novo artigo - da biopolítica em agamben e o direito- corrigido2

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A PERSPECTIVA BIOPOLÍTICA DE AGAMBEN: ALGUNS CONCEITOS PARA SE (RE)PENSAR O DIREITO ATUAL AGAMBEN´S BIOPOLITICS PERSPECTIVE: SOME CONCEPTS TO (RE) THINK THE CURRENT RIGHT Helder Félix Pereira de Souza 1 Sumário: Introdução; 1 Breves distinções: biopolítica, o poder soberano e a vida nua; 2 O Homo Sacer e o campo como paradigma; Considerações Finais; Referências das Fontes Citadas. Resumo O tema central deste artigo é expor algumas ideias sobre a biopolítica de Agamben, considerando os conceitos de poder soberano, estado de exceção, vida nua, homo sacer e o campo como paradigma biopolítico atual. Para isso, serão percorridos, de maneira breve, alguns autores como Michel Foucault, Hannah Arendt, Carl Schmitt e Walter Benjamin, que influenciaram o autor italiano na elaboração de suas concepções filosóficas e políticas. Possibilitando assim, a utilização dessas noções agambenianas como instrumentos para (re)pensar criticamente o Direito atual, sobretudo o discurso dos Direitos Humanos e Fundamentais que flertam paradoxalmente com o paradigma da biopolítica contemporânea. Palavras-chave: Biopolítica; Agamben; Direitos. Abstract The central theme of this article is to present some ideas on biopolitics in Agamben, considering the concepts of sovereign power, state of exception, bare life, homo sacer and the field as current biopolitical paradigm. For this will be covered, briefly, some authors such as Michel Foucault, Hannah Arendt, Carl Schmitt and Walter Benjamin, who influenced the italian author in the preparation of their philosophical politics. Thus, making possible the use of such agambenianas notions as tools to (re) think critically about the contemporary Right, especially the discourse of Human and Fundamental Rights which paradoxically flirts with the paradigm of contemporary biopolitics. Keywords: Biopolitics; Agamben; Rights. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Mestre em Direito pela UFSC e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduando em Filosofia pela UFSC. Florianópolis SC. E-mail: [email protected]

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  • A PERSPECTIVA BIOPOLTICA DE AGAMBEN: ALGUNS CONCEITOS PARA SE

    (RE)PENSAR O DIREITO ATUAL

    AGAMBENS BIOPOLITICS PERSPECTIVE: SOME CONCEPTS TO (RE) THINK

    THE CURRENT RIGHT

    Helder Flix Pereira de Souza1

    Sumrio: Introduo; 1 Breves distines: biopoltica, o poder soberano e a vida nua; 2 O Homo Sacer e o campo como paradigma; Consideraes Finais; Referncias das Fontes Citadas.

    Resumo O tema central deste artigo expor algumas ideias sobre a biopoltica de Agamben, considerando os conceitos de poder soberano, estado de exceo, vida nua, homo sacer e o campo como paradigma biopoltico atual. Para isso, sero percorridos, de maneira breve, alguns autores como Michel Foucault, Hannah Arendt, Carl Schmitt e Walter Benjamin, que influenciaram o autor italiano na elaborao de suas concepes filosficas e polticas. Possibilitando assim, a utilizao dessas noes agambenianas como instrumentos para (re)pensar criticamente o Direito atual, sobretudo o discurso dos Direitos Humanos e Fundamentais que flertam paradoxalmente com o paradigma da biopoltica contempornea. Palavras-chave: Biopoltica; Agamben; Direitos.

    Abstract The central theme of this article is to present some ideas on biopolitics in Agamben, considering the concepts of sovereign power, state of exception, bare life, homo sacer and the field as current biopolitical paradigm. For this will be covered, briefly, some authors such as Michel Foucault, Hannah Arendt, Carl Schmitt and Walter Benjamin, who influenced the italian author in the preparation of their philosophical politics. Thus, making possible the use of such agambenianas notions as tools to (re) think critically about the contemporary Right, especially the discourse of Human and Fundamental Rights which paradoxically flirts with the paradigm of contemporary biopolitics. Keywords: Biopolitics; Agamben; Rights.

    1 Doutorando do Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em Cincias Humanas pela

    Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Mestre em Direito pela UFSC e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduando em Filosofia pela UFSC. Florianpolis SC. E-mail: [email protected]

  • Introduo

    [...] Apagam-se as luzes todas Com violncia de tormenta, Cai a cortina funrea Sobre as formas palpitantes. E os anjos, plidos, dizem Que a pea chamou-se O homem E que o heri principal Foi o verme vencedor. (Edgar Alan Poe Ligeia)

    O presente artigo abordar a ideia de biopoltica e alguns de seus importantes

    e derivados conceitos utilizados por Giorgio Agamben em suas diversas obras,

    diferenciando-a da concepo de biopoltica foucaultiana cujo advento se inicia em

    meados do sculo XVIII e que para o pensador italiano, em contrapartida, tal

    conceito representa algo inerente poltica desde a antiguidade.

    Ou seja, desde a Grcia antiga havia uma diferenciao no conceito de vida,

    como zo, a mera vida biolgica, caracterstica da vida privada e que administrava o

    lar, e a bos, a vida qualificada que lidava, por exemplo, com a poltica e a questo

    pblica. Uma mudana acontece quando, na modernidade, ocorre uma completa

    indiferenciao entre essas formas de vida, fazendo com o que antes era externo

    poltica torne-se dominantemente interno, e a poltica passa a se ocupar da vida

    como mero fato biolgico.

    Deste modo, Agamben faz uma releitura do conceito de biopoltica

    foucaultiana inserindo algumas anlises de Hannah Arendt e outros autores.

    Ampliando assim a concepo da biopoltica como uma tecnologia do poder inerente

    ao poder soberano que desde as suas origens tem como caracterstica essencial a

    deciso sobre o estado de exceo, ou seja: estar ao mesmo tempo dentro e fora da

    lei. Alm de destacar a influncia das ideias de Hannah Arendt nas concepes

    agambenianas, sobretudo na questo das distines de formas de vida e campo

    como paradigma biopoltico contemporneo.

    Destarte, em um primeiro momento ser abordado o conceito de biopoltica e

    a diferena com a concepo de Foucault, da mesma forma em que ser destacado

    o conceito agambeniano de poder soberano juntamente com o conceito de vida nua,

    como a sobrevida biolgica do ser humano. Posteriormente destaca-se a concepo

    de Homo sacer, como aquele cuja vida insacrificvel, porm matvel, e o campo

  • como paradigma da atualidade. Um espao onde todos so Homo sacer, cuja vida

    nua matvel, mesmo sendo insacrificvel, pois protegida pelos Direitos Humanos.

    Por fim, em uma longa considerao final, destaca-se a importncia de tais

    conceitos como instrumentos para se (re)pensar o Direito atual, possibilitando uma

    leitura crtica dos discursos e das prticas dos Direitos Humanos e Fundamentais.

    1 Breves distines: biopoltica, o poder soberano e a vida nua

    (...)

    Por me ostentar assim, to orgulhoso De ser no eu, mas artigo industrial,

    Peo que meu nome retifiquem. J no me convm o ttulo de homem.

    Meu nome novo Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente.

    (Drummond de Andrade - Eu Etiqueta.)

    Giorgio Agamben, filsofo italiano da atualidade e ainda em atividade, autor

    de diversas obras, sendo uma de suas principais, Homo Sacer, o poder soberano e

    a vida nua 2 faz uma leitura contempornea da problemtica poltica do sc. XX e

    tambm do sc. XXI. O pensador dialoga com obras de Michel Foucault, destacando

    suas anlises sobre a biopoltica, a vida e o poder soberano, mas tambm com as

    obras de Hannah Arendt, tomando aspectos do totalitarismo, do campo de

    concentrao e de extermnio.3

    De maneira descontnua, Agamben reativa o pensamento daqueles autores

    ampliando com a leitura de outros, como Carl Schmitt e Walter Benjamin, relendo

    seus conceitos com maestria e originalidade, buscando algumas sadas para os

    problemas deixados por Foucault e Arendt.

    Portanto, h em comum entres esses trs pensadores (Agamben, Foucault e

    Arendt) o fato de que algo importante e curioso vem ocorrendo com o que se pensa

    e pensou sobre vida e poltica desde a antiguidade, desdobrando-se na

    modernidade, chegando at os dias atuais. E o ponto de interseco entre os

    2 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique

    Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a. 3 Curiosamente, Foucault deixou em suas pesquisas alguns problemas abertos, como a questo de

    no ter emparelhado diretamente sua concepo de biopoltica com anlises mais profundas sobre a experincia do totalitarismo. Em contrapartida, Hannah Arendt, que se aprofundou nas estruturas dos Estados totalitrios e as peculiares transformaes da vida nos campos de concentrao, no concebeu a mudana da poltica em biopoltica, pois para a pensadora alem isto deixaria de ser poltica (2011).

  • pensadores, que permite Agamben 4, no somente superar, mas dar continuidade de

    uma forma descontnua aos trabalhos daqueles filsofos, o conceito de vida nua e

    a vida sacra do Homo sacer. 5

    Enfim, Agamben um pensador atual que consolida em suas obras uma

    leitura destemida do que entendemos sobre a poltica, movimentando com destreza

    seus pensamentos a nveis extremos, tais como suas discusses sobre o campo

    de concentrao ou o estado de exceo, e, sobretudo falando da biopoltica como

    luta da vida e das formas da vida contra o poder, que procura submet-las a seus

    fins por meios muitas vezes ilegtimos. 6.

    Desta forma, comeando por Foucault e o tema da biopoltica, Agamben

    retomar este conceito foucaultiano diferenciando-o claramente de algumas de suas

    concluses. Pois h uma sria distino entre esses dois pensadores que o autor

    italiano, logo no incio de sua obra Homo sacer, O poder soberano e a vida nua 7,

    esclarece afirmando a inexistncia na biopoltica de um rompimento com a questo

    da soberania, dizendo que aquela forma de tecnologia do poder uma contribuio

    original do poder soberano:

    Pode-se dizer, alis, que a produo de um corpo biopoltico seja a contribuio original do poder soberano. A biopoltica , nesse sentido, pelo menos to antiga quanto a exceo soberana. Colocando a vida biolgica no centro de seus clculos, o Estado moderno no faz mais, portanto, do que reconduzir luz o vnculo secreto que une o poder vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondncia entre moderno e arcaico que nos dado verificar nos mbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii.8

    No entanto, a questo do poder soberano para Foucault havia perdido o seu

    sentido de ser desde o incio da modernidade, pois outra tecnologia de poder passou

    a ocupar o seu lugar: o biopoder. Este, para o pensador francs, se manifesta

    atravs do poder disciplinar e tambm do biopoltico, preocupando-se diretamente

    em promover com eficincia a vida, em fazer viver ou deixar morrer, caracterizando

    4 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique

    Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.117. 5 Conceitos estes que sero desenvolvidos no decorrer deste ponto e na segunda parte do artigo.

    6 AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo: Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2010c,

    p.7. 7 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique

    Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a. 8 Idem, Ibidem, p.14.

  • o Estado-governo moderno, diferentemente do antigo Estado-soberano, que

    dispunha da vida como um bem ou uma riqueza, tendo direito de vida ou morte

    sobre ela, ou seja, podendo fazer morrer ou deixar viver 9.

    J para Agamben, no h tal ruptura entre biopoder e poder soberano, ou

    mais especificamente entre a biopoltica e o poder soberano, pois a estrutura

    originria deste poder tem uma relao profunda e peculiar com a vida, cuja relao

    mais prxima a da exceo (que ser abordada mais frente).

    Pois a soberania, para o pensador italiano, significa sempre a exposio da

    vida violncia, consequentemente, ao poder da morte; e o exerccio do poder

    soberano implica em um jogo de incluso e excluso, caracterstico do estado de

    exceo que intrnseco a todo exerccio de soberania.

    Neste caso, a exceo funciona como um dispositivo de captura entre o

    direito e a vida sob a deciso do poder soberano. Dispositivo que, no sentido de

    Agamben, mais ampliado e genrico do que o conceituado por Foucault:

    Generalizando posteriormente a j bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes. [...] temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substncias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos.10

    Assim, o dispositivo generalizado de uma forma tal que coincide com toda

    tecnologia ou mecanismo capaz de governar a vida. Deste modo, no rol

    exemplificativo de dispositivos ingressam, no somente o panptico destacado por

    Foucault 11, ou as prises, escolas, fbricas, disciplinas, decises jurdicas, mas

    ingressam tambm coisas mais simples e comuns como os aparelhos celulares,

    computadores, a caneta, a filosofia, o direito, a linguagem como (talvez) o dispositivo

    mais antigo de todos, etc., distinguindo, por fim, duas classes gerais dos seres: os

    dispositivos e os seres viventes, encontrando-se no meio desta relao os sujeitos.

    9 FOUCAULT, Michel. Histria da Sexualidade. V. 1. A vontade de saber. Ed. So Paulo: Graal,

    2010. 10

    AGAMBEN, Giorgio. O que contemporneo? E outros ensaios. Chapec SC: Editora Argos, 2010d, p.40-41. 11

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.

  • Percebe-se que a funo bsica dos dispositivos a subjetivao e

    dessubjetivao dos viventes capturados e tornado sujeitos, e no capitalismo atual,

    com o excesso de dispositivos, estes processos [...] parecem tornar-se indiferentes

    e no do lugar a recomposio de um novo sujeito, a no ser de forma larvar e, por

    assim dizer, espectral. 12.

    Portanto, o dispositivo da exceo, ou seja, o estado de exceo um

    dispositivo que atua com o poder soberano de um modo indissocivel, constituindo

    entre si um intercmbio conjunto de violncia e Direito, que se orienta para capturar

    a vida:

    [...] a exceo o dispositivo original graas ao qual o direito se refere vida e a inclui em si por meio de sua prpria suspenso, uma teoria do estado de exceo , ento, condio preliminar para se definir a relao que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito.13

    O poder soberano em estado de exceo, quando captura a vida, passa a ser

    a condio preliminar que une o vivente ao direito, ao mesmo tempo em que o

    abandona, mantendo com base na deciso do soberano uma relao com a vida,

    que ao mesmo tempo de excluso e incluso.

    Deste modo, o pensamento de Agamben se caracteriza pela constatao

    desse paradoxo do poder soberano que ao relacionar-se diretamente com a vida,

    exclui incluindo-a em sua deciso, como no caso elementar de fazer viver e deixar

    morrer, ao mesmo tempo em que isto se estabelece tambm como forma essencial

    poltica. Isso faz com que o pensador italiano se afaste da concepo foucaultiana

    de poder soberano, que no admite a ideia de uma natureza poltica, pois aceita

    uma formao histrica das coisas com incio e fim datados.

    Consequentemente, a biopoltica, ou seja, a vida inserida na poltica para

    Agamben assume uma amplitude ontolgica, pois a vida torna-se inseparvel da

    experincia poltica ao menos no ocidente, em que desde suas origens constata-se

    sua inerncia s relaes de poder poltico. De outro lado, Foucault 14 afasta

    12

    AGAMBEN, Giorgio. O que contemporneo? E outros ensaios. Chapec SC: Editora Argos, 2010d, p.47. 13

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. 2 ed. So Paulo: Boitempo, 2011a, p.12. 14

    FOUCAULT, Michel. Histria da Sexualidade. V. 1. A vontade de saber. Ed. So Paulo: Graal, 2010.

  • qualquer tipo de metafsica em suas pesquisas e a biopoltica surge historicamente a

    partir do sc. XVIII.

    Por isso, Agamben adota uma postura que exige a necessidade de [...]

    repensar todas as categorias de nossa tradio poltica luz da relao entre poder

    soberano e a vida nua. 15. Desta maneira, o Estado moderno reconduz ao foco de

    suas discusses o lao oculto que liga a manifestao do poder vida nua,

    religando a correspondncia entre o moderno e o arcaico presente nos mbitos mais

    diversos onde se manifesta as relaes de poder. Convergindo diretamente no

    ponto oculto da interseco entre o modelo jurdico-institucional e o modelo

    biopoltico do poder. 16.

    Assim, seguindo as pistas de Carl Schmitt, especificamente na sua tese sobre

    a relao do estado de exceo e poder soberano presente em sua obra Teologia

    Poltica 17, Agamben afirma que Na biopoltica moderna, soberano aquele que

    decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal. 18, e esta vida, j

    anteriormente inserida nesta lgica de poder, como atravs das declaraes dos

    Direitos, torna-se agora ela mesma, o lugar dessa deciso soberana.

    neste sentido que, nas discusses travadas por Walter Benjamin e Carl

    Schmitt, possvel constatar a existncia de uma zona de indistino entre violncia

    e Direito que cede espao ao paradoxo da soberania, mas que atualmente supera

    todas as relaes espao-temporais, tornando-se uma extenso comum ao estado

    de Direito 19.

    Fazendo com que o pensador italiano conceba a soberania no como externa

    ordem jurdica, mas sim interna, sendo uma estrutura original na qual o Direito

    pode referir-se vida incluindo-a em si, mesmo quando seu ordenamento est

    suspenso. Por este motivo, Agamben intitula de bando a relao de soberania, pois

    se refere tanto vida excluda da comunidade, quanto sob a tutela do soberano.

    Consequentemente, est o soberano dentro e fora da lei. Neste paradoxo,

    ele enquanto manifestao de violncia que pe o Direito, tal como o poder

    15

    AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la poltica. Traduccin: Antonio Gimeno Cuspinera. Valncia: Pre texto, 2001, p.10. 16

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.14. 17

    SCHMITT, Carl. Teologia e Poltica. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 18

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.138. 19

    CASTRO, Edgardo. Introduo a Giorgio Agamben. Uma arqueologia da potncia. Traduo: Beatriz de Almeida Magalhes. Belo Horizonte: Autntica, 2012.

  • constituinte de uma nova constituio, e ele mesmo tambm quem o mantm

    enquanto violncia. Esse paradoxo evidenciado por Walter Benjamin ao indicar

    que Se a primeira funo da violncia passa a ser a instituio do direito, a sua

    segunda funo pode ser chamada de manuteno do direito. 20.

    A complementaridade jurdico-institucional junto ao modelo biopoltico do

    poder soberano ocorre no momento em que o discurso moderno insere a vida

    biolgica, vida nua, na poltica, e o poder soberano passa a decidir sobre o seu valor

    e desvalor, atribuindo elevada importncia a este tipo de vida como nica forma

    possvel de existncia. Assim, percebe-se que o soberano entra em simbiose cada

    vez mais ntima no s com o jurista, mas tambm com o mdico, com o cientista,

    com o perito (...) 21 que passam a eleger uma nica forma de vida como normal

    para diretamente trat-la, regul-la e manipul-la. Pois, pode-se dizer que somente

    neste esquema normalizador possvel tratar objetivamente a vida: capturando-a e

    a convertendo em uma uniformidade padro, reduzindo ao mximo suas variveis

    mutveis, para poder apreend-la em uma nica totalidade.

    Com isso, fica mais evidente uma questo elementar no pensamento

    biopoltico de Agamben, cuja mera vida, a vida nua, tornou-se o local por excelncia

    das decises polticas do soberano, ou seja, do Estado-governo moderno, pois sua

    forma simples de vida a de mais fcil apreenso. Deste modo, com a sua

    converso aos padres regulamentadores do modelo jurdico-institucional, em que o

    poder soberano manifesta capilarmente atravs do juiz, legislador, administrador,

    perito, cientista, etc., possvel, de uma maneira objetiva e instrumentalizadora,

    decidir sobre a vida e a morte de quaisquer pessoas, podendo at mesmo medi-las,

    avali-las e atribuir valores, inclusive, s partes do corpo.

    Portanto, como toda e qualquer forma de vida foi reduzida a uma nica forma

    de vida, a simples vida nua, ela pode ser no s gerida, controlada, mas tambm

    medida, valorada, determinada de acordo com o melhor discurso, ou o mais til,

    aceito pela deciso soberana. Conferindo vida, em uma poca regida pelo sistema

    capitalista de valorizao do consumo, cujos membros da sociedade de

    consumidores so eles prprios como mercadorias de consumo, a caracterstica de

    ser mercadoria de consumo, pois:

    20

    BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura. Documentos de barbrie. Escritos escolhidos. So Paulo: Cultrix, 1986, p165. 21

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.119.

  • Na sociedade de consumidores, ningum pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ningum pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perptua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendvel.22

    Assim, retomando tais ideias do socilogo polons Zygmunt Bauman, em sua

    obra Vidas para Consumo 23, nada mais condizente com esta era do consumismo e

    do fetiche da mercadoria do que valorar a vida em termos financeiros, contrariando

    em princpio o discurso dos Direitos Humanos, cuja vida digna , ao menos nestes

    termos, invalorvel.

    No entanto, retomando a questo da vida nua sob a tica da biopoltica e o

    jugo soberano moderno, Agamben nos diz algo mais sobre esta forma de vida. Ao

    resgatar o entendimento dos antigos gregos sobre a palavra vida e inspirado nas

    ideias de Hannah Arendt, retomando o pensamento de Aristteles, o pensador

    italiano ir utiliz-las para clarear ainda mais o conceito:

    Os gregos no possuam um termo nico para exprimir o que ns queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semntica e morfologicamente distintos, ainda que reportveis a um timo comum: zo, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bos, que indicava a forma ou maneira de viver prpria de um indivduo ou de um grupo. (...) O ingresso da zo da pols, a politizao da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformao radical das categorias poltico-filosficas do pensamento clssico.24

    Assim, a vida nua confunde-se com o significado de zo, como uma vida que

    biologicamente vive. Algo como uma vida desnudada, despida de suas qualidades;

    como veremos mais adiante, assemelha-se a vida matvel e insacrificvel do homo

    sacer. 25

    neste ponto que h outra pequena diferena entre Foucault e Agamben,

    pois para este o biopoder contemporneo j no mais se incumbe somente de fazer

    viver ou de fazer morrer, mas agora ele se preocupa em fazer sobreviver.

    22

    BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.20. 23

    Idem, Ibidem. 24

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.9-12. 25

    Idem, Ibidem.

  • No se investe na vida, nem na morte, mas cria-se e gere sobreviventes,

    produzindo a sobrevida. Desta forma, o poder faz sobreviver produzindo um estado

    de sobrevida biolgica, reduzindo o homem a uma dimenso residual, no humana,

    vida vegetativa tal qual, por um lado, um prisioneiro de um campo de concentrao,

    e por outro, um paciente em coma profundo. Semelhante s anlises arendtianas

    sobre a experincia do domnio total obtidos com a realizao dos campos de

    concentrao.

    Assim, a sobrevida a vida humana reduzida a seu mnimo biolgico, sua

    total nudez, sem forma, reduzida ao mero fato da vida que Agamben chama de vida

    nua. 26

    A vida nua, portanto, confunde-se com um tipo de vida biolgica

    desqualificada, reduzida; uma sobrevida, disforme, descartvel. Com isso,

    facilmente possvel manipul-la de forma racional, objetiva, instrumentaliz-la

    como coisa, suprflua. Fica muito fcil medi-la, orden-la, atribuir qualquer valor ou

    nenhum valor a ela, assim como dividir suas partes, recortar pedaos do corpo e

    separ-los conforme sua utilidade, necessidade e funo; hierarquiz-los,

    estabelecendo objetivamente unidades de valor em moeda, como se faz com

    produtos disponveis no mercado.

    Em um momento extremo de nossa poca, em que se tornou possvel medir a

    vida em termos de mercado, Agamben afirma, em uma entrevista concedida

    Peppe Salv e publicada por Ragusa News em agosto de 2012, que o capitalismo

    uma religio e que Deus no morreu, mas tornou-se dinheiro nos tempos atuais.27

    Enfim, a simples vida, ou seja, a vida nua que se tornou modelo para todo o

    ser vivente, implica na destituio de todo o aspecto do homem enquanto homem

    que na poltica haveria de diferenci-lo da mera zo e qualific-lo como uma

    existncia caracterstica da bos, como ocorria na antiguidade sob o conceito

    aristotlico de vida. Neste sentido, como dito anteriormente, a incluso da zo na

    plis algo em si mesmo j bem antigo, pois havia uma clara distino entre os que

    faziam poltica e os que no podiam fazer a poltica, do mesmo modo que inserir a

    26

    PELBART, Peter Pl. Vida Capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2011. 27

    AGAMBEN, Giorgio. Deus no morreu. Ele tornou-se dinheiro. Entrevista com Giorgio Agamben. In.: Instituto Humanitas Unisinos IHU online, notcias, 30Ago.2012. Disponvel em: . Acesso: 20/12/2012.

  • vida em clculos ou projetos do poder estatal no era peculiaridade da modernidade.

    28

    Mas a grande questo se deu com a incluso exclusiva desse fato externo

    vida poltica, ou seja, o espao da vida nua, que ficava margem da organizao

    poltica, acaba por assemelhar-se ao espao poltico, criando uma grande zona de

    indiferenciao, onde exterior e interior, excluso e incluso, bos e zo, vida pblica

    e vida privada, confundem-se de modo a entrarem em uma profunda indistino.

    Esse paradoxo da biopoltica moderna deixa evidente que a noo de

    soberano inseparvel da sua condio original de exceo, cuja ordem jurdica

    suspensa tornou-se a regra, e no mais o contedo da lei passa a ser

    preponderante, mas sim a deciso como pura fora-de-lei, sem lei. 29

    nesse paradoxo que Agamben alerta para a indistino entre a experincia

    totalitria, seja do nazismo ou stalinismo, e a experincia democrtica, assim como o

    atual discurso dos Direitos Humanos como universais, com intuito de formar uma

    nova ordem mundial. Pois o autor, quando pensa a histria do poder, constata uma

    crescente afirmao da biopoltica, consequentemente, da deciso sobre a vida nua.

    Colhendo ideias sobre o totalitarismo em Hannah Arendt, Agamben percebe

    que este no implica em ditadura ou tirania, mas sim em um movimento total

    preocupado em dominar todo o mbito da vida, reduzindo-a a mero fato biolgico.

    Tornando-se um tipo de poder que decide diretamente sobre a vida nua, sobre o seu

    valor ou desvalor, caracterstica, tambm, do poder soberano na biopoltica.

    Se o paradigma da biopoltica no contexto atual o da reduo total da vida

    dos sujeitos vida nua, ou seja, uma sobrevida, desqualificada, coisificada, possvel

    de ser medida racionalmente, ainda mais pelo poder soberano em valores

    monetrios, como fica a multiplicidade, a diversidade, a singularidade, dos sujeitos

    sob o jugo desta tecnologia do poder? A singularidade destes sujeitos, quando

    inseridos nesta perversa lgica do poder, perde a sua existncia e razo de existir,

    pois sob o olhar uniformizador, redutor, racional-objetivo, no h espao para a

    subjetividade individual, tudo se coisifica, se torna objeto, para melhor gerir, controlar

    e instrumentalizar.

    28

    CASTRO, Edgardo. Introduo a Giorgio Agamben. Uma arqueologia da potncia. Traduo: Beatriz de Almeida Magalhes. Belo Horizonte: Autntica, 2012. 29

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. 2 ed. So Paulo: Boitempo, 2011a.

  • 2 O Homo Sacer e o campo como paradigma

    Os homens no melhoram e matam-se como percevejos.

    Os percevejos hericos renascem. Inabitvel, o mundo cada vez mais

    habitado. E se os olhos reaprendessem a chorar seria

    um segundo dilvio. (Carlos Drummond de Andrade)

    Retomando a ideia exposta anteriormente, a vida humana para Agamben, em

    um contexto moderno da biopoltica no qual o poder soberano produz vidas nuas,

    representa a vida matvel e insacrificvel do homo sacer 30. Expresso esta

    resgatada pelo autor italiano de um antigo termo do direito romano, cuja vida

    humana includa no ordenamento jurdico unicamente sob a forma de excluso,

    afirmando a sua absoluta matabilidade.

    Desta forma, no direito romano os termos sagrado ou religioso remetiam a

    coisas que pertenciam ao mbito divino que no estavam disposio livre dos

    homens. Mas quando algum desses itens consagrados (ou seja, algo retirado do

    mbito dos direitos humanos) era profanado (devolvido ao uso comum e propriedade

    dos homens), ocorria uma transgresso denominada sacrilgio.

    O evento que permitia tornar algo sagrado era o sacrifcio, e, por outro lado, a

    profanao constitua em um rito que devolvia as coisas ao uso comum dos

    homens.31

    No caso do termo sacer, de homo sacer, Agamben aponta para uma

    peculiaridade daquela expresso, pois o adjetivo parece designar um indivduo que,

    tendo sido excludo da comunidade, pode ser morto impunemente, mas no pode

    ser sacrificado aos deuses. 32. Equivale dizer, neste caso, que um homem, no

    intuito de se tornar sagrado pelos rituais, sobreviveu ao ritual de sacrifcio que

    haveria de sacraliz-lo e consagr-lo aos deuses separando-o da esfera comum dos

    outros homens e, no entanto, continua existindo juntamente com os homens atravs

    de uma existncia profana.

    30

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.16. 31

    AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo: Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2010c. 32

    Idem, Ibidem, p.69.

  • Neste sentido, este homem sagrado insacrificvel, pois sua vida j pertence

    aos deuses, haja vista ele ter passado pelo ritual de sacrifcio e tendo, contudo,

    sobrevivido. Todavia, sua condio profana entre os demais homens o expe

    possibilidade de uma morte violenta, ou seja, uma matabilidade impunvel para

    quem a realizar.

    Assim, o homo sacer caracteriza a figura de um indivduo que se situa no

    limiar entre a sacralidade e a bestialidade, entre o sagrado e o profano, entre a

    pureza e a impureza; tratava-se de um homem que o povo julgou por um crime e,

    apesar de no ser permitido sacrific-lo sob o jugo da lei, quem o matasse no

    cometeria homicdio, ficando impune.

    Deste modo, a vida do homo sacer se encontra em uma zona fora da lei dos

    homens e fora da lei dos deuses, como uma [...] dupla excluso em que se encontra

    preso e da violncia qual se encontra exposto. 33. Essa vida do homo sacer a

    vida nua, desqualificada de valor e que pode ser aniquilada sem a necessidade de

    oferec-la a algum deus em sacrifcio ou eliminada sem tipificar um crime,

    denotando uma profunda correlao entre o poder soberano e a vida nua, pois:

    Soberana a esfera na qual se pode matar sem cometer homicdio e sem celebrar um sacrifcio, e sacra, isto , matvel e insacrificvel, a vida que foi capturada nesta esfera. [...] Aquilo que capturado no bando soberano uma vida matvel e insacrificvel: o homo sacer.[...] Sacra, isto , matvel e insacrificvel, originariamente a vida no bando soberano, e a produo da vida nua , neste sentido, o prstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrrio, em sua origem, justamente a sujeio da vida a um poder de morte, a sua irreparvel exposio na relao de abandono. 34

    Ou seja, a vida nua confunde-se com a vida sacra do homo sacer: uma vida

    insacrificvel e, todavia, matvel. A vida, ao mesmo tempo em que considerada

    sagrada, inviolvel, inscrita formalmente nos Direitos Fundamentais (e tambm os

    Direitos Humanos e dos Homens e dos Cidados), paradoxalmente matvel.

    Esta a mesma condio do bandido (fora-da-lei), do homem-lobo, que no

    so nem homens e nem bestas, pois habitam os dois mundos (a cidade e fora da

    cidade) sem pertencer a nenhuma delas. Da mesma forma, assemelha-se a imagem

    33

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique

    Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.84. 34

    Idem, Ibidem, p.85.

  • hobbesiana do estado de natureza em que o homem o lobo do homem, sendo a

    sua condio natural de [...] uma guerra que de todos os homens contra todos os

    homens.. 35

    Destarte, o que caracteriza o homo sacer de Agamben, no contexto atual,

    toda pessoa que tenha sua vida como um bem a ser protegido ao mesmo tempo em

    que ela, a qualquer momento, pode ser aniquilada; como algum que est dentro e

    fora da lei, simultaneamente. Assim, o homo sacer tem a sua vida pautada por uma

    ambivalncia em que vigoram a impunidade de sua morte e o veto do seu sacrifcio.

    Ou seja, o homo sacer possui uma vida sacra, que implica em ser matvel,

    porm insacrificvel quando disposto na esfera soberana, e caso venha a ser morto

    no se configuraria um homicdio ou sacrifcio. 36

    Assim, para Agamben, este estado de natureza similar ao estado de

    exceo, pois remete violncia original do poder soberano que se aplica sobre a

    vida nua. Isto refuta todo o contratualismo moderno, como teoria poltica originria,

    que marca a conveno contratual como passagem do estado de natureza ao

    Estado, pois no mais um contrato o que funda um Estado, mas sim a violncia

    soberana, com a dinmica da incluso excluso da vida nua no Estado.

    Deste modo, o homo sacer, que se identifica com o sujeito da vida nua e a

    vida sacra, est diretamente vinculado ao poder soberano, como aquele que traa e

    decide entre a vida protegida e a vida exposta morte, em tal simetria [...] no

    sentido de que soberano aquele em relao ao qual todos os homens so

    potencialmente homines sacri e homo sacer aquele em relao ao qual todos os

    homens agem como soberanos..37

    Nesse paradigma proposto por Agamben, o local em que se d a infuso do

    homo sacer o campo, no sentido de campo de concentrao exposto por Hannah

    Arendt, em seu livro O Sistema Totalitrio 38. Um local em que a vida nua est

    inserida no espao onde atua o estado de exceo soberano, no possuindo uma

    nica localizao definida, mas sendo um lugar onde tudo possvel 39:

    35

    HOBBES, Thomas de M. Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil. Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. So Paulo: Nova cultural, 1999, p.109. 36

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a. 37

    Idem, Ibidem, p.86. 38

    ARENDT, Hannah. O sistema totalitrio. Traduo de Roberto Raposo. Lisboa: Dom Quixote, 1978. 39

    Remete-se frase de David Rousset: Os homens normais no sabem que tudo possvel, que

  • A um ordenamento sem localizao (o estado de exceo, no qual a lei suspensa) corresponde agora uma localizao sem ordenamento (o campo, como espao permanente de exceo). O sistema poltico no ordena mais formas de vida e normas jurdicas em um espao determinado, mas contm em seu interior uma localizao deslocante que o excede, na qual toda forma de vida e toda norma podem virtualmente ser capturadas. O campo como localizao deslocante a matriz oculta da poltica em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer atravs de todas as suas metamorfoses, nas zones dattente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades.40

    Confirma-se, portanto, a colocao Arendtiana de que tudo possvel 41

    utilizada em um universo totalitrio e destacada por Agamben como caracterstica

    fundamental do estado de exceo. Esta a noo que se apresenta no mundo de

    hoje e que, ao menos em parte, caracteriza o campo como paradigma

    contemporneo.

    Neste sentido, o campo [...] o espao que se abre quando o estado de

    exceo comea a converter-se em regra. 42. Pois quando h uma suspenso,

    mesmo que temporria, dos Direitos, est formado um espao que permanece fora

    da normalidade legal. Assim, neste mbito em que no h Direito, emerge a

    possibilidade da violncia, consequentemente, em seu interior tudo possvel, tal

    como os campos de concentrao nazista.

    Local este em que todos os indivduos inseridos perdem o status poltico e

    jurdico, ficando reduzidos vida nua. Por isso o campo funciona como um

    paradigma do espao biopoltico no momento em que poltica se converte em

    biopoltica e o homo sacer confunde-se virtualmente com o cidado 43.O poder de

    deciso, seja o de vida e morte pela manifestao do poder soberano, cada vez

    mais ordinrio e cotidiano, atingindo desta forma a todos. De modo que no espao

    do campo, onde a vida se encontra constantemente exposta aos riscos, desqualifica-

    se em vida nua, passando a transitar como em um limbo, entre a vida e a no-vida.

    abre a terceira parte do livro sobre o totalitarismo da obra de Hannah Arendt O Sistema Totalitario (1978, p. 389). 40

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.171. 41

    ARENDT, Hannah. O sistema totalitrio. Traduo de Roberto Raposo. Lisboa: Dom Quixote, 1978, p.389. 42

    AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la poltica. Traduccin: Antonio Gimeno Cuspinera. Valncia: Pre texto, 2001, p.38. 43

    Idem, Ibidem, p.40.

  • Em suma, retomando a discusso inicial foucaultiana sobre a biopoltica,

    pode-se afirmar que Agamben, ao analisar esta tecnologia do poder nos contextos

    atuais, percebe sua mxima predominncia no entrecruzamento de quatro conceitos

    diretivos da poltica ocidental: poder soberano, vida nua, homo sacer, estado de

    exceo e campo de concentrao.44 E ao expor estas informaes, o pensador

    italiano afirma, noutra passagem, que o modelo atual vigente o do paradigma do

    campo:

    O que temos hoje diante dos olhos , de fato, uma vida exposta como tal a uma violncia sem precedentes, mas precisamente nas formas mais profanas e banais. O nosso tempo aquele em que um week-end de feriado produz mais vtimas nas auto-estradas da Europa do que uma campanha blica (...) Se hoje no existe uma figura predeterminvel do homem sacro, , talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.45

    Agamben nos remete a um estado de coisas cuja vida est constantemente

    exposta a diversos riscos, mostrando uma contradio na qual a biopoltica, ao

    mesmo tempo em que inclui a vida para melhor geri-la, para fazer vida, pode,

    tambm, cruelmente, ou violentamente, deix-la morrer.

    Essa lgica da biopoltica atual pressupe que todos ns estamos expostos a

    um tipo de violncia ou risco, como, por exemplo, os acidentes das auto-estradas,

    que matam mais do que as guerras. Assim, possvel concluir que toda a vida est

    inserida em um campo sem limites e que a qualquer momento ela pode ser

    aniquilada, mesmo estando sob a proteo sagrada dos Direitos Fundamentais do

    Estado.

    No Brasil, facilmente podemos constatar tal situao. Hoje, qualquer um pode

    ser vtima de balas perdidas, ou de erro mdico, ou de acidentes automobilsticos,

    etc. Tais fenmenos repercutem no judicirio, refletindo o aumento do nmero de

    casos de pessoas exigindo indenizaes por danos irreparveis, seja por

    negligncia do estado e da polcia, seja por erro mdico, seja por responsabilidade

    do condutor de veculo, ou de empresas, etc.

    44

    DUARTE, Andr de Macedo. Sobre a Biopoltica: de Foucault ao Sculo XXI. Revista Cintica, v.1, p.1-16, 2008. Disponvel: . Acesso: 05/07/2011. 45

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a, p.113.

  • O fato que a mortalidade aumenta cada vez mais por causa dessas

    situaes de risco banais e previsveis, em que a vida est exposta (ao ponto de o

    poder soberano estatal, manifestado pelo juiz, ter que valorar monetariamente a vida

    para pagar as indenizaes), ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, est

    presente o discurso de proteo vida atravs dos Direitos Fundamentais e

    Humanos. Conclui-se que a vida, sendo insacrificvel, porm matvel, pode ser

    tambm, em alguns casos, indenizvel.

    Consideraes Finais

    O dispositivo da exceo, ou seja, a tecnologia de governo do poder soberano

    que funciona como estado de exceo, tem o seu fundamento na elementaridade

    biopoltica da modernidade, mas tambm em uma metafsica existencial jurdica e

    poltica. Implicando isso em uma marca essencial e caracterstica de um tipo de

    poder que suspende a ordem, tornando dentro e fora, ou seja, lei e vida,

    indiferenciveis. O que desde a modernidade emergiu como um mecanismo de

    excluso-inclusiva da vida nua na poltica e nos regulamentos do Direito.

    Portanto, a simples vida, ou mera vida biolgica, e mais radicalmente a

    sobrevida, que se referem particularmente vida nua de Agamben, tornou-se

    principal e at mesmo o nico objeto da poltica e, consequentemente, do Direito em

    um estado de exceo que vigora como regra, mesmo que no declarada. O

    Estado-governo volta-se, ento, para um agenciamento total da vida biolgica

    populacional, empenhado na sua administrao, regulao, produo e formatao

    desta vida atravs de uma deciso que diz categoricamente o seu valor ou desvalor.

    A figura do Homo sacer, principal personagem do estado de exceo, um tipo

    de vivente cuja vida matvel, porm insacrificvel, carrega consigo o emblema da

    vida nua. Habita hoje em dia nos campos deslocantes, como nas zonas de favelas,

    zonas de deteno dos aeroportos internacionais, estradas e autoestradas,

    remetendo a uma exposio total da vida violncia capaz de ceif-la, lanando-a a

    morte. Ao mesmo tempo em que, quando a lei ativada, agindo nestes casos,

    reafirma-se a vida nua no momento em que o poder soberano captura novamente a

    vida atravs do dispositivo jurdico, medindo e atribuindo valor em dinheiro s partes

    lesadas e at mesmo morte da vtima atravs das indenizaes.

  • Esta perspectiva revela a contradio que h nos Discursos dos Direitos

    Humanos e Fundamentais que, numa sociedade marcada pela gesto do poder

    sobre a vida e seus dispositivos, paradoxalmente podem tornar a vida de qualquer

    um que exista neste espao como sobrevidas: vidas insacrificveis, porm matveis,

    e, em alguns casos, indenizveis.

    Pode parecer uma afirmao exagerada, mas tudo indica que a vida tornou-

    se alvo do funcionamento biopoltico, em um lugar onde o Direito suspenso, e que

    a vida nua produzida em srie, ao mesmo tempo em que cadveres so

    fabricados em massa. Este o modelo que constitui a poltica e o Direito

    contemporneos.

    Pois a nossa poca atual, sob a perspectiva dos dispositivos biopolticos, de

    uma possvel indeterminao entre vida nua e poltica, ainda mais sob o prognstico

    pessimista de Agamben: em que na biopoltica atual o modelo do estado de

    exceo como regra, que inclui a vida nua ao mesmo tempo em que a exclui do

    ordenamento; que a protege, ao mesmo tempo em que pode elimin-la ou exp-la a

    riscos. Paradoxo cada vez mais presente e generalizado.

    No entanto, h alguma sada para este reducionismo do poder sobre a vida,

    ou seja, do biopoder caracterstico da biopoltica atual?

    Uma chance de resistncia frente ao poder sobre a vida, caracterstica da

    biopoltica atual, talvez seja o poder da vida, como indica Roberto Esposito 46 , em

    sua releitura de uma poltica no mais sobre a vida, mas da vida. Partilhando das

    concepes sobre afetao de Spinoza e as vitalistas de Canguilhem como pistas

    para uma potncia da vida. Mas tambm Pelbart 47, em suas anlises sugeridas a

    partir de indicaes de Foucault, Agamben e Deleuze: no mesmo domnio sobre o

    qual hoje incide o poder biopoltico, isto , a vida, reduzida assim vida nua, trata-se

    de reencontrar aquela uma vida, tanto em sua beatitude quanto na capacidade nela

    embutida de fazer variar suas formas..

    deste modo que a biopoltica pode significar no s uma extenso do

    biopoder, ou seja, do poder sobre a vida. Deixando de indicar um sentido negativo

    de uma ordem disciplinar, de domnio e controle, possibilitando uma migrao para

    46

    ESPOSITO, Roberto. Bios. Biopoltica e Filosofia. Traduo de M. Freitas da Costa. Lisboa: Ed. 70, 2010. 47

    PELBART, Peter Pl. Vida Capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2011, p.51.

  • um sentido positivo, implicando em poder da vida no sentido de potncia da vida,

    resistiva, inovadora das formas de vida.

    Como na ideia da [...] potncia do no, de uma impotncia, na medida em

    que pode somente a partir de um poder no, de uma desativao das possibilidades

    factcias especficas singulares. 48. Pensamento este, indicado pelo prprio

    Agamben ao tomar emprestado o exemplo do escrevente Bartleby, personagem

    literrio de Herman Mellville que, em sua postura excntrica e aparentemente

    indiferente com sua realidade, resiste com foras o estabelecido e afirma a sua

    forma peculiar de vida dizendo e agindo com base em sua mxima: Preferiria no!.

    Agamben, em sua atitude messinica, aponta para uma filosofia que vem

    partindo do conceito de vida, seguindo as trilhas de Foucault e Deleuze, mas que

    superam a noo mdico-cientfica, a partir de um conceito filosfico-poltico-

    teolgico 49. O que fora uma reviso de nossas tradicionais categorias filosficas,

    polticas, jurdicas, etc.

    Neste sentido, podemos pensar, tambm, na possibilidade de um Direito que

    vem. Uma nova forma de Direito, no mais como dispositivo de captura e

    uniformizao da vida nua, mas como potencializador constitutivo de formas de vida.

    Para isso, o pensador italiano pede que olhemos o Direito em sua no relao com a

    vida e a vida em sua no relao com o Direito, com o intuito de reabrir entre eles o

    espao da poltica que se diferencie da violncia. 50

    Talvez, essa abertura para um novo Direito esteja relacionada diretamente

    com a condio humana e sua existncia trgica, cuja premissa bsica o vir-a-ser

    da forma de vida como obra de arte, consequentemente, o vir-a-ser da forma Direito

    como obra-de-arte e ao potencializadora e afirmadora das formas de vida.

    REFERNCIAS DAS FONTES CITADAS

    AGAMBEN, Giorgio. Deus no morreu. Ele tornou-se dinheiro. Entrevista com Giorgio Agamben. In.: Instituto Humanitas Unisinos IHU online, notcias, 30Ago.2012. Disponvel em: . Acesso: 20/12/2012.

    48

    AGAMBEN, Giorgio. O Aberto. O Homem e o Animal. Lisboa: Editora 70, 2011b, p.95. 49

    AGAMBEN, Giorgio. La potencia del pensamiento. Traduo de Flvia Costa e Edgardo Castro. Barcelona: Anagrama, 2008. 50

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. 2 ed. So Paulo: Boitempo, 2011a.

  • AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. 2 ed. So Paulo: Boitempo, 2011a. AGAMBEN, Giorgio. O Aberto. O Homem e o Animal. Lisboa: Editora 70, 2011b. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a. AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo: Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2010c. AGAMBEN, Giorgio. O que contemporneo? E outros ensaios. Chapec SC: Editora Argos, 2010d. AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la poltica. Traduccin: Antonio Gimeno Cuspinera. Valncia: Pre texto, 2001. AGAMBEN, Giorgio. La potencia del pensamiento. Traduo de Flvia Costa e Edgardo Castro. Barcelona: Anagrama, 2008. ARENDT, Hannah. O que Poltica. Traduo Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. ARENDT, Hannah. O sistema totalitrio. Traduo de Roberto Raposo. Lisboa: Dom Quixote, 1978. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura. Documentos de barbrie. Escritos escolhidos. So Paulo: Cultrix, 1986. CASTRO, Edgardo. Introduo a Giorgio Agamben. Uma arqueologia da potncia. Traduo: Beatriz de Almeida Magalhes. Belo Horizonte: Autntica, 2012. DUARTE, Andr de Macedo. Sobre a Biopoltica: de Foucault ao Sculo XXI. Revista Cintica, v.1, p.1-16, 2008. Disponvel: . Acesso: 05/07/2011. ESPOSITO, Roberto. Bios. Biopoltica e Filosofia. Traduo de M. Freitas da Costa. Lisboa: Ed. 70, 2010. FOUCAULT, Michel. Histria da Sexualidade. V. 1. A vontade de saber. Ed. So Paulo: Graal, 2010. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. HOBBES, Thomas de M. Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil. Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. So Paulo: Nova cultural, 1999.

  • PELBART, Peter Pl. Vida Capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2011. SCHMITT, Carl. Teologia e Poltica. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.