lukács - teoria do romance

77
Georg Lukács A TEORIA DO ROMANCE Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica Tradução, posfocio e notas José Marcos Mariani de Macedo mi Livraria mi Duas Cidades

Upload: joao-vitor-rodrigues-alencar

Post on 05-Sep-2015

133 views

Category:

Documents


18 download

DESCRIPTION

Clássico de Lukács sobre o romance.

TRANSCRIPT

  • Georg Lukcs

    A TEORIA DO ROMANCE

    Um ensaio histrico-filosfico sobre as formas da grande pica

    Traduo, posfocio e notas

    Jos Marcos Mariani de Macedo

    mi Livraria mi Duas Cidades

  • Livraria Duas Cidades Ltda.

    Rua Bento Freitas, 158 Centro CEP 01220-000

    So Paulo - SP Brasil Tel!Fax (11) 3331-5134

    [email protected]

    Editora 34 Ltda.

    Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000

    So Paulo - SP Brasil Tel!Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

    Copyright Duas Cidades/Editora 34, 2000

    A teoria do romance Georg Lukcs, 1965

    A fotocpia de qualquer folha deste livro ilegal e configura uma

    apropriao indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:

    Bracher & Malta Produo Grfica

    Preparao do texto:

    Mara Valles

    Iracema Alves Lazari

    Reviso:

    Alexandre Barbosa de Souza

    Cide Piquet

    1 a Edio - 2000 (3a Reimpresso - 2007)

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro

    (Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Lukcs, Ceorg, 1885-1971

    L954t A teoria do romance: um ensaio histrico-

    filosfico sobre as formas da grande pica I Ceorg Lukcs;

    traduo, posfcio e notas de Jos Marcos Mariani de

    Macedo. - So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

    240 p. (Coleo Esprito Crtico)

    ISBN 85-7326-182-X

    1. Fico - Histria e crtica. I. Tntlo. II. Srie.

    COO - 801.953

  • ndice

    Prefcio (1962) . ...... ......................... ................ ..... .... 7

    I. As formas da grande pica em sua relao com o carter fechado ou problemtico da cultura como um todo ......................................................... 23 1. Culturas fechadas ... ...... ......... ... ....... ..... ....... ... ....... ... ....... 25

    2. O problema da filosofia histrica

    das formas ... ....... ..... ..... ... ....... ... ....... ..... ..... ............ ......... 36

    3. Epopia e romance ............................... ...... ........ .... ......... 55

    4. A forma interna do romance ............................................ 69

    5. Condicionamento e significado

    histrico-filosfico do romance ........................................ 85

    II. Epsaio de uma tipologia da forma romanesca... ....... ....... .. ...... ..................... ... 97 1. O idealismo abstrato .. .......... ........ ..... ....... ............. .......... 99

    2. O romantismo da desiluso ........ .......... .......... .......... ....... 117

    3. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

    como tentativa de uma sntese ........ ............ .......... ........... 138

    4. Tolsti e a extrapolao

    das formas sociais de vida ...... .......... .......... .......... ............ 150

  • Posflcio .................................................................... 163 1. Doutrina das formas e potica dos gneros ..... ......... ... ... .. 174

    2. Os gneros e o romance ..... ..... .. ....... ... .......... ........... ... ..... 197

    Bibliografia.......................................... ... ......... ......... 225

    lndice onomstico.. ................... ............... .................. 231 Sobre o autor................................................. ..... ....... 233

  • I. As formas da grande pica

    em sua relao com o carter fechado ou problemtico da

    cultura como um todo

  • 1. Culturas fechadas

    Afortunados os tempos para os quais o cu estrelado o mapa dos caminhos transitveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhes novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto prprio. O mundo vasto, e no entanto como a prpria casa, pois o fogo que arde na alma da mesma essncia que as estrelas; distinguem-se eles nitidamen-te, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porm jamais se tornaro para sempre alheios um ao outro, pois o fogo a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, sig-nificativo e integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e per-feito para os sentidos; integrado, porque a alma repousa em si durante a ao; integrado, porque seu ato desprende-se dela e, tornado si mesmo, encontra um centro prprio e traa a seu redor uma circunferncia fechada. "Filosofia na verdade nostalgia", diz Kfovalis, "o impulso de sentir-se em casa em toda parte"1. Eis por que a filosofia, tanto como forma de vida quanto como a de-terminante da forma e a doadora de contedo da criao literria,

    1 Novalis, Das Allgemeine Brouillon [O borrador universal], nO 857, in Werke,

    Tagebcher und Briefe, voI. II, Munique, Carl Hanser, 1978, p. 675 .

    25

  • A teoria do romance

    sempre um sintoma da ciso entre interior e exterior, um ndi-ce da diferena essencial entre eu e mundo, da incongruncia entre alma e ao. Eis por que os tempos afortunados no tm filoso-fia, ou, o que d no mesmo, todos os homens desse tempo so filsofos, depositrios do objetivo utpico de toda a filosofia. Pois qual a tarefa da verdadeira filosofia seno esboar esse mapa ar-quetpico? Qual o problema do locustranscendental seno a deter-minao da correspondncia de cada mpeto que brota da mais profunda interioridade com uma forma que lhe desconhecida, mas que lhe est designada desde a eternidade e a envolve num simbolismo redentor? A a paixo o caminho predeterminado pela razo para a perfeita individualidade, e da loucura so emi-tidos sinais enigmticos mas decifrveis de um poder transcen-dente, de outro modo condenado ao silncio. A no h ainda nenhuma interioridade, pois ainda no h nenhum exterior, ne-nhuma alteridade para a alma. Ao sair em busca de aventuras e venc-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais pe a si mesma em jogo; ela ain-da no sabe que pode perder-se e nunca imagina que ter de bus-car-se. Essa a era da epopia. No a falta de sofrimento ou a segurana do ser que revestem aqui homens e aes em contor-nos jovialmente rgidos (o absurdo e a desolao das vicissitudes do mundo no aumentaram desde o incio dos tempos, apenas os cantos de consolao ressoam mais claros ou mais abafados), mas sim a adequao das aes s exigncias intrnsecas da alma: grandeza, ao desdobramento, plenitude. Quando a alma ainda no conhece em si nenhum abismo que a possa atrair queda ou a impelir a alturas nvias, quando a divindade que preside o mundo e distribui as ddivas desconhecidas e injustas do destino posta-se junto aos homens, incompreendida mas conhecida, co-mo o pai diante do filho pequeno, ento toda a ao somente um traje bem-talhado da alma. Ser e destino, aventura e perfeio,

    26

  • Culturas fechadas

    vida e essncia so ento conceitos idnticos. Pois a pergunta da qual nasce a epopia como resposta configuradora : como pode a vida tornar-se essencial? E o carter inatingvel e inacessvel de Homero - e a rigor apenas os seus poemas so epopias - de-corre do fato de ele ter encontrado a resposta antes que a mar-cha do esprito na histria permitisse formular a pergunta.

    Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo do helenismo, sua perfeio que nos parece impensvel e a sua es-tranheza intransponvel para ns: o grego conhece somente res-postas, mas nenhuma pergunta, somente solues (mesmo que enigmticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas ne-nhum caos. Ele ainda traa o crculo configurador das formas aqum do paradoxo, e tudo o que, a partir da atualizao do paradoxo, teria de conduzir superficialidade, leva-o perfeio. Quando se fala dos gregos, mistura-se sempre filosofia da hist-ria e esttica, psicologia e metafsica, e trama-se uma relao entre as suas formas e a nossa era. Belas almas buscam os seus prprios instantes sublimes, instantes fugazmente efmeros, nunca apreen-sveis, de uma sonhada tranqilidade por trs dessas mscaras taciturnas, caladas para sempre, esquecendo que o valor desses instantes a sua fugacidade, que aquilo de que fogem para bus-car abrigo junto aos gregos a sua prpria profundidade e gran-deza. Espritos mais profundos, empenhados em coagular em ao purpreo o sangue que lhes brota e forj-lo em couraa, para que suas feridas permaneam eternamente ocultas e seus gestos de hero'smo tornem-se o paradigma do verdadeiro e futuro heros-mo, a fim de que o novo herosmo seja por ele desperto, compa-ram a fragmentariedade de sua figurao2 com a harmonia gre-

    2 Formung, em alemo. Ao longo do texto o termo refere-se forma consu-

    mada, em oposio ao ato de dar forma (Formen). Ver por exemplo p. 85.

    27

  • A teoria do romance

    ga, e os prprios sofrimentos, de que brotaram suas formas, com os sonhados martrios que precisaram da pureza grega para ser pacificados. Concebendo a perfeio da forma, de modo obs-tinadamente solipsista, como funo do dilaceramento interno, querem eles perceber nas composies dos gregos a voz de um tormento cuja intensidade supera a sua na mesma medida em que a arte grega suplanta aquilo que configuram. Ora, trata-se aqui de uma completa inverso da topografia transcendental do esp-rito, que em sua essncia e em suas conseqncias pode ser per-feitamente descrita, perfeitamente interpretada e concebida em sua relevncia metafsica, mas para a qual ser sempre imposs-vel encontrar uma psicologia, por mais intuitiva ou meramente conceituaI que seja. Isso porque toda a compreenso psicolgica j pressupe uma determinada posio dos loei transcendentais e funciona somente dentro da esfera destes. Em vez de querer compreender o helenismo desse modo, ou seja, perguntar incons-cientemente como poderamos em ltima instncia produzir essas formas ou como nos portaramos se possussemos tais formas, mais frutfero seria indagar pela topografia transcendental do esprito grego, essencialmente diversa da nossa, que tornou pos-sveis e tambm necessrias tais formas.

    Dizamos que o grego conta com as respostas antes de for-mular as perguntas. Isso tambm no deve ser entendido psico-logicamente, mas (quando muito) em termos psicolgico-trans-cendentais. Significa que, na relao estrutural ltima, condi-cionante de todas as experincias e configuraes, no so dadas quaisquer diferenas qualitativas, portanto insuperveis e s trans-ponveis com um salto, a separar os loei transcendentais entre si e estes do sujeito que lhes designado a priori; significa que a ascenso ao mais elevado e a descida ao mais vazio de sentido concretizam-se por caminhos de adequao, ou seja, na pior das hipteses, por intermdio de uma escala graduada, rica em tran-

    28

  • Culturas fechadas

    sies. Por isso, a conduta do esprito nessa ptria o acolhimento passivo-visionrio de um sentido prontamente existente. O mun-do do sentido palpvel e abarcvel com a vista, basta encontrar nele o loeus destinado ao individual. O erro, aqui, questo so-mente de falta ou excesso, de uma falha de medida ou percep-o. Pois saber apenas o alar vus opacos; criar, apenas o co-piar essencialidades visveis e eternas; virtude, um conhecimen-to perfeito dos caminhos; e o que estranho aos sentidos decor-re somente da excessiva distncia em relao ao sentido. um mundo homogneo, e tampouco a separao entre homem e mundo, entre eu e tu capaz de perturbar sua homogeneidade. Como qualquer outro elo dessa rtmica, a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus contornos no dife-re, em essncia, dos contornos das coisas: ela traa linhas preci-sas e seguras, mas separa somente de modo relativo; s separa em referncia a e em benefcio de um sistema homogneo de equil-brio adequado. Pois o homem no se acha solitrio, como nico portador da substancialidade, em meio a figuraes reflexivas: suas relaes com as demais figuraes e as estruturas3 que da resul-tam so, por assim dizer, substanciais como ele prprio ou mais verdadeiramente plenas de substncia, porque mais universais, mais "filosficas", mais prximas e aparentadas ptria original: amor, famlia, Estado. O dever-ser para ele apenas uma ques-to pedaggica, uma expresso de que ainda est a caminho de casa, mas no exprime ainda a relao nica e insupervel com a substncia. E tambm no prprio homem no h nada que o

    3 Entenda-se: "estrururas sociais"; a palavra Gebilde, termo que pode ser

    traduzido como "formaes" ou "formaes histricas", o que, porm, levaria a

    confuso com o conceito de "forma" e os termos correlatos ("figurao", "formar",

    "configurao" etc.).

    29

  • A teoria do romance

    obrigue ao salto: maculado pelo afastamento da matria em re-lao substncia, dever ele purificar-se na proximidade subs-tncia da ascenso imaterial; um longo caminho jaz diante dele, mas dentro dele, nenhum abismo.

    Tais fronteiras encerram necessariamente um mundo per-feito e acabado. Embora poderes ameaadores e incompreens-veis se faam sentir alm do crculo que as constelaes do senti-do presente traam ao redor do cosmos a ser vivenciado e for-mado, eles no so capazes de desalojar a presena do sentido; podem eles aniquilar a vida, mas jamais confundir o ser; podem lanar sombras negras sobre o mundo formado, mas tambm elas sero incorporadas pelas formas, como contrastes cuja nitidez tanto mais salientada. O crculo em que vivem metafisicamente os gregos menor do que o nosso: eis por que jamais seramos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o crculo cuja completude constitui a essncia transcendental de suas vidas rom-peu-se para ns; no podemos mais respirar num mundo fechado. Inventamos a produtividade do esprito: eis por que, para ns, os arqutipos perderam inapelavelmente sua obviedade objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproximao jamais inteiramente concluda4. Inventamos a configurao: eis por que falta sempre o ltimo arremate a tudo que nossas mos, cansadas e sem esperana, largam pelo caminho. Descobrimos em ns a nica substncia verdadeira: eis por que tivemos de cavar abismos intransponveis entre conhecer e fazer, entre alma e es-trutura, entre eu e mundo, e permitir que, na outra margem do

    4 A noo que est por trs aqui a progresso infinita do homem finito ru-

    mo moralidade, desenvolvida por Kant na Kritik der praktischen Vernunft [Cr-

    tica da razo prtica], A 221, Akademie Textausgabe, vol. V, Berlim, Walter de

    Gruyter & Co., 1968, pp. 122 ss.

    30

  • Culturas fechadas

    abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexo; eis por que nossa essncia teve de converter-se, para ns, em postulado e cavar um abismo tanto mais profundo e ameaador entre ns e ns mesmos. Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em ddivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido positivo e depositrio de suas vidas: a totalidade. Pois totalidade, como prius formador de todo fe-nmeno individual, significa que algo fechado pode ser perfei-to; perfeito porque nele tudo ocorre, nada excludo e nada re-mete a algo exterior mais elevado; perfeito porque nele tudo ama-durece at a prpria perfeio e, alcanando-se, submete-se ao vn-culo. Totalidade do ser s possvel quando tudo j homogneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas no so uma coero, mas somente a conscientizao, a vinda tona de tudo quanto dormitava como vaga aspirao no interior daqui-lo a que se devia dar forma; quando o saber virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza pe em evidncia o sentido do mundo.

    Esse o mundo da filosofia grega. Mas tal pensamento sur-giu apenas quando a substncia j comeava a desvanecer-se. Se a rigor no existe uma esttica grega, pois a metafsica antecipou todo o esttico, tambm no h na Grcia nenhuma contrapo-sio rigorosa entre histria e filosofia da histria: os gregos per-correm na prpria histria todos os estgios correspondentes s grandes formas a priori; sua histria da arte uma esttica meta-fsico-gentica; sua evoluo cultural, uma filosofia da histria. Nesse-processo ocorre a evaso da substncia: da absoluta ima-nncia vida, em Homero, absoluta, porm tangvel e palp-vel, transcendncia em Plato; e seus estgios, clara e precisamente distintos entre si (aqui o helenismo no conhece transies), nos quais seu sentido assentou-se como em eternos hierglifos, so as grandes formas intemporalmente paradigmticas da configu-rao do mundo: epopia, tragdia e filosofia. O mundo da epo-

    31

  • A teoria do romance

    pia responde pergunta: como pode a vida tornar-se essencial? Mas a resposta s amadureceu como pergunta quando a subs-tncia j acenava de longa distncia. Somente quando a tragdia respondeu, configurando, pergunta de como a essncia pode tornar-se viva, tomou-se conscincia de que a vida como ela (e todo dever-ser suprime a vida) perdera a imanncia da essncia. No destino que d forma e no heri que, criando-se, encontra a si mesmo, a pura essncia desperta para a vida, a simples vida ani-quila-se perante a nica realidade verdadeira da essncia; para alm da vida, foi alcanado um nvel do ser repleto de uma pleni-tude ricamente florescente , diante do qual a vida cotidiana no serve nem sequer de contraste. Tambm essa existncia da essncia no nasceu da necessidade, do problema: o nascimento de Palas5

    o prottipo para a origem das formas gregas. Assim como a rea-lidade da essncia, ao descarregar-se na vida e engendr-la, reve-la a perda de sua pura imanncia vida, esse subsolo problem-tico da tragdia tambm s se torna evidente, s se torna um pro-blema, na filosofia: apenas quando a essncia, completamente afastada da vida, tornou-se a nica realidade absolutamente trans-cendental, quando tambm o destino da tragdia desmascara-do pela ao configuradora da filosofia como uma tosca e absur-da arbitrariedade emprica e a paixo do heri como vinculao terrena, sua autoperfeio como limitao do sujeito contingente - s ento a resposta dada pela tragdia ao ser no aparece mais como uma simples obviedade natural, seno como um milagre,

    5 Conta-se que Zeus, ao saber da gravidez de sua primeira esposa, Mtis,

    foi aconselhado por Urano e Gia a engoli-la, pois, segundo as predies, se Mtis

    tivesse uma filha e esta um filho, o neto destronaria o av. Findo o perodo de

    gestao, Zeus foi acometido por uma terrvel dor de cabea e pediu a Hefesto que

    lhe abrisse o crnio com um machado. Dele saiu, j paramentada e de gide em

    punho, a deusa Palas Atena.

    32

  • Culturas fechadas

    como um arco-ris esguio e firmemente arqueado sobre profun-dezas insondveis. O heri da tragdia sucede ao homem vivo de Homero, e o explica e o transfigura justamente pelo fato de to-mar-lhe a tocha bruxuleante e inflam-la com brilho renovado. E o novo homem de Plato, o sbio, com seu conhecimento ati-vo e sua viso criadora de essncias, no s desmascara o heri, mas ilumina o perigo sombrio por ele vencido e o transfigura na medida em que o suplanta. Mas o sbio o ltimo tipo huma-no, e seu mundo a ltima confIgurao paradigmtica da vida que foi dada ao esprito greg06. A elucidao das questes que condicionam e sustentam a viso platnica no rendeu novos frutos: o mundo tornou-se grego no correr dos tempos, mas o esprito grego, nesse sentido, cada vez menos grego; ele criou novos problemas imperecveis (e tambm novas solues), po-rm o mais propriamente grego do 't1tO VOll't perdeu-se para sempre. E a senha do esprito vindouro, recm-fatdico, um des-propsito para os gregos.

    6 H de ficar claro que, no mundo grego, a substncia est sempre presen-

    te, no importa em qual de seus estgios, seja pica, rragdia ou filosofia; o que se

    alrera a relao com essa substncia - da imanncia vida at a transcendncia,

    de Homero at Plato. Nesse processo, distinguem-se dois momenros: primeiro,

    a eficcia caracterstica do faro de a resposta pergunra seguinre trazer sucessiva-

    menre conscincia a questo da pergunra anrerior ("o grego conra com as res-

    postas .anres de formular as pergunras" , p. 28); uma vez alada conscincia a per-

    gunra anrerior pela ao da resposta seguinre, revela-se, de golpe - e este o se-

    gundo momenro -, a insuficincia da resposta anrerior. O aspecro mais conrun-

    denre que a filosofia empresta ao desmascaramenro da tragdia deve-se ao faro de

    epopia e tragdia ocuparem-se das mesmas questes, se bem que invertidas (como

    pode a vida rornar-se essencial? como pode a essncia rornar-se viva?), ao passo que,

    na filosofia, a vida preterida em favor de uma essncia solidamenre instalada no

    mundo rranscendenre.

    33

  • A teoria do romance

    Um verdadeiro despropsito para o grego! O cu estrelado de Kant7 brilha agora somente na noite escura do puro conheci-mento e no ilumina mais os caminhos de nenhum dos peregri-nos solitrios - e no Novo Mundo, ser homem significa ser solitrio. E a luz interna no fornece mais do que ao passo se-guinte a evidncia- ou a aparncia- de segurana. De dentro j no irradia mais nenhuma luz sobre o mundo dos acontecimen-tos e sobre o seu emaranhado alheio alma. E quem poder saber se a adequao do ato essncia do sujeito, o nico ponto de re-ferncia que restou, atinge realmente a substncia, uma vez que o sujeito se tornou uma aparncia, um objeto para si mesmo; uma vez que sua essencialidade mais prpria e intrnseca lhe con-traposta apenas como exigncia infinita num cu imaginrio do dever-ser8; uma vez que ela tem de emergir de um abismo ines-crutvel que reside no prprio sujeito, uma vez que a essncia somente aquilo que se eleva desse fundo mais profundo e nin-gum jamais foi capaz de pisar-lhe ou visualizar-lhe a base? A arte, a realidade visionria do mundo que nos adequado, tornou-se assim independente: ela no mais uma cpia, pois todos os modelos desapareceram; uma totalidade criada, pois a unida-de natural das esferas metafsicas foi rompida para sempre.

    No se deve nem se pode aventar aqui uma filosofia da his-tria sobre a transformao na estrutura dos loci transcendentais. Aqui no o lugar para discutir se o nosso avano (como ascen-so ou declnio, tanto faz) causa da mudana ou se os deuses da Grcia foram expulsos por outros poderes. E no se esboar, nem sequer alusivamente, todo o caminho que conduz nossa

    7 Cf. I. Kant, Kritik der praktischen Vernunft, A 288, Akademie T extausgabe,

    edio citada, p. 161.

    8 CE. nota 4, p. 30.

    34

  • Culturas fechadas

    realidade - a fora sedutora, que jazia ainda no helenismo morto, cujo brilho luciferino, ofuscante, fez sempre esquecer as cises insanveis do mundo e sonhar novas unidades, em contradio com a nova essncia do mundo e portanto em constante runa. Assim foi que da Igreja originou-se uma nova polis, do vnculo paradoxal entre a alma perdida em pecados inexpiveis e a reden-o absurda mas certa originou-se um reflexo quase platnico dos cus na realidade terrena, do salto originou-se a escala das hie-rarquias terrestre e celestial. E em Giotto e Dante, em Wolfram de Eschenbach e Pisano, em So Toms e So Francisco o mun-do voltou a ser uma circunferncia perfeita, abarcvel com a vis-ta, uma totalidade: o abismo perdeu o perigo das profundezas efe-tivas, mas todas as suas trevas, sem nada perder da luz sombria, tornaram-se pura superfcie e assim se inseriram vontade numa unidade integrada de cores; o apelo redeno tornou-se dis-sonncia no perfeito sistema rtmico do mundo e possibilitou um equilbrio novo, embora no menos colorido e perfeito que o grego: o das intensidades inadequadas e heterogneas. O carter incompreensvel e eternamente inacessvel do mundo redimido foi assim trazido para perto, ao alcance da vista. O Juzo Final tornou-se presente e um simples elemento da harmonia das es-feras tida como j consumada; sua verdadeira essncia, que trans-forma o mundo numa ferida de Filoctetes cuja cura est reserva-da ao Paracleto, teve de ser esquecida. Surgiu um novo e para-doxal helenismo: a esttica volta a ser metafsica.

    , Pela primeira, mas tambm pela ltima vez. Depois que essa unidade foi rompida, no h mais uma totalidade espontnea do ser. As fontes cujas guas dissociaram a antiga unidade esto de-certo esgotadas, mas os leitos irremediavelmente secos sulcaram para sempre a face do mundo. De agora em diante, qualquer res-surreio do helenismo uma hipstase mais ou menos consciente da esttica em pura metafsica: um violar e um desejo de aniqui-

    35

  • A teoria do romance

    lar a essncia de tudo que exterior arte, uma tentativa de es-quecer que a arte somente uma esfera entre muitas, que ela tem, como pressupostos de sua existncia e conscientizao, o esface-lamento e a insuficincia do mundo. Ora, esse exagero da subs-tancialidade da arte tem tambm de lhe onerar e sobrecarregar as formas: elas prprias tm de produzir tudo o que at ento era um dado simplesmente aceito; antes, portanto, que sua prpria eficcia apriorstica possa ter incio, elas tm de obter por fora prpria suas condies - o objeto e o mundo circundante. Uma totalidade simplesmente aceita no mais dada s formas: eis por que elas tm ou de estreitar e volatilizar aquilo que configuram, a ponto de poder sustent-lo, ou so compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidade de realizar seu objeto necess-rio e a nulidade intrinseca do nico objeto possivel, introduzin-do assim no mundo das formas a fragmentariedade da estrutura do mundo.

    2. O problema da filosofia histrica das formas

    Essa transmutao dos pontos de orientao transcendentais submete as formas artsticas a uma dialtica histrico-filosfica, que ter porm resultados diversos para cada forma, de acordo com a ptria apriorstca dos gneros especficos. Pode ocorrer que a mudana afere apenas o objeto e as condies de sua configu-rao, mantendo intacta a relao ltima da forma com a sua legitimao transcendental da existncia; surgem ento meras alteraes formais que, embora divirjam em cada detalhe tcni-co, no ferem o princpio ltimo da configurao. Mas poss-vel que a mudana se d jusramente no principium stilisationis do gnero, que tudo determina, e assim torne necessrio que

    36

  • o problema da filosofia histrica das formas

    mesma inteno artstica - condicionada de modo histrico-filosfico - correspondam formas de arte diversas. Essa no uma alterao de mentalidade9 criadora de gneros; tais altera-es j se haviam tornado evidentes na evoluo grega, quando por exemplo a problematizao do heri e do destino trouxe luz o drama no-trgico10 de Eurpides. Vigora ento uma per-feita correspondncia entre a carncia apriorstica, o sofrimento metafsico do sujeito, que impelem criao, e o lo cus eterno e preestabelecido da forma, em que se d a configurao consuma-da. O princpio criador de gneros que se tem em vista aqui no exige, porm, nenhuma mudana de mentalidade; antes, fora a mesma mentalidade a orientar-se por um novo objetivo, essencial-mente diverso do antigo. Significa que tambm o antigo parale-lismo entre a estrutura transcendental no sujeito configurador e no mundo exteriorizado das formas consumadas est rompido, que os fundamentos ltimos da configurao foram expatriados.

    O romantismo alemo, embora nem sempre esclarea em detalhes, estabeleceu uma estreita relao entre o conceito de romance e o de romntico ll . Com toda a razo, pois a forma do

    9 Em alemo, Gesinnung. Conforme o caso e o sentido, ser traduzido tam-

    bm por "inteno" ou "escopo".

    iO Sobre o drama no-trgico, ver "Posfcio", p. 212.

    II Alguns exemplos: "A filosofia e moral do romance so romnticas" (No-

    valis, Das Allgemeine Brouillon, nO 445, edio citada, p. 561); "Nada mais ro-

    mntico do que aquilo que se costuma chamar de mundo e destino - Vivemos

    num colossal romance (no gerale no particular)" (Novalis, Das AIlgemeine Brouillon,

    nO 853, edio citada, p. 675); "U m romance um livro romntico" (F. Schlegel,

    Conversa sobre a poesia e outros .fragmentos, So Paulo, Iluminuras, 1994, p. 67).

    Peter Szondi defende a tese de que tambm o fragmento nO 116 da revista Athendum

    faz a costura entre ambos os conceitos: "Muito depe a favor de que o texto mais

    37

  • A teoria do romance

    romance, como nenhuma outra, uma expresso do desabrigo transcendental. A coincidncia entre histria e filosofia da his-tria teve como resultado, para a Grcia, que cada espcie arts-tica s nascesse quando se pudesse aferir no relgio de sol do esp-rito que sua hora havia chegado, e desaparecesse quando os arqu-tipos de seu ser no mais se erguessem no horizonte. Essa periodi-cidade filosfica perdeu-se na poca ps-he1nica. Aqui, os g-neros se cruzam num emaranhado inextricve1, como indcio da busca autntica ou inautntica pelo objetivo que no mais dado de modo claro e evidente; a sua soma resulta meramente numa totalidade histrica da empiria, onde, para as formas individuais, bem se podem buscar e eventualmente encontrar condies em-

    clebre e mais freqentado do jovem Schlegel, o fragmento 116 da Athenaum, ,

    ao mesmo tempo, o que mais se presta a mal-entendidos, pois com o conceito de

    poesia romdntica, que ele define como poesia universal e cujo programa desenvol-

    ve, no se denota a poesia do Romamismo, mas a literatura romanesca, o gnero

    do romance - e, s por fora de sua posio dominante, a poesia do Romantis-

    mo e da modernidade em geral" (P. Szondi, Poetik und Geschichtsphilosophie [Po-

    tica e filosofia da histria], Frankfurt/M., Suhrkamp, 1974, p. 144). Quanto ao

    decantado fragmento 116 da Atheniium, ver F. Schlegel, Conversa sobre a poesia e

    outros fragmentos (edio citada, pp. 99 ss.) e F. Schlegel, O dialeto dos fragmentos

    (So Paulo, Iluminuras, 1997, pp. 64 ss.). Walter Benjamin, em sua tese de 1919,

    outro que no deixa de chamar ateno para o fato: "O romance a mais alta

    entre todas as formas simblicas, a poesia romntica, a Idia mesma da poesia. A

    ambigidade contida na designao 'romntico', Schlegel certamente aceitou de

    bom grado, ou at a procurou. Notoriameme, 'romntico' significa no uso lin-

    gstico de ento 'cavaleiresco', 'medieval', e por trs deste significado Schlegel,

    como ele gostava, escondeu sua verdadeira inteno, que deve ser lida a partir da

    etimologia da palavra. Deve-se ento entender, como Haym, a expresso 'romn-

    tico', em seu significado essencial, propriamente como 'romanesco'" (W. Benja-

    min, O conceito de crtica de arte no romantismo alemo, So Paulo, Iluminuras, 1993,

    pp. 104ss.).

    38

  • o problema da filosofia histrica das formas

    pricas (sociolgicas) de sua possibilidade de surgimento, mas

    onde o sentido histrico-filosfico da periodicidade nunca mais

    se concentrar nos gneros erigidos em smbolo, sendo impossvel

    decifrar e interpretar nas totalidades das eras histricas mais do

    que nelas prprias se encontra. Mas enquanto a imanncia do sen-tido vida naufraga irremediavelmente ao menor abalo das corre-

    laes transcendentais, a essncia afastada da vida e estranha vida

    capaz de coroar-se com a prpria existncia, de maneira tal que essa consagrao, por maiores que sejam as comoes, pode perder

    o brilho, mas jamais ser totalmente dissipada. Eis por que a tra-

    gdia, embora transformada, transps-se inclume em sua essn-

    cia at nossos dias, ao passo que a epopia teve de desaparecer e

    dar lugar a uma forma absolutamente nova, o romance.

    Sem dvida, a completa transformao do conceito de vida

    e a sua relao com a essncia tambm modificaram a tragdia. Uma coisa a imanncia do sentido vida desaparecer com uma

    claridade catastrfica e abandonar essncia um mundo puro e por nada perturbado; outra quando essa imanncia banida

    do cosmos como que pela ao gradual de um sortilgio; quan-do a nostalgia por sua reapario permanece insatisfeita e viva, e

    nunca uma indubitvel desesperana; quando se tem de supor o

    que foi perdido em cada fenmeno, por mais confuso e inapreen-

    svel que ele seja no momento, espera da palavra redentora; quando a essncia incapaz, por isso, de erguer um palco trgi-

    co com os troncos abatidos na floresta da vida, mas tem ou de

    despertar para uma breve existncia de chama no fogo em que

    ardem todos os restos mortos de uma vida em runas, ou, em

    spera recusa a todo esse caos, voltar as costas e refugiar-se na

    esfera abstrata da mais pura essencialidade. a relao da essn-cia com a vida em si extradramtica que torna necessria a dua-

    lidade estilstica da tragdia moderna, cujos plos so definidos

    por Shakespeare e Alfieri . A tragdia grega situava-se para alm

    39

  • A teoria do romance

    do dilema entre proximidade da vida e abstrao, porque para ela a plenitude no era questo de aproximao vida, a trans-parncia do dilogo no era a superao12 de seu carter imedia-to. Sejam quais forem as contingncias ou necessidades histri-cas do surgimento do coro, o seu sentido artstico conduzir a essncia, situada alm de toda a vida, vivacidade e plenitude. Eis por que ele pde fornecer um pano de fundo que, a exemplo da atmosfera marmrea entre as figuras em baixo-relevo, cum-pre a funo do acabamento e que, no obstante, cheio de mo-bilidade e pode ajustar-se a todas as oscilaes aparentes de uma ao que no nasceu de um esquema abstrato, pode assimil-las em si e, enriquecendo-as a partir de si prprio, devolv-las ao drama. Ele pode fazer ressoar em palavras grandiosas o sentido lrico de todo o drama, pode reunir dentro de si, sem se desinte-grar, tanto as vozes inferiores da razo da criatura, carentes de refutao trgica, quanto as da elevada supra-racionalidade do destino. Na tragdia grega, orador e coro brotaram do mesmo fundamento essencial, so perfeitamente homogneos entre si e podem por isso, sem fender a construo, desempenhar funes totalmente diversas; no coro, pode-se cristalizar toda a lrica da situao e do destino, deixando aos atores as palavras que tudo exprimem e os gestos que tudo abarcam da dialtica trgica pos-ta a nu - e, no entanto, ambos jamais estaro separados entre si seno por suaves transies. Para nenhum deles existe o peri-go, nem sequer como remota possibilidade, de uma proximida-de da vida capaz de romper a forma dramtica: eis por que am-bos podem expandir-se a uma plenitude no-esquemtica, em-bora traada a priori.

    12 Em alemo, Aufhebung. Quando se trata do verbo aufheben, optou-se al-

    ternativamente por "superar" ou "suprimir".

    40

  • o problema da filosofia histrica das formas

    No drama moderno a vida no desaparece organicamente; ela pode, no mximo, ser banida de cena. Mas o banimento, le-vado a cabo pelos classicistas, implica o reconhecimento no apenas da existncia, mas tambm do poder daquilo que foi ba-nido: este se acha presente em cada palavra e em cada gesto, que se superam numa tenso angustiante para dele manter uma dis-tncia imaculada; ele que conduz, irnica e invisivelmente, o rigor rido e calculado da estrutura produzida pelo apriorismo abstrato, que o restringe ou o confunde, que o torna bvio ou abstruso. A ourra tragdia consome a vida. Ela pe em cena seus heris como homens vivos, em meio a uma massa circundante presa simplesmente vida, de modo a fazer com que, do rumul-to de uma ao onerada pelo peso da vida, resplandea pouco a pouco o claro destino; de modo a fazer com que, por meio de sua flama, tudo o que meramente humano reduza-se a cinzas, para que ento a vida nula dos simples homens dissipe-se na nulidade, mas as afeies dos hericos sejam calcinadas em pai-xes trgicas, e estas os retemperem em heris sem escrias. Com isso, o herosmo tornou-se polmico e problemtico; ser heri no mais a forma natural de existncia da esfera essencial; antes, o elevar-se acima do que simplesmente humano, seja da massa que o circunda ou dos prprios instintos. O problema hierrquico entre vida e essncia, que para o drama grego era um a priori formativo e por isso jamais chegou a ser objeto de representao, inserido assim no prprio processo trgico; ele cinde o drama em duas metades absolutamente heterogneas, unidas apenas pela negao e excluso recprocas, ou seja, de um modo polmico e - minando as prprias bases desse drama - intelectualista 13.

    13 Cf. "Posfcio", p. 208. O drama, por definio, " aquela obra escrita que,

    por meio de uma ocorrncia inter-humana, tenciona causar um efeito forte e ime-

    41

  • A teoria do romance

    E a amplitude do fundamento assim impingido e a extenso do caminho que o heri tem de percorrer dentro de sua prpria alma, antes de se descobrir como heri, colidem com a esbelteza re-querida pela forma da estrutura dramtica e a aproximam das formas picas, do mesmo modo que o acento polmico do he-rosmo (tambm na tragdia abstrata) tem como resultado ne-cessrio uma exorbitncia de lrica puramente lrica.

    Mas essa lrica possui tambm uma outra fonte, cuja ori-gem igualmente a relao deslocada entre vida e essncia. Para os gregos, a decadncia da vida como depositria do sentido ape-nas transferiu a proximidade e o parentesco mtuo das pessoas para uma outra atmosfera, mas no os destruiu: cada persona-gem que aparece est mesma distncia da essncia, do suporte universal, e portanto, em suas razes mais profundas, todos so aparentados uns aos outros; todos compreendem-se mutuamente, pois todos falam a mesma lngua, todos guardam uma confian-a mtua, ainda que como inimigos mortais, pois todos conver-gem do mesmo modo ao mesmo centro e se movem no mesmo plano de uma existncia que essencialmente a mesma. Se a es-sncia, no entanto, como no drama moderno, s capaz de re-velar-se e afirmar-se aps uma disputa hierrquica com a vida, se todo personagem carrega em si este conflito como pressupos-

    diato sobre uma massa reunida. [ ... ] A capacidade de apreenso e a disposio da

    massa exigem, tanto no que respeita forma quanto ao contedo, o que univer-

    sal pelos sentidos, ou melhor, excluem a simples universalidade intelecrual". G.

    Lukcs, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas [Histria do desenvolvimento

    do drama moderno], Darmstadt e Neuwied. Hermann Luchterhand, 1981, pp.

    17 ss. Sobre essa obra, citada de ora em diante como EmD, ver "Posfcio", p. 170.

    Como um dos erros crassos do drama moderno, o intelectualismo "confere aos acon-

    tecimentos tpicos uma forma pela qual estes dificilmente so assimilados pela

    massa" (EmD, p. 63).

    42

    J

  • o problema da filosofia histrica das formas

    to de sua existncia ou como elemento motriz de seu ser, ento cada uma das dramatis personae ter de se unir somente por seu prprio fio ao destino por ela engendrado; cada uma ter de nascer da solido e, na solido insupervel, em meio a outros solitrios, precipitar-se ao derradeiro e trgico isolamento; cada palavra tr-gica ter de dissipar-se incompreendida, e nenhum feito trgico poder encontrar uma ressonncia que o acolha adequadamen-te. Mas a solido algo paradoxalmente dramtico: ela a ver-dadeira essncia do trgico, pois a alma que se fez a si mesma destino pode ter irmos nas estrelas, mas jamais parceiros. A forma de expresso dramtica, porm - o dilogo -, pressupe um alto grau de comunho desses solitrios para manter-se polif-nica, verdadeiramente dialgica e dramtica. A linguagem do homem absolutamente solitrio lrica, monolgica; no dilogo, o incgnito de sua alma vem luz com demasiada fora e inun-da e oprime a univocidade e a acuidade do discurso. E essa soli-do mais profunda do que a requerida pela forma trgica, pela relao com o destino (na qual, alis, viveram tambm os heris gregos): ela prpria ter de tornar-se problemtica e, aprofun-dando e complicando o problema trgico, tomar-lhe o lugar. Essa solido no simplesmente a embriaguez da alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas tambm o tormento da criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade. Essa solido enseja novos problemas trgicos, o verdadeiro pro-blema da tragdia moderna: a confiana. A alma do novo heri, env~lta em vida mas plena de essncia, jamais poder compreen-der que sob o mesmo manto da vida no reside, forosamente, a mesma essencialiclade; ela sabe de uma igualdade de todos aqueles que se encontraram e incapaz de compreender que esse saber n procede deste mundo, que a certeza ntima desse saber no pode oferecer nenhum penhor de que ele seja constitutivo dessa vida; ela sabe da idia de seu eu que, movendo-a, nela vive, e por

    43

  • A teoria do romance

    isso tem de crer que a multido humana da vida a seu redor somente uma tumultuada festa carnavalesca na qual, primeira palavra da essncia, as mscaras tm de cair e irmos desconhe-cidos, abraar-se mutuamente. Ela sabe disso, anseia por isso e encontra a si mesma, sozinha, no destino. E no seu xtase de ter-se encontrado mistura-se, numa chave elegaca e acusatria, a tristeza do caminho que conduziu at ali: a decepo com a vida, que nem sequer foi uma caricatura daquilo que sua sabedoria do destino proclamou com to ntida clarividncia, e cuja crena lhe deu a fora para avanar solitria nas trevas. Tal solido no apenas dramtica, mas tambm psicolgica, pois no somente o apriorismo de todas as dramatis personae, mas ao mesmo tem-po a vivncia do homem que se torna heri; e se a psicologia no drama no deve permanecer como matria-prima no elabora-da, o seu nico meio de expresso a lrica da alma.

    A grande pica d forma totalidade extensiva da vida, o drama totalidade intensiva da essencialidade. Eis por que, quan-do a existncia perdeu sua totalidade espontaneamente integra-da e presente aos sentidos, o drama pde no obstante encon-trar em seu apriorismo formal um mundo talvez problemtico, mas ainda assim capaz de tudo conter e fechado em si mesmo. Para a grande pica isso impossvel. Para ela o dado presente do mundo um princpio ltimo; ela emprica em seu funda-mento transcendental decisivo e que tudo determina; ela pode s vezes acelerar a vida, pode conduzir algo oculto ou estiolado a um fim utpico que lhe imanente, mas jamais poder, a parti~ da forma, superar a amplitude e a profundidade, a perfeio e a sensibilidade, a riqueza e a ordem da vida historicamente dada. Toda a tentativa de uma pica verdadeiramente utpica est fa-dada ao fracasso, pois ter, subjetiva ou objetivamente, de ir alm da empiria, e portanto de transcender-se no lrico ou no dram-tico. E essa transcendncia jamais ser frutfera para a pica. Hou-

    44

  • o problema da filosofia histrica das formas

    ve tempos, talvez - esparsos contos de fada preservam fragmen-tos desses mundos desaparecidos -, nos quais aquilo que agora s se pode alcanar utopicamente encontrava-se presente em vi-sibilidade visionria; e os poetas picos desses tempos no tinham de abandonar a empiria para representar a realidade transcendente como a nica existente: podiam, de fato, ser simples narradores de acontecimentos, do mesmo modo que os criadores dos anti-gos seres alados assrios tinham-se - e com razo - por natu-ralistas. J em Homero, porm, o transcendente est indisso-luvelmente mesclado existncia terrena, e seu carter inimit-vel repousa justamente no absoluto xito em torn-lo imanente.

    Esse vnculo indissolvel com a existncia e o modo de ser da realidade, o limite decisivo entre pica e drama, um resulta-do necessrio do objeto da pica: a vida. Enquanto o conceito de essncia, pelo simples ato de ser posto, conduz transcendn-cia, mas ali se cristaliza num ser novo e superior - exprimindo assim, por sua forma, um ser do dever-ser 1 4 que, em sua realida-de oriunda da forma, permanece independente dos dados de con-tedo da simples existncia -, o conceito de vida exclui uma tal objetividade da transcendncia captada e condensada. Os mun-dos da essncia, por fora das formas, esto tensionados acima da existncia, e sua espcie e contedo so condicionados somente pelas potencialidades intrnsecas dessa fora. Os mundos da vida aqui permanecem, e so apenas acolhidos e configurados pelas formas, apenas conduzidos a seu sentido inato. E as formas, c' quais cumpre aqui desempenhar apenas o papel de Scrates no nascimento das idias, jamais podero por si mesmas, num pas-se de mgica, dar vida a algo que nelas j no se encontre. O carter criado pelo drama - este somente outro termo para a

    14 Em alemo. ein sollendes Sein.

    45

  • A teoria do romance

    mesma relao - o eu inteligvel do homem; o criado pela pica, o eu emprico. O dever-ser, em cuja desesperada intensi-dade busca refgio a essncia proscrita da Terra, pode objetivar-se no eu inteligvel como psicologia normativa do heri; no eu emprico, ele permanece um dever-ser. A sua fora meramente psicolgica, anloga a outros elementos da alma; o seu fim em-prico, anlogo a outras aspiraes possveis dadas pelo homem ou pelo seu ambiente; os seus contedos so histricos, anlo-gos aos demais contedos produzidos no curso do tempo, e no se pode arranc-los do solo em que cresceram: eles podem mur-char, mas jamais despertar para a nova existncia etrea. O de-ver-ser mata a vida, e o heri dramtico cinge-se dos atriburos simblicos da aparncia sensvel da vida somente para poder evi-denciar de maneira patente a cerimnia simblica da morte como revelao da transcendncia existente; mas os homens da pica tm de viver, sob pena de despedaarem ou estiolarem o elemento que os sustenta, circunda e preenche. (O dever-ser mata a vida, e todo o conceito exprime um dever-ser do objeto: por isso o pensamento jamais pode chegar a uma definio real da vida, e talvez por isso a filosofia da arte seja to mais adequada trag-dia do que pica.) O dever-ser mata a vida, e um heri da epo-pia construdo a partir de um ser do dever-ser no ser mais que uma sombra do homem vivo da realidade histrica - a sua som-bra, mas nunca o seu arqutipo, e o mundo que lhe dado como experincia e aventura no ser mais que um diludo molde do real, e jamais seu ncleo ou sua essncia. A estilizao utpica ~ pica s pode criar distncias, mas tambm essas distncias so entre empiria e empiria, e o recuo, com sua tristeza e sua altivez, somente transforma o tom em retrica e d sustento aos mais belos frutos de uma lrica elegaca, mas jamais ser possvel, com o mero distanciamento, despertar para a vida viva um contedo que ultrapasse a existncia e torn-lo uma realidade autnoma.

    46

  • o problema da filosofia histrica das formas

    Quer essa distncia aponte para o futuro ou o passado, quer in-dique uma ascenso ou um declnio em relao vida, ela jamais a criao de uma nova realidade, mas sempre um simples re-flexo subjetivo do j existente. Os heris de Virglio vivem uma fria e comedida existncia de sombra, alimentados pelo sangue de um belo fervor que se sacrificou para evocar o que se perdeu para sempre, e a monumentalidade de Zola restringe-se ao mo-ntono arrebatamento diante das mltiplas mas sinpticas ra-mificaes de um sistema sociolgico de categorias que se arro-ga apreender integralmente a vida de seu presente.

    H uma grande pica; o drama, no entanto, jamais carece desse atributo, e tem constantemente de precaver-se contra ele. Pois o cosmos do drama, transbordante de sua substncia e per-feito em substancialidade, ignora qualquer contraste entre todo e parte, qualquer contraposio entre caso e sintoma: para o dra-ma, existir significa ser cosmos, a apreenso da essncia, a posse de sua totalidade. O conceito de vida, contudo, no implica ne-cessariamente sua totalidade; a vida contm tanto a independncia relativa de cada ser vivo autnomo em relao a todo vnculo que aponta para mais alm, quanto a inevitabilidade e a imprescin-dibilidade igualmente relativas de tais vnculos. Eis por que pode haver formas picas cujo objeto no seja a totalidade da vida, po-rm um recorte, um fragmento de existncia capaz de vida pr-pria. Eis por que, no entanto, o conceito de totalidade para a pica no nasce das formas generativas, no transcendental como no dra~a, mas emprico-metafsico, e une indissoluvelmente em si transcendncia e imanncia. Isso porque na pica sujeito e obje-to no coincidem como no drama, no qual a subjetividade con-figuradora - sob a perspectiva da obra - apenas um concei-to-limite, uma espcie de conscincia em geral, mas esto pre-sentes e separados clara e nitidamente entre si na prpria obra; e como da empiricidade do objeto desejada pela forma resulta um

    47

  • A teoria do romance

    sujeito configurador emprico, este jamais pode ser o fundamento e o aval da totalidade do mundo em destaque. A totalidade pode manifestar-se com genuna evidncia somente a partir dos con-tedos do objeto: ela metassubjetiva, transcendente, uma re-velao e uma graa. O sujeito da pica sempre o homem em-prico da vida, mas sua presuno criadora e subjugadora da vida transforma-se, na grande pica, em humildade, em contempla-o, em admirao muda perante o sentido de clara fulgncia que se tornou visvel a ele, homem comum da existncia cotidiana, de modo to inesperadamente bvio.

    O sujeito das formas picas menores enfrenta seu objeto de maneira mais soberana e auto-suficiente. Ainda que o narrador - no se pode nem se deve dar aqui, nem sequer alusivamente, um sistema das formas picas - observe com o gesto frio e alti-vo do cronista as curiosas manobras do acaso, que revira os des-tinos dos homens de modo absurdo e destruidor para eles, reve-lador de abismos e prazeroso para ns; ainda que ele, comovido, eleve nica realidade um nfimo recanto do mundo, como se fora um jardim ordenadamente florescente, circundado pelos desertos caticos e ilimitados da vida; ainda que ele, cativo e ar-rebatado, cristalize a estranha e profunda experincia viva de um homem num destino rigidamente objetivado e formado, sempre a sua subjetividade que arranca um pedao da imensa infini-dade dos sucessos do mundo, empresta-lhe uma vida autnoma e permite que o todo do qual ele foi retirado fulgure no univer-so da obra apenas como sensao e pensamento dos personage~ apenas como o desfiar involuntrio de sries causais interrompi-das, apenas como espelhamento de uma realidade que existe por si mesma. A completude dessas formas picas, portanto, sub-jetiva: um fragmento de vida transposto pelo escritor num con-texto que o pe em relevo, o salienta e o destaca da totalidade da vida; e a seleo e a delimitao trazem estampado, na prpria

    48

  • o problema da filosofia histr ica das formas

    obra, o selo de sua origem na vontade e no conhecimento do sujeito: elas so, em maior ou menor medida, de natureza lrica. A relatividade da independncia e da vinculao dos seres vivos, bem como de suas associaes - de orientao interna orgni-ca - igualmente vivas, pode ser superada e alada forma se uma postulao consciente do sujeito criador da obra puser em evi-dncia um sentido de brilho imanente na existncia isolada jus-tamente desse fragmento de vida. O ato pelo qual o sujeito con-fere forma, configurao e limite, essa soberania na criao do-minante do objeto, a lrica das formas picas sem totalidade. Essa lrica aqui a unidade pica ltima; no ela a volpia de um eu solitrio na contemplao de si mesmo livre de objetos, no a dissoluo do objeto em sensaes e estados de nimo, mas antes, nascida da norma e criadora de formas, ela sustenta a existncia de tudo quanto foi configurado. Ora, com a relevn-cia e a gravidade do recorte da vida, o mpeto torrencial imedia-to dessa lrica ter de crescer; o equilbrio da obra aquele entre o sujeito que postula e o objeto por ele destacado e salientado. Na novela, na forma da singularidade e questionabilidade isola-das da vida, essa lrica tem ainda de esconder-se inteiramente por trs das linhas rgidas do acontecimento isoladamente burilado; aqui a lrica ainda pura seleo: o arbtrio gritante do acaso benfazejo e aniquilador, mas que se abate sempre sem motivo, s pode ser contrabalanado por uma apreenso clara, sem co-mentrios, puramente objetiva. A novela a forma mais pura-men~e artstica: o sentido ltimo de todo formar artstico por ela expresso como estado de nimo, como sentido do contedo da configurao, se bem que, por esse mesmo motivo, o faa abs-tratamente. Na medida em que a falta de sentido vislumbrada em sua nudez desvelada e sem disfarces, o poder conjurador desse olhar intrpido e desconsolado confere-lhe o sacramento da for-ma; a falta de sentido, como falta de sentido, torna-se forma: afir-

    49

  • A teoria do romance

    mada, superada e redimida pela forma, ela passa a ser eterna. Entre a novela e as formas lrico-picas h um salto. To logo o que se eleva a sentido pela forma seja significativo tambm em seu con-tedo, ainda que apenas relativamente, o sujeito emudecido ter de bater-se por palavras prprias que, a partir do sentido relati-vo do acontecimento configurado, construam uma ponte rumo ao absoluto. No idlio, essa lrica ainda se funde quase totalmente com os contornos dos homens e das coisas; ela prpria que em-presta a esses contornos a brandura e a vaporosidade da pacfica recluso, o venturoso isolamento diante de tempestades que de-sabam no mundo exterior. Apenas quando o idlio transcende-se em epopia, como nos "grandes idlios" de Goethe e Hebbel, nos quais a totalidade da vida, com todos os seus perigos, ainda que abafados e atenuados por vastas distncias, penetra nos pr-prios acontecimentos, que a voz do prprio escritor tem de soar, que sua mo tem de criar distncias salutares, para que nem a fe-licidade triunfante de seus heris torne-se a complacncia indigna dos que covardemente voltam as costas ante a excessiva iminncia de uma calamidade no superada, mas simplesmente removida para eles, nem os perigos e o abalo da totalidade da vida que lhes d causa tornem-se plidas quimeras, rebaixando o jbilo da sal-vao a uma farsa banaP5. E essa lrica aflora num enunciado universal claro e amplamente fluente quando o acontecimento, em sua materialidade epicamente objetivada, torna-se o porta-

    15 "[ . . . ] o sentimento vital da maioria dos autores id!icos muito fraco para

    suportar o espetculo de um perigo real; seus belos universos da ventura serena so

    uma fuga dos perigos da vida, e no uma apario mgica dessa serenidade em meio

    a sua brutal dureza." G. Lukcs, Die See!e und die Formen: Essays [A alma e as for-

    mas], Neuwied e Berlim, Hermann Luchterhand, 1971, p. 148. Sobre essa obra,

    de ora em diante citada como SuF, ver "Posfcio", p. 165.

    50

  • o problema da filosofia histrica das formas

    dor e o smbolo de um sentimento infinito; quando uma alma o heri e a sua aspirao, o enredo - certa vez, ao falar de eh.-L. Philippe, chamei essa forma chantefoble16 -; quando o obje-to, o evento configurado, permanece e deve permanecer algo iso-lado, mas quando na experincia que assimila e irradia o acon-tecimento est depositado o significado ltimo de toda a vida, o poder do artista de conferir-lhe sentido e subjug-la. Mas tambm esse poder lrico: a personalidade do artista, ciosa de sua sobe-rania, que faz ressoar a prpria interpretao do sentido do mundo - manejando os acontecimentos como instrumentos -, sem espreitar-lhes o sentido como guardies da palavra secreta; no a totalidade da vida que recebe forma, mas a relao com essa totalidade da vida, a atitude aprobatria ou reprovadora do ar-tista, que sobe ao palco da configurao como sujeito emprico, em toda a sua grandeza, mas tambm em toda a sua limitao de criatura.

    E nem sequer a aniquilao do objeto pelo sujeito, conver-tido em senhor absoluto do ser, capaz de extrair de si a totali-

    16 Cf. SuF, p. 151. O trecho bastante prximo Teoria do romance: "Sem-

    pre houve composies literrias s quais faltava a vontade de criar uma imagem

    do mundo prpria grande pica, cuja ao, por vezes, dificilmente era a de uma

    novela, mas que saam dos quadros do caso isolado da novela e, a partir do senti-

    mento de uma alma, obtinham uma outra fora, que tudo abarcava. Nelas, o he-

    ri era'somente uma alma, e a ao, somente a sua aspirao, sendo que ambas,

    alma e aspirao, tornavam-se heri e ao. Tais composies so chamadas, na

    maioria das vezes, romances lricos - prefiro a designao da Idade Mdia: chan-

    tefoble -, mas correspondem plenamente ao verdadeiro, ao mais amplo e mais

    profundo conceito de idlio - com um bvio pendor para a elegia". Os exemplos

    de chantefoble citados de passagem so: Amor e Psique, Auca.ssin (Nicolette, Vita

    nuova, Manon Lescaut, Werther, o Hyperion e a /sabe!la de Keats - alm , claro,

    das obras de Charles-Louis Philippe (1874- I 909).

    51

  • A teoria do romance

    dade da vida, que, segundo a definio, extensiva; por mais que se eleve acima de seus objetos, so sempre meros objetos isola-dos que o sujeito adquire dessa maneira como posse soberana, e tal soma jamais resultar numa verdadeira totalidade. Pois tam-bm esse sujeito sublime-humorstico permanece emprico, e sua atividade configuradora permanece uma tomada de posio dian-te de seus objetos, cuja essncia, no entanto, anloga sua; e o crculo que ele traa ao redor daquilo que seleciona e circunscreve como mundo indica somente o limite do sujeito, e no o de um cosmos de algum modo completo em si prprio. A alma do hu-morista vida de uma substancialidade mais genuna do que a vida lhe poderia oferecer; por isso ele despedaa todas as formas e os limites da quebradia totalidade da vida, a fim de atingir a nica fonte verdadeira da vida, o eu puro e dominador do mun-do. Mas com o colapso do mundo objetivo, tambm o sujeito torna-se um fragmento; somente o eu permanece existente, em-bora tambm sua existncia dilua-se na insubstancialidade do mundo em runas criado por ele prprio. Essa subjetividade a tudo quer dar forma, e justamente por isso consegue espelhar apenas um recorte.

    Esse o paradoxo da subjetividade da grande pica, o seu "quem perde ganha": toda subjetividade criadora torna-se lrica, e apenas a meramente assimilativa, que com humildade transfor-ma-se em puro rgo receptivo do mundo, pode ter parte na graa - na revelao do todo. Esse o salto da Vita nuova para a Divina comdia, do Werther para o Wlhelm Mester, esse o salt~ecurado por Cervantes, que, calando a si prprio, deixa soar o humor universal do Dom Quixote, ao passo que as vozes magni-ficamente sonoras de Sterne e Jean Paul oferecem meros reflexos subjetivos de um fragmento de mundo meramente subjetivo, e portanto limitado, estreito e arbitrrio. Isso no um juzo de valor, mas um a priori determinante dos gneros: o todo da vida

    52

  • o problema da filosofia histrica das formas

    no permite nela indicar um centro transcendental e no tolera que uma de suas clulas arvore-se em sua dominadora. Somente quando um sujeito, afastado de toda vida e de sua empiria neces-sariamente implicada, entroniza-se nas alturas puras da essencia-lidade, quando no mais que um depositrio da sntese transcen-dental, pode ele abrigar em sua estrutura todas as condies da totalidade e transformar seus limites em limites do mundo. Mas na pica no pode haver um tal sujeito: pica vida, imanncia, empiria, e o Paraso de Dante guarda uma afinidade mais essen-cial com a vida que a opulncia exuberante de Shakespeare.

    O poder sinttico da esfera da essncia condensa-se na to-talidade construtiva do problema dramtico: aquilo que defi-nido como necessrio pelo problema, seja alma ou acontecimento, ganha existncia por suas relaes com o centro; a dialtica ima-nente dessa unidade empresta a cada fenmeno isolado a exis-tncia que lhe cabe, de acordo com a distncia em relao ao centro e com seu peso relativamente ao problema. O problema aqui inexprimvel porque a idia concreta do todo, porque apenas a consonncia de todas as vozes capaz de realar a ri-queza de contedo nele oculta. Para a vida, contudo, o proble-ma uma abstrao; a relao entre um personagem e um pro-blema nunca capaz de assimilar em si toda a plenitude de sua vida, e todo acontecimento da esfera vital tem de proceder ale-goricamente no tocante ao problema. A arte elevada de Goethe nas Afinidades eletivas, com razo chamada por Hebbel de "dra-mtica"l?, perfeitamente capaz de tudo matizar e ponderar em

    17 Ver F. Hebbel, "Prefcio" a Maria Magdalene, in Samt!iche Werke. His-

    torisch-kritische Ausgabe (Sakular-Ausgabe), vol. II. Leipzig, 1904,2' se.o, pp. 41 SS.

    53

  • A teoria do romance

    funo do problema central, mas mesmo as almas, guiadas de antemo para os estreitos canais do problema, no podem gozar aqui de uma verdadeira existncia; mesmo a ao, reduzida s dimenses do problema, no se integra numa totalidade; a fim de preencher o casulo graciosamente delgado desse pequeno mun-do, o escritor se v forado a inserir elementos estranhos, e ain-da que isso sempre fosse to bem-sucedido quanto em momen-tos esparsos de extremo tato no arranjo, disso jamais resultaria uma totalidade. E a concentrao "dramtica" do Canto dos nbe-lungos1 8 um belo erro de Hebbel, um erro pro domo: o deses-perado esforo de um grande escritor para salvar a unidade pi-ca de um assunto verdadeiramente pico - unidade esta que se desintegra num mundo modificado. A figura sobre-humana de Brunhild j se reduz a uma mistura de mulher e valquria, rebai-xando seu fraco pretendente Gunther a uma insustentvel ques-tionabilidade, e de Siegfried, o matador de drages, subsistem na sua figura cavaleiresca somente alguns temas do conto de fadas. Aqui sem dvida a salvao o problema da fidelidade e da vin-gana, de Hagen e Kriemhild. Mas trata-se de uma tentativa de-sesperada, puramente artstica, de produzir pelos meios da com-posio, com organizao e estrutura, uma unidade que no mais dada de maneira espontnea. Uma tentativa desesperada e um fracasso herico. Pois uma unidade pode perfeitamente vir tona, mas nunca uma verdadeira totalidade. Na ao da Ilada - sem comeo e sem fim - floresce um cosmos fechado numa vida que tudo abarca; a unidade claramente composta dO--C4nto dos nibelungos oculta vida e decomposio, castelos e runas por trs de sua fachada engenhosamente articulada.

    18 Os nibelungos: um drama alemo em trs partes (1862) .

    54

    si

  • L

    Epopia e romance

    3. Epopia e romance

    Epopia e romance, ambas as objetivaes da grande pi-ca, no diferem pelas intenes configuradoras, mas pelos dados histrico-filosficos com que se deparam para a configurao. O romance a epopia de uma era para a qual a totalidade extensi-va da vida no mais dada de modo evidente, para a qual a ima-nncia do sentido vida tornou-se problemtica, mas que ainda assim tem por inteno a totalidade19. Seria superficial e algo meramente artstico buscar as caractersticas nicas e decisivas da definio dos gneros no verso e na prosa. Tanto para a pica quanto para a tragdia o verso no um constituinte ltimo, mas antes um sintoma profundo, um divisor de guas que lhes traz luz a verdadeira essncia da maneira mais autntica e apropria-da. O verso trgico duro e cortante, isola e cria distncias. Ele reveste os heris com toda a profundidade de sua solido oriun-da da forma, no permite surgir entre eles outras relaes que no as de luta e aniquilao; em sua lrica podem ressoar o desespero e a embriaguez do caminho e do fim, pode brilhar o carter in-comensurvel do abismo sobre o qual oscila essa essencialidade, mas jamais irromper - como por vezes a prosa o permite-um trato puramente humano e psicolgico entre os personagens, jamais o desespero se tornar elegia e a embriaguez, aspirao por

    19 Embora clebre, a frase em que Hegel concebe o romance como epopia

    burguesa (cf. G. W. F. Hegel, Vorlesungen ber die Aesthetik [Prelees sobre a es-

    ttica], vol. III, Jubilaumsausgabe, Stuttgart, 1964, p. 395) tem seus anteceden-

    tes. Pelo menos desde Blankenburg, o romance tomado como o herdeiro da antiga

    epopia: "Considero o romance, o bom romance, como aquilo que, nos tempos

    helnicos, a epopia era para os gregos". F. Blankenburg, Vermch ba dtn Roman

    [Ensaio sobre o romance], Faksimiledruck der Originalausgabevon 1774, Stuttgart,

    J. B. Metzler, 1965, p. XIII.

    55

  • A teoria do romance

    suas prprias alturas, jamais a alma poder tentar sondar o seu abismo com vaidade psicolgica e admirar-se com complacn-cia no espelho da prpria profundidade. O verso dramtico -assim aproximadamente escreveu Schiller a Goethe20 - desmas-cara toda a trivialidade da inveno trgica; ele possui uma acui-dade e um peso especificos, ante os quais nada do que se prende meramente vida - somente uma outra expresso para o dra-maticamente trivial- pode sobreviver: a inteno trivial ter de chocar-se no contraste de pesos entre linguagem e contedo. Tambm o verso pico cria distncias, mas distncias na esfera da vida significam uma felicidade e uma leveza, um afrouxamento dos laos que ligam indignamente homens e coisas, uma supe-rao daquela apatia e opresso que impregnam a vida tomada por si mesma, que so dissipadas somente em alguns instantes felizes - e estes, justamente, devem converter-se em plano da vida pelo distanciamento do verso pico. Aqui, portanto, o efei-to do verso o oposto, precisamente porque suas conseqncias imediatas so as mesmas: supresso da trivialidade e aproxima-o prpria essncia. Pois o trivial, para a esfera da vida, para a pica, o peso, assim como era a leveza para a tragdia. A garan-tia objetiva de que o completo afastamento de tudo quanto se prende vida no uma abstrao vazia em relao vida, mas uma presentificao da essncia, pode residir apenas na densidade de que so dotadas essas configuraes afastadas da vida; apenas quando o seu ser, para alm de toda comparao com a vida, torna-se mais pleno, mais integrado e mais grave do q~sa

    20 Ver, por exemplo, a carta de 24/1111797: "Pelo menos a princpio dever-

    se-ia realmente conceber em versos rudo o que rem de erguer-se acima do comum,

    pois o rrivial em parte alguma assim vem luz, a no ser quando expresso em esri-

    lo concatenado". Goethe/Schiller, Briefoechsel, Frankfurt/M., Fischer, 1961, p. 257.

    56

  • Epopia e romance

    desej-lo qualquer aspirao plenitude, surge em evidncia tan-gvel que a estilizao trgica est consumada; e toda leveza ou palor, que sem dvida nada tm a ver com o conceito vulgar de falta de vivacidade, revela que a inteno normativamente trgi-ca no estava presente - revela, apesar de todo o requinte psi-colgico e apuro lrico dos detalhes, a trivialidade da obra.

    Mas para a vida o peso significa a ausncia do sentido pre-sente, o enleio inextricvel em sries causais vazias de sentido, o estiolamento na infrutfera proximidade da terra e distncia do cu, a forosa perseverana e a incapacidade de livrar-se dos gri-lhes da mera materialidade brutal- tudo o que, para as me-lhores foras imanentes da vida, o alvo constante de superao; ou, expresso no conceito axiolgico da forma: a trivialidade. A feliz totalidade existente da vida est subordinada ao verso pico segundo uma harmonia preestabelecida: o prprio processo pr-literrio de uma abrangncia mitolgica de toda a vida purificou a existncia de qualquer fardo trivial, e nos versos de Homero, os botes dessa primavera j prestes a florescer no fazem -mais que desabrochar. O verso, porm, s pode dar um ligeiro impulso a essa florao e cingir com a guirlanda da liberdade somente o que se desprendeu de todas as peias. Se a atividade do escritor uma exumao do sentido soterrado, se seus heris tm primei-ro de romper seu crcere e conquistar a almejada ptria de seus sonhos, livre do fardo terrestre, custa de duros combates ou em penosas peregrinaes, ento o poder do verso no basta para transfotmar essa distncia - cobrindo o abismo com um tapete de flores - em caminho transitvel. Pois a leveza da grande pica apenas a utopia concretamente imanente da hora histrica, e o xtase formador que o verso empresta a tudo quanto carrega ter ento de roubar pica sua totalidade e sua grande ausncia de sujeito, transformando-a num idlio ou num jogo lrico. Isso porque a leveza da grande pica s um valor e uma fora cria-

    57

  • A teoria do romance

    dora de realidade por meio de um efetivo rompimento dos gri-lhes que a prendem ao solo. O esquecimento da escravido nos belos jogos de uma fantasia alforriada ou na serena fuga rumo a ilhas afortunadas, no localizveis no mapa-mndi dos vnculos triviais, jamais poder levar grande pica. Nos tempos em que essa leveza no mais dada, o verso banido da grande pica ou transforma-se, inopinada e inadvertidamente, em verso lrico. Somente a prosa pode ento abraar com igual vigor as lamrias e os lauris, o combate e a coroao, o caminho e a consagrao; somente sua desenvolta ductibilidade e sua coeso livre de rit-mo captam com igual fora os liames e a liberdade, o peso dado e a leveza conquistada ao mundo, que passa ento a irradiar com imanncia o sentido descoberto. No por acaso que o esfacela-mento da realidade convertida em canto na prosa de Cervantes resultou na leveza contrita da grande pica, enquanto a dana jovial do verso de Ariosto permaneceu um jogo, uma lrica; no por acaso que o poeta pico Goethe moldou em versos seus idlios e elegeu a prosa para a totalidade do ciclo romanesco do Meister. No mundo da distncia, todo o verso pico torna-se lrica - os versos de Dom Juan e Oniguin pertencem companhia dos grandes humoristas -, pois, no verso, tudo o que est oculto torna-se manifesto, e a distncia, que o passo cauteloso da prosa transpe com arte por meio do sentido que se insinua pouco a pouco, vem a lume em toda a sua nudez, escarnecida, espezinhada ou como sonho esquecido na rpida carreira dos versos.

    Tampouco os versos de Dante so lricos, embora mais lri-cos que os de Homero: eles condensam e unificam ~m de balada21 em epopia. A imanncia do sentido vida , para o

    21 O termo "balada", na obra do jovem Lukcs, sempre pende para o lado

    da epopia, como se o gnero fosse parte inregrante de uma unidade pica maior,

    58

  • Epopia e romance

    mundo de Dante, atual e presente, mas no alm: ela a perfeita imanncia do transcendente. A distncia no mundo cotidiano da vida cresceu at tornar-se insupervel, mas, para alm deste mun-do, todo o errante encontra sua ptria que o aguarda desde a eternidade; toda a voz que aqui desvanece solitariamente l aguardada com o coro que lhe assimila as vibraes, integra-a harmonia e torna-se harmonia por meio dela. O mundo das dis-tncias estende-se em aglomerados caticos sob a radiante rosa celeste do sentido tornado manifesto e a todo momento vis-vel sem seus vus. Cada habitante da ptria no alm dela natu-ral, todos lhe esto vinculados pelo poder incorruptvel do des-tino, mas cada qual a reconhece e a vislumbra em seu peso e em sua fragmentariedade somente ao fim do caminho tornado sig-nificativo; todo personagem canta-lhe o destino nico, o acon-tecimento isolado no qual se manifesta a parcela que cabe a ela: uma balada. E da mesma maneira que a totalidade da estrutura transcendental do mundo um a priori predeterminado, abran-gente e doador de sentido para todo o destino individual, assim tambm a inteleco progressiva desse edifcio, de sua estrutura e de sua beleza - a grande experincia do peregrino Dante -tudo envolve na unidade de seu sentido agora revelado: o conhe-cimento de Dante transforma o individual em parte integrante do todo, as baladas em cantos de uma epopia. Mas apenas no alm que o sentido desse mundo tornou-se imediatamente vis-

    da qual ele capaz de figurar como fragmento. Num trecho sobre as novelas de

    Storm, comenta-se: "[" .] cada homem e cada acontecimento somente parte de

    uma sinfonia que ressoa diretamente - talvez de modo invol untrio, mas por certo

    inexprirnido - do conjunto dos homens e acontecimenros; como se toda a coisa

    singular fosse apenas uma balada ou um fragmento de balada, um elemento da-

    quela matria de que um dia nascer uma grande epopia [_ .. ]" (SuF, p. 97). Ver

    tambm SuF, p. 112.

    59

    I, 1

    I,

  • A teoria do romance

    vel e imanente. Nesse mundo a totalidade fragmentria ou al-mejada, e os versos de Wolfram ou Gonfried no passam do or-nato lrico de seus romances, e o carter de balada do Canto dos nibelungoss pode ser encoberto mediante a composio, mas no integrado numa totalidade que englobe o universo.

    A epopia d forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida. A estrutura dada do objeto - a bus-ca apenas a expresso, da perspectiva do sujeito, de que tanto a totalidade objetiva da vida quanto sua relao com os sujeitos nada tm em si de espontanemente harmonioso - aponta para a inteno da configurao: todos os abismos e fissuras ineren-tes situao histrica tm de ser incorporados configurao e no podem nem devem ser encobertos por meios composicionais. Assim, a inteno fundamental determinante da forma do roman-ce objetiva-se como psicologia dos heris romanescos: eles bus-cam algo. O simples fato da busca revela que nem os objetivos nem os caminhos podem ser dados imediatamente ou que, se forem dados de modo psicologicamente imediato e consistente, isso no constitui juzo evidente de contextos verdadeiramente existentes ou de necessidades ticas, mas s um fato psicolgico sem correspondente necessrio no mundo dos objetos ou no das normas. Em outras palavras: pode tratar-se de crime ou loucura, e os limites que separam o crime do herosmo aclamado, a lou-cura da sabedoria que domina a vida, so fronteiras lbeis, me-ramente psicolgicas, ainda que o final alcanado se destaque da realidade cotidiana com a terrvel clareza do erro irr'eparvel que se tornou evidente. Epopia e tragdia no conhecem, nesse sen-tido, nem o crime nem a loucura. O que chamado de crime pelo uso costumeiro dos conceitos para elas absolutamente ine-xistente ou nada mais que o ponto luminoso fixado simbolica-mente e percebido distncia pelos sentidos, onde se torna vis-

    60

  • Epopia e romance

    vel a relao da alma com seu destino, o veculo de sua nostalgia metafsica pela ptria. A epopia ou o puro mundo infantil, no qual a transgresso de normas firmemente aceitas acarreta por fora uma vingana, que por sua vez tem de ser vingada, e assim ao infinito, ou ento a perfeita teodicia, na qual crime e casti-go possuem pesos iguais e homogneos na balana do juzo uni-versal. E na tragdia, o crime um nada ou um smbolo; um sim-ples elemento da ao, exigido e determinado por requerimen-tos tcnicos, ou o rompimento das formas situadas aqum da essncia, a porta pela qual a alma ingressa em si mesma. A lou-cura inteiramente ignorada pela epopia, exceto quando se trata de uma linguagem universalmente incompreensvel de um mun-do sobrenatural, que s assim se torna manifesto; na tragdia no-problemtica ela pode ser a expresso simblica para o fim, equi-valente morte fsica ou ao estupor da alma consumida no fogo essencial de sua individualidade. Pois crime e loucura so a ob-jetivao do desterro transcendental - o desterro de uma ao na ordem humana dos contextos sociais e o desterro de uma alma na ordem do dever-ser do sistema suprapessoal de valores. Toda a forma a resoluo de uma dissonncia fundamental da existn-cia, um mundo onde o contra-senso parece reconduzido a seu lugar correto, como portador, como condio necessria do sen-tido. Se portanto numa forma o cmulo do contra-senso, o de-saguar no vazio de profundos e autnticos anseios humanos ou a possibilidade de uma nulidade ltima do homem, tem de ser acolhido como fato condutor, se aquilo que em si um contra-senso tem de ser explicado e analisado, e em decorrncia inape-lavelmente reconhecido como existente, ento possvel que nessa forma certas correntes desemboquem no mar da satisfa022 ,

    22 Em alemo, ErfoLLung.

    61

  • A teoria do romance

    embora o desaparecimento dos objetivos evidentes e a desorien-tao decisiva de toda a vida tenham de ser postos como funda-mento do edifcio, como a priori constitutivo de todos os perso-nagens e acontecimentos.

    Quando objetivo algum dado de modo imediato, as es-truturas com que a alma se defronta no processo de sua huma-nizao como cenrio e substrato de sua atividade entre os ho-mens perdem seu enraizamento evidente em necessidades supra-pessoais do dever-ser; elas simplesmente existem, talvez podero-sas, talvez carcomidas, mas no portam em si a consagrao do absoluto nem so os recipientes naturais da interioridade trans-bordante da alma. Constituem elas o mundo da conveno, um mundo de cuja onipotncia esquiva-se apenas o mais recndito da alma; um mundo presente por toda a parte em sua opaca multiplicidade e cuja estrita legalidade, tanto no devir quanto no ser, impe-se como evidncia necessria ao sujeito cognitivo, mas que, a despeito de toda essa regularidade, no se oferece como sentido para o sujeito em busca de objetivo nem como matria imediatamente sensvel para o sujeito que age. Ele uma segunda natureza; assim como a primeira, s definvel como a sntese das necessidades conhecidas e alheias aos sentidos, sendo portanto impenetrvel e inapreensvel em sua verdadeira substncia. Para a composio literria, porm, apenas a substncia tem existn-cia, e apenas substncias intrinsecamente homogneas entre si podem envolver-se na vinculao antagnica das mtuas relaes composicionais. A lrica pode ignorar a fenomen~ao da pri-meira natureza e criar uma mitologia proteiforme da subjetivi-dade substancial a partir da fora constitutiva dessa ignorncia: para ela s h o grande instante e, nele, a unidade significativa entre alma e natureza, ou seu divrcio significativo, a solido necessria e afirmada pela alma, torna-se eterna; arrebata.da durao que flui indiscriminadamente, destacada da multiplici-

    62

  • Epopia e romance

    dade turvamente condicionada das coisas, a mais pura interiori-dade da alma cristaliza-se em substncia no instante lrico e, impe-lida por dentro, a natureza alheia e irreconhecvel aglutina-se em smbolo mais e mais radiante. Mas tal relao entre alma e natu-reza s pode ser produzida nos instantes lricos. Do contrrio a natureza transforma-se, graas a essa sua distncia do sentido, numa espcie de pitoresco cafarnaum de smbolos sensveis para a composio literria, que parece estar fixa numa mobilidade enfeitiada e que s pode ser aplacada num repouso significati-vamente mvel pela palavra mgica da lrica. Pois tais instantes so constitutivos e determinantes da forma apenas para a lrica; apenas na lrica esse lampejo repentino da substncia torna-se a sbita decifrao de manuscritos desaparecidos; apenas na lrica o sujeito que porta essa experincia torna-se o depositrio exclu- , sivo do sentido, a nica realidade verdadeira. O drama se desen-rola numa esfera situada alm dessa realidade, e nas formas pi-cas a experincia subjetiva permanece no sujeito: torna-se esta-do de nimo. E a natureza - despida de sua vida prpria estra-nha ao sentido tanto quanto de seu simbolismo pleno de sentido - torna-se um pano de fundo, um cenrio, uma voz de acom-panhamento: ela perde sua independncia e somente a projeo da essncia apreensvel pelos sentidos, a projeo da interioridade.

    A segunda natureza das estruturas do homem no possui nenhuma substancialidade lrica: suas formas so por demais r-gidas para se ajustarem ao instante criador de smbolos; o con-tedo sedimentado de suas leis por demais determinado para jamais poder abandonar os elementos que, na lrica, tm de se tornar motivos ensasticos23; tais elementos, contudo, vivem to

    23 A relao entre ensaio e literatura esmiuada no ensaio que abre A alma

    e as formas, "Sobre a essncia e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper". Quando

    63

  • A teoria do romance

    exclusivamente merc das leis, so a tal ponto desprovidos de qualquer valncia sensvel de existncia independente de tais leis que, sem estas, inevitvel que eles sucumbam ao nada. Essa na-tureza no muda, manifesta e alheia aos sentidos como a pri-meira: um complexo de sentido petrificado que se tornou es-tranho, j de todo incapaz de despertar a interioridade; um ossurio de interioridades putrefatas, e por isso s seria reanimada - se tal fosse possvel- pelo ato metafsico de uma ressurrei-o do anmico que ela, em sua existncia anterior ou de dever-ser, criou ou preservou, mas jamais seria reavivada por uma ou-tra interioridade. Ela por demais familiar s aspiraes da alma para ser tratada como simples matria-prima dos estados de ni-mo, e no entanto por demais alheia para lhe ser a expresso ade-quada. O alheamento da natureza em face da primeira nature-za, a postura sentimental moderna ante a natureza, somente a projeo da experincia de que o mundo circundante criado para

    bem lograda, a forma literria geralmente tem sucesso em abraar a massa catica

    do mundo numa totalidade integrada. Ora, existem precisamente "eXperincias para

    cuja expresso at o gesto mais simples e comedido seria demais - e ao mesmo

    tempo de menos; h questes cuja voz soa to baixa que, para elas, o som do acon-

    tecimento mais cavo seria um rudo grosseiro, e no msica de acompanhamento;

    h relaes definidas pelo destino que so em si to exclusivamente relaes do

    destino que todo o elemento humano somente lhes perturbaria a pureza e altivez

    abstratas" (SuF, pp. 14 ss.). A literatura, e a lrica em especf~ encontra-se one-

    rada por um gravame sensvel que cabe ao ensaio remediar, ao tomar as prprias

    formas como seu contedo: "O crtico aquele [ ... ] cuja experincia mais forre

    esse conredo anmico que as formas ocultam indireta e inconscientemenre em si.

    A forma sua grande experincia, ela possui, corno realidade imediata, fora de

    imagem, o elemento realmente vivo em seus escritos" (SuF, p. 16). Ver tambm,

    de Adorno, "Der Essay als Form" [O ensaio corno forma], in Th. W. Adomo, Noten

    zur Literatur I [Notas sobre literatura], Frankfurt/M., Suhrkamp, 1980, pp_ 9-49.

    64

  • Epopia e romance

    os homens por si mesmos no mais o lar paterno, mas um cr-cere. Enquanto as estruturas construdas pelo homem para o homem lhe so verdadeiramente adequadas, so elas a sua ptria inata e necessria; nenhuma aspirao pode nele surgir que po-nha e experimente a natureza como objeto de busca e descober-ta. A primeira natureza, a natureza como conformidade a leis para o puro conhecimento e a natureza como o que traz consolo para o puro sentimento, no outra coisa seno a objetivao hist-rico-filosfica da alienao do homem em relao s suas estru-turas. Quando o anmico das estruturas j no pode tornar-se di-retamente alma, quando as estruturas j no aparecem apenas como a aglutinao e a cristalizao de interioridades que podem, a todo instante, ser reconvertidas em alma, elas tm de obter sobre os homens um poder soberano irrestrito, cego e sem excees para conseguir subsistir. E os homens denominam "leis" o conheci-mento do poder que os escraviza, e o desconsolo perante a oni-potncia e a universalidade desse poder converte-se, para o co-nhecimento conceituaI da lei, em lgica sublime e suprema de uma necessidade eterna, imutvel e fora do alcance humano. A natureza das leis e a natureza dos estados de nimo so provenien-tes do mesmo locus na alma: pressupem elas a impossibilidade de uma substncia consumada e significativa, a impossibilidade de o sujeito constitutivo encontrar um objeto constitutivo ade-quado. Na experincia da natureza, o sujeito apenas real24 dis-solve todo o mundo exterior em estado de nimo e torna-se ele prprio estado de nimo, pela inexorvel identidade de essncia do sujeito contemplativo com seu objeto; e a pura vontade de

    24 Em contraposio ao sujeito normativo da lrica, que "pode ignorar a

    fenomenalizao da primeira natureza e criar uma mitologia pIOteiforme da sub-

    jetividade substancial a partir da fora constitutiva dessa ignorincia" (p . (2).

    65

    II

    III

    1\1

    I

    I

    I

  • A teoria do romance

    conhecer um mundo depurado pela vontade e pelo desejo trans-forma o sujeito numa sntese a-subjetiva, construtiva e construda de funes cognitivas. Isso inevitvel. Pois o sujeito constitu-tivo s quando age a partir de dentro, apenas e to-somente o sujeito tico; ele logra esquivar-se lei e ao estado de nimo so-mente quando o palco de seus atos, o objeto normativo de sua ao, formado com a matria da pura tica: quando direito e costumes so idnticos eticidade25, quando no preciso in-troduzir mais nimo nas estruturas, a fim de por elas chegar ao ato, do que delas pode ser resgatado pela prpria ao. A alma de um tal mundo no busca conhecer leis, pois a prpria alma a lei do homem, e em cada matria de sua provao ele vislum-brar a mesma face da mesma alma. E lhe pareceria um jogo ftil e suprfluo superar o alheamento do ambiente no-humano pela fora do sujeito em despertar estados de nimo: o mundo humano em questo aquele onde a alma, como homem, deus ou dem-nio, est em casa; nele encontra a alma tudo de que carece, sem que precise criar ou avivar nada por si prpria, pois a sua existncia est abundantemente repleta com o descobrir, compilar e formar aquilo que lhe dado imediatamente como congenial alma.

    O indivduo pico, o heri do romance, nasce desse alhea-mento em face do mundo exterior. Enquanto o mundo intrin-secamente homogneo, os homens tambm no diferem quali-tativamente entre si: claro que h heris e viles, justos e crimi-nosos, mas o maior dos heris ergue-se somente um palmo aci-ma da multido de seus pares, e as palavras solenes dos mais s-bios so ouvidas at mesmo pelos mais tolos. A vida prpria da interioridade s possvel e necessria, ento, quando a dispa-

    25 Em alemo, Sittlichkeit.

    66

  • Epopia e roma nce

    ridade entre os homens tornou-se um abismo intransponvel; quando os deuses se calam e nem o sacrifcio nem o xtase so capazes de puxar pela lngua de seus mistrios; quando o mun-do das aes desprende-se dos homens e, por essa independn-cia, torna-se oco e incapaz de assimilar em si o verdadeiro senti-do das aes, incapaz de tornar-se um smbolo atravs delas e dissolv-las em smbolos; quando a interioridade e a aventura esto para sempre divorciadas uma da outra.

    O heri da epopia nunca , a rigor, um indivduo. Desde sempre considerou-se trao essencial da epopia que seu objeto no um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razo, pois a perfeio e completude do sistema de valores que determina o cosmos pico cria um todo demasiado orgnico para que uma de suas partes possa tornar-se to isolada em si mesma, to fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade. A onipotncia da tica, que pe cada alma como nica e incomparvel, perma-nece alheia e afastada desse mundo. Quando a vida, como vida, encontra em si um sentido imanente, as categorias da organici-dade so as que tudo determinam: estrutura e fisionomia indi-viduais nascem do equilbrio no condicionamento recproco entre parte e todo, e no da reflexo polmica, voltada sobre si pr-pria, da personalidade solitria e errante. Portanto, o significa-do que um acontecimento pode assumir num mundo de tal com-pletude sempre quantitativo: a srie de aventuras na qual o acont~cimento simbolizado adquire seu peso pela importncia que possui para a fortuna de um grande complexo vital orgni-co, de um povo ou de uma estirpe. Que os heris da epopia, portanto, tenham de ser reis tem causas diversas, embora igual-mente formais, da mesma exigncia para a tragdia. N esta, ela fruto apenas da necessidade de remover do caminho da ontolo-gia do destino todas as causalidades mesquinhas da vida: porque

    67

    II!

  • A teoria do romance

    a figura social culminante a nica cujos conflitos, preservando a aparncia sensvel de uma existncia simblica, resultam exclu-sivamente do problema trgico; porque somente ela, j em sua forma de manifestao externa, pode cercar-se da atmosfera in-dispensvel significao isolada. O que era smbolo na trag-dia torna-se realidade na epopia: o peso da vinculao de um destino com uma totalidade. O destino universal, que na trag-dia no passava da seqncia necessria de zeros transformados em milho pelo acrscimo da unidade, o que, na epopia, con-fere contedo aos acontecimentos; e o fato de portar tal destino no cria isolamento algum volta do heri pico; antes, prende-o com laos indissolveis comunidade cujo destino cristaliza-se em sua vida.

    E a comunidade uma totalidade concreta, orgnica - e por isso significativa em si mesma; eis por que o conjunto de aventuras de uma epopia sempre articulado, e nunca estrita-mente fechado: um organismo dotado de uma plenitude de vida intrinsecamente inesgotvel, que tem por irmos ou vizinhos outros organismos idnticos ou anlogos. O fato de as epopias homricas comearem no meio e no conclurem no final tem seu fundamento na legtima indiferena da verdadeira inteno pica diante de toda construo arquitetnica, e a introduo de contedos alheios - como Dietrich de Berna no Canto dos nibe-fungos - jamais poder perturbar esse equilbrio, pois na epo-pia tudo tem a sua vida prpria e cria a sua integrao a partir da prpria relevncia interna. Nela, o que alheiQpode serena-mente estender as mos ao