monografia do interesse público primário como delimitador do interesse processual do estado
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MONOGRAFIA feita por Danilo Borges Paulino como conclusão do curso de direito da Universidade estadual de Maringá em 2014, trata do interesse público primário como delimitador do interesse processual do estadoTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING
DANILO BORGES PAULINO
DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE
PROCESSUAL DO ESTADO
MARING
2014
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DANILO BORGES PAULINO
DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE
PROCESSUAL DO ESTADO
Monografia apresentada Universidade
Estadual de Maring como requisito parcial
para obteno do ttulo de bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis
Campos Silva.
MARING
2014
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DANILO BORGES PAULINO
DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE
PROCESSUAL DO ESTADO
Monografia apresentada Universidade
Estadual de Maring como requisito parcial
para obteno do ttulo de bacharel em Direito.
Aprovado em 27 de novembro de 2014
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva
Universidade Estadual de Maring
________________________________________________
Prof. Ms. Maurcio Kalache
Universidade Estadual de Maring
________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Segatto
Universidade Estadual de Maring
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Dedico este trabalho a Deus e a minha famlia,
responsveis pelo homem que me tornei e
pelos valores que defendo.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Nilson Tadeu Reis Campos Silva, por aceitar de prontido a
rdua tarefa de me orientar.
minha me, que me ensinou a amar o direito e ver nele um dever de transformar a
sociedade que vivemos, independentemente das dificuldades enfrentadas. Ao meu pai e aos
meus irmos, que sempre me deram foras para alcanar os meus sonhos.
Ao Procurador Federal Leonardo Zagonel Serafini, com o qual aprendi que a
Advocacia Pblica possui uma responsabilidade com a sociedade que ultrapassa os processos.
Aos grandes amigos que o direito me deu, dentre eles Guilherme Bolognini Tavares,
Arthur Orsini Maziero, Joo Paulo Corsi Freire e Leandro Taufic Pinto, com os quais discuti e
aprendi lies que levarei por toda minha carreira jurdica.
Isabela Maria Reck, que me deu motivos, compreenso e apoio indispensveis para
a concluso deste trabalho.
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Todo homem que se indigna e experimenta
profunda clera, vendo o direito oprimido pela
arbitrariedade, possui-o sem dvida alguma.
(Rudolf Von Ihering)
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RESUMO
O Interesse Pblico constitui um princpio basilar a todo Estado Democrtico de Direito.
Apesar de sua importncia, conceitu-lo permanece sendo tarefa nebulosa ante tamanha
complexidade e abrangncia. Neste sentido, cumpre observar que interpretaes superficiais como um conceito aritmtico de interesses da maioria ou um simples antagonismo em relao aos interesses privados no logram xito em absorver por completo tal conceito. Isto porque ele prprio composto de parcelas individuais dos interesses dos particulares, e no
basta que seja um interesse comum, preciso que este resida na esfera pblica dos interesses
individuais. Assim, o Interesse Pblico surge como a dimenso pblica dos interesses
individuais. Contudo, para efetivar tais interesses atravs de aes o Estado precisa se
constituir como pessoa jurdica, surgindo assim necessidades e interesses prprios a sua
personalizao. No entanto, por ser o Estado apenas uma instrumentalizao dos interesses
coletivos, seus interesses prprios limitam-se naqueles que o legitimaram. Assim, no se pode
conceber interesses prprios do Estado que contrariem ou no colaborem com os interesses
coletivos. Neste ponto, a atuao do Estado dentro da relao jurisdicional possui tica
completamente diferente da privada. A finalidade buscada pelo Estado na relao processual
to somente a realizao dos Interesses Pblicos. Assim, quando o particular pleitear direitos
aos quais faz jus, dever do Estado reconhece-los integralmente, independentemente se para
tanto sofrer prejuzos pecunirios. Qualquer desvio destes interesses pela atuao estatal est
sujeito responsabilidade civil do Estado, a qual tem o condo de corrigir tais deturpaes
mediante indenizaes dos danos causados.
Palavras-chave: Interesse Pblico. Estado. Finalidade. Responsabilidade civil do Estado.
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ABSTRACT
The Public Interest is a fundamental principle to any democratic state. Despite its importance,
conceptualize it remains nebulous task because of its complexity and range. In this way, it
should be noted that superficial interpretations - as an arithmetic concept of "interests of the
majority" or a simple antagonism to private interests - do not achieve success in the
completely absorption of the concept. This is because itself is composed of individual
portions of the interests of individuals, and its not enough only to be a common interest, it is necessary that this resides in the public sphere of individual interests. Thus, the Public Interest
arises as the public dimension of individual interests. However, to obtain their interests
through actions the state must be constituted as a legal entity, so emerging needs and interests
own of its personification. However, being the state only one instrumentalization of collective
interests, its own interests are limited by those that legitimize them. Thus, is unconceivable
that the state own interests contrary or that do not collaborate with collective interests. At this
point, the performance of the state within the jurisdictional proceedings is completely
different from the private performance. The purpose chased by the State in the jurisdictional
proceedings is simply the realization of the Public Interests. So when the particular claim
rights to which is entitled, it is the duty of the State recognizes them fully, independent if it
will suffer pecuniary loss. Any detour from these interests by state action is subject to the
responsibility of the State, which has the power to correct such misrepresentations by
compensation of damage.
Keywords: Public Interest. State. Finality. Responsibility of the State.
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 9
1 DO INTERESSE PBLICO .............................................................................................. 11 1.1 Conceito Geral .................................................................................................................. 11 1.2 Interesse Pblico Primrio e o Princpio da Legalidade ............................................... 14 1.3 Interesse Pblico Secundrio e Os Limites Da Mquina Pblica ................................ 18
1.4 Do conflito entre os Interesses Pblicos Primrios e Secundrios Nos Litgios Do
Estado ...................................................................................................................................... 22
2 DA POSTURA PROCESSUAL DO ESTADO ................................................................. 28 2.1 Postura Processual Privada x Postura Processual do Estado ...................................... 28
2.2 Da Indisponibilidade Do Interesse Pblico e a Hierarquia Dos Interesses Do Estado
Na Relao Processual ........................................................................................................... 33 2.3 Da Advocacia Geral Da Unio e Suas Diretrizes Processuais O Acordo ................. 37
2.4 Do dever de obedincia do Estado ao Direito Adquirido, ao Ato Jurdico Perfeito e
Coisa Julgada .......................................................................................................................... 42
3 DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO ....................................................................... 46
3.1 Responsabilidade Administrativa e Responsabilidade Civil do Estado aspectos gerais ........................................................................................................................................ 46
3.2 Responsabilidade Civil por erro administrativo a presuno de legitimidade dos atos do Estado e a pluralidade dos interesses tutelados ...................................................... 48
3.3 Responsabilidade Civil por Ato Jurisdicional O Dever Do Judicirio De Reconhecer Os Desvios De Finalidade Da Administrao Pblica .................................... 51
CONCLUSO ......................................................................................................................... 57
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 58
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INTRODUO
O Estado representa nos dias atuais o maior demandado nos tribunais ptrios. Seja em
nome da Unio, dos municpios, dos estados, ou ainda em nome das autarquias, empresas
pblicas, etc., nenhuma pessoa fsica ou jurdica possui tantos processos em seu desfavor.
Tambm como autor o Estado lidera as demandas. Tudo isso ocorre justamente devido sua
magnitude. Pessoa alguma tem tamanha representatividade e to vasta diversidade de atos.
Assim, de enorme importncia para a sociedade a anlise da atuao estatal nestes
processos. Isto porque, diferente dos particulares, o Estado possui uma finalidade a ele
imposta e inescusvel: o Interesse Pblico. Constitudo como um instrumento do Interesse
Pblico, o Estado encontra nos interesses pblicos/coletivos sua legitimidade, finalidade e,
principalmente, sua limitao. evidente que para alcan-los o Estado precisou se constituir
como pessoa jurdica e, para tanto, passou a possuir interesses prprios atinentes realizao
prtica dos interesses coletivos, tendo assim interesses prprios alm dos pblicos.
No entanto, em toda e qualquer conduta do Estado esses interesses prprios (interesses
pblicos secundrios) no podem contrariar ou ignorar os interesses pblicos propriamente
ditos, vez que os legitimam.
Deste modo, a conduta do Estado dentro do processo tambm distinta daquela
praticada pelos administrados, uma vez que a estes ltimos permitida a busca de tudo aquilo
que quiserem, desde que no proibido por lei, observando-se assim na prtica, via de regra,
uma busca incansvel pela vitria processual na obteno das maiores condenaes quando
se demanda, e dos menores prejuzos quando se demandado.
Contudo, no pode o Estado agir desta maneira. Seus interesses devem ter um enfoque
diferenciado por se originarem na coletividade. Logo, quando o Estado comporta-se como os
particulares e ofende direitos coletivos na busca apenas da vitria processual, ele se
divorcia dos interesses que lhe legitimavam a agir e pratica ato nulo.
Muitas vezes esses atos do Estado que contrariam os interesses coletivos terminam por
causar danos aos administrados. Logo, deve ser tambm interesse do Estado repar-los, no
intuito de trazer sua conduta de volta quilo que o legitima.
O presente trabalho est dividido em trs captulos, onde se buscou demonstrar um
aprofundado conceito de Interesse Pblico, uma anlise pontual da atuao do Estado quando
integrante de relaes processuais, e, ainda, os casos em que deve haver indenizao por
danos oriundos de desvios de sua finalidade.
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O primeiro captulo trata da conceituao dos interesses pblicos primrios e
secundrios, a relao desses com os demais princpios de direito e uma anlise focada no
conflito entre eles.
O segundo captulo, por sua vez, tem enfoque no interesse processual do Estado e sua
atuao quando integrante da lide. Traz ainda anlises de casos prticos onde se vislumbra
flagrante conflito entre interesses primrios e secundrios do Estado e mudanas necessrias
para corrigir tal desvio de finalidade.
Por fim, o terceiro captulo trabalha a responsabilidade civil do Estado com enfoque
nos danos oriundos deste conflito de interesses, tratando ainda da responsabilidade e dever do
Poder Judicirio em reconhecer tais nulidades.
Espera-se que o presente trabalho possa contribuir para uma mudana da atuao
estatal dentro da relao processual, protegendo-se assim os interesses coletivos que
legitimam seus atos.
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1 DO INTERESSE PBLICO
1.1 Conceito Geral
Um dos grandes desafios da doutrina ptria encontra-se na ideal definio do que seria
o Interesse Pblico. Embora tenha sua importncia indiscutivelmente reconhecida pelos
renomados doutrinadores de Direito Administrativo, a definio deste princpio complexa e
repleta de diferentes fundamentos, tornando sua compreenso um desafio de extrema
seriedade que remonta origem deste ramo basilar do Direito.
Celso Antnio Bandeira de Mello, ao tratar das bases ideolgicas do Direito
Administrativo, prope uma ruptura costumeira imagem de um ramo aglutinador de
poderes desfrutveis pelo Estado e o define como sendo um conjunto de limitaes aos
poderes do Estado ou, muito mais acertadamente, como um conjunto de deveres da
Administrao em face dos administrados.1. Neste sentido, pautado nas limitaes e deveres
do Estado, o renomado jurista sintetiza o que entende por serem as pedras de toque do
regime jurdico-administrativo:
O regime de direito pblico resulta da caracterizao normativa de
determinados interesses como pertinentes sociedade e no aos particulares
considerados em sua individuada singularidade.
Juridicamente esta caracterizao consiste, no Direito Administrativo,
segundo nosso modo de ver, na atribuio de uma disciplina normativa
peculiar que, fundamentalmente, se delineia em funo da consagrao de
dois princpios:
a) Supremacia do interesse pblico sobre o privado; b) Indisponibilidade, pela Administrao, dos interesses pbicos.2
Desta forma, o Interesse Pblico surge como a base geral do Estado, limitando seus
poderes de forma que respeitem a finalidade para a qual foi criado, posto que reside nesta
razo limitao x finalidade o motivo de ser do Estado, o qual apenas a
instrumentalizao da sociedade na obteno destes fins.
Contudo, que fins so estes? O que afinal representa as vontades e interesses da
sociedade como um todo? A primeira ideia que surge ao se pensar num interesse coletivo a
sua contraposio ao interesse privado, ou seja, o interesse pessoal de cada indivduo. No
entanto, tal acepo imprecisa por focalizar em um antagonismo que no abrange a origem
1 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 43. 2 Ibid. p. 55.
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do interesse da sociedade. Neste sentido, tornam-se pertinentes os ensinamentos de Luiz
Alberto Blanchet, quando diz que o direito administrativo no rege a defesa dos interesses
pblicos contra os particulares, mas a compatibilizao dos interesses do homem considerado
como indivduo e deste como membro integrante de uma coletividade organizada e em
constante evoluo3.
Isto posto, observa-se ento que o Interesse Pblico no se contrape e nem se
desvincula do interesse individual, mas se constri atravs da soma das individualidades, da
dimenso pblica dos interesses individuais como alcunha Celso Antnio Bandeira de
Mello, que distingue brilhantemente o interesse pessoal do interesse coletivo do sujeito ao
apontar que, um indivduo pode ter, e provavelmente ter, pessoal e mximo interesse em
no ser desapropriado, mas no pode, individualmente, ter interesse em que no haja o
instituto da desapropriao4.
Portanto, o Interesse Pblico deve ser conceituado como o resultado dos interesses dos
indivduos quando considerados em sua qualidade de membros de uma sociedade.
Maral Justen Filho critica a apurao do Interesse Pblico atravs do interesse da
maioria por entender que o mesmo conduz opresso e significa a destruio dos
interesses das minorias, afirmando que no se pode fundamentar o conceito de interesse
pblico numa concepo aritmtica5.
Neste sentido, a concepo trazida por Celso Antnio Bandeira de Mello certeira ao
se referir especificamente dimenso pblica da soma dos interesses individuais. Assim, os
interesses coletivos de natureza privada afastam-se do conceito do Interesse Pblico.
Ainda, pertinente se faz a observao feita por Maral Justen Filho de que sequer
existe apenas um nico Interesse Pblico, mas sim interesses pblicos, in verbis:
Justamente por isso, nem sequer h um modo prtico de descobrir o interesse da maioria do povo. que no existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. No existe um conjunto homogneo de
interesses privados ao qual se possa atribuir a condio de interesses da
maioria. Na sociedade moderna, h uma pluralidade de sujeitos, com
interesses contrapostos e distintos.6
Deste modo, a soluo encontrada pelo autor para uma precisa apurao dos interesses
coletivos reside na observao da disponibilidade do direito analisado. Segundo ele, um
3 BLANCHET, Luiz Alberto. Curso de direito administrativo. 2. ed. Curitiba: Juru, 2000. p. 13.
4 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 60. 5 JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 40-41.
6 Ibid. p. 42-43.
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interesse deixa de ser privado quando sua satisfao no possa ser objeto de alguma
transigncia, assim, um interesse pblico por ser indisponvel, e no o inverso7.
Logo, resta evidenciado o carter instrumental da Administrao Pblica, a qual no
tem em seu controle a criao ou disposio dos interesses pblicos, mas to somente o dever
de defend-los e concretiz-los. o carter de poder-dever de que trata Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, onde diz que Precisamente por no poder dispor dos interesses pblicos
cuja guarda lhes atribuda por lei, os poderes atribudos Administrao tm o carter de
poder-dever; so poderes que ela no pode deixar de exercer, sob pena de responder pela
omisso8.
Neste mesmo sentido aponta Alberto Massera, renomado doutrinador italiano, ao
afirmar que a Administrao no tem interesses substanciais prprios que sejam diversos
daqueles relativos realizao de concretas utilidades sociais9.
A respeito de no ser tratado de forma literal pela Constituio Federal (que, no
entanto, o absorve plenamente), foi da Lei n 9.784/99 o papel de dar tal nomenclatura a este
princpio. O texto legal dispe, em seu art. 2, que a Administrao Pblica obedecer, dentre
outros princpios, o Interesse Pblico. J o pargrafo nico, II, deste mesmo artigo,
determina que nos processos administrativos devem-se observar os fins de interesse geral,
vedando a renncia total ou parcial de poderes ou competncias, salvo quando houver
autorizao em lei.
Independentemente da omisso, a supremacia do interesse pblico constitui a base dos
demais preceitos administrativos trazidos pela constituio, como bem expe Celso Antnio
Bandeira de Mello:
O princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse privado
princpio geral do Direito inerente a qualquer sociedade. a prpria
condio de sua existncia. Assim, no se radica em dispositivo especfico
algum da Constituio, ainda que inmeros aludam ou impliquem
manifestaes concretas dele, como, por exemplo, os princpios da funo
social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art.
170, III, V e VI), ou tantos outros. Afinal, o princpio em causa um
pressuposto lgico do convvio social.10
7 JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 43.
8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. So Paulo: Atlas, 2012. p. 67.
9 MASSERA, Alberto. Individuo e amministrazione nello Stato sociale. Rivista Trimestrale di Diritto e
Procedura Civile, mar. 1991. p. 45. 10
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 96.
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Observada a abrangncia deste princpio a todo o ordenamento ptrio, resta ento
contemplar a distino doutrinria do que seria o Interesse Pblico Primrio ou Propriamente
Dito e o Interesse Pblico Secundrio.
Em linhas gerais, o Interesse Pblico Primrio ou Propriamente Dito corresponde ao
conceito at ento trabalhado, ou seja, o interesse do todo a soma da dimenso pblica dos
interesses individuais. O Interesse Pblico Secundrio, por sua vez, surge diante do fato de
que o Estado, assim como os particulares, tambm possui personalidade jurdica, tendo assim
tambm seus interesses particulares, atinentes gesto prtica da mquina pblica.
Ambos os conceitos possuem vasta conceituao terico-filosfica e passam a ser
melhor expostos nos tpicos que se seguem.
1.2 Interesse Pblico Primrio e o Princpio da Legalidade
Conforme j se discorreu no tpico anterior, o Interesse Pbico Primrio ou
Propriamente Dito nada mais do que a soma dos interesses particulares dos indivduos
quando considerados em sociedade, formando-se assim uma gama de interesses coletivos
indisponveis. Entretanto, de que forma estes interesses apresentam-se na realidade jurdica
nacional?
Desde sua origem o Estado brasileiro optou pelo regime jurdico romano-germnico,
que, em linhas gerais, determina uma superioridade da lei sob todos os demais aspectos para
dirimir conflitos. Por sua vez, a Constituio Federal brasileira traz, no pargrafo nico de seu
artigo 1, que Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, dividindo ainda os poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judicirio,
e dando ao primeiro a competncia para legislar.
Percebe-se assim que as leis que gerem a sociedade so criadas pelos representantes
dos prprios indivduos que a compe, e somente tem fora coercitiva por terem se originado
do poder combinado destes indivduos. Portanto, a lei nada mais do que a codificao do
Interesse Pblico de modo que esse possa se apresentar de uma forma organizada e com efeito
erga omnes.
Esta lei, por sua vez, muito embora tenha se originado do interesse de cada indivduo,
deve atender somente parcela pblica dos interesses individuais, limitando seus interesses
privados de modo que a sociedade possa ser construda de modo justo e igualitrio.
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Jean-Jacques Rousseau11
argumenta que ao criar o Estado o homem renuncia
coletividade uma parcela de sua liberdade, porm, sendo ele prprio parte integrante e ativa
dessa coletividade, ao obedecer lei, obedece a si mesmo e, portanto, livre. Deste modo a
sociedade no perde sua soberania justamente pelo fato de que o Estado no um ente
apartado dela mesma, mas sim a instrumentalizao de suas vontades.
Para Celso Antnio Bandeira de Mello o Princpio da Legalidade surge no campo do
Direito Administrativo como especfico do Estado de Direito, sendo o fruto da submisso do
Estado a lei12. Esta tica (de submisso), por sua vez, aplicvel somente Administrao,
vez que este mesmo princpio comporta-se de forma diferente em relao ao mbito privado,
como bem pondera Fernanda Marinela:
Para definir a legalidade, aplicando-se o ordenamento jurdico vigente,
devem ser analisados dois enfoques diferentes. De um lado, tem-se a
legalidade para o direito privado, onde as relaes so travadas por
particulares que visam aos seus prprios interesses, podendo fazer tudo
aquilo que a lei no proibir. Por prestigiar a autonomia da vontade,
estabelece-se uma relao de no contradio lei.
De outro lado, encontra-se a legalidade para o direito pblico, em que a
situao diferente, tendo em vista o interesse da coletividade que se
representa. Observando esse princpio, a Administrao s pode fazer aquilo
que a lei autoriza ou determina, instituindo-se um critrio de subordinao
lei. Nesse caso, a atividade deve no apenas ser exercida sem contraste com
a lei, mas, inclusive, s pode ser exercida nos termos da autorizao contida
no sistema legal.13
Portanto, no Direito Pblico a lei no somente se encontra imbuda da funo de
expressar oficialmente o Interesse Pblico, como tambm instrumento para exigi-lo e limite
para que o mesmo no seja transpassado.
Se antes o Interesse Pblico era to somente um somatrio de vontades abstratas e de
complexa definio, o que possibilitava uma perigosa gama de interpretaes emanadas pelo
Estado que eventualmente divergiriam do real interesse do todo, agora ganhou forma em
uma srie de determinaes legais construdas pela atividade legislativa.
11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978. 12
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 100. 13
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 31.
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Deste modo, ao Estado cabe to somente a ponderao dos interesses que
eventualmente venham a se confrontar, falando-se at mesmo em um princpio da no
sacrificabilidade (sic) a priori de nenhum interesse14.
Uma vez confrontados e apurados atravs do processo legislativo, os interesses
coletivos passam a integrar um rol de interesses dotados de exigibilidade direta e, excetuadas
as devidas ressalvas, incontestvel perante a Administrao Pblica. Este rol nada mais do
que os Interesses Pblicos j transformados em lei.
Ora, se antes a anlise dos interesses coletivos era subjetiva e passvel de
questionamentos, com a instituio de um Estado democrtico representativo passa-se a ter
uma forma de organizao atravs da qual se expurga toda questionabilidade e subjetividade
que antes minava os interesses trazidos pelos indivduos como sendo do todo. No apenas
conquista-se esta credibilidade, como cria-se um crivo para que os governantes no se
apropriem do Interesse Pblico e ditem as vontades da coletividade de acordo com o que lhes
convm.
Assim, se antes o agente estatal se via livre para, na sua prpria concepo pessoal,
atuar em nome da coletividade, agora possui toda uma legislao que descreve pontualmente
o que pode (e deve) fazer quando em nome do Estado. A respeito do que no pode fazer,
conforme j se explicou acima, tudo aquilo que diverge das predeterminaes de sua
atividade. A lei cuidadosa ao pr-estabelecer toda a atividade da Administrao, a qual se v
atrelada at mesmo ao silncio do legislador, como bem descreve Rafael Munhoz de Mello:
O fundamento da atuao do agente administrativo a lei formal que lhe
outorga competncia para agir. Sem lei formal no h competncia e, portanto, falta fundamento para qualquer atuao lcita da Administrao
Pblica.
Se assim, no silncio da lei est a Administrao Pblica proibida de agir.
Toda manifestao da funo administrativa depende de prvia autorizao
do legislador, autorizao que concedida atravs da outorga de
competncia. Sem que haja tal autorizao, presume-se que o legislador no
deseje que a Administrao Pblica atue.15
Deste modo, o Interesse Pblico legislado pauta toda a atividade do Estado em seus
mnimos detalhes, de modo que at sua omisso deve ser observada com cautela. Contudo,
nem sempre a simples leitura do texto legal assegura sociedade que o Estado est cumprindo
14
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 192 apud PIVA, Giorgio. Lamministratore pubblico nella societ pluralista. Scriti in onore de Massimo Severo Giannini. Milano: Giufr, 1988. v. 2. p. 501.
15 MELLO, Rafael Munhoz de. Princpios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As Sanes
Administrativas Luz da Constituio Federal de 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 111-112.
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em seus atos o Interesse Pblico na ntegra. que tambm a interpretao que se d ao texto
pode, em determinados casos, oscilar e se moldar de diferentes formas, o que nos traz a
necessidade de tratar de mais um princpio, o da finalidade.
Para Celso Antnio Bandeira de Mello o Princpio da Finalidade inerente ao
Princpio da Legalidade, estando nele contido, pois na finalidade da lei que reside o critrio
norteador de sua correta aplicao16.
Nada mais coerente que a observao da finalidade legal, posto que a lei somente
existe para dar corpo a um anseio da sociedade. O corpo do texto utilizado pela lei to
somente uma forma escolhida para expressar tal anseio que inicialmente se mostrava de forma
abstrata, devendo sempre prevalecer o fim para qual a lei foi criada.
Como bem assevera Fernanda Marinela:
Finalidade legal pode ser explicada como a ideia que a lei traz contida em
seu texto, o seu mago, o fator que proporciona compreend-la dentro do
contexto legal. Nesse raciocnio, temos que a lei um instrumento utilizado
pelo administrador como forma de alcanar um determinado fim. Em suma,
a finalidade o esprito da lei, o seu fim maior, que forma com o seu texto
um todo harmnico e indestrutvel.17
Por tal motivo que se veda a utilizao do texto legal para fundamentar ato
incompatvel com a finalidade da prpria lei, vez que a finalidade a integra e no pode, em
hiptese alguma, deixar de ser observada.
Neste sentido, Celso Antnio Bandeira de Mello entende que tomar uma lei como
suporte para a prtica de ato desconforme com sua finalidade no aplicar a lei; desvirtu-
la; burlar a lei sob pretexto de cumpri-la, e termina por categorizar tais atos como sendo
desvio e poder ou desvio de finalidade, ambos nulos, pois, segundo ele, quem desatende
ao fim legal desatende prpria lei18.
Assim, o Estado, mesmo dentro da discricionariedade que possui, se v
completamente vinculado ao esprito da lei, esse que, por sua vez, nada mais do que o
Interesse Pblico que originou o dispositivo legal que ser aplicado.
Percebe-se ento que repousa na finalidade legal um dos mecanismos mais efetivos
para que a sociedade possa cobrar de seus representantes a observao do Interesse Pblico,
16
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 106. 17
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 38. 18
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. op. cit. loc. cit.
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uma vez que, quando esta no observada, a atuao do Estado fica maculada pelo desvio de
finalidade e torna-se nula na medida do mesmo.
Ademais, como bem assevera Caio Tcito, A destinao da competncia do agente
precede a sua investidura. A lei no concede autorizao de agir sem um objetivo prprio19.
Percebe-se assim a forma correta de enxergar o Estado e seus agentes: como sendo
instrumentos para a realizao de um fim, ou seja, somente existe porque, previamente,
existiu a necessidade de se alcanar um fim coletivo, o qual motiva ento a investidura do
Estado em sentido macro e dos seus agentes em sentido micro para busc-los.
Pode-se observar assim que o Estado representante dos indivduos integrantes da
sociedade formaliza os Interesses Pblicos atravs da lei, a qual limita e pr-determina sua
atuao e deve ser sempre interpretada de acordo com os interesses que a originaram.
1.3 Interesse Pblico Secundrio e Os Limites Da Mquina Pblica
Uma vez contemplada a origem, importncia e demais aspectos do Interesse Pblico
em geral, passa-se ento a uma anlise pormenorizada do que seria o chamado Interesse
Pblico Secundrio.
Em linhas gerais, Fernanda Marinela leciona que o Interesse Pblico Secundrio
consiste nos anseios do Estado, considerado como pessoa jurdica20.
Celso Antnio Bandeira de Mello igualmente trata tal assunto apontando, de incio,
que o Estado, tal como os demais particulares, , tambm ele, uma pessoa jurdica, e, neste
prisma, remata dizendo que o mesmo pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesse que
lhe so particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas
meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa21.
Percebe-se assim que ambos doutrinadores acima mencionados iniciam a anlise deste
assunto apontando de onde deriva tal modalidade de interesse: do momento em que o Estado
se constitui como pessoa jurdica e passa ento a ter interesses atinentes a si prprio. Assim,
torna-se imprescindvel que, de antemo, se analise a origem desta entidade abstrata a
pessoa jurdica e sua relao com o Estado.
Carlos Roberto Gonalves, ao conceituar a Pessoa Jurdica com base em sua origem
histrica, assim a definiu:
19
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 104 apud TCITO, Caio. Direito Administrativo. So Paulo: Saraiva, 1975. p. 80-81. 20
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 29. 21
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. op. cit. p. 65.
-
19
A razo de ser, portanto, da pessoa jurdica est na necessidade ou
convenincia de os indivduos unirem esforos e utilizarem recursos
coletivos para a realizao de objetivos comuns, que transcendem as
possibilidades individuais. Essa constatao motivou a organizao de
pessoas e bens, com o reconhecimento do direito, que atribui personalidade
ao grupo, distinta da de cada um de seus membros, passando este a atuar na
vida jurdica com personalidade prpria.22
Percebe-se que a origem de tal conceito extremamente aproximada ao do j
trabalhado Interesse Pblico Primrio ou Propriamente Dito medida que se refere a
indivduos buscando objetivos supra individuais atravs de recursos coletivos.
Silvio de Salvo Venosa, neste mesmo sentido, aponta que a nsia da sociedade em
constituir pessoas jurdicas surge desde a criao de uma associao de bairro para defender
o interesse de seus moradores [...] at a criao do prprio Estado, entidade jurdica que
transcende a prpria noo singela que ora damos, e completa dizendo que A necessidade
ou premncia de conjugar esforos to inerente ao homem como a prpria necessidade de
viver em sociedade23.
Portanto, resta evidente que a constituio do Estado como Pessoa Jurdica era o modo
mais adequado para dar forma aos anseios da sociedade em geral, pois os objetivos buscados
precisariam, na prtica, de um ente que pudesse execut-los, responder por eles, adquirir
obrigaes e realizar outras funes para as quais seria imprescindvel a personificao de
quem a realiza.
A execuo e concretizao destes anseios, aps apurados conforme se tratou no item
anterior, vincula-se inteiramente existncia de uma mquina pblica, que invariavelmente
possuir ainda suas necessidades materiais de manuteno para melhor funcionamento. O
anseio por uma sade pblica de qualidade, por exemplo, depende de instalaes mdicas
adequadas, equipamentos para exames, cirurgias, etc.
Cumpre igualmente observar que uma gesto eficaz na concretizao dos Interesses
Pblicos Primrios depende tambm de uma ponderada administrao da mquina, que
busque economizar e bem distribuir a verba pblica de modo que no onere demais o
contribuinte e, ao mesmo tempo, lhe oferea servios de qualidade.
Deste modo, resta demonstrado que o Estado possui interesses prprios legtimos e
que estes so necessrios para a busca dos interesses coletivos que os legitimam. No entanto,
22
GONALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2012. v. 1.
p. 216. 23
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2008. v. 1. p. 221.
-
20
qual a diferena entre os interesses individuais do Estado e os dos sujeitos que o integram?
Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello, por mais que os interesses individuais do Estado
e dos particulares sejam similares, no so iguais, fundamentando tal posicionamento da
seguinte maneira:
[...] a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais,
ao passo que o Estado, concebido que para a realizao de interesses
pblicos (situao, pois, inteiramente diversa dos particulares), s poder
defender seus prprios interesses privados quando, sobre no se chocarem
com os interesses pblicos propriamente ditos, coincidam com a realizao
deles [...].24
Percebe-se assim que, segundo o autor, existem dois pr-requisitos para que um
interesse secundrio possa existir: primeiro, que este no se choque com os interesses
pblicos propriamente ditos; e segundo, que este coincida com a realizao dos interesses
primrios. Tal limitao funda-se exatamente na origem e finalidade do Estado, deixando
clarividente a contradio que seria o Estado contrari-las, observados os motivos que
legitimam sua criao e existncia.
A doutrina italiana, com maestria, j apontava h muito tempo nesse mesmo sentido,
conforme se abstrai da lio de Renato Alessi esclarecendo que os interesses secundrios do
Estado s podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primrios25.
Assim, o particular pode, via de regra, buscar seus interesses individuais da forma
como bem lhe entender, j o Estado somente pode busc-los quando esses conflurem com os
interesses primrios. Veja que o termo usado foi justamente buscar porque no se faz
necessria a obteno destes interesses para que o ato do Estado que os buscam se encontre
maculado. No pode ele sequer conceb-los em meio a seus demais anseios, vista tamanha
incongruncia que geraria tal desvio de finalidade da mquina pblica.
Ademais, podem existir atos da administrao que no se chocam com o Interesse
Pblico Primrio primeira vista, e, ainda assim, so nulos pelo simples fato de no
coincidirem com sua realizao. Tal nulidade deriva do fato de que, como j mencionado
anteriormente, a finalidade do ato precede a investidura do agente, e, no havendo finalidade
fundada no interesse primrio, inexiste investidura e legitimidade para a prtica do
mesmo.
24
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 66. 25
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 29 apud ALESSI, Renato.
Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Bosh Casa Editorial, 1970. p. 197.
-
21
Um Estado que busca interesses que se originam e se destinam exclusivamente a si
prprio, quando considerado em sua individualidade, aproxima-se dos sistemas sociais
autopoiticos descritos por Niklas Luhmann26
, sistemas estes que, ao alcanarem um nvel de
complexidade altamente elevado, passam a se retroalimentar e transcendem as interaes
individuais, mudando de tal forma que deixam de ser algo constitudo por uma coletividade e
tornam-se uma instituio que se auto gere e tem vontades diferentes daquelas para as quais
foi concebida.
Tal transformao no pode ser admitida, uma vez que a democracia to arduamente
conquistada ao longo da histria seria destruda na medida em que o poder que antes emanava
do povo passasse s mos de uma instituio sem o controle dos indivduos que a criaram.
exatamente neste risco o de desconstruir a democracia que reside a falta de controle sobre
os interesses secundrios do Estado.
Quando um agente do Estado, por exemplo, passa a pagar valores nfimos nas
desapropriaes com o intuito de economizar e, para isso, ignora as determinaes
constitucionais que o legitimam, ele atenta contra o Estado Democrtico de Direito. Este
primeiro exemplo dado de fcil observao, pois mostra, em um evento nico, uma leso
direta a um determinado indivduo por uma conduta que, no senso comum, seria facilmente
taxada como injusta.
No entanto, como j dito anteriormente, no preciso que haja um choque destes
interesses secundrios com os interesses pblicos primrios para que a conduta do Estado seja
considerada nula. Basta que esta no coincida com a realizao dos interesses primrios. No
preciso que exista um dano ou qualquer tipo de leso material sociedade, a nulidade do ato
no existe para restituir um status quo ou punir atos incoerentes da administrao. A nulidade
nestes casos se reconhece, e reconhece-se porque falta legitimidade, investidura. Assim, a
nulidade do ato precede ao dano a determinado Interesse Pblico, basta que dele no se
origine.
Contudo, a mquina pblica, com o passar dos anos, tem se tornado um sistema cada
vez mais complexo assim como seus atos tornando a observao apurada das finalidades e
dos interesses buscados uma prtica rdua e de difcil realizao.
O que dizer, por exemplo, dos atos praticados pelo Estado de forma fracionada? E se,
no decorrer de uma srie de atos, os atos finais estiverem arraigados de nulidade e desviarem
26
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
-
22
todo o conjunto para uma finalidade que, inicialmente, no se podia vislumbrar? Repousa
exatamente neste tipo de ato complexo do Estado a anlise que ser feita nos itens a seguir.
1.4 Do conflito entre os Interesses Pblicos Primrios e Secundrios Nos Litgios Do
Estado
Conforme j abordado nos itens anteriores, o Estado precisou se constituir como
pessoa jurdica para realizar os Interesses Pblicos Primrios. Na prtica, a obteno destes
interesses requer uma estrutura Estatal, a qual passou a possuir interesses prprios
relacionados sua gesto interna, os chamados Interesses Pblicos Secundrios.
Como prprio de toda e qualquer organizao humana, esto tambm eles o Estado
e seus interesses particulares sujeitos a uma srie de atritos e equvocos em relao a seus
administrados. Assim, de extrema importncia analisar como ocorrem tais atritos e qual a
relao destes com o Interesse Pblico Primrio.
Tendo o Estado se dividido em trs poderes Executivo, Legislativo e Judicirio se
faz ainda importante analisar estes problemas de forma prtica em cada uma destas esferas,
possibilitando assim uma observao factual dos conflitos de interesses do Estado. Para tanto,
sero utilizados exemplos prticos onde se privilegiar a observao dos interesses estudados.
Na esfera do poder Executivo, se faz pertinente a anlise do instituto da
desapropriao.
Em apertada sntese, tal instituto, previsto pelo art. 5, XXIV, da Constituio, nada
mais do que um procedimento utilizado pelo Poder Pblico que, por necessidade ou
utilidade pblica, ou ainda por interesse social, compulsoriamente despoja algum de
determinado bem, o adquirindo assim para si em carter originrio, mediante justa e
prvia indenizao.
Maria Sylvia Zanella di Pietro desmembra o procedimento da desapropriao em duas
fases, a Declaratria e a Executria27. Na fase Declaratria verificam-se as condies
constitucionais que motivam a incidncia de tal instituto, sendo elas, como trata o texto
constitucional, a necessidade ou utilidade pblica e o interesse social. A fase Executria,
por sua vez, compreende os atos utilizados pelo poder pblico para executar a desapropriao
em si.
27
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. So Paulo: Atlas, 2012. p. 157.
-
23
Inmeros problemas prticos que se vinculam corrupo dos agentes pblicos que
realizam a desapropriao poderiam ser apontados neste instituto, como a desapropriao de
terras com o fim de valorizao imobiliria de bens prprios ou de terceiros e outros
exemplos, contudo o modelo buscado e j trabalhado nos itens anteriores procura observar
tal desvio de interesses como uma prtica do Estado pelo Estado.
O caso ftico que se passa a analisar se encontra na fase Executria e diz respeito
justa e prvia indenizao prevista na constituio pela desapropriao realizada. Acontece
que muitas vezes o Estado, amparado na primeira fase da desapropriao por um motivo que
conflui com o Interesse Pblico Primrio, realiza uma desapropriao e indeniza o
desapropriado com valores inferiores aos efetivamente devidos, divorciando-se assim dos
interesses que o legitimaram para realizar o ato e privilegiando seus interesses prprios a
economia dos cofres pblicos.
Neste exemplo, infelizmente corriqueiro no cotidiano brasileiro, observa-se claramente
um choque de interesses que afronta a mais potente voz do interesse pblico primrio: o texto
da Constituio Federal. Ainda que se justifique tal prtica como oriunda da necessidade
primria que motivou a desapropriao, que apenas por uma falta de oramento pblico no
se pode realizar, o texto constitucional inflexvel ao estipular que tal instituto somente se
realiza mediante a justa e prvia indenizao.
O problema maior reside no fato de que, por se tratar de uma afronta aparentemente
individual, no se toma a luta por estes direitos como sendo coletivos. Contudo, faz-se mister
ressaltar que o desrespeito aos dispositivos legais frutos da apurao do interesse pblico
pelo legislador, conforme j mencionado nada mais do que uma afronta coletiva aos
princpios norteadores do instituto criado pelo interesse pblico primrio.
Ou seja, o mecanismo se desrespeita em seu prprio procedimento quando, para
viabilizar de qualquer maneira sua ocorrncia, sana um defeito da mquina pblica com uma
leso a direitos individuais previstos no seu modo de operao.
Ainda que exista o interesse coletivo de desapropriar determinado bem individual,
realizar tal desapropriao sem observar a devida e justa indenizao no sobrepor os
interesses coletivos em detrimento dos individuais, mas sim ser conivente com uma mquina
pblica defeituosa que no disps dos meios que deveria para realiz-la. Ou seja, o defeito
deste ato administrativo indenizao em valor inferior ao devido ocorreu apenas pela falta
de recursos (ou vontade de pag-los), no pela predominncia da propriedade privada que
permanece em poder do indivduo enquanto no lhe pago a justa indenizao.
-
24
O problema se agiganta ainda mais quando tal justificativa passa a ser utilizada pelo
poder Executivo em todos os momentos que, por um defeito de gesto, faltaram-lhe recursos
para prover os interesses pblicos primrios.
Assim, erroneamente o Estado tem justificado a exagerada tarifao de servios,
tributao em cargas intolerveis, corte de servios pblicos essenciais populao, baixa
qualidade dos servios prestados, etc. com o argumento de que busca fazer uma economia aos
cofres pblicos interesses secundrios, uma vez que o patrimnio pblico o meio atravs
do qual se realiza o fim Interesse Pblico.
Ademais, ainda que considerada a economia aos cofres pblicos como sendo Interesse
Pblico Primrio, cumpre ressaltar que no caso apresentado a sua necessidade somente existe
devido a uma atuao defeituosa do Estado, que deveria dispor das verbas estabelecidas pela
Constituio como justas pela desapropriao.
Deste modo, estar-se-ia utilizando de um Interesse Pblico para legitimar uma falha
interna, ou seja, um problema de gesto sendo solucionado atravs da falsa defesa de um
princpio que no seria lesado no fosse os defeitos internos da mquina.
No Poder Judicirio o problema ainda maior. O caso a ser analisado nesta esfera diz
respeito jurisprudncia defensiva dos tribunais superiores, a qual consiste na elaborao de
entraves e pretextos que no constam de nenhum dispositivo legal com a finalidade de
impedir o conhecimento dos recursos dirigidos a estes tribunais.
A respeito deste mecanismo faz-se mister observar a crtica feita por Jos Miguel
Garcia Medina:
Com a finalidade de viabilizar o funcionamento do Superior Tribunal de
Justia, tornando-o sustentvel (levando em conta o nmero de processos que poderia julgar), a jurisprudncia passa a adotar postura no apenas mais
rigorosa em relao aos requisitos recursais, mas vai alm, impondo s
partes a observncia de exigncias no previstas em qualquer norma
jurdica.28
Ora, no caso em questo facilmente se observa que os tribunais tem privilegiado um
interesse prprio do poder judicirio o funcionamento dos tribunais superiores e, para isso,
lesionado um Interesse Pblico Primrio o Acesso Justia.
inconcebvel que um poder do Estado que foi criado com a finalidade de atender os
litgios dos indivduos crie mecanismos para dificultar o seu prprio acesso. As justificativas
28
MEDINA, Jos Miguel Garcia. Pelo fim da jurisprudncia defensiva: uma utopia? Revista Consultor
Jurdico. 29 de julho de 2013. Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2014.
-
25
dadas pelos tribunais, mais uma vez, insistem em apontar defeitos da prpria mquina. No
caso em tela, justifica-se com base na elevada quantidade de processos que aguardam
julgamento nestes tribunais.
No entanto, novamente, observa-se que o problema de gesto, no de interesses. E
mais, desta vez nem sequer amparo legal o poder estatal em questo possui baseia-se em
disposies estabelecidas por ele prprio que confrontam os interesses primrios positivados
no texto da lei, a qual lhes garante o acesso justia de forma integral, e no mitigada pela
incapacidade do poder judicirio de lidar com suas demandas.
Por ltimo, no que diz respeito ao poder Legislativo, faz-se oportuno analisar o uso
indevido da Medida Provisria. Muito embora esta seja editada pelo Presidente da Repblica,
que compe o Poder Executivo, quando o mesmo a utiliza passa a exercer funo legislativa,
funo esta atpica ao Poder Executivo.
Deste modo, o fato da Medida Provisria, por si prpria, constituir uma funo
legislativa do Estado em geral independentemente do poder que a realiza torna pertinente
sua anlise, uma vez que este exemplo foi escolhido justamente pelo conflito de interesses
atualmente observado na poltica ptria.
Em linhas gerais, a Medida Provisria, trazida pela Constituio Federal em seu artigo
62, nada mais do que uma funo atpica do Poder Executivo na pessoa do Presidente da
Repblica que, em casos de relevncia e urgncia, pode editar medidas com fora de lei sem
a necessidade de participao do poder legislativo, o qual ser convocado apenas a debat-la e
aprov-la em um momento posterior.
Como bem se extrai do texto constitucional, relevncia e urgncia so
cumulativamente condies sine qua non da utilizao deste instrumento legislativo, como
bem define Gilmar Ferreira Mendes:
So pressupostos formais das medidas provisrias a urgncia e a relevncia
da matria sobre que versam, requisitos comuns s medidas cautelares em
geral. Para que se legitime a edio da medida provisria, h de estar
configurada uma situao em que a demora na produo da norma possa
acarretar dano de difcil ou impossvel reparao para o interesse pblico.29
Percebe-se assim que a Medida Provisria tem justamente a funo de salvaguardar o
Interesse Pblico, o qual legitima seu carter acautelatrio e mais clere. No entanto, o
29
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocncia Mrtires. Curso de
direito constitucional. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 926.
-
26
cenrio poltico nacional tem demonstrado uma utilizao completamente deturpada deste
mecanismo.
Ocorre que o procedimento que deveria ser utilizado de forma extraordinria tornou-se
rotineiro Presidncia da Repblica, que por muitas vezes no observa a incidncia dos
pressupostos necessrios e rouba, atravs de suas funes atpicas, a funo tpica do poder
legislativo.
Tal prtica, como bem descreve Roberto Busato, acaba trancando a pauta no
Congresso Nacional e atrasando o exame de matrias importantssimas para o Pas30. Deste
modo, ela prpria acarreta dano de difcil reparao para o interesse pblico, colocando-se
frente de assuntos de maior relevncia.
Ivo Dantas tambm critica tal postura:
A previso constitucional que deveria ser vista como excepcional, chegou ao
ponto, no atual Governo, de assumir procedimento legislativo dirio, atravs
do qual, em alguns casos, nem mesmo as limitaes estabelecidas no
pargrafo 4 do art. 60 da CF so levadas em conta, quando, por exemplo,
direitos e garantias individuais (inatingveis pela Reforma ou Emenda Constitucional) foram feridos por edio de Medidas Provisrias
flagrantemente inconstitucionais.31
Tem-se ento novamente um conflito de interesses primrios e secundrios gerando
uma leso aos direitos coletivos. Para fazer valer seu poder legislativo atpico no que julga
pertinente, a Presidncia da Repblica cria Medidas Provisrias que no obedecem aos
pressupostos constitucionais e, por assim no serem de sua competncia legislativa,
invadem o campo de ao tpico do Poder Legislativo.
Deste modo, ou a Presidncia da Repblica esta buscando, de forma inconstitucional,
suprir uma carncia do Poder Legislativo interesse secundrio , ou est legislando
assuntos que somente no foram tratados pelo Legislativo por no possurem tamanha
relevncia ou consolidao de entendimento no congresso. Das duas formas, fere o Interesse
Pblico j de incio pelo simples fato de desobedecer ordenamento constitucional.
De um jeito ou de outro, tal prtica afasta-se da devida apurao do Interesse Pblico
da forma eleita para tanto o processo legislativo ordinrio. Assim, pela terceira vez, sana-se
30
BUSATO, Roberto. Busato critica excesso de medidas provisrias do governo Lula. Revista Consultor
Jurdico. 10 de fevereiro de 2005. Entrevista concedida coluna Cipoal Legislativo. Disponvel em:
. Acesso
em: 14 ago. 2014. 31
DANTAS, Ivo. Aspectos Jurdicos das Medidas Provisrias. 2. ed. Braslia: Editora Consulex, 1991. p. 59.
-
27
um problema de gesto interna (a notria lentido do Congresso em votar os projetos de lei)
lesando o Interesse Pblico.
Concludas as anlises prticas expostas, percebe-se que o Estado, em todas as suas
esferas de atuao, tem lesado o Interesse Pblico Primrio quando esse vem a conflitar com
seus interesses prprios, prtica inadmissvel pelos fatos e fundamentos j expostos
anteriormente.
Ocorre que, como j dito inicialmente neste mesmo item, por se tratar de uma
organizao humana, o Estado e seus interesses particulares esto sujeitos a uma srie de
equvocos, assim como os demonstrados acima.
Uma vez causadas leses aos Interesses Primrios, cabe sociedade buscar a
reconduo dos atos Estatais aos trilhos que lhes so devidos, ou seja, aqueles que levam
concretizao dos Interesses Pblicos que o legitimam.
Um dos meios mais efetivos nesta reconduo do Estado o processo judicial,
atravs do qual possvel obter condenaes que obriguem o poder pblico a indenizar por
leses injustamente causadas por ele; readequao das condutas e servios de modo que
reflitam o Interesse Pblico Primrio; medidas cautelares para resguardar direitos que estejam
em risco por conflitos de interesses estatais; etc.
Ocorre que tambm na relao jurdico-processual o Estado tem colocado seus
interesses prprios frente dos Interesses Pblicos Primrios, causando um conflito de
interesses dentro do processo judicial.
Tal conflito existe quando o Estado passa a se defender a qualquer custo, mesmo
quando a parte contrria tem razo e busca direitos legtimos que o ordenamento jurdico lhe
garante. justamente deste aspecto dos conflitos de interesses do Estado que passa a tratar o
captulo que se segue.
-
28
2 DA POSTURA PROCESSUAL DO ESTADO
2.1 Postura Processual Privada x Postura Processual do Estado
A dicotomia Direito Pblico-Direito Privado remonta ao Direito Romano,
especialmente no Digesto, 1.1.1.2 de Ulpiano, que dividiu o Direito em jus publicum e jus
privatum e definiu tal distino no trecho Publicum jus est quod ad statum rei romanae
spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem, que, em linhas gerais, significa aplicar
como critrio a utilidade da lei, ou seja, quando esta fosse de utilidade pblica, seria uma lei
de Direito Pblico; quando fosse de utilidade particular, seria uma lei de Direito Privado32
.
No sculo XIX o liberalismo buscou um afastamento entre as esferas Pblica e
Privada, as quais eram distintas de forma dogmtica por uma parte doutrina. J outra vertente
(Duguit e Kelsen) criticava duramente tal polarizao, pois entendia que a separao destes
ramos seria prejudicial ao direito, admitindo-a somente para fins didticos33
.
Como o Direito Privado havia se formado primeiro, o Direito Pblico passou
inicialmente a ser visto como um direito de exceo que serviria apenas para preencher as
lacunas deixadas pelo ramo Privado, viso criticada ante a fora intrnseca de auto-
integrao adquirida pelo direito administrativo34.
Surgiu ento um processo de progressiva publicatio de atividades35, que transferia
ao Estado as funes e atividades antes reguladas pelos particulares. Inicialmente este
processo causou certo receio, pois se acreditava que o Direto Pblico absorveria o Privado por
completo.
Contudo, esta dinmica transcendeu seu carter totalitrio e possibilitou uma
miscigenao dos dois ramos quando a Administrao Pblica passou a se utilizar de
esquemas privados (como a criao de entes pbicos econmicos regidos pelo direito
privado), surgindo assim ao mesmo tempo uma privatizao do Direito Pblico.
Odete Medauar define de forma brilhante tal momento jurdico:
Os processos de publicizao do direito privado e de privatizao do pblico
demonstram, de modo claro, a confluncia entre os dois setores, a qual se
32
TARTUCE, Flvio. Manual de Direito Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Editora Mtodo, 2012. p.
67. 33
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 170. 34
Ibid. p. 171. 35
MEDAUAR, Odete. loc. cit.
-
29
torna, assim, um dos corolrios das transformaes da atuao estatal e da
vida da sociedade, a partir da dcada de 70 do sculo XX. Disso resulta a
coexistncia, com igual dignidade, do direito administrativo e do direito
privado, possvel de ser interpretada como proximidade entre o direito
pblico e o direito privado.36
Por fim, muito embora tenham sido corretamente derrubadas as dicotomias
dogmticas e extremistas entre Direito Pblico e Direito Privado e observada a possibilidade
de dilogo entre os mesmos, hoje, alm dos fins didticos de separao, ainda se faz
necessria a diviso de tais ramos no que diz respeito sua operacionalidade pragmtica, ou
seja: na aplicao diferenciada dos mesmos princpios (como o da legalidade, j trabalhado);
na interpretao da norma; em demais aspectos operacionais e, para os propsitos buscados
neste captulo, na fixao de uma finalidade a ser alcanada.
Ora, se no direito privado os indivduos tm como delimitador da estipulao de suas
finalidades o princpio da legalidade, que estabelece que os particulares podem fazer tudo
aquilo que a lei no probe na busca de seus prprios interesses, no mbito pblico a
Administrao s pode fazer aquilo que a lei autoriza ou determina, instituindo-se um critrio
de subordinao lei37
.
Do mesmo modo, o j trabalhado Princpio da Primazia do Interesse Pblico, basilar
ao Estado Democrtico de Direito, abrange tanto a origem das normas que limitam o Estado,
como a determinao do rumo a ser por ele seguido.
Portanto, as finalidades buscadas pela Administrao tm origens e limitaes
completamente diversas das dos particulares. Isto justamente porque, como j se demonstrou,
o Interesse do Estado deve sempre corresponder ao Interesse Pblico Primrio, mesmo
quando em defesa de seus interesses secundrios, uma vez que estes no podem sequer deixar
de contribuir para a obteno dos primrios.
Observadas as distines capitais do Interesse Pblico e do Interesse Privado, torna-se
oportuna a anlise dessas diferenas dentro de uma relao jurdico-processual onde o Estado
atue em defesa de seus interesses prprios.
Vejamos inicialmente a atuao dos particulares nas relaes processuais. Uma vez
dotados de certa liberdade na escolha de seus fins, facultado aos particulares, por exemplo,
desistirem das demandas quando bem entenderem. O direito propriedade privada lhes
garante, em linhas gerais, a livre disposio de seus bens, sendo assim uma opo do
36
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 174. 37
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 31.
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30
indivduo abrir mo de tudo aquilo que, sendo seu, venha a ser objeto de litgio, mesmo
quando for vtima de uma demanda injusta. Simplificando, o particular pode perder
estando certo caso assim deseje. Um exemplo desta situao a do indivduo milionrio
que, para se ver livre de uma disputa judicial sobre bem que despreza, abre mo do mesmo.
Tambm quando demanda ou busca proteger seus direitos, pode o particular se
empenhar em obter a melhor condenao possvel para si, aproveitando-se de erros
processuais da outra parte; da falta de provas que o condenem mesmo sabendo que deveria ser
condenado; da mais apurada argumentao jurdica que lhe garanta proveitos econmicos; da
lentido da tramitao processual para forar acordos em valores abaixo dos devidos; etc. Ou
seja, pode o particular tambm buscar a soluo que lhe seja mais vantajosa quando demanda
ou demandado, mesmo sabendo que, em tese, no merecia a deciso obtida.
Um exemplo desta situao seria o caso do empregador que, demandado em
reclamao trabalhista, percebe que lhe cobrado apenas um tero do que realmente deixou
de pagar ao seu empregado, e celebra acordo em ainda metade destas verbas pleiteadas
utilizando-se do argumento de que tal condenao levaria meses.
Constata-se assim que, em ambas as situaes descritas estiveram inteiramente sobre o
controle dos interesses privados do indivduo a estipulao dos objetivos buscados
(observados os limites legais); a livre disposio de seus direitos da forma como lhe era mais
conveniente; a busca de situaes vantajosas para si em detrimento do direito alheio; ou seja,
a possibilidade de agir dentro do processo de acordo com seus interesses pessoais.
Observa-se no mbito privado, via de regra, uma busca incansvel pela vitria no
processo. Em geral, os ligantes buscam sempre as decises que lhes gere melhor proveito
econmico quando se demanda, ou menor prejuzo quando se demandado.
No mbito administrativo a busca nem sempre deve ser pela vitria no processo.
Nesta seara a situao deve ser diferente da exposta. A princpio, no que se refere disposio
patrimonial, no pode o Estado alienar como bem entende os bens pblicos, at mesmo
aqueles de valores baixos, pelo simples fato de que o princpio da legalidade incide no mbito
administrativo de forma que a administrao pode agir somente das formas que a lei estipula
e, no que diz respeito alienao destes bens, existe uma srie de disposies legais que
exigem a desafetao do bem, processo licitatrio, e mais uma srie de requisitos e
formalidades exigidos para a prtica do ato.
Assim, no pode o agente estatal, apenas para se ver livre de determinada demanda,
agir da mesma forma que o particular no exemplo citado anteriormente (resguardados os
casos em que os custos do trmite processual superem tal concesso e a lei assim permita).
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31
A administrao difere-se ainda mais de seus administrados no que diz respeito
estipulao dos objetivos a serem buscados na relao processual. Diferente destes ltimos,
no pode o Estado estipular seus interesses de forma a buscar o melhor resultado para si. O
Interesse do Estado j est determinado e legitima sua existncia: trata-se do j trabalhado
Interesse Pblico.
Wellington Pacheco Barros trata bem esta diferenciao entre os interesses do Estado
e dos particulares, seno vejamos:
O conceito de interesse para que a Administrao Pblica seja parte no
processo administrativo reside na existncia de uma pretenso jurdica
positiva ou negativa passvel de ser resistida por atingir direitos e interesses
de qualquer interessado. Essa pretenso jurdica naturalmente que deve estar
vinculada aos fins da administrao que, em outras palavras, o bem
comum.
Mas, diferentemente do interessado, que pode iniciar um processo
administrativo para buscar reparao de situaes jurdicas estritamente
pessoal, como o pedido de afastamento das funes formulado por servidor
pblico para tratar de interesses particulares por determinado tempo, a
Administrao Pblica, enquanto parte, fica limitada a parmetros
estritamente regrados na Constituio Federal, na Constituio Estadual, nas
leis orgnicas municipais ou nas leis ordinrias de qualquer esfera de
competncia.38
Portanto, se na esfera privada permitido que as partes busquem resultados que lhe
concedam maiores proveitos econmicos, ao Estado cabe sempre e to somente buscar a
concretizao dos interesses pblicos. Desta forma, se o particular, conhecendo sua conduta
ilcita, pode tentar se livrar de condenaes que o prejudiquem, ao Estado no possibilitada
tal conduta pelo fato de que a observncia da lei seu dever e maior interesse.
Assim, a vitria processual, para o Estado, nada mais do que a efetivao dos
interesses pblicos, ainda que, para isso, tenha de perder o processo e reconhecer erros que
impliquem em condenaes pecunirias.
Ora, se o Estado inobserva determinada lei e pratica ato ilegal que culmina em danos a
determinados indivduos, dever dele reconhecer seus erros e restituir os danos causados. Isto
porque seu interesse justamente que se cumpram as leis instrumentos do Interesse Pblico
legitimado pelo processo legislativo. A mquina pblica no deve visar o lucro, mas sim a
concretizao dos Interesses Pblicos.
38
BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Processo Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005. p. 87-88.
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Assim, considerando que parte do Interesse Pblico j foi apurado pelo processo
legislativo, cabe ao Estado ao menos a observncia e cumprimento da lei e dos fins para os
quais as leis foram criadas. Deste modo, se no exemplo antes citado podia o empregador
propor acordo em valor inferior ao que sabia dever, ao Estado cumpre observar o
ordenamento jurdico e propor exatamente o que deve, pois o interesse pblico primrio que
estipula os direitos trabalhistas sempre deve prevalecer quando confrontado com o interesse
pblico secundrio de economia dos cofres pblicos.
Deste modo, o princpio de supremacia do interesse pblico obriga o Estado a sempre
reconhecer os direitos de seus administrados. Refora-se aqui que, sendo uma instituio
composta por seres humanos, o Estado tambm se sujeita a erros, e no se exige uma
perfeio de conduta do mesmo, mas to somente que, quando demandado a respeito de suas
falhas, reconhea-as e sane-as de forma a reconduzir seus atos ao Interesse Pblico.
Logo, na prtica, tal postura implica na irrecorribilidade pelo Estado de sentenas com
intuito protelatrio; obrigatoriedade de, em caso de proposta de acordo em situaes de erro
da administrao, sejam oferecidos como pagamento valores integrais, efetivamente devidos;
impossibilidade de transacionar direitos adquiridos dos administrados; etc.
Logicamente que impossvel a criao de instrumentos legais que imponham tal
conduta ao Estado devida extrema subjetividade da apurao destas circunstncias. Sempre
possvel encontrar formas de disfarar o interesse pblico secundrio como sendo primrio e
apontar falsas mculas nas demandas dos particulares de forma a justificar medidas que se
divorciam, em sua real finalidade, do Interesse Pblico Primrio. Ou seja, sempre pode o
Estado, sabendo estar errado, justificar superficialmente a propositura de recursos
protelatrios, falta de acordos e demais medidas que deveria tomar em prol dos interesses
coletivos.
A mudana necessria diz respeito transformao da forma de ver o processo por
parte dos agentes do Estado.
A perspectiva de um representante do Estado no processo nunca deve ser de
antagonismo em relao outra parte, mas to somente de zelo pelos interesses pblicos.
Desta forma, observada a infringncia destes interesses por parte do Estado, deve seu
representante colocar-se ao lado do indivduo lesado e garantir que este seja devidamente
amparado pela deciso judicial, ainda que tal amparo lese economicamente a instituio que
representa em juzo. Da mesma forma, quando o Estado agiu dentro do que determinam tais
interesses, deve o representante lutar pela manuteno dos atos praticados. Assim, at
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observar a situao em que se encontra o Interesse Pblico no processo, deve o agente Estatal
agir de forma imparcial.
Cabe ainda ao judicirio o dever de observar de forma criteriosa os desvios de
interesse do Estado na relao processual ante a nulidade dos atos que contrariam o Interesse
Pblico Primrio. Tal responsabilidade ser melhor trabalhada adiante.
Feita esta anlise geral do interesse processual do Estado, cumpre ento observar a
forma que este se organiza no que diz respeito s suas demandas e como tem sido observado o
Interesse Pblico nestas relaes estruturais.
2.2 Da Indisponibilidade Do Interesse Pblico e a Hierarquia Dos Interesses Do Estado
Na Relao Processual
Conforme j se expos anteriormente, o Estado, para fazer valer o Interesse Pblico que
o legitima, precisou se materializar e organizar-se de forma a possuir meios efetivos na
realizao de suas tarefas. Para isso, se repartiu de inmeras formas. No que diz respeito a
seus poderes, dividiu-se em executivo, legislativo e judicirio. No que tange a federao,
dividiu-se em unio, estados e municpios. Para melhor administrar, ainda repartiu-se em
inmeras autarquias, fundaes, empresas pblicas, etc.
Ocorre que cada uma das esferas acima expostas possui tambm seu prprio
ordenamento interno, este mais especfico que aquele que o instituiu, e, para a rotina
operacional, muitas destas esferas criam regulamentaes ainda mais exclusivas e incidentais.
evidente que do exerccio normativo em tantas ramificaes surgiriam conflitos de
interesses de extrema complexidade. Chega-se possibilidade de o mesmo problema possuir
diferentes solues quando confrontadas esferas estatais diversas. Isto ocorre pelo simples
fato de que o Estado, em suas subdivises, repartiu tambm seus interesses, de modo a ter
rgos especficos para tratar de interesses especficos.
Dentre estes conflitos de interesses no so raros os casos em que, devido justamente a
esta extremada ramificao do poder estatal, colidem-se interesses primrios e secundrios.
Das inmeras situaes existentes, escolheu-se a oriunda do artigo 456 da Instruo
Normativa n 45 INSS/PRES, de 6 de agosto de 2010:
Art. 456. Quando se tratar de erro administrativo, o levantamento dos
valores recebidos indevidamente ser efetuado retroagindo cinco anos a
contar da data de incio do procedimento de apurao do erro que ensejou o
pagamento indevido, incluindo, ainda, os valores recebidos indevidamente
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entre essa data e a data da suspenso e cessao do benefcio, corrigidos na
forma preconizada no art. 175 do RPS, na data da elaborao dos clculos.
O dispositivo supramencionado trata da cobrana de benefcios previdencirios
concedidos equivocadamente por um erro da prpria administrao. Ressalta-se, de antemo,
que no se trata de fraude, mas sim erro unilateral do Estado.
o caso do segurado que solicita determinado benefcio previdncia, e esta, aps
uma anlise equivocada dos requisitos exigidos para a concesso, o implanta de forma
definitiva. Aps uma nova anlise, que pode ocorrer anos depois desta implantao, a
administrao ento percebe seu prprio erro e no apenas cancela o benefcio, como tambm
cobra do segurado a devoluo de todos os valores percebidos nos ltimos cinco anos.
As violaes de direitos geradas por este artigo iniciam-se na natureza jurdica da
verba cobrada, bem definida por Wladimir Novaes Martinez ao se referir alimentaridade
das prestaes previdencirias, e termina na ruptura pela prpria autarquia com sua atividade
fim, o qual segundo este mesmo autor consiste em propiciar os meios de subsistncia da
pessoa humana conforme estipulado na norma jurdica39.
Construda pela jurisprudncia ptria, a irrepetibilidade das verbas alimentares
encontra-se adstrita ao princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, e se traduz de
maneira brilhante no voto proferido pelo Excelentssimo Ministro Castro Meira na seguinte
deciso:
Outrossim, nos caso de verbas alimentares, urge tenso entre o princpio da
vedao ao enriquecimento sem causa e o princpio da irrepetibilidade dos
alimentos, fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1, I, da CF). Esse
confronto tem sido resolvido, nesta Corte, pela preponderncia da
irrepetibilidade das verbas de natureza alimentar recebidas de boa-f pelo
segurado.40
Isso se d pela preponderncia do bem jurdico vida quando confrontado com o bem
jurdico patrimnio, vez que os provimentos concedidos, devida ou indevidamente, j foram
utilizados para a manuteno da subsistncia do segurado, e a restituio destes valores, no
contexto previdencirio, costuma ser tarefa rdua para o mesmo que, de boa-f, percebeu o
benefcio e o utilizou com tal digna finalidade.
39
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito previdencirio. Noes de direito previdencirio. So
Paulo: LTr, 1997. Tomo I. p. 201- 208. 40
BRASIL. Superior Tribunal de Justia. AgRg no Recurso Especial n 1.352.754 - SE. Segunda Turma.
Relator: Min. Castro Meira. Disponvel em:
. Acesso em: 10 set. 2014.
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A mencionada boa-f surge como segundo fundamento da irrepetibilidade destas
verbas, vez que no se pode penalizar o beneficirio com o nus da restituio, porquanto
no houve m-f na incorporao do benefcio a seu patrimnio41.
Tal fundamento ainda se encontra de maneira analgica em diversas decises do
Superior Tribunal de Justia, como se observa do voto do Excelentssimo Ministro Benedito
Gonalves:
[...] quando a Administrao Pblica interpreta erroneamente uma lei,
resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa
de que os valores recebidos so legais e definitivos, impedindo, assim, que
ocorra descontos dos mesmos, ante a boa-f do servidor pblico.42
Assim, percebe-se que um dispositivo oriundo de Instruo Normativa extremamente
especfica e incidental, criado por uma autarquia tambm especfica do Estado, terminou por
ferir princpios basilares do Estado Democrtico de Direito a dignidade da pessoa humana e
a boa-f para resguardar um interesse pblico secundrio que se originou de um erro do
prprio Estado.
Tal incoerncia, muito embora venha sendo invariavelmente observada e corrigida
pelos tribunais superiores, tem-se mantido como prtica rotineira dos procuradores desta
autarquia, vez que tal instruo normativa permanece vigente e seu cumprimento imposto
aos seus representantes.
Assim, h um rompimento na cadeia hierrquica dos interesses do Estado devida a esta
ramificao dos mesmos sem que haja uma postura de submisso geral da mquina ao
Interesse Pblico Primrio.
Deste modo, mesmo tendo o Estado organizado suas normas de forma hierrquica e
eleito os princpios constitucionais como norteadores das relaes jurdicas, na prtica
processual tal hierarquia trada por este mesmo Estado, quando, atravs de suas instituies,
estabelece regulamentos que os ferem para preservar interesses prprios.
Pontes de Miranda j sinalizava tal prtica como sendo nula e inconstitucional:
41
BRASIL. Superior Tribunal de Justia. AgRg no Recurso Especial n 1.352.754 - SE. Segunda Turma.
Relator: Min. Castro Meira. Disponvel em:
. Acesso em: 10 set. 2014. 42
BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n 1.244.182 - PB. Primeira Seo. Relator: Min.
Benedito Gonalves. Disponvel em:
. Acesso em: 10 set. 2014.
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36
Se o regulamento cria direitos ou obrigaes novas, estranhos lei, ou faz
reviver direitos, deveres, pretenses, obrigaes, aes ou excees, que a lei
apagou, inconstitucional. Por exemplo: se faz exemplificativo que
taxativo, ou vice-versa. Tampouco pode ele limitar ou ampliar direitos,
deveres pretenses, obrigaes ou excees proibio, salvo se esto
implcitas. Nem ordenar o que a lei no ordenou [...]. Nenhum princpio
novo ou diferente, de direito material se lhe pode introduzir. Em
consequncia disso, no fixa nem diminui, nem eleva vencimentos, nem
institui penas, emolumentos, taxas ou isenes. Vale dentro da lei; fora da lei
a que se reporta, ou das outras leis, no vale. Em se tratando de regras
jurdicas de direito formal, o regulamento no pode ir alm da edio das
regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurdica.
Sempre que no regulamento se insere o que se afasta, para mais ou para
menos, da lei, nulo, por ser contrria lei a regra jurdica que se tentou
embutir no sistema jurdico.
Se regulamentando a lei a o regulamento fere a Constituio ou outra lei, contrrio Constituio ou lei, e em consequncia nulo o que editou. A pretexto de regulamentar a lei a, no pode o regulamento, sequer, ofender o que, a propsito de lei b outro regulamento estabelecer.43
Celso Antnio Bandeira de Mello especifica ainda quando tal inovao nos interesses
do Estado atravs destas regulamentaes deve ser proibida:
H inovao proibida sempre que seja impossvel afirmar-se que aquele
especfico direito, dever, obrigao, limitao ou restrio j estavam
estatudos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: h
inovao proibida quando se possa afirmar que aquele especfico direito,
dever, obrigao, limitao ou restrio incidentes sobre algum no
estavam j estatudos e identificados na lei regulamentada. A identificao
no necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheam
as condies bsicas de sua existncia em vista de seus pressupostos,
estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.44
Contudo, muito embora doutrina e jurisprudncia observem as incoerncias apontadas,
tal postura da Administrao persiste tanto na criao destes ordenamentos especficos quanto
na pr-determinao de condutas processuais aos procuradores da Unio, que para
resguardarem interesses prprios do Estado, praticam medidas lesivas coletividade,
conforme se passa a observar no prximo item.
43
MIRANDA, Pontes de. Comentrios Constituio de 1967 c/a Emenda n 1 de 1969. 2. ed. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 1970. Tomo III. p. 316-317. 44
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros
Editores, 2010. p. 355.
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2.3 Da Advocacia Geral Da Unio e Suas Diretrizes Processuais O Acordo
A Constituio Federal dedicou os artigos 131 e 132 para tratar da representao
estatal em juzo, estipulando, em linhas gerais, que a representao da Unio cabe a
Advocacia-Geral da Unio; Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional cabe a representao
da Unio exclusivamente no que diz respeito execuo da dvida ativa de natureza tributria;
e aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, cabe a representao judicial das
respectivas unidades federadas.
Como j se ponderou no item anterior, assim como as demais instituies do Estado, a
Advocacia Pblica, em suas ramificaes, tambm possui poder normativo no que diz
respeito coordenao de sua atuao. Deste modo, o Estado busca promover uma atuao
uniforme com posturas bem delineadas em todo o territrio nacional.45
Em extremada sntese, a advocacia, seja na esfera privada ou pblica, consiste na
representao dos legtimos interesses da parte que se faz representar, de forma a
instrumentalizar as vontades emanadas por ela com as devidas orientaes e remdios
jurdicos cabveis na busca de seus direitos, funo esta indispensvel administrao da
justia, como bem prev o artigo 133 da Constituio Federal.
Assim, de antemo j se pode concluir que do prprio advogado no surgem os
interesses defendidos, mas to somente se fazem representar. Neste sentido, se tem como
inadmissvel, seja na esfera privada ou pblica, que os mtodos de atuao escolhidos pelo
advogado venham a proporcionar uma conduta que contrarie os interesses a ele conferidos
pela parte que se fez representar.
Isto posto, ainda que seja facultado advocacia pblica regular sua atuao por meio
de smulas, pareceres, instrues normativas, portarias, etc., inadmissvel que estas normas
venham a confrontar-se com os interesses pblicos tutelados pelas instituies que
representam, seja pela indisponibilidade do Interesse Pblico; seja pela incompatibilidade
com a funo de representao; ou, ainda, seja pelo respeito hierrquico s leis que
regulamentam as entidades defendidas.
Ora, uma vez que tais normas regulamentam a atuao procedimental da advocacia
pblica (interesse secundrio do Estado), estas somente poderiam existir quando conflussem
45
AMORIM, Filipo Bruno Silval. A construo da AGU e a histria da orientao jurdica e da representao
judicial do Estado Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3414, 5 nov. 2012. Disponvel em:
. Acesso em: 13 set. 2014.
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38
com os demais ordenamentos que ditam o interesse pblico primrio, conforme j exposto
anteriormente.
Contudo, tem-se visto na prtica forense situaes onde os regimentos internos da
advocacia pblica obstruem direitos oriundos do Interesse Pblico Primrio, em geral para
garantir economia aos cofres pblicos. Dentre estas situaes, torna-se pertinente a anlise
sobre a metodologia utilizada pelos advogados pblicos para a propositura de acordos.
A Portaria de n 109/2007 da Advocacia Geral da Unio, em seu artigo 2, concede aos
representantes judiciais da Unio, autarquias e fundaes pblicas o direito de transigir,
deixar de recorrer, desistir de recursos interpostos ou concordar com a desistncia do pedido.
J o artigo 3, II, desta mesma portaria estabelece que todos os mecanismos de que
trata o artigo 2 somente podero ocorrer quando inexistir controvrsia quanto ao fato e ao
direito aplicado.
Ora, nada mais coerente que se faa tal verificao da solidez dos direitos
transacionados de modo a evitar que desvios de interesse venham a macular o acordo
celebrado. Ademais, verificados incontroversos os fatos e direitos que perfazem o pleito da
parte que aciona o Estado, nada mais justo que este, fundado no direito exposto, reconhea-o
e conceda-o da forma como o mesmo devido.
No entanto, prtica corriqueira do Estado, nos processos em que figura como ru,
propor acordos que costumam vir acompanhados de certo desgio, usualmente em torno de
30% do valor estimado pela provvel condenao46
.
Nas pesquisas feitas para encontrar a origem e fundamento deste desgio chegou-se,
primeiramente, na Ordem de Servio 13/2009 da Procuradoria Geral a Unio, que estipulava,
dentre os requisitos para a propositura do acordo, o desgio mnimo de 10% em seu artigo 4,
II:
II - no caso de dbitos da Unio, haver reduo de, no mnimo, 10% (dez por
cento) do valor estimado da condenao e se o autor da ao se
responsabilizar pelos honorrios de seu advogado e eventuais custas
judiciais, aceitando ainda a incidncia de juros de mora desde a citao
vlida no percentual mximo de 0,5% (meio por cento) ao ms, bem como o
desconto dos impostos e das contribuies respectivas;
Vedava-se ainda ao acordo que abarcasse os honorrios advocatcios em sua proposta.
Em 2011 tal dispositivo foi alterado pela Ordem de Servio 18/2011, a qual, muito embora