monografia do interesse público primário como delimitador do interesse processual do estado

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  UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ DANILO BORGES PAULINO DO INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE PROCESSUAL DO ESTADO MARINGÁ 2014

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MONOGRAFIA feita por Danilo Borges Paulino como conclusão do curso de direito da Universidade estadual de Maringá em 2014, trata do interesse público primário como delimitador do interesse processual do estado

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

    DANILO BORGES PAULINO

    DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE

    PROCESSUAL DO ESTADO

    MARING

    2014

  • DANILO BORGES PAULINO

    DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE

    PROCESSUAL DO ESTADO

    Monografia apresentada Universidade

    Estadual de Maring como requisito parcial

    para obteno do ttulo de bacharel em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis

    Campos Silva.

    MARING

    2014

  • DANILO BORGES PAULINO

    DO INTERESSE PBLICO PRIMRIO COMO DELIMITADOR DO INTERESSE

    PROCESSUAL DO ESTADO

    Monografia apresentada Universidade

    Estadual de Maring como requisito parcial

    para obteno do ttulo de bacharel em Direito.

    Aprovado em 27 de novembro de 2014

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva

    Universidade Estadual de Maring

    ________________________________________________

    Prof. Ms. Maurcio Kalache

    Universidade Estadual de Maring

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Antonio Carlos Segatto

    Universidade Estadual de Maring

  • Dedico este trabalho a Deus e a minha famlia,

    responsveis pelo homem que me tornei e

    pelos valores que defendo.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Doutor Nilson Tadeu Reis Campos Silva, por aceitar de prontido a

    rdua tarefa de me orientar.

    minha me, que me ensinou a amar o direito e ver nele um dever de transformar a

    sociedade que vivemos, independentemente das dificuldades enfrentadas. Ao meu pai e aos

    meus irmos, que sempre me deram foras para alcanar os meus sonhos.

    Ao Procurador Federal Leonardo Zagonel Serafini, com o qual aprendi que a

    Advocacia Pblica possui uma responsabilidade com a sociedade que ultrapassa os processos.

    Aos grandes amigos que o direito me deu, dentre eles Guilherme Bolognini Tavares,

    Arthur Orsini Maziero, Joo Paulo Corsi Freire e Leandro Taufic Pinto, com os quais discuti e

    aprendi lies que levarei por toda minha carreira jurdica.

    Isabela Maria Reck, que me deu motivos, compreenso e apoio indispensveis para

    a concluso deste trabalho.

  • Todo homem que se indigna e experimenta

    profunda clera, vendo o direito oprimido pela

    arbitrariedade, possui-o sem dvida alguma.

    (Rudolf Von Ihering)

  • RESUMO

    O Interesse Pblico constitui um princpio basilar a todo Estado Democrtico de Direito.

    Apesar de sua importncia, conceitu-lo permanece sendo tarefa nebulosa ante tamanha

    complexidade e abrangncia. Neste sentido, cumpre observar que interpretaes superficiais como um conceito aritmtico de interesses da maioria ou um simples antagonismo em relao aos interesses privados no logram xito em absorver por completo tal conceito. Isto porque ele prprio composto de parcelas individuais dos interesses dos particulares, e no

    basta que seja um interesse comum, preciso que este resida na esfera pblica dos interesses

    individuais. Assim, o Interesse Pblico surge como a dimenso pblica dos interesses

    individuais. Contudo, para efetivar tais interesses atravs de aes o Estado precisa se

    constituir como pessoa jurdica, surgindo assim necessidades e interesses prprios a sua

    personalizao. No entanto, por ser o Estado apenas uma instrumentalizao dos interesses

    coletivos, seus interesses prprios limitam-se naqueles que o legitimaram. Assim, no se pode

    conceber interesses prprios do Estado que contrariem ou no colaborem com os interesses

    coletivos. Neste ponto, a atuao do Estado dentro da relao jurisdicional possui tica

    completamente diferente da privada. A finalidade buscada pelo Estado na relao processual

    to somente a realizao dos Interesses Pblicos. Assim, quando o particular pleitear direitos

    aos quais faz jus, dever do Estado reconhece-los integralmente, independentemente se para

    tanto sofrer prejuzos pecunirios. Qualquer desvio destes interesses pela atuao estatal est

    sujeito responsabilidade civil do Estado, a qual tem o condo de corrigir tais deturpaes

    mediante indenizaes dos danos causados.

    Palavras-chave: Interesse Pblico. Estado. Finalidade. Responsabilidade civil do Estado.

  • ABSTRACT

    The Public Interest is a fundamental principle to any democratic state. Despite its importance,

    conceptualize it remains nebulous task because of its complexity and range. In this way, it

    should be noted that superficial interpretations - as an arithmetic concept of "interests of the

    majority" or a simple antagonism to private interests - do not achieve success in the

    completely absorption of the concept. This is because itself is composed of individual

    portions of the interests of individuals, and its not enough only to be a common interest, it is necessary that this resides in the public sphere of individual interests. Thus, the Public Interest

    arises as the public dimension of individual interests. However, to obtain their interests

    through actions the state must be constituted as a legal entity, so emerging needs and interests

    own of its personification. However, being the state only one instrumentalization of collective

    interests, its own interests are limited by those that legitimize them. Thus, is unconceivable

    that the state own interests contrary or that do not collaborate with collective interests. At this

    point, the performance of the state within the jurisdictional proceedings is completely

    different from the private performance. The purpose chased by the State in the jurisdictional

    proceedings is simply the realization of the Public Interests. So when the particular claim

    rights to which is entitled, it is the duty of the State recognizes them fully, independent if it

    will suffer pecuniary loss. Any detour from these interests by state action is subject to the

    responsibility of the State, which has the power to correct such misrepresentations by

    compensation of damage.

    Keywords: Public Interest. State. Finality. Responsibility of the State.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 9

    1 DO INTERESSE PBLICO .............................................................................................. 11 1.1 Conceito Geral .................................................................................................................. 11 1.2 Interesse Pblico Primrio e o Princpio da Legalidade ............................................... 14 1.3 Interesse Pblico Secundrio e Os Limites Da Mquina Pblica ................................ 18

    1.4 Do conflito entre os Interesses Pblicos Primrios e Secundrios Nos Litgios Do

    Estado ...................................................................................................................................... 22

    2 DA POSTURA PROCESSUAL DO ESTADO ................................................................. 28 2.1 Postura Processual Privada x Postura Processual do Estado ...................................... 28

    2.2 Da Indisponibilidade Do Interesse Pblico e a Hierarquia Dos Interesses Do Estado

    Na Relao Processual ........................................................................................................... 33 2.3 Da Advocacia Geral Da Unio e Suas Diretrizes Processuais O Acordo ................. 37

    2.4 Do dever de obedincia do Estado ao Direito Adquirido, ao Ato Jurdico Perfeito e

    Coisa Julgada .......................................................................................................................... 42

    3 DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO ....................................................................... 46

    3.1 Responsabilidade Administrativa e Responsabilidade Civil do Estado aspectos gerais ........................................................................................................................................ 46

    3.2 Responsabilidade Civil por erro administrativo a presuno de legitimidade dos atos do Estado e a pluralidade dos interesses tutelados ...................................................... 48

    3.3 Responsabilidade Civil por Ato Jurisdicional O Dever Do Judicirio De Reconhecer Os Desvios De Finalidade Da Administrao Pblica .................................... 51

    CONCLUSO ......................................................................................................................... 57

    REFERNCIAS ..................................................................................................................... 58

  • 9

    INTRODUO

    O Estado representa nos dias atuais o maior demandado nos tribunais ptrios. Seja em

    nome da Unio, dos municpios, dos estados, ou ainda em nome das autarquias, empresas

    pblicas, etc., nenhuma pessoa fsica ou jurdica possui tantos processos em seu desfavor.

    Tambm como autor o Estado lidera as demandas. Tudo isso ocorre justamente devido sua

    magnitude. Pessoa alguma tem tamanha representatividade e to vasta diversidade de atos.

    Assim, de enorme importncia para a sociedade a anlise da atuao estatal nestes

    processos. Isto porque, diferente dos particulares, o Estado possui uma finalidade a ele

    imposta e inescusvel: o Interesse Pblico. Constitudo como um instrumento do Interesse

    Pblico, o Estado encontra nos interesses pblicos/coletivos sua legitimidade, finalidade e,

    principalmente, sua limitao. evidente que para alcan-los o Estado precisou se constituir

    como pessoa jurdica e, para tanto, passou a possuir interesses prprios atinentes realizao

    prtica dos interesses coletivos, tendo assim interesses prprios alm dos pblicos.

    No entanto, em toda e qualquer conduta do Estado esses interesses prprios (interesses

    pblicos secundrios) no podem contrariar ou ignorar os interesses pblicos propriamente

    ditos, vez que os legitimam.

    Deste modo, a conduta do Estado dentro do processo tambm distinta daquela

    praticada pelos administrados, uma vez que a estes ltimos permitida a busca de tudo aquilo

    que quiserem, desde que no proibido por lei, observando-se assim na prtica, via de regra,

    uma busca incansvel pela vitria processual na obteno das maiores condenaes quando

    se demanda, e dos menores prejuzos quando se demandado.

    Contudo, no pode o Estado agir desta maneira. Seus interesses devem ter um enfoque

    diferenciado por se originarem na coletividade. Logo, quando o Estado comporta-se como os

    particulares e ofende direitos coletivos na busca apenas da vitria processual, ele se

    divorcia dos interesses que lhe legitimavam a agir e pratica ato nulo.

    Muitas vezes esses atos do Estado que contrariam os interesses coletivos terminam por

    causar danos aos administrados. Logo, deve ser tambm interesse do Estado repar-los, no

    intuito de trazer sua conduta de volta quilo que o legitima.

    O presente trabalho est dividido em trs captulos, onde se buscou demonstrar um

    aprofundado conceito de Interesse Pblico, uma anlise pontual da atuao do Estado quando

    integrante de relaes processuais, e, ainda, os casos em que deve haver indenizao por

    danos oriundos de desvios de sua finalidade.

  • 10

    O primeiro captulo trata da conceituao dos interesses pblicos primrios e

    secundrios, a relao desses com os demais princpios de direito e uma anlise focada no

    conflito entre eles.

    O segundo captulo, por sua vez, tem enfoque no interesse processual do Estado e sua

    atuao quando integrante da lide. Traz ainda anlises de casos prticos onde se vislumbra

    flagrante conflito entre interesses primrios e secundrios do Estado e mudanas necessrias

    para corrigir tal desvio de finalidade.

    Por fim, o terceiro captulo trabalha a responsabilidade civil do Estado com enfoque

    nos danos oriundos deste conflito de interesses, tratando ainda da responsabilidade e dever do

    Poder Judicirio em reconhecer tais nulidades.

    Espera-se que o presente trabalho possa contribuir para uma mudana da atuao

    estatal dentro da relao processual, protegendo-se assim os interesses coletivos que

    legitimam seus atos.

  • 11

    1 DO INTERESSE PBLICO

    1.1 Conceito Geral

    Um dos grandes desafios da doutrina ptria encontra-se na ideal definio do que seria

    o Interesse Pblico. Embora tenha sua importncia indiscutivelmente reconhecida pelos

    renomados doutrinadores de Direito Administrativo, a definio deste princpio complexa e

    repleta de diferentes fundamentos, tornando sua compreenso um desafio de extrema

    seriedade que remonta origem deste ramo basilar do Direito.

    Celso Antnio Bandeira de Mello, ao tratar das bases ideolgicas do Direito

    Administrativo, prope uma ruptura costumeira imagem de um ramo aglutinador de

    poderes desfrutveis pelo Estado e o define como sendo um conjunto de limitaes aos

    poderes do Estado ou, muito mais acertadamente, como um conjunto de deveres da

    Administrao em face dos administrados.1. Neste sentido, pautado nas limitaes e deveres

    do Estado, o renomado jurista sintetiza o que entende por serem as pedras de toque do

    regime jurdico-administrativo:

    O regime de direito pblico resulta da caracterizao normativa de

    determinados interesses como pertinentes sociedade e no aos particulares

    considerados em sua individuada singularidade.

    Juridicamente esta caracterizao consiste, no Direito Administrativo,

    segundo nosso modo de ver, na atribuio de uma disciplina normativa

    peculiar que, fundamentalmente, se delineia em funo da consagrao de

    dois princpios:

    a) Supremacia do interesse pblico sobre o privado; b) Indisponibilidade, pela Administrao, dos interesses pbicos.2

    Desta forma, o Interesse Pblico surge como a base geral do Estado, limitando seus

    poderes de forma que respeitem a finalidade para a qual foi criado, posto que reside nesta

    razo limitao x finalidade o motivo de ser do Estado, o qual apenas a

    instrumentalizao da sociedade na obteno destes fins.

    Contudo, que fins so estes? O que afinal representa as vontades e interesses da

    sociedade como um todo? A primeira ideia que surge ao se pensar num interesse coletivo a

    sua contraposio ao interesse privado, ou seja, o interesse pessoal de cada indivduo. No

    entanto, tal acepo imprecisa por focalizar em um antagonismo que no abrange a origem

    1 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 43. 2 Ibid. p. 55.

  • 12

    do interesse da sociedade. Neste sentido, tornam-se pertinentes os ensinamentos de Luiz

    Alberto Blanchet, quando diz que o direito administrativo no rege a defesa dos interesses

    pblicos contra os particulares, mas a compatibilizao dos interesses do homem considerado

    como indivduo e deste como membro integrante de uma coletividade organizada e em

    constante evoluo3.

    Isto posto, observa-se ento que o Interesse Pblico no se contrape e nem se

    desvincula do interesse individual, mas se constri atravs da soma das individualidades, da

    dimenso pblica dos interesses individuais como alcunha Celso Antnio Bandeira de

    Mello, que distingue brilhantemente o interesse pessoal do interesse coletivo do sujeito ao

    apontar que, um indivduo pode ter, e provavelmente ter, pessoal e mximo interesse em

    no ser desapropriado, mas no pode, individualmente, ter interesse em que no haja o

    instituto da desapropriao4.

    Portanto, o Interesse Pblico deve ser conceituado como o resultado dos interesses dos

    indivduos quando considerados em sua qualidade de membros de uma sociedade.

    Maral Justen Filho critica a apurao do Interesse Pblico atravs do interesse da

    maioria por entender que o mesmo conduz opresso e significa a destruio dos

    interesses das minorias, afirmando que no se pode fundamentar o conceito de interesse

    pblico numa concepo aritmtica5.

    Neste sentido, a concepo trazida por Celso Antnio Bandeira de Mello certeira ao

    se referir especificamente dimenso pblica da soma dos interesses individuais. Assim, os

    interesses coletivos de natureza privada afastam-se do conceito do Interesse Pblico.

    Ainda, pertinente se faz a observao feita por Maral Justen Filho de que sequer

    existe apenas um nico Interesse Pblico, mas sim interesses pblicos, in verbis:

    Justamente por isso, nem sequer h um modo prtico de descobrir o interesse da maioria do povo. que no existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. No existe um conjunto homogneo de

    interesses privados ao qual se possa atribuir a condio de interesses da

    maioria. Na sociedade moderna, h uma pluralidade de sujeitos, com

    interesses contrapostos e distintos.6

    Deste modo, a soluo encontrada pelo autor para uma precisa apurao dos interesses

    coletivos reside na observao da disponibilidade do direito analisado. Segundo ele, um

    3 BLANCHET, Luiz Alberto. Curso de direito administrativo. 2. ed. Curitiba: Juru, 2000. p. 13.

    4 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 60. 5 JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 40-41.

    6 Ibid. p. 42-43.

  • 13

    interesse deixa de ser privado quando sua satisfao no possa ser objeto de alguma

    transigncia, assim, um interesse pblico por ser indisponvel, e no o inverso7.

    Logo, resta evidenciado o carter instrumental da Administrao Pblica, a qual no

    tem em seu controle a criao ou disposio dos interesses pblicos, mas to somente o dever

    de defend-los e concretiz-los. o carter de poder-dever de que trata Maria Sylvia

    Zanella Di Pietro, onde diz que Precisamente por no poder dispor dos interesses pblicos

    cuja guarda lhes atribuda por lei, os poderes atribudos Administrao tm o carter de

    poder-dever; so poderes que ela no pode deixar de exercer, sob pena de responder pela

    omisso8.

    Neste mesmo sentido aponta Alberto Massera, renomado doutrinador italiano, ao

    afirmar que a Administrao no tem interesses substanciais prprios que sejam diversos

    daqueles relativos realizao de concretas utilidades sociais9.

    A respeito de no ser tratado de forma literal pela Constituio Federal (que, no

    entanto, o absorve plenamente), foi da Lei n 9.784/99 o papel de dar tal nomenclatura a este

    princpio. O texto legal dispe, em seu art. 2, que a Administrao Pblica obedecer, dentre

    outros princpios, o Interesse Pblico. J o pargrafo nico, II, deste mesmo artigo,

    determina que nos processos administrativos devem-se observar os fins de interesse geral,

    vedando a renncia total ou parcial de poderes ou competncias, salvo quando houver

    autorizao em lei.

    Independentemente da omisso, a supremacia do interesse pblico constitui a base dos

    demais preceitos administrativos trazidos pela constituio, como bem expe Celso Antnio

    Bandeira de Mello:

    O princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse privado

    princpio geral do Direito inerente a qualquer sociedade. a prpria

    condio de sua existncia. Assim, no se radica em dispositivo especfico

    algum da Constituio, ainda que inmeros aludam ou impliquem

    manifestaes concretas dele, como, por exemplo, os princpios da funo

    social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art.

    170, III, V e VI), ou tantos outros. Afinal, o princpio em causa um

    pressuposto lgico do convvio social.10

    7 JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 43.

    8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. So Paulo: Atlas, 2012. p. 67.

    9 MASSERA, Alberto. Individuo e amministrazione nello Stato sociale. Rivista Trimestrale di Diritto e

    Procedura Civile, mar. 1991. p. 45. 10

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 96.

  • 14

    Observada a abrangncia deste princpio a todo o ordenamento ptrio, resta ento

    contemplar a distino doutrinria do que seria o Interesse Pblico Primrio ou Propriamente

    Dito e o Interesse Pblico Secundrio.

    Em linhas gerais, o Interesse Pblico Primrio ou Propriamente Dito corresponde ao

    conceito at ento trabalhado, ou seja, o interesse do todo a soma da dimenso pblica dos

    interesses individuais. O Interesse Pblico Secundrio, por sua vez, surge diante do fato de

    que o Estado, assim como os particulares, tambm possui personalidade jurdica, tendo assim

    tambm seus interesses particulares, atinentes gesto prtica da mquina pblica.

    Ambos os conceitos possuem vasta conceituao terico-filosfica e passam a ser

    melhor expostos nos tpicos que se seguem.

    1.2 Interesse Pblico Primrio e o Princpio da Legalidade

    Conforme j se discorreu no tpico anterior, o Interesse Pbico Primrio ou

    Propriamente Dito nada mais do que a soma dos interesses particulares dos indivduos

    quando considerados em sociedade, formando-se assim uma gama de interesses coletivos

    indisponveis. Entretanto, de que forma estes interesses apresentam-se na realidade jurdica

    nacional?

    Desde sua origem o Estado brasileiro optou pelo regime jurdico romano-germnico,

    que, em linhas gerais, determina uma superioridade da lei sob todos os demais aspectos para

    dirimir conflitos. Por sua vez, a Constituio Federal brasileira traz, no pargrafo nico de seu

    artigo 1, que Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos

    ou diretamente, dividindo ainda os poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judicirio,

    e dando ao primeiro a competncia para legislar.

    Percebe-se assim que as leis que gerem a sociedade so criadas pelos representantes

    dos prprios indivduos que a compe, e somente tem fora coercitiva por terem se originado

    do poder combinado destes indivduos. Portanto, a lei nada mais do que a codificao do

    Interesse Pblico de modo que esse possa se apresentar de uma forma organizada e com efeito

    erga omnes.

    Esta lei, por sua vez, muito embora tenha se originado do interesse de cada indivduo,

    deve atender somente parcela pblica dos interesses individuais, limitando seus interesses

    privados de modo que a sociedade possa ser construda de modo justo e igualitrio.

  • 15

    Jean-Jacques Rousseau11

    argumenta que ao criar o Estado o homem renuncia

    coletividade uma parcela de sua liberdade, porm, sendo ele prprio parte integrante e ativa

    dessa coletividade, ao obedecer lei, obedece a si mesmo e, portanto, livre. Deste modo a

    sociedade no perde sua soberania justamente pelo fato de que o Estado no um ente

    apartado dela mesma, mas sim a instrumentalizao de suas vontades.

    Para Celso Antnio Bandeira de Mello o Princpio da Legalidade surge no campo do

    Direito Administrativo como especfico do Estado de Direito, sendo o fruto da submisso do

    Estado a lei12. Esta tica (de submisso), por sua vez, aplicvel somente Administrao,

    vez que este mesmo princpio comporta-se de forma diferente em relao ao mbito privado,

    como bem pondera Fernanda Marinela:

    Para definir a legalidade, aplicando-se o ordenamento jurdico vigente,

    devem ser analisados dois enfoques diferentes. De um lado, tem-se a

    legalidade para o direito privado, onde as relaes so travadas por

    particulares que visam aos seus prprios interesses, podendo fazer tudo

    aquilo que a lei no proibir. Por prestigiar a autonomia da vontade,

    estabelece-se uma relao de no contradio lei.

    De outro lado, encontra-se a legalidade para o direito pblico, em que a

    situao diferente, tendo em vista o interesse da coletividade que se

    representa. Observando esse princpio, a Administrao s pode fazer aquilo

    que a lei autoriza ou determina, instituindo-se um critrio de subordinao

    lei. Nesse caso, a atividade deve no apenas ser exercida sem contraste com

    a lei, mas, inclusive, s pode ser exercida nos termos da autorizao contida

    no sistema legal.13

    Portanto, no Direito Pblico a lei no somente se encontra imbuda da funo de

    expressar oficialmente o Interesse Pblico, como tambm instrumento para exigi-lo e limite

    para que o mesmo no seja transpassado.

    Se antes o Interesse Pblico era to somente um somatrio de vontades abstratas e de

    complexa definio, o que possibilitava uma perigosa gama de interpretaes emanadas pelo

    Estado que eventualmente divergiriam do real interesse do todo, agora ganhou forma em

    uma srie de determinaes legais construdas pela atividade legislativa.

    11

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978. 12

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 100. 13

    MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 31.

  • 16

    Deste modo, ao Estado cabe to somente a ponderao dos interesses que

    eventualmente venham a se confrontar, falando-se at mesmo em um princpio da no

    sacrificabilidade (sic) a priori de nenhum interesse14.

    Uma vez confrontados e apurados atravs do processo legislativo, os interesses

    coletivos passam a integrar um rol de interesses dotados de exigibilidade direta e, excetuadas

    as devidas ressalvas, incontestvel perante a Administrao Pblica. Este rol nada mais do

    que os Interesses Pblicos j transformados em lei.

    Ora, se antes a anlise dos interesses coletivos era subjetiva e passvel de

    questionamentos, com a instituio de um Estado democrtico representativo passa-se a ter

    uma forma de organizao atravs da qual se expurga toda questionabilidade e subjetividade

    que antes minava os interesses trazidos pelos indivduos como sendo do todo. No apenas

    conquista-se esta credibilidade, como cria-se um crivo para que os governantes no se

    apropriem do Interesse Pblico e ditem as vontades da coletividade de acordo com o que lhes

    convm.

    Assim, se antes o agente estatal se via livre para, na sua prpria concepo pessoal,

    atuar em nome da coletividade, agora possui toda uma legislao que descreve pontualmente

    o que pode (e deve) fazer quando em nome do Estado. A respeito do que no pode fazer,

    conforme j se explicou acima, tudo aquilo que diverge das predeterminaes de sua

    atividade. A lei cuidadosa ao pr-estabelecer toda a atividade da Administrao, a qual se v

    atrelada at mesmo ao silncio do legislador, como bem descreve Rafael Munhoz de Mello:

    O fundamento da atuao do agente administrativo a lei formal que lhe

    outorga competncia para agir. Sem lei formal no h competncia e, portanto, falta fundamento para qualquer atuao lcita da Administrao

    Pblica.

    Se assim, no silncio da lei est a Administrao Pblica proibida de agir.

    Toda manifestao da funo administrativa depende de prvia autorizao

    do legislador, autorizao que concedida atravs da outorga de

    competncia. Sem que haja tal autorizao, presume-se que o legislador no

    deseje que a Administrao Pblica atue.15

    Deste modo, o Interesse Pblico legislado pauta toda a atividade do Estado em seus

    mnimos detalhes, de modo que at sua omisso deve ser observada com cautela. Contudo,

    nem sempre a simples leitura do texto legal assegura sociedade que o Estado est cumprindo

    14

    MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2003. p. 192 apud PIVA, Giorgio. Lamministratore pubblico nella societ pluralista. Scriti in onore de Massimo Severo Giannini. Milano: Giufr, 1988. v. 2. p. 501.

    15 MELLO, Rafael Munhoz de. Princpios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As Sanes

    Administrativas Luz da Constituio Federal de 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 111-112.

  • 17

    em seus atos o Interesse Pblico na ntegra. que tambm a interpretao que se d ao texto

    pode, em determinados casos, oscilar e se moldar de diferentes formas, o que nos traz a

    necessidade de tratar de mais um princpio, o da finalidade.

    Para Celso Antnio Bandeira de Mello o Princpio da Finalidade inerente ao

    Princpio da Legalidade, estando nele contido, pois na finalidade da lei que reside o critrio

    norteador de sua correta aplicao16.

    Nada mais coerente que a observao da finalidade legal, posto que a lei somente

    existe para dar corpo a um anseio da sociedade. O corpo do texto utilizado pela lei to

    somente uma forma escolhida para expressar tal anseio que inicialmente se mostrava de forma

    abstrata, devendo sempre prevalecer o fim para qual a lei foi criada.

    Como bem assevera Fernanda Marinela:

    Finalidade legal pode ser explicada como a ideia que a lei traz contida em

    seu texto, o seu mago, o fator que proporciona compreend-la dentro do

    contexto legal. Nesse raciocnio, temos que a lei um instrumento utilizado

    pelo administrador como forma de alcanar um determinado fim. Em suma,

    a finalidade o esprito da lei, o seu fim maior, que forma com o seu texto

    um todo harmnico e indestrutvel.17

    Por tal motivo que se veda a utilizao do texto legal para fundamentar ato

    incompatvel com a finalidade da prpria lei, vez que a finalidade a integra e no pode, em

    hiptese alguma, deixar de ser observada.

    Neste sentido, Celso Antnio Bandeira de Mello entende que tomar uma lei como

    suporte para a prtica de ato desconforme com sua finalidade no aplicar a lei; desvirtu-

    la; burlar a lei sob pretexto de cumpri-la, e termina por categorizar tais atos como sendo

    desvio e poder ou desvio de finalidade, ambos nulos, pois, segundo ele, quem desatende

    ao fim legal desatende prpria lei18.

    Assim, o Estado, mesmo dentro da discricionariedade que possui, se v

    completamente vinculado ao esprito da lei, esse que, por sua vez, nada mais do que o

    Interesse Pblico que originou o dispositivo legal que ser aplicado.

    Percebe-se ento que repousa na finalidade legal um dos mecanismos mais efetivos

    para que a sociedade possa cobrar de seus representantes a observao do Interesse Pblico,

    16

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 106. 17

    MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 38. 18

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. op. cit. loc. cit.

  • 18

    uma vez que, quando esta no observada, a atuao do Estado fica maculada pelo desvio de

    finalidade e torna-se nula na medida do mesmo.

    Ademais, como bem assevera Caio Tcito, A destinao da competncia do agente

    precede a sua investidura. A lei no concede autorizao de agir sem um objetivo prprio19.

    Percebe-se assim a forma correta de enxergar o Estado e seus agentes: como sendo

    instrumentos para a realizao de um fim, ou seja, somente existe porque, previamente,

    existiu a necessidade de se alcanar um fim coletivo, o qual motiva ento a investidura do

    Estado em sentido macro e dos seus agentes em sentido micro para busc-los.

    Pode-se observar assim que o Estado representante dos indivduos integrantes da

    sociedade formaliza os Interesses Pblicos atravs da lei, a qual limita e pr-determina sua

    atuao e deve ser sempre interpretada de acordo com os interesses que a originaram.

    1.3 Interesse Pblico Secundrio e Os Limites Da Mquina Pblica

    Uma vez contemplada a origem, importncia e demais aspectos do Interesse Pblico

    em geral, passa-se ento a uma anlise pormenorizada do que seria o chamado Interesse

    Pblico Secundrio.

    Em linhas gerais, Fernanda Marinela leciona que o Interesse Pblico Secundrio

    consiste nos anseios do Estado, considerado como pessoa jurdica20.

    Celso Antnio Bandeira de Mello igualmente trata tal assunto apontando, de incio,

    que o Estado, tal como os demais particulares, , tambm ele, uma pessoa jurdica, e, neste

    prisma, remata dizendo que o mesmo pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesse que

    lhe so particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas

    meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa21.

    Percebe-se assim que ambos doutrinadores acima mencionados iniciam a anlise deste

    assunto apontando de onde deriva tal modalidade de interesse: do momento em que o Estado

    se constitui como pessoa jurdica e passa ento a ter interesses atinentes a si prprio. Assim,

    torna-se imprescindvel que, de antemo, se analise a origem desta entidade abstrata a

    pessoa jurdica e sua relao com o Estado.

    Carlos Roberto Gonalves, ao conceituar a Pessoa Jurdica com base em sua origem

    histrica, assim a definiu:

    19

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 104 apud TCITO, Caio. Direito Administrativo. So Paulo: Saraiva, 1975. p. 80-81. 20

    MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 29. 21

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. op. cit. p. 65.

  • 19

    A razo de ser, portanto, da pessoa jurdica est na necessidade ou

    convenincia de os indivduos unirem esforos e utilizarem recursos

    coletivos para a realizao de objetivos comuns, que transcendem as

    possibilidades individuais. Essa constatao motivou a organizao de

    pessoas e bens, com o reconhecimento do direito, que atribui personalidade

    ao grupo, distinta da de cada um de seus membros, passando este a atuar na

    vida jurdica com personalidade prpria.22

    Percebe-se que a origem de tal conceito extremamente aproximada ao do j

    trabalhado Interesse Pblico Primrio ou Propriamente Dito medida que se refere a

    indivduos buscando objetivos supra individuais atravs de recursos coletivos.

    Silvio de Salvo Venosa, neste mesmo sentido, aponta que a nsia da sociedade em

    constituir pessoas jurdicas surge desde a criao de uma associao de bairro para defender

    o interesse de seus moradores [...] at a criao do prprio Estado, entidade jurdica que

    transcende a prpria noo singela que ora damos, e completa dizendo que A necessidade

    ou premncia de conjugar esforos to inerente ao homem como a prpria necessidade de

    viver em sociedade23.

    Portanto, resta evidente que a constituio do Estado como Pessoa Jurdica era o modo

    mais adequado para dar forma aos anseios da sociedade em geral, pois os objetivos buscados

    precisariam, na prtica, de um ente que pudesse execut-los, responder por eles, adquirir

    obrigaes e realizar outras funes para as quais seria imprescindvel a personificao de

    quem a realiza.

    A execuo e concretizao destes anseios, aps apurados conforme se tratou no item

    anterior, vincula-se inteiramente existncia de uma mquina pblica, que invariavelmente

    possuir ainda suas necessidades materiais de manuteno para melhor funcionamento. O

    anseio por uma sade pblica de qualidade, por exemplo, depende de instalaes mdicas

    adequadas, equipamentos para exames, cirurgias, etc.

    Cumpre igualmente observar que uma gesto eficaz na concretizao dos Interesses

    Pblicos Primrios depende tambm de uma ponderada administrao da mquina, que

    busque economizar e bem distribuir a verba pblica de modo que no onere demais o

    contribuinte e, ao mesmo tempo, lhe oferea servios de qualidade.

    Deste modo, resta demonstrado que o Estado possui interesses prprios legtimos e

    que estes so necessrios para a busca dos interesses coletivos que os legitimam. No entanto,

    22

    GONALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2012. v. 1.

    p. 216. 23

    VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2008. v. 1. p. 221.

  • 20

    qual a diferena entre os interesses individuais do Estado e os dos sujeitos que o integram?

    Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello, por mais que os interesses individuais do Estado

    e dos particulares sejam similares, no so iguais, fundamentando tal posicionamento da

    seguinte maneira:

    [...] a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais,

    ao passo que o Estado, concebido que para a realizao de interesses

    pblicos (situao, pois, inteiramente diversa dos particulares), s poder

    defender seus prprios interesses privados quando, sobre no se chocarem

    com os interesses pblicos propriamente ditos, coincidam com a realizao

    deles [...].24

    Percebe-se assim que, segundo o autor, existem dois pr-requisitos para que um

    interesse secundrio possa existir: primeiro, que este no se choque com os interesses

    pblicos propriamente ditos; e segundo, que este coincida com a realizao dos interesses

    primrios. Tal limitao funda-se exatamente na origem e finalidade do Estado, deixando

    clarividente a contradio que seria o Estado contrari-las, observados os motivos que

    legitimam sua criao e existncia.

    A doutrina italiana, com maestria, j apontava h muito tempo nesse mesmo sentido,

    conforme se abstrai da lio de Renato Alessi esclarecendo que os interesses secundrios do

    Estado s podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primrios25.

    Assim, o particular pode, via de regra, buscar seus interesses individuais da forma

    como bem lhe entender, j o Estado somente pode busc-los quando esses conflurem com os

    interesses primrios. Veja que o termo usado foi justamente buscar porque no se faz

    necessria a obteno destes interesses para que o ato do Estado que os buscam se encontre

    maculado. No pode ele sequer conceb-los em meio a seus demais anseios, vista tamanha

    incongruncia que geraria tal desvio de finalidade da mquina pblica.

    Ademais, podem existir atos da administrao que no se chocam com o Interesse

    Pblico Primrio primeira vista, e, ainda assim, so nulos pelo simples fato de no

    coincidirem com sua realizao. Tal nulidade deriva do fato de que, como j mencionado

    anteriormente, a finalidade do ato precede a investidura do agente, e, no havendo finalidade

    fundada no interesse primrio, inexiste investidura e legitimidade para a prtica do

    mesmo.

    24

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 66. 25

    MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 29 apud ALESSI, Renato.

    Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Bosh Casa Editorial, 1970. p. 197.

  • 21

    Um Estado que busca interesses que se originam e se destinam exclusivamente a si

    prprio, quando considerado em sua individualidade, aproxima-se dos sistemas sociais

    autopoiticos descritos por Niklas Luhmann26

    , sistemas estes que, ao alcanarem um nvel de

    complexidade altamente elevado, passam a se retroalimentar e transcendem as interaes

    individuais, mudando de tal forma que deixam de ser algo constitudo por uma coletividade e

    tornam-se uma instituio que se auto gere e tem vontades diferentes daquelas para as quais

    foi concebida.

    Tal transformao no pode ser admitida, uma vez que a democracia to arduamente

    conquistada ao longo da histria seria destruda na medida em que o poder que antes emanava

    do povo passasse s mos de uma instituio sem o controle dos indivduos que a criaram.

    exatamente neste risco o de desconstruir a democracia que reside a falta de controle sobre

    os interesses secundrios do Estado.

    Quando um agente do Estado, por exemplo, passa a pagar valores nfimos nas

    desapropriaes com o intuito de economizar e, para isso, ignora as determinaes

    constitucionais que o legitimam, ele atenta contra o Estado Democrtico de Direito. Este

    primeiro exemplo dado de fcil observao, pois mostra, em um evento nico, uma leso

    direta a um determinado indivduo por uma conduta que, no senso comum, seria facilmente

    taxada como injusta.

    No entanto, como j dito anteriormente, no preciso que haja um choque destes

    interesses secundrios com os interesses pblicos primrios para que a conduta do Estado seja

    considerada nula. Basta que esta no coincida com a realizao dos interesses primrios. No

    preciso que exista um dano ou qualquer tipo de leso material sociedade, a nulidade do ato

    no existe para restituir um status quo ou punir atos incoerentes da administrao. A nulidade

    nestes casos se reconhece, e reconhece-se porque falta legitimidade, investidura. Assim, a

    nulidade do ato precede ao dano a determinado Interesse Pblico, basta que dele no se

    origine.

    Contudo, a mquina pblica, com o passar dos anos, tem se tornado um sistema cada

    vez mais complexo assim como seus atos tornando a observao apurada das finalidades e

    dos interesses buscados uma prtica rdua e de difcil realizao.

    O que dizer, por exemplo, dos atos praticados pelo Estado de forma fracionada? E se,

    no decorrer de uma srie de atos, os atos finais estiverem arraigados de nulidade e desviarem

    26

    LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.

  • 22

    todo o conjunto para uma finalidade que, inicialmente, no se podia vislumbrar? Repousa

    exatamente neste tipo de ato complexo do Estado a anlise que ser feita nos itens a seguir.

    1.4 Do conflito entre os Interesses Pblicos Primrios e Secundrios Nos Litgios Do

    Estado

    Conforme j abordado nos itens anteriores, o Estado precisou se constituir como

    pessoa jurdica para realizar os Interesses Pblicos Primrios. Na prtica, a obteno destes

    interesses requer uma estrutura Estatal, a qual passou a possuir interesses prprios

    relacionados sua gesto interna, os chamados Interesses Pblicos Secundrios.

    Como prprio de toda e qualquer organizao humana, esto tambm eles o Estado

    e seus interesses particulares sujeitos a uma srie de atritos e equvocos em relao a seus

    administrados. Assim, de extrema importncia analisar como ocorrem tais atritos e qual a

    relao destes com o Interesse Pblico Primrio.

    Tendo o Estado se dividido em trs poderes Executivo, Legislativo e Judicirio se

    faz ainda importante analisar estes problemas de forma prtica em cada uma destas esferas,

    possibilitando assim uma observao factual dos conflitos de interesses do Estado. Para tanto,

    sero utilizados exemplos prticos onde se privilegiar a observao dos interesses estudados.

    Na esfera do poder Executivo, se faz pertinente a anlise do instituto da

    desapropriao.

    Em apertada sntese, tal instituto, previsto pelo art. 5, XXIV, da Constituio, nada

    mais do que um procedimento utilizado pelo Poder Pblico que, por necessidade ou

    utilidade pblica, ou ainda por interesse social, compulsoriamente despoja algum de

    determinado bem, o adquirindo assim para si em carter originrio, mediante justa e

    prvia indenizao.

    Maria Sylvia Zanella di Pietro desmembra o procedimento da desapropriao em duas

    fases, a Declaratria e a Executria27. Na fase Declaratria verificam-se as condies

    constitucionais que motivam a incidncia de tal instituto, sendo elas, como trata o texto

    constitucional, a necessidade ou utilidade pblica e o interesse social. A fase Executria,

    por sua vez, compreende os atos utilizados pelo poder pblico para executar a desapropriao

    em si.

    27

    DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. So Paulo: Atlas, 2012. p. 157.

  • 23

    Inmeros problemas prticos que se vinculam corrupo dos agentes pblicos que

    realizam a desapropriao poderiam ser apontados neste instituto, como a desapropriao de

    terras com o fim de valorizao imobiliria de bens prprios ou de terceiros e outros

    exemplos, contudo o modelo buscado e j trabalhado nos itens anteriores procura observar

    tal desvio de interesses como uma prtica do Estado pelo Estado.

    O caso ftico que se passa a analisar se encontra na fase Executria e diz respeito

    justa e prvia indenizao prevista na constituio pela desapropriao realizada. Acontece

    que muitas vezes o Estado, amparado na primeira fase da desapropriao por um motivo que

    conflui com o Interesse Pblico Primrio, realiza uma desapropriao e indeniza o

    desapropriado com valores inferiores aos efetivamente devidos, divorciando-se assim dos

    interesses que o legitimaram para realizar o ato e privilegiando seus interesses prprios a

    economia dos cofres pblicos.

    Neste exemplo, infelizmente corriqueiro no cotidiano brasileiro, observa-se claramente

    um choque de interesses que afronta a mais potente voz do interesse pblico primrio: o texto

    da Constituio Federal. Ainda que se justifique tal prtica como oriunda da necessidade

    primria que motivou a desapropriao, que apenas por uma falta de oramento pblico no

    se pode realizar, o texto constitucional inflexvel ao estipular que tal instituto somente se

    realiza mediante a justa e prvia indenizao.

    O problema maior reside no fato de que, por se tratar de uma afronta aparentemente

    individual, no se toma a luta por estes direitos como sendo coletivos. Contudo, faz-se mister

    ressaltar que o desrespeito aos dispositivos legais frutos da apurao do interesse pblico

    pelo legislador, conforme j mencionado nada mais do que uma afronta coletiva aos

    princpios norteadores do instituto criado pelo interesse pblico primrio.

    Ou seja, o mecanismo se desrespeita em seu prprio procedimento quando, para

    viabilizar de qualquer maneira sua ocorrncia, sana um defeito da mquina pblica com uma

    leso a direitos individuais previstos no seu modo de operao.

    Ainda que exista o interesse coletivo de desapropriar determinado bem individual,

    realizar tal desapropriao sem observar a devida e justa indenizao no sobrepor os

    interesses coletivos em detrimento dos individuais, mas sim ser conivente com uma mquina

    pblica defeituosa que no disps dos meios que deveria para realiz-la. Ou seja, o defeito

    deste ato administrativo indenizao em valor inferior ao devido ocorreu apenas pela falta

    de recursos (ou vontade de pag-los), no pela predominncia da propriedade privada que

    permanece em poder do indivduo enquanto no lhe pago a justa indenizao.

  • 24

    O problema se agiganta ainda mais quando tal justificativa passa a ser utilizada pelo

    poder Executivo em todos os momentos que, por um defeito de gesto, faltaram-lhe recursos

    para prover os interesses pblicos primrios.

    Assim, erroneamente o Estado tem justificado a exagerada tarifao de servios,

    tributao em cargas intolerveis, corte de servios pblicos essenciais populao, baixa

    qualidade dos servios prestados, etc. com o argumento de que busca fazer uma economia aos

    cofres pblicos interesses secundrios, uma vez que o patrimnio pblico o meio atravs

    do qual se realiza o fim Interesse Pblico.

    Ademais, ainda que considerada a economia aos cofres pblicos como sendo Interesse

    Pblico Primrio, cumpre ressaltar que no caso apresentado a sua necessidade somente existe

    devido a uma atuao defeituosa do Estado, que deveria dispor das verbas estabelecidas pela

    Constituio como justas pela desapropriao.

    Deste modo, estar-se-ia utilizando de um Interesse Pblico para legitimar uma falha

    interna, ou seja, um problema de gesto sendo solucionado atravs da falsa defesa de um

    princpio que no seria lesado no fosse os defeitos internos da mquina.

    No Poder Judicirio o problema ainda maior. O caso a ser analisado nesta esfera diz

    respeito jurisprudncia defensiva dos tribunais superiores, a qual consiste na elaborao de

    entraves e pretextos que no constam de nenhum dispositivo legal com a finalidade de

    impedir o conhecimento dos recursos dirigidos a estes tribunais.

    A respeito deste mecanismo faz-se mister observar a crtica feita por Jos Miguel

    Garcia Medina:

    Com a finalidade de viabilizar o funcionamento do Superior Tribunal de

    Justia, tornando-o sustentvel (levando em conta o nmero de processos que poderia julgar), a jurisprudncia passa a adotar postura no apenas mais

    rigorosa em relao aos requisitos recursais, mas vai alm, impondo s

    partes a observncia de exigncias no previstas em qualquer norma

    jurdica.28

    Ora, no caso em questo facilmente se observa que os tribunais tem privilegiado um

    interesse prprio do poder judicirio o funcionamento dos tribunais superiores e, para isso,

    lesionado um Interesse Pblico Primrio o Acesso Justia.

    inconcebvel que um poder do Estado que foi criado com a finalidade de atender os

    litgios dos indivduos crie mecanismos para dificultar o seu prprio acesso. As justificativas

    28

    MEDINA, Jos Miguel Garcia. Pelo fim da jurisprudncia defensiva: uma utopia? Revista Consultor

    Jurdico. 29 de julho de 2013. Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2014.

  • 25

    dadas pelos tribunais, mais uma vez, insistem em apontar defeitos da prpria mquina. No

    caso em tela, justifica-se com base na elevada quantidade de processos que aguardam

    julgamento nestes tribunais.

    No entanto, novamente, observa-se que o problema de gesto, no de interesses. E

    mais, desta vez nem sequer amparo legal o poder estatal em questo possui baseia-se em

    disposies estabelecidas por ele prprio que confrontam os interesses primrios positivados

    no texto da lei, a qual lhes garante o acesso justia de forma integral, e no mitigada pela

    incapacidade do poder judicirio de lidar com suas demandas.

    Por ltimo, no que diz respeito ao poder Legislativo, faz-se oportuno analisar o uso

    indevido da Medida Provisria. Muito embora esta seja editada pelo Presidente da Repblica,

    que compe o Poder Executivo, quando o mesmo a utiliza passa a exercer funo legislativa,

    funo esta atpica ao Poder Executivo.

    Deste modo, o fato da Medida Provisria, por si prpria, constituir uma funo

    legislativa do Estado em geral independentemente do poder que a realiza torna pertinente

    sua anlise, uma vez que este exemplo foi escolhido justamente pelo conflito de interesses

    atualmente observado na poltica ptria.

    Em linhas gerais, a Medida Provisria, trazida pela Constituio Federal em seu artigo

    62, nada mais do que uma funo atpica do Poder Executivo na pessoa do Presidente da

    Repblica que, em casos de relevncia e urgncia, pode editar medidas com fora de lei sem

    a necessidade de participao do poder legislativo, o qual ser convocado apenas a debat-la e

    aprov-la em um momento posterior.

    Como bem se extrai do texto constitucional, relevncia e urgncia so

    cumulativamente condies sine qua non da utilizao deste instrumento legislativo, como

    bem define Gilmar Ferreira Mendes:

    So pressupostos formais das medidas provisrias a urgncia e a relevncia

    da matria sobre que versam, requisitos comuns s medidas cautelares em

    geral. Para que se legitime a edio da medida provisria, h de estar

    configurada uma situao em que a demora na produo da norma possa

    acarretar dano de difcil ou impossvel reparao para o interesse pblico.29

    Percebe-se assim que a Medida Provisria tem justamente a funo de salvaguardar o

    Interesse Pblico, o qual legitima seu carter acautelatrio e mais clere. No entanto, o

    29

    MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocncia Mrtires. Curso de

    direito constitucional. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 926.

  • 26

    cenrio poltico nacional tem demonstrado uma utilizao completamente deturpada deste

    mecanismo.

    Ocorre que o procedimento que deveria ser utilizado de forma extraordinria tornou-se

    rotineiro Presidncia da Repblica, que por muitas vezes no observa a incidncia dos

    pressupostos necessrios e rouba, atravs de suas funes atpicas, a funo tpica do poder

    legislativo.

    Tal prtica, como bem descreve Roberto Busato, acaba trancando a pauta no

    Congresso Nacional e atrasando o exame de matrias importantssimas para o Pas30. Deste

    modo, ela prpria acarreta dano de difcil reparao para o interesse pblico, colocando-se

    frente de assuntos de maior relevncia.

    Ivo Dantas tambm critica tal postura:

    A previso constitucional que deveria ser vista como excepcional, chegou ao

    ponto, no atual Governo, de assumir procedimento legislativo dirio, atravs

    do qual, em alguns casos, nem mesmo as limitaes estabelecidas no

    pargrafo 4 do art. 60 da CF so levadas em conta, quando, por exemplo,

    direitos e garantias individuais (inatingveis pela Reforma ou Emenda Constitucional) foram feridos por edio de Medidas Provisrias

    flagrantemente inconstitucionais.31

    Tem-se ento novamente um conflito de interesses primrios e secundrios gerando

    uma leso aos direitos coletivos. Para fazer valer seu poder legislativo atpico no que julga

    pertinente, a Presidncia da Repblica cria Medidas Provisrias que no obedecem aos

    pressupostos constitucionais e, por assim no serem de sua competncia legislativa,

    invadem o campo de ao tpico do Poder Legislativo.

    Deste modo, ou a Presidncia da Repblica esta buscando, de forma inconstitucional,

    suprir uma carncia do Poder Legislativo interesse secundrio , ou est legislando

    assuntos que somente no foram tratados pelo Legislativo por no possurem tamanha

    relevncia ou consolidao de entendimento no congresso. Das duas formas, fere o Interesse

    Pblico j de incio pelo simples fato de desobedecer ordenamento constitucional.

    De um jeito ou de outro, tal prtica afasta-se da devida apurao do Interesse Pblico

    da forma eleita para tanto o processo legislativo ordinrio. Assim, pela terceira vez, sana-se

    30

    BUSATO, Roberto. Busato critica excesso de medidas provisrias do governo Lula. Revista Consultor

    Jurdico. 10 de fevereiro de 2005. Entrevista concedida coluna Cipoal Legislativo. Disponvel em:

    . Acesso

    em: 14 ago. 2014. 31

    DANTAS, Ivo. Aspectos Jurdicos das Medidas Provisrias. 2. ed. Braslia: Editora Consulex, 1991. p. 59.

  • 27

    um problema de gesto interna (a notria lentido do Congresso em votar os projetos de lei)

    lesando o Interesse Pblico.

    Concludas as anlises prticas expostas, percebe-se que o Estado, em todas as suas

    esferas de atuao, tem lesado o Interesse Pblico Primrio quando esse vem a conflitar com

    seus interesses prprios, prtica inadmissvel pelos fatos e fundamentos j expostos

    anteriormente.

    Ocorre que, como j dito inicialmente neste mesmo item, por se tratar de uma

    organizao humana, o Estado e seus interesses particulares esto sujeitos a uma srie de

    equvocos, assim como os demonstrados acima.

    Uma vez causadas leses aos Interesses Primrios, cabe sociedade buscar a

    reconduo dos atos Estatais aos trilhos que lhes so devidos, ou seja, aqueles que levam

    concretizao dos Interesses Pblicos que o legitimam.

    Um dos meios mais efetivos nesta reconduo do Estado o processo judicial,

    atravs do qual possvel obter condenaes que obriguem o poder pblico a indenizar por

    leses injustamente causadas por ele; readequao das condutas e servios de modo que

    reflitam o Interesse Pblico Primrio; medidas cautelares para resguardar direitos que estejam

    em risco por conflitos de interesses estatais; etc.

    Ocorre que tambm na relao jurdico-processual o Estado tem colocado seus

    interesses prprios frente dos Interesses Pblicos Primrios, causando um conflito de

    interesses dentro do processo judicial.

    Tal conflito existe quando o Estado passa a se defender a qualquer custo, mesmo

    quando a parte contrria tem razo e busca direitos legtimos que o ordenamento jurdico lhe

    garante. justamente deste aspecto dos conflitos de interesses do Estado que passa a tratar o

    captulo que se segue.

  • 28

    2 DA POSTURA PROCESSUAL DO ESTADO

    2.1 Postura Processual Privada x Postura Processual do Estado

    A dicotomia Direito Pblico-Direito Privado remonta ao Direito Romano,

    especialmente no Digesto, 1.1.1.2 de Ulpiano, que dividiu o Direito em jus publicum e jus

    privatum e definiu tal distino no trecho Publicum jus est quod ad statum rei romanae

    spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem, que, em linhas gerais, significa aplicar

    como critrio a utilidade da lei, ou seja, quando esta fosse de utilidade pblica, seria uma lei

    de Direito Pblico; quando fosse de utilidade particular, seria uma lei de Direito Privado32

    .

    No sculo XIX o liberalismo buscou um afastamento entre as esferas Pblica e

    Privada, as quais eram distintas de forma dogmtica por uma parte doutrina. J outra vertente

    (Duguit e Kelsen) criticava duramente tal polarizao, pois entendia que a separao destes

    ramos seria prejudicial ao direito, admitindo-a somente para fins didticos33

    .

    Como o Direito Privado havia se formado primeiro, o Direito Pblico passou

    inicialmente a ser visto como um direito de exceo que serviria apenas para preencher as

    lacunas deixadas pelo ramo Privado, viso criticada ante a fora intrnseca de auto-

    integrao adquirida pelo direito administrativo34.

    Surgiu ento um processo de progressiva publicatio de atividades35, que transferia

    ao Estado as funes e atividades antes reguladas pelos particulares. Inicialmente este

    processo causou certo receio, pois se acreditava que o Direto Pblico absorveria o Privado por

    completo.

    Contudo, esta dinmica transcendeu seu carter totalitrio e possibilitou uma

    miscigenao dos dois ramos quando a Administrao Pblica passou a se utilizar de

    esquemas privados (como a criao de entes pbicos econmicos regidos pelo direito

    privado), surgindo assim ao mesmo tempo uma privatizao do Direito Pblico.

    Odete Medauar define de forma brilhante tal momento jurdico:

    Os processos de publicizao do direito privado e de privatizao do pblico

    demonstram, de modo claro, a confluncia entre os dois setores, a qual se

    32

    TARTUCE, Flvio. Manual de Direito Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Editora Mtodo, 2012. p.

    67. 33

    MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2003. p. 170. 34

    Ibid. p. 171. 35

    MEDAUAR, Odete. loc. cit.

  • 29

    torna, assim, um dos corolrios das transformaes da atuao estatal e da

    vida da sociedade, a partir da dcada de 70 do sculo XX. Disso resulta a

    coexistncia, com igual dignidade, do direito administrativo e do direito

    privado, possvel de ser interpretada como proximidade entre o direito

    pblico e o direito privado.36

    Por fim, muito embora tenham sido corretamente derrubadas as dicotomias

    dogmticas e extremistas entre Direito Pblico e Direito Privado e observada a possibilidade

    de dilogo entre os mesmos, hoje, alm dos fins didticos de separao, ainda se faz

    necessria a diviso de tais ramos no que diz respeito sua operacionalidade pragmtica, ou

    seja: na aplicao diferenciada dos mesmos princpios (como o da legalidade, j trabalhado);

    na interpretao da norma; em demais aspectos operacionais e, para os propsitos buscados

    neste captulo, na fixao de uma finalidade a ser alcanada.

    Ora, se no direito privado os indivduos tm como delimitador da estipulao de suas

    finalidades o princpio da legalidade, que estabelece que os particulares podem fazer tudo

    aquilo que a lei no probe na busca de seus prprios interesses, no mbito pblico a

    Administrao s pode fazer aquilo que a lei autoriza ou determina, instituindo-se um critrio

    de subordinao lei37

    .

    Do mesmo modo, o j trabalhado Princpio da Primazia do Interesse Pblico, basilar

    ao Estado Democrtico de Direito, abrange tanto a origem das normas que limitam o Estado,

    como a determinao do rumo a ser por ele seguido.

    Portanto, as finalidades buscadas pela Administrao tm origens e limitaes

    completamente diversas das dos particulares. Isto justamente porque, como j se demonstrou,

    o Interesse do Estado deve sempre corresponder ao Interesse Pblico Primrio, mesmo

    quando em defesa de seus interesses secundrios, uma vez que estes no podem sequer deixar

    de contribuir para a obteno dos primrios.

    Observadas as distines capitais do Interesse Pblico e do Interesse Privado, torna-se

    oportuna a anlise dessas diferenas dentro de uma relao jurdico-processual onde o Estado

    atue em defesa de seus interesses prprios.

    Vejamos inicialmente a atuao dos particulares nas relaes processuais. Uma vez

    dotados de certa liberdade na escolha de seus fins, facultado aos particulares, por exemplo,

    desistirem das demandas quando bem entenderem. O direito propriedade privada lhes

    garante, em linhas gerais, a livre disposio de seus bens, sendo assim uma opo do

    36

    MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evoluo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2003. p. 174. 37

    MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6. ed. Niteri: Impetus, 2012. p. 31.

  • 30

    indivduo abrir mo de tudo aquilo que, sendo seu, venha a ser objeto de litgio, mesmo

    quando for vtima de uma demanda injusta. Simplificando, o particular pode perder

    estando certo caso assim deseje. Um exemplo desta situao a do indivduo milionrio

    que, para se ver livre de uma disputa judicial sobre bem que despreza, abre mo do mesmo.

    Tambm quando demanda ou busca proteger seus direitos, pode o particular se

    empenhar em obter a melhor condenao possvel para si, aproveitando-se de erros

    processuais da outra parte; da falta de provas que o condenem mesmo sabendo que deveria ser

    condenado; da mais apurada argumentao jurdica que lhe garanta proveitos econmicos; da

    lentido da tramitao processual para forar acordos em valores abaixo dos devidos; etc. Ou

    seja, pode o particular tambm buscar a soluo que lhe seja mais vantajosa quando demanda

    ou demandado, mesmo sabendo que, em tese, no merecia a deciso obtida.

    Um exemplo desta situao seria o caso do empregador que, demandado em

    reclamao trabalhista, percebe que lhe cobrado apenas um tero do que realmente deixou

    de pagar ao seu empregado, e celebra acordo em ainda metade destas verbas pleiteadas

    utilizando-se do argumento de que tal condenao levaria meses.

    Constata-se assim que, em ambas as situaes descritas estiveram inteiramente sobre o

    controle dos interesses privados do indivduo a estipulao dos objetivos buscados

    (observados os limites legais); a livre disposio de seus direitos da forma como lhe era mais

    conveniente; a busca de situaes vantajosas para si em detrimento do direito alheio; ou seja,

    a possibilidade de agir dentro do processo de acordo com seus interesses pessoais.

    Observa-se no mbito privado, via de regra, uma busca incansvel pela vitria no

    processo. Em geral, os ligantes buscam sempre as decises que lhes gere melhor proveito

    econmico quando se demanda, ou menor prejuzo quando se demandado.

    No mbito administrativo a busca nem sempre deve ser pela vitria no processo.

    Nesta seara a situao deve ser diferente da exposta. A princpio, no que se refere disposio

    patrimonial, no pode o Estado alienar como bem entende os bens pblicos, at mesmo

    aqueles de valores baixos, pelo simples fato de que o princpio da legalidade incide no mbito

    administrativo de forma que a administrao pode agir somente das formas que a lei estipula

    e, no que diz respeito alienao destes bens, existe uma srie de disposies legais que

    exigem a desafetao do bem, processo licitatrio, e mais uma srie de requisitos e

    formalidades exigidos para a prtica do ato.

    Assim, no pode o agente estatal, apenas para se ver livre de determinada demanda,

    agir da mesma forma que o particular no exemplo citado anteriormente (resguardados os

    casos em que os custos do trmite processual superem tal concesso e a lei assim permita).

  • 31

    A administrao difere-se ainda mais de seus administrados no que diz respeito

    estipulao dos objetivos a serem buscados na relao processual. Diferente destes ltimos,

    no pode o Estado estipular seus interesses de forma a buscar o melhor resultado para si. O

    Interesse do Estado j est determinado e legitima sua existncia: trata-se do j trabalhado

    Interesse Pblico.

    Wellington Pacheco Barros trata bem esta diferenciao entre os interesses do Estado

    e dos particulares, seno vejamos:

    O conceito de interesse para que a Administrao Pblica seja parte no

    processo administrativo reside na existncia de uma pretenso jurdica

    positiva ou negativa passvel de ser resistida por atingir direitos e interesses

    de qualquer interessado. Essa pretenso jurdica naturalmente que deve estar

    vinculada aos fins da administrao que, em outras palavras, o bem

    comum.

    Mas, diferentemente do interessado, que pode iniciar um processo

    administrativo para buscar reparao de situaes jurdicas estritamente

    pessoal, como o pedido de afastamento das funes formulado por servidor

    pblico para tratar de interesses particulares por determinado tempo, a

    Administrao Pblica, enquanto parte, fica limitada a parmetros

    estritamente regrados na Constituio Federal, na Constituio Estadual, nas

    leis orgnicas municipais ou nas leis ordinrias de qualquer esfera de

    competncia.38

    Portanto, se na esfera privada permitido que as partes busquem resultados que lhe

    concedam maiores proveitos econmicos, ao Estado cabe sempre e to somente buscar a

    concretizao dos interesses pblicos. Desta forma, se o particular, conhecendo sua conduta

    ilcita, pode tentar se livrar de condenaes que o prejudiquem, ao Estado no possibilitada

    tal conduta pelo fato de que a observncia da lei seu dever e maior interesse.

    Assim, a vitria processual, para o Estado, nada mais do que a efetivao dos

    interesses pblicos, ainda que, para isso, tenha de perder o processo e reconhecer erros que

    impliquem em condenaes pecunirias.

    Ora, se o Estado inobserva determinada lei e pratica ato ilegal que culmina em danos a

    determinados indivduos, dever dele reconhecer seus erros e restituir os danos causados. Isto

    porque seu interesse justamente que se cumpram as leis instrumentos do Interesse Pblico

    legitimado pelo processo legislativo. A mquina pblica no deve visar o lucro, mas sim a

    concretizao dos Interesses Pblicos.

    38

    BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Processo Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

    2005. p. 87-88.

  • 32

    Assim, considerando que parte do Interesse Pblico j foi apurado pelo processo

    legislativo, cabe ao Estado ao menos a observncia e cumprimento da lei e dos fins para os

    quais as leis foram criadas. Deste modo, se no exemplo antes citado podia o empregador

    propor acordo em valor inferior ao que sabia dever, ao Estado cumpre observar o

    ordenamento jurdico e propor exatamente o que deve, pois o interesse pblico primrio que

    estipula os direitos trabalhistas sempre deve prevalecer quando confrontado com o interesse

    pblico secundrio de economia dos cofres pblicos.

    Deste modo, o princpio de supremacia do interesse pblico obriga o Estado a sempre

    reconhecer os direitos de seus administrados. Refora-se aqui que, sendo uma instituio

    composta por seres humanos, o Estado tambm se sujeita a erros, e no se exige uma

    perfeio de conduta do mesmo, mas to somente que, quando demandado a respeito de suas

    falhas, reconhea-as e sane-as de forma a reconduzir seus atos ao Interesse Pblico.

    Logo, na prtica, tal postura implica na irrecorribilidade pelo Estado de sentenas com

    intuito protelatrio; obrigatoriedade de, em caso de proposta de acordo em situaes de erro

    da administrao, sejam oferecidos como pagamento valores integrais, efetivamente devidos;

    impossibilidade de transacionar direitos adquiridos dos administrados; etc.

    Logicamente que impossvel a criao de instrumentos legais que imponham tal

    conduta ao Estado devida extrema subjetividade da apurao destas circunstncias. Sempre

    possvel encontrar formas de disfarar o interesse pblico secundrio como sendo primrio e

    apontar falsas mculas nas demandas dos particulares de forma a justificar medidas que se

    divorciam, em sua real finalidade, do Interesse Pblico Primrio. Ou seja, sempre pode o

    Estado, sabendo estar errado, justificar superficialmente a propositura de recursos

    protelatrios, falta de acordos e demais medidas que deveria tomar em prol dos interesses

    coletivos.

    A mudana necessria diz respeito transformao da forma de ver o processo por

    parte dos agentes do Estado.

    A perspectiva de um representante do Estado no processo nunca deve ser de

    antagonismo em relao outra parte, mas to somente de zelo pelos interesses pblicos.

    Desta forma, observada a infringncia destes interesses por parte do Estado, deve seu

    representante colocar-se ao lado do indivduo lesado e garantir que este seja devidamente

    amparado pela deciso judicial, ainda que tal amparo lese economicamente a instituio que

    representa em juzo. Da mesma forma, quando o Estado agiu dentro do que determinam tais

    interesses, deve o representante lutar pela manuteno dos atos praticados. Assim, at

  • 33

    observar a situao em que se encontra o Interesse Pblico no processo, deve o agente Estatal

    agir de forma imparcial.

    Cabe ainda ao judicirio o dever de observar de forma criteriosa os desvios de

    interesse do Estado na relao processual ante a nulidade dos atos que contrariam o Interesse

    Pblico Primrio. Tal responsabilidade ser melhor trabalhada adiante.

    Feita esta anlise geral do interesse processual do Estado, cumpre ento observar a

    forma que este se organiza no que diz respeito s suas demandas e como tem sido observado o

    Interesse Pblico nestas relaes estruturais.

    2.2 Da Indisponibilidade Do Interesse Pblico e a Hierarquia Dos Interesses Do Estado

    Na Relao Processual

    Conforme j se expos anteriormente, o Estado, para fazer valer o Interesse Pblico que

    o legitima, precisou se materializar e organizar-se de forma a possuir meios efetivos na

    realizao de suas tarefas. Para isso, se repartiu de inmeras formas. No que diz respeito a

    seus poderes, dividiu-se em executivo, legislativo e judicirio. No que tange a federao,

    dividiu-se em unio, estados e municpios. Para melhor administrar, ainda repartiu-se em

    inmeras autarquias, fundaes, empresas pblicas, etc.

    Ocorre que cada uma das esferas acima expostas possui tambm seu prprio

    ordenamento interno, este mais especfico que aquele que o instituiu, e, para a rotina

    operacional, muitas destas esferas criam regulamentaes ainda mais exclusivas e incidentais.

    evidente que do exerccio normativo em tantas ramificaes surgiriam conflitos de

    interesses de extrema complexidade. Chega-se possibilidade de o mesmo problema possuir

    diferentes solues quando confrontadas esferas estatais diversas. Isto ocorre pelo simples

    fato de que o Estado, em suas subdivises, repartiu tambm seus interesses, de modo a ter

    rgos especficos para tratar de interesses especficos.

    Dentre estes conflitos de interesses no so raros os casos em que, devido justamente a

    esta extremada ramificao do poder estatal, colidem-se interesses primrios e secundrios.

    Das inmeras situaes existentes, escolheu-se a oriunda do artigo 456 da Instruo

    Normativa n 45 INSS/PRES, de 6 de agosto de 2010:

    Art. 456. Quando se tratar de erro administrativo, o levantamento dos

    valores recebidos indevidamente ser efetuado retroagindo cinco anos a

    contar da data de incio do procedimento de apurao do erro que ensejou o

    pagamento indevido, incluindo, ainda, os valores recebidos indevidamente

  • 34

    entre essa data e a data da suspenso e cessao do benefcio, corrigidos na

    forma preconizada no art. 175 do RPS, na data da elaborao dos clculos.

    O dispositivo supramencionado trata da cobrana de benefcios previdencirios

    concedidos equivocadamente por um erro da prpria administrao. Ressalta-se, de antemo,

    que no se trata de fraude, mas sim erro unilateral do Estado.

    o caso do segurado que solicita determinado benefcio previdncia, e esta, aps

    uma anlise equivocada dos requisitos exigidos para a concesso, o implanta de forma

    definitiva. Aps uma nova anlise, que pode ocorrer anos depois desta implantao, a

    administrao ento percebe seu prprio erro e no apenas cancela o benefcio, como tambm

    cobra do segurado a devoluo de todos os valores percebidos nos ltimos cinco anos.

    As violaes de direitos geradas por este artigo iniciam-se na natureza jurdica da

    verba cobrada, bem definida por Wladimir Novaes Martinez ao se referir alimentaridade

    das prestaes previdencirias, e termina na ruptura pela prpria autarquia com sua atividade

    fim, o qual segundo este mesmo autor consiste em propiciar os meios de subsistncia da

    pessoa humana conforme estipulado na norma jurdica39.

    Construda pela jurisprudncia ptria, a irrepetibilidade das verbas alimentares

    encontra-se adstrita ao princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, e se traduz de

    maneira brilhante no voto proferido pelo Excelentssimo Ministro Castro Meira na seguinte

    deciso:

    Outrossim, nos caso de verbas alimentares, urge tenso entre o princpio da

    vedao ao enriquecimento sem causa e o princpio da irrepetibilidade dos

    alimentos, fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1, I, da CF). Esse

    confronto tem sido resolvido, nesta Corte, pela preponderncia da

    irrepetibilidade das verbas de natureza alimentar recebidas de boa-f pelo

    segurado.40

    Isso se d pela preponderncia do bem jurdico vida quando confrontado com o bem

    jurdico patrimnio, vez que os provimentos concedidos, devida ou indevidamente, j foram

    utilizados para a manuteno da subsistncia do segurado, e a restituio destes valores, no

    contexto previdencirio, costuma ser tarefa rdua para o mesmo que, de boa-f, percebeu o

    benefcio e o utilizou com tal digna finalidade.

    39

    MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito previdencirio. Noes de direito previdencirio. So

    Paulo: LTr, 1997. Tomo I. p. 201- 208. 40

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. AgRg no Recurso Especial n 1.352.754 - SE. Segunda Turma.

    Relator: Min. Castro Meira. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 set. 2014.

  • 35

    A mencionada boa-f surge como segundo fundamento da irrepetibilidade destas

    verbas, vez que no se pode penalizar o beneficirio com o nus da restituio, porquanto

    no houve m-f na incorporao do benefcio a seu patrimnio41.

    Tal fundamento ainda se encontra de maneira analgica em diversas decises do

    Superior Tribunal de Justia, como se observa do voto do Excelentssimo Ministro Benedito

    Gonalves:

    [...] quando a Administrao Pblica interpreta erroneamente uma lei,

    resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa

    de que os valores recebidos so legais e definitivos, impedindo, assim, que

    ocorra descontos dos mesmos, ante a boa-f do servidor pblico.42

    Assim, percebe-se que um dispositivo oriundo de Instruo Normativa extremamente

    especfica e incidental, criado por uma autarquia tambm especfica do Estado, terminou por

    ferir princpios basilares do Estado Democrtico de Direito a dignidade da pessoa humana e

    a boa-f para resguardar um interesse pblico secundrio que se originou de um erro do

    prprio Estado.

    Tal incoerncia, muito embora venha sendo invariavelmente observada e corrigida

    pelos tribunais superiores, tem-se mantido como prtica rotineira dos procuradores desta

    autarquia, vez que tal instruo normativa permanece vigente e seu cumprimento imposto

    aos seus representantes.

    Assim, h um rompimento na cadeia hierrquica dos interesses do Estado devida a esta

    ramificao dos mesmos sem que haja uma postura de submisso geral da mquina ao

    Interesse Pblico Primrio.

    Deste modo, mesmo tendo o Estado organizado suas normas de forma hierrquica e

    eleito os princpios constitucionais como norteadores das relaes jurdicas, na prtica

    processual tal hierarquia trada por este mesmo Estado, quando, atravs de suas instituies,

    estabelece regulamentos que os ferem para preservar interesses prprios.

    Pontes de Miranda j sinalizava tal prtica como sendo nula e inconstitucional:

    41

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. AgRg no Recurso Especial n 1.352.754 - SE. Segunda Turma.

    Relator: Min. Castro Meira. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 set. 2014. 42

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n 1.244.182 - PB. Primeira Seo. Relator: Min.

    Benedito Gonalves. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 set. 2014.

  • 36

    Se o regulamento cria direitos ou obrigaes novas, estranhos lei, ou faz

    reviver direitos, deveres, pretenses, obrigaes, aes ou excees, que a lei

    apagou, inconstitucional. Por exemplo: se faz exemplificativo que

    taxativo, ou vice-versa. Tampouco pode ele limitar ou ampliar direitos,

    deveres pretenses, obrigaes ou excees proibio, salvo se esto

    implcitas. Nem ordenar o que a lei no ordenou [...]. Nenhum princpio

    novo ou diferente, de direito material se lhe pode introduzir. Em

    consequncia disso, no fixa nem diminui, nem eleva vencimentos, nem

    institui penas, emolumentos, taxas ou isenes. Vale dentro da lei; fora da lei

    a que se reporta, ou das outras leis, no vale. Em se tratando de regras

    jurdicas de direito formal, o regulamento no pode ir alm da edio das

    regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurdica.

    Sempre que no regulamento se insere o que se afasta, para mais ou para

    menos, da lei, nulo, por ser contrria lei a regra jurdica que se tentou

    embutir no sistema jurdico.

    Se regulamentando a lei a o regulamento fere a Constituio ou outra lei, contrrio Constituio ou lei, e em consequncia nulo o que editou. A pretexto de regulamentar a lei a, no pode o regulamento, sequer, ofender o que, a propsito de lei b outro regulamento estabelecer.43

    Celso Antnio Bandeira de Mello especifica ainda quando tal inovao nos interesses

    do Estado atravs destas regulamentaes deve ser proibida:

    H inovao proibida sempre que seja impossvel afirmar-se que aquele

    especfico direito, dever, obrigao, limitao ou restrio j estavam

    estatudos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: h

    inovao proibida quando se possa afirmar que aquele especfico direito,

    dever, obrigao, limitao ou restrio incidentes sobre algum no

    estavam j estatudos e identificados na lei regulamentada. A identificao

    no necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheam

    as condies bsicas de sua existncia em vista de seus pressupostos,

    estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.44

    Contudo, muito embora doutrina e jurisprudncia observem as incoerncias apontadas,

    tal postura da Administrao persiste tanto na criao destes ordenamentos especficos quanto

    na pr-determinao de condutas processuais aos procuradores da Unio, que para

    resguardarem interesses prprios do Estado, praticam medidas lesivas coletividade,

    conforme se passa a observar no prximo item.

    43

    MIRANDA, Pontes de. Comentrios Constituio de 1967 c/a Emenda n 1 de 1969. 2. ed. So Paulo:

    Revista dos Tribunais, 1970. Tomo III. p. 316-317. 44

    MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2010. p. 355.

  • 37

    2.3 Da Advocacia Geral Da Unio e Suas Diretrizes Processuais O Acordo

    A Constituio Federal dedicou os artigos 131 e 132 para tratar da representao

    estatal em juzo, estipulando, em linhas gerais, que a representao da Unio cabe a

    Advocacia-Geral da Unio; Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional cabe a representao

    da Unio exclusivamente no que diz respeito execuo da dvida ativa de natureza tributria;

    e aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, cabe a representao judicial das

    respectivas unidades federadas.

    Como j se ponderou no item anterior, assim como as demais instituies do Estado, a

    Advocacia Pblica, em suas ramificaes, tambm possui poder normativo no que diz

    respeito coordenao de sua atuao. Deste modo, o Estado busca promover uma atuao

    uniforme com posturas bem delineadas em todo o territrio nacional.45

    Em extremada sntese, a advocacia, seja na esfera privada ou pblica, consiste na

    representao dos legtimos interesses da parte que se faz representar, de forma a

    instrumentalizar as vontades emanadas por ela com as devidas orientaes e remdios

    jurdicos cabveis na busca de seus direitos, funo esta indispensvel administrao da

    justia, como bem prev o artigo 133 da Constituio Federal.

    Assim, de antemo j se pode concluir que do prprio advogado no surgem os

    interesses defendidos, mas to somente se fazem representar. Neste sentido, se tem como

    inadmissvel, seja na esfera privada ou pblica, que os mtodos de atuao escolhidos pelo

    advogado venham a proporcionar uma conduta que contrarie os interesses a ele conferidos

    pela parte que se fez representar.

    Isto posto, ainda que seja facultado advocacia pblica regular sua atuao por meio

    de smulas, pareceres, instrues normativas, portarias, etc., inadmissvel que estas normas

    venham a confrontar-se com os interesses pblicos tutelados pelas instituies que

    representam, seja pela indisponibilidade do Interesse Pblico; seja pela incompatibilidade

    com a funo de representao; ou, ainda, seja pelo respeito hierrquico s leis que

    regulamentam as entidades defendidas.

    Ora, uma vez que tais normas regulamentam a atuao procedimental da advocacia

    pblica (interesse secundrio do Estado), estas somente poderiam existir quando conflussem

    45

    AMORIM, Filipo Bruno Silval. A construo da AGU e a histria da orientao jurdica e da representao

    judicial do Estado Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3414, 5 nov. 2012. Disponvel em:

    . Acesso em: 13 set. 2014.

  • 38

    com os demais ordenamentos que ditam o interesse pblico primrio, conforme j exposto

    anteriormente.

    Contudo, tem-se visto na prtica forense situaes onde os regimentos internos da

    advocacia pblica obstruem direitos oriundos do Interesse Pblico Primrio, em geral para

    garantir economia aos cofres pblicos. Dentre estas situaes, torna-se pertinente a anlise

    sobre a metodologia utilizada pelos advogados pblicos para a propositura de acordos.

    A Portaria de n 109/2007 da Advocacia Geral da Unio, em seu artigo 2, concede aos

    representantes judiciais da Unio, autarquias e fundaes pblicas o direito de transigir,

    deixar de recorrer, desistir de recursos interpostos ou concordar com a desistncia do pedido.

    J o artigo 3, II, desta mesma portaria estabelece que todos os mecanismos de que

    trata o artigo 2 somente podero ocorrer quando inexistir controvrsia quanto ao fato e ao

    direito aplicado.

    Ora, nada mais coerente que se faa tal verificao da solidez dos direitos

    transacionados de modo a evitar que desvios de interesse venham a macular o acordo

    celebrado. Ademais, verificados incontroversos os fatos e direitos que perfazem o pleito da

    parte que aciona o Estado, nada mais justo que este, fundado no direito exposto, reconhea-o

    e conceda-o da forma como o mesmo devido.

    No entanto, prtica corriqueira do Estado, nos processos em que figura como ru,

    propor acordos que costumam vir acompanhados de certo desgio, usualmente em torno de

    30% do valor estimado pela provvel condenao46

    .

    Nas pesquisas feitas para encontrar a origem e fundamento deste desgio chegou-se,

    primeiramente, na Ordem de Servio 13/2009 da Procuradoria Geral a Unio, que estipulava,

    dentre os requisitos para a propositura do acordo, o desgio mnimo de 10% em seu artigo 4,

    II:

    II - no caso de dbitos da Unio, haver reduo de, no mnimo, 10% (dez por

    cento) do valor estimado da condenao e se o autor da ao se

    responsabilizar pelos honorrios de seu advogado e eventuais custas

    judiciais, aceitando ainda a incidncia de juros de mora desde a citao

    vlida no percentual mximo de 0,5% (meio por cento) ao ms, bem como o

    desconto dos impostos e das contribuies respectivas;

    Vedava-se ainda ao acordo que abarcasse os honorrios advocatcios em sua proposta.

    Em 2011 tal dispositivo foi alterado pela Ordem de Servio 18/2011, a qual, muito embora