o assassino de macÁrio assassino de... · código do direito de autor e dos direitos conexos (70...
TRANSCRIPT
O ASSASSINO DE MACÁRIO
CAMILO CASTELO BRANCO
TEATRO
Esta obra respeita as regras
do Novo Acordo Ortográfico
A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 do
Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte do
autor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,
o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a
sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob o
mesmo princípio, é livre para a difundir.
Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital, visite-nos
em: http://www.luso-livros.net/
PERSONAGENS
BARNABÉ.
LIBÓRIO.
ETELVINA.
SEBASTIANA.
A cena é no Porto.
ACTO PRIMEIRO
Sala elegante. Porta ao fundo. Portas laterais no segundo plano. Janela à
esquerda, no terceiro plano. Piano encostado à parede direita, no primeiro
plano. Canapé à esquerda. Dois contadores pequenos à esquerda e direita.
Sofás, cadeiras, e tamborete de piano. Sobre o contador da esquerda utensílios
de barbear e espelho. No outro um relógio.
CENA I
Barnabé, (só)
(Entra pela esquerda, trajo da manhã, traz na mão uma chocolateira e toalha.
Chama:)
Sebastiana!... Isto é que foi dormir alarvemente! (Olhando para o relógio)
Já dez horas... e eu sem fazer a barba! (chamando)
Sebastiana! Esta criada é uma calaceira!... Não há doutras... Tive um sonho...
Isto de sonhos é uma tolice... Sonhei que estava pescando à cana... numa
casinha campestre, com transparentes verdes... e um repuxo!... Ah! O meu
sonho de ouro!... Logo que eu casar a filha... Um repuxo... (chamando)
Sebastiana! Com efeito! (Vai à porta do fundo)
Sebastiana! Sebas...
CENA II
Sebastiana e Barnabé
BARNABÉ (entrando pelo fundo)
Aqui estou, senhor!
BARNABÉ
Não me tinhas ouvido?
BARNABÉ
Perfeitamente. O senhor chamou-me quatro vezes.
BARNABÉ
Então porque não vieste logo?
BARNABÉ
Estava a almoçar. Acho que o senhor não pretende que os criados não
comam.
BARNABÉ
Não...
BARNABÉ
Além disso, eu sei que o senhor é pachorrento, um paz de alma...
BARNABÉ
Abusas um pouco do meu temperamento.
BARNABÉ
Está enganado... eu pelo senhor era capaz de me atirar ao lume...
BARNABÉ
Pois bem, vai atirar ao lume esta chocolateira... Quero barbear-me. (Dá-lha)
BARNABÉ
Dentro de 15 minutos aqui estou. (Vai sair).
BARNABÉ (chamando)
Olha, Sebastiana...
BARNABÉ (tornando)
Não me mande fazer duas coisas ao mesmo tempo que me atrapalha, ouviu?
BARNABÉ (á parte)
É uma criada como se quer! Boa bisca... (alto)
Olha lá... Noto que vai na casa um sossego extraordinário! Minha filha estará
doente?
BARNABÉ
Não senhor; saiu de manhã cedo.
BARNABÉ
Ah! É isso? (Senta-se no canapé).
BARNABÉ
E, na verdade, a menina faz um estardalhaço! credo!... E é de pasmar como o
Sr., tão manso, tão sossegado, fez uma filha tão...
BARNABÉ
Tão estapafúrdia, podes dizer...
BARNABÉ
É isso, estapafúrdia... é uma trovoada... Credo!
BARNABÉ
Tu que queres?... A natureza tem desconcertos... Olha, Sebastiana, eu nem
sempre vivi dos meus rendimentos.
BARNABÉ
Pois sim, sim...
BARNABÉ
Tive uma fábrica de ligas em Fradelos.
BARNABÉ
De ligas? Ora vejam...
BARNABÉ
Fazia pouco negócio... Resolvi ir para o México, porque num país, num país
quente, bem percebes, mostra-se mais a barriga das pernas... Fundei o meu
estabelecimento no México, e granjeei logo toda a freguesia das boas pernas
do país... com saias curtas.
BARNABÉ
Olha que pechincha!...
BARNABÉ
Vais ver... um par das tais pernas... duas bruxas fizeram-me uma impressão
profunda... Todas as profissões têm os seus perigos... Esposei...
BARNABÉ
As tais bruxas?
BARNABÉ
Sim... Ela chamava-se Dolores. Sete meses depois, tinha uma filha...
BARNABÉ
Sete meses só? Ora essa!...
BARNABÉ
No México a vegetação cresce muito depressa, é o que é; e isso mesmo te
explica o génio impaciente da minha Etelvina... Ela não quis esperar que se
completassem os nove meses... saiu...
BARNABÉ
Não admira, não...
BARNABÉ
E aqui tens tu, Sebastiana, como eu, um português de lei, sou pai de uma
mexicana...
BARNABÉ
Agora é que eu percebo a diferença dos dois génios.
BARNABÉ
O céu do México! Os costumes desse clima de fogo! Minha filha tem nas veias
o meu sangue; mas... mais quente... ferve-lhe mais... em fim, tem uma
temperatura mais alta...
BARNABÉ
Acho que sim... entendo.
BARNABÉ
Há de haver um ano que passei o negócio e vim para a pátria... Estava rico...
primeira felicidade; estava viúvo, segunda feli... Enfim, como não nos
dávamos bem... segunda felicidade, está dito.
BARNABÉ
Então não se davam bem...
BARNABÉ
Quero dizer... a senhora Barnabé... era muito fogosa... muito atiradiça... e
chamava-me... maricas.
BARNABÉ
Credo!
BARNABÉ
Em fim ela tinha desculpa... Eu bem me conheço... Mesmo hoje, com a minha
filha, sou uma lesma, um fracalhão... Aí está ela a querer casar com o
valdevinos do Macário.
BARNABÉ
Mas não basta querer ela.
BARNABÉ
Assim é; mas ela quer à fina força e eu não quero; a final, quem há de vencer é
ela, que é a forte, e casará! São favas contadas. Era o mesmo com a minha
mulher. Dizia-lhe eu «quero»; respondia-me ela «não quero», e eu... moita...
nem palavra.
BARNABÉ
Então estavam sempre de harmonia?
BARNABÉ
Está claro. (Rumor fora)
BARNABÉ (indo à janela)
Que será isto?
BARNABÉ
Algum choque do americano com o Ripert.
BARNABÉ
Nada, parece desordem... Tanta gente em frente da porta...
BARNABÉ
Da nossa?
BARNABÉ
Sim, Sr. Quer que eu vá saber o que é?
BARNABÉ
Não... que me importa a mim?... Olha se me aqueces a água... anda.
CENA III
Os mesmos e Etelvina (Abre-se com estrondo a porta do fundo. Etelvina
entra afogueada e passeia muito colérica.)
BARNABÉ
Olá!... és tu?
ETELVINA
Sim, sou eu. Bom dia.
BARNABÉ
Tu que tens?
ETELVINA
Estou furiosa! (Passa para a direita.)
BARNABÉ
Donde vens?
ETELVINA
De pregar uma bofetada num sujeito.
BARNABÉ
Fizeste isso?
ETELVINA
Num atrevido...
BARNABÉ
Talvez imaginasses...
ETELVINA
Qual imaginasse! um grosseirão que ousou dizer-me cara a cara: «a menina é
encantadora.»
BARNABÉ
E bateste-lhe por isso? Que farias tu se ele te chamasse estafermo?
ETELVINA
O seu sangue frio, meu pai, quando sou insultada! Castiguei-o, e espero que a
cena se não repita.
BARNABÉ
De te chamar encantadora?... Também me parece que o homem deve ter
modificado a sua opinião ao teu respeito... (A Sebastiana)
Que fazes tu aí? a minha água quente?
BARNABÉ
Lá vou já, Sr. Barnabé. (Á parte)
Muito atolambada é esta menina! (Sai pelo fundo).
CENA IV
Barnabé, Etelvina, e depois Sebastiana
ETELVINA (depondo o chapéu e o xaile, vai sentar-se ao piano e canta)
Trai la ri, trai la ri, trai la ró.
BARNABÉ
Isso é um bota a baixo! Agora é o piano que leva a sua conta...
ETELVINA (Cantando)
«Na primavera da vida
Ambos e dois muito amigos
Suspiravam por um ninho,
Por um ninho entre os trigos.»
BARNABÉ
Que é isso que tu cantas?
ETELVINA
Uma cançoneta moderna, que se chama: Um ninho entre os trigos. (Canta):
E de braço dado juntos
Ao repontar da manhã
Iam fazer o seu ninho
Nos trigos de Campanhã.
BARNABÉ
É mais natural que fosse nas árvores... Os pássaros em geral preferem...
ETELVINA
Mas não se trata de pássaros. (Canta):
E depois ele cantava
Pousado nos ramos novos,
E ela aquecia, cantando
No seu ninho os caros ovos.
BARNABÉ
Ah! então não é de pássaros que se trata? Lá me parecia que dois pássaros de
braço dado por Campanhã...
ETELVINA
É uma menina e um rapaz.
BARNABÉ (pegando na cançoneta com arremesso).
Basta! Deixa ver. (Lê alto as três quadras que ela cantou). E chama a isto um
ninho o tratante do cançoneteiro! Quem diabo fez esta coisa?
ETELVINA
Foi um poeta inspirado. Dê-me cá a música, ande!
BARNABÉ
Empresto-ta para a estudares, de tarde, quando eu estiver a dormir a sesta... (Á
parte). Mandem lá ensinar piano ás raparigas numa terra em que os poetas
inspirados dizem ás meninas que se fazem ninhos nos trigos de Campanhã!... e
que se aquecem os ovos... O Porto está pior que o México a respeito de ovos
e de ninhos...
BARNABÉ (entrando pelo fundo). Ainda havia água quente. Ela aqui está
(Dá-lhe a chocolateira).
BARNABÉ
Bem, vou para o meu quarto (Mudando de ideia). Mas, se estiveres quieta...
Um pai pode escanhoar-se na presença da filha (Arranja os utensílios, e
remexe o pincel na vasilha do sabonete).
ETELVINA (a Sebastiana)
Veio carta para mim?... de Braga?
BARNABÉ
Não, minha senhora, o carteiro passou há muito. (Sai pela porta do fundo)
ETELVINA (consigo mesma)
É espantoso! Há três dias que Macário foi para Braga, e nada de notícias! Se
eu não tivesse inteira confiança no seu amor... Talvez uma catástrofe!
Acontecem tantas desgraças nos caminhos de ferro!... (Vai agitadamente para
o pai que lhe voltou as costas e se está barbeando)
Meu pai! (com intimativa)
BARNABÉ
Que é? Cuidado, que por pouco me não cortei... Que temos?
ETELVINA
Acha isto natural?
BARNABÉ
Natural, o quê?
ETELVINA
Três dias de ausência sem me escrever?
BARNABÉ
Ah! sim, o Macário? (Á parte)
Bem me importa a mim isso... (alto)
Se ele foi buscar os papéis a Braga, é preciso dar-lhe tempo. (Torna a
escanhoar-se)
ETELVINA (passeando)
Dar-lhe tempo, dar-lhe tempo! Eu não exijo que ele volte; mas que me
escreva; não se está assim três dias... a fazer o quê?... que dificuldades
encontrou?
BARNABÉ
Não andes assim nesse passo que me incomodas. Fazes tremer o sobrado.
ETELVINA
O pai não sabe o que é amor!
BARNABÉ
Soube-o primeiro que tu, e dou-te a minha palavra que depois que a gente
sabe o que isso é, e pensa a sangue frio... não vale um caracol o amor... Tu o
saberás...
ETELVINA
Há três meses que conheço Macário, e a toda a hora maldigo as formalidades
portuguesas, e pergunto de que servem para a gente se casar, papeis, banhos,
tabelião, padre, sacristão...
BARNABÉ
Há pessoas que dispensam tudo isso... mas (com energia)
fazem mal... fazem muito mal... Sem tabelião, e banhos, e padre e sacristão
não há honra.
ETELVINA
Finalmente, logo que Macário chegar com os papéis, não haverá
impedimentos...
BARNABÉ
Isso lá de impedimentos... veremos.
ETELVINA (derrubando uma cadeira, e indo direita ao pai)
Haverá alguns? diga...
BARNABÉ (cortando-se)
Cá está um... vês tu?
ETELVINA
Um impedimento?
BARNABÉ
Um golpe de navalha... estou acutilado!
ETELVINA (estancando-lhe o sangue com o lenço)
Deixe ver... Isto não é nada.
BARNABÉ
Arde-me... e bastante...
ETELVINA
Vai passar.
BARNABÉ
Fala-me, se queres, mas lá de longe... Eu só de longe é que ouço bem.
ETELVINA (afastando-se e levantando a cadeira)
Faço-lhe a vontade; mas o pai falou de um impedimento... desejo conhecê-lo.
BARNABÉ
É o meu consentimento.
ETELVINA
O seu consentimento?
BARNABÉ
Está claro; tu não podes casar sem eu consentir... A lei é positiva.
ETELVINA
Que arrelia! Isso quer dizer que, se o pai não ama Macário, também eu não
posso amá-lo...
BARNABÉ
Lá tu amá-lo podes... mas não basta...
ETELVINA
Não posso casar com ele, se o pai o não amar?...
BARNABÉ
Não.
ETELVINA
As leis portuguesas dizem isso? Existem absurdos tais num povo livre?
BARNABÉ (limpando a navalha e pondo-a sobre o contador)
Tal e qual, minha filha. Ora agora, quanto a Macário...
ETELVINA (passando para a esquerda)
Meu pai, eu amo Macário!
BARNABÉ
Ele não tem cheta.
ETELVINA
Amo Macário!
BARNABÉ
Passa a vida nos bilhares e nas cervejarias.
ETELVINA
Mas eu amo-o.
BARNABÉ
Serás desgraçada com ele.
ETELVINA
Acabemos com isto. Amo Macário!
BARNABÉ
«Amo Macário, amo Macário!» Estás-me cantando o 1.º acto da Favorita. «Eu
o amo, eu o amo!»
ETELVINA
Dá ou não dá o consentimento?
BARNABÉ
Não.
ETELVINA
Não? (Pega da navalha)
O pai é implacável, hein?
BARNABÉ
Que é o que ela tem na mão? Ceus! a minha navalha!
ETELVINA (caminhando e brandindo a navalha e o pai a segui-la)
Trato de me evadir ás leis infames deste país. Suicido-me.
BARNABÉ
Larga a navalha.
ETELVINA
Ultima vez: consente?
BARNABÉ
Consinto: casa com ele.
ETELVINA (largando a navalha e abraçando-o)
Obrigada, meu pai, obrigada!
BARNABÉ
Agora, asfixias-me... (Passa para a direita, levanta a navalha e coloca-a sobre o
contador)
Cruzes!
ETELVINA
Mas o silêncio dele assusta-me, meu pai! Três dias sem notícias! Vou escrever
a Macário; e, se me não responder, amanhã parto para Braga. Se lhe tivesse
acontecido algum revés! (A Sebastiana, que entra pelo fundo)
Sebastiana, não estou em casa para ninguém, absolutamente para ninguém
(Entra pela direita)
BARNABÉ
Sou o pai desta pombinha... É um anjo... Se eu me vejo livre desta ardente
criatura do México... Sebastiana, dá-me o casaco e o chapéu.
BARNABÉ
Sim, senhor. (Sai pela esquerda)
BARNABÉ (só)
Deixá-la casar com o Macário! O que eu quero, sobre tudo, é paz e sossego...
O casamento favorece os meus projetos... Falaram-me de uma quinta que se
vende em S. Mamede de Infesta. O dono mora perto daqui; vou tratar com
ele; e, se não for muito cara, o meu sonho desta noite realiza-se... O repuxo!
Ah! o repuxo!
BARNABÉ (entrando com o casaco e o chapéu)
Aqui estão as coisas.
BARNABÉ (despindo o rob-de-chambre)
Obrigado... Ajuda-me... (Vestindo-se)
Irei viver sozinho em paz e sossego.
BARNABÉ
O senhor vem jantar?
BARNABÉ
Sim, mas há de ser tarde. (Sai pelo fundo repetindo)
Em paz e sossego...
BARNABÉ (só)
Muito bom sujeito! (arruma); mas a filha... Ah! tenho pena do tal Macário, se
casar com ela! Credo! se eu fosse homem, e topasse uma criatura assim... ó
senhores!... Enfim, isto de homens gostam assim das mulheres que puxem por
eles... Mas esta ida a Braga... Quem sabe se o tal Macário... an, an... (Toque
fora)
Quem sabe se é ele? (Libório entra pelo fundo)
CENA VI
Sebastiana e Libório
BARNABÉ
Ai! não é ele!
LIBÓRIO
Não é ele: sou eu.
BARNABÉ
O senhor que quer?
LIBÓRIO
A Sr.ª D. Etelvina Barnabé, uma mexicana de raça portuguesa...
BARNABÉ
É aqui; mas...
LIBÓRIO
Ela saiu? É o que eu quero. (Assenta-se, e apresenta um aspeto risonho)
Vou-me ensaiar.
BARNABÉ
Mas a senhora está em casa.
LIBÓRIO (erguendo-se de ímpeto, e tornando-se grave)
Recolho o meu sorriso; nesse caso vai dizer a tua ama...
BARNABÉ
A senhora está a escrever, e proibiu-me de a interromper.
LIBÓRIO (tornando-se a sentar risonho)
Muito bem... vou-me ensaiar.
BARNABÉ (á parte)
A falar a verdade, a menina é tão esquisita que, se eu a não aviso, é capaz de se
escamar. (alto)
O senhor como se chama?
LIBÓRIO
Como me chamo?
BARNABÉ
Sim... vou avisar a senhora. Quem direi que a procura?
LIBÓRIO
Anuncia-lhe... um desgraçado! (passa para a esquerda).
BARNABÉ
Um desgraçado?!
LIBÓRIO
Não... (á parte)
Seria parlapatice de mais...
BARNABÉ
Então que decide?
LIBÓRIO
A tua ama é nervosa?
BARNABÉ
O senhor que diz? olha que pergunta!
LIBÓRIO
Deve ser nervosa... Olha bem para mim... Vês esta cara melancólica? vês? pois
vai dizer à menina Etelvina que está aqui um sujeito com cara de quem
chorou...
BARNABÉ
Como? o senhor quer que eu diga...
LIBÓRIO
Não, outra coisa... espera...
BARNABÉ
O senhor não pense que eu vou agora incomodar a menina para lhe fazer o
seu retrato.
LIBÓRIO
Tens razão; não a incomodes... Esperarei... convêm-me esperar...
BARNABÉ (á parte)
Tem grande telha o homem!
LIBÓRIO
Como te chamas?
BARNABÉ
Para que o quer saber?
LIBÓRIO
Para quê? É para não estar a chamar-te criada; mas, tens razão... Que me
importa a mim? Eu queria chamar-te Mariquinhas ou Teresinha... Que lindos
olhos tu tens, e que cinta!... (Cinge-a pela cintura).
BARNABÉ
Está bonita a chalaça!... foi para isto que veio cá?
LIBÓRIO
Não. Tu me impões o cumprimento de um dever. Obrigado, rapariga,
obrigado!
BARNABÉ (á parte)
Ele é doido; mas aparelha bem com a minha ama... Cá se avenham, que eu
vou para a cozinha. (Sai pelo fundo, levando o rob-de-chambre de Barnabé, e
os utensílios de barbear.)
CENA VII
Libório
(só, arrumando à esquerda o chapéu e a bengala)
Eis-me a braços, com a minha missão!... Aquele diabo do Macário!... Acabou-
se... Não há remedio... Ontem à noite, entrei no café Lisbonense, e estava lá o
Macário a apostar ao bilhar. Assim que me avistou, veio direito a mim, e disse-
me: «Libório, és meu amigo?» Eu conhecia-o de ter estado com ele no colégio
do Six, onde tínhamos rilhado de parceiros algumas raízes de latinidade.
Respondi-lhe: «Sim, sou teu amigo para a vida e para a morte.» - «Para a
morte? exclamou ele. É o que eu exijo da tua amizade. Se me amas, vais
matar-me!» E em poucas palavras contou-me os seus amores com uma
mexicana a quem prometera casamento. «Esta neta de Montezuma, disse ele,
não pega como uma obreia - agarra-se à gente como cola forte: é um betume.
Quer por força pregar comigo na igreja. Se eu não casar com ela, mata-me; e
eu prefiro antes morrer ás tuas mãos que ás dela.» Falou-me então de uma
fantástica saída para Braga, e encarregou-me da missão que venho cumprir...
Confesso que não me encarregaria disto sem umas certas intenções... O
retrato que ele me fez dessa Etelvina realiza os meus ideais. Uma rapariga
selvagem é ave rara no Porto!... Uma mulher que tem nas veias sangue dos
Incas!... alto lá com ela! Está no meu gosto. Resolvi, por tanto, relacionar-me
com a pequena; e, se me agradar, tratarei de lhe dar algum alívio, e passo a
empreender a conquista do México. (Olha para o lado direito)
Abre-se uma porta... é talvez a pequena... Agora é que são elas... Firme!...
CENA VIII
Libório, Etelvina (entrando pela direita)
ETELVINA (com uma carta na mão)
Está feita a carta... já pro correio... (avistando Libório)
Um homem!...
LIBÓRIO (cumprimentando)
Minha senhora... (á parte)
Fatia!... rica natureza!
ETELVINA
O senhor quem procura?
LIBÓRIO
A Sr.ª D. Etelvina Barnabé.
ETELVINA
Sou eu.
LIBÓRIO (sorrindo)
Minha senhora... (á parte)
trabalha-se bem no México... (alto)
Venho encarregado de lhe transmitir uma importante notícia...
ETELVINA
Noticia?
LIBÓRIO (á parte)
Circunspeção...
ETELVINA
Queira dizer (apontando-lhe uma cadeira e sentando-se)
LIBÓRIO (pegando de uma cadeira do fundo à esquerda e sentando-se)
(á parte)
Estou atrapalhado... (alto)
Minha senhora, acabo de chegar de Braga.
ETELVINA (erguendo-se, e ele também)
De Braga?
LIBÓRIO (passando para a direita)
(á parte)
Parece que o cavaco tem de ser de pé. (Alto)... Venho de Braga, onde estive
com Macário...
ETELVINA
O senhor é amigo dele?
LIBÓRIO
Sim... isto é... sim... oh! certamente... amigo intima...
ETELVINA (com veemência)
Por que não está ele aqui ao pé de mim como prometeu e jurou? porque me
não escreve? porque é? diga-me o senhor porque é?
LIBÓRIO (á parte)
Que bonita ela é zangada!
ETELVINA
O senhor não responde?
LIBÓRIO
Responderei. (á parte)
Circunspeção! (alto)
Macário ficou em Braga... e encarregou-me de comunicar a V. Exa. as razões
que o prendem lá.
ETELVINA
Mas acabe com isso... vamos direitos à questão... Nada de delongas...
LIBÓRIO (á parte)
Também não é feia na impaciência!... (alto)
Minha senhora, o imprevisto é o maquinista da existência... O acaso arranja
uns cenários, umas tramoias que parecem de peça magica...
ETELVINA
Que mais?
LIBÓRIO (á parte)
Não vamos logo ás do cabo. (alto)
Ah! minha senhora... ser jovem, belo, amado de uma mulher... isso não é
razão para impedir que um mau destino... pelo contrário é pior...
ETELVINA
Ó senhor! por piedade! Acabe...
LIBÓRIO
Macário disse a V. Ex.ª, creio eu, que ia a Braga buscar uns papeis...
ETELVINA
E mentiu-me?
LIBÓRIO
Quanto ao fim da viagem, mentiu. Ninguém hoje vai a Braga senão por dois
motivos.
ETELVINA
Quais?
LIBÓRIO
Ou se vai ao Bom Jesus ver os judeus e comer frigideiras, ou terçar no campo
da honra dois floretes, desde que os duelos no Porto, por muito repetidos,
têm a polícia numa constante vigilância.
ETELVINA
Um duelo!?
LIBÓRIO
Um conflito de honra...
ETELVINA
Ele foi bater-se? Ficou ferido?
LIBÓRIO
Minha senhora...
ETELVINA
Ligeiramente ferido, sim? quase nada? Oh! diga-me que não é nada!
LIBÓRIO
Minha senhora... Macário... ah!... não posso... Se V. Exa. soubesse...
ETELVINA
Ó céus!... que foi?...
LIBÓRIO (á parte)
Chegou o momento.
ETELVINA
Macário?...
LIBÓRIO
Macário...
ETELVINA
Morto! (Libório está um momento silencioso; depois, ampara a cabeça com as
mãos).
ETELVINA (expedindo um enorme grito)
Ah!
LIBÓRIO
Minha senhora...
ETELVINA
Morto! assassinado... ele!... ah! (Roda sobre si mesma duas vezes e vai
desmaiar no canapé).
LIBÓRIO
Hein! ela desmaia!... ora esta! Não a julgava capaz desta tolice! (vai junto dela)
Menina... Acho que chamo alguém... Mas que historietas se vão arranjar com
este caso!... Menina, peço-lhe que recupere os sentidos... Se eu a despertasse...
Mas é preciso mexer-lhe nos colchetes... Não, não me atrevo a fazer tanto... O
coração bate-lhe... Estou mais sossegado... É gentil!... é mais que gentil, é
formosa! Isto é bom a valer!... E aquele parvo do Macário a desdenhar... Ela
está ganhando cores... já lhe tremem as azas do nariz... e pestaneja. Volta à
vida... Se eu me safasse agora... (Vai a querer sair e retrocede)
Não: já agora fico, suceda o que suceder.
ETELVINA
Onde estou?
LIBÓRIO
Menina...
ETELVINA
Quem me fala? quem é o senhor? (encarando-o)
ah!
LIBÓRIO
Por quem é, sossegue!
ETELVINA
Esta voz... esta cruel voz...
LIBÓRIO
Que é?
ETELVINA
Recordo-me... Macário, o meu noivo, a minha alma... ah! ah! ah! (recai sobre o
canapé e chora).
LIBÓRIO (á parte)
Palavra, que me mordem remorsos.... Se eu previsse... Acabou-se... Vou-lhe
dizer tudo... (caminha para ela; mas reconsidera)
É demais atormentar assim esta mulher com mentiras... Diabo! como ela
chora... (avizinha-se)
Minha senhora, então, então...
ETELVINA (erguendo-se energicamente, limpando as lagrimas, e passando
para a direita)
Basta de fraqueza! Nada mais de choros! Um celerado matou Macário... e eu
aqui a carpir-me em vez de o vingar! (Vai a Libório)
O senhor foi testemunha do duelo?
LIBÓRIO
Sem dúvida... isto é... sim... fui testemunha (com dor)
Fiz quanto podia; mas...
ETELVINA
Sabe qual foi a causa do duelo?
LIBÓRIO
A causa? ora, se sei... pois não sei?... (á parte)
Ó diabo!... (alto)
pois não hei de saber a causa? não sei eu outra coisa...
ETELVINA
Então diga lá qual foi?
LIBÓRIO
Uma questão de carambolas... A paixão do Macário... bem sabe... é o bilhar...
Por causa de uma carambola...
ETELVINA
De uma carambola?
LIBÓRIO
Sim... o parceiro tinha descolado a bola.
ETELVINA
Está bem... não quero saber disso... Logo que o motivo não foi outra mulher,
o resto não me importa. Como se chama o adversário?
LIBÓRIO
O adversário?
ETELVINA
O nome dele?
LIBÓRIO
Então quer que eu lho diga...
ETELVINA
O nome do assassino. (Libório hesita)
Vamos!
LIBÓRIO
Ah! sim o nome do assa... Ora espere... Mas é que eu fui padrinho do
Macário... e não conheço o outro...
ETELVINA
Ora essa! um padrinho deve conhecer os dois.
LIBÓRIO
Tem razão; é natural que mo dissessem; mas a comoção...
ETELVINA (á parte)
O homem está atrapalhadíssimo! (alto)
Mas o senhor quem é? como se chama?
LIBÓRIO
Libório, minha senhora, Arthur Libório; profissão, filho família que devora a
legitima paterna; mas tenho muitos tios ricos...
ETELVINA
Pois então, senhor Libório, meu presado senhor Libório, diga-me o nome...
LIBÓRIO
De quem?
ETELVINA
Do assassino de Macário.
LIBÓRIO
Palavra de honra que não sei...
ETELVINA
O senhor mente!
LIBÓRIO
Ó minha senhora...
ETELVINA
Não é possível...
LIBÓRIO
Antes isso... que é menos indelicado...
ETELVINA
Está bom: eu saberei o nome. Onde foi que se bateram?
LIBÓRIO
Onde foi?
ETELVINA
Também não sabe?
LIBÓRIO
Não sei eu outra coisa! mas essas miudezas... (á parte)
ela embrulha-me!
ETELVINA (á parte)
Outra vez atrapalhado!
LIBÓRIO
Foi numa carvalheira... A Sr.ª D. Etelvina conhece Braga?
ETELVINA
Nada.
LIBÓRIO (á parte)
Ainda bem! (alto)
Braga tem a figura de um enorme bacalhau da Noruega, e tem 3 portas. Nós
saímos pela estrada de Guimarães. Foi ao pé da Falperra. Carregando à mão
direita topa-se uma azenha, depois sobe-se um pedaço de monte, toma-se para
a esquerda, e entra-se numa mata virgem... Foi aí que se bateram.
ETELVINA
Não preciso mais nada. A que horas se sai para Braga?
LIBÓRIO
Há três comboios a escolher.
ETELVINA
Iremos no primeiro.
LIBÓRIO
Iremos?!
ETELVINA
Duvida acompanhar-me?
LIBÓRIO
Eu?
ETELVINA
Ir mostrar-me a fatal mata virgem, e auxiliar-me nas minhas pesquizas até
descobrir o assassino de Macário?
LIBÓRIO
Mas, minha senhora...
ETELVINA
Não vai?
LIBÓRIO
Irei; mas...
ETELVINA
Vou escrever ao meu pai, preparar a maleta e vamos... (vai para a direita)
LIBÓRIO
Sozinhos?
ETELVINA
Com meu pai... Jura que me espera?
LIBÓRIO
Faça favor de refletir... A minha senhora...
ETELVINA
Jura?
LIBÓRIO
Sobre os manes de Macário! juro!
ETELVINA
Obrigada! venho já. Oh! sim! a Braga, no expresso! (sai velozmente pela
direita).
LIBÓRIO (só, cobrindo-se)
Toca a safar! É uma canalhice faltar ao juramento... mas basta de asneiras...
Onde esta o meu chapéu? A rapariga é bonita, é adorável; mas leva-la a Braga
e mais o pai, e continuar esta tramoia absurda... - onde poria eu o chapéu? -
que eu vim representar no seio desta família (Põe a mão na cabeça)
Cá está o chapéu... Por aqui me esgueiro... (Vai a sair pelo fundo, e encontra
Barnabé que entra).
CENA IX
Barnabé e Libório
BARNABÉ (vendo Libório)
Olha o Libório!... (á parte)
que veio aqui fazer este tipo?
LIBÓRIO
O meu parceiro do quino!...
BARNABÉ
O grande pandego por aqui?
LIBÓRIO (á parte)
E eu que ainda ontem estive a jogar com ele... Isto vai transtornar a patranha...
BARNABÉ
Então que feliz acaso o trouxe aqui a minha casa?
LIBÓRIO
A sua casa?... É célebre coisa! Eu não sabia que o amigo Barnabé era o pai da
menina... Muito gosto em o conhecer...
BARNABÉ
Ainda me não explicou o mais importante.
LIBÓRIO
Acabo de ter o prazer de comunicar a sua filha uma tristíssima notícia...
BARNABÉ
Sim? então que foi?
LIBÓRIO (querendo sair)
Não... Já bastará... dispenso o bis... Ela cá lho contará...
BARNABÉ (sustendo-o)
Sr. Libório, eu sou pai... ouviu?
LIBÓRIO (á parte)
A pequena é encantadora, e não será mau sondar o pai... (alto)
O senhor conhece o Macário?
BARNABÉ
Muito... de mais.
LIBÓRIO
Vim anunciar-lhe que ele morreu.
BARNABÉ (com jubilo)
Que me diz?
LIBÓRIO (admirado)
Gosta?
BARNABÉ (reconsiderando-se)
Não... pobre rapaz... Sem dúvida, deploro esse caso palpitante! mas em fim
(alegremente)
faz-me conta.
LIBÓRIO
Sim? Faz-lhe conta?
BARNABÉ
É o que eu lhe digo. Ele ia casar com a pequena... Consenti com muito custo.
Não gostava do homem, eu; e persuado-me que a minha filha se daria mal
com ele. Por tanto, como individuo, lamento-o; como pai, exulto.
LIBÓRIO (á parte)
Isto vai bem, vai bem... mas então é inútil que eu o convença de que... (alto)
Sr. Barnabé... (Leva-o para a esquerda)
Psiu... Macário está de perfeita saúde.
BARNABÉ
O Macário que morreu?
LIBÓRIO
Não é isso... não morreu...
BARNABÉ
Isso mau é!...
LIBÓRIO
Aí vai o enigma em duas palavras. Macário fez à sua filha juramentos que não
quer cumprir, percebe?
BARNABÉ
Diga o resto.
LIBÓRIO
E para fugir à vingança, pediu-me que viesse dar parte da sua morte.
BARNABÉ
É um caso bonito e extraordinário, esse...
LIBÓRIO
Eu fiz um relatório em regra... um duelo em Braga, etc., etc., etc.
BARNABÉ
Ela havia de fazer aí o diabo!... Ela não lhe bateu, hein?
LIBÓRIO
Não; mas soluçou, desmaiou, escabujou... Oh! soberba criatura na sua
angústia!
BARNABÉ
Está ali uma linda viúva, não acha?
LIBÓRIO
A final quer que eu vá com ela a Braga.
BARNABÉ
O senhor?
LIBÓRIO
Eu e mais o senhor. Quer que vamos os três.
BARNABÉ
Então desconfia da peta?
LIBÓRIO
Não, senhor. Quer ir vingar a morte do noivo.
BARNABÉ
Toma!
LIBÓRIO
E exige que eu lhe diga o nome do assassino; e como até esta data o único
assassino de Macário sou eu...
CENA X
Os mesmos e Etelvina, que vinha entrando pela direita, e, ao ouvir a ultima
frase, se esconde.
ETELVINA (á parte)
Que disse ele?
LIBÓRIO
Agora, já o meu amigo entende a minha atrapalhação...
ETELVINA (á parte)
A sua atrapalhação!...
BARNABÉ
Porque lhe não disse um nome qualquer?
LIBÓRIO
Não me ocorreu essa ideia...
ETELVINA (á parte)
Que mistério é este?
LIBÓRIO
Já vê em que entalas eu me acho... A cada instante, quase que me estendia...
Que cólicas eu rapei! Eu não queria de modo algum que ela soubesse que...
ETELVINA (á parte)
Que horrores eu estou adivinhando!
BARNABÉ
Soubesse o quê?
LIBÓRIO
Jogo franco. Macário falou-me da sua filha nuns termos que espicaçaram a
minha curiosidade...
BARNABÉ
Com efeito... espicaçaram-no os termos...
LIBÓRIO
Meu amigo, simpatizo com esta menina original...
ETELVINA (á parte)
Hein?
LIBÓRIO
É o que lhe digo... Amo as plantas exóticas... Gosto destes licores capitosos de
fábrica estrangeira, e rejeito os xaropes amelaçados da fábrica nacional.
BARNABÉ
Em suma, o senhor gosta da minha filha...
LIBÓRIO
Deveras.
ETELVINA (á parte)
Ele ama-me!... que horror!
BARNABÉ
Querido Libório! (á parte)
Ele é rico... (alto)
O seu pedido faz-me muita honra... mas...
LIBÓRIO
Recusa?
BARNABÉ
Aceito. (Dão-se as mãos).
ETELVINA (á parte)
Que revelação!
BARNABÉ
Mas o essencial é conquistar a vontade dela... Uma feliz lembrança! vamos
partir todos para Braga...
LIBÓRIO
Parece-lhe?...
BARNABÉ (gracejando)
O senhor não se arrisca a encontrar o assassino de Macário, pois não?
LIBÓRIO (rindo)
É muito provável que não...
BARNABÉ
Vocês viajam juntos; e em quanto finge que faz indagações, vai-lhe fazendo a
corte.
LIBÓRIO
É isso, perfeitamente.
BARNABÉ
Eu vou também... bem me custa; mas em fim não há conveniências a guardar
quando se trata do futuro de uma filha.
LIBÓRIO
Mil graças, Sr. Barnabé.
BARNABÉ
Venha comigo ao meu quarto, e ajuda-me a fazer a mala.
LIBÓRIO
Com muito prazer! Estou contentíssimo!
BARNABÉ
E então eu! Vi-me livre do Macário! Que bem fez o senhor em matar esse
bigorrilha! (Entram pela esquerda)
CENA XI
Etelvina
(só)
Ele! foi ele o assassino de Macário! e o meu pai sabia-o! e ambos eles querem
que eu case!... Mas que país é este... este Portugal... este mundo onde o
assassino cobiça a noiva da vítima! E pude conter-me! E não avancei para ele
como uma leoa, como a pantera ferida! Oh! mas ele volta, e então... Não, não
é com um golpe de punhal que ele morrer! Para crimes monstruosos é
necessário vinganças excecionais! Há de morrer não a golpes de punhal, mas a
picadelas de alfinete! Ele ama-me!... ama-me!... quer esposar-me!... porque
não? porque não? Pois não é justo que o seu nome e a sua honra me
pertençam? (irónica)
Ah! com que jubilo eu não proferirei diante do sacerdote, o ditoso sim, a doce
renúncia de mim toda! Nunca uma noiva apaixonada, mais ternamente, nunca
uma solteirona de 35 anos terá proferido esse sim com maior exultação! Ah!
parece-me que me estou vendo e ouvindo quando o padre me disser: «Recebe
como esposo o Sr. Libório?» e eu com a coroa de virgem na cara e a raiva no
coração e a injúria nos lábios e os olhos em terra, responderei «sim, sim, sim!»
Ó meu Macário, conta com uma vingança desconhecida na Europa! uma
vingança mexicana! Ah! lá da mansão celeste, tua derradeira morada, ver-me-
ás com ufania!... Vem gente... é ele!... Cala-te, meu coração!... Sorride meus
lábios! Silencio, minhas saudades! É forçoso! é forçoso!... (Senta-se junto ao
piano).
CENA XII
Libório, Barnabé, Etelvina
BARNABÉ (fora)
Confio-lha; mas não lhe dê grandes abalos. (Entra pela esquerda com
Libório).
LIBÓRIO (com uma grande mala)
Pesa que tem diabo!
BARNABÉ
Pesa, pesa... Obrigado... Eu é que já não posso com isso.
LIBÓRIO (vendo Etelvina, baixo a Barnabé)
Cá está ela... Alerta!
BARNABÉ
Justo... Façamos caras dolorosas. (Avança e pára)
Cuidei que ela estava arranjando as malas...
LIBÓRIO (baixo)
Está a pensar nele...
BARNABÉ (aproximando-se em tom magoado)
Etelvina, Etel...
ETELVINA
Quem me chama?
BARNABÉ
Ninguém... isto é, sou eu, teu pai. (Aponta para Libório e faz com que ela o
veja com a mala). Estamos prontos para partir...
ETELVINA (como se não entendesse)
Partir não entendo...
BARNABÉ
Não entendes? boa!... O Sr. Libório contou-me...
ETELVINA
Então já sabe?
BARNABÉ
Sim, sei. Que se lhe há de fazer? A Parca é inflexível!
ETELVINA
E o papá tem grande pena, não tem?
BARNABÉ
E que pena! aqui tens a prova... ali está a mala... Resigno-me a ir a Braga,
auxiliar-te nas tuas indagações.
ETELVINA
Quais indagações?
BARNABÉ
Então nós não vamos procurar o assassino de...
ETELVINA (erguendo-se de golpe)
O assassino de Macário?... (Avança para Libório, que sustenta sempre a mala,
e recua diante do olhar dela)
O senhor que tem? que tem o Sr. Libório?
LIBÓRIO
Eu?... nada...
ETELVINA
Pensei que estava atarantado...
LIBÓRIO
Um pouco, com esta mala...
ETELVINA (á parte)
O remorso estrangula-o!... (alto)
O senhor era amigo dele, não era? muito amigo dele, pois não?
BARNABÉ
Está bom, está bom... tem muito tempo de conversar na jornada...
ETELVINA
Qual jornada?
BARNABÉ
Pois nós não vamos a Braga?
ETELVINA
Fazer o quê?
BARNABÉ
Mas o Sr. Libório não me disse que tu...
ETELVINA
Ah! sim... no primeiro momento, queria... pensava mas mudei de tenção...
Não vamos.
LIBÓRIO (deixando cair a mala)
Hein?
BARNABÉ
Boa vai ela!
ETELVINA
De que serve procurar esse feliz contendor... O duelo é um jogo de azar... e a
minha vingança não se submete ao acaso... (Passa para a direita)
BARNABÉ
Apoiada! tens muita razão! isso é que é ter juízo! (A Libório)
Está aplacada!... Bravo!
LIBÓRIO (á parte)
É o arco da velha a anunciar trovoada.
CENA XIII
Os mesmos e Sebastiana
BARNABÉ (entrando pelo fundo)
Está o almoço na mesa.
ETELVINA
Põe mais um talher.
BARNABÉ
Três talheres?
ETELVINA
Pois então, meu pai! não há nada mais natural... O Sr. Libório, que chegou de
Braga, e que veio prestar-nos um serviço, não duvidará aceitar...
LIBÓRIO
Eu... mas... (á parte)
Bem disse eu que era o arco da velha... (alto)
com muito prazer.
ETELVINA
O seu braço, Sr. Libório. (Libório oferece-lho e sobem).
BARNABÉ (á parte)
Este será também um noivo?
BARNABÉ (á parte)
Que mudança ela fez!
ETELVINA (para o pai)
(Parando à porta do fundo)
Então, meu pai? Vem? está a pensar no Macário, ou no assassino de Macário?
Vamos almoçar. (Saem ).
BARNABÉ (pensativo)
Mau! mau! Bem dizia o Libório... O arco da velha vai dar muita chuva...
(Segue-os).
FIM DO 1.º ACTO
ACTO SEGUNDO
Quarto de dormir. Ao fundo, um leito cujos cortinados, pendentes de um
dossel, estão meio-cerrados. Um pouco aquém uma porta que abre para um
gabinete de toilete. À direita, no primeiro plano, uma janela fechada com
cortinas e store. No fundo, à direita do leito, a porta da entrada. À direita, no
3.º plano, uma porta de comunicação para o quarto de Etelvina. À direita, na
frente, uma mesa. À esquerda uma jardineira sobre a qual está uma caixa de
charutos, fósforos, e um barrete de veludo. Ao pé da jardineira, sobre uma
cadeira, uma camisola. À direita, uma cadeira de estofo sobre a qual estão as
calças de Libório. Ao pé uma bota e um chinelo. À cabeceira do leito, uma
bispoteira. Cadeiras de estofo, quadros, etc. Uma lanterna de furta-fogo sobre
a jardineira.
CENA I
Etelvina, (só)
Libório, (no leito meio oculto)
(Ao correr do pano, a cena está iluminada pela lanterna, deixando na
penumbra o leito. Quando corre o pano, Etelvina, erguida ao fundo sobre
uma cadeira, pendura uma das botas de Libório num painel; depois desce,
pega da lanterna, examina a bota, e diz:)
Bem... está como se quer... de um belo efeito! Mas, se ele não visse... Ah!
tenho aqui linha... (Põe a lanterna sobre a mesa, e sacando da algibeira um
novelo de linha volta a subir à cadeira, prende a extremidade da linha à bota; e
descendo, traça com o fio no tabuado uma linha que vai até à mesa sobre a
qual põe o novelo; aí pega de um bocado de giz, senta-se e escreve sobre a
mesa, falando em voz alta.)
«Seguir o fio». (Ergue-se, e vai ao pé do leito). Acordaria ele?... não. (Ouve-se
ressonar ao fundo)
Ele ressona, o miserável ressona! Condenei-o a passar as oito primeiras noites
de casado num a completa solidão, e ele ressona indiferente à minha ausência!
Antes assim!... Hoje entramos na nova crise, a crise das pequenas misérias, as
picadelas dos alfinetes antes das punhaladas... Vejamos se me lembrou tudo.
(Senta-se à mesa, e lê num a carteira à luz da lanterna). «Despregar por três
lados os cortinados do leito para que lhe caiam sobre o nariz.» Isso está feito e
bem me custou...(Lendo:)
«Furar os charutos». Já furei. «Polvilhar de pimenta o bonet.» Já tem. «Coser
os lenços ás algibeiras». Estão cosidos. «Esconder um dos chinelos e uma das
botas; adiantar a pendula e atrasar o relógio; deixar-lhe só um tostão no porte-
monaie, e cortar os elásticos dos suspensórios». Está tudo feito. (Lendo:)
Acorda-lo de sobressalto para lhe causar um grande estonteamento». É o que
se vai fazer. (Ergue-se e dirige-se com a lanterna para a porta da direita). Ah!
Libório, assassino de Macário, o céu é justo, e a hora da vingança soou!
(Proferindo esta frase, tira da algibeira uma pistola; dita a ultima palavra, dá
um tiro e sai fechando sobre si a porta. Completa escuridão.)
CENA II
Libório
(só)
Ui! isto que foi? Que é isto? (Espreita por entre as cortinas). Entre quem é!
Quem está aí? Não é ninguém... quem foi que me acordou? Parece que ouvi
um tiro ou um espirro enorme, não sei bem o que foi... Estaria eu a sonhar?
Ninguém aqui vem espirrar de noite no meu quarto, e mais sou casado,
casado há oito dias! Tudo está em repouso, exceto a minha imaginação. Isto
que horas serão? As cortinas estão fechadas... não se vê boia... escuro como
um prego... Felizmente o meu relógio é de repetição (Toca na mola do relógio
pendurado no espaldar do leito, e ouve 4 horas). Quatro horas! ainda quatro
horas! Ah! as noites solitárias!... como são eternas! Vamos ver se se
adormece... (Deita-se, a pendula dá horas, e ele conta-as em voz alta, erguendo
a cabeça a cada nova pancada). Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito,
nove, dez... Dez horas! Como dez horas! E o meu relógio que só dá quatro...
(Assenta-se na cama)
E são ambos do mesmo relojoeiro! Mas, se já fossem dez horas, eu devia estar
a pé. Principiemos por abrir os cortinados. (Puxa pelas cortinas que caem e o
embrulham)
Que é isto, com dez raios de diabos... Larguem-me, larguem-me!... Larguem-
me o quê?! Grande besta que eu sou! Ninguém me prende... são os cortinados
que eu agarro... que me agarram a mim. (Ao desembaraçar-se das cortinas cai
da cama ao chão)
Que trapalhada é esta! o dia principia mal... Vou correr as cortinas e os stores.
Não gosto da escuridão. (Abre: é dia claro)
É dia claro! A pendula tinha razão. Toca a vestir depressa. (Pega das calças e
vai vesti-las atrás do fauteuil; calça um chinelo e procura o outro)
Onde estará o outro sapato? Não me aparece senão este... Parece-me obra do
diabo isto! Vou calçar as botas. (Depois de calçar uma)
Onde está a outra? Como é isto de achar só um chinelo e uma bota? Seria a
Sebastiana? Ela ficou de me chamar ás nove horas, e entraria sem eu dar fé...
mas para que fim me levaria só uma bota? (Trata de cruzar um suspensório
que quebra)
Irra! agora são os suspensórios! (Aperta o outro, enraivado)
Que inferno este! (Quebra o outro)
Lá vão ambos! (Atira-os ao chão)
A fivela estará direita? está... segura-se... Valha-nos isso. (Procurando)
O meu bonet? Está acolá... (cobre-se)
A camisola? está aqui... (veste-a). Agora, vou procurar... (suspende-se)
Mas se ainda é cedo... (espirra)
que raio de cheiro a pimenta! Se a Sebastiana tivesse vindo, acordava-me
como eu lhe ordenei... Não serão ainda nove horas? Receio de ir acordar...
Vou fumar um charuto. (Pega de um charuto e fosforo)
O fumar de manhã aclara-me as ideias. Santo Deus, como é incomodo passear
com uma bota e um chinelo! (Assenta-se à esquerda do gueridon)
Em quanto Sebastiana não vem, recapitulemos os meus infortúnios fumando
um delicioso havano... (espirra)
Que é o que cheira aqui tanto a pimenta? (Pretende acender o charuto)
Era meia noite. Etelvina pertencia-me ao cabo de três meses de cenas
esquisitas; ela tinha proferido, de manhã, com uma voz enérgica o sim
encantador que me dava sobre ela direitos senhoriais absolutos. Dançava-se
no salão amarelo, e havia uma hora que eu amaldiçoava os relógios (Não
podendo acender o charuto atira-o ao fogão e vai buscar outro)
que me pareciam todos parados. Anunciara-se finalmente a última quadrilha,
os dançantes começavam a cancanizar-se um pouquito... (espirra)
Donde virá este cheiro a pimenta? Minha mulher dançava com o tabelião, e
parecia muito emocionada... Eu atribuía a mim esta emoção que o tabelião
não justificava de modo nenhum... Em fim, sôa a meia noite. (Ergue-se).
Ouve-se um grito agudíssimo... Corro e exclamo... (Atira fora o segundo
charuto)
Que é o que tem estes charutos? (Pega num terceiro)... e exclamo: Céus!
minha mulher! Etelvina estava desmaiada. Tinha torcido um pé quando
polcava com o tabelião; e eis-me aqui, à meia noite, a primeira das minhas
núpcias, à procura de um endireita. Afinal, topo um; e pensado que à meia
hora depois da meia noite, tinha direito a examinar o estorcegão do pé da
minha esposa, entro com a faculdade algebrista até ao seu leito de dor.
(Acende o terceiro charuto)
Baldada esperança! Nega-se-me obstinadamente este primeiro favor, e sou
obrigado a esperar num quarto próximo, com o papá Barnabé, a saída do
doutor que, depois de um quarto de hora de angustias, veio em fim declarar-
nos que uma forte distensão dos ligamentos, uma contração terrível da
articulação, reteriam minha mulher quinze dias de cama; e com efeito,
depois... Tarrenego, diabo! este charuto está rôto! E os outros? (Examina a
caixa)
Estão todos estripados! (espirra)
Com toda a certeza, tenho pimenta nas ventas! (Tira o bonet)
Ah! aqui está a pimenteira! É possível!... como é isto? Sebastiana mete a
pimenta no meu bonet... (atira-o fora)
para o preservar do bicho... ser isso, mas ela é idiota!... (espirra)
Que é do meu lenço? Está cosido! Cozeram-me o lenço à algibeira, como aos
rapazinhos de escola... Ah! isto é um cúmulo! (Puxa por um cordão de
campainha próximo à cheminé)
Não me importa acordar toda a gente! (sacode a campainha).
BARNABÉ (fora)
Lá vai, lá vai, senhor!
LIBÓRIO
Vamos a esclarecer isto tudo...
BARNABÉ (fora)
Que banzé é este?
LIBÓRIO
O sogro... sogro de mão cheia... (gesto irónico. Barnabé e Sebastiana entram
pelo fundo).
CENA III
Sebastiana, Libório, Barnabé
BARNABÉ
O senhor está doente?
BARNABÉ
Será preciso chamar os bombeiros?
LIBÓRIO (a Sebastiana)
Vem cá... e responde.
BARNABÉ
Quem, eu?
BARNABÉ
Que tem o meu genro?
LIBÓRIO
Passados cinco minutos, tem-me ás suas ordens. (a Sebastiana)
Vem cá... Que horas são?
BARNABÉ
Então foi para saber que horas eram...
LIBÓRIO
Sr. Barnabé, não é consigo que eu falo. (a Sebastiana)
Quantas horas são?
BARNABÉ
Oito e meia, senhor.
LIBÓRIO
Por que é então que o meu relógio tem quatro e a pendula dá dez e meia?
BARNABÉ
Eu sei cá! pergunte-o ao relojoeiro.
BARNABÉ
Ela tem razão; o seu ofício não é esse. Ela de pendulas não percebe nada.
LIBÓRIO
Espera um pouco. (a Sebastiana)
Por que meteste pimenta no meu bonet?
BARNABÉ
Eu?! que meti eu?
BARNABÉ
Sim... isso lá da pimenta é com ela... Responde sobre a pimenta, rapariga!
LIBÓRIO
Por que furaste os meus charutos?
BARNABÉ
Eu furei os seus charutos!...
BARNABÉ
Ela furou os charutos?... Tu furaste... (a Sebastiana)
LIBÓRIO
Por que me coseste os lenços ás algibeiras?
BARNABÉ
Olha que espiga!
BARNABÉ
Pois tu coses os lenços?...
BARNABÉ
Isso é falso, senhor!...
LIBÓRIO (mostrando)
Estão cosidos ou não estão cosidos?
BARNABÉ
Eu cá não fui.
LIBÓRIO
E os cortinados do leito... e os chinelos que deviam estar aos pés da cama...
BARNABÉ
Nos seus pés, quer dizer o meu genro.
LIBÓRIO
Meu sogro, queira amordaçar o seu espirito que me está arreliando. (a
Sebastiana)
Em fim, responde, explica-te.
BARNABÉ
Não percebo patavina.
BARNABÉ
E dois.
LIBÓRIO
Não percebem que se está aqui representando uma mágica de péssimo gosto...
uma diabrura de autores anónimos...
BARNABÉ
Não está má essa! O senhor disfruta-nos!
BARNABÉ
É lá possível a diabrura! cruzes, canhoto!
LIBÓRIO
Desde esta manhã estou sendo uma almofada em que mão desconhecida
espeta alfinetes... Notem isto... Aqui está uma bota. Pergunto eu: onde está a
outra? Aqui está um chinelo; e o outro onde está?
BARNABÉ (procurando)
Eu procuro... (Aproxima-se da mesa e vendo o que está escrito)
Esperem lá!... (Lendo)
«Seguir o fio.»
LIBÓRIO (aproximando-se)
Seguir o fio?!
BARNABÉ (o mesmo)
Então sigamos o fio. (Seguem os três o fio da linha. Sebastiana à frente vai
enovelando o fio. Barnabé atrás)
Onde vai isto parar? (Vão indo até chegar à parede)
A linha aqui, trepa! (Levantam as cabeças).
BARNABÉ (vendo a bota)
Olha!
BARNABÉ
É ela!
LIBÓRIO
A minha bota!
BARNABÉ
A sua bota!
BARNABÉ
É verdade, a bota!
LIBÓRIO (passando para a direita)
Quem a pendurou acolá?
BARNABÉ (tirando a bota para baixo)
Eu não fui.
BARNABÉ
Menos eu.
LIBÓRIO
Por consequência...
BARNABÉ
O Sr. Libório tem estado a gozar connosco... Isto é uma chalaça... não há que
ver...
LIBÓRIO
Hein?
BARNABÉ (rindo)
O meu genro ser sempre um pandego...
BARNABÉ
Quis-nos impingir esta comédia.
LIBÓRIO
Irra! Foste tu; olha que te ponho no olho da rua!...
BARNABÉ
Oh senhor!...
BARNABÉ
Como imagina o senhor que esta rapariga...
LIBÓRIO
Se não foi ela... foi o senhor.
BARNABÉ
Meu genro!... ousar desconfiar que um antigo negociante...
LIBÓRIO
Tem razão... seria espirito de mais para um antigo negociante... Mas o certo é
que nós aqui não somos senão três. A minha mulher não pode ser, porque
está de cama com um pé torcido.
BARNABÉ
A respeito disso, parece que ela está melhor do pé... O senhor sabe que ela
está melhor do pé...
LIBÓRIO
Como eu que sei?
BARNABÉ
Eu ouvi o meu genro esta noite abrir a porta do quarto dela.
LIBÓRIO
Eu?
BARNABÉ
E que balburdia o senhor fez!...
LIBÓRIO
Eu?
BARNABÉ
Se não receasse ser indiscreto, vinha cá abaixo.
LIBÓRIO
O senhor está doudo! Eu não sai daqui!
BARNABÉ
Ora, deixe-se disso...
BARNABÉ (refletindo)
Achei o que é... Já sei...
LIBÓRIO (vivamente)
Achaste quem é que manga comigo?
BARNABÉ
É o senhor mesmo.
LIBÓRIO
Eu?
BARNABÉ
Ele? diz lá...
BARNABÉ (a Barnabé)
Eu tive um primo que fazia o mesmo... levantava-se de noite...
BARNABÉ
Um sonâmbulo! Ela tem razão... O Sr. Libório é sonâmbulo.
BARNABÉ
É isso, é isso, sonâmbulo...
LIBÓRIO
Eu sonâmbulo!... está bem!... fico ciente!...
BARNABÉ
É que o senhor não se lembra do que fez. Uma noite, meu primo, entrou pelo
meu quarto dentro, e abraçou-me; e eu como sabia que é um perigo acordar
os sonâmbulos, nada lhe disse, e ele ao outro dia não se lembrava de nada.
LIBÓRIO
É lá possível que fosse eu!...
BARNABÉ
Então quem havia de ser?
LIBÓRIO
É assim... é - está tudo bem explicado... mas será difícil fazer-me crer que eu a
dormir rompesse os meus charutos, que deitasse pimenta no meu bonet e
cozesse os meus lenços.
BARNABÉ
Aqui estou eu que fui sonâmbulo quando era pequeno, e escrevia os traslados
a dormir...
LIBÓRIO (á parte)
Estou inquieto... (Alto)
Meu sogro, e também tu, Sebastiana, peço-lhes que não digam nada do
acontecido a minha mulher.
BARNABÉ
Eu cá por mim...
BARNABÉ
Fique na certeza...
LIBÓRIO (cismando)
De mais a mais, eu não sei cozer... Como é possível que eu soubesse cozer a
dormir?...
BARNABÉ
Ó meu senhor, o meu primo só sabia abraçar-me quando estava a dormir...
Chama-se a isso vista dobrada.
LIBÓRIO (á parte)
Este caso faz-me desconfiar...
CENA IV
Os mesmos e Etelvina
ETELVINA (fora)
Quem me acode, quem me acode!
BARNABÉ
Minha filha!
BARNABÉ
Senhora!... (Todos se dirigem para a porta da direita que se abre para dar
passagem a Etelvina que entra em toilete de noite com a perna direita ligada
encostando-se à parede).
ETELVINA
Socorram-me... uma cadeira... amparem-me... (Libório e Barnabé pegam em
Etelvina em quanto Sebastiana puxa a cadeira para o centro da cena).
BARNABÉ
Pois tu ergueste-te?
LIBÓRIO
Então isso como vai? melhorzinha?
ETELVINA
Pelo contrário... cada vez pior.
LIBÓRIO
Era melhor ter tocado a campainha.
ETELVINA (deixando-se cair no fauteuil)
Ai! devagar, devagar... Sebastiana, um banquinho...
LIBÓRIO (chegando-lho)
Aqui está... venha uma almofada... (Sebastiana traz a travesseirinha que ele
coloca sobre o banquinho; depois quer pegar na perna da mulher)
Com licença...
ETELVINA
Não lhe toque... Ai! a menor pressão... (pondo a perna sobre o banco)
Ai!... como eu estou!... (Sebastiana tem passado para a direita).
BARNABÉ
Para que te ergueste tu?
ETELVINA
Eu estava melhor... quis experimentar... E, depois que me levantei, achei-me
tão boa, que pensei poder vir até cá; mas receio bem ter agravado o mal...
LIBÓRIO (á parte)
Vamos bem!... o casamento está para demora... O meu matrimónio está
pendente de um pé desnocado... Se isto não for pé de cantiga, fico toda vida a
fazer pé de alferes à minha mulher coxa.
BARNABÉ (que tem estado a conversar com a filha)
Fizeste muito mal em te levantares... Eu não posso demorar-me porque tenho
de falar com o José Francisco Braga que me quer ceder a quinta da Carriça...
E, como não pude arranjar a de S. Mamede de Infesta, vou-me lá.
ETELVINA
Então o pai quer deixar-nos? Muda de casa?
LIBÓRIO
Ó meu sogro!... (á parte)
Não seria mau...
BARNABÉ
Sogro... precisamente... um sogro entre uns casados que se adoram, é
incómodo... é emprazador...
ETELVINA
Ora...
LIBÓRIO
Ora... (á parte)
Diz muito bem...
BARNABÉ
E, nesse caso, resolvi... com muito pesar... com muita saudade... ir viver
ossinho... o que me custar muito... na aldeia... É um sacrifício... vou vitimar-
me à felicidade dos meus filhos... E além disso, está no meu gosto... a
meditação... divagar solitário no seio da natureza...
ETELVINA
Então não o demoramos, meu pai; mas esperamo-lo para o almoço.
BARNABÉ
Não será possível... Tenciono almoçar no botequim... Não gosto de almoçar
de garfo; prefiro o meu café com leite, uma torrada, e o Primeiro de Janeiro
que é tudo leve.
ETELVINA
Plena liberdade...
BARNABÉ
Liberdade... liberdade...! E, se tu agora piorasses...
ETELVINA
Não... eu sinto-me melhor... Sebastiana ficará ao pé de mim, e se for preciso, o
Libório vai chamar o médico.
BARNABÉ
E eu não me demorarei muito tempo... Se o José Francisco lá estiver, antes do
meio dia volto a casa... Vou tratar depressa este negócio... Então é verdade
que estás melhorzinha?
ETELVINA
Sim... neste momento quase que não sofro.
BARNABÉ
Então vou acabar com isto... O meu genro, aqui lha entrego...
LIBÓRIO
Vá descansado, meu sogro.
BARNABÉ (abraçando Etelvina)
Até logo, minha Lili... Vou-me já safando, por que, se fosses a pior, teria de
ficar, e fazia-me desarranjo. (Sai pelo fundo).
LIBÓRIO (acompanhando-o)
Arranje lá os seus negócios e não se apresse...
CENA V
Etelvina, Sebastiana e Libório
ETELVINA (á parte)
Vou em fim saber o resultado das minhas primeiras picadelas de alfinete.
LIBÓRIO (voltando de bom rosto para junto da sua mulher)
A senhora aqui... na minha alcova... Que surpresa!
ETELVINA
Ora esta! O senhor traz uma bota e um chinelo?!
LIBÓRIO
Foi a Sebastiana que...
BARNABÉ
Eu? E ele a dar-lhe...
LIBÓRIO
Ou eu... É muito possível que fosse eu... Eu tenho padecido tanto depois do
nosso casamento... que posso estar doudo... (Ergue-se).
ETELVINA (á parte)
É possível que ele se persuada...
BARNABÉ (ao pé do leito)
Ora esta! as cortinas estão rasgadas! quer ver?
LIBÓRIO
É isso, é isso; fui eu... Quando me erguia, puxei pelos cortinados, e zás!... é
preciso chamar o estofador.
ETELVINA (á parte)
Está persuadido que foi ele...
LIBÓRIO (á parte)
Ela acredita que eu sou sonâmbulo!...
BARNABÉ (arrumando)
Este quarto está numa felga...
LIBÓRIO (á parte)
A mulher é capaz de ficar... Detestável criatura!
ETELVINA (olhando para a pendula)
São onze horas?
LIBÓRIO (á parte)
Ai! já onze!
BARNABÉ
Não, minha senhora, só são nove horas... Eu não sei como isto seja! A
pendula do senhor adianta-se, e o relógio atrasa-se.
LIBÓRIO
Como será isso? entende-se bem... é muito simples... Sou eu que desmancho
tudo... Como hei de eu andar direito, se o pé torto da minha mulher não me
sai do espirito?!
ETELVINA
Pobre Libório! (á parte)
Ele será tão estupido? (Alto a Sebastiana, mostrando-lhe os suspensórios que
estão no chão)
Sebastiana, levanta isso.
BARNABÉ (erguendo os suspensórios)
O senhor estragou assim os seus suspensórios?
LIBÓRIO
É verdade, é verdade... Foi de propósito.
ETELVINA
De propósito?
LIBÓRIO
Incomodavam-me. (á parte)
A criada já me enoja...
ETELVINA (á parte)
Como ele é tão filosofo, dobrarei a doze...
LIBÓRIO (a Sebastiana)
Sebastiana...
BARNABÉ
Senhor.
LIBÓRIO
Seria bom tratar do almoço.
BARNABÉ
Sim, meu senhor; mas, se a senhora precisar de mim?
LIBÓRIO
Se precisar, chamo-te... faz um almoço ligeiro, refrigerante. (Sebastiana tem
passado para a direita).
ETELVINA
Eu tinha dado as ordens; mas, se as não aprova...
LIBÓRIO
Eu? tudo o que a minha esposa quiser é o que eu quero... Sebastiana, vai
preparar o almoço que a senhora ordenou.
BARNABÉ
Sim, meu senhor. (Sai pelo fundo).
CENA VI
Etelvina e Libório
ETELVINA
Ah! tu queres um tête-à-tête... Vamos a isso...
LIBÓRIO (á parte)
Sozinhos! estamos sozinhos! (com transporte, sentando-se ao lado de
Etelvina)
Ah! Etelvina! Minha esposa! querida...
ETELVINA
Que é, meu amigo?
LIBÓRIO
Desculpa a minha perturbação!... esta emoção!... este primeiro tête-à-tête...
porque é o primeiro... o primeiro... depois que és minha mulher, e que me
pertences, Etelvina!... porque tu és minha, és o meu bem, o meu tesouro, a
minha vida...
ETELVINA
Sim, Libório; somos um do outro, são inseparáveis os nossos destinos... Eu
sou sua como o senhor é meu... O senhor pode esquecer isso... eu é que
jamais!...
LIBÓRIO
Esquecer, esquecer, eu! Se tu soubesses as noites tormentosas que eu passo!...
o que me custa a adormecer... as reflexões que precedem o meu sono... os
sonhos que o acompanham... Queres que eu tos conte?
ETELVINA
Pois sim, conte lá.
LIBÓRIO (erguendo-se)
Ás vezes, vejo-te sair de uma floresta como a Armengarda do Alexandre
Herculano das penhas da Covadonga; outras vezes estamos os dois num
paraíso terreal como Adão e Eva... e eu a apertar-te ao coração (aproxima-se)
a apertar-te... (Cinge-a com os braços).
ETELVINA (gritando)
Ai! ai!
LIBÓRIO (recuando)
Tu que tens!
ETELVINA
Ah! que dores!
LIBÓRIO (á parte)
Diabólico torcegão!...
ETELVINA
Isto passa... não é nada... foi um jeito que o senhor me fez dar. (com a voz
natural)
Pode continuar, meu amigo.
LIBÓRIO
Em que estávamos nós?
ETELVINA
Estávamos no paraíso terreal.
LIBÓRIO
É verdade, um ao lado do outro.
ETELVINA
O senhor abraçava-me...
LIBÓRIO
Mas, presentemente, não me atrevo...
ETELVINA
Isso não faz nada ao caso... o abraço era a sonhar...
LIBÓRIO
Etelvina!
ETELVINA
Libório!
LIBÓRIO
O nosso casamento não é um sonho... pois não?
ETELVINA
Decerto não, meu amigo.
LIBÓRIO
E todavia...
ETELVINA
E todavia...
LIBÓRIO
Olha, Etelvina, eu queria que o pé torcido fosse meu; ainda que tivesse
torcidos ambos os pés não deixaria de me lançar nos teus braços... Não há
suplício comparável... Ah! Tântalo no meio da água, debaixo de árvores
carregadas de frutos que ele não podia trincar... Eis a minha posição!... a
árvore... és tu! Tântalo, sou eu! Tenho fome, e não posso comer... Horrível!
ETELVINA
Então o senhor padece muito, não é verdade?
LIBÓRIO
Até ao extremo de me tornar cruel e insensível ás tuas dores... Quando aí te
vejo, face a face, não ouço senão a minha paixão e... (abraça-a)
ETELVINA
Ai! ai! meu Deus! ai!
LIBÓRIO (erguendo-se)
Não, não, não... nada de novo... mesmo nada... (á parte)
Tudo como dantes... Quartel general de Abrantes...
ETELVINA
Ai que dores! que dores lancinantes!
LIBÓRIO
Se sou o culpado, peço desculpa...
ETELVINA
Ah!... vai passando... adormece... Ah! respiro! (tom natural:)
Pode continuar, meu amigo.
LIBÓRIO
Continuar... o quê?
ETELVINA
Isso que me estava contando... que era muito bonito...
LIBÓRIO (á parte)
Ela parece inocente como uma ovelhinha recém-nascida! (alto)
Minha senhora, se me dá licença, ataremos o fio partido do cavaco quando a
senhora estiver sã.
ETELVINA
Mas... por quê?
LIBÓRIO
Porque esta palestra... agita-me... agita-me bastantemente.
ETELVINA
Ah! sim? então falemos de outra coisa.
LIBÓRIO
Sim... de coisas frias... histórias da Sibéria... Falemos do Marão, da Serra da
Estrela.
ETELVINA
Diga-me cá, não o incomoda andar com uma bota e um chinelo?
LIBÓRIO
Incomoda-me horrivelmente... e, se me dás licença, calço a outra.
ETELVINA
Se dou licença? ora essa... Pode calçar.
LIBÓRIO (calçando a outra bota)
De mais a mais, este acto não é por nenhuma maneira provocante nem
estimulante... até acho que faria bem em me vestir... (tira a camisola)
ETELVINA
Vestir-se?
LIBÓRIO
Somente vestir um colete e uma rabona (á parte)
Creio que um marido, sem faltar à decência... (Enquanto fala, vai abrir o
gabinete da toilete, e recebe na cara o outro chinelo que pendia de uma guita)
Cá está o outro chinelo!
ETELVINA
Tinha-o perdido?
LIBÓRIO
Nada, fui eu... Estou no hábito de todas as noites...
ETELVINA
Pendurar um dos chinelos no gabinete de toilete...
LIBÓRIO
Sim... isto é... quero dizer... Ordinariamente penduro os chinelos... não, eu
ponho-os ambos aos pés da cama; mas aconteceu que pendurei este...
ETELVINA (á parte)
É admirável! nada o espanta! Forte idiota!
LIBÓRIO (á parte, tirando a gravata do gabinete)
É inevitável que eu seja sonâmbulo... acabou-se... sou sonâmbulo.
ETELVINA
É singular coisa! Tenho momentos em que não me doe nada o pé...
perfeitamente boa...
LIBÓRIO
Esses momentos duram pouco (Procurando atar a gravata)
Não me ajeito!... maldita gravata... estou muito perturbado...
ETELVINA
Quer que o ajude, meu amigo?
LIBÓRIO
Agradeço, mas receio...
ETELVINA
Venha cá... pois eu não sou sua mulher?
LIBÓRIO
Ah!
ETELVINA
O senhor diz ah!
LIBÓRIO
Eu cá me intendo... (Ajoelha aos pés da mulher estendendo-lhe o pescoço e
dando-lhe a gravata)
Tu não me percebes... mas eu é que me compreendo... Mistérios...
ETELVINA (sorrindo)
Então tem segredos para mim, Libório?
LIBÓRIO
Ah! Etelvina! que gentil, que formosa tu és! (Etelvina aperta a gravata)
Ai!
ETELVINA (ingenuamente)
Que tem?
LIBÓRIO
É que me afogas!
ETELVINA
É porque o senhor mexe-se.
LIBÓRIO
Eu mexo-me porque tu me asfixias.
ETELVINA (maviosamente)
Esteja assim quietinho... para eu lhe fazer um lindo laço. (Ele quer abraça-la).
ETELVINA
Ah! Deus do céu! que dor!
LIBÓRIO (erguendo-se)
Não, não... não me lembrou... (á parte)
Apre! que situação! (Passa para a esquerda, e vai vestir o colete e a rabona que
tira do gabinete).
ETELVINA
Que dores! que dores!
CENA VII
Os mesmos e Sebastiana
BARNABÉ (entrando pelo fundo)
Está pronto o almoço, senhora. Onde quer a mesa?
ETELVINA
Não tenho apetite...
LIBÓRIO
Nem eu tão pouco, a não ser que... Que há que almoçar?
BARNABÉ
Ostras cruas, pastéis de camarão e salada de lagosta.
LIBÓRIO
Ui! querem-me incendiar!
ETELVINA
Não gosta do almoço?
LIBÓRIO
Há ocasiões, menina, há ocasiões... mas, no estado atual, o que eu precisava
era limonadas e orchatas.
ETELVINA
Porque não vai almoçar com o meu pai ao botequim?
LIBÓRIO
Pensa que eu a deixava...
ETELVINA
Não tem duvida... vá que eu preciso descansar.
LIBÓRIO
Também eu...
ETELVINA
Cá fica a Sebastiana... Vá e demore-se por lá, que eu preciso dormir.
LIBÓRIO (que passou para a direita)
Pois bem, seja assim; vá dormir, que eu vou tomar um pouco dar. (á parte)
Ah! Etelvina, Etelvina, porque polkaste tu com o tabelião! (Sai pelo fundo).
BARNABÉ (que passou para a esquerda)
Então, pelo que vejo, ninguém almoça...
ETELVINA
Depois, Sebastiana, depois... mas tu não esperes. Almoças quando tiveres
vontade.
BARNABÉ
Eu não posso deixar a senhora sozinha...
ETELVINA
Podes... Vou dormir... Vai, e fecha-me esta porta. (Sebastiana passa para a
direita)
Olha, para eu não acordar estremunhada, espreita, e quando o senhor vier,
vem prevenir-me.
BARNABÉ
Sim, minha senhora. (á parte)
Ela quer aqui dormir sozinha... porque será? (Sai pelo fundo).
CENA VIII
Etelvina
(só)
(está um instante quieta, mas, logo que a porta se fecha, desata
precipitadamente as tiras que lhe ligam a perna, e entra a caminhar
rapidamente). Ah! sim? tu comerás o almoço incendiário... hás de comê-lo por
força! quando só encontrares no teu porte-monaie um tostão para pagar o
leite e as limonadas, é natural que voltes ao teu posto... Essa felicidade espero
eu tê-la. Seja como for, vou tratando de armar as engenhocas para a noite que
vem. Comecemos pelas campainhas de que ele abusa... Onde acharei eu com
que as corte? (Vai ao gabinete da toilete e encontra lá uma faca de mato)
Uma faca de mato! Ah! tu tens facas nos teus guarda-roupas?... tens!... está
bom... esta servir-me... Vamos primeiro cortar... Cortar, não! (Atira com a faca
para dentro do gabinete que fecha)
O que se deve quebrar é o arame... Ah!... com a cadeira sobre o leito, chego
acima... (Pega da cadeira, que põe sobre a cama, e sobe acima cantarolando.
Ergue-se, de costas para a parede, e pega no arame com as mãos ambas)
Oh! com os diachos! parece-me muito rijo!... Ah! é puxar... (ouve-se tilintar a
campainha)
Ai que eu toquei! Se a Sebastiana me vê aqui...
CENA IX
Etelvina e Sebastiana
BARNABÉ
A senhora chamou?
ETELVINA
Ai!
BARNABÉ
Onde é que está? (Vendo-a)
Ah!...
ETELVINA
Sio! cala-te!
BARNABÉ
Foi a senhora que...
ETELVINA
Cala-te, que te hei de dar uma prenda.
BARNABÉ
Então que quer que eu faça, senhora?
ETELVINA
Espera aí. (Puxando pelo fio)
Záz! Záz! Está quebrado! (Quebra o fio, e o mesmo tilintar da campainha
continua).
CENA X
As mesmas e Libório
LIBÓRIO (entrando pelo fundo quando sôa a campainha)
Ela a chamar, a minha querida a chamar...
BARNABÉ
Ui!... O meu Deus!...
ETELVINA
Oh! co a breca! Estou aviada!
LIBÓRIO (não encontrando a cadeira em que Etelvina ficou sentada e passa à
esquerda)
Como é isto? Ela não está aqui? (Vendo-a)
Ólé!
ETELVINA (sempre sobre a cadeira; e com a maior naturalidade)
Então já por cá?
LIBÓRIO
Que fazes tu aí?
ETELVINA
Como estava melhor do pé, quis experimentar um passeio.
LIBÓRIO
Passear lá por cima?... Ah! tudo se explica! O sonâmbulo não era eu... eram
vocês as duas que...
BARNABÉ
Ó senhor! os diabos me leve se...
LIBÓRIO
Retira-te.
BARNABÉ
Mas senhor... Raios me parta, se...
LIBÓRIO (avançando para ela)
Rua! rua!
BARNABÉ
Rua?... mas...
LIBÓRIO
Safa-te, ou eu... (Sebastiana dá um grito e foge pelo fundo. Libório dá um
pontapé no banquinho).
CENA XI
Libório e Etelvina (Durante estas ultimas falas, Etelvina desce serenamente da
cadeira, depois desce do leito, e aí fica fria e impassível).
LIBÓRIO (fechando a porta do fundo, e aproximando-se de Etelvina)
Agora nós dois, senhora! (silencio de Etelvina). Quando eu entrava no
botequim, a inquietação fez-me regressar... Vejo que fiz bem... (silencio)
Que geringonça é esta? queira responder.
ETELVINA
Geringonça, dizes tu? perguntas-me que geringonça é esta?
LIBÓRIO
Sim!... pergunto e quero saber.
ETELVINA (formalizada)
Libório, tu esmagaste o coração de uma mulher, o seu primeiro amor...
LIBÓRIO
Eu? que esmaguei eu?
ETELVINA
Despedaçaste a minha vida, cobriste o meu céu com um crepe negro!...
Assassinaste Macário!
LIBÓRIO
Lerias!
ETELVINA
Atrás, assassino! atrás, que me horrorizas!
LIBÓRIO
Como? então é por amor disso que?... Ora adeus! isso é peta... eu não matei
Macário nenhum.
ETELVINA
Pois tu não assassinaste Macário?
LIBÓRIO
Não tinha eu mais que fazer!... E a prova é que Macário está vivo e são.
ETELVINA
Macário vive?
LIBÓRIO (reconsiderando)
Eu cá de mim não o matei... (á parte)
que ia eu a dizer? Ela ama-o! e, se sabe que ele vive, temos novo chinfrim...
ETELVINA
Ah! tu negas? não tens a coragem do teu crime?
LIBÓRIO
Etelvina, palavra de honra!... Quem te disse?...
ETELVINA
Nada de questões... Você está condenado!
LIBÓRIO
Condenado!
ETELVINA
Eu fiz um juramento, Libório! e na minha pátria não se quebram juramentos!
LIBÓRIO
Isso nós veremos depois... A senhora jurou de encher de pimenta os meus
carapuços? coser os meus lenços?...
ETELVINA
Isso era um prelúdio... a farsa antes da tragedia...
LIBÓRIO
Tragedia?!
ETELVINA
Para vingar Macário, cumpria que a sua vida me pertencesse, e por isso casei
consigo!
LIBÓRIO
Então foi só para isso que...
ETELVINA
Unicamente para me vingar, e nunca pelos seus atrativos, percebe?
LIBÓRIO
Mas a senhora, casando comigo, também me deu a sua vida e...
ETELVINA
A minha estava despedaçada... O sacrifício que eu lhe fazia era de uns pedaços
da minha existência.
LIBÓRIO
Mas a senhora sabe que eu sou uma espécie de balão que não obedece ao
movimento de vontades alheias?
ETELVINA
Os balões obedecem ao capricho do vento, e os homens ao capricho das
mulheres.
LIBÓRIO
Sim? estou com curiosidade de ver isso...
ETELVINA
Eis o meu programa: (Com energia)
Quero que cada um dos teus dias seja uma catástrofe! cada uma das tuas horas
uma tortura! cada um dos teus minutos um grito de dor!...
LIBÓRIO (com ironia)
Diga lá o resto.
ETELVINA
Hei de fazer-te tragar todas as amarguras! cravejar-te com todos os punhais!...
passarás a vida sobre umas grelhas como S. Lourenço, e eu de vez em quando
a voltar-te nas grelhas... e tu a arder, a rechinar... oh!...
LIBÓRIO
Que enorme telha!
ETELVINA
É o teu futuro!
LIBÓRIO
Mas é que eu fujo-te... pudera!...
ETELVINA
E eu vou atrás de ti. Sou tua mulher; a lei obriga-te a receber-me.
LIBÓRIO
Excelente separação de corpos a que já estou habituado!... Divorcio-me.
ETELVINA
E as provas? Pensas no divórcio? Pensas que eu não previ já esse caso muito
natural de me quereres escapar? Eu já li o teu código civil. Ninguém se separa
sem provas e testemunhas; e tu nunca arranjar testemunhas nem provas.
Mulher mais terna do que eu, em público, não haver segunda, hei de acariciar-
te, ameigar-te, se for preciso, que isso me não custa nada...
LIBÓRIO (á parte)
Irra! estou a sentir uns calefrios na espinha...
ETELVINA
Em público, serás o meu amante, o meu herói, o meu Deus! Serás um mortal
ditoso e invejado!... possuirás uma gentilíssima esposa, dedicadíssima... e, se,
um dia, ousares queixar-te de mim, se promoveres o divórcio, passarás por um
monstro extraordinário, por um ignóbil... malandro!
LIBÓRIO (á parte)
Isto é o José do Telhado disfarçado em mulher!
ETELVINA (indo para Libório que passa à esquerda)
Mas o anjo das salas será o demónio dos lares! quero que a tua vida se teça de
espinhos dilacerantes. Não entrarás na tua casa sem cair numa esparrela! Não
poderás sair sem te palpitar uma desgraça imprevista. E este amor... este amor
que me pedias, hei de dá-lo a outro!
LIBÓRIO
Oh! Shocking!
ETELVINA
Sim! hei de cuspir na tua honra!
LIBÓRIO (furioso)
Senhora!
ETELVINA
Eis o teu futuro, Libório! eis o teu futuro! (sai pela direita).
CENA XII
Libório
(só, atordoado)
Safa! caramba! É bècarre! Estou a abafar! ardem-me os miolos! Anda-me tudo
à roda! Parece-me que estou numa jaula tête-à-tête com uma pantera solta...
Falta-me a coragem para a luta! (Cai prostrado perto do gueridon)
Que a pantera me devore! Resistir-lhe é-me impossível!... (Fecha os olhos e
fica imóvel...)
CENA XIII
Libório e Barnabé
BARNABÉ (entrando alegremente pelo fundo)
O meu negócio vai bem... otimamente.
LIBÓRIO
É ele!... (levanta-se e sobe um pouco).
BARNABÉ
Ah! meu amigo Libório, obterei a casa. O Braga ainda hesita quanto ao preço,
mas eu conheço-lhe o génio... ele é condescendente... e enfim, viverei em paz
e sossego.
LIBÓRIO (dirigindo-se-lhe)
Em paz?... Sorri-lhe essa esperança? Pois não viveste...
BARNABÉ
Sim... sorri-me esta esperança.
LIBÓRIO
O senhor é cúmplice, não é?
BARNABÉ
Cúmplice de quem?
LIBÓRIO
Da besta-fera de quem se intitula pai?
BARNABÉ
Sr. Libório! Modere-se!
LIBÓRIO
É cúmplice dela... Concorde... Apraz-me a sua confissão... Ao menos que a
minha cólera encontre um homem em frente dela...
BARNABÉ
Eu não o percebo! Será isto um ataque de sonambulismo?!
LIBÓRIO
Sonâmbulo! Ainda está nisso, o senhor! Não sabe que a farsa se desenvolveu
depois... o véu veio à terra... descobri o inimigo do meu descanso, o ente
malfazejo que se metia, de noite, no meu quarto, para me transtornar tudo...
BARNABÉ
Então... quem é?
LIBÓRIO
A sua hedionda filha... a sua filha que o senhor teve artes de me impingir!...
BARNABÉ
Etelvina? o senhor está a gozar...
LIBÓRIO
Sim... finja-se espantado!...
BARNABÉ
Com um pé desnocado? a minha filha?
LIBÓRIO (rindo amargamente)
Pé desnocado! (rindo)
Ah! ah! ah! ah! Não vê que ela me bigodeou?
BARNABÉ
Mas para quê?
LIBÓRIO
Para quê? para vingar Macário que ela me acusa de eu ter assassinado!
BARNABÉ
Isso é incrível!
LIBÓRIO
E quer saber o futuro que ela me destina? A sorte de Meneláo de Sganarelo,
de Vulcano e doutras testas célebres.
BARNABÉ
E ela disse-lho? Mas, quando isso se dá, as mulheres nunca previnem os
maridos...
LIBÓRIO
É uma exceção...
BARNABÉ
Tudo isso é tão anormal... tão extravagante... (como assaltado por uma ideia)
Ah!
LIBÓRIO
Que é?
BARNABÉ
Lá vou... Foi a palavra extravagância que me orientou... Estou no caminho...
LIBÓRIO
Caminho de quê?
BARNABÉ
O Sr. Libório sondou o pulso da sua mulher?
LIBÓRIO
Ora essa!... sondar-lhe o pulso!... Não.
BARNABÉ
Fez mal. Esta excentricidade no seu proceder, este humor extravagante...
explica-se tudo...
LIBÓRIO
O quê? o que é que se explica?
BARNABÉ
É a crise ordinária... Amigo Libório, não sucumba ao peso da sua felicidade...
Libório, vou dar-lhe um júbilo imenso... Olhe que vai ser progenitor! Vai ser
pai!
LIBÓRIO (exasperado)
Pai!
BARNABÉ
Sim! esses apetites desvairados... essa desordem moral...
LIBÓRIO (agarrando-o pelo colete)
Ah! patife!
BARNABÉ
Hein? você chame-me patife? a mim?
LIBÓRIO
É a minha desonra que você apregoa!
BARNABÉ (desagarrando-se sem poder)
Que diz?
LIBÓRIO
Você sabia-o e não me gritou: acautele-se!
BARNABÉ
Você esgana-me!...
LIBÓRIO
Mas agora estou convencido... (sacode-o cada vez mais).
BARNABÉ
Largue-me! socorro! ó da guarda!
CENA XIV
Os mesmos e Etelvina
(Etelvina entrando agitadamente pela direita; está em toilete de quem vai a
passeio).
Que é isto? que aconteceu? (Libório larga Barnabé, que cai assentado ao pé da
jardineira. Libório fica um momento imóvel entre o sogro e a mulher,
olhando-os alternadamente; depois despede um suspiro abafado, e sai
precipitadamente pelo fundo, fazendo um gesto de horror).
CENA XV
Barnabé e Etelvina
BARNABÉ (assentado)
Uf! (bufando)
ETELVINA
O pai que tem! parece que está sobressaltado!
BARNABÉ
Sim... com certeza... eu não me sinto bastante bem. (respira fortemente).
ETELVINA
Mas que aconteceu?
BARNABÉ (erguendo-se)
Aconteceu... mas não, as explicações são inúteis... Vou deixar esta caverna...
ETELVINA
Mas enfim... que lhe disse o meu marido? onde foi ele?
BARNABÉ
Não sei nem me importa... Cá te avêm sem mim... Lavem cá a sua roupa suja
como poderem, que eu tenciono ser estranho a esta barrela. Boas tardes. (Vai
para sair).
ETELVINA
Mas... O meu pai! venha cá...
BARNABÉ
Convence-te de que me vou embora (sobe).
ETELVINA (tolhendo-lhe o passo)
Ao menos diga-me...
BARNABÉ
Não digo... deixa-me!
ETELVINA
Não sair!
BARNABÉ
Impedir-me! (indo para ela)
Minha filha!
ETELVINA
Não sai antes de me dizer...
BARNABÉ
Tudo o que eu tenho no coração? Vais ser satisfeita! Tu, ao meu pesar,
envolves-me nas tuas combinações ferozes! Pois bem... Também eu vou
torturar-te... e desde já fica sabendo uma pequena coisa que te vai dar grande
prazer! Macário existe! Macário vive!
ETELVINA
Macário!
BARNABÉ
Nunca se bateu... não era tão besta, como isso... É um maltrapilho, mas é
velhaco... Ele logo conjeturou a linda mulherzinha que tu serias... e disse lá
com os seus botões: «Não quero contas com a mexicana» e pediu a este
bajogo do Libório que viesse anunciar-te a sua morte, e este parvoeirão foi tão
asno... que...
ETELVINA
O pai está blasfemando...
BARNABÉ
Que é blasfemar?
ETELVINA
Macário vivo!... Macário autor de tal perfídia!... não, não, é impossível!
BARNABÉ
Com que então impossível! E, se eu te disser, que ele, bem contente por não
entrar neste langará, se consola num a mancebia...
ETELVINA
Mancebia?
BARNABÉ
Sim... com uma criaturinha, de pouco mais ou menos, rua de Miragaia n.º
1071, lado direito.
ETELVINA
Rua de Miragaia n.º 1071, lado direito...(Passa para a esquerda).
BARNABÉ
Mudou de freguesia; mas não de costumes... O fedor dos escândalos de
Miragaia não passa da Cordoaria, e confunde-se com as flores do jardim e do
peixe do barracão...
ETELVINA
Oh! isso seria horrível! horrível! (Libório entra pelo fundo).
CENA XVI
Os mesmos e Libório
LIBÓRIO (com o porte-monaie na mão)
Minha senhora, eu tinha aqui 12$000 réis. Foi a senhora que lhe deitou o
gatázio?
ETELVINA
Logo o saberá quando eu voltar (Sai).
LIBÓRIO
Onde vai você?
ETELVINA
Rua de Miragaia n.º 1071. (Sai precipitadamente pelo fundo).
LIBÓRIO
Que é? Rua de Miragaia n.º 1071! Quem lho diria? (A Barnabé)
Foi o senhor... Rua de Miragaia, é lá efetivamente (Ouve-se fechar à chave a
porta do fundo)
Ela fecha-nos! e vai a casa dele! a casa dele! (Indo à porta da direita)
Por esta porta... (Ouve-se o rodar da chave que a fecha)
Fechada! fechada também! (correndo à chaminé)
Sebastiana! (puxa pelo cordão da campainha)
Não há campainha! está quebrada a campainha!
BARNABÉ
E o Braga que me está esperando para assignar a escritura!
LIBÓRIO
Eis-me encarcerado!
BARNABÉ
E eu!
LIBÓRIO (fora de si, ameaçando Barnabé)
Ah! seu biltre! foi você a causa de tudo isto! (Atira-se a Barnabé, que procura
fugir-lhe, aos encontrões aos trastes. Libório persegue-o vivamente. Cai o
pano, quando Barnabé está apitando).
FIM DO ACTO SEGUNDO
ACTO TERCEIRO
A mesma decoração. - Grande desarranjo. - Os móveis tombados, um colchão
está meio caído para fora do leito.
CENA I
Libório e Barnabé
(ao levantar do pano, Barnabé está sentado no colchão, e Libório, à direita
sobre uma cadeira de braços, caída. Depois de instantes de silencio, Libório
levanta-se e vai à janela).
LIBÓRIO (examinando a rua)
Nada, não vejo vir ninguém. Que horas são, Sr. Barnabé?
BARNABÉ
Outra vez... Depois do nosso combate... singular, já me perguntou isso três
vezes.
LIBÓRIO
A quem hei de eu pergunta-lo? ao meu relógio? à minha pendula? Tudo aqui
está desmanchado (á parte)
como a cabeça da minha mulher (Levanta a cadeira).
BARNABÉ
Há cinco minutos que eu lhe disse que eram 3 e 25; agora, por consequência,
são três e meia.
LIBÓRIO (passeando com grandes passos)
Ela saiu ás duas horas... (dirige-se a Barnabé)
Como explica o senhor isto? Ausente à hora e meia! (Arruma os trastes).
BARNABÉ
Não que daqui de Malmerendas a Miragaia são dois quilómetros. Dê-lhe
tempo...
LIBÓRIO
Que lho dê? Ela toma o que quer! Fechar o pai e o marido para ir...
BARNABÉ
Minha filha é incapaz de tal...
LIBÓRIO
É capaz de tudo: é Mexicana, e basta.
BARNABÉ
Não o contrário, para você não pegar de novo comigo. (Levanta-se e põe o
colchão sobre o leito).
LIBÓRIO
Ah! o senhor tem magnificas ideias! Que eu era pai! Esta só pelo diabo! eu
podia lá ser pai, homem!
BARNABÉ
E eu podia lá imaginar que o senhor depois de casado?... Enfim, o que eu lhe
disse era para o aplacar...
LIBÓRIO
E para aplacar minha mulher disse-lhe que o Macário era vivo. Foi isso?
BARNABÉ
Está claro; as minhas intenções foram sempre boas... eu não tive culpa, se o
senhor é um marido... distinto.
LIBÓRIO
Que horas são?
BARNABÉ (tirando o relógio pacientemente)
Três e trinta e dois minutos. Outra vez. O melhor é ficar com o relógio na
mão, (fica assobiando)
até o senhor acertar o seu.
LIBÓRIO
O senhor assobia?
BARNABÉ
Então o senhor quer que eu chore? Deixe-me assobiar, homem! Há paixões
de alma que não desafogam se não pelo assobio... situações cruéis em que um
homem sente a necessidade de estar sempre não só a assobiar, mas até a
apitar.
LIBÓRIO
Tem razão. Quando se possui uma filha como a sua, e uma esposa como a
minha, todas as manifestações do assobio e do apito são permitidas. (Barnabé
continua a assobiar)
Tem razão. Assobie à sua vontade... use de todos os instrumentos de sopro...
Desabafe, Sr. Barnabé, que eu faço o mesmo. (Assobia também. Ouve-se
ruido de passos). Sio... escute...
BARNABÉ
Será?... (rumor na fechadura).
LIBÓRIO
É ela!
BARNABÉ
Prudência, Sr. Libório, prudência...
LIBÓRIO (sentando-se numa cadeira à esquerda, e pegando de um jornal de
sobre o fogão)
É ela... (atira os pés para cima de uma cadeira).
BARNABÉ (á parte)
Eles vão-se agatanhar!... se eu pudesse tingar-me...
CENA II
Os mesmos e Etelvina
(Abre-se a porta do fundo precipitadamente. Etelvina entra muito agitada, fita
o pai e o marido, tira o xaile e o chapéu que atira sobre a cama; depois, desce,
volta a olhar o marido e o pai, e diz a Barnabé):
ETELVINA
Meu pai! deixe-nos sós. (Barnabé, sem responder, safa-se apressadamente pelo
fundo).
CENA III
Libório e Etelvina
(Etelvina está momentos sem falar, olhando para o marido que a não encara;
depois faz um gesto de impaciência e diz:)
ETELVINA
Vi Macário. Não estava só... Estava com uma criatura com um penteado de
estardalhaço, muito estapafúrdio. Iam sentar-se à mesa... e eu puxei pela toalha
e quebrei tudo... (Movimento de Libório, que logo se reprime, e retoma a sua
aparente tranquilidade). Levantaram-se ambos e avançavam para mim; eu
fiquei de braços cruzados, serena, imóvel, encarando-os assim! Depois afastei-
me lentamente, sem dar palavra, e sai! (Silencio. Etelvina dá uns grandes
passos)
Ah! o que são os homens! o que são os homens! (Torna para o marido)
Por que é que o senhor me anunciou a morte dele? (Silencio)
Eu sei-o, disse-mo meu pai... foi ele, esse miserável que assim o quis, não foi?
O infame Macário escarneceu o meu amor, ludibriou a minha angústia! Ah! é
incompreensível! é execrável! (Pega da cadeira em que o marido tem os pés e
senta-se ao lado dele)
Como é que nós havemos de matar Macário?
LIBÓRIO (agitado, erguendo-se)
Que diz?
ETELVINA (fazendo-o sentar-se)
Ambos nós andamos mal, Libório. Eu pensei que tu o mataras... Não se fale
mais no passado... acabou-se... Agora, unamo-nos para a vingança... Como é
que se assassinar Macário?
LIBÓRIO (erguendo-se)
A senhora terá o diabo no corpo?
ETELVINA
Se estivéssemos na minha pátria, eu não o consultava; mas aqui, os homens
que fizeram as leis, reservam para si o monopólio da vingança, e a honra de
uma mulher nada importa, se não implica com a honra do homem. Pois então,
Sr. Libório, visto que me esposou, a minha honra é a sua. Um pulha, um
sacripanta escarneceu sua mulher... cumpre-lhe evitar que ele o escarneça
também a si... (com ternura)
Mata-o! filho! mata-o!
LIBÓRIO (á parte)
Arreda! estou em brasa!
ETELVINA (formalizada)
Dar-se-á caso que o senhor, escravo de vãos prejuízos, não queira atentar
contra a vida dele sem expor a sua? Se é isso, esteja descansado. Se Macário o
matar, eu não lhe sobreviverei, nem ele, porque morrerá ás minhas mãos;
matá-lo-ei, matá-lo-ei, e depois lá nos veremos... no céu! (Apontando-lhe para
o céu, bate-lhe com a outra mão no ombro).
LIBÓRIO
A senhora com toda a certeza está doida!
ETELVINA
Doida?
LIBÓRIO
Então a senhora quer que eu vendime o Macário porque ele não quis casar
consigo... Tomara eu obriga-lo a casar...
ETELVINA
Senhor! veja lá o que diz!
LIBÓRIO
Olhe, menina; isso que a senhora me propõe já Hermíone o propôs a Orestes
num a tragedia de Racine, e sabe o que fez a canalha da Hermíone, depois que
o parvo do Orestes matou Pirro? Pôs-se a chorar por Pirro, e mandou o
Orestes à fava. Aqui tem a gratidão das mulheres...
ETELVINA
Por tanto, recusa?
LIBÓRIO
Redondissimamente. (á parte)
Isto é que é o chic da patifaria!
ETELVINA
Bem! Eu pedia-lhe a cabeça de Macário para salvar a sua... Você não quer?
não quer? não se fala mais nisso.
LIBÓRIO
Isso que quer dizer... explique-se!
ETELVINA
Macário recuou diante dos laços indissolúveis; mas amava-me, estou certa
disso, e eu... ainda o amo.
LIBÓRIO (levantando os dois braços)
Que diabo!
ETELVINA
E visto que o senhor desculpa o proceder passado de Macário, terá de
desculpar também o futuro...
LIBÓRIO (agarrando-a pelos braços)
Mulher!... Ah! tu pensavas que...
ETELVINA
Largue-me!
LIBÓRIO
Amas Macário?
ETELVINA
Você magoa-me!
LIBÓRIO
Os indígenas do México que é o que fazem ás mulheres que se parecem
contigo?
ETELVINA
O senhor está-me a quebrar os braços...
LIBÓRIO
Pode ser; porque em Portugal, nós os homens, ao lado da lei, também temos a
força.
ETELVINA
Isso é uma covardia!
LIBÓRIO
Não sei se é; mas eu, se houvesse de matar alguém, não mataria o Macário...
ETELVINA
Ai! (Cai de joelhos).
LIBÓRIO
Olhe bem para mim, senhora! (Ela quer morder-lhe a mão)
e não morda! Se pensou que casava com um cordeirinho, mude de opinião ao
meu respeito. Este homem que se chama Libório, nascido no Porto, no Poço
das Patas n.º 610, é de per si só mais feroz que todos os leopardos do
México... Não morda, ouviu?
ETELVINA
Ai!
LIBÓRIO
Por enquanto, deixo-a viver; mas tenha juízo, muito juízo, ou dou-lhe a minha
palavra de honra que não tardarei a passar a segundas núpcias! (Deixa-a).
ETELVINA (conserva-se um instante imóvel, como humilhada da sua
fraqueza; relança à volta de si olhos furiosos, depois levanta-se de um pulo,
exclamando:)
Ah! a faca de mato! (Corre para o gabinete da toilete).
LIBÓRIO
Bem sei... (Vai atrás dela, e fecha-lhe a porta por fora logo que ela entra).
ETELVINA (fechada)
Abra, abra a porta!
LIBÓRIO (pegando do chapéu)
Medite, senhora, que eu passados três dias, volto cá. (Sai pelo fundo).
ETELVINA (batendo na porta)
É infame, é abominável! Sr. Libório! Olhe que quebro a porta. (Pancadas cada
vez mais fortes)
Abra-me a porta; peço-lhe que me abra a porta por quem é! Oh! que vil, que
indigno procedimento!
CENA IV
Etelvina (fechada)
e Barnabé
BARNABÉ (entrando pelo fundo)
Ora aqui está! Em quanto eu estive aqui fechado, o Braga vendeu a casa da
Carriça... Tenho de procurar outra... (Etelvina bate à porta do gabinete.
Barnabé que está perto, recua assustado)
Que diabo é isto?
ETELVINA
Abra-me a porta!
BARNABÉ
A minha filha fechada! (alto)
Tu que fazes aí?
ETELVINA
Abra, meu pai, abra!
BARNABÉ
Mas como foi isto? (Vai para abrir).
ETELVINA
Foi meu marido... Abra que eu lhe contarei.
BARNABÉ (retirando-se)
Teu marido!... diabo! diabo! isso é mais serio...
ETELVINA
Então, abre?
BARNABÉ
Minha filha, um sogro não deve intervir entre marido e mulher.
ETELVINA
Então não abre?
BARNABÉ
Procedo como fino político... Mantenho-me na neutralidade, na não
intervenção.
ETELVINA
Mas eu sufoco!... (Grande tropel dentro).
BARNABÉ
Não sufocas, não... Isso passa!... (á parte)
Ela arromba o sobrado!... (Sai).
ETELVINA (batendo sempre)
Meu pai! meu pai! Foi-se?... Socorram-me! Acudam-me!
CENA V
Sebastiana e Etelvina
(Sebastiana entra pela direita, trazendo pratos, talheres, pães e guardanapos)
BARNABÉ
A voz da senhora no gabinete de vestir... (Pousa o que traz sobre o mármore
do fogão). É a senhora?
ETELVINA
Abre, Sebastiana, abre a porta.
BARNABÉ
Aí vou, aí vou. (Abrindo)
Que foi isto?
ETELVINA
Pega! (Dá uma bofetada em Sebastiana).
BARNABÉ
Ah! a senhora bate-me?
ETELVINA (percorrendo o teatro furiosa)
Ó raiva! ó furor!
BARNABÉ
Se eu soubesse que estava fechada...
ETELVINA
Perdoa-me, perdoa-me, Sebastiana... É a cólera, são os nervos... (Dá-lhe
dinheiro)
Pega lá, guarda...
BARNABÉ
Obrigado, minha senhora! (á parte)
Ela é muito boazinha! (Põe a mesa na jardineira).
ETELVINA (caindo numa cadeira à direita)
Tudo que me sucede é incrível! é estupido! Este homem que eu julgava um
choninhas, um maricas, um fracalhão, agarrou-me, e prostrou-me suplicante!
Ele furioso, parecia-me até bonito! (Voltando-se para Sebastiana que põe a
mesa)
Que estás a fazer?
BARNABÉ
Ponho a mesa, senhora.
ETELVINA
Aqui?!
BARNABÉ
A senhora esqueceu-se das ordens que me deu esta manhã?
ETELVINA
Ah! sim, sim, esta manhã... então ainda eu me preocupava com pieguices...
Mas agora... (Ouve-se a campainha)
Tocaram.
BARNABÉ
Vou ver. (Sai pelo fundo).
ETELVINA (só)
Não pode ser meu pai nem meu marido... eles não tocavam. Se fosse ele... ah!
talvez seja... Macário! Quem sabe se a minha presença, despertando-lhe
lembranças, acordou a sua paixão... Ah! se fosse ele, se fosse ele...
BARNABÉ (entrando pelo fundo. Traz uma garrafa, copos e um papel)
Senhora, é um homem, enviado pelo Sr. Macário, com este papel.
ETELVINA (pegando no papel com ansiedade)
Dele? dá cá, dá cá. (Passa para a direita, em quanto Sebastiana põe a garrafa e
os copos sobre o gueridon. À parte)
Ah! não me enganei! Ele ama-me!... Triunfo, em fim!
BARNABÉ (á parte)
Ela que terá?
ETELVINA (lendo)
«Ano do Nascimento de... 1885, aos 24 dias de... a requerimento...» Hein?
papel selado! (lendo)
«A requerimento do Sr. Macário dos Anjos, eu, oficial de justiça abaixo
assignado, citei a Sr.ª D. Etelvina Barnabé para pagar a quantia de 64$460 réis
de porcelanas e cristais quebrados, etc. etc. etc.» Ah!... (Cai num a cadeira à
direita e fica silenciosa).
BARNABÉ (que tem continuado a pôr a mesa, corre para ela)
Ai! meu Deus! a senhora achou-se mal?
CENA VI
Os mesmos e Barnabé
BARNABÉ (entrando cautamente pelo fundo e vendo Sebastiana que
encobre a senhora)
Sebastiana! A senhora ainda está no gabinete?
ETELVINA (indo para o pai)
Meu pai!
BARNABÉ (querendo safar-se)
Olha!...
ETELVINA
Venha cá!...
BARNABÉ
Eu volto logo.
ETELVINA
Fique, meu pai. Vai-te embora, Sebastiana.
BARNABÉ
Sim, minha senhora. (Sai pelo fundo).
BARNABÉ
Vou-te contar... Descobri outra quinta no Candal.
ETELVINA
Meu pai, eu volto para o México.
BARNABÉ
Com teu homem?
ETELVINA
Já não tenho homem.
BARNABÉ
Não tens homem? Então Libório o que é? Parece que tens razão... Ele para
homem parece-me muito atrasado... Tu lá sabes...
ETELVINA
Fujo de Portugal, das suas leis, do seu código, dos seus costumes
(ironicamente)
e da sua justiça...
BARNABÉ
Mas, desgraçada, tu vais encontrar a mesma coisa no México.
ETELVINA
No México?
BARNABÉ
Portugal não tarda a lá chegar com a sua influência, com os seus jornais...
ETELVINA
Irei para a China.
BARNABÉ
Não sabes que Portugal está em Macau! Basta lá estar o Camões na gruta.
ETELVINA
Vou para o Japão.
BARNABÉ
Estão lá missionários portugueses... os jesuítas que têm um olho muito fino...
ETELVINA
Irei para uma ilha deserta. (Passa para a esquerda).
BARNABÉ
Ah! sim! se achares uma... Ilhas desertas são hoje raríssimas... Não se apanha
meia...
ETELVINA
O pai vai comigo?
BARNABÉ
Eu!
ETELVINA
É indispensável...
BARNABÉ
Nunca! Pede-me o que quiseres; mas viver só contigo, isso, nunca!
ETELVINA
Não importa. Vou sozinha. (Repassa para a direita).
BARNABÉ
Filha!... juizinho, filha.
ETELVINA
Eu já não tenho pai... nem marido... nem família. Parto! adeus! (sai pela porta
da direita).
BARNABÉ (vendo-a sair, depois diz tranquilamente)
Falaram-me de uma casinha no Candal, e, se não for húmida, tem muitas
comodidades. Fiquei de me encontrar com o agente ás cinco horas, e...
CENA VII
Barnabé e Libório
LIBÓRIO (entrando pelo fundo, sem ver Barnabé, e olhando para a porta do
gabinete que está aberta)
Ah! já a soltaram! Sim... definitivamente é a melhor resolução... (Vendo
Barnabé)
Olá! o senhor!
BARNABÉ
Eu ia sair.
LIBÓRIO
Eu também parto.
BARNABÉ
E para onde vai?
LIBÓRIO
Isso é que eu não sei; sei que vou para muito longe. (Passa à esquerda).
BARNABÉ
Muito longe?
LIBÓRIO
Se vir sua filha, diga-lhe que morri.
BARNABÉ (tranquilamente)
Está bem; direi.
LIBÓRIO
Diga-lhe que me matou Macário - dê-lhe esse regalão.
BARNABÉ
Está dito. Vá descansado.
LIBÓRIO
Vou arranjar a mala. (Entra no gabinete).
BARNABÉ (vê-o sair e ata o seu monogolo)
É no Candal, subúrbios de Vila Nova de Gaia; visitarei os armazéns. Gaia
dizem que tem um castelo feito por um rei Mouro, e uma fonte célebre com
uma água muito fina, que seria a melhor bebida do mundo, se não estivessem
ali perto as garrafeiras de 1815. Logo ali ao pé está o convento da serra, um
lugar histórico... É um belo arranjo... com repuxo. (Desaparece pelo fundo - A
cena fica vazia).
CENA VIII
Libório e Etelvina
ETELVINA (entrando pela direita com uma maleta)
Creio que deixei aqui o meu xaile e o meu chapéu (Põe a maleta sobre a
mesa).
LIBÓRIO (saindo do gabinete com a mala)
Onde diabo deixei eu a minha Guia de viajantes?
ETELVINA (achando o xaile e o chapéu sobre a cama)
Cá estão.
LIBÓRIO (achando a Guia)
Ela aqui está.
ETELVINA (parando junto dele)
Ah!... o senhor...
LIBÓRIO (surpreendido)
Ólé!... a senhora.
ETELVINA
Você parte?
LIBÓRIO
Parto.
ETELVINA
É boa! temos a mesma ideia!
LIBÓRIO
Também vai?
ETELVINA
Sim senhor... As ideias encontram-se.
LIBÓRIO
Muito bem; mas, embora se encontrem as ideias, é necessário que nós nos
desencontremos. Para onde vai?
ETELVINA
Para onde o senhor não for.
LIBÓRIO
Temos o mesmo itinerário. (Assenta-se perto da jardineira, tendo a mala sobre
os joelhos cujas correias afivela, depois de lá ter metido pequenos objetos que
tirou do mármore do fogão).
ETELVINA
Eu vou para o sul.
LIBÓRIO
Países quentes... vai muito bem. Nesse caso, tomarei o caminho de ferro do
norte.
ETELVINA
Ás mil maravilhas.
LIBÓRIO
Ora olhe... (consulta o Guia)
Segue para Lisboa?
ETELVINA
Sigo no expresso.
LIBÓRIO
Ás 7 da tarde.
ETELVINA
Tão tarde!
LIBÓRIO
Vejamos a linha do norte. Quatro e quarenta e cinco... que zanga!
ETELVINA
Daqui até lá, que se fazer?
LIBÓRIO
Uma ideia que o estomago me inspira. Estou em jejum. Jantarei antes de
partir.
ETELVINA
Na estação de Campanhã? Pois vá!... Eu faço o mesmo.
LIBÓRIO (a sair com a mala)
Adeusinho, e estimo que coma com bom apetite.
ETELVINA
Da mesma sorte. (Vão ambos a sair pela porta do fundo, e param, cedendo a
passagem um ao outro cortesmente). Faz favor.
LIBÓRIO
Queira passar, minha senhora...
CENA IX
Os mesmos e Sebastiana
BARNABÉ
Aqui está a sopa. (Passa por diante de Libório e coloca a terrina sobre o
gueridon).
LIBÓRIO
A sopa!... Como cheira bem!
BARNABÉ
Está uma delícia, meu senhor! (sai pelo fundo).
ETELVINA (á parte)
Uma senhora sozinha num restaurante...
LIBÓRIO (aproximando-se da mesa)
Que aromática!...
ETELVINA (á parte)
O que eu devo fazer é deixar-me estar (Depõe a maleta, o xaile e o chapéu).
LIBÓRIO (largando a mala)
Se eu tomasse um caldo...
ETELVINA (indo à jardineira, e achando Libório a destapar a terrina)
Então sempre se resolve?...
LIBÓRIO
Ah!... é que eu... como o outro que diz...
ETELVINA
Sim... eu também refleti que jantar sozinha num restaurante... Repara-se, não é
verdade?
LIBÓRIO (pegando da mala e passando para a direita)
Tem razão e eu cedo-lhe a sopa.
ETELVINA
Então o senhor... não come!
LIBÓRIO
Boa viagem. (sai pelo fundo).
CENA X
Etelvina e Libório
ETELVINA (só, parece muito agitada, e observa se Libório não volta)
O tempo deve estar entroviscado... Cá o sinto nos nervos! (Senta-se à
esquerda da jardineira, e serve-se da sopa atabalhoadamente; come em
silêncio)
Esta sopa é detestável! e depois não tenho apetite nenhum! (Arremessa a
colher)
Que é o que eu vou fazer a Lisboa? É uma tolice. Viajar, para quê? Lisboa já
eu conheço... Se eu fosse para o norte... (Erguendo-se raivosa contra si)
Oh! Etelvina! tu és incrível!... fazes coisas!... Eu fui muito injusta... porque ele
amava-me... O meu pai foi o causador de tudo... Para que lhe disse ele... «Fez
bem em matar Macário»? Oh! com certeza, teria ele feito uma boa ação, e a
minha maior injustiça foi eu querer castiga-lo por isso... Papel selado!... que
patife!...
LIBÓRIO (fora)
Vai aí à Batalha chamar o trem, depressa.
ETELVINA
É a voz dele!... voltou!...
CENA XI
Etelvina e Libório
LIBÓRIO (entrando pelo fundo)
Queira perdoar, minha senhora! Chove a cântaros; consentir que eu espere o
trem que mandei buscar.
ETELVINA
Pode esperar, e como está em jejum, e a sopa está excelente... se quer...
LIBÓRIO
A sopa cheira bem... muito bem... Isso é verdade.
ETELVINA
Se não receia que o envenene...
LIBÓRIO
Oh!... (reconsiderando)
Em fim... (jovialmente)
visto que a senhora também come...
ETELVINA
Então sente-se.
LIBÓRIO
Pois sim... Nada, não quero... Tenho visto muitas comédias em que esposos
zangados cometiam a imprudência de comer juntos, e à sobremesa tinham a
desgraça de fazer as pazes... Eu não quero que a senhora se persuada...
ETELVINA
Sem cerimónia... Não quer?
LIBÓRIO
Não duvido... mas peço licença para comer a minha sopa, longe, acolá, sobre
aquela mesa (Leva para a mesa da direita o seu talher e prato; à parte)
Antes quero isto.
ETELVINA
Á sua vontade... talvez estivesse mais seguro no pátio.
LIBÓRIO
Isso não, porque o vento me sacudiria a chuva sobre o prato. (come).
ETELVINA (comendo também)
Que triste tempo para viajar!...
LIBÓRIO
Não tanto assim... Em primeira classe vai-se agasalhado... Mas pergunto eu: a
senhora porque vai?
ETELVINA
Porque não quero estar no Porto.
LIBÓRIO
Mas, visto que eu me retiro, a senhora fique.
ETELVINA
Sozinha?
LIBÓRIO
Não: com o seu pai e com o defunto Macário.
ETELVINA
Acha que é de bom gosto fazer-me troça?
LIBÓRIO
Pois não me disse ainda há pouco que o amava?
ETELVINA
O senhor não me acreditou. Conhece-me bastante para saber que eu não sou
mulher que ame quem a ultraja... Quer beber? (deita-lhe vinho no copo)
Beba, ande. Ora vá!...
LIBÓRIO (erguendo-se)
Muito obrigado (Vai pegar do seu copo de sobre a jardineira e bebe).
CENA XII
Os mesmos e Sebastiana
BARNABÉ (entrando pelo fundo com um prato)
Fi-la esperar, minha senhora: mas a causa foi o senhor que me mandou buscar
um trem (a Libório:)
Já lá está.
LIBÓRIO (pousando o copo)
Ah! bem! (saudando)
Minha senhora!
ETELVINA (a meia voz)
Diante da criada, não. (alto)
Sai, Sebastiana.
BARNABÉ (pondo o prato sobre a jardineira)
Sim, minha senhora. (Sai pelo fundo levantando a terrina e os pratos
servidos).
LIBÓRIO
Agora, se me dá licença... (faz menção de sair).
ETELVINA
Peço-lhe que se demore um momento... O meu fim não é fazer a tal cena das
pazes, descanse. Mas, como não nos veremos mais é necessária a ultima
explicação.
LIBÓRIO
De que serve isso?
ETELVINA
De mais a mais, sobra-lhe tempo para jantar aqui ou na estação. (Servindo-o)
Quer uma aza de perdigoto?
LIBÓRIO
O certo é que as emoções tem-me extenuado... Tomarei um pãozito; mas
deixemo-nos de explicações, se faz favor... (Pega de um prato e pão e vai
sentar-se à sua mesa, a comer).
ETELVINA (passados instantes)
Confesso que fui violenta, arrebatada; mas o senhor julga-se inocente?
LIBÓRIO
De modo nenhum. Eu pratiquei o enorme e condenável crime de me
apresentar à senhora em forma de carta a participar um enterro. Confesso,
contrito, a culpa. Se me levassem a uma polícia correcional e o juiz me
perguntasse: «O Sr. Libório é réu?» Eu respondia: «Sou réu, Sr. juiz!»
ETELVINA
O senhor prestou-se a uma ridícula mistificação, uma fraude ultrajante, odiosa,
só com o fim de dilacerar uma mulher.
LIBÓRIO
Não foi isso.
ETELVINA
Então que foi?
LIBÓRIO
O caso é este. Macário tinha-me dito o diabo a quatro da senhora. Ora eu
tenho cá para mim que quanto mais mal se diz de uma mulher, mais se deseja
ser amado dela. A alma do homem é assim formada de estupidez e capricho...
ETELVINA
Huum! (Depois de um curto silencio)
Quer beber? (Enche o copo).
LIBÓRIO (erguendo-se)
Agradeço (vai à jardineira)
Muito obrigado, querida senhora! (Bebe e volta a ir sentar-se, levando o copo).
ETELVINA (tendo bebido)
Sempre o senhor me colocou numa situação bem esquisita! Eu julgava-o o
assassino de Macário; e, nesta persuasão, o meu dever qual era? que me
cumpria fazer?
LIBÓRIO
Mandar chamar o chefe da polícia.
ETELVINA
Eu conheço lá policias...
LIBÓRIO
Em vez disso, pensou lá consigo: «Como é um celerado, caso com ele. Se o
metesse na Relação, ele poderia fugir vestido de mulher; mas, casando com
ele, é o mesmo que pô-lo na Penitenciaria, donde não se foge facilmente.
ETELVINA (erguendo-se e vindo ao meio)
E isso é tão verdade que o senhor goza a liberdade de retirar-se quando
quiser.
LIBÓRIO
Mas pergunto eu: tenho liberdade para oferecer a outra o nome que lhe dei?
Posso mentir, enganar... e mais nada. Com toda a certeza, hei de esquecê-la;
mas levar tempo... Não me finjo mais forte do que sou... Esta manhã ainda eu
a amava... Como os homens são, senhora!... As mulheres, ás vezes, agradam
pelos seus defeitos... e a senhora estava na conta. A senhora chorava de raiva;
e eu ao deixa-la, chorava imbecilmente de saudade... de amor! (Ergue se)
Estupida confissão, mas verdadeira!... (Passa à esquerda)
Ah! Como os homens são bestas! Graças vos sejam dadas, Senhor! Isto
acabou-se! (Etelvina, sem lhe responder, corre à janela que abre).
ETELVINA (atirando dinheiro à rua)
Cocheiro, aí tem 10 tostões; vá-se embora.
LIBÓRIO
Como é isso? ele é o meu cocheiro.
ETELVINA
Libório! eu amo-te!
LIBÓRIO
Como?
ETELVINA
Tu não te vais embora!
LIBÓRIO
Não vou?...
ETELVINA
Peço-te perdão, peço-to de joelhos! (ajoelha).
LIBÓRIO (ajoelhando-se também)
Tu... de joelhos!
ETELVINA
Confesso que fui injusta.
LIBÓRIO
Sim... a falar verdade... mas não...
ETELVINA
Perdoa-me!
LIBÓRIO
Perdoo... E o pé torcido? Destorceu-se?
ETELVINA
Estou boa de todo.
LIBÓRIO
Minha esposa!
ETELVINA
Meu marido! (abraçam-se sem se levantarem).
CENA XIII
Libório, Etelvina, Barnabé e Sebastiana
BARNABÉ (entra pelo fundo e recua)
Eles lá se estão a trincar um ao outro!
LIBÓRIO (erguendo-se)
Está enganado... não nos trincamos.
ETELVINA (o mesmo)
Meu pai, eu adoro o meu marido!
BARNABÉ
Ora ainda bem!
LIBÓRIO
Aqui entre nós, eu creio que ela está de todo desmiuçada.
BARNABÉ
Antes isso, meus filhos, antes isso... Eu vinha anunciar-lhes que me instalei
definitivamente no Candal.
BARNABÉ (a Libório)
Meu senhor, a sege foi-se embora. Quer que se chame outra?
LIBÓRIO
Só se for para meu sogro que se muda, acho eu...
BARNABÉ
Efetivamente mudo para sermos todos felizes de uma assentada. Gosto do
Candal. Tenho lá para me entreter o castelo do rei mouro, os armazéns de
Vila Nova. Nos armazéns... oh! isso lá é que há fontes sem ser moiras; fontes
cristãs... cristãs talvez de mais, por serem muito batizadas... E depois a serra
do Pilar, lugares históricos, etc. Vocês cá ficam muito felizes...
ETELVINA
Sim, meu pai, muito felizes... (abraça estremecidamente o marido).
LIBÓRIO (com ternura)
Então, esta noite, não me penduras a bota nem escondes o chinelo?
ETELVINA (com meiguice)
Não.
LIBÓRIO
Nem torces um pé?
ETELVINA
Também não...
BARNABÉ
Bem! Regalem-se por cá. Lua de mel à portuguesa... e nada de México...
FIM