jus brasil decreto-8243(2014)

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Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243? Publicado por Rafael Costa e mais 1 usuário - 5 dias atrás Texto do Erick Vizolli publicado no Liberzone. Vale a leitura para quem quiser entender a razão de tantos estarem tão preocupados com as implicações desse decreto para a democracia brasileira. Been away so long I hardly knew the place / Gee, it’s good to be back home! /Leave it till tomorrow to unpack my case / Honey, disconnect the phone! / I’m back in the USSR! ” (The Beatles – Back in the USSR) Introdução O maior problema do estado é que, tal qual um paciente de hospício, ele acredita possuir superpoderes, podendo violar as regras da natureza como bem entender. Dois exemplos bem conhecidos pelos liberais: ele considera ser capaz de ler mentes de milhares de pessoas ao mesmo tempo com uma precisão incrível e ter uma superinteligência capaz de fazer milhões de cálculos econômicos por segundo. Um roteirista de história em quadrinhos não faria melhor. O estado brasileiro, no entanto, não está satisfeito com seus delírios atuais, e pretende aumentar o espectro dos seus poderes sobrenaturais para dois campos que a Física considera praticamente inalcançáveis. E parece estar conseguindo: a partir de 26/05/2014, viagem no tempo e teletransporte passaram a ser oferecidos de graça a todo e qualquer cidadão brasileiro. Obviamente, a tecnologia está nos seus primórdios e ainda tem suas limitações, de tal modo que você, pretenso candidato a Marty McFly, pode escolher apenas um destino para suas aventuras: a Rússia de abril de 1917. Em compensação, prepare-se: graças ao estado brasileiro, você está prestes a enfrentar a experiência soviética em todo o seu esplendor. JusBrasil - Artigos 05 de junho de 2014

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Decreto da legislação brasileira

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Page 1: Jus Brasil Decreto-8243(2014)

Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243?Publicado por Rafael Costa e mais 1 usuário - 5 dias atrás

Texto do Erick Vizolli publicado no Liberzone. Vale a leitura para quem quiser entender a razão de tantos

estarem tão preocupados com as implicações desse decreto para a democracia brasileira.

“Been away so long I hardly knew the place / Gee, it’s good to be back home! /Leave it till tomorrow to

unpack my case / Honey, disconnect the phone! / I’m back in the USSR!” (The Beatles – Back in the

USSR)

Introdução

O maior problema do estado é que, tal qual um paciente de hospício, ele acredita possuir superpoderes,

podendo violar as regras da natureza como bem entender. Dois exemplos bem conhecidos pelos liberais: ele

considera ser capaz de ler mentes de milhares de pessoas ao mesmo tempo com uma precisão incrível e ter

uma superinteligência capaz de fazer milhões de cálculos econômicos por segundo. Um roteirista de história

em quadrinhos não faria melhor.

O estado brasileiro, no entanto, não está satisfeito com seus delírios atuais, e pretende aumentar o espectro

dos seus poderes sobrenaturais para dois campos que a Física considera praticamente inalcançáveis. E

parece estar conseguindo: a partir de 26/05/2014, viagem no tempo e teletransporte passaram a ser

oferecidos de graça a todo e qualquer cidadão brasileiro.

Obviamente, a tecnologia está nos seus primórdios e ainda tem suas limitações, de tal modo que você,

pretenso candidato a Marty McFly, pode escolher apenas um destino para suas aventuras: a Rússia de abril

de 1917. Em compensação, prepare-se: graças ao estado brasileiro, você está prestes a enfrentar a

experiência soviética em todo o seu esplendor.

JusBrasil - Artigos05 de junho de 2014

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A “máquina do tempo” que nos leva de volta a 1917 tem um nome no mínimo inusitado: chama-se Decreto

nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Aqui a denominaremos apenas de “Decreto 8.243”, ou “Decreto”.

Este artigo se destina a investigar o seu funcionamento – ou, mais especificamente, quais as modificações

que esse decreto introduz na administração pública. Também farei algumas breves considerações a respeito

da analogia que se pode fazer entre o modelo por ele instituído e aquele que levou à instauração do

socialismo na Rússia: trata-se, no entanto, apenas de uma introdução ao tema, que, pela importância que

tem, com certeza ainda gerará discussões muito mais aprofundadas.

O Decreto 8.243/2014

Chamado por um editorial do Estadão de “um conjunto de barbaridades jurídicas” e por Reinaldo Azevedo de

“a instalação da ditadura petista por decreto”, o Decreto 8.243/2014 foi editado pela Presidência da república

em 23/05/14, tendo sido publicado no Diário Oficial no dia 26 e entrado em vigor na mesma data.

Entender qual o real significado do Decreto exige ler pacientemente todo o seu texto, tarefa relativamente

ingrata. Como todo bom decreto governamental, trata-se de um emaranhado de regras cuja formulação chega

a ser medonha de tão vaga, sendo complicado interpretá-lo sistematicamente e de uma forma coerente.

Tentarei, aqui, fazê-lo da forma mais didática possível, sempre considerando que grande parte do público

leitor dessa página não é especialista na área jurídica (a propósito: que sorte a de vocês.).

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Iniciemos do início, pois. Como o nome diz, trata-se de um “decreto”. “Decreto”, no mundo jurídico, é o nome

que se dá a uma ordem emanada de uma autoridade – geralmente do Poder Executivo – que tem por objetivo

dar detalhes a respeito do cumprimento de uma lei. Um decreto se limita a isso – detalhar uma lei já

existente, ou, em latinório jurídico, ser “secundum legem”. Ao elaborá-lo, a autoridade não pode ir contra uma

lei (“contra legem”) ou criar uma lei nova (“præter legem”). Se isso ocorrer, o Poder Executivo estará

legislando por conta própria, o que é o exato conceito de “ditadura”. Ou seja: um decreto emitido em

contrariedade a uma lei já existente deve ser considerado um ato ditatorial.

É exatamente esse o caso do Decreto 8.243/2014. Logo no início, vemos que ele teria sido emitido com base

no "art. 84, incisos IV e VI, alínea a, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 3º, inciso I, e no

art. 17 da Lei nº 10.683”. Traduzindo para o português, tratam-se de alguns artigos relacionados à

organização da administração pública, dentre os quais o mais importante é o art. 84, VI da Constituição – o

qual estabelece que o Presidente pode emitir decretos sobre a “organização e funcionamento da

administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos

públicos”.

Guarde essa última frase. Como veremos adiante, o que o Decreto 8.243 faz, na prática, é integrar à

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Administração Pública vários órgãos novos – às vezes implícita, às vezes explicitamente –, algo que é

constitucionalmente vedado ao Presidente da República. Portanto, logo de cara percebe-se que se trata de

algo inconstitucional – o Executivo está criando órgãos públicos mesmo sendo proibido a fazer tal coisa.

Os absurdos jurídicos, contudo, não param por aí.

A “sociedade civil”

Analisemos o texto do Decreto, para entender quais exatamente as modificações que ele introduz no sistema

governamental brasileiro.

Em princípio, e para quem não está acostumado com a linguagem de textos legais, a coisa toda parece de

uma inocência singular. Seu art. 1º esclarece tratar-se de uma nova política pública, “a Política Nacional de

Participação Social”, que possui “o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias

democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”. Ou

seja: tratar-se-ia apenas de uma singela tentativa de aproximar a “administração pública federal” – leia-se, o

estado – da “sociedade civil”.

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O problema começa exatamente nesse ponto, ou seja, na expressão “sociedade civil”. Quando usado em

linguagem corrente, não se trata de um termo de definição unívoca: prova disso é que sobre ele já se

debruçaram inúmeros pensadores desde o século XVIII. Tais variações não são o tema deste artigo, mas,

para quem se interessar, sugiro sobre o assunto a leitura deste texto de Roberto Campos, ainda atualíssimo.

Para o Decreto, contudo, “sociedade civil” tem um sentido bem determinado, exposto em seu art. 2º, I: dá-se

esse nome aos “cidadãos, coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas

redes e suas organizações”.

Muita atenção a esse ponto, que é de extrema importância. O Decreto tem um conceito preciso daquilo que

é considerado como “sociedade civil”. Dela fazem parte não só o “cidadão” – eu e você, como pessoas

físicas – mas também “coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas

redes e suas organizações”. Ou seja: todos aqueles que promovem manifestações, quebra-quebras,

passeatas, protestos, e saem por aí reivindicando terra, “direitos” trabalhistas, passe livre, saúde e educação

– MST, MTST, MPL, CUT, UNE, sindicatos… Pior: há uma brecha que permite a participação de movimentos

“não institucionalizados” – conceito que, na prática, pode abranger absolutamente qualquer coisa.

Em resumo: “sociedade civil”, para o Decreto, significa “movimentos sociais”. Aqueles mesmos que, como

todos sabemos, são controlados pelos partidos de esquerda – em especial, pelo próprio PT. Não se

enganem: a intenção do Decreto 8.243 é justamente abrir espaço para a participação política de tais

movimentos e “coletivos”. O “cidadão” em nada é beneficiado – em primeiro lugar, porque já tem e sempre

teve direito de petição aos órgãos públicos - art. 5º, XXXIV, “a” da Constituição -; em segundo lugar, porque o

Decreto não traz nenhuma disposição a respeito da sua “participação popular” – aliás, a palavra “cidadão”

nem é citada no restante do texto, excetuando-se um princípio extremamente genérico no art. 3º.

Podemos, então, reescrever o texto do art. 1º usando a própria definição legal: o Decreto, na verdade, tem “o

objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação

conjunta entre a administração pública federal e os movimentos sociais”.

Compreender o significado de “sociedade civil” no contexto do Decreto é essencial para se interpretar o resto

do seu texto. Basta notar que a expressão é repetida 24 (vinte e quatro!) vezes ao longo do restante do

texto, que se destina a detalhar os instrumentos a serem utilizados na tal “Política Nacional de Participação

Social”.

“Mecanismos de participação social”

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Ok, então: há uma política que visa a aproximar estado e “movimentos sociais”. Mas no que exatamente ela

consiste? Para responder a essa questão, comecemos pelo art. 5º, segundo o qual “os órgãos e entidades

da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso,

considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a

formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”.

Traduzindo o juridiquês: a partir de agora, todos os “os órgãos e entidades da administração pública federal

direta e indireta” (ou seja, tudo o que se relaciona com o governo federal: gabinete da Presidência,

ministérios, universidades públicas…) deverão formular seus programas em atenção ao que os tais

“mecanismos de participação social” demandarem. Na prática, o Decreto obriga órgãos da administração

direta e indireta a ter a participação desses “mecanismos”. Uma decisão de qualquer um deles só se torna

legítima quando houver essa consulta – do contrário, será juridicamente inválida. E, como informam os

parágrafos do art. 5º, essa participação deverá ser constantemente controlada, a partir de “relatórios” e

“avaliações”.

Os “mecanismos de participação social” são apresentados no art. 2º e no art. 6º, que fornecem uma lista

com nove exemplos: conselhos e comissões de políticas públicas, conferências nacionais, ouvidorias

federais, mesas de diálogo, fóruns interconselhos, audiências e consultas públicas e “ambientes virtuais de

participação social” (pelo visto, nossos amigos da MAV-PT acabam de ganhar mais uma função…).

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A rigor, todas essas figuras não representam nada de novo, pois já existem no direito brasileiro. Para ficar

em alguns exemplos: “audiências públicas” são realizadas a todo momento, a expressão “conferência

nacional” retorna 2.500.000 hits no Google e há vários exemplos já operantes de “conselhos de políticas

públicas”, como informa este breve relatório da Câmara dos Deputados sobre o tema. Qual seria o problema,

então?

A questão está, novamente, nos detalhes. Grande parte do restante do Decreto – mais especificamente, os

arts. 10 a 18 – destinam-se a dar diretrizes, até hoje inexistentes (ao menos de uma forma sistemática), a

respeito do funcionamento desses órgãos de participação. E nessas diretrizes mora o grande problema. Uma

rápida leitura dos artigos que acabei de mencionar revela que várias delas estão impregnadas de mecanismos

que, na prática, têm o objetivo de inserir os “movimentos sociais” a que me referi acima na máquina

administrativa brasileira.

Vamos dar um exemplo, analisando o art. 10, que disciplina os “conselhos de políticas públicas”. Em seus

incisos, estão presentes várias disposições que condicionam sua atividade à da “sociedade civil” – leia-se,

aos “movimentos sociais”, como demonstrado acima. Por exemplo: o inciso I determina que os

representantes de tais conselhos devem ser “eleitos ou indicados pela sociedade civil”, o inciso II, que suas

atribuições serão definidas “com consulta prévia à sociedade civil”. E assim por diante. Essas brechas estão

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espalhadas ao longo do texto do Decreto, e, na prática, permitem que “coletivos, movimentos sociais

institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” imiscuam-se na própria

Administração Pública.

O art. 19, por sua vez, cria um órgão administrativo novo (lembram do que falei sobre a inconstitucionalidade,

lá em cima?): “a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais, instância colegiada interministerial

responsável pela coordenação e encaminhamento de pautas dos movimentos sociais e pelo

monitoramento de suas respostas”. Ou seja: uma bancada pública feita sob medida para atender “pautas

dos movimentos sociais”, feito balcão de padaria. Para quem duvidava das reais intenções do Decreto, está

aí uma prova: esse artigo sequer tem o pudor de mencionar a “sociedade civil”. Aqui já é MST, MPL e

similares mesmo, sem intermediários.

Enfim, para resumir tudo o que foi dito até aqui: com o Decreto 8.243/2014, (i) os “movimentos sociais”

passam a controlar determinados “mecanismos de participação social”; (ii) toda a Administração

Pública passa a ser obrigada a considerar tais “mecanismos” na formulação de suas políticas. Isto

é: o MST passa a dever ser ouvido na formulação de políticas agrárias; o MPL, na de transporte; aquele

sindicato que tinge a cidade de vermelho de quando em quando passa a opinar sobre leis trabalhistas.

“Coletivos, movimentos sociais, suas redes e suas organizações” se inserem no sistema político, tornando-se

órgãos de consulta: na prática, uma extensão do Legislativo.

“Back in the U. S. S. R.”!

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Esse sistema de “poder paralelo” não é inédito na História – e entender as experiências pretéritas é uma

excelente maneira de se compreender o que significam as atuais. É isso que, como antecipei no início do

texto, nos leva de volta a 1917 e aos “sovietes” da Revolução Russa, possivelmente o exemplo mais

conhecido e óbvio desse tipo de organização. Se é verdade que “aqueles que não podem lembrar o passado

estão condenados a repeti-lo”, como diz o clássico aforismo de George Santayana, é essencial voltar os

olhos para o passado e entender o que de fato se passou quando um modelo de organização social idêntico

ao instituído pelo Decreto 8.243/2014 foi adotado.

Essa análise nos leva ao momento imediatamente posterior à Revolução de Fevereiro, que derrubou Nicolau

II. O clima de anarquia gerado após a abdicação do czar levou à formação de um Governo Provisório

inicialmente desorganizado e pouco coeso, incapaz de governar qualquer coisa que fosse.

Paralelamente, formou-se na capital russa (Petrogrado) um conselho de trabalhadores – na verdade, uma

repetição de experiências históricas anteriores similares, que na Rússia remontavam já à Revolução de 1905.

Tal conselho – o Soviete de Petrogrado – consistia de “deputados” escolhidos aleatoriamente nas fábricas e

quarteis. Em 15 dias de existência, o soviete conseguiu reunir mais de três mil membros, cujas sessões

eram realizadas de forma caótica – na realidade, as decisões eram tomadas pelo seu comitê executivo,

conhecido como Ispolkom. Nada diferente de um MST, por exemplo.

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A ampla influência que o Soviete possuía sobre os trabalhadores fez com que os representantes do Governo

Provisório se reunissem com seus representantes (1º-2 de março de 1917) em busca de apoio à formação de

um novo gabinete. Isto é: o Governo Provisório foi buscar sua legitimação junto aos sovietes, ciente de que,

sem esse apoio, jamais conseguiria firmar qualquer autoridade que fosse junto aos trabalhadores industriais e

soldados. O resultado dessas negociações foi o surgimento de um regime de “poder dual” (dvoevlastie), que

imperaria na Rússia de março/1917 até a Revolução de Outubro: nesse sistema, embora o Governo Provisório

ocupasse o poder nominal, este na prática não passava de uma permissão dos sovietes, que detinham a

influência majoritária sobre setores fundamentais da população russa. A Revolução de Outubro, que

consolidou o socialismo no país, foi simplesmente a passagem de “todo o poder aos sovietes!” (“vsia vlast’

sovetam!”) – um poder que, na prática, eles já detinham.

Antes mesmo do Decreto 8.243, o modelo soviético já antecipava de forma clara o fenômeno dos

“movimentos sociais” que ocorre no Brasil atualmente. Com o Decreto, a similaridade entre os modelos

apenas se intensificou.

Em primeiro lugar, e embora tais movimentos clamem ser a representação do “povo”, dos “trabalhadores”, do

“proletariado” ou de qualquer outra expressão genérica, suas decisões são tomadas, na realidade, por poucos

membros – exatamente como no Ispolkom soviético, a deliberação parte de um corpo diretor organizado e a

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aclamação é buscada em um segundo momento, como forma de legitimação. Qualquer assembleia de

movimentos de esquerda em universidades é capaz de comprovar isso.

Além disso, a institucionalização de conselhos pelo Decreto 8.243/2014 leva à ascensão política instantânea

de “revolucionários profissionais” – pessoas que dedicam suas vidas inteiras à atividade partidária, em uma

tática já antecipada por Lênin em seu panfleto “Que Fazer?”, de 1902 (capítulo 4c). Explico melhor. Vamos

supor por um momento que o Decreto seja um texto bem intencionado, que de fato pretenda “inserir a

sociedade civil” dentro de decisões políticas (como, aliás, afirma o diretor de Participação Social da

Presidência da República neste artigo d’O Globo). Ora, quem exatamente teria tempo para participar de

“conselhos”, “comissões”, “conferências” e “audiências”? Obviamente, não o cidadão comum, que gasta seu

dia trabalhando, levando seus filhos para a escola e saindo com os amigos. Tempo é um fator escasso, e a

maioria das pessoas simplesmente não possui horas de sobra para participar ativamente de decisões

políticas – é exatamente por isso que representantes são eleitos para essas situações. Quem são as

exceções? Não é difícil saber. Basta passar em qualquer sindicato ou diretório acadêmico: ele estará cheio

de “revolucionários profissionais”, cuja atividade política extraoficial acabou de ser legitimada por decreto

presidencial.

A questão foi bem resumida por Reinaldo Azevedo, no texto que citei no início deste artigo. Diz o articulista:

“isso que a presidente está chamando de ‘sistema de participação’ é, na verdade, um sistema de tutela.

Parte do princípio antidemocrático de que aqueles que participam dos ditos movimentos sociais são mais

cidadãos do que os que não participam. Criam-se, com esse texto, duas categorias de brasileiros: os que

têm direito de participar da vida púbica [sic] e os que não têm. Alguém dirá: ‘Ora, basta integrar um

movimento social’. Mas isso implicará, necessariamente, ter de se vincular a um partido político”.

Exatamente por esses motivos, tal forma de organização confere a extremistas de esquerda possibilidades de

participação política muito mais amplas do que eles teriam em uma lógica democrática “verdadeira” – na qual

ela seria reduzida a praticamente zero. Basta ver que o Partido Bolchevique, que viria a ocupar o poder na

Rússia em outubro de 1917, era uma força política praticamente irrelevante dentro do país: sua subida ao

poder se deve, em grande parte, à influência que exercia sobre os demais partidos socialistas (mencheviques

e socialistas-revolucionários) dentro do sistema dos sovietes. Algo análogo ocorre no Brasil atual: salvo

exceções pontuais, PSOL, PSTU et caterva apresentam resultados pífios nas eleições, mas por meio da

ação de “movimentos sociais” conseguem inserir as suas pautas na discussão política. As manifestações

pelo “passe livre” – uma reivindicação extremamente minoritária, mas que após um quebra-quebra nacional

ocupou grande parte da discussão política em junho/julho de 2013 – são um exemplo evidente disso.

O sistema introduzido pelo Decreto 8243/2014 apenas incentiva esse tipo de ação. O Legislativo “oficial” –

aquele que contém representantes da sociedade eleitos voto a voto, representando proporcionalmente diversos

setores – perde, de uma hora para outra, grande parte de seu poder. Decisões estatais só passam a valer

quando legitimadas por órgãos paralelos, para os quais ninguém votou ou deu sua palavra de aprovação – e

cujo único “mérito” é o fato de estarem alinhados com a ideologia do partido que ocupa o Executivo.

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Pior: a administração pública é engessada, estagnada. Não no sentido definido no artigo d’O Globo que linkei

acima (demora na tomada de decisões), mas em outro: os cargos decisórios desse “poder Legislativo

paralelo” passam a ser ocupados sempre pelas mesmas pessoas. Suponhamos, em um esforço muito grande

de imaginação, que o PT perca as eleições presidenciais de 2018 e seja substituído por, digamos, Levy

Fidelix e sua turma. Com a reforma promovida pelo Decreto 8.243/2014 e a ocupação de espaços de

deliberação por órgãos não eletivos, seria impossível ao novo presidente implantar suas políticas aerotrênicas:

toda decisão administrativa que ele viesse a tomar teria que, obrigatoriamente, passar pelo crivo de

conselhos, comissões e conferências que não são eleitos por ninguém, não renovam seus quadros

periodicamente e não têm transparência alguma. Ou seja: ainda que o titular do governo venha a mudar,

esses órgãos (e, mais importante, os indivíduos a eles relacionados) permanecem dentro da máquina

administrativa ad eternum, consolidando cada vez mais seu poder.

Conclusão

O Decreto 8.243/2014 é, possivelmente, o passo mais ousado já tomado pelo PT na consecução do

“socialismo democrático” – aquele sistema no qual você está autorizado a expressar a opinião que quiser,

desde que alinhada com o marxismo. Sua real intenção é criar um “lado B” do Legislativo, não só

deslegitimando as instituições já existentes como também criando um meio de “acesso facilitado” de

movimentos sociais à política.

Boa parte dos leitores dessa página podem estar se perguntando: “e daí?”. Afinal, sabemos que a

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Publicado por Rafael Costa

entusiasta do Direito e Internet

democracia representativa é um sistema imperfeito: suas falhas já foram expostas por um número enorme de

autores, de Tocqueville a Hans-Hermann Hoppe. É verdade.

No entanto, a democracia representativa ainda é “menos pior” do que a alternativa que se propõe. Um

sistema onde setores opostos da sociedade se digladiam em uma arena política, embora tenda

necessariamente a favorecimentos, corrupção e má aplicação de recursos, ainda possui certo “controle”

interno: leis e decisões administrativas que favoreçam demais a determinados grupos ou restrinjam

demasiadamente os direitos de outros em geral tendem a ser rechaçadas. Isso de forma alguma ocorre em

um sistema onde decisões oficiais são tomadas e “supervisionadas” por órgãos cujo único compromisso é o

ideológico, como o que o Decreto 8.243/2014 tenta implementar.

Esse segundo caso, na verdade, nada mais é do que uma pisada funda no acelerador na autoestrada para a

servidão.

Autor: Erick Vizolli em Liberzone.

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