumo pelo atrativo mais sedutor...

Exatamente por causa disso, o recrutamento de simpatizantes, de adeptos, fica subordinado ao jogo do “vale-tudo”. Como estratégia de concorrência competitiva, a que mais surte efeito é o apelo sentimenta-lista. Aposta-se na “isca” que tem o poder de fisgar de modo arrebatador – as inseguranças, os medos, as tragédias da vida cotidiana. Vale-se do

13 Cf. LIBÂNIO, J. B. O sagrado na pós-modernidade, p. 71.14 Cf. PRANDI, R. A religião do planeta global, p. 69-70.

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sagrado15 como paliativo de esperança milagreira, de eficácia sobrena-tural mágica.

O resultado da usurpação indevida não é nada animador. O pro-blema se afunda ainda mais desconcertante na passagem da construção privatista da fé para a construção de dimensão comunitária, a formação das seitas, das igrejas carismáticas, dos modismos místicos. Nessa órbita, a explosão das formas espontâneas beira, em muitos casos, a irracionali-dade absurda, a extravagância esotérica, a fantasia grotesca e primitiva, a sandice apocalíptica... Diante desse panorama convulsivo, fica escan-carada a impressão de que o campo do numinoso se transformou em um terreno minado à irrupção anárquica e explosiva dos atinos e desatinos dos que entendem a fé como construção extremamente privatista.

Aí é que se concentra, do ponto de vista ético, o questionamento mais contundente. A espontaneidade subjetivista de construir a fé não ocasiona apenas a implosão do conceito tradicional de religião, mas à mercê da invasão e da individualização privatizadora fica também o campo do numinoso. A usurpação da esfera do “mistério tremendo” põe em risco a alteridade do sagrado. Ou, pior. Talvez, nas entrelinhas, fica suspensa a sensação de que não é apenas a religião, como instância de mediação, que é criação humana, mas também a própria ideia de “sagrado”. Nesse cenário, o esteio para a especulação sobre o niilismo, a concepção materialista, a morte e a ausência de Deus, sem dúvida, se estabelece como razões bem fundamentadas.

Ante esse ponto extremo, nossa investigação retorna à necessidade ética de questionar a relação com o sagrado. Se a fé religiosa se nutre da certeza inabalável de que Deus existe, a relação para com Ele deve persistir no propósito de proteger o espaço do Absoluto como “campo numinoso”. É somente nesse campo que o sagrado se revela e se deixa apreender como mistério inefável, indizível, estranho, fascinante, inob-jetificável, majestoso... Sendo assim, a exigência genuinamente ético-religiosa propõe que o sentimento de quem se aproxima e se introduz na esfera do mistério tremendo esteja inundado de respeito ao absolutamente Outro. Certamente é a evocativa ideia de alteridade que proporciona a relação de fé equilibrada16.

15 Cf. ibid. p.65.16 A chamada de atenção de Tina Balasuriya aqui é oportuna: “A nossa compreensão

de Deus tende a ser influenciada por aquilo que nós queremos que Deus seja. Como nos diz a sociologia do conhecimento, tendemos a ver as coisas do modo como gos-

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Daí a necessidade da postura ética que priorize a busca pelo sentido originário da mediação religiosa. A mediação é relativa. Na ex-tensão desmedida da relatividade, existem construções religiosas de fé que destoam radicalmente da lucidez ética. Seu extremismo, muitas das vezes, submerso na irracionalidade, no fanatismo, na infantilidade, no delírio, no autoritarismo, na violação de direitos humanos, etc. se expõe ao juízo e à rejeição do bom senso ético-religioso.

No campo do numinoso, a presença do olhar ético-crítico é indispen-sável para preservar o sentido de alteridade, de liberdade e de autonomia, seja de Deus, seja da pessoa crente. Isso equivale a dizer que é preciso “deixar que Deus seja Deus”, isto é, “devemos respeitar o inefável mistério de Deus. A mente humana não pode compreender Deus, o infinito. Não podemos nem mesmo compreender plenamente a nós mesmos ou a qual-quer outra pessoa humana. O Absoluto não pode ser contido ou confinado em nosso discurso e em nossas definições teológicas”17.

O apelo ético-religioso sempre ressoará sob o timbre de um grande desafio: o espaço do numinoso deve continuar sendo habitado como reserva de autonomia e alteridade inalienáveis, seja da parte de Deus, seja da parte de quem nele se acha inserido porque se reconhece como crente.

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taríamos que elas fossem para nós. Agrada-nos imaginar que Deus esteja do nosso lado. Antes os judeus e depois os cristãos se consideraram povo eleito de Deus; os islâmicos acham que a causa deles é a própria causa de Deus; os alemães dizem “Deus conosco”; os britânicos cantam “Deus salve a rainha... a faça vitoriosa”; os franceses falam em “gesta Dei per francos”, ou seja, as ações de Deus por meio dos franceses; nas moedas americanas de um dólar leem-se as palavras “in God we trust”, isto é, nós colocamos a nossa confiança em Deus. Temos a tendência de pensar Deus conforme nossos interesses. Os mitos populares condicionam as mentes do povo, fazendo aceitar os mitos de uma nação, ou de uma raça, de um sexo, de uma classe ou de uma religião dominantes. Portanto, devemos suspeitar também do modo com que apresentamos Deus nas nossas teologias. E isso é ainda mais importante porque a maior parte das nossas doutrinas teológicas é sobre coisas que não podemos compreender ou conhe-cer através da simples experiência humana ou do nosso modo humano de raciocinar” (BALASURIYA, T. Deixar que Deus seja Deus, In: CANTONE, C. (org.). A reviravolta planetária de Deus. São Paulo: Paulinas, 1995, p.150-151).

17 Ibid. p.165.

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Recensões

Trevijano Etcheverría, Ramón. A Bíblia no Cristianismo antigo. Pré-nicenos, Gnósticos, Apócrifos. Introdução ao Estudo da Bí-blia, vol. 10 (trad.). São Paulo: Editora Ave Maria, 2009, 23 x 16 cm, 404 p.

Pe. Ney Brasil Pereira*

Aí está o décimo e último volume da grande “Introdução ao Estudo da Bíblia”, publicada originalmente em espanhol, sob a coordenação de José Manuel Sanchez Caro, e já integralmente traduzida. O próprio autor do volume, Ramón Trevijano Etcheverría, professor emérito da universidade de Salamanca e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, apresenta a obra, traduzida do original espanhol de 2001. Diz que o título é “extremamente amplo, e que poderia corresponder a qualquer manual de patrologia que desse especial atenção à exegese patrística” (p. 13). Restringe, porém, o seu estudo a três grandes temas: a exegese cristã mais antiga (anterior ao concílio de Niceia), o gnosticismo cristão, e a literatura apócrifa relacionada ao Novo Testamento. E justifica: “Tanto o gnosticismo como a literatura apócrifa são campos de notória atualidade. E o são no âmbito científico e acadêmico, pelas novas descobertas de documentos, mas particularmente no campo teológico, pela importân-cia das colocações apresentadas e o alcance das soluções propostas.” A cada um desses temas dedica “um capítulo introdutório, no qual esboça um panorama das posições literárias, históricas e teológicas” expostas a seguir (p. 13).

Ainda na apresentação, o autor detém-se a refletir sobre a diferença entre a abordagem da Escritura no tempo dos Pais1 da Igreja e a que surgiu sob o impacto do Iluminismo do século XVIII e dos métodos positivos dos séculos XIX e XX. À p. 15, escreve: “Atualmente contamos com mais recursos do que aqueles de que os Pais dispunham, para compreender melhor a Bíblia como palavra humana. Temos um acesso mais amplo e

* O recensor é Mestre em Ciências Bíblicas e Professor no ITESC. 1 Uso a terminologia “Pais da Igreja”, ou simplesmente “Pais”, já corrente em autores

evangélicos, em vez da tradicional “Padres da Igreja”, ou simplesmente “Padres”, por motivos óbvios.

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preciso à situação dos hagiógrafos, a seus recursos literários, a seu con-dicionamento cultural, e a seu contexto sociopolítico. Em consequência, sabemos que, compreender melhor a Bíblia como linguagem humana, pode fazer-nos captar aspectos novos dessa riqueza sempre antiga e sempre nova, que é a revelação divina através da Escritura”.

Depois da contraposição entre exegese patrística e exegese histó-rico-crítica (pp. 14-18), o autor resume as “orientações do Magistério” (pp. 18-22). Além da Dei Verbum, o documento fundamental do Vaticano II sobre a Revelação (1965), é lembrado e valorizado o documento da Pontifícia Comissão Bíblica sobre “A interpretação da Bíblia na Igreja”, publicado em 1993, ano do cinquentenário da “Divino Afflante”, de Pio XII (1943). Mas temos também, de 1989, a “Instrução sobre o estudo dos Pais da Igreja”, publicada pela Congregação para a Educação Católica. Esse documento reafirma que os Pais “são testemunhas privilegiadas da tradição viva da Igreja, testemunhas e garantias de uma autêntica tradição católica, a qual, desde o início do cristianismo, continua atra-vés dos séculos até o dia de hoje” (p. 20). Ainda, segundo a Instrução, “seria para desejar que a exegese dos Pais, vista não como antagônica mas como complementar da exegese histórico-crítica, nos abrisse mais os olhos para outras dimensões da exegese espiritual e da hermenêutica, enriquecendo-as de intuições profundamente teológicas” (p. 22).

Antes ainda da apresentação, temos seis páginas de “siglas e abreviaturas” (pp. 7-12). Quanto à bibliografia, o autor adverte que “ela é imensa, para cada uma das três partes” ... e “a que é citada em cada capítulo corresponde exclusivamente aos livros ou artigos utilizados para sua composição” (p. 22).

A primeira parte do livro, dedicada à “Exegese pré-nicena”, é desenvolvida em cinco capítulos: O primeiro, sobre a “Bíblia judeu-cristã”, trata da “formação e recepção” desse novo “cânon dual” (pp. 29-38), e da “atualização das Escrituras” (pp. 38-49), aí estudando as formas do midraxe: halaká, hagadá, pesher. Segue um “sumário”, resu-mindo o capítulo em três páginas (pp. 49-51). No começo do capítulo, uma alentada bibliografia, em duas páginas e meia (pp. 27-29), além das notas de rodapé, recurso que se encontra em cada um dos capítulos do volume. Esse é o esquema de todos os capítulos, destacando-se a utilidade prática do sumário.

O segundo capítulo, sobre “a Escritura como testemunho de Cris-to”, começa por estudar o “pesher” cristão (pp. 53-57), seguindo-se “os

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testemunhos cristológicos na Igreja antiga”, desde a Didaqué até Oríge-nes e Cipriano, passando por Justino e Irineu. (pp. 57-68). O terceiro capítulo é dedicado ao estudo da “alegoria e tipologia”, tão decisivas para o próprio texto e a interpretação do Novo Testamento. O método alegórico é estudado a partir de Filão de Alexandria, até Orígenes (pp. 73-78), seguindo-se a apresentação da “tipologia cristã” (pp. 78-89). Após um “contraste entre alegoria e tipologia” (p. 89), segue o sumário (pp. 90-92).

O quarto capítulo tem por título “o cânon dual”, e começa abordan-do a relação entre “Torá escrita”, o Pentateuco, e “Torá oral”, a tradição rabínica que também remonta a Moisés (pp. 96-99). Citando Trebolle Barrera, o autor sintetiza: “O judaísmo rabínico pode ser definido como a religião da dupla Torá, a escrita e a oral, assim como o cristianismo é a religião dos dois Testamentos” (p. 99). Em continuação, estuda o “câ-non do Novo Testamento”, a partir da composição e recepção dos seus 27 livros (pp. 99-114), e fala dos “livros discutidos que ficaram fora do cânon” (pp. 114-116). Entre os “testemunhos do cânon”, apresenta Jus-tino, os montanistas, Teófilo de Antioquia, Irineu, Tertuliano, as versões latinas, e o cânon de Muratori (pp. 116-120). O sumário (pp. 120-122) conclui o capítulo.

O quinto capítulo é dedicado à apresentação de “alguns exege-tas”. Depois da referência à “exegese antioquena”, florescente no séc. IV, mas precedida por Teófilo de Antioquia no final do século II, o autor começa com os representantes da “tradição asiática”: Justino e Irineu (pp. 127-130). Seguem os representantes da “tradição africana”: Tertuliano e Cipriano (pp. 130-136), e os da “tradição alexandrina”: Atenágoras, Clemente, e Orígenes (pp. 137-147). Sumário, nas pp. 147-149.

A segunda parte do livro, dedicada aos “gnósticos”, conta com seis capítulos. O primeiro, introdutório, depois de discutir os conceitos de “gnose e gnosticismo” (pp.156-157), e de elencar suas fontes (pp. 157-159), aborda a “história da interpretação” do movimento, florescente nos séculos II e III (pp. 159-166) e, finalmente, sua “caracterização”, ou seja, os “tipos de gnosticismo” e os “elementos da mitologia gnóstica” (pp. 166-174). Segue o sumário, nas pp. 174-175.

O capítulo segundo é dedicado às “questões gnósticas”, agrupadas em dois subtítulos: “na vida do gnóstico” (pp.178-185) e “o mito escato-lógico” (pp. 186-190), seguindo-se o sumário (pp. 190-191). A exposição é constantemente referendada por citações dos documentos gnósticos,

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propiciando um bom contato com o seu pensamento. O capítulo terceiro tem por título “O conhecimento”, expondo-o nas suas várias faixas: o conhecimento de si mesmo, o conhecimento do mundo, o conhecimento de Deus, o conhecimento do Revelador (pp. 195-205). Seguem os “efeitos do conhecimento”: o discernimento entre os humanos, que podem ser “materiais”, ou “psíquicos”, ou “espirituais”, a reintegração no estado original e, enfim, a redenção libertadora (pp. 205-208). O sumário (pp. 208-209) propicia uma visão de conjunto das informações parceladas.

No capítulo quarto o autor aborda as “antropologias gnósticas”, mostrando como respondiam às perguntas “o que somos e o que fo-mos”. Lembrando que o ponto de partida da antropologia gnóstica é a consciência da alienação (p. 212), o autor, depois de lembrar os “mitos antropogônicos” (pp. 213-214), aborda a questão da “carne e corpo” (pp. 214-221) e a da “alma e espírito” (pp. 221-227). Fala também da dicotomia do masculino e do feminino, que se reintegram na unidade (pp. 231-235). Sumário, nas pp. 235-236.

O capítulo quinto, com o título “teologias gnósticas”, respondendo às perguntas “de onde viemos e para onde vamos”, se debruça sobre a questão de Deus. De um lado, o “Incognoscível”; de outro, este mundo material teve origem de um outro “deus”. Essa duplicidade na conside-ração do divino “é um recurso para se explicar a passagem da unidade para a multiplicidade. De resto, o valentinismo e formas similares do gnosticismo são fundamentalmente monísticos” (p. 239). Partindo do conceito do “Deus uno” (pp. 239-246), o autor mostra a passagem “da unidade à multiplicidade” (pp. 246-251) e expõe os “diversos sistemas gnósticos” (pp. 251-264), nada fáceis de entender, entre os quais o de Basílides, de Cerinto, de Valentim e dos valentinianos, o de Marcião, e o de Apeles. Sumário, nas pp. 264-266.

O capítulo sexto aborda as “exegeses gnósticas”, começando com uma síntese sobre os “pressupostos hermenêuticos” e a “metodologia exegética” dos seus principais representantes (pp.268-271). Depois de apresentar a exegese gnóstica do Antigo Testamento (pp. 271-277), o autor passa para o Novo Testamento (pp. 278-288), começando com “o paulinismo dos gnósticos”, passando para “os Sinóticos nos textos de Nag Hammadi”, “as parábolas” e, finalmente, em fragmentos conservados por Orígenes, “o comentário de Heracleão ao quarto evangelho”. Segue o sumário, nas pp. 288-290.

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Recensões

A terceira parte do livro se detém nos “Apócrifos do Novo Tes-tamento”, aos quais dedica cinco capítulos. O primeiro, de introdução ao tema, começa comentando a anterior “desvalorização dos Apócrifos” (pp. 294-300), seguindo-se três páginas sobre sua atual “revalorização” (pp. 300-303), isto é, a percepção, a qual não deve ser acrítica, de que eles contribuem positivamente para melhor entendermos os escritos canônicos. Essa revalorização, nos últimos 50 anos, é devida em parte à descoberta dos documentos de Nag Hammadi. Entre as “cartas apócrifas” (pp. 303-309), o autor comenta a de Tiago, a de Pedro a Filipe, e a “carta dos apóstolos”. Sumário, nas pp. 309-311.

O capítulo segundo aborda “as tradições dos ditos e discursos de Jesus”, começando pelas “tradições sobre Jesus” (pp. 314-318). O autor expõe a “busca pelo Jesus histórico” e reflete sobre a relação entre “cristologia e tradição de Jesus”. Aborda a seguir as “tradições de ditos” (pp. 318-124), referindo-se aos “ditos isolados” (ágrapha), aos “ditos em autores mais antigos”, às “coleções de ditos”, entre as quais, a Quelle, e, especificamente, ao “evangelho de Tomé”. Seguem os “evangelhos em forma de diálogos” (pp. 324-330), entre os quais, o “evangelho dos Egípcios”, o “diálogo do Salvador” e o “evangelho de Filipe”. Entre os “evangelhos discursivos” (pp. 330-333), comenta o “evangelho da Ver-dade” e a “Sophia Jesu Christi”. Segue o sumário, nas pp. 333-334.

O capítulo terceiro se ocupa com as “tradições de relatos” e os “evangelhos apócrifos”. Entre as “tradições de relatos” (pp. 336-339), cita o “Papyrus Egerton 2” e o “evangelho de Pedro”. Reflete sobre a “formação de evangelhos”, “gênero literário especificamente cristão” (pp. 340-342), e fala dos “três evangelhos judeu-cristãos”: o “evangelho dos Nazarenos”, o “evangelho dos Ebionitas” e o “evangelho dos hebreus” (pp. 343-344). Aborda ainda as “narrativas legendárias”, entre as quais o “protoevangelho de Tiago” e o “evangelho de Tomé da infância” (pp. 344-347) e os chamados “textos manipulados”, como o “evangelho se-creto de Marcos” (pp. 348-349). Sumário, nas pp. 349-350.

O capítulo quarto, ao abordar os “Atos apócrifos de Apóstolos”, começa distinguindo “três maneiras de entender os Apóstolos” no século II: 1) a judeu-cristã, que vê os Apóstolos como ponto de partida da “tra-dição apostólica”; 2) a helenizante, que os vê como “homens divinos, itinerantes e taumaturgos”; e 3) a gnóstica, que os vê como “iniciados do Deus revelador” e “divindades reveladoras” eles mesmos (pp. 353-354). Segue uma apresentação do “gênero literário” dos Atos apócrifos, seu

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“contraste com os Atos canônicos”, seu “mundo social” e sua “recepção” (pp. 354-359). O capítulo prossegue com informações detalhadas sobre os “Atos de Pedro” (pp. 359-362), os “Atos de Paulo” (pp. 363-368), os “Atos de André” (pp. 368-371), os “Atos de João” (pp. 371-374) e, enfim, os “Atos de Tomé” (pp. 374-379). Sumário, nas pp. 379-380.

O capítulo quinto, último do volume, trata dos “Apocalipses cris-tãos apócrifos”. Após uma introdução sobre “produção e recepção da lite-ratura apocalíptica” (pp. 383-384), o autor fala da “pseudonímia judaica e pagã” (pp. 384-392), comentando a “Ascensão de Isaías”, os livros “V e VI de Esdras”, e os “oráculos sibilinos cristãos”. Da “pseudonímia cristã” (pp. 392-402) ele destaca: o “Apocalipse de Pedro”, o “Apocalipse copta de Pedro”, o “Apocalipse copta de Paulo”, o “Apocalipse eclesiástico de Paulo”, e os “dois Apocalipses de Tiago”, de Nag Hammadi. O sumário deste capítulo, nas pp. 402-404, encerra o volume.

Essa detalhada apresentação do conteúdo proporciona uma ideia da riqueza imensa de informações que o autor sistematizou e colocou à disposição dos seus leitores. São informações referendadas por cuidadosa bibliografia, que possibilita, aos interessados, o aprofundamento poste-rior. Não é um livro de fácil leitura, especialmente na segunda e terceira partes, dedicadas, respectivamente, aos gnósticos e aos apócrifos do Novo Testamento. Surpreende a pluralidade dessa literatura, em grande parte desconhecida e, tantas vezes, em si mesma, hermética.

Há vários equívocos, mais ou menos importantes, do tradutor, que escaparam ao revisor. Anotei-os em grande número, mas não é o caso de elencá-los aqui. Só a título de exemplo, na p. 14, em cima, lemos por duas vezes “aproximações”, em vez de “abordagens”; na p. 18, pela metade, em vez de “é digno de pena” deveria ser “digno de atenção”; na p. 22, em cima, em vez do ofensivo “caduco”, seria preferível “ultrapassado”... Às vezes, deixa-se o espanhol num título, p. ex., na p. 32, “o Apocalipsis de Esdras”, quando deveria ser “Apocalipse”; ainda na p. 32, os “pseu-depígrafos” (livros pseudepigráficos) aparecem como “pseudepígrafes” (falsos títulos); na p. 36, na última nota, a abreviação da “epístola de Barnabé” deveria ser Barn, não “Bern” (do espanhol Bernabé); na p. 39, o termo “Mishná” aparece na forma espanholada “Misná”; nas pp. 46 e 47, encontra-se “derash”, quando deveria ser “midrash” (ou, na forma aportuguesada “midraxe”), e “midrásico” em vez de “midráshico” (ou “midráxico”); na p. 358, a referência aos “Atos de Tomé” aparece como “HchTom”, do espanhol “Hechos”; às vezes, a sigla de “Tiago” ficou

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“Sant”, de “Santiago”; na p. 45, em cima, a citação da carta de Judas está equivocada: deve ser “Jd 9.14” (são dois versículos do único capítulo da carta), e não “Jd 9,14”; nas pp. 65 e 70 aparece o adjetivo “escriturário” em vez de “escriturístico” etc etc.

Em suma, estamos diante de uma obra preciosa, realmente útil para pôr-nos em contato com o pensamento de outros nossos irmãos na fé, que viveram e refletiram essa fé de modo original, embora não segundo os padrões ortodoxos dominantes. Por isso mesmo, rejeitados no seu tempo, a sua redescoberta, exatamente nestes tempos de diálogo ecumênico e inter-religioso, contribuirá para alargar os nossos horizontes teológicos, fazendo-nos cada vez mais conscientes de que “Deus é maior do que o nosso coração” (1Jo 3,20).

Endereço do Recensor: Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1690

CEP 88040-001 Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

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JUNGMANN, SJ, Josef Andreas. MISSARUM SOLLEMNIA. Ori-gens, liturgia, história e teologia da Missa Romana, trad. brasileira do original alemão de 1962 (5ª. edição). São Paulo: Paulus, 2009, 23,5 x 16,5cm, 965 p.

Ney Brasil Pereira*

Antes de tudo, parabéns à Paulus pela coragem editorial de traduzir esta obra monumental, complexa, abrangente, cujo conteúdo corresponde plenamente ao seu subtítulo: “Origens, liturgia, história e teologia da Missa Romana”. Embora exista, desde 1951, a tradução espanhola, fazia falta, sem dúvida, esta versão brasileira. O autor do original, o jesuíta alemão (austríaco?) Josef Andreas JUNGMANN, falecido em 1975 aos 86 anos de idade, teve ainda tempo de corrigir, numa quinta edição, esta sua obra prima, publicada em 1948, de tanta influência no movimento litúrgico que culminou no Vaticano II. Esta quinta edição, corrigida e aumentada, saiu na Alemanha em 1962, ano em que começou o Concílio, mantendo o seu caráter de estudo litúrgico, histórico e teológico da nossa Missa, do rito latino, como era celebrada antes da reforma conciliar, embora incorporando as mudanças da década de 50, sob Pio XII. Seria anacrônico, portanto, buscar nesta obra informações sobre o Missal de Paulo VI, cuja primeira “edição típica” data de 1970.

Nesse caso, seria apenas “arqueológico” o interesse pela obra de Jungmann? Absolutamente. É que o nosso Missal atual evidentemente não foi produzido por geração espontânea de “liturgistas modernizantes”, mas é o fruto maduro, precioso, acarinhado, de toda uma caminhada histórica de quase 2000 anos, tão detalhadamente documentada por Jungmann.

Isso dito, antes da recensão propriamente dita, uma observação inicial, a meu ver, fundamental. É sobre a própria tradução, feita por Mo-nika Ottermann e revisada por Gregório Lutz. Não me refiro à tradução como tal, bastante cuidadosa, embora com aquelas falhas normais de revisão tipográfica, digo “normais” num texto tão complexo. Refiro-me à falta de tradução das citações em latim. Numa obra com tantas cita-ções em latim, a começar do próprio título, na situação em que hoje se

* O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas, é professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC.

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encontram os leitores, a imensa maioria, ignaros do latim, eles perderão muito, pelo fato de essas citações em latim não terem sido traduzidas. Seria um trabalho extra, a obra aumentaria o número de páginas etc, mas penso convictamente que, numa segunda edição em português, mesmo mantendo, é claro, essas importantes citações em latim, que são parte essencial do texto, elas deveriam ser traduzidas. Isso porque, hoje, é um fato, talvez lastimável, mas é um fato: nem clérigos, nem, muito menos, leigos, estudam e sabem latim. Quantos leigos estão sendo incentivados a fazer teologia, a ler e estudar liturgia, mas, não sabendo latim, não poderão aproveitar devidamente esta preciosidade, que é o “Missarum Sollemnia” de Jungmann! A propósito, como se traduziria esse título latino, mantido da edição alemã original? Literalmente, “A(s) solenidade(s) da(s) Missa(s)”? Ou, melhor, porque a tradução “literal” é às vezes “traidora”: “Os ritos da Missa”, ou “A liturgia da Missa”?

Agora, sobre o livro como tal, não me furto a citar os dois parágra-fos iniciais do Prefácio do autor à primeira edição de sua obra, em 1948: “Ninguém poderá ter dúvidas: se existir uma instituição da nossa cultura tradicional que merece que não nos contentemos somente com o conhe-cimento de sua superfície, mas que aprofundemos com todo o cuidado e amor sua gênese e sua evolução e que procuremos conhecer o sentido do último dos seus detalhes, então esta é, mesmo salvo considerações mais profundas, a liturgia da Santa Missa que é celebrada diariamente em centenas de milhares de altares, e para a qual acorre a cada domingo todo o povo cristão. Não faltam abordagens introdutórias: elas são publicadas, ano após ano, para os mais diversos círculos de leitores. Também não faltam esforços científicos: felizmente, esses aumentaram, principalmente nas últimas décadas. No entanto, há tempo ninguém tentou apresentar uma abordagem de maior alcance, que reunisse e tornasse frutífero o resultado dos mais diversos trabalhos individuais” (p. 5).

Pois bem, Jungmann o “tentou”, e conseguiu, apesar das dificul-dades quase insuperáveis que enfrentou, trabalhando em Viena, exata-mente nos anos terríveis da guerra mundial de 1939-45. A volta, após a guerra, para Innsbruck, onde havia iniciado o trabalho, podendo agora dispor novamente da biblioteca do Seminário de Liturgia, deu-lhe ainda a possibilidade de “verificar criticamente todas as citações, após mais meio ano de trabalho intenso” (cf p. 7)

Isso, em 1948. Mas cito ainda alguns parágrafos do “Prefácio à quinta edição”, de 1962. Assim o começa Jungmann, então com 73 anos

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de idade: “Uma vez que a graça de Deus me permitiu a possibilidade de preparar uma nova edição da presente explicação da Missa, enquanto a quarta edição (1958) teve de ser publicada apenas com ‘acréscimos’, foi naturalmente minha intenção aperfeiçoá-la na medida do possível e, por meio de uma revisão completa, dar-lhe uma forma que condiga a uma apresentação deste ano de 1962” (p. 9). E prossegue, mais adiante: “O leitor não deve ficar surpreso de que capítulo nenhum, e somente poucas páginas da presente obra, sobreviveram aos 14 anos – desde 1948 – sem modificação, acréscimos, subtrações, novas referências ou dicas, mas, na maioria dos casos, apenas nas notas de rodapé” (p. 10). E conclui: “Em geral, o livro pôde permanecer o que era. Se ele, hoje em dia, está presente no mundo católico em cinco línguas e tem encontrado, oca-sionalmente, uma cordial recepção também além dos limites do mundo católico, se pôde assim contribuir para que o Sacrifício da Igreja seja compreendido melhor e, às vezes, também celebrado mais dignamente, se favoreceu também a aceitação de reformas comedidas do rito sagrado, então estou bem consciente de que o mérito é – além Daquele que, em última instância, é o único que dá sucesso e bom êxito – do autor desta síntese apenas numa medida muito pequena. Em medida muito maior, o mérito é dos muitos trabalhadores silenciosos que, há mais de um século, reuniram, pedaço por pedaço, os elementos para a elucidação da cons-trução misteriosa da liturgia da Missa. Que o iminente Concílio se torne aquele ponto de virada a partir do qual todas as explicações da história da liturgia tenham somente uma importância reduzida, porque a liturgia recebe uma forma que fala através de si mesma, e já não necessita de explicações complicadas” (pp. 10 e 11).

E agora, vejamos em síntese o conteúdo da obra. Após uma In-trodução, em cinco páginas (pp. 15-19), começa o “primeiro volume”, intitulado “A Missa ao longo dos séculos” e subdividido em três partes: I. “A forma da Missa ao longo dos séculos” (pp. 23-182); II. “Aspectos essenciais da Missa” (pp. 183-265); III. “Os ritos das partes da Missa. A liturgia da Palavra”, subdividida em duas secções: 1ª, “A Abertura ou rito de Entrada” (pp. 269-383); 2ª, “A liturgia da Palavra” (pp. 385-479). O “segundo volume”, intitulado “A liturgia eucarística”, contém a quarta parte do conjunto da obra, dedicada aos “ritos das partes da Missa”, e está subdividido em quatro secções: 1ª, “A preparação das ofertas” (pp. 485-570); 2ª, O “cânon actionis”, ou seja, “a Oração eucarística como um todo” (pp. 571-728); 3ª, “Os ritos da Comunhão” (pp. 727-859); 4ª, “Os ritos finais” (pp. 861-896). Segue o utilíssimo e detalhado “Índice

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Analítico”, alfabético (pp. 897-943) e, depois do “Índice de citações bíblicas” (pp. 945-950), ainda o “Índice de fontes” (pp. 951-961), que tanto ajuda na comprovação das afirmações e citações.

Tenho ainda comigo, do meu tempo da Teologia em Roma, a segunda edição da tradução espanhola incluída na BAC (Biblioteca de Autores Cristianos), e publicada em Madrid, em 1953, com o título “El Sacrifício de la Misa. Tratado histórico-liturgico, Versión completa es-pañola de la obra alemana en dos volumenes...” A primeira edição dessa tradução espanhola tinha sido publicada dois anos antes, em 1951, isto é, apenas dois anos depois da segunda edição do original alemão. Na edição espanhola de 1953, já estão incluídas as “adições e correções” da terceira edição alemã, de 1952. Como o formato da BAC é menor que o da nossa edição brasileira, consequentemente o número de páginas é maior: 1265 páginas. Não é preciso enfatizar o quanto esta obra me ajudou, e com quanto proveito a estudei naquela época, quase 60 anos atrás. Relendo-a agora em português, 40 anos após a publicação do Missal de Paulo VI, continua inalterado o encantamento por todos esses detalhes, reunidos e comentados com tanta objetividade, clareza, e amor pela Eucaristia, por Josef Jungmann.

De resto, não pretendi, com essas observações, elaborar uma re-censão propriamente dita da obra como tal. Logo após seu aparecimento, devem ter sido muitas as recensões e resenhas, nas revistas especializa-das de teologia e liturgia da Europa. O que pretendi, sim, foi assinalar a importância desta versão brasileira, enfim colocada à disposição dos nossos estudantes, clérigos e leigos, de teologia. Mas, antes de terminar, insisto na necessidade, numa próxima edição, de traduzir as numerosas citações em latim. Isso, sem falar das inúmeras referências em alemão, algumas em francês e inglês, nas abundantes notas. Mas aí, talvez, seria exigir demais.

Terminando, cito o que está na contracapa, retirado da Introdução do próprio autor: “Desde que o Homem-Deus passou por nossa terra e concluiu seus dias com o sacrifício da salvação na cruz, teve início aquela celebração que, a partir de então, passa por todos os séculos como pre-sença misteriosa de sua autoentrega universalmente salvífica, e que nunca cessará, até que Ele volte (cf 1Cor 11,26). Em repetição infinita, ora em esplendor festivo e no meio de milhares de pessoas animadas pela fé, ora no silêncio de uma pequena capela, na simplicidade de uma igreja rural, em todo lugar realiza-se, dia após dia, o mesmo mistério. (...) O próprio

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Recensões

Cristo deu somente o cerne inicial da celebração. O estojo precisava ser criado pelas pessoas humanas. Foi a Igreja que o criou, lentamente, tan-to no conjunto quanto nos detalhes dos distintos elementos dos quais a liturgia da Missa hoje se compõe” (p. 15). Para apreciá-lo devidamente, Missarum Sollemnia é um subsídio precioso, imprescindível.

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Crônicas

Semana Teológica

“Teologia e Economia e suas implicações pastorais” foi o tema da semana teológica deste ano, realizada em nosso Instituto Teológico. Ela teve início no dia 20 de setembro e se estendeu até o dia 24. Nela discutiram-se assuntos sobre a realidade econômica e ecológica catari-nense; a economia solidária; as implicações e relações entre Teologia e Economia (mercado).

A abertura da Semana Teológica contou com a conferência do Arcebispo Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, sobre a carta encíclica “Caritas in Veritate”, do Papa Bento XVI. Ainda no dia 20, os temas da economia e da ecologia foram abordados pelos professores Luiz Fernando Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Suzana Cordeiro Trebien, bióloga técnica da FATMA.

No dia 21, terça-feira, foi a vez de o professor da UFSC, Luiz Fernando Scheibe e a bióloga técnica da Fundação do Meio Ambiente (FATMA), Suzana Cordeiro Trebien, abordarem o tema das “Questões ecológicas em Santa Catarina”.

No dia 22, quarta-feira, pela manhã, com o painel “Economia de comunhão”, apresentado pelo Prof. Dr. Maurício Serafim, graduado em Administração de Empresas, abordaram-se os desafios da Universidade do Sul de Santa Cataria (UNISUL). O empresário Celso Beppler expôs a experiência da empresa fabricante de ferramentas manuais “Metal Sul”. À noite realizou-se uma conferência sobre “Aspectos da Economia Catari-nense”, tendo como expositor o professor da UFSC, Armando Lisboa.

No dia 23 e 24 as conferências foram ministradas pelo teólogo Jung Mo Sung, de São Paulo, que ofereceu uma iluminação teológica sobre a realidade econômica e ecológica e, após esses pressupostos, fez uma crítica teológica ao neoliberalismo e sistema de mercado contemporâneo, apontando possíveis soluções e iluminando práticas econômicas a partir de um discurso sistemático, coerente e encarnado no Evangelho.

No encerramento do encontro, o professor coordenador da Comis-são da Semana Teológica, Padre Vilmar Adelino Vicente, fez um resumo

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Crônicas

dos cinco dias do evento e apresentou as conclusões e encaminhamentos finais. Houve também um momento de confraternização entre participan-tes e conferencistas, organizado pelo corpo discente do ITESC.

Diretório Acadêmico de Teologia

O Diretório Acadêmico de Teologia (DAT) é composto por todo o corpo discente do Instituto Teológico de Santa Catarina. Na gestão deste ano de 2010 estava à frente a Chapa “Zaqueu”, eleita nas eleições de 2009, tendo como presidente o acadêmico Eduardo Sawulski.

Entre as atividades desenvolvidas, o DAT ajudou na recepção dos calouros, em março, apresentando a composição e os objetivos da Diretoria 2010. Realizou o “Jantar de Integração”, no começo do ano letivo, bem como as “Festas dos Aniversariantes”, na última sexta de cada mês, e a Festa Junina, em junho. Organizou a presença e partici-pação do ITESC no XVI Congresso Eucarístico Nacional em Brasília, em maio; foi parceiro com a Direção do ITESC e o corpo docente em várias atividades acadêmicas, como na realização do “Tríduo Bíblico” em junho e a Semana Teológica em setembro. Promoveu também o Passeio de Confraternização entre corpo docente, discente e amigos do ITESC, em novembro. A atuação do DAT foi avaliada positivamente em sua Assembléia Geral, realizada no dia 26 de outubro, momento em que foram apresentadas também sugestões para a gestão do ano de 2011. No dia 17de novembro foi realizada a votação de nova Diretoria, para 2011, empossada no dia 25 de novembro.

Agradecemos aos colegas acadêmicos e professores pela amizade, companheirismo e caminhada conjunta, neste ano de 2010.

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Atualização – Belo Horizonte, BrasilCadernos da Estef – Porto Alegre, BrasilCaminhando com ITEPA – Passo Fundo, BrasilCommunio – Rio de Janeiro, BrasilConvergência – Rio de Janeiro, BrasilDireito e Pastoral – Rio de Janeiro, BrasilEpisteme (UNISUL) – Tubarão, BrasilEstudos Teológicos – São Leopoldo, BrasilHorizonte Teológico – Belo Horizonte, BrasilLiterarius – Santa Maria, BrasilMissioneira – Santo Ângelo, BrasilMundo e Missão – São Paulo, BrasilPerspectiva Teológica – Belo Horizonte, BrasilRevista de Cultura Bíblica – Brasília, BrasilRevista Dominicana de Teologia – São Paulo, BrasilRevista Atualidade Teológica – Rio de Janeiro, BrasilRevista Caminhando – São Bernardo do Campo, BrasilRevista de Catequese – São Paulo, BrasilRevista de Cultura Teológica – São Paulo, BrasilRevista de Liturgia – São Paulo, BrasilRevista de Teológica Londrinense – Londrina, BrasilRevista Eclesiástica Brasileira (REB) – Petrópolis, BrasilRevista Ecos – IESMA – São Luis, BrasilRevista Espaços do Itesp – São Paulo, BrasilRevista Pistis & Práxis – Curitiba, Brasil

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Revista Repensar – Nova Iguaçu, BrasilRevista Teologia em Questão – Taubaté, BrasilRevista Vida Pastoral – São Paulo, BrasilRhema – Juiz de Fora, BrasilTeocomunicação – Porto Alegre, BrasilTrilhas – Cascavel, BrasilVia Teológica – Curitiba, Brasil

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