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O colapso socioambiental não é um evento, é o processo em curso Luiz Marques We declare, with more than 11,000 scientist signatories from around the world, clearly and unequivocally that planet Earth is facing a climate emergency. (…) An immense increase of scale in endeavors to conserve our biosphere is needed to avoid untold suffering due to the climate crisis. — William Ripple et al. , World Scientists’ Warning of a Climate Emergency, BioScience, 2019. “Um imenso aumento de escala em esforços para conservar a biosfera é necessário para evitar inaudito sofrimento devido à crise climática.” Advertências da comunidade científica, tal como essa em epígrafe, multiplicam-se e assumem cada vez mais a forma de ultimatos. Estamos, é agora indubitável, acelerando numa trajetória de colapso socioambiental, como mostram de modo inequívoco o relatório especial do IPCC SR1.5, de outubro de 2018, e o 1º Relatório de Avaliação sobre o estado da biodiversidade global, lançado pelo IPBES em maio de 2019, além de uma enxurrada de estudos e

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O colapso socioambientalnão é um evento, é oprocesso em cursoLuiz Marques

We declare, with more than 11,000 scientistsignatories from around the world, clearly andunequivocally that planet Earth is facing a climateemergency. (…) An immense increase of scale inendeavors to conserve our biosphere is needed toavoid untold suffering due to the climate crisis.

— William Ripple et al.,World Scientists’ Warning of a Climate Emergency,BioScience, 2019.

“Um imenso aumento de escala em esforços paraconservar a biosfera é necessário para evitar inauditosofrimento devido à crise climática.” Advertências dacomunidade científica, tal como essa em epígrafe,multiplicam-se e assumem cada vez mais a forma deultimatos. Estamos, é agora indubitável, acelerando numatrajetória de colapso socioambiental, como mostram demodo inequívoco o relatório especial do IPCC SR1.5, deoutubro de 2018, e o 1º Relatório de Avaliação sobre oestado da biodiversidade global, lançado pelo IPBES emmaio de 2019, além de uma enxurrada de estudos e

projeções científicas. Embora o incremento demográficoseja um problema não irrelevante e ainda crescente, omotor fundamental desse processo não é a humanidadeem geral, mas a civilização termo-fóssil intrinsecamenteexpansiva e destrutiva dos alicerces da vida no planeta aque damos o nome de capitalismo global. Define-se aquicapitalismo global como o sistema socioeconômico criadopela lógica da acumulação de capital e bens de consumo ecomandado por redes corporativas ou por Estados-corporações, definição em que se enquadram hoje todosos sistemas econômicos hegemônicos do planeta. Alémdessa causa socioeconômica primária, agem sobre osdesequilíbrios crescentes do sistema Terra alças deretroalimentação oriundas desses mesmos desequilíbrios,de modo que aumenta dia a dia a probabilidade dealterações no sistema climático e de aniquilação dabiodiversidade em um grau superior às possibilidades deadaptação do homem e de inúmeras outras espécies.Em que ponto estamos nessa trajetória e que respostapolítica se impõe hoje para diminuir as probabilidades deocorrência dos cenários mais destrutivos são as duasquestões que fornecem a motivação desse texto.

Os pontos de inflexão na dinâmicade um colapso

Antes de mais nada, tentemos definir a dinâmica de umcolapso ambiental, valendo-nos de uma passagem de

Chris Martenson1:

1. Cf. Chris Martenson, Collapse is already here. Resilience,31/1/2019.

Muitas pessoas têm a expectativa de algum grau decolapso, seja econômico, ambiental e/ou social,pensando que reconhecerão os sinais de perigo atempo. Como se fosse algo completamente óbvio, comoum blockbuster de Hollywood. Completo, com clarasadvertências dos cientistas, dos políticos e da mídia. Etodo mundo poderá então entrar em pânico ou se tornarum herói destemido. Mas não é assim que o colapsofunciona. Colapso é um processo, não um evento. E elejá está em curso, à nossa volta. O colapso já está aqui.

O que permite afirmar a presença de um colapso não é seuponto de chegada, com seu imaginário, muito em voga, decatástrofes apocalípticas e de precipitação das sociedadeshumanas e de inúmeras outras espécies num abismo deinsondáveis profundidades. Uma característica basilar doprocesso de colapso dos sistemas interdependentes emque vivemos (sociedades, biosfera e sistema climático) é ofato de não evoluir a uma velocidade constante. Suadinâmica é marcada por acelerações e desacelerações.Mais importante: essa dinâmica se divide na maior partedas vezes em duas fases maiores e bem distintas: antes edepois da ultrapassagem de pontos de inflexão ou devirada (tipping points). Um colapso torna-se inevitável umavez ultrapassados esses pontos de virada, definidos como

o momento em que tensores em acumulação superam aresiliência do sistema sobre o qual eles agem. Superadoesse ponto, o sistema deixa de gravitar em torno de seusatratores de estabilidade, oscila, torna-se brevementemuito instável, antes de transitar, mais ou menosrapidamente ou mesmo abruptamente, para outro estado(Lenton & Schellnhuber, 2007; Duarte et al., 2012; Lentonet al., 2015; Steffen et al., 2018; Lenton et al., 2019).

A velocidade dessa transição pós-ponto de virada podevariar. No caso do sistema climático, por exemplo, admitidaa hipótese largamente compartilhada entre os cientistas, deque este pode ultrapassar um ponto de virada após umaquecimento de 2°C, há incerteza sobre quão rapidamenteevoluiremos em direção ao que Will Steffen e colegas(2018) chamaram de “Hothouse Earth”, ou de uma “Terrainabitável”, na expressão de David Wallace-Wells (2017 e2019). No que se refere especificamente ao aquecimento, ahipótese gradualista parece ainda prevalecer entre oscientistas. Jean Jouzel, ex-vice-presidente do IPCC, porexemplo, afirma (Herzberg 2019):

Os colapsólogos se enganam, a meu ver, na escala detempo. O colapso não é iminente. Na realidade, vejo-nosgrelhando em fogo baixo. (…) Certos sinais, ainda aconfirmar, permitem pensar numa aceleração dadegradação. Penso que não poderemos nos adaptar aum aquecimento de 3°C e que viveremos conflitosmaiores.

Tal é, em essência, o ponto de vista dominante noestablishment científico, consubstanciado no IPCC. Ele écriticado, contudo, por diversos especialistas ao nãointegrar devidamente em seus modelos a crescenteaceleração do aquecimento causada pelas alças deretroalimentação, entre elas o dieback ou morte“espontânea” das florestas e a liberação de CO2 e demetano do permafrost terrestre e dos sedimentossubmarinos no Ártico, atualmente em desenfreado degelo.De qualquer modo, a advertência de Jean Jouzel não deveser esquecida: um aquecimento médio global superficial,terrestre e marítimo combinados de 3°C acima do períodopré-industrial é considerado “catastrófico”, como jácategorizado por outros cientistas (Xu & Ramanathan2017), e por catastrófico entenda-se que tal aquecimentocoloca a humanidade e inúmeras outras espéciesprovavelmente no limite de sua capacidade de adaptação.Além disso, a advertência de Jouzel endereça-se aos queainda especulam sobre qual seria o risco maior: aemergência climática ou a eventualidade de “conflitosmaiores”, no limite um inverno nuclear. Trata-se de umafalsa questão, pois a cada dia que passa a própriaemergência climática ganha mais peso entre as causas detais conflitos. Não se trata, portanto, de um aut-aut, mas deuma relação probabilística de causalidade entre aemergência climática e as guerras.

A hipótese gradualista é desafiada por um númerocrescente de cientistas. Em The Seneca Effect. Why

Growth is Slow but Collapse is Rapid (2017), Ugo Bardiexplora a proeminência de transições não lineares, muitorápidas ou mesmo abruptas, na dinâmica histórica dassociedades e dos sistemas físicos, uma vez ultrapassadospontos de virada:

Um modo de olhar para a tendência de sistemascomplexos a colapsar é em termos de pontos de virada(tipping points). Esse conceito indica que o colapso nãoé uma transição suave; é uma mudança drástica queleva o sistema de um estado a outro, passandobrevemente por um estado de instabilidade.

2. Cf. Lucius Annaeus Seneca (4 BCE–65 CE), EpistolariumMoralium ad Lucilius 91,6: “Esset aliquod inbecillitatisnostrae sollacium rerumque nostrarum si tam tardeperirent cuncta quant fiunt: nunc incrementa lente exeunt,festinatur in damnun” (“Seria de algum consolo para anossa própria fraqueza e para nossas obras se todas ascoisas perecessem tão lentamente quanto vêm à luz; narealidade, incrementos são lentos, mas a ruína é rápida”).

A noção de uma transição rápida, uma vez ultrapassadosesses pontos, revive o ditado de Seneca (segundo o qualcrescimentos são lentos, mas a ruína é rápida2), que deu aolivro de Ugo Bardi seu título. Ela remete também à famosaquestão de Hegel da transição da quantidade à qualidade,um mecanismo relativamente negligenciado de mudança,seja no âmbito da evolução (Eldredge & Gould,1972/1980), seja nas dinâmicas do sistema Terra. Em sua

Enciclopédia das ciências filosóficas (1817), Hegelescreve:3

3. Cf. G.W.F. Hegel, Encyclopedia of the PhilosophicalSciences in Basic Outline. Part I: Science of Logic (1817),par. 108, verbete: “Measure”. Traduzido por KlausBrinkmann & Daniel O. Dahlstrom. Cambridge UniversityPress, 2010, p. 170.

De um lado, as determinações quantitativas daexistência podem ser alteradas sem alterar suaqualidade. (…) De outro, esse processo de aumento edecréscimo indiscriminado tem seus limites, e aqualidade é alterada ao se superarem tais limites. (…)Quando uma mudança quantitativa ocorre, ela pareceser de início praticamente inócua; e, entretanto, há algodiverso oculto atrás dela e essa mudançaaparentemente inócua do quantitativo é, por assim dizer,um ardil (List) através do qual o qualitativo é capturado.

Embora pontos de virada sejam, de fato, claramentepercebidos apenas pelo espelho retrovisor, isto é, apenastarde demais para serem evitados, há um consensoemergente de que já estamos começando a testemunharacelerações vertiginosas, consistentes com aultrapassagem de diversos pontos de virada em algunscomponentes de larga escala do sistema Terra, oschamados “tipping elements” (Lenton, Held, Krieger et al.2008)4. Entre esses tipping elements ou elementoscríticos, contam-se o sistema climático, a biomassa, a

circulação oceânica, a criosfera etc. É crescentementeprovável, insista-se, que ao menos alguns desseselementos críticos, estreitamente interdependentes — omais notório deles sendo a desintegração da criosfera — játenham ultrapassado ou estejam em vias de ultrapassarpontos de virada ou de irreversibilidade. Essasultrapassagens, já ocorridas ou iminentes, colocam-nosnuma nova fase histórica: a “Idade do colapso ambiental”,para dizê-lo nos termos do título de um relatório do Institutefor Public Policy Research (IPPR): This is a crisis. Facing upto the Age of Environmental Breakdown (Laybourn-Langton, Rankin & Baxter, 2019). Após descrever os traçosmais salientes dessa crise, os autores concluem:

4. “Here we introduce the term ‘tipping element’ todescribe large-scale components of the Earth system thatmay pass a tipping point”.

Embora haja incerteza sobre como esse processo sedesenrolará — variando de mudanças lineares aeventos não lineares abruptos e potencialmentecatastróficos — a extensão, a gravidade, o ritmo e ofechamento da janela de oportunidade para evitarresultados potencialmente catastróficos levaram muitoscientistas a concluir que entramos em uma nova era derápidas mudanças ambientais. Definimos essa nova eracomo a “idade do colapso ambiental” para destacar agravidade da escala, o ritmo e as implicações dadesestabilização ambiental resultante da atividadehumana agregada.

Já no início do segundo decênio, 40 anos após apublicação de seu clássico The Limits to Growth (1972,reescrito em 1994 e em 2004), Dennis Meadows afirmava:“Vejo o colapso já acontecendo” (Mukerjee, 2012). E em2017, em uma entrevista à ONG We Love Earth, Meadowsreiterava sua convicção: “We are seeing colapse. I mean,my goodness, look around. If this isn’t collapse, then whatdo you call it. (…) We are in a period of collapse now,which will intensify”5. Já está se intensificando, no que dizrespeito, por exemplo, a incêndios florestais cada vez maisfrequentes, extremos e incontroláveis (embora devidos afatores concretos diversos), do Brasil aos EUA, à Europa, àGroenlândia, a vastas extensões do Ártico, à Indonésia e àAustrália, no que já se tem chamado a “aurora do Piroceno”(Vaughan, “Dawn of the pyrocene”, 2019).

O aquecimento atual é semprecedentes no Holoceno e está seacelerando

Seria fácil citar outras autoridades científicas e documentoscoletivos em apoio à percepção de que o colapsoambiental não é mais apenas um cenário eventual dofuturo, com todo o peso de incerteza que se reserva a estapalavra. Mais eficiente, entretanto, que alinhar essasincontáveis advertências, é descrever brevemente asevidências que as sucitam, a começar pelas dinâmicasatuais do sistema climático. O aquecimento de 0,8°C,

atingido em 2010, já havia nos retirado da zona de umclima seguro para a humanidade e nos arremessado emmare incognitum, tendo ultrapassado em cerca de 0,1°C ochamado Máximo Holoceno, o período mais quente (entre8 mil e 5 mil anos AP) da época geológica precedente, oHoloceno (11.700 anos AP–1950),6 tal como mostra aFigura 1.

6. Embora ainda não oficialmente confirmada, considera-seque a época geológica atual é o Antropoceno, com inícioem 1950, segundo uma proposta prevalecente(Zalasiewicz 2014; Zalasiewicz et al. 2015; Steffen et al.2015).

Figura 1: Evolução da temperatura média superficial do planeta após a última deglaciação

(curva verde, 20.000–12.000 AP) com variação negativa e positiva máxima de 0,7°C

durante o Holoceno (curva azul, 11.700 AP–1950). Em vermelho, o aquecimento global no

Antropoceno, com expectativa, mantidas as condições presentes, de um aquecimento

superior a 3°C acima do período pré-industrial no século XXI.

Fonte: Shaun A. Marcott et al. “A Reconstruction of Regional and Global Temperature for

the Past 11,300 Years”. Science, 339, 8/III/2013.

<http://science.sciencemag.org/content/339/6124/1198>

Desde 2010, saímos da zona de segurança climática eadentramos uma zona de risco crescente ou de alto risco,para empregar os termos utilizados pelo StockholmResilience Center (Rockström et al., 2009; Rockström &Wijkman, 2012; Steffen, 2015). De fato, se “cada décadadesde a de 1970 foi claramente mais quente que a décadaprecedente”7, desde 2014, a curva do aquecimento pareceacelerar-se ainda mais, como mostra a Figura 2.

7. Climate Change: A Summary of the Science, RoyalAcademy, 2010.

Figura 2: Temperatura global superficial entre 1880 e 2019 em relação ao período 1880-

1920.

Fonte: HANSEN, James et al., Global Temperature in 2019. Goddard Institute for Space

Studies, 15/1/2020.

Em 2015, o aquecimento médio superficial global, terrestree marítimo combinados, ultrapassou 1°C acima do períodopré-industrial (1850-1900). Segundo Hansen e colegas(2020), a temperatura média global em 2019 atingiu 1,2°Cacima do período 1880-1920. Já em setembro de 2019, aCopernicus, agência europeia do clima, afirmava que“temperaturas mensais nos últimos 12 meses ficaram emmédia próximas de 1,2°C acima do período pré-industrial”8.Desde 2008, a temperatura média de todos os meses doano tem sido maior, ou muito maior, que as médias mensaiscorrespondentes do período 1981-2010, como nos dá a vera Figura 3.

8. Copernicus, Surface air temperature for September2019.

Figura 3: Anomalias nas médias mensais de temperatura em relação ao período 1981-

2010, de janeiro de 1979 a setembro de 2019. As barras verticais em preto designam os

meses de setembro.

Fonte: Copernicus Climate Change Service/ECMWF, a partir de dados da ERA5.

Os termômetros mostram que 19 dos últimos 20 anosforam os mais quentes dos registros históricosinstrumentais (desde 1880). Mostram também que os

últimos seis anos (2014–2019) foram os mais quentesnessa série de 140 anos e que o ano de 2019 foi o segundomais quente. Apenas 2016, ano de um fortíssimo El Niño,foi ainda mais quente que 2019, mas por uma diferençamínima (0,04°C, se considerado o ano-calendário), comoafirma o Copernicus:

Globalmente, o ano-calendário de 2019 foi 0,59°C maisquente que a média do período 1981-2010. O maisquente período de 12 meses foi Outubro 2015-Setembro 2016, com uma temperatura 0,66°C acima damédia desse período. 2016 é o ano-calendário maisquente dos registros históricos, com uma temperaturamédia global 0,63°C acima do período 1981-2010.2019 tornou-se o segundo ano mais quente nesseregistro. O terceiro ano-calendário mais quente foi 2017,com uma temperatura 0,54°C acima da médio desseperíodo.

Entre 2015 e 2019, a temperatura média anual do planetaelevou-se 0,2°C, um ritmo consistente, portanto, com oaquecimento de 0,43°C verificado no decênio 2008–2017,em relação ao período pré-industrial, tal como apontadopelo Data Center da Chiangmay University. Trata-se deuma aceleração brutal. O ritmo do aquecimento médioglobal multiplica-se por 2,5 no período 2008–2017,comparado com 1970–2014, como mostra a Figura 4.

Figura 4: Temperaturas médias globais superficiais, terrestre e marítima combinadas,

entre 1850 e 2017 em relação ao período 1951-1980 e comparação do ritmo de aumento

médio por década entre os períodos 2008-2017 (0,43°C/década) e 1970-2014

(0.17°C/década).

Fonte: Climate Change Data Center da Chiangmay University.

Também os oceanos estão se aquecendo agora muito maisrapidamente que previsto. Os últimos dez anos foram osdez anos mais quentes dos registros históricos nosoceanos. Os cinco últimos anos foram os mais quentesdesses registros e 2019 foi o ano mais quente, batendopela terceira vez os recordes sucessivos de 2017 e 2018nas temperaturas oceânicas. A taxa de aceleração desseaquecimento é demonstrada pelo fato de que os oceanosse aqueceram cerca de 4,5 vezes mais rápido no período1987–2019, comparado com a taxa de aquecimento noperíodo 1955–1986. “A quantidade de calor absorvidapelos oceanos nos últimos 25 anos”, afirma Lijing Cheng,“equivale à explosão de 3,6 bilhões de bombas atômicasde Hiroshima” (Cheng et al. 2019; Cheng et al. 2020;Brackett 2020).

Mais aquecimento é inevitável

Qualquer esperança de desaceleração do aquecimento nospróximos anos, mantido o entrincheiramento dosinvestimentos nos combustíveis fósseis, é tolo otimismo.Mais aquecimento é doravante inevitável, dado o atualdesequilíbrio energético do planeta (Earth EnergyImbalance, EEI), causado por concentrações atmosféricasexcedentes de gases de efeito estufa (GEE). SegundoJames Hansen9:

Há um desequilíbrio energético temporário. Mais energiaestá chegando do que saindo da Terra e isso continuaráaté que a Terra se aqueça o bastante para de novoirradiar para fora tanta energia quanto ela absorve dosol. Mais aquecimento já é inevitável e ocorrerá mesmosem mais emissões de gases de efeito estufa.

É precisamente ao aquecimento futuro inevitáveldecorrente desse desequilíbrio energético do planeta quese refere, por exemplo, o documento publicado em 9 deSetembro de 2018 pelo jornal Libération: SOS de 700Cientistas, documento que se inicia por esse veredito: “Jáentramos plenamente no ‘futuro climáticoʼ” (« Noussommes d’ores et déjà pleinement entrés dans le ‹ futurclimatique › »). Em outras palavras, o aquecimento edemais desequilíbrios sucessivos do sistema climáticoestão já embutidos (locked in) nesse desequilíbrioenergético planetário e no ímpeto de sua dinâmica. Ocorreque, além desse aquecimento termodinâmico, inercial einevitável, a dinâmica expansiva, igualmente inevitável, docapitalismo global continua aumentando a queima devolumes sempre mais colossais de combustíveis fósseis.Em consequência disso, a rapidez do aumento dasconcentrações atmosféricas de GEE é hoje semprecedentes nos últimos 55 milhões de anos, conformeuma revisão da U.S. National Research Council of theNational Academies (Somero et al. 2013):

Os aumentos precedentes de níveis de CO2 ocorreramdurante períodos de centenas de milhares a milhões de

anos e, portanto, diferem consideravelmente do rápidoaumento dos dias atuais relacionado às atividadeshumanas. A taxa atual de aumento no nível de dióxidode carbono atmosférico é sem precedentes nos últimos55 milhões de anos. A taxa é muito maior do queocorreu mesmo nos eventos mais rápidos conhecidosda história da Terra, e cada um desses eventospassados foi acompanhado por importantes mudançasna química do oceano e extinções em massa da vidaoceânica ou terrestre ou ambas.

A rapidez do aumento, mais ainda que o montante atual,dessas concentrações atmosféricas de GEE é, de fato, oelemento mais preocupante, pois ela suprime o fator tempo,crucial para a adaptação das espécies, inclusive a nossa. Econtinuamos a lançar cada vez mais lenha na fornalha,conforme mostra a Figura 5.

Figura 5: Consumo global por tipo de combustível fóssil entre 1965 e 2018, em TWh.

Fonte: Our World in data, baseado em BP Statistical Review of Global Energy (2019).

Malgrado declarações bombásticas em contrário, osgovernos e a rede corporativa, que controlam osinvestimentos estratégicos da sociedade, continuamengajados no aprofundamento da crise climática. Osnúmeros o dizem. Em 2009, os governos do G20comprometeram-se a descontinuar os subsídios à indústriade combustíveis fósseis. Em 2017, os subsídios diretos aessa indústria atingiram US$ 296 bilhões por ano, segundoum relatório do FMI (Coady et al. 2019). Ainda segundo

esse relatório, os subsídios indiretos e invisíveis, vale dizer,a diferença entre o custo final do produto para ascompanhias e o custo dos malefícios causados por essescombustíveis que a sociedade paga, isto é, seu custo real,incluindo os custos sociais da poluição do ar, da terra e daágua, os impactos sobre a saúde pública, os impactossobre a biosfera e sobre o sistema climático, elevavam-seem 2017 a US$ 5,2 trilhões, 6,5% do PIB mundial eUS$ 500 bilhões a mais do que haviam sido em 2015.

Mais ingentes que os subsídios são os investimentosdiretos, em especial do setor financeiro, conforme mostrouo documento Banking on Climate Change. Fossil FuelFinance Report Card 201910. Apenas entre 2016 e 2018,com o Acordo de Paris já em vigência, 33 bancoscanadenses, chineses, europeus, japoneses e dos EUAcanalizaram US$ 1,9 trilhão para a indústria decombustíveis fósseis, numa trajetória de aumento dessesfinanciamentos a cada ano: 2016 — US$ 612 bilhões;2017 — US$ 646 bilhões e 2018 — US$ 654 bilhões. Parase ter uma ideia de contexto, os investimentos em energiasolar em 2018 foram de US$ 131 bilhões (Chivers, 2019),isto é, apenas um quinto dos investimentos diretos emcombustíveis fósseis nesse mesmo ano e menos que osfinanciamentos apenas do JP Morgan Chase emcombustíveis fósseis nesse triênio (US$ 196 bilhões).Em 2017, as transferências de recursos para a indústria deareias betuminosas cresceram 111% em relação a 2016,sendo este o setor mais pesadamente financiado no âmbito

dos combustíveis fósseis (Hill, 2018). As três maioresadministradoras de ativos financeiros do mundo — TheVanguard Group, State Street Corporation e Blackrock —canalizaram nesse triênio US$ 300 bilhões eminvestimentos na indústria de combustíveis fósseis.Blackrock, a maior administradora de fundos do mundo,com US$ 7 trilhões em ativos, é também a maiorinvestidora em novas minas de carvão, uma das maioresinvestidoras em petróleo e gás e a maior investidora dosEUA em destruição das florestas tropicais. Juntos, essas“Big Three” gerem ativos maiores que o PIB da China e osativos em carvão, petróleo e gás por elas administradosaumentaram 34,8% desde 2016 (Greenfield, 2019). O CEOda Blackrock, Larry Fink, acaba de declarar que pretendedecuplicar seus ativos “sustentáveis”, dos atuais US$ 90bilhões para US$ 1 trilhão em uma década (Henderson,Nauman, Edgecliffe-Johnson, 2020). Declarações dogênero tergiversam sobre o que importa: desinvestirdrasticamente em combustíveis fósseis. Os que controlamos investimentos não demonstram na prática essa intenção,pois isso significaria renunciar a oportunidades de ganhosimediatos. Preferem impelir a humanidade à ruína enquantofomentam a crença de que os mercados, induzidos por“carbon taxes” e outros “virtuosos” mecanismos de preços,guiarão em breve a humanidade à terra prometida datransição energética…

A meta de 2°C já é inalcançável

Enquanto nosso futuro é sacrificado no altar do mercado,os dados paleoclimáticos ensinam que o planeta em quevivemos hoje já não admite mais a meta de 2°C. Comolembra Petteri Taalas, secretário-geral da OrganizaçãoMeteorológica Mundial: “A última vez que a Terraapresentou concentrações atmosféricas de CO2comparáveis às atuais foi há 3 a 5 milhões de anos. Nessaépoca, a temperatura estava 2°C a 3°C [acima do períodopré-industrial] e o nível do mar estava 10 a 20 metros maisalto que hoje” (McGrath, 2019). O MET Office, a agênciabritânica do clima, afirma que o decênio 2014-2023 será omais quente dos últimos 150 anos. Além do que mostra aFigura 5, acima, as emissões de GEE são magnificadaspelo agronegócio, que desmata e queima as florestastropicais numa escala jamais vista: 3,61 milhões de km² decobertura arbórea foram suprimidos do planeta entre 2001e 2018, segundo dados do Global Forest Watch, ilustradosna Figura 6.

Figura 6: Perdas anuais de cobertura arbórea entre 2001 e 2018 em milhões de hectares.

Fonte: Global Forest Watch (GFW)

É preciso admitir sem mais delongas que, nos marcos doatual sistema político-econômico global, a meta de nãoultrapassar um aquecimento médio global de 2°C acima doperíodo industrial é inatingível. Declarações independentesde numerosos e eminentes climatologistas (feitas àmargem dos relatórios oficiais do IPCC, necessariamentemais reticentes) reiteram essa percepção. Andrew Simms(2017) interrogou-os a respeito das chances de não

ultrapassarmos essas colunas de Hércules do aquecimentoglobal. A resposta unânime é de que tais chances sãoínfimas ou nulas. Gavin Schmidt, diretor do GoddardInstitute for Space Studies da Nasa, é categórico: “A inérciano sistema (oceanos, economias, tecnologias, pessoas) ésubstancial e até agora os esforços não são comensuráveiscom os objetivos”. Glenn Peters, pesquisador sênior doCicero (Noruega), é da mesma opinião: “Já emitimos [GEE]demais”. Em suma, relata Andrew Simms, “nenhum doscientistas entrevistados pensa ser provável que a meta de2°C será atingida. Bill McGuire, professor emérito de riscosgeofísicos e climáticos na University College London, émais enfático: “Minha opinião pessoal é que não háabsolutamente qualquer chance”.

Como um aquecimento dessa magnitude se traduz emimpactos? As figuras 7 e 8 (Tollefson 2019) mostram adiferença entre um aquecimento de 1,5°C e de 2°C.

Figura 7: Milhões de pessoas afetadas por um aquecimento de 1,5°C, no que se refere à

exposição a ondas de calor, estresse hídrico, risco de produção de energia, mudanças nas

colheitas e degradação do habitat. Baseado em IPCC/Byers et al. (2018).

Fonte: TOLLEFSON, Jeff, “The hard truths of climate change — by the numbers”. Nature,

18/9/2019.

Figura 8: Milhões de pessoas afetadas por um aquecimento de 2°C, no que se refere à

exposição a ondas de calor, estresse hídrico, risco de produção de energia, mudanças nas

colheitas e degradação do habitat. Baseado em IPCC/Byers et al. (2018).

Fonte: TOLLEFSON, Jeff, The hard truths of climate change — by the numbers. Nature,

18/9/2019.

Como demonstra a simples comparação entre as Figuras 7

e 8, um mundo 2°C em média mais quente do que operíodo pré-industrial é muito mais adverso do que ummundo moldado por um aquecimento, já profundamenteameaçador, de 1,5°C. Ele implica mais de 2 bilhões depessoas a mais submetidas a ondas de calor extremo;cerca de 300 milhões de pessoas a mais sujeitas aestresse hídrico; outras tantas a mais sofrendo quebras desafras e quase 600 milhões de pessoas a mais vivendo emhabitats degradados. O desastre é muito maior seincluirmos a elevação do nível do mar, abaixo examinada,mas pode ser ainda maior, deve-se temer, dados osimpactos não modelados e ainda desconhecidos. De fato,para os cientistas do Real Climate, um aquecimento médioglobal de 2°C “deixaria a Terra mais quente do que o foi emmilhões de anos”11. Um trabalho publicado em abril de2019 por Matteo Willeit e colegas na revista ScienceAdvances precisa cronologicamente esta afirmação: “atemperatura global jamais excedeu os valores pré-industriais em mais de 2°C durante o Quaternário” (osúltimos 2,58 milhões de anos). Estamos, portanto,condenando-nos a uma temperatura média planetária quenossa espécie e a fortiori as civilizações florescidas nos 11milênios de estabilidade climática do Holoceno jamaisenfrentaram.

11. O Real Climate é um blog criado em 2004 poreminentes climatologistas como Gavin Schmidt, MichaelMann, Raymond Bradley, Caspar Ammann, entre outros. Cf.Hit the breaks hard, 29/4/2009: “Global warming of 2°C

would leave the Earth warmer than it has been in millionsof years”.

Quando esse nível calamitoso de aquecimento deve seratingido? A se confirmarem diversas projeções, entre asquais as de Michael E. Mann (2014), em meados dos anos2030. Para não se ultrapassar o limiar de 2°C, afirma Mann,as concentrações atmosféricas de CO2 deveriam ter-semantido abaixo de 405 ppm. Em maio de 2019 elasromperam o limiar de 415 ppm e suas taxas de aumentoquase triplicaram em seis décadas, como mostra a Tabela1.

Tabela 1: Taxa de aumento das concentrações atmosféricas de CO2 por década desde

1960-1969.

Fonte: Mauna Loa Observatory (MLO) <https://www.co2.earth/co2-acceleration>

A estimativa de Michael Mann é compartilhada pelo GlobalCarbon Project, segundo a qual, se as emissões de CO2fossem mantidas nos níveis de 2016, haveria 66% dechance de que o orçamento carbono para 2°C viesse a serexcedido em 2037, uma vez atingidas emissõescumulativas de 3 trilhões de toneladas de CO2.Aumentando essas emissões em 2% ao ano após 2016(estamos pouco abaixo disso no triênio 2017-2019), esseorçamento será superado antes, conforme mostra aFigura 9.

Figura 9: Emissões cumulativas de CO2 observadas entre 1960 e 2016, e projetadas até

2080, em correspondência com os orçamentos de carbono para 2°C (2037) e 3°C

(2069), mantidas as emissões de CO2 nos níveis de 2016.

Fonte: Global Carbon Project, 2016.

Um aquecimento de 1,5°C é iminentee será atingido no terceiro decênio

Em 2016, Chris Field, co-diretor do IPCC, declarou: “A metade 1,5°C parece agora impossível ou ao menos uma tarefamuito, muito difícil” (McKie, 2016). Na COP24, Hans-Joachim Schellnhuber desabafou: “Vamos perder a meta[de 1,5°C] com certeza”. (Angelo, 2018). De fato, o METOffice prevê um aquecimento de até 1,57°C acima dosníveis de 1850–1900 em ao menos um ano até 202312.A Figura 10 mostra esse prognóstico do MET Office:

12. Cf. MET Office, Forecast suggests Earth’s warmestperiod on record, 6/II/2019; McGrath (2019).

Figura 10: Projeção de temperaturas médias globais anuais nos anos 2019-2023, em

relação ao período 1850-1900.

Fonte: MET Office, “Forecast suggests Earthʼs warmest period on record”, 6/2/2019.

Esse primeiro patamar do caos climático pode serultrapassado momentaneamente até 2023, e deve sercruzado irreversivelmente logo em seguida. Em 2016, KevinTrenberth observou: “Não vejo em absoluto como nãoultrapassaremos o limite de 1,5°C na próxima década ounum prazo do gênero” (Schlossberg, 2016). Para YangyangXu, Veerabhadran Ramanathan e David Victor (2018), ameta de 1,5°C será cruzada por volta de 2030, bem antesdo que sugere o IPCC. “Novas simulações”, afirmam os

autores, “predizem que o aquecimento global evoluiráexponencialmente com emissões incontidas”. É o quemostra a Figura 11.

Figura 11: Aceleração do aquecimento global segundo as projeções do IPCC e segundo

as projeções dos autores (linha vermelha).

Fonte: Yangyang Xu; Veerabhadran Ramanathan & David Victor, “Global Warming will

happen faster than we think”. Nature, 5/XII/2018.

Também Benjamin Henley e Andrew King (2017) projetamum aquecimento de 1,5°C entre 2026 e 2031, dependendoda fase prevalecente da Oscilação Interdacadal do Pacífico(IPO), e o Climate Central projeta 1,5°C para o quinquênio2025–2030, conforme mostra a Figura 12.

Figura 12: Projeção de aquecimento médio superficial global, terrestre e marítimo

combinados, em relação ao período pré-industrial (1850-1900), segundo duas trajetórias:

1) a trajetória atual (RCP 8.5 W/m²); 2) trajetória com cortes extremos de emissões de

gases de efeito estufa (RCP 2.6 W/m²).

Fonte: Climate Central Research Report, Flirting with the 1.5°C Threshold. 20/4/2016.

O gráfico acima mostra duas trajetórias: emissõesincontidas de GEE (RCP8.5) e emissões radicalmentereduzidas (RCP2,6). Em ambas, o limite de aquecimento de1,5°C será cruzado. Mas a diferença entre elas é crucial. Natrajetória caracterizada por reduções extremas de emissõesde GEE (RCP 2.6 W/m²), o limite de 1,5°C só é cruzado porvolta de 2040. Em seguida, o aquecimento perde força e oclima estabiliza-se por volta de 2050. Essa trajetóriaconcede muito mais tempo para a adaptação, para arecuperação das florestas e para a substituição de

combustíveis fósseis por energias renováveis de baixocarbono, além de aumentar as chances de generalizaçãode tecnologias capazes de lidar com esse novo estado doclima. Já na trajetória atual (RCP8.5 W/m²), o aquecimentode 1,5°C é cruzado nos próximos cinco a dez anos, emrápida transição para aquecimentos cada vez maiores nosdecênios sucessivos: um aquecimento de 2°C éultrapassado nos anos 2030 e o aquecimento médio globalchega em 2100 a superar 4,5°C, com margens deincerteza que vão de 3,5°C a 6°C. O intervalo de incertezaentre esses dois extremos (3,5°C–6°C) não é obviamenteirrelevante, mas, repita-se, qualquer aquecimento acima de3°C é considerado catastrófico, isto é, suficiente parapossivelmente inviabilizar qualquer projeto de sociedadeorganizada.

Colapso da criosfera e elevação donível do mar

As 13 menores extensões do gelo marítimo no Árticoocorreram nos últimos 13 anos, sendo 2007, 2012 e 2019os três piores anos, como mostra a Figura 13.

Figura 13: Extensão média do gelo marítimo no Ártico entre outubro de 1979 e outubro de

2019 (em milhões de km²).

Fonte: National Snow and Ice Data Center.

A extensão média do gelo marítimo no Ártico atingiu seumínimo histórico para outubro em 2019. Segundo o

National Snow and Ice Data Center (NSIDC), “a taxa linearde declínio para Outubro é 81.400 km² por ano, ou 9,8%por década em relação à média do período 1981–2010”.Como se pode observar na Figura 13, o ritmo desse degelonão é uniforme, o que dificulta projeções sobre a data doprimeiro “Blue Ocean Event” (BOE), isto é, o momento emque a extensão do gelo marinho do Ártico cairá, no final doverão, abaixo de 1 milhão de km². Um primeiro BOE podeadvir doravante em qualquer final de verão setentrional e,de qualquer modo, ainda no segundo quarto deste século.O impacto desse degelo é imenso. Como afirma PeterWadhams (2017): “Quando o gelo marítimo estival [doÁrtico] ceder lugar ao oceano aberto, o albedo diminuirá de0,6 a 0,1, o que acelerará sucessivamente o aquecimentodo Ártico e de todo o planeta”. Acelerará sobretudo odegelo do permafrost terrestre, os solos permanentementegelados. Foi recentemente sugerido, a partir de dadospaleoclimáticos, que o permafrost terrestre, que cobre 24%das terras setentrionais, torna-se particularmentevulnerável nos períodos em que o gelo marítimo no Árticoatinge menores extensões (Vaks, Mason, Henderson,2020). Ora, o derretimento do permafrost terrestre e dossedimentos marinhos no Ártico já está liberandoquantidades inquietantes de CO2. e de metano (Turetskyet al. 2019) e pode vir em breve a liberar esse gases,principalmente metano, em escala catastrófica e em umritmo não linear ou mesmo abruptamente. Motivo maior depreocupação aqui é o derretimento dos sedimentosmarinhos, muito ricos em metano, da Plataforma Marítima

da Sibéria Oriental (ESAS), com 2,1 milhões de km² de leitomarinho muito raso, isto é, com uma profundidade médiade 50 metros e mais de 75% de sua área com menos de40 metros, cada vez mais longamente exposta à radiaçãosolar, por causa da retração do gelo marinho. Para piorarainda mais esse quadro, trata-se de uma regiãotectonicamente ativa, o que pode causar liberações súbitasde metano aprisionado em seu subsolo (Schmidt, 2004;Schuur, 2015; Shakova et al., 2017; Shakhova, Semiletov,Chuvlin, 2019; Wadhams, 2017).

A cada degelo de 361,8 gigatoneladas de gelo terrestrecorresponde a elevação de 1 mm do nível médio do mar(IPCC) e, de modo geral, cerca de 90% das geleirasterrestres estão diminuindo. A Antártica perdeu quase trêstrilhões de toneladas de gelo desde 1992 e a Groenlândiaperdeu 3,8 trilhões de toneladas nesse mesmo período.A rapidez do degelo da Groenlândia quase quadruplicouentre 2003 e 2012: “o manto de gelo da Groenlândia esuas calotas periféricas estavam perdendo massa a umataxa de cerca de 102 Gt/ano [Gt = gigatonelada= um bilhão de toneladas] em 2003. Dez anos e meio maistarde, essa perda aumentou quase quatro vezes, para 393Gt/ano” (Bevis et al. 2019). E após uma breve pausa em2013, a perda de gelo nessa região voltou a se acelerar(Schwartz, 2019). Segundo Michael Bevis, autor dessasmensurações: “Estamos vendo o manto de gelo [daGroenlândia] atingir um ponto de virada”. E acrescenta:“veremos elevações cada vez mais rápidas do nível do mar

num futuro discernível. (…) Uma vez cruzado esse pontocrítico, a única questão que resta é: quão grave isso setorna?” (Rosane, 2019). O mesmo diagnóstico foiavançado por Wilfried Haeberli, um glaciologista daUniversidade de Zurique (Rich, 2018):

Muito provavelmente, o aquecimento global eliminará amaior parte das geleiras dos Alpes nas próximas poucasdécadas. Estamos presenciando agora a ultrapassagemdo ponto de virada da primeira peça de dominó — asgeleiras — num complexo sistema de peças de dominó,os sistemas naturais da Terra. E estamos perdendoopções para a ação. É tarde demais para salvar asgeleiras.

Por causa da dilatação térmica dos oceanos e do colapsodas coberturas de gelo terrestre, a aceleração da elevaçãomédia do nível do mar (GSLR) é agora vertiginosa, comomostra a Figura 14.

Figura 14: Elevação média do nível do mar segundo medições por boias (linha azul, até

1992) e por altímetros em radares de satélites, a partir de 1993.

Fonte: Hawaiʼi Climate Adaptation Portal <http://climateadaptation.hawaii.gov/sea-level-

rise/>.

Segundo John Englander (2019), “em 13 anos, de 1998 a2011, a velocidade dessa elevação mais que dobrou, de1,5 mm a 3,2 mm por ano. Nos seis anos seguintes (2012–2017), ela aumentou mais de 50%, indicando umcrescimento exponencial”. Entre 2012 e 2017, ela atingiu5 mm por ano. A NOAA (National Oceanic and Atmospheric

Administration) do EUA mostra as seguintes projeções deelevação média do nível do mar, segundo seis cenários:

Tabela 2: Cenários de elevação media do nível do mar (GMSL) em metros, a partir de

estimativas de 19 anos (1993-2012), reportadas em uma base decenal, de 2000 a 2100 e

subsequentemente fora 2120, 2150 e 2200.

Fonte: Sweet et al. 2017, NOAA, Tabela 5, p. 23. “Os cenários Low e Extreme são

cientificamente plausíveis; os outros quatro cenários correspondem a diferentes níveis,

segundo os cenários RCP2.6, RCP4.5, RCP 6.0 e RCP 8.5”.

Cinco observações podem ser feitas a partir dessa tabela:

�. Os cenários “Low” e “Intermediate-Low” podem sercientificamente plausíveis, mas não são realistas, poisassumem que não haverá aceleração ulterior naelevação média do nível do mar;

�. O cenário “High” é o mais provável, pois mantém oritmo atual de RCP8.5 W/m², tal como definido peloIPCC;

�. Segundo Sweet e colegas (2017, p. 21): “Novasevidências sobre as camadas de gelo da Antártida, semantidas, podem aumentar em muito a probabilidadedos cenários ‘Intermediate-High ,̓ ‘Highʼ e ‘Extreme ,̓sobretudo para as projeções RCP8.5”.

�. Até 2030, deve ocorrer uma elevação media global donível do mar (GMSL) entre 16 cm e 21 cm acima dosníveis de 2000 (cenários “Intermediate” a “High”),quase o equivalente aos 22,6 cm de elevaçãoobservada entre 1880 e 2013. Mesmo uma elevaçãomédia de 13 cm acima do nível de 2000(“Intermeditate Low”) será suficiente para causar

inundações calamitosas em inúmeras cidades ao redordo mundo.

�. Até 2050, essa elevação será provavelmente de cercade 50 cm, segundo os cenários mais prováveis equase certamente não inferior a 34 cm (cenário“Intermediate”) acima dos níveis de 2000.

Novas projeções acerca do nível de impacto sobre associedades da elevação média do nível do mar nospróximos três decênios foram fornecidas por Scott Kulp eBenjamin Strauss (2019), dois cientistas do ClimateCentral. Trabalhando com um modelo mais aprimorado dorelevo costeiro (Digital Elevation Model ou Coastal/DEM),eles calculam que, mantido o cenário 4.5 RCP W/m²(cenário de emissões de GEE muito abaixo do atual), cercade 300 milhões de pessoas vivem hoje em terrenos queestarão abaixo da linha da maré alta até 2050. A Tabela 3mostra a comparação entre o antigo modelo (SRTM =Shuttle Radar Topography Mission Nasa) e o novo modelo(CoastalDEM da Climate Central), no que se refere aonúmero de pessoas impactadas por inundações durante amaré alta em seis países e no total.

Tabela 3: População vivendo atualmente sob o nível da média anual de inundações

marítimas em 2050. Seis países mais atingidos, total e diferença entre os dois modelos

SRTM e CoastalDEM

Fonte: Kulp e Strauss (2019)

Como bem afirma Wilfried Haeberli, acima citado, além doclima e do declínio da criosfera, outros elementos críticos

do planeta em forte degradação — a maior parte dosecossistemas, a biodiversidade, as correntes marítimas etc.— estão prestes ou em vias de adentrar essa zona deirreversibilidade e de transição rápida para outro estado, oque deve interagir com o clima de nosso planeta edesestabilizá-lo ainda mais rapidamente. Para um semnúmero de espécies, inclusive a humana, o desequilíbrio detodos esses elementos do sistema Terra está limitando demodo crescente a habitabilidade do planeta.

A extinção em massa de espécies

Já em 2005, o relatório Ecosystems and human well-being.Synthesis, documento chave do Millennium EcosystemAssessment, afirmava:

A taxa de extinções conhecidas de espécies no séculopassado é cerca de 50 a 500 vezes maior que a taxa deextinção calculada a partir dos registros fósseis, a qual éde 0,1 a 1 extinção por 1000 espécies por 1000 anos.A taxa é até 1000 vezes maior do que as taxas de basese espécies possivelmente extintas forem incluídas.

“Os humanos estão impelindo um milhão de espécies àextinção”, afirma um artigo de grande impacto publicadoem 2017 por Gerardo Ceballos, Paul Ehrlich e Rodolfo Dirzo.Pode-se, mais uma vez, pontuar que seria mais acuradoprecisar o sujeito dessa frase: não são “os humanos” emgeral, mas o capitalismo global, presa de sua própria lógica

expansiva e destrutiva, o responsável primário daaniquilação da biodiversidade em curso. Mas o fato é que,de qualquer modo, os números não mudam: um milhão deespécies ou 12,5% do total estimado de espécies(eucariontes) podem se extinguir, muitas delas nas“próximas poucas décadas”, segundo a primeira Avaliaçãodo IPBES, publicada em maio de 2019 e bem sintetizada naFigura 15.

Figura 15: Número total estimado de espécies eucariontes e porcentagem das espécies

que podem ser levadas à extinção nas próximas poucas décadas. 10% das espécies de

insetos, 40% das espécies de anfíbios e 33% dos recifes de corais, tubarões e mamíferos

marítimos.

Fonte: <https://ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment>.

Além disso, uma entre quatro espécies de mamíferosavaliados estão ameaçadas de extinção, segundo a ListaVermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN. O LivingPlanet Index (LPI — WWF/ZSL 2018) mostra diminuiçõesverdadeiramente catastróficas das populações devertebrados no último meio século. Globalmente, 60% daspopulações de vertebrados foram eliminadas, sobretudopela ação humana, entre 1970 e 2014, porcentagem quesobe para 89% na América Central e do Sul. KennethRosenberg e colegas (2019) estimam uma perda líquida dequase 3 bilhões de pássaros na América do Norte, ou 29%de sua abundância em 1970, com acentuado declínio dabiomassa de pássaros migratórios nos últimos dez anos. NaAustrália, mais de 10 milhões de hectares devastados porincêndios sem precedentes, mas claramente previstos,

levaram à incineração imediata de mais de um bilhão devertebrados (mamíferos, répteis aves e marsupiais), muitosdeles exclusivos dessa região. Algumas espécies jáameaçadas, como o marsupial do gênero Sminthopsis(Kangaroo Island dunnart), podem ter sido inteiramenteeliminadas pelo fogo. E o número de mortes é por certomuito maior se se levar em conta outros grupostaxonômicos. “Não estamos falando apenas de koalas;estamos falando de mamíferos, aves, plantas, fungos,insetos outros invertebrados, e bactérias emicroorganismos, todos eles críticos para o sistema”, afirmaMaunu Saunders, da University of New England emArmidale. Além disso, muitos animais podem terconseguido escapar do fogo, mas quando seu habitat édestruído, eles provavelmente morrerão também, vítimas desua inadaptação a outros habitats. Para Chris Dickman, daUniversidade de Sidney, “o que estamos vendo são osefeitos das mudanças climáticas. Diz-se por vezes que aAustrália é o canário na mina de carvão, com os efeitos dasmudanças climáticas sendo vistos aqui antes e maisgravemente”13.

Em meu livro, Capitalismo e colapso ambiental (2015),sugeri o neologismo hipobiosfera para caracterizar essasituação de empobrecimento extremo da biosfera. O termose refere às últimas áreas remanescentes do planeta,vítimas de desmatamento e de defaunação em escalaindustrial, que privarão em breve a biosfera da muitas desuas formas de vida animal e vegetal ainda presentes hoje

na natureza. Estamos hoje vivendo na antessala de umahipobiosfera. Segundo Yinon Bar-On, Rob Phillips e RonMilo (2018), os humanos representam atualmente cerca de36% da biomassa de todos os animais e os animais decriação e domésticos representam 60% dessa biomassa.Os mamíferos silvestres representam hoje apenas 4% dabiomassa terrestre.

Hoje, a biomassa de seres humanos (± 0,06 Gigatoneladasde carbono, Gt C) e a biomassa dos animais de criação(± 0,1 Gt C, dominada por bovinos e porcos) superam emmuito a dos mamíferos selvagens, com uma massa de0,007 Gt C. O mesmo se aplica a aves selvagens edomesticadas. A biomassa de aves domésticas(± 0,005 Gt C, dominada por galinhas) é cerca de trêsvezes maior que a de aves selvagens (± 0,002 Gt C). (…) Aintensa caça e exploração de mamíferos marinhos diminuiuaproximadamente em cinco vezes sua biomassa global (de± 0,02 Gt C a ± 0,004 Gt C). Enquanto a biomassa total demamíferos selvagens (marinhos e terrestres) diminuiu porum fator de ± 6, a massa total de mamíferos aumentouaproximadamente quatro vezes, de ± 0,04 Gt C para± 0,17 Gt C, devido ao grande aumento da biomassa dahumanidade e do gado a ela associado.

Os impactos atuais sobre oshumanos

Não estamos ainda no nível de um “sofrimento inaudito”

(untold suffering), anunciado no início deste artigo. Masmortes e sofrimento humano e de outras espéciesdecorrentes apenas do nível atual de aquecimento médioglobal (1,2°C acima do período pré-industrial) já sãotremendos, sobretudo para as populações maisvulneráveis. Um relatório da Estratégia Internacional dasNações Unidas para a Redução de Desastres (UNISDR)alerta para o fato que14:

14. Cf. UNISDR, Economic Losses, Poverty & Disasters,1998–2017, realizado em conjunto e a partir do banco dedados do Centre for Research on the Epidemiology ofDisasters (CRED) da Université Catholique de Louvain,creditado pela OMS.

Entre 1998 e 2017, desastres geofísicos relacionados aoclima mataram 1,3 milhão de pessoas e deixaram4,4 bilhões de pessoas feridas, sem casa, deslocadasou necessitadas de assistência de emergência. (…) 91%de todos esses desastres foram causados porinundações, tempestades, secas, ondas de calor eoutros eventos meteorológicos extremos.

Os prejuízos materiais ocasionados por esses desastresnesse período, acrescenta esse documento, atingem quaseUS$ 3 trilhões (US$ 2.908 bilhões), 77% dos quais(US$ 2.245 bilhões) tiveram por causa as mudançasclimáticas. Em geral, as perdas relatadas, provocadas poreventos meteorológicos extremos, aumentaram 151% nacomparação entre os dois vintênios: 1978–1997 vs. 1998–

2017.

Sobre o aumento das ondas de calor extremo, o LancetCountdown on Health and Climate Change (Watt et al.2018) traz dados inequívocos: em 2017, ocorreram 157milhões de eventos adicionais de ondas de calor (umevento de exposição sendo uma onda de calor sofrida poruma pessoa), em relação ao período de base 1986–2005,18 milhões a mais que em 2016, tal como mostra aFigura 16.

Figura 16: Mudanças de eventos de exposição a ondas de calor (sendo um evento de

exposição entendido como uma onda de calor sofrida por uma pessoa), em relação ao

período 1986 — 2005.

Fonte: Nick Watt et al., “The 2018 report of the Lancet Countdown on health and climate

change: shaping the health of nations for centuries to come”. The Lancet, 392, dezembro

de 2018, p. 2485, figura 3. <https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-

6736%2818%2932594-7>.

Esses são indicadores de um estágio inicial de colapso.Nick Watt, coordenador do estudo, declarou, com efeito,que esses eventos “não são algo acontecendo em 2050,são coisas que estamos vendo hoje” (Carrington, 2018).

Os serviços outrora prestados pelos ecossistemas estãocada vez mais ameaçados. Uma revisão publicada por BrettScheffers e colegas na revista Science, em 2016, mostraque 82% de 94 processos ecológicos que suportam a vidano planeta (32 em ecossistemas terrestres, 31 emecossistemas marinhos e outros 31 em ecossistemas deágua doce), analisados na literatura científica, estão

sofrendo impactos das mudanças climáticas. Osecossistemas, que em nosso sonho antropocêntricojulgamos dominar, deixarão cada vez mais de nos “prestarserviços” e tornar-se-ão mais hostis ao homem e a outrasespécies ao longo deste século. Hoje, nada menos que“33% dos solos do planeta já estão degradados e mais de90% podem se tornar degradados até 2050. (…) As taxasestimadas de erosão dos solos em terras agricultáveis ouem pastos são 100 a 1000 vezes mais elevadas que astaxas de erosão natural. (…) A erosão dos solos pode levar aperda de até 50% das colheitas”. Tais são as mensagenscentrais da FAO, divulgadas no Global Symposium on SoilErosion (FAO/GSER19). Elas explicam em grande parte, aolado das mudanças climáticas e da escassez hídrica, oaumento de pessoas vitimadas pela fome e a subnutriçãopor três anos consecutivos: de 785 milhões em 2015 a 822em 2018. A maior insegurança alimentar é causadatambém pelo aquecimento e a acidificação dos oceanos,pela poluição marítima e pela sobrepesca corporativa,fatores que, combinados, ameaçam desertificar os oceanosde peixes e de outras formas de vida. No que se refere àsobrepesca, Daniel Pauly and Dirk Zeller (2016) mostramque os estoques de peixes estão declinando agora à razãode um milhão de toneladas por ano, um ritmo três vezessuperior às estimativas da FAO (Carrington, 2016). Outrofator central dessa maior insegurança alimentar e em geraldesse processo de desfiguração dos ecossistemas é, comojá mencionado, a crescente escassez hídrica, resultante daemergência climática e do uso insustentável da água pela

mineração, pela indústria de combustíveis fósseis e peloagronegócio globalizado. Ela deve afetar gravemente umterço da humanidade já ao longo do próximo decênio,criando até 2030 um déficit de 40% entre oferta edemanda de água (Siddiqi, 2017). Os lagos estão em geralse aquecendo em média 0,34°C por década desde 1985(Ravilious, 2016), com maiores níveis de evaporação,menos nutrientes e impactos enormes em suabiodiversidade e em seu potencial de alimentar oshumanos. Muitos lagos, alguns de grandes extensões,desapareceram ou sobrevivem apenas residualmente nosúltimos anos, como o Poopó na Bolívia (2.700 km²), oAtescatempa na Guatemala, o Chade no Sahel e o Poyangna China. Dados colhidos desde 2003 pelo satélite GRACE(Gravity Recovery and Climate Experiment) mostram queum terço dos 37 maiores aquíferos do mundo já estão emfase avançada de esgotamento, posto não seremregularmente realimentados pela chuva, e 21 deles estãoem declínio, sobretudo na Índia, China, EUA, vários paísesda África e da Europa e o aquífero Guarani, no Brasil. Hoje,“quase 5 bilhões de pessoas vivem em áreas ondeameaças à segurança hídrica são prováveis”(Rodell et al. 2018).

A premissa que precisamos admitir

O que fazer diante da evidência do colapso socioambientalem curso? Antes de ensaiar qualquer resposta a essaquestão inevitável, é preciso se dar conta de seu ineditismo

na história do saber humano. A escatologia, o pensamentosobre o fim, sempre pertenceu aos domínios caliginosos dareligião. Hoje, esse pensamento emana da ciência, bemcomo da experiência imediata de um número crescente desociedades ameaçadas de inviabilização. Justamente porseu caráter científico, respostas a essa questão podem seravançadas com segurança. Sabemos que as causas doprocesso de nosso colapso residem em nossos sistemasenergético, alimentar e de transporte, intensamenteemissores de GEE e destruidores da biosfera. O que sedeve fazer a respeito é igualmente conhecido: abandonaros combustíveis fósseis e o modelo agropecuáriodominante, diminuir drasticamente a dieta baseada emproteínas animais, remodelar o sistema industrial, de modoa minimizar seus impactos e resíduos e, enfim, superar acompulsão consumista dos 10% mais ricos da humanidade,detentores de cerca de 90% da riqueza material dahumanidade. Há tecnologia disponível para essasmudanças, que trarão inclusive aumento do bem-estarhumano e das demais espécies.

Isso posto, se o problema tem causas bem compreendidase suas soluções estão ao alcance de nossas tecnologias,por que continuamos a acelerar na direção errada? Por quemantemos em funcionamento a engrenagem expansiva docapitalismo, necessariamente destrutiva de um mundofinito? Afirmar que não superamos o capitalismo por causada resistência ideológica e militar das elites é uma respostaóbvia, mas não suficiente. Nenhum regime ecocida e

suicida se mantém indefinidamente pela simples força dasarmas e de narrativas enganosas. Não superamos ocapitalismo porque superá-lo requer admitir a premissa,terrivelmente dolorosa, de que um aquecimento médioglobal superficial de 1,2°C acima do período pré-industrialnos coloca numa situação-limite: o planeta se aqueceu emmédia 0,2°C apenas entre 2015 e 2019 e se prevê com altaconfiança que nos anos 2020 esse ritmo de aquecimentopermaneça ou se intensifique ainda mais, dadas suasdinâmicas inerciais e o fato de que as causas primárias doaquecimento — a queima de combustíveis fósseis e odesmatamento — continuam aumentando. Ora, nenhumasociedade, por mais recursos que tenha, permaneceminimamente funcional num planeta em média apenas 1°Cmais quente do que ele já está hoje. Como afirma Sir BrianHoskins, diretor do Grantham Institute for Climate Change:“Não temos evidência de que um aquecimento de 1,9°C éalgo com que se possa lidar facilmente, e 2,1°C é umdesastre” (Simms 2017). É um desastre não apenas porseus impactos previstos e modelados no mapa-múndi daFigura 8 (acima), mas porque tal nível de aquecimentojamais foi enfrentado pelo Homo sapiens (Willeit et al.,2019) e é, sobretudo, uma rápida transição paraaquecimentos ainda maiores, sob os quais estará em jogo asobrevivência de nossa espécie e de inúmeras outras.Engajar a sociedade no combate a essa situação-limite,mantendo e aprofundando a democracia e as liberdadescivis, é, portanto, o imperativo maior da atualidade. Esseimperativo é a premissa que temos que aceitar, com todas

as suas implicações políticas.

Qualquer analogia entre esse imperativo atual e nossopassado histórico é apenas aparente. Nos séculos XIX eXX, a crença em nossa capacidade de promover saltos esuperações históricas da ordem social inscrevia-se nodebate intelectual e no embate político em torno do“melhor” projeto de sociedade. No século XXI, não é maisde progresso que se trata. A utopia de nosso século não émais criar uma sociedade mais “desejável”. A utopia denosso século é a sobrevivência. Superar a pulsão expansivainerente ao capitalismo tornou-se uma condição elementarde viabilidade de nossas sociedades. Mas essa superaçãosó será concebível e realizável se entendermos de uma vezpor todas que a economia é um subsistema da ecologia, enão o contrário. Como reitera incessantemente HermanDaly (2015):

A economia é um subsistema aberto da mais amplaecoesfera, a qual é finita, não-crescente ematerialmente fechada, embora aberta a uma contínua,mas não crescente, transferência de energia solar. (…)Há um óbvio conflito físico entre o crescimento daeconomia e a preservação do meio ambiente.

A única saída para reconduzir a economia às possibilidadesda ecologia, de modo a evitar os piores cenários do colapsoambiental em curso, é o aprofundamento da democracia,pois só esta permite arrebatar das corporações o controledos setores estratégicos da sociedade: energia,

alimentação e transporte.

Uma plataforma política desobrevivência para o nosso tempo

As respostas da sociedade contemporânea à degradaçãoambiental permanecem, como é óbvio, insuficientes. E éforçoso reconhecer que as dinâmicas positivas, emboracrescentes, não estão evoluindo numa velocidade superioràs dinâmicas negativas. Mas é sempre bom não esquecerque, para dizê-lo nos termos de Hegel, mudançasquantitativas cumulativas podem ocultar súbitas mudançasqualitativas, de modo que novos paradigmas podem seimpor com imprevisível rapidez na mentalidade coletiva eno comportamento social. Com essa possibilidade emmente, conviria esboçar como o imperativo de engajar asociedade no combate à presente situação-limite poderiase desdobrar nos cinco pontos de uma plataforma desobrevivência:

�. diminuição da desigualdade e da pressão antrópicasobre o sistema Terra são duas faces da mesmamoeda e pressupõem-se reciprocamente. Diminuir apressão antrópica sobre os ecossistemas requeracesso universal à renda mínima e à infraestruturasanitária, a uma agricultura não destrutiva da biosfera,à gestão de resíduos, à igualdade de gêneros, aoplanejamento familiar assistido pelo Estado, àeducação e a energias renováveis de baixo carbono;

�. superação da noção de soberania nacional absoluta.Nossa sobrevivência como sociedade depende denossa capacidade de superar os limites mentais donacionalismo. Tornou-se agora imprescindível umagovernança global investida de poder mandatório noque se refere à descontinuação dos combustíveisfósseis, ao desmatamento zero e à recuperaçãoflorestal, poder este de natureza democrática, i.e.,emancipado do poder de veto de instâncias como oConselho de Segurança da ONU. Diga-se depassagem que globalização política não significa fazertabula rasa das peculiaridades culturais que fazem ariqueza da civilização humana. Significa, ao contrário,protegê-las dos mercados homogeneizantes;

�. desmontagem da globalização econômica,acompanhada por uma transfusão recíproca entretecnologias “de ponta” e saberes tradicionais. Comoafirma Yvo de Boer, ex-secretário-executivo daUNFCCC: “A única maneira de que um acordo em2015 [o Acordo de Paris] atinja o objetivo de 2°C édesmantelar a economia global” (The only way that a2015 agreement can achieve a 2°C goal is to shutdown the whole global economy) (Jung et al. 2015).Será preciso, para tanto, diminuir o consumo deenergia e bens dos 10% mais ricos, dissociando aomesmo tempo as métricas de qualidade de vida dospadrões insanos do consumismo desses 10%;

�. abandono do sistema alimentar imposto pelaagroquímica e pela finança internacional, sistema

intoxicante, altamente emissor de GEE, destruidor dasflorestas, da biodiversidade, dos recursos hídricos e,em breve, da própria agricultura. Cerca de um quartodos alimentos humanos (sem contar a alimentaçãoanimal) provém do comércio internacional (Rundgren,2018). A autossuficiência alimentar dos territórios é aúnica possibilidade de minimizar o contágio sistêmicodas próximas crises de carestia e insegurançaalimentar, a exemplo do ocorrido em 2007–2008(Ahmed, 2013);

�. enfim, engajamento total da ciência na produção deconhecimento e tecnologia voltados para a atenuaçãodo colapso, construindo pontes para a viabilização dosquatro pontos acima enunciados. A Universidadelançou luz sobre as causas e as dinâmicas das crisessocioambientais que agora se converteram emdinâmicas de colapso. Mas esse mérito só fazaumentar a necessidade, para seus membros e para aprópria instituição, de sair de suas zonas de conforto ede seus nichos de especialidade e assumir asresponsabilidades éticas e políticas de seu saber. Paratanto, é mais que nunca imprescindível levar adiante aexortação de Edgar Morin (1999) à religação dossaberes. O maior desafio intelectual do mundocontemporâneo é perfazer o duplo movimento deincorporar a cultura científica na cultura política e vice-versa.

Todas as posições democráticas dominantes do espectro

ideológico, as únicas com as quais é possível, e é mais quenunca preciso, contar para evitar o pior, não estão vivendono presente. Estão presas a agendas desenvolvimentistas,que não percebem o colapso socioambiental em cursosenão como uma remota eventualidade futura. Insista-se:não há contradição entre a “velha” agenda de justiça sociale a nova agenda ditada pela emergência climática eambiental. Pelo contrário! Há convergência einterdependência entre elas, desde que não se reduza anoção de desenvolvimento ao simples crescimento do PIB.

Alguns grupos e movimentos sociais já despertaram paraas realidades terrivelmente sombrias do presente e dosegundo quarto do século XXI e as estão confrontando: ospovos indígenas e tradicionais das Américas, no Brasil,especificamente, também setores do MST e da Igreja e, emgeral, ONGs e movimentos como os Fridays for Future, oExtinction Rebellion, entre muitos outros movimentos,sobretudo juvenis e feministas. Contagiar setorescrescentes da sociedade com a lucidez e a energia dessesgrupos e movimentos sociais, por mais irrealista que essatarefa pareça hoje, é, paradoxalmente, a única formarealista de encarar os anos 2020, ao longo dos quais odestino da humanidade será decidido. Num artigo-editorialda Science Advances, Thomas Lovejoy e Carlos Nobre(2019) afirmam sobre a Amazônia: “Hoje, estamosexatamente diante de um momento de destino: o ponto deinflexão está aqui, é agora”. Trata-se de uma evidência paraa Amazônia, mas essa evidência se aplica, embora com

ênfases regionais e em graus diversos, ao sistema Terracomo um todo. Vivemos os últimos anos em que a históriahumana ainda poderá ser escrita fundamentalmente peloshomens. Perder essa última chance significa perder nossoprotagonismo sobre nosso próprio destino, pois a históriaserá cada vez mais preponderantemente escrita pelas alçasde retroalimentação dos desequilíbrios antropogênicos dosistema Terra, em especial os desequilíbrios do sistemaclimático e da biosfera, em estreita sinergia.

Acima reportei que mais aquecimento virá, inevitavelmente,isto é, mesmo se não adicionássemos a partir de hojenenhum grama de GEE à atmosfera e aos oceanos. Issosignifica que pela primeira vez na história modernaestamos condenados a um futuro pior. A questão é: quãopior? Isso ainda depende de nós. Muito ainda pode serevitado, à condição de agirmos aqui e agora para atenuar aespiral destrutiva. Essa é a mensagem central da ciência,da razão, do direito, da solidariedade entre os humanos ede nossa dependência existencial de inúmeras outrasespécies, com as quais precisamos aprender acompartilhar este planeta. Cada décimo de grau a menosno aquecimento global e cada espécie preservada é crucial,pois cada décimo de grau a mais e cada ameaça deextinção implicam doravante um planeta muito mais hostil anós e à vida em geral.