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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros PORTUGAL, AR. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 208 p. ISBN 978-85-7983-000-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. O ayllu à luz da história cultural: representação e fronteiras discursivas Ana Raquel Portugal

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros PORTUGAL, AR. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 208 p. ISBN 978-85-7983-000-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

O ayllu à luz da história cultural: representação e fronteiras discursivas

Ana Raquel Portugal

1O AYLLU À LUZ DA HISTÓRIA CULTURAL:

REPRESENTAÇÃO E FRONTEIRASDISCURSIVAS

Ao mergulharmos no imaginário do século XVI, pelas linhasde cronistas que outrora relataram seus feitos e suas impressões arespeito de si e do outro, deparamos com a dificuldade inerenteàquele que trabalha com uma utensilagem mental (Fevbre, 1988,p.328) diferente da sua. Para descobrirmos as representações cole-tivas do outro, temos que nos despir dos hábitos mentais própriosdo século XX e procurar compreender as palavras e os símbolos querepresentam a psique coletiva do homem do século XVI (Chartier,1990, p.37).

Conhecer o mundo andino aos olhos de europeus colonizadorese de ameríndios aculturados (cf. Stern, 1987; Wachtel, 1976a, 1976b)é uma tarefa árdua que remete a discussões teóricas em torno do dis-curso utilizado por tais cronistas. Sabemos que esses discursos fo-ram, por vezes, forjados para atender às necessidades coloniais, mastambém são resultantes das práticas culturais entre esses povos. Ahistória cultural aborda essa problemática procurando perceber asrepresentações culturais de cada grupo e o porquê de as assim teremconstruído.

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Interpretações sobre história cultural

O renascimento da narrativa historiográfica (Burke, 1992b,p.326-48) permite que o historiador faça conjecturas na falta de com-provação dos dados, desde que deixe evidente esse procedimento(Ginzburg, 1991a, p.179-202). Tal metodologia, a nosso ver, refletea problemática em torno da concepção da história como forma deconhecimento. O historiador trabalha com documentos representa-tivos de uma determinada época que de forma alguma são uma pro-va verossímil dessa realidade. Esses documentos fornecem-nos ape-nas indícios, pistas (ibidem, 1990, p.143-79) do que poderá teracontecido no passado. Cabe ao historiador saber interpretá-los.Poderíamos afirmar então que a história é uma forma de interpreta-ção de signos, pois o historiador trabalha com narrativas não de acon-tecimentos puros e simples, mas, sim, de cruzamentos culturais hu-manos. Foucault (1997) vê, no jogo de discursos, o meio de apreenderas transformações (cf. O’Brien, 1992, p.52) culturais, visto que, paraele, o homem está condicionado historicamente pelo coletivo, ou seja,o desejo individual é condicionado pelo indivíduo,1 deixando o ho-mem de ser o sujeito histórico e passando a ser sujeito da enuncia-ção. Para nós, embora o homem represente sua realidade conformeseus condicionamentos inconscientes, continua sendo ele o mentorde tais discursos, e, por isso, é o sujeito histórico.

A história tradicional2 baseava-se em documentos oficiais paraabordar a história dos acontecimentos políticos que ocorriam numaesfera individual (Burke, 1992a, p.10-3). Isso acarretava uma visão

1 Nos volumes II e III de História da sexualidade, Foucault (1999), com base emum referencial histórico que parte da Antiguidade greco-romana e não somen-te do Renascimento, retoma a ideia de um sujeito com desejos, como o fez emoutras obras.

2 Sobre a história tradicional, Peter Burke (1992c, p.17) afirma: “A forma domi-nante, porém, tem sido a narrativa dos acontecimentos políticos e militares,apresentada como a história dos grandes feitos de grandes homens-chefes mili-tares e reis. Foi durante o Iluminismo que ocorreu, pela primeira vez, uma con-testação a esse tipo de narrativa histórica”.

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oficial, unilateral e, por vezes, positivista dessas fontes documen-tais. A nova história,3 ao contrário, volta-se para a análise das estru-turas, procurando novas evidências e a interdisciplinaridade paraanalisar o coletivo (ibidem, p.12-6). Em alguns casos, a descriçãodensifica-se, como no caso da micro-história, em que há uma redu-ção da escala de observação e um estudo intensivo do material docu-mental (Levi, 1992, p.136). Esse é um procedimento analítico quenos reporta à teoria de Geertz (1989, p.13-41), que realiza uma des-crição densa do comportamento público, procurando o conteúdosimbólico da ação e o particularismo. Essa análise cultural é estática,pois limita-se a uma constatação, despreocupada com a mecânicado poder. Já Sahlins (apud Burke, 1992a, p.346) analisa dialetica-mente as estruturas e os acontecimentos, fazendo uso do aconteci-mento para revelar as estruturas da cultura.

A história cultural surge como resposta às necessidades meto-dológicas da nova história, pois, se esta está fragmentada por causadas novas propostas de analisar as estruturas e trabalhar o coletivopor meio da heteroglossia (Burke, 1992a, p.14-6), é a cultura quevai ser utilizada como base para esses procedimentos. Na históriacultural, preocupada com caminhos alternativos, temos diferentesmodelos de análise que trabalham as interpenetrações culturais(Vainfas, 1997, p.152) por meio da representação e do conflito dediscursos culturais.

Chartier (1990, p.28) analisa a representação em relação ao mun-do social como sendo um conjunto de práticas culturais em que osatores sociais interagem produzindo uma cultura específica. Desse

3 A nova história é resultado da contribuição do grupo dos Annales, que “[...]ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comporta-mento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicio-nais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta denovas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estãotambém associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo dahumanidade, da geografia à lingüística, da economia à psicologia. Essa colabo-ração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno semprecedentes na história das ciências sociais” (ibidem, p.126-7).

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modo, as práticas de apropriação cultural permitem formas diferen-ciadas de interpretação. Para Chartier, as relações econômicas e so-ciais estão inseridas nesse campo de práticas culturais (Hunt, 1992,p.9), deixando de lado a dicotomia cultura letrada e cultura populare a diferenciação entre análise interna individual e abordagem ex-terna coletiva.

Inspirado na obra de Mikhail Bakhtin (1993) sobre Rabelais, emque aparece implícita a noção de circularidade, Ginzburg (1991b)propõe abertamente esse conceito ao utilizá-lo para tratar os confli-tos culturais ocorridos entre os representantes da cultura popular eda letrada (cf. Vainfas, 1997, p.152). Para Ginzburg (1991b, p.22), épor meio dessa circularidade cultural que se originam as formaçõessociais híbridas, como exemplificado no estereótipo do sabá apre-sentado no livro História noturna.4

Segundo Chartier (1990, p.16-7), a história cultural tem, por-tanto, “por principal objecto identificar o modo como em diferenteslugares e momentos uma determinada realidade social é construída,pensada, dada a ler”. Reiteramos nosso posicionamento ao procu-rarmos interpretar os signos culturais que nos são deixados em crô-nicas e documentos antigos, rejeitando uma simples constatação eanalisando a narrativa a respeito dos acontecimentos da época e tam-bém o resultado das trocas culturais representadas nesses textos. Éna confluência dos discursos letrados e populares que buscaremostais realidades culturais e sociais.

Na apropriação cultural, ao interagirem, os atores sociais reali-zam a dinâmica da produção de cultura. Ao utilizarmos textos anti-gos originados nesse processo, conforme a teoria de Chartier (1992,p.218-9), devemos analisá-los tendo claro que o relato falado é dife-rente do texto impresso, bem como o ato de escrever é distinto daconfecção de um livro. As práticas de impressão permitem a conso-lidação de sociabilidades e a determinação de comportamentos

4 Ao analisar a história da santidade ameríndia de Jaguaripe, Ronaldo Vainfas(1995, p.228) a define como exemplo de hibridismo cultural e triunfo do colo-nialismo.

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(ibidem, p.228). Ao analisarmos as crônicas do século XVI que tra-tam da história andina no período da conquista, estamos lidandocom um conjunto de informações que são a representação dessemundo indígena, aos olhos de europeus, mestiços e autóctones im-pregnados de traços culturais espanhóis. Podemos considerar queos textos resultantes dessa apropriação cultural representam umanova realidade, que acabará por ser assimilada e sociabilizada.

Complementando o posicionamento teórico de Chartier, lança-mos mão da circularidade cultural que Ginzburg observa entre le-trados e populares, para analisarmos as crônicas. Chartier não ad-mite essa dicotomia, porém, é no entrecruzamento cultural eruditoe folclórico que podemos vislumbrar a formação de uma cultura es-pecífica. Dificilmente, dentro de um círculo cultural popular seminfluência externa de traços culturais eruditos, poderá formar-seoutra representação cultural. A oposição faz-se necessária paradesconstrução e construção de novos parâmetros culturais, sem queas características básicas de cada cultura sejam completamente per-didas. Se as fronteiras são criadas pelas exigências da interação social(Guibernau, 1997, p.91), acreditamos que fronteiras discursivasaparecem nessa interação cultural.

Cronistas quinhentistas e o ayllu andino

A alteridade está expressa nas crônicas espanholas do século XVI,pois retratam o relacionamento do “eu” com o “outro”, mostrandoprimeiro o julgamento de valor que os conquistadores faziam, aproxi-mando-se ou distanciando-se, e depois conhecendo ou ignorando porcompleto a identidade do “outro”. Os espanhóis perceberam que acomunicação estava ligada ao poder e que o domínio dos signos autóc-tones podia propiciar a conquista. Baseados nessa concepção, procu-raram compreender o “outro” para dominá-lo e depois destruí-lo.5

5 A questão da alteridade é analisada por Tzvetan Todorov (1983).

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Ao conquistarem o Tahuantinsuyu, mais conhecido como im-pério inca, não foi diferente. O espanhol que aí chegou ou despre-zou essa nova cultura ou procurou conhecê-la, comparando-a a ca-racterísticas familiares (Mello e Souza, 1993, p.26), para entãodominar essa população. Do relacionamento entre espanhóis e apopulação local, frutificaram muitas representações culturais expres-sas em documentos e crônicas quinhentistas. Houve, sim, uma de-sestruturação6 do mundo indígena, mas, por causa das fronteirasdiscursivas em que essas culturas antagônicas puderam encontrar--se, eclodiu uma cultura que poderíamos denominar híbrida, segun-do Ginzburg, ou mestiça, conforme Gruzinski (1995).7

Para exemplificarmos essa dinâmica cultural, que foi expressade forma discursiva por cronistas, abordaremos as mudanças ocor-ridas com o ayllu andino no período inicial da colonização espanho-la. O ayllu é uma estrutura indígena que, no período pré-colonial,conformava um grupo ligado por laços de parentesco, possuidor ounão de um espaço territorial delimitado (Portugal, 1995b, p.97). Eratambém o símbolo do inconsciente coletivo andino, a unidade sim-bólica mítica, social, econômica e política. Os cronistas espanhóis8

apropriaram-se do significante e não do significado do ayllu, permi-tindo diversas interpretações aculturadas. Esses cronistas descreve-ram o ayllu de acordo com seus critérios mentais, conferindo-lhe,por vezes, uma conotação territorial baseada em suas próprias con-cepções de comunidade camponesa. Essa prática deveu-se não ape-nas à incompreensão diante de um mundo organizado de forma dis-tinta do seu, mas também à necessidade de atender a interesses queviabilizaram o sistema organizativo colonial.

6 “[...] por el término de ‘desestruturación’ entendemos la supervivencia de estructurasantiguas o de elementos parciales de ellas, pero fuera del contexto relativamentecoherente en el cual se situaban [...]” (Wachtel, 1976b, p.135).

7 “El mestizaje no fue sólo yuxtaposición o adición. Pudo generar formas culturalesnuevas que se ubicaron más allá de la tradición americana y de las importacionesoccidentales” (Gruzinski, 1994, p.169).

8 Sobre a acepção de ayllu tida pelos cronistas espanhóis Cieza de León (1551),Juan de Matienzo (1567) e José de Acosta (1590), ver Portugal (1996).

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A colonização espanhola na região andina implantou um siste-ma monárquico centralizador, para o qual era necessário o controledas comunidades locais. Para tanto, era necessário convencê-las, tor-nar natural (Bourdieu apud Campos 1998, p.65-6) a sua suprema-cia, inserindo o ayllu nos padrões europeus de comunidade campo-nesa. Esperava-se com isso que os chefes locais passassem a prestarobediência aos representantes da coroa espanhola, seguindo as nor-mas estabelecidas e expressas nos discursos que atendiam aos inte-resses institucionais. A concepção territorial auferida ao ayllu nãofoi apenas um resultado da incompreensão da simbologia indígenapor parte dos espanhóis, mas, principalmente, um instrumento decontrole social e econômico.

No período colonial, o ayllu configura-se como um espaço ter-ritorial,9 visto que é durante o período toledano que vários ayllussão reagrupados para conformar reduções, conferindo-lhes um ca-ráter espacial (Portugal, 1996, p.99). O ayllu colonial poderia tra-tar-se apenas de um resultado de práticas culturais compartilhadasentre os diferentes grupos, porém, por causa das diversas represen-tações a ele atribuídas pelos cronistas desde o período da conquista,conjecturamos que tais discursos também atendiam à necessidadede legitimar o poder espanhol, convertendo o ayllu em núcleo pro-dutivo e passível de controle.10 As crônicas indígenas11 de que dis-

9 A respeito da concepção territorial atribuída ao ayllu por cronistas do séculoXVI, ver Pease (1981), Canseco (1981) e Soriano (1981).

10 “They therefore wanted the Indians in accessible locations near their farms andmines, so that they could have no pretext for resistance. Thus, under the guise ofaiding, instructing, and indoctrinating them ‘in order that they shall not livescattered in the lands and forests, deprived of all spiritual benefit and of living ingood order (policía)’, their reduction (reducción) was ordered. This consisted ofcompelling them to abandon villages, which were located on their original marcas(communal lands), to move to open, flat places, which the conquerors chose. The newtowns established on these locations included the inhabitants of two, three or moreayllus which were thus reduced to only one comunity” (Castro Pozo (1963, p.489).

11 Sobre a conotação de ayllu entre cronistas indígenas Garcilsaso de la Vega (1609),Joan de Santa Cruz Pachacuti (1613) e Guaman Poma de Ayala (1615), verPortugal (1996, p.95-8).

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pomos foram redigidas durante o período colonial por indivíduosque viveram um processo de aculturação, em que sua utensilagemmental mesclou-se a traços culturais europeus, originando um dis-curso mestiço.12

O ayllu colonial é representado nessa fronteira discursiva, em queas visões europeia e indígena se encontram, dando origem a essa novaconcepção. Fronteiras são simbólicas e construídas pela necessida-de de diferenciação entre grupos, que se reconhecem entre si, pormeio de traços culturais representados em sinais, símbolos e discur-sos. Quando culturas diferentes interagem, essas fronteiras rompem--se parcialmente, permitindo o surgimento de representações cul-turais distintas.

As crônicas do século XVI representam o resultado da confluên-cia de discursos culturais distintos. O processo de alteridade vividopor espanhóis e indígenas, em que ambos procuram conhecer o outrorecorrendo a referências culturais familiares, demonstra a existênciade fronteiras discursivas propícias a uma interação cultural.

Numa análise contemporânea sobre fronteiras culturais da na-ção, Komi Bhabha (1995, p.4, 27) afirma que as fronteiras sãoentrelugares, através dos quais as significações de autoridade cultu-ral e política são negociadas e que, na diferença cultural, estabele-cem-se novas formas de significado e estratégias de identificação,onde não se pode estabelecer uma autoridade discursiva sem que aprópria diferença seja revelada.

Aplicando-se essa premissa à análise das crônicas quinhentistas,percebemos que essas narrativas são resultantes da negociação dediferenças e familiaridades ocorridas na fronteira discursiva dessas

12 “Junto con las crónicas españolas existen también relatos escritos por indígenas omestizos durante la época colonial: Titu Cussi Yupanqui, Guamán Poma de Ayala,Joan de Santa Cruz Pachacuti y Garcilaso de la Vega. Algunos investigadores hanacentuado las características ‘andinas’ de estos escritores, privilegiando la fuerzade la sangre sobre la educación. La visión que estas narraciones nos brindan sobreel mundo indígena y colonial es una visión mestiza, que trata de conciliar el pasadocon los principios universales del cristianismo” (Bernand, 1994, p.71-2).

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culturas. Essas fronteiras são perceptíveis e marcantes, mas permi-tem a formação de um discurso cultural híbrido.

Para garantir a inteligibilidade de uma mensagem, é necessário oreconhecimento de discursos desterritorializados (Ortiz, 1996,p.128). Ao utilizarem referências culturais comuns, os cronistas es-panhóis e indígenas do século XVI procuraram, a princípio, estabe-lecer um sistema de comunicação e posteriormente a legitimação deum discurso cultural preponderante.

Na análise específica do significado do ayllu andino, após o en-contro de distintos discursos culturais, foi-lhe atribuída uma acepçãocompreensível aos dois grupos. A partir do período colonial, o ayllurepresentava algo distinto do que havia sido em tempos incaicos ena prática converteu-se em estrutura beneficiadora da política colo-nial espanhola.

Cronistas: uma análise etnográfica andina

O ayllu, como estrutura básica da organização social andina, foianalisado por historiadores, antropólogos, etnólogos, arqueólogos eoutros especialistas, com o intuito de defini-lo e perceber as modifi-cações ocorridas desde a época pré-incaica até os dias atuais. Muitoslançaram mão das crônicas para comprovar suas teorias e consen-sualmente definiram o ayllu como o sistema de parentesco andino.13

A leitura das crônicas quinhentistas propicia aos pesquisadoresgrande carga informativa, o problema é que, ao interpelarem-nas,alguns incorreram em sérios erros de interpretação, por vezes moti-vados pelo forte cunho positivista da época (cf. Cunow, 1929a, 1929b,

13 Artigos diversos sobre o ayllu, resultantes de um congresso sobre esse tema, en-contram-se em Castelli et al. (1981). Existem vários pesquisadores que aborda-ram o tema em suas obras, como Mattos Mar (1976), Rowe (1963), Lumbreras(1981), Silverblatt (1990), Zuidema (1991), Wachtel (1973), Godelier (1977),Murra (1983) e Canseco (1988).

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1933; Tudela Valera, 1905; Uhle, 1911; Saavedra, 1913; Eguiguren,1914; Cuneo Vidal, 1977).

Ao recorrermos às crônicas, temos que estar cientes de que esta-remos examinando a representação de um período aos olhos de ho-mens com histórias e objetivos distintos, ou seja, com discursos di-versos.14 Tais cronistas poderiam ser considerados historiadores queopinaram a respeito do que viram, e cabe a nós perguntar o porquêde assim estarem opinando. Buscar uma definição de ayllu nas crô-nicas é uma tarefa difícil, pois o que poderemos encontrar não sãodefinições, e, sim, diferentes representações dessa estrutura, que desistema de parentesco acabou por ser convertida em comunidade noperíodo colonial espanhol.

No século XIX, Heinrich Cunow (1929a) formulou uma pro-posta a respeito do ayllu andino, relacionando-o com a comunidadede aldeia, acreditando encontrar na marca germânica a explicaçãopara compreender o que os cronistas mencionavam por ayllu. Parafundamentar suas ideias, utilizou erroneamente o livro de Mommsen(1960), em que este aborda o modelo de comunidade romana. Cunowchamava de marca aquilo que Mommsen (1960, p.264) tinha poraldeias familiares, que eram pequenos territórios pertencentes e cul-tivados por famílias. Partindo dessa premissa, Cunow interpretou oayllu andino como uma comunidade rodeada de campo de cultivo,tal como foram construídas as reduções no século XVI (cf. Pease,1981, p.21-2).

Hoje esse tipo de argumento foi superado, pois já se sabe que acomunidade andina que se confundiu com o espaço físico é a redu-ção implantada no período do vice-rei Toledo. O ayllu e a comuni-

14 “Cuando llegaron los españoles, vieron e interpretaron el mundo andino bajo laspremisas de la cultura occidental de su tiempo, aplicando los conceptos y modeloseuropeos a la nueva realidad con la que entraron en contacto. Además, cada autorimprimió a su relato su sensibilidad y apreciación personales. Pero en el fondo larealidad era diferente, las instituciones del mundo andino tenían su propio carácter,su naturaleza sui generis que no pudo ser captada por los observadores europeos ensu verdadero significado social” (Silva-Santisteban, 1988, p.147).

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dade não têm relação, pois o ayllu é um sistema de parentesco, e acomunidade, uma organização colonial (cf. Pease, 1978, 1992b).

Alguns pesquisadores, por vezes seguindo uma visão positivis-ta, marxista ou ainda a historicista, tomam como certos os dados dascrônicas, que, na verdade, representam a visão dos europeus. O ayllué identificado por tais cronistas, na maioria das vezes, como um tipode organização urbana que foi empregada pelos espanhóis nas guer-ras contra os mouros, em que havia cidades fronteiriças que se base-avam no sistema comunal, exemplos que sobreviveram por largoperíodo na Espanha.15 Discutir se o ayllu é um espaço físico antes daconquista espanhola é inviável. Nesse período, essa estrutura é ape-nas o sistema de parentesco, não existindo comunidade pré-hispâ-nica. A comunidade é tão somente a organização medieval europeia,16

que aqui vai se concretizar quando da fundação das reduçõestoledanas.

O ayllu andino não pode ser inserido num esquema evolucionista,que de sistema de parentesco obrigatoriamente haveria de se trans-formar em comunidade, até porque a população andina estava dis-persa e se movendo continuamente. Para estudar o ayllu pré-hispâ-nico, deve-se partir da análise do sistema de parentesco, visto queeste marca a forma como se estabelecem as relações sociais.

Poucos são os dados a esse respeito e os poucos que existem estãonas crônicas, mas nem sempre se pode utilizá-las como fontes ve-rossímeis, já que estas, muitas vezes, são resultantes de um fenôme-no ideológico europeu.

Não se encontram evidências reais sequer nas crônicas indíge-nas. Ayala (1993) não define o ayllu, apenas apresenta as mecânicasde reciprocidade que o justificam.

Não se pode confundir a estrutura social com o espaço físico, poisisso faz parte da estrutura mental do europeu do século XVI. O es-panhol também transformou o sistema político dual dos incas em

15 Sobre a sobrevivência de tais comunidades espanholas e a comparação com acomunidade peruana, ver Arguedas (1968).

16 Sobre a comunidade medieval espanhola, ver Cortázar (1990).

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uma monarquia (Duviols, 1980, p.183-96), no entanto nada apare-ce nas crônicas sobre a dualidade. O modo que temos para averiguara existência desse sistema é a explicação dada pelos cronistas para aderrocada do império inca, já que, no momento da conquista espa-nhola, dois incas disputavam o poder (Portugal, 1995b, p.12). Aopassarem pelo filtro europeu, as informações a respeito do mundoandino são transformadas em categorias do século XVI, em que osespanhóis confeccionam um ideal imperial à luz da história de Roma,visto que esse era o modo como explicavam a própria sociedade.17

Nesse período, a Europa fabrica a história do mundo e introduzuma série de categorias que até hoje não estão resolvidas. Um exem-plo é a definição da panaca18 cuzquenha encontrada nas crônicas,que nada mais é que o modelo do genos19 grego.

A utilização de preconceitos ideológicos pode levar à construçãode um discurso distorcido. Quando, por exemplo, num sítio arqueo-lógico tenta-se afirmar que uma construção define a organizaçãosocial, isto só é possível porque se tem uma ideia preconcebida deque, se há uma construção central, essa construção deveria ser dotipo religioso, já que se trata de uma época em que não existia Esta-do institucional, logo o poder estava em mãos de sacerdotes. Porém,isso faz parte de critérios estabelecidos pela historiografia ocidental,para a qual a organização social é institucional.20 Para isso, foi neces-

17 “[...] La España del XVI es una nación mesiánica. La gloria y la riqueza caídatan de improviso sobre sus hombros han llevado a la mayoria al convencimiento deque éste es el pueblo destinado a la gloria. En su glosa a la situación, los escritoresde XVI comparan siempre a España con Roma o Israel. Si Roma fue cabeza de lahumanidad, Israel era el pueblo selecto, el único que tenía razón frente a sus nu-merosos enemigos. Como ellos, España tiene obligatoriamente una empresa quellevar a cabo” (Diaz-Plaja, 1988, p.10).

18 Panaca: “miembros de la elite cusqueña” (Canseco, 1988, p.201).19 “Família extensa aristocrática grega, cujos membros se julgavam descender de

um antepassado comum, com freqüência um semideus ou um herói mítico”(Cardoso, 1985, p.85).

20 No que concerne ao ayllu, existe o trabalho arqueológico de Danièle Lavallé eMichèle Julien (1983) que reconstrói a ocupação de um sítio em função do agru-pamento familiar.

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sário Evans-Pritchard (1968) mostrar as diferenças entre as socie-dades A e B, em que umas estavam organizadas institucionalmente,como é o caso daquelas que formam Estados modernos, e as outrasem que a relação de poder se filtra por meio de relações simultâneas,como o parentesco. São as relações de parentesco que estruturamessas sociedades. Quase toda a sociedade do mundo funcionava den-tro desse sistema e não do sistema institucional, representado peloEstado moderno.

O mundo medieval antes de ser institucional também era basea-do na estrutura de parentesco. O livro de Le Roy Ladurie (1986)retrata um fenômeno ocorrido no sul da França, que é afetada porum conflito devido a um processo de extirpação de idolatrias. Inte-ressante é que nessa obra está clara a importância do sistema de pa-rentesco na organização dessa sociedade proveniente de uma reali-dade herética em depressão.

De acordo com os exemplos apresentados, é necessário definiros objetivos da pesquisa a ser realizada e não utilizar conceitos prees-tabelecidos. Partindo desse pressuposto, no caso das crônicas espa-nholas, sabemos que estas foram escritas por homens imbuídos depreconceitos etnocêntricos. Sendo assim, trabalharemos com a re-presentação do ayllu à luz de categorias externas à realidade andina.Para trabalhar os cronistas, é necessário sutileza e, sobretudo, apren-der a ler de novo.

Para aqueles que têm a intenção de compreender o ayllu, faz-senecessário contrastar informações etnográficas com as de cronistase com a informação moderna que se tem sobre o ayllu. Como o in-tuito de nosso trabalho é perceber as diversas representações dadasao ayllu em documentos e crônicas de espanhóis e indígenas emmomentos históricos distintos, não necessitaremos recorrer a essemétodo, visto não almejarmos uma definição do ayllu, e sim o ma-nancial de cambiantes originados nessa confluência de discursos.

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Aportes historiográficos

A partir do final do século XVI, o vocábulo ayllu deixa de corres-ponder à antiga realidade indígena, passando a configurar uma es-trutura pertencente ao sistema colonial espanhol. O estudo das vá-rias representações do ayllu até sua conversão em comunidadepermite perceber o pensamento desse homem do século XVI, quedescreve o que lhe é alheio conforme seus próprios conceitos oumesclando realidades, o que é mais usual em crônicas indígenas.

Para tanto, é necessário saber primordialmente quais as fontesutilizadas por tais cronistas para realizarem seus escritos. A maioriados cronistas espanhóis, que começaram a preocupar-se em descre-ver o império inca, coletou suas informações junto aos representan-tes da aristocracia cuzquenha, e outros, de curacas (chefes locais) ouainda dos descendentes de Atahualpa, o Inca de Quito. Essa visão“oficial” dos cuzquenhos, confrontada com a dos outros informan-tes, provocou inúmeras distorções que podem ser comprovadas ana-lisando-se e comparando-se a produção literária pós-conquista(Bernand, 1994, p.70).

As primeiras obras consideradas científicas que utilizaram as crô-nicas como fontes começaram a surgir no final do século XVIII. Aocontrário de Marmontel (1991), que escreveu sobre os incas semnenhuma base documental, o abade Raynal (1820) imprimiu suaHistoire philosophique em 1770, em que fez uma crítica da históriaincaica baseando-se nas fontes. O historiador William Robertson(1777) conseguiu chegar a conclusões razoáveis sobre o império inca,consultando as crônicas, mesmo tendo sido absolutamente influen-ciado por Garcilaso, tornando-se, conforme expõe Ake Wedin (1966,p.8), um seguidor da tendência pró-incaica. Contrariando essa pos-tura, o holandês Corneille de Pauw (1768-1769) descarta as infor-mações de Garcilaso, trocando-as pelas de Zárate e outros cronistascontrários aos incas.

Os primeiros aportes diferenciados de pesquisa a respeito dosincas foram feitos por Prescott (1862), que buscou fontes até entãodesconhecidas para basear seus estudos. O espanhol Jiménez de la

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Espada (1877, 1892) também contribuiu para esse avanço historio-gráfico, sendo o responsável pela impressão de diversos manuscri-tos inéditos.

Existem alguns estudos historiográficos importantes que traça-ram uma classificação das crônicas peruanas, avaliando-as de acor-do com distintos critérios. Clements Markham (1910) selecionou-os conforme a raça e a profissão, diferenciando os cronistas indígenasdos espanhóis e subdividindo estes últimos em cronistas-soldados,geógrafos, jurídicos e religiosos. Riva-Agüero y Osma (1910) os clas-sificou em espanhóis, índios e mestiços, porém apenas se ocupoudos cronistas nascidos no Peru. Alvo de severas críticas, inclusivepor parte de Riva-Agüero y Osma, foi o critério utilizado por Means(1931) ao dividir as crônicas em duas escolas, a garcilasista e atoledana, ou seja, baseando-se na opinião sustentada por cada cro-nista perante o incário. Essa divisão também foi criticada por Rowe(1963) e, posteriormente, por Wedin (1966).

Em distintos estudos, Louis Baudin (1945) e Porras Barrenechea(1973) introduziram um esquema em que relacionaram os cronistase suas obras de modo a facilitar a sua utilização. Essa classificaçãotinha o intuito de compreender todo o processo histórico da con-quista e sua evolução, seguindo uma pauta cronológica em confor-midade com os feitos.21 O problema desse esquema é que se tornadifícil encaixar os cronistas nessa compartimentalização, visto quefacilmente resvalam de um setor a outro (Pease, 1978).

Ake Wedin (1966) chamou a atenção sobre esse aspecto e propôsclassificar os cronistas de acordo com a proximidade temporal emrelação à memória oral, ou seja, para ele os cronistas da conquista,inevitavelmente, teriam tido mais acesso às informações do que aque-

21 Para Louis Baudin (1945), a divisão lógica era propiciada pela diferenciaçãoprofissional e cronológica, ou seja, cronistas que conheceram o império inca, osque chegaram depois da destruição deste e aqueles que não estiveram no Peru,mas recolheram os dados dos primeiros conquistadores. Para Barrenechea(1986), a divisão deve ser feita em incário, descobrimento, conquista, guerrascivis da conquista e cronistas pré-toledanos, toledanos e pós-toledanos.

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les que chegaram ao Peru no período colonial.22 Sabemos que essetipo de análise possui suas incoerências, visto que a fonte oral aludi-da por Wedin era a visão “oficial” dos cuzquenhos ou até mesmo dechefes locais inimigos dos incas, o que pode ter gerado uma série deinformações incongruentes.

Nosso objetivo não é realizar um esquema classificatório das crô-nicas peruanas, mas apenas compreender que não é possível buscarinformações concretas a respeito do mundo andino, mas, sim, ima-gens produzidas por diferentes membros de uma sociedade hispano--americana. Analisar as crônicas quinhentistas nos proporciona umagama infindável de representações, das quais podemos filtrar dadosinerentes a um determinado período e que, sob a influência de fenô-menos sociais, podem ter sido modificados.

Crônicas que espelham o ayllu

Sabemos que o ayllu passou por transformações conceituais econcretas desde o período em que correspondia à realidade indígenaaté a sua assimilação no período colonial. Para conseguirmos esta-belecer um diálogo com as crônicas quinhentistas, temos de selecio-nar aquelas que melhor correspondem à problematização enfocada.

Os cronistas do período da conquista foram aqueles que coleta-ram seus dados junto aos quipo-camayoc, homens que eram respon-sáveis, entre outras coisas, por conservar a história incaica. Porém,essa é a chamada tradição “oficial”, da qual absorveram seus dadosCieza de León (1991), Cabello Valboa (1951) e Martín de Múrua(1986), por exemplo. Outros recolheram suas informações junto achefes de diferentes localidades que lhes contavam suas memóriaspessoais, sendo esse o material que originou as Relaciones geográfi-

22 “Esto significa, en resumidas cuentas, que mientras más temprana sea una crónica,tanto mejos sus bases. Esto supone como consecuencia que una simple agrupaciónde las crónicas en ordem cronológico, según el año de redacción o impresión, es lamás útil desde el punto de vista metódico” (Wedin, 1966, p.40-1).

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cas de Indias (La Espada, 1965) e que também foi utilizado porSarmiento de Gamboa (1988) e Francisco de Toledo (1940a, 1940b).

As primeiras crônicas que tratam da história do Peru quase nãomencionam o ayllu, pois os soldados, aventureiros e até mesmo reli-giosos estavam mais preocupados com suas façanhas, e menos emcompreender esse “outro” que urgia conquistar. Na verdade, o im-portante era saber quantos índios havia em determinado local e quala extensão de terra disponível a ser repartida entre os conquistadores.

O período de maior interesse para a realização de uma investiga-ção a respeito do ayllu no século XVI abarca os primeiros anos deconquista até a década de 1580, que é quando se modificam os crité-rios de análise do incário e quando ocorrem as grandes mudançascoloniais, representadas pela implantação das reduções toledanas.Partindo desse postulado metodológico, é possível vislumbrar asprincipais representações conferidas a essa estrutura de parentescoandina, utilizando para tal crônicas e documentos de períodos dis-tintos, quando assim aprouver e for justificável.

O cronista Cieza de León é fundamental para a compreensão doayllu, mesmo sendo um soldado que vivenciou o período inicial daconquista, e, como se sabe, eram raros aqueles que dominavam alíngua quechua. Ele, diferentemente de seus companheiros, tinhauma curiosidade aguçada e sagaz e soube captar a realidade andina,transpondo esses limites linguísticos.

Juan de Betanzos (1968) equipara-se em valor etnográfico a Ciezade León, pois, além de haver se casado com a irmã de Atahualpa,transformou-se no intérprete oficial de Pizarro, visto ter se dedica-do desde cedo ao estudo do quechua.

A obra de Juan de Matienzo (1967) é de grande importância paraapreendermos o momento histórico em que o ayllu se transformaem um espaço territorial, pois esse cronista foi o mentor das redu-ções toledanas. De cunho jurídico, esse tipo de crônica representouo discurso de legitimação do poder espanhol sobre o povo inca.Matienzo, Francisco de Toledo e Sarmiento de Gamboa represen-tam a tendência anti-incaica em suas crônicas, apresentando os incasnão como um povo primitivo, mas como um povo de perfeita orga-

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nização e que subjugava o restante da população de forma tirânica;por isso, era legítimo o poder espanhol sobre os incas, pois libertaraas populações andinas “escravizadas” por estes. Já os cronistas queapoiavam o incário enalteciam essa organização com o intuito deprovar o alto nível cultural e político desse povo. Tanto as fontes afavor dos incas como as contrárias estavam de acordo quanto à exce-lente organização incaica (Wedin, 1966, p.77).

Polo de Ondegardo (1990), apesar de não ter sido um cronistaque tenha produzido uma obra importante para a análise do mundoincaico, foi representativo para o período colonial. Ele foi um opositorda perpetuação do sistema de encomienda, visto ser uma injustiça osespanhóis apoderarem-se inclusive das terras que outrora perten-ciam ao povo, pois nem os incas usurparam da população o direito àterra. A parte que cabia ao Inca e ao Sol era plantada coletivamente,e a restante pertencia ao ayllu e era administrada pela autoridadelocal com fins tributários e de subsistência. Os espanhóis, ao insta-larem a encomienda, não satisfeitos de se apoderarem da totalidadeterritorial, também incutiram à população indígena uma nova for-ma de tributação.

Obras menores, como as de Cristóbal de Molina (1959) e Fran-cisco Falcon (1867), também merecem atenção por parte do pesqui-sador, visto que são compostas de materiais coletados por seus auto-res junto ao povo andino.

A crônica de José de Acosta (1954) deve ser analisada tão somentepara perceber a visão de um religioso sobre o mundo indígena, pois,apesar de sua conhecida importância para os estudos dos povos pré--colombianos, quando se refere ao Peru, utiliza as informações deOndegardo, já que a transcrição era uma prática corriqueira na época.

Com o intuito de contrapor distintas representações do ayllu, faz--se necessário o estudo não somente das obras redigidas pelos espa-nhóis, mas também de indígenas e mestiços. Existem poucas fontes,mas de fundamental importância para compreensão dessa estruturaandina. Sabemos que esses cronistas mesclaram critérios europeus eindígenas, e alguns também recolheram seus dados junto aos no-bres de Cuzco, como foi o caso de Garcilaso de la Vega (1991). Mes-

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tiço, filho de um conquistador espanhol e de uma princesa inca, pas-sou sua infância no Peru, mas logo foi para a Espanha, onde estudoue redigiu sua crônica. Seu discurso é adaptado ao público espanhol epor isso mesmo chega a negar a existência de sacrifícios humanosentre os incas, visto ser algo repulsivo à mente europeia.

Joan Santa Cruz Pachacuti (1993), Guaman Poma de Ayala(1993) e Titu Cusi Yupanqui (1992) são índios que basearam suascrônicas nos relatos heroicos dos cuzquenhos e simbolizaram o re-sultado da aculturação sofrida por esse povo. Pachacuti, profunda-mente cristianizado, fez de sua crônica um catecismo, utilizandoconceitos teológicos para explicar o mundo andino desde sua ori-gem (Portugal, 1995b, p.78). Guaman Poma de Ayala e Titu Cusirepresentam a oposição ao mundo colonial com seus escritosapologéticos e cheios de contradições, fato plausível, já que eramhomens andinos que haviam sido educados e cristianizados pelosespanhóis.

As crônicas que tratam do período colonial inicial até a implan-tação das reduções de Toledo são as que podem nos fornecer as me-lhores representações do ayllu incaico e colonial.

Antes da chegada dos espanhóis, o ayllu simbolizava o sistemade parentesco e, ao ser representado por diferentes cronistas, de con-ceito territorial abstrato foi transformado em comunidade, confor-me os moldes europeus de aldeia detentora de um espaço territorialdemarcado. A confluência de discursos que representavam o mun-do indígena propiciou o surgimento dessa nova concepção de ayllu.

Os cronistas abordaram a história dos incas de distintas formas:uns assumiram uma postura contrária e denegriram a imagem dessepovo, e outros procuraram compreender e valorizar essa cultura.Espanhóis e indígenas, muito embora representantes de culturasdiferentes, articularam discursos verossimilhantes por causa daaculturação sofrida por estes.

A construção discursiva do ayllu começou por ser engendradadesde que os cronistas se apropriaram de seu significante, que designo representativo de uma simbologia indígena foi transformadoem modelo de comunidade aldeã do medievo europeu. As crônicas

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não nos fornecem dados sobre o significado do ayllu propriamentedito, mas, sim, a imagem que esses homens do século XVI forjaramde acordo com as fontes utilizadas e objetivos pessoais.

Diante da dificuldade em definir essa estrutura indígena por meioda complexa documentação de que dispomos, é de grande valia pes-quisar a representação dela com o intuito de perceber esse entrelaça-mento de ideias alusivas a culturas distintas. Essa conjugação de es-tereótipos culturais europeus e indígenas refletida em discursospermitiu que o ayllu colonial assumisse uma nova conotação, que,em razão também das mudanças socioeconômicas da época, conso-lidou-se na prática. O ayllu colonial configurou-se nessa fronteiradiscursiva, em que cronistas espanhóis e indígenas traduziram empalavras as práticas culturais inerentes à realidade do encontro/de-sencontro desses povos.